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OS ÚLTIMOS ANOS DE D. JOSÉ VIEIRA ALVERNAZ NA DIOCESE DE GOA E DAMÃO MARIA GUIOMAR LIMA Lima, M. G. (2007), Os últimos anos de D. José Vieira Alvernaz na diocese de Goa e Damão. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 16: 225-244. Sumário: Em Outubro de 1961 o arcebispo de Goa e Damão e Patriarca das Índias Orientais D. José Vieira Alvernaz informou a Secretaria de Estado do Vaticano da sua intenção de pedir a resignação por motivos de saúde mas o pedido não foi aceite. Este artigo relata as tentativas do arcebispo Alvernaz para ser substituído e a oposição do governo português que queria manter em Goa um prelado europeu. Mais relata a nomeação de D. José Pedro da Silva como bispo- -coadjutor em Novembro de 1961 por escolha de Oliveira Salazar, a invasão do Estado da Índia no mês seguinte, o papel desempenhado pelo arcebispo Alvernaz na rendição das tropas portu- guesas, os meses que viveu no território depois da invasão, a saída da diocese em Setembro de 1962 e o regresso aos Açores (onde residiu durante duas décadas) em Janeiro do ano seguinte. Mais ainda, relata a nomeação do goês D. Francisco Xavier da Piedade Rebello para bispo- -auxiliar da diocese de Goa em Setembro de 1963 e para administrador-apostólico três anos mais tarde. Foram utilizados documentos do Arquivo Histórico e Diplomático, Arquivo Histó- rico Ultramarino e Arquivo de Oliveira Salazar, notícias de jornais, dados do Boletim Episcopal da Arquidiocese de Goa e relatos da invasão feitos por dois militares portugueses. Lima, M. G. (2007), The last years of D. José Vieira Alvernaz on the diocese of Goa and Damão. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 16: 225-244. Summary: In October 1961, the archbishop of Goa and Damão and Patriarch of the Oriental Indies D. José Vieira Alvernaz informed the Vatican’s Secretary of State of his wish to resign adducing health reasons. His request was not accepted. This article focuses on the various ways by witch the archbishop tried to find a substitute as well as the opposition of the Portuguese government and its attempts to keep in Goa a European prelate. The paper addresses also the appointment by Salazar of D. José Pedro da Silva as co-adjutor bishop of Goa and Damão in November 1961; the invasion of Goa the following month; the role played by archbishop Alvernaz on the surrender of Portuguese forces, as well the events occurred in the ensuing months he spent in Goa after the invasion; the way he left the diocese in September 1962, and his return to the Azores (where he lived for two decades) in January of the following year. It also discusses the appointment of the Goanese D. Francisco Xavier da Piedade Rebello as auxiliary bishop of the diocese of Goa in September 1963, and, three years later, as a Religious Administrator.

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Page 1: Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 16: 225-244. · rico Ultramarino e Arquivo de Oliveira Salazar, notícias de jornais, dados do Boletim Episcopal da Arquidiocese de Goa e relatos

OS ÚLTIMOS ANOS DE D. JOSÉ VIEIRA ALVERNAZ

NA DIOCESE DE GOA E DAMÃO

MARIA GUIOMAR LIMA

Lima, M. G. (2007), Os últimos anos de D. José Vieira Alvernaz na diocesede Goa e Damão. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 16: 225-244.

Sumário: Em Outubro de 1961 o arcebispo de Goa e Damão e Patriarca das Índias OrientaisD. José Vieira Alvernaz informou a Secretaria de Estado do Vaticano da sua intenção de pedir aresignação por motivos de saúde mas o pedido não foi aceite. Este artigo relata as tentativas doarcebispo Alvernaz para ser substituído e a oposição do governo português que queria manterem Goa um prelado europeu. Mais relata a nomeação de D. José Pedro da Silva como bispo--coadjutor em Novembro de 1961 por escolha de Oliveira Salazar, a invasão do Estado da Índiano mês seguinte, o papel desempenhado pelo arcebispo Alvernaz na rendição das tropas portu-guesas, os meses que viveu no território depois da invasão, a saída da diocese em Setembro de1962 e o regresso aos Açores (onde residiu durante duas décadas) em Janeiro do ano seguinte.Mais ainda, relata a nomeação do goês D. Francisco Xavier da Piedade Rebello para bispo--auxiliar da diocese de Goa em Setembro de 1963 e para administrador-apostólico três anosmais tarde. Foram utilizados documentos do Arquivo Histórico e Diplomático, Arquivo Histó-rico Ultramarino e Arquivo de Oliveira Salazar, notícias de jornais, dados do Boletim Episcopalda Arquidiocese de Goa e relatos da invasão feitos por dois militares portugueses.

Lima, M. G. (2007), The last years of D. José Vieira Alvernaz on the dioceseof Goa and Damão. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 16: 225-244.

Summary: In October 1961, the archbishop of Goa and Damão and Patriarch of the OrientalIndies D. José Vieira Alvernaz informed the Vatican’s Secretary of State of his wish to resignadducing health reasons. His request was not accepted. This article focuses on the various waysby witch the archbishop tried to find a substitute as well as the opposition of the Portuguesegovernment and its attempts to keep in Goa a European prelate. The paper addresses also theappointment by Salazar of D. José Pedro da Silva as co-adjutor bishop of Goa and Damãoin November 1961; the invasion of Goa the following month; the role played by archbishopAlvernaz on the surrender of Portuguese forces, as well the events occurred in the ensuingmonths he spent in Goa after the invasion; the way he left the diocese in September 1962,and his return to the Azores (where he lived for two decades) in January of the following year.It also discusses the appointment of the Goanese D. Francisco Xavier da Piedade Rebello asauxiliary bishop of the diocese of Goa in September 1963, and, three years later, as a ReligiousAdministrator.

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D. José Vieira Alvernaz (1898-1986)foi o último arcebispo português deGoa e Damão, o derradeiro Patriarcadas Índias Orientais. Dirigiu a dioce-se durante oito anos numa altura emque cerca de 42 por cento da popu-lação era católica, surpreendendo osvisitantes com os testemunhos exte-riores de catolicismo e de cultura lati-na existentes naquela parte da Índia.Goa era então uma terra cristianizadacom igrejas caiadas, abertas paragrandes largos, onde se viam cruzei-ros monumentais, havia ermidas nosmenores povoados, capelas nas mar-gens dos rios e no cimo dos outeiros,a dominar várzeas tingidas pelo verdeclaro dos arrozais e o tom amareladodas frondes dos coqueiros, como es-creveu RIBEIRO (1999) em 1956, numrelatório encomendado pelo governo.Os habitantes das «Velhas Conquis-tas», o território que se estendia deBardez a Salcete passando pela ilha

de Goa, mostravam uma devoçãomuito viva, aos domingos e dias san-tos enchiam as igrejas até à porta, epela tarde rezavam o terço em conca-nim, a língua local, seguido da reci-tação de novenas e ladainhas, numatoada sincopada, plangente, acompa-nhada pela música de rabecas e ban-dolins. A sumptuosidade e a inten-sidade da religião católica causavaadmiração aos visitantes que entra-vam nas esplendorosas igrejas deVelha Goa e ouviam o Cabido da Sé,inteiramente formado por sacerdotesgoeses, a cantar salmos em Latimpara os fantasmas de um impériocolonial cujo esplendor há muito setinha perdido.No pequeno território coexistiam,porém, várias sociedades e culturas.Nas «Novas Conquistas», uma zonaque foi ocupada pelos portugueses noséculo XVIII para melhorar a defesae no século passado era formada por

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For the present paper, research was carried out at the Historic and Diplomatic Archives(Lisbon), the Historic and Maritime Archives (Lisbon) as well as the Oliveira Salazar Archives.In addition, various newspapers and the Diocesan Bulletin of the Archdiocese of Goa were con-sulted, together with reports of the Indian invasion by two Portuguese military officers.

Maria Guiomar Lima – Rua Prof. Sousa da Câmara, 159C, r/c Esq. 1070-215 Lisboa.

Palavras-chave: goeses, missões, nomeação, resignação, diplomacia, regime, invasão, regresso.

Key-words: goanese, missions, naming, resign, diplomacy, regime, invasion, return.

INTRODUÇÃO

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sete concelhos, a maioria dos habitan-tes praticava a religião hindu e falavaa língua marata, a qual se escrevecom símbolos diferentes do alfabetoocidental. Em simultâneo, havia emtodo o território fortes núcleos defamílias muçulmanas que mantiverama sua religião durante séculos. Nopequeno enclave de Damão os habi-tantes conversavam desde criançasnum doce crioulo, quase português,era essa a sua língua materna e, aocontrário dos goeses, mostravam-seassimilados aos europeus nos costu-mes, no sentir, sem haver distinçãoentre «naturais» do território e «des-cendentes» ou mestiços, como acon-tecia no restante território. A separa-ção de castas também era menor emDamão. Finalmente, na minúsculaparcela de Diu a população era quasetotalmente muçulmana e, com excep-ção de duas ou três famílias de funcio-nários públicos educados em Lisboa,não falava português.Nesse tempo os habitantes de Goa,Damão e Diu conheciam o patriarcadas Índias, um missionário de barbasbrancas que percorria as paróquiasdas «Velhas Conquistas» e as missõesdas «Novas Conquistas» em visitaspastorais, todos os anos. Muitas vezesviajava num «jeep» que ele próprioconduzia e misturava-se afectuosa-mente com o povo sem fazer distin-ção entre católicos, hindus ou muçul-manos. Revelava uma grande memó-

ria para caras ou nomes e com todosconversava, mas abstinha-se de pro-nunciar grandes discursos, porquedesconhecia as línguas locais.D. José Vieira Alvernaz nasceu nailha do Pico, estudou no seminário deAngra do Heroísmo, foi ordenado nacapela desse seminário em Junho de1920. Mais tarde licenciou-se emFilosofia e Direito Canónico na Uni-versidade Gregoriana e em CiênciasSociais no Instituto de Ciências Sociaisde Bergamo. Regressou à Terceira,foi pároco em Santa Luzia e na Praiada Vitória, dirigiu o colégio SennaFreitas em Ponta Delgada e o semi-nário de Angra. Ajudou a organizar aAcção Católica, colaborou nos jornaisA União e A Pátria, foi capelão daLegião Portuguesa e figura de primei-ro plano da vida da cidade de Angranos anos 1930/1940. No entanto, oúnico livro de que é autor, uma colec-tânea de textos religiosos, foi publi-cado pela Fundação Macau já depoisda sua morte (ALVERNAZ, 1999).D. José Vieira Alvernaz viveu duasdécadas no Oriente, foi bispo deCochim entre 1941 e 1950, seguida-mente foi bispo-coadjutor da diocesede Goa e arcebispo em 1953, quandoo anterior prelado, D. José da CostaNunes, partiu para Roma onde foivice-camerlengo da Santa Sé, pre-sidente do comité permanente doCongresso Eucarístico Internacional

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e cardeal da Cúria Romana, eleito emMarço de 1962.Numa altura em que havia grandeintimidade de acção entre a igreja eo governo, como escreveu AdrianoMOREIRA (1991), o arcebispo Alver-naz foi sem dúvida um homem doregime, um prelado missionário quedefendeu a política de assimilaçãopraticada nas missões, a qual não eraapenas de conversão à fé católica, erasim uma acção destinada à aceitaçãodos valores culturais dominantes eque visava a conquista de lealdadespolíticas. Contudo, opôs-se por váriasvezes a decisões de Salazar, de umaforma discreta, sem o enfrentar direc-tamente. Nas vésperas de a UniãoIndiana invadir e ocupar o EstadoPortuguês da Índia, pediu ao Vaticanoque aceitasse a sua resignação e osubstituísse por um bispo goês, o quecontrariou a orientação do governo,segundo a qual a arquidiocese de Goa

e Damão devia ser ocupada por umprelado europeu, «afastado das pe-quenas questões e conflitos de castasexistentes na Índia», como escreveuAntónio de Faria, o embaixador dePortugal na Santa Sé entre Abril de1961 e Outubro de 1968. Este diplo-mata, cuja biografia foi editada recen-temente (TELO, 2001), acompanhouos últimos anos da carreira do arce-bispo Alvernaz e deixou uma extensacorrespondência com o Ministério dosNegócios Estrangeiros e com Olivei-ra Salazar, através da qual é possívelseguir o percurso do último arcebispoportuguês no Oriente. Um percursoque se entrelaça com o fim do impériocolonial português. Segundo JaimeNogueira Pinto a queda de Goa ini-ciou um processo que havia de levarà rendição de Marcello Caetano noLargo do Carmo em Abril de 1974(PINTO, 1977).

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NOMEAÇÃO DE UM COADJUTOR

D. José Vieira Alvernaz pediu a suaresignação pela primeira vez emOutubro de 1961, dois meses antesde a União Indiana invadir o EstadoPortuguês da Índia. Foi a Roma en-tregar ao Papa um «ramalhete espiri-tual», um testemunho impressionanteda prática católica na diocese, forma-do por 917 missas, milhares de con-fissões e comunhões, terços, sacrifí-

cios, visitas ao Santíssimo Sacramen-to, horas de trabalho e horas de silên-cio (Boletim Episcopal da Arquidio-cese de Goa, Ano 20, n.º 10, Outubrode 1961: LVI), sem dúvida esperousensibilizar a igreja, a Santa Sé, paraa situação dos católicos de Goa, deforma a haver intervenção diplomá-tica junto da União Indiana, e deu aentender que se assim não aconte-

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cesse deixaria a sua diocese. Porém, aversão oficial é diferente, segundo orelato feito pelo embaixador Antóniode Faria ao governo português, D. JoséVieira Alvernaz informou a Secretariade Estado do Vaticano que tencionavaapresentar o seu pedido de resignaçãopor motivos de saúde (Arquivo Histó-rico e Diplomático, Política-África--Ásia, processo 905, maço 189).O núncio apostólico em Lisboa, mon-senhor Giovanni Panico estava emRoma nessa altura, tentou convencero arcebispo a não concretizar o seuafastamento, em sua opinião a resig-nação era inconveniente por todas asrazões «incluindo políticas», dada adificuldade de manter em Roma doispatriarcas das Índias, D. José da CostaNunes e D. José Vieira Alvernaz.Uma solução preferível seria «darquanto antes um bispo-coadjutor à Séde Goa», para o arcebispo Alvenazpoder ausentar-se da diocese durantealguns meses. Segundo o embaixa-dor, esse prelado não devia ser goês,«a experiência ensina que as comuni-dades católicas da nossa Índia sem-pre preferiram bispos europeus, maisafastados das suas pequenas questõese conflitos de castas», com o que onúncio concordou. O núncio disse aoembaixador que pensava num prela-do muito activo, ainda novo, mas nãomencionou nomes (Arquivo Históricoe Diplomático, Política-África-Ásia,processo 905, maço 189).

Por seu lado o arcebispo Alvernazsugeriu à Secretaria de Estado do Vati-cano que escolhesse um dos preladosgoeses que dirigiam dioceses africa-nas, D. Altino Ribeiro de Santana,bispo de Sá da Bandeira (Angola) ouD. José Filipe do Carmo Colaço, dadiocese de Santiago de Cabo Verde.Conheceu-os muito bem, foram seuscolaboradores na diocese de Goa,onde Ribeiro de Santana ajudou aorganizar o Congresso Mariano eCarmo Colaço foi reitor do seminá-rio. No início de Novembro a Secre-taria de Estado do Vaticano estavainclinada a aceitar a sugestão de Al-vernaz, a nomeação do primeiro bis-po goês da diocese de Goa pareciasegura, porém, a meados desse mês, oMinistério dos Negócios Estrangeirosinformou o embaixador Faria que aSanta Sé ia designar o bispo titular deTiava, D. José Pedro da Silva, umaçoriano residente em Lisboa, respon-sável nacional da Acção Católica ebispo-auxiliar do Patriarca de Lisboa.A escolha foi feita por Oliveira Sala-zar e o núncio apostólico num encon-tro privado que decorreu na residênciado presidente do Conselho. Alvernazfoi consultado informalmente pelonúncio e não se opôs, pelo contrário,escreveu ao bispo de Tiava a feli-citá-lo.O jornal do Vaticano oficializou atransferência do bispo de Tiava paraGoa sem especificar se este teria o

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direito de suceder ao arcebispo Alver-naz (Osservatore Romano, 1961: 1).Durante vários dias, o embaixadorAntónio de Faria tentou informar-sesobre as intenções da igreja, o gover-no português desejava ardentementeque se mantivesse um prelado nacio-nal à frente desta diocese, enquanto aigreja revelava bastante resistência,de tal forma que, numa carta parti-cular enviada ao embaixador Faria nofinal de Novembro, Oliveira Salazarfoi de opinião que «a Santa Sé receiafuturas alterações em Goa e mostra--se atenta apenas aos seus interesses».As relações entre Portugal e a SantaSé dependiam da Concordata e doAcordo Missionário, uma e outro assi-nados em 1940. Segundo a Concor-data, o governo devia ser consultadoantes da nomeação dos prelados resi-dentes nas dioceses portuguesas maspara o provimento da Sé de Goa alegislação era mais específica. Pri-meiro, a Santa Sé consultava os bis-pos da província eclesiástica da Índiapor intermédio do delegado apostó-lico e escolhia «o candidato portu-guês mais idóneo», depois o nomedesse candidato era transmitido con-fidencialmente ao governo através donúncio apostólico em Lisboa. Se ocandidato não oferecesse dificulda-des de ordem política, o Presidente daRepública tinha o «direito de apre-sentação», comunicava o nome docandidato à Santa Sé numa carta pro-

tocolar, como se a escolha tivessesido feita pelas autoridades portu-guesas, seguidamente as duas partescontratantes chegavam a acordo parapublicar a nomeação na mesma datano jornal do Vaticano e no Diário doGoverno (REGO, 1940: 237-238).Em contrapartida, a Arquidiocese deGoa e Damão foi o mais oneroso pri-vilégio do Estado Português, recebeuverbas para a conveniente dotaçãodas côngruas do arcebispo e de todo oclero, manutenção dos seminários,criação de escolas e orfanatos, desdea Concordata de 1886 (REGO, 1940:224). Mais tarde foi aplicado em Goao Acordo Missionário. Segundo estaúltima legislação o Estado concedeuterrenos gratuitamente às missões,isentou-as de impostos e contribui-ções, garantiu ao clero honorários con-dignos e pensões de aposentação, bemcomo despesas de viagem (GUERRA,1994: 345-346). O arcebispo de Goarecebeu do governo um ordenado equi-valente ao do governador do Estado daÍndia (cerca de 16.000$00 mensais,no final de 1961) e enviou um relató-rio anual ao Ministério do Ultramar,com o movimento do pessoal admi-nistrativo e missionário. Segundo oúltimo orçamento da arquidiocese deGoa esta recebeu 3.385.000$00 anuais,destinados ao pagamento das côngruasde todo o clero, ordenados dos pro-fessores de português (que ensinavamnas escolas paroquiais pouco mais

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que as orações), financiamento dacâmara patriarcal, dos seminários etambém uma pequena verba destina-

da ao financiamento do Montepio dosPadres Indianos (Arquivo HistóricoUltramarino, Missões, maço 34).

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REGRESSO DE ALVERNAZ A GOA

Poucos dias antes de a União Indianainvadir o Estado Português da Índia,D. José Vieira Alvernaz deixou acidade de Roma e voltou inespera-damente à sua diocese. No dia 7 deDezembro de 1961 o embaixadorAntónio de Faria informou o governo«o Patriarca das Índias veio hoje aquianunciar-me a sua partida para Goano próximo sábado, via Beirute eKarachi. Também me pareceu prefe-rível o seu regresso, especialmenteem face das últimas notícias sobreos preparativos militares da UniãoIndiana» (Arquivo Histórico e Diplo-mático, Política-África-Ásia, processo905, maço 189).Tudo indica que Alvernaz voltou aoOriente devido a esses preparativosmilitares, que eram conhecidos inter-nacionalmente. Tivera diversas con-versas com monsenhor AntónioSamoré, secretário do Vaticano paraos Assuntos Internacionais (ArquivoHistórico e Diplomático, Política--Europa-Ásia, processo 332,5, maço288) e sem dúvida este aconselhou-oa regressar à diocese por ser esse olugar onde a igreja queria que esti-vesse no caso de se concretizar ainvasão. Contudo, a explicação dada

pelo embaixador português foi outra,o Patriarca das Índias voltou à suadiocese «por lhe constar que o senhorministro do Ultramar [Adriano Mo-reira] iria a Goa no próximo dia 20de Dezembro e desejar lá estar nessaocasião» (Arquivo Histórico e Diplo-mático, Política-África-Ásia, proces-so 905, maço 189).A viagem do ministro do Ultramar aGoa esteve marcada até ao dia 18 deDezembro tal como estiveram com-binadas deslocações ao território decientistas portugueses, incluindo umavisita da geógrafa Raquel Soeiro deBrito, que devia partir de Lisboa a 16de Dezembro.Havia sinais de um conflito militarmuito sério, porém, as autoridadesportuguesas temiam ataques de guer-rilha, semelhantes aos que haviamsido desencadeados em Angola, umavez que desde 15 de Agosto, dianacional da União Indiana, se haviamacentuado os conflitos de fronteira eregistado «actos terroristas» em váriaslocalidades. Porém, na primeira se-mana de Dezembro o espaço aéreo deGoa foi sobrevoado por aviões mili-tares indianos enquanto ao largo dacosta estacionou uma força naval

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poderosa que chegou a atingir dezenae meia de contratorpedeiros e um cru-zador. Eram sinais de uma invasão enão de terrorismo, pelo que o gover-nador-geral do Estado Português daÍndia, general Vassalo e Silva deter-minou a evacuação de mulheres ecrianças no navio Índia, que para oefeito se tinha demorado no porto deMormugão, e também na companhiaaérea goesa (TAIP). O governo deLisboa mandou suspender a evacua-ção «para não causar alarme» masVassalo e Silva não cumpriu a ordem(AZEREDO, 2004: 50-51).Durante muito tempo Oliveira Sala-zar não acreditou que o ataque a Goase concretizasse, por um lado o pri-meiro-ministro indiano JawaharlalaNehru tinha uma longa fama de paci-fista, por outro parecia-lhe impos-sível que um país jovem como era ocaso da União Indiana ousasse desa-fiar a oposição dos Estados Unidos eda Inglaterra para atacar um velhoaliado desta e um país membro daNATO (ROSAS, 1999: 20). EntreAgosto e Dezembro de 1961, Olivei-ra Salazar e o ministro dos NegóciosEstrangeiros Franco Nogueira trava-ram uma batalha desesperada parasuster a invasão, como escreveu Fer-nando ROSAS (1992), e para tal recor-reram a todos os apoios diplomáticose políticos. Salazar estava seguro doapoio dos Estados Unidos, Inglaterra,Brasil e outros países sul-americanos,

teve constante auxílio de Espanha,depositou grandes esperanças na im-prensa internacional «cuja posiçãodemonstra que uma agressão a Goarepugna à consciência internacional»(Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Arquivo de Olivei-ra Salazar, Colónias-Ultramar, pasta28-A). De acordo com as instruçõesque deu ao governador-geral do Esta-do Português da Índia nas vésperas dainvasão, a primeira missão das forçasportuguesas «é provocar um escân-dalo mundial que dissuada a UniãoIndiana, a segunda missão é nãodispersar face a agentes terroristas eorganizar a defesa».O presidente do Conselho não previua possibilidade de tréguas nem prisio-neiros portugueses nem navios ren-didos «pois sinto que apenas podehaver soldados e marinheiros vito-riosos ou mortos». Num dos últimostelegramas enviados a Vassalo e Silvaconsiderou necessário que a defesade Goa se mantivesse «pelo menosdurante oito dias», tempo necessáriopara mobilizar as instâncias inter-nacionais (Instituto dos Arquivos Na-cionais/Torre do Tombo, Arquivo deOliveira Salazar, Colónias-Ultramar,pasta 28-A). Referia-se, provavel-mente, ao Conselho de Segurança daONU, que reuniu de emergência paradiscutir o caso de Goa, contudo, umveto da União Soviética impediu aaprovação de uma moção preparada

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e redigida pelos aliados de Portugal, aqual mandava suspender o conflito erecuar as tropas dos dois países para oseu ponto de partida.Alvernaz chegou a Goa a 16 deDezembro, num dos últimos voos dacompanhia TAIP, a qual transportoutodos os seus funcionários e materialpara Karachi, no Paquistão, no diaseguinte. Em Pangim ouvia-se a esta-ção All India Radio com emissões emportuguês feitas a partir de Bombaim,bem orientadas psicologicamente,não deixando dúvidas sobre a proxi-

midade de um ataque. O governo deLisboa deu ordens para ser destruídoo palácio do governador, as instala-ções do porto de Mormugão, os depó-sitos de combustível, a sede de umbanco, chegaram a ser adquiridosbidons de gasolina para incendiar opalácio do governador. Quando estasordens foram conhecidas gerou-se opânico em Pangim, de tal forma queum grupo de senhoras de Goa foipedir a intervenção do Patriarca dasÍndias junto do governador-geral(MORAIS, 1999: 135).

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INFLUÊNCIA NA RENDIÇÃO DAS FORÇAS PORTUGUESAS

A invasão de Goa começou na madru-gada de 18 de Dezembro pelo nortedo território. O aeroporto e uma esta-ção de rádio foram bombardeados demanhã cedo, a cidade de Pangim foiconstantemente sobrevoada por aviõesmilitares, agravando o pânico dosdias anteriores. Nessa manhã, D. JoséVieira Alvernaz, acompanhado docomandante-geral da polícia do EstadoPortuguês da Índia, capitão JoaquimPinto Braz, deixou o paço patriarcalem Pangim, atravessou a ilha de Goae o rio Zuari para ir a Vasco da Gama,na península de Mormugão, onde setinha refugiado o comando militar por-tuguês, seguramente com a intençãode aconselhar a rendição imediata dastropas portuguesas, ao contrário doque Oliveira Salazar pretendia, con-

tudo, há versões um pouco diferentessobre o que aconteceu.Segundo um oficial que estava emGoa, Alvernaz encontrou-se com ogeneral Vassalo e Silva cerca das 15he 30 do dia 18 de Dezembro para«interceder no sentido de ser dada or-dem de rendição». O general recusou.No dia seguinte, analisou a situaçãodas tropas portuguesas e pediu asuspensão de fogo numa mensagemao comandante das forças indianas.O Patriarca das Índias foi escolhidopara acompanhar o chefe de Estado--Maior, tenente-coronel Marques deAndrade, na entrega dessa mensagem(MORAIS, 1999: 162-167), mas nãoesteve presente quando ela foi transmi-tida, nem assistiu à rendição. Segundooutro oficial, o Patriarca das Índias

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conversou com o general Vassalo eSilva no dia 18 de Dezembro, emVasco da Gama, sem ninguém ouvir oque disseram, porém, o general «aba-nava negativamente a cabeça». Maistarde, o general confidenciou aosseus oficiais que o prelado lhe haviapedido para aceitar a rendição tendoem vista evitar a efusão inútil desangue e as destruições resultantesdos bombardeamentos que estavam aser preparados para atingir a cidadede Vasco da Gama e toda a penínsulade Mormugão (AZEREDO, 2004: 62).D. José Vieira Alvernaz declarou a umjornal indiano (The Times of India,1961: 3) que Vassalo e Silva já tinhadecidido render-se quando se encon-trou com ele em Vasco da Gama, oque contraria os relatos dos oficiaisdo comando português. O arcebisponunca esclareceu completamente asua intervenção nesta matéria que odeixou mal visto entre os dirigentespolíticos da altura. Nos dias seguintesà invasão, Alvernaz declarou ao mes-

mo jornal que estava «muito grato»pela amável atenção das autoridadesmilitares indianas para com ele e asua igreja e expressou grande alíviopor as operações militares terem ter-minado sem danos materiais e comperda de poucas vidas. Estas decla-rações foram transcritas nos jornaisLe Monde (1961), New York Times(1961), entre outros e originaram tele-gramas dos embaixadores portuguesesa considerar as palavras do arcebispoapressadas, inoportunas, uma provade fraqueza moral e de colaboracio-nismo. Na noite de Natal, o arcebispocelebrou missa na Sé de Goa, acom-panhado de todo o clero e durante ahomilia afirmou «Nehru é um homemde paz». A cerimónia foi consideradaum louvor à União Indiana, originounovos protestos. O governo portuguêstentou por várias vezes que as NaçõesUnidas condenassem a invasão deGoa, as declarações de Alvernaz con-trariaram toda a sua orientação diplo-mática.

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MESES DIFÍCEIS DE ALVERNAZ EM GOA

Nos dias a seguir à invasão o arce-bispo recebeu muitos portugueses egoeses no paço patriarcal de Goa queficou repleto, com esteiras no chão(O Século, 1962: 1-2). Andava comgrande à vontade nas ruas de Pangim,sem alterar o seu comportamento habi-tual. A 29 de Dezembro ordenou um

sacerdote alemão, membro da Socie-dade do Apostolado Católico, na ca-pela interna do paço patriarcal. Nomês seguinte ordenou três presbíterose um diácono goeses numa cerimóniapública (Boletim Episcopal da Arqui-diocese de Goa, ano XXI, n.º 2, Feve-reiro de 1962: 13-14).

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No Natal de 1961, enviou um postal aD. José da Costa Nunes onde escre-veu «tudo bem», isso foi interpretadopelo embaixador de Portugal no Vati-cano como um sinal de não o teremincomodado (Arquivo Histórico e Di-plomático, Política-África-Ásia, pro-cesso 946,2, pasta 99). Alvernaz pe-diu ao internúncio apostólico emBombaim, James Knox, mais tardearcebispo de Melbourne e cardeal daCúria Romana, para este visitar ossoldados portugueses prisioneiros,ele próprio não iria por não quererpedir autorização aos militares india-nos. A ausência no campo de prisio-neiros foi considerada uma prova dedesinteresse.Em finais de Janeiro o arcebispo so-freu um «desacato», um vexame, nasruas de Pangim por parte de goesesque eram prisioneiros políticos eforam libertados na altura da invasãoindiana. Depois disso fechou-se emcasa «num grande retraimento e aba-timento». O relato foi feito ao embai-xador Faria por D. José da CostaNunes, «a partir de notícias recolhidasem Goa». Nessa altura o arcebispoAlvernaz teve grandes dificuldadesfinanceiras, o depósito bancário doPatriarcado foi congelado pelo gover-no português. A situação era tão graveque o internúncio James Knox envioua Alvernaz uma ajuda proveniente delegados pios pertencentes à diocesede Goa que tinham ficado retidos em

Bombaim, uma quantia pequena quenão durou muito tempo. Em Feve-reiro de 1962 D. José da Costa Nunessugeriu ao embaixador António deFaria que o governo português conti-nuasse a pagar a côngrua ao PatriarcaAlvernaz, «a título de abono pessoalpara o exercício das suas funções» eo pedido foi atendido. Um despachodo ministro do Ultramar pôs à dispo-sição do embaixador a quantia de48.469$00, correspondente a três me-ses de ordenado que foi enviada paraGoa através da Santa Sé e do núncioapostólico em Bombaim (ArquivoHistórico e Diplomático, Política--África-Ásia, proc. 946,2, pasta 99).Em Janeiro e Fevereiro de 1962,D. José Vieira Alvernaz pediu ao Vati-cano para ser substituído, um pedidooficial segundo tudo indica, mas norelato do embaixador Faria ao gover-no português o pedido foi recusado, aigreja «julga da maior conveniênciaque ele continue em Goa para nãocriar dificuldades que possam ser evi-tadas». O cardeal Costa Nunes escre-veu a Alvernaz instando-o a permane-cer no Oriente pelo menos mais seismeses, não devia insistir no desejode abandonar a diocese, «nas actuaiscircunstâncias alguns poderiam inter-pretar isso como significando medode ali ficar», além disso a Santa Sénão podia substituir o arcebispo deGoa senão de harmonia com a Con-cordata e os acordos em vigor, ou seja

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nomeando um prelado de nacionali-dade portuguesa, mas, seguramente,este não entraria na diocese, as autori-dades indianas não autorizariam.Podia ser nomeado um coadjutor goêsde nacionalidade portuguesa, talvez opároco da Ajuda, que estava de fériasem Pangim, como Alvernaz sugeriunuma carta enviada a Costa Nunes.Para além disso, a nomeação do bispode Sá da Bandeira para Goa conti-nuou a ser estudada, contudo este nãofoi autorizado a entrar em Goa noNatal de 1961 quando quis visitar afamília, segundo noticiou o jornal

O Século (1961). Era de prever que omesmo aconteceria se fosse nomeadobispo. Na opinião do embaixadorAntónio de Faria, «a Santa Sé deviainformar o Patriarca, quanto antes,que este não devia insistir no seu de-sejo de abandonar a diocese». Por seulado o responsável pelas relaçõesinternacionais do Vaticano consideroumais ajuizado não criar novos proble-mas «já bastam as dificuldades quederivam dos acontecimentos inde-pendentes da nossa vontade» (Arqui-vo Histórico e Diplomático, Política--África-Ásia, proc. 946,2, pasta 99).

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OPINIÃO DE NEHRU SOBRE O ARCEBISPO PORTUGUÊS

Em Março de 1962 o primeiro-minis-tro indiano deu a entender que oPatriarca de Goa podia ser expulsoalegando que «esse gentleman portu-guês dificulta os propósitos da UniãoIndiana», não se adaptou à mudançaverificada em Goa e tem influenciadoexcessivamente os outros membrosdo clero católico (New York Times,1962). Estas declarações ajudaramD. José Vieira Alvernaz a convencer aSanta Sé, com a ajuda do cardealCosta Nunes e a ultrapassar as resis-tências até então encontradas.A meados de Abril, o cardeal informouo embaixador Faria que o PatriarcaAlvernaz iria a Roma para participarno Concílio Vaticano II e «tencionaresignar, não voltando à sua diocese».

Esta decisão foi apresentada comodefinitiva, segundo Costa Nunes oestado de espírito de Alvernaz «desa-conselha uma mais longa permanên-cia em Goa», era preferível entregar ogoverno da diocese ao vigário-geral,monsenhor Francisco Xavier da Pie-dade Rebello, «a quem a Santa Sédará todos os poderes».Os dois prelados combinaram, segu-ramente, que esta seria a melhor solu-ção para Goa e garantiram antecipa-damente a concordância da Santa Sé.Em Março de 1962, D. José VieiraAlvernaz foi a Cochim, a sua primei-ra diocese no Oriente, sagrar a capelado Vale de São José, numa cerimóniade grande significado uma vez quefoi feita em conjunto com o bispo de

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Alleppey, uma diocese criada quandoos governos de Portugal e da UniãoIndiana negociaram a redefiniçãodas fronteiras da diocese de Goa, em1950. Nessa viagem D. José VieiraAlvernaz recebeu um álbum de foto-grafias que faz parte do seu espólioexistente no museu de Angra doHeroísmo.A transferência de poderes foi feitaprogressivamente. Em Fevereiro Al-vernaz nomeou uma comissão paraorganizar a situação financeira dadiocese, salvaguardando as proprie-dades da Igreja, das confrarias de Goae os seus rendimentos. Esta comissãoteve poderes muito latos, supervisio-nou todo o clero, deste o cabido da Séde Goa até ao pessoal missionário,clero paroquial, serventuários dasigrejas e capelas. Cabia-lhe a manu-tenção dos edifícios e a sustentaçãoda câmara eclesiástica, sendo presidi-da por monsenhor Francisco Xavierda Piedade Rebello (Boletim Epis-copal da Arquidiocese de Goa, Ano

XXI, n.º 3, Março de 1962: VII eVIII). Em Maio foi aberta uma subs-crição para juntar 140 mil rupiasdestinadas à reparação urgente da Séde Goa, o vigário-geral encarregou-sedesta recolha juntamente com o chan-celer da câmara patriarcal, enquantoeste último foi incumbido de prepararo Concílio Vaticano II na diocese(Boletim Episcopal da Arquidiocesede Goa, Ano XXI, n.os 5 e 6, Maio--Junho de 1962: XXXVIII). Nesseano a abertura das aulas no semináriofoi entregue ao vice-reitor e pela pri-meira vez o arcebispo não assinou oregulamento de admissão (BoletimEpiscopal da Arquidiocese de Goa,Ano XXI, n.º 4, Abril de 1962: XXI).Mais significativo ainda: o padre JoséMaria das Neves, secretário pessoalde D. José Vieira Alvernaz desde1950, foi desligado das suas funçõese voltou para os Açores (BoletimEpiscopal da Arquidiocese de Goa,Ano XXI, n.º 3, Março de 1962: V).

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RESIGNAÇÃO DE ALVERNAZ

O arcebispo Alvernaz deixou o paçopatriarcal de Goa em Setembro de1962, e tal como tinha combinadocom o cardeal Costa Nunes, entregouo governo da diocese a monsenhorFrancisco Xavier da Piedade Rebello,uma situação aparentemente provisó-ria que não desafiou Oliveira Salazar,

dado que Rebello possuía nacionali-dade portuguesa, nem tão pouco pres-sionou o Vaticano para ser nomeadoum novo prelado.Antes de partir transferiu para o vigá-rio-geral toda a autoridade ordináriaou delegada que possuía, incluindoas atribuições reservadas aos bispos

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pelo direito canónico ou delegaçãopontifícia e concedeu-lhe «autoridadepara sub-delegar essas faculdades notodo ou em parte, conforme o enten-der» (Boletim Episcopal da Arquidio-cese de Goa, Ano XXI, n.º 9, Setem-bro de 1962: LXIII).D. José Vieira Alvernaz deu a conhe-cer a sua partida de Goa numa cir-cular que foi publicada no boletimda diocese e lida em várias igrejas.Explicou a ausência dizendo quetodos os bispos católicos tinham sidochamados a participar no ConcílioVaticano II e também ele devia tomarparte nessa solene assembleia, masnão terão ficado dúvidas de que nãoregressaria pois agradeceu a todos osseus colaboradores, ao clero, à AcçãoCatólica, aos fiéis e aos não católicos«pelo respeito e atenções com quenos trataram» e despediu-se de umaforma reveladora da exigência do seucarácter: «Há mais de onze anos queme encontro entre vós. Só tenho penade nem sempre haver dado aqueleexemplo de intensidade da vida reli-giosa que é necessário para que oapostolado se torne frutuoso, e dissopeço perdão» (Boletim Episcopal daArquidiocese de Goa, Ano XXI, n.º 9,Setembro de 1962: LXIV-LXV). O do-cumento foi assinado com todos osseus títulos eclesiásticos «Arcebispode Goa e Damão, Arcebispo titular deCranganor, Primaz do Oriente, Pa-triarca das Índias Orientais».

Alvernaz chegou a Roma a 25 deSetembro, passou uns dias numa casade saúde, em tratamento e, no iníciode Outubro, conversou com o embai-xador António de Faria. Interrogadosobre o que tencionava fazer no futuro,disse que faria o que fosse determi-nado pela Santa Sé, se esta aceitasse aresignação que há muito havia pedidoiria para sua casa em Angra do He-roísmo, ou para os Estados Unidos,para casa de um irmão padre que alivivia. Se o mandassem regressar aGoa regressaria ou pelo menos esfor-çar-se-ia por isso, pois não sabia se asautoridades indianas autorizavam oseu regresso à diocese (Arquivo His-tórico e Diplomático, Política-África--Ásia, processo 946,2, pasta 99). Logona primeira vez em que conversoucom o embaixador Faria, o arcebispoAlvernaz manifestou o desejo de visi-tar Portugal «se as circunstâncias opermitissem».O Concílio Vaticano II já se tinha ini-ciado, o Colégio Português em Roma,onde Alvernaz costumava ficar, estavanessa altura repleto, pelo que se insta-lou em Santo António, a residência deD. José da Costa Nunes, onde tambémestava o bispo de Timor, e não acom-panhou os prelados indianos quandoestes foram recebidos pelo Papa JoãoXXIII, dizendo que preferia partici-par na audiência aos bispos portugue-ses, o que terá desagradado bastante

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a Valerian Gracias, cardeal-arcebispode Bombaim.Num documento que esteve sob re-serva sem poder ser divulgado até datarecente, o embaixador António deFaria relatou pormenores da partidade D. José Vieira Alvernaz de Goa.Inicialmente pediu para viajar denavio mas foi-lhe negada licença. Deseguida pediu para viajar de avião,tendo sabido que lhe autorizariam aviagem se não divulgasse a data da suapassagem por Bombaim, por haverreceio de os goeses aí residentes lhefazerem demonstrações de simpatia.Não foi autorizado a transportar umcaixote com as suas roupas e papéis,apenas bagagem de mão sem docu-mentos ou valores. O caixote ficouentregue a um alto funcionário daalfândega de Goa, para ser enviadomais tarde por um portador de con-fiança (Arquivo Histórico e Diplomá-tico, Política-Europa-Ásia, processo332,5, maço 288). Alvernaz disse aoembaixador que não queria voltar aGoa «para não ser obrigado a con-tactar com as autoridades indianas»,até então tinha evitado todos os con-vites, mas se regressasse seria difícilmanter essa atitude, podiam dizer-lhe,com razão, que estava a prejudicar osinteresses da igreja e dos católicos.Havia uma dificuldade, era neces-sária a presença de um prelado paraa ordenação dos seminaristas queterminassem o curso nesse ano mas

podia sugerir-se a ida a Goa do inter-núncio James Knox, que sem dúvidaaceitaria. O arcebispo tinha deixadotudo preparado para não voltar a Goae não cumprir as indicações do gover-no português, discretamente deu-o aentender ao embaixador que por suavez transmitiu as informações a Oli-veira Salazar, que lia cuidadosamenteos telegramas do embaixador noVaticano.O Concílio Ecuménico Vaticano II foiinterrompido em Dezembro, a sessãoseguinte foi marcada para Setembrode 1963. Como havia decidido D. JoséVieira Alvernaz viajou para Lisboa emais tarde para os Açores onde che-gou a 22 de Janeiro de 1963. Quandopassou em Lisboa, Oliveira Salazarnão o recebeu, contudo, numa cartapessoal enviada anteriormente aoembaixador Faria, mostrou algumacompreensão pela situação do prelado.«Penso que se o Patriarca vem a Por-tugal, a União Indiana irá levantardificuldades ao seu regresso a Goamas não me parece que possamosimpedi-lo, se ele quiser vir como é seudireito». Segundo escreveu OliveiraSalazar «a Santa Sé tem um interesseparalelo ao nosso na permanência dopatriarca no seu cargo», o que per-mite concluir que o presidente doConselho esperou que a Santa Séconvencesse o arcebispo a regressar àsua diocese.

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Não foi isso o que aconteceu, D. JoséVieira Alvernaz nunca mais voltou aGoa. Viveu em Angra do Heroísmoaté Março de 1986, retirado da vidapolítica e com poucos contactos como meio eclesiástico, excepto quandoesteve em Fátima e em Lisboa paracelebrar meio século de vida sacer-dotal, em Junho de 1970. No entanto,a Igreja Católica respeitou por inteiroas convenções assinadas com o go-verno português. O vigário-geral daDiocese de Goa e Damão foi nomea-do bispo-auxiliar em Setembro de1963, dado que a nomeação de umbispo auxiliar não exigia consenti-mento do governo de Lisboa e, três

anos mais tarde, foi escolhido paraadministrador-apostólico, um acto devontade do Papa, uma escolha pes-soal que costuma ser usada em dioce-ses onde se verificam conflitos de so-berania. A resignação de D. JoséVieira Alvernaz foi aceite em Feve-reiro de 1975, depois de assinado eratificado o Tratado de 31 de Dezem-bro de 1974 segundo o qual Portugalreconheceu a soberania da União In-diana sobre o antigo Estado Portu-guês da Índia. D. Raúl Nicolau Gon-salves, o primeiro arcebispo goês dadiocese de Goa e Damão, foi nomea-do em Janeiro de 1978. Ainda resideem Goa, onde é arcebispo emérito.

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FONTES MANUSCRITAS

Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa),AHU/ACL-UM/DGE/RCM000MC 14 a34; Missões, maço 34.

Arquivo Histórico e Diplomático (Lisboa),Política-África-Ásia, processo 905, maço189; Política-África-Ásia, processo 946,2,

pasta 99; Política-Europa-Ásia, processo332,5, maço 288.

Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre doTombo (Lisboa), Arquivo de OliveiraSalazar, Colónias-Ultramar, pasta 28-A.

FONTES IMPRESSAS

JORNAIS E REVISTAS

Boletim Episcopal da Arquidiocese de Goa(1961), Ano XX, n.º 10, Outubro.

Ibidem (1962), Ano XXI, n.º 2, Fevereiro

Ibidem (1962), Ano XXI, n.º 3, Março.

Ibidem (1962), Ano XXI, n.º 4, Abril.

Ibidem (1962), Ano XXI, n.os 5 e 6, Maio/Junho.

Ibidem (1962), Ano XXI, n.º 9, Setembro.

O Século, (1961), Lisboa, 28 de Dezembro.

Ibidem (1962), Lisboa, 4 de Janeiro.

Osservatore Romano (1961), Roma, 29 deNovembro.

The Times of India (1961), Bombaim, 26 deDezembro.

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Le Monde (1961), Paris, 26 de Dezembro.

New York Times (1961), Nova Iorque, 27 deDezembro.

Ibidem (1962), Nova Iorque, 31 de Março.

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BIBLIOGRAFIA

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Foto 1 – D. José Vieira Alvernaz numa viagem pelo rio Mandovi, vendo-se ao fundo a cidade de Pangim.

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Foto 2 – D. José Vieira Alvernaz com crianças de uma paróquia de Goa,após uma cerimónia de Comunhão Solene, cerca de 1960.

Foto 3 – O Patriarca das Índias Orientais em visita pastoral a uma missão nas «Novas Conquistas».

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Foto 4 – Visita a Diu após a inauguração do aeroporto em 1956.À esquerda o governador de Diu, capitão de Artilharia Domingos Magalhães Filipe.

Foto 5 – Sessão solene comemorativa do cinquentenário da gruta de Nossa Senhora de Lurdes,em Calanguete, a 14 de Fevereiro de 1954.