capítulo 1 – ler
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Capítulo 1 – Ler
“Escrevo porque li”
Roland Barthes, A preparação do
Romance, vol.II, p.12
Figura 1: mesa do apartamento de Oiticica, Loft 4, Second Avenue, Manhattan.
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Lerescrevendo
Ler foi uma atividade permanente e prioritária na vida de Hélio Oiticica.
Praticamente todos seus textos trazem diálogos explícitos ou implícitos com suas
leituras. Ao ler, Oiticica apropriava-se criativamente dos elementos que lhe
interessavam nos textos alheios. As leituras de outros textos desencadeavam o que
ele chama de “comportamento fenômeno”. Em alguns casos, percebe-se o breve
espaço de tempo entre a leitura e o uso do texto em outros textos ou teorias de sua
própria autoria. Seus primeiros diários já traziam registro de leituras, fichamentos e
citações. Alguns autores citados ainda entre 1954 e 1960, por exemplo, eram ligados
diretamente aos debates estéticos que lhe interessavam na época, como os ensaios
sobre arte de Goethe, Ernest Cassirer, Merleau-Ponty, textos de Mondrian, Paul Klee
e Kandinsky.
Ler para escrever, ler e escrever, ler escrevendo. Em um pequeno texto
intitulado “Escrever a Leitura”, Roland Barthes descreve essa tênue relação entre a
fruição e o uso do texto lido. A idéia de interromper a leitura com freqüência para
anotar algo que o texto lido lhe suscita, é resumida na imagem ler levantando a
cabeça. Ao acompanhar a escrita de Oiticica, fica nítida a imagem de um leitor que
levanta com freqüência sua cabeça. Essa operação acarreta, necessariamente, uma
abertura do seu texto, isto é, uma necessária dispersão e reorganização do texto lido
e anotado em fragmentos, somado ao texto futuro do leitor-escritor. Ao lermos
levantando a cabeça para anotar imediatamente o que se está lendo, quebramos
qualquer possibilidade de reverência a verdades objetivas ou subjetivas de leitura. A
operação passa a obedecer a uma verdade lúdica cujo jogo não é uma distração, mas
um trabalho: o trabalho do escritor do alheio.4
Alguns dos maiores interlocutores de Oiticica ao longo da sua carreira foram
ligados às letras e ao universo da literatura e da crítica. Tal relação de Oiticica com o
4 BARTHES, R. “Escrever a leitura”. In O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.29.
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universo da literatura e da poesia – da leitura e da escrita em geral – foi crucial em
sua obra. Mantendo-se até o fim da vida como um leitor diferenciado, era fluente em
francês e inglês e cruzava gêneros e autores, indo da filosofia à poesia, acumulando
referências e desenvolvendo apropriações estilísticas e teóricas para suas próprias
incursões no exercício da escrita. Leituras de autores como, entre outros, Lévi-
Strauss, Nietzsche, Hegel, Joyce, Dante, Pound, Artaud, Gertrude Stein, Bergson ou
Burroughs não despertavam em Oiticica apenas o desejo da escrita. Elas criavam
verdadeiras ligações entre os autores lidos e o autor que escrevia a partir do lido. As
idéias alheias lhe causavam forte impacto e estão espalhadas e reordenadas em
diversos pontos de seu trabalho.
É o caso, como breve exemplo, dos textos de Gertrude Stein e Artaud. Foram
dois autores não só lidos como comentados, anotados ou traduzidos. São nessas
leituras feitas com “olho míssil”, para usarmos uma expressão de Waly Salomão,
que, muitas vezes, Oiticica encontra novas categorias, desvenda uma nova palavra-
conceito, recorta uma nova frase-símbolo sobre seu trabalho ou sobre o mundo que
lhe cerca. De Gertrude Stein, escritora sempre lida por Hélio, ele retira uma série de
referências para sua própria escrita sem pontuações, seu ritmo apressado de encadear
sentenças. Era a Gertrude Stein também que Oiticica se refere quando invoca suas
práticas, fundamentais para o assunto desta tese, de ler-ouvir e ler-conversar. Além
disso, é em Everyboy’s Authobiography (1937) de Stein que ele retira a justificativa
para todo seu processo de trabalho em Manhattan, processo esse em que o ócio ocupa
grande parte de sua reflexão. Hélio sempre citava uma frase da escritora norte-
americana, como se fosse dele: “Leva muito tempo para ser um gênio, você tem que
se sentar assim sem fazer nada, realmente sem fazer nada”.5
Já a obra de Artaud – que chegou às mãos de Oiticica via uma Artaud
Anthology (1965) editada em inglês por Jack Hirschman – também marca sua escrita
e seu pensamento profundamente. Nos últimos anos de sua vida, ele se assumia em
entrevistas como “filho de Nietzsche e enteado de Artaud” e citava com freqüência o
5 STEIN, G. Autobiografia de todo mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p.73.
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escritor francês em diversos textos dos anos setenta.6 Hélio traduz em manuscrito e
depois datilografado um trecho da correspondência de Rodez entre Artaud e o editor
Henri Parisot, mais precisamente a carta do dia 17 de novembro de 1945. Nela,
Oiticica escolhe o trecho em que Artaud declara sua rejeição à poesia “que é a língua
da classezinha média” e reivindica um “po-ema”, uma poesia “feita com sangue”
(traduções de Oiticica).7 A expressão “modestos orgasmos da classe média” que ecoa
em vários de seus escritos ao longo dos anos e foi muitas vezes utilizada como se
fosse sua, decorre da frase “Continuem então a dispersar suas modestas e eróticas
linguadas, modestos orgasmos da classe média”.8
A partir de sua estadia em Manhattan, Oiticica passou a investir com rigor na
ampliação de sua formação literária. A literatura passa a ocupar um posto tão ou mais
importante que as artes plásticas, a música e o cinema, outras áreas de ação de Hélio.
Gertrude Stein e Antonin Artaud são duas entre tantas leituras que não cessam no
processo de fruição daqueles textos. Eles precisam ser repensados, recortados,
traduzidos, reescritos. A partir desse investimento, outros livros surgem, outras idéias
começam a aparecer para esse “leitor que levanta a cabeça”. Ele passa a pedir aos
amigos dicas de autores, passa a comprar mais livros, gerando novas demandas em
sua formação – como a necessidade em estudar novas línguas para ampliar sua
relação com as possíveis leituras em suas línguas originais. Nesse trecho de uma
carta escrita em novembro de 1971 (seu primeiro ano na cidade norte-americana)
para sua (na época) cunhada Roberta Oiticica, ele expõe esse investimento:
tenho lido muito; com mais rigor; quero fazer um
curso de grego, assim que puder ganhar dinheiro; ao
menos grego, custam só U$75; sinto necessidade de
aprender grego clássico, para poder ler certas coisas;
homero, por exemplo, além de poder penetrar mais em
6 Essa declaração foi feita em entrevista a Jary Cardoso para o Folhetin, edição de 5 de novembro de 1978, localizado no acervo do Projeto HO # 0994.78 7 Em Antonin Artaud – uma poética do pensamento (2003) Ana Kiffer analisa com profundidade essa questão da “fratura da linguagem poética” e da busca de reinvenção desse espaço por parte de Artaud. 8 O documento datilografado com a tradução de Oiticica para esse trecho de Artaud está em Projeto HO # 0240.73; já sua versão manuscrita está em Projeto HO # 0189.73, p.67
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literatura da pesada; tenho lido continuamente joyce
(sempre e eternamente Ulysses), pound; pound, no abc of
reading, critica e propõe leituras que me fascinam.9
Dentre os autores lidos e reescritos por Oiticica podemos encontrar escritores
que, ao contrário dos citados até aqui, eram ou tornaram-se seus amigos pessoais.
Essas relações de amizade facilitaram não só seu acesso a tais textos, como também
propiciaram a troca direta entre o leitor e o autor e vice-versa. Haroldo e Augusto de
Campos, por exemplo, foram amigos-escritores que marcaram profundamente a
leitura e a escrita de Hélio. Através de seus textos, Oiticica obtinha idéias, citações,
conexões e relações orgânicas com seus próprios escritos. Além disso, a partir deles
também encontrava novos autores prontos para serem lidos e apropriados.
Como os irmãos Campos, Waly Salomão e Silviano Santiago ocuparam esse
espaço produtivo de alimento do leitor-escritor. Outros nomes de amigos-escritores
que influenciaram a leitura-escrita de Oiticica e que devem ser citados foram Ferreira
Gullar (durante o período neoconcreto), além de Rogério Duarte e Torquato Neto.
Muitas vezes Hélio lia, ouvia, escrevia e falava a partir das referências que ia
colhendo entre essas amizades.
De cada um deles, Hélio absorveu alguma contribuição para seus escritos e,
em última instância, para seu projeto de livro. Dos irmãos Campos, ele se apropriou
dos trabalhos teóricos e poéticos, de suas traduções (e técnicas de tradução), suas
indicações de leituras e seus trabalhos visuais, travando um profícuo diálogo estético;
com Waly Salomão, Oiticica viveu em permanente compromisso criativo com seus
textos e poemas – especificamente com seu livro Me segura que eu vou dar um
troço, publicado em 1972, porém lido por ele em diferentes partes desde 1970; e com
seus Babilaques, poemas visuais escritos e fotografados por Waly entre 1975 e 1977
cuja concepção aliava poesia e imagem de forma inovadora; já com Silviano
Santiago, seu diálogo ocorreu não somente a partir dos livros e poemas do primeiro,
mas principalmente a partir de conversas, de indicações de leitura e trocas de 9 Projeto HO # 0846.71, p.3
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informações literárias e teóricas fornecidas pelo crítico. Esses três percursos de
“formação do leitor-escritor” na trajetória de Oiticica se complementam em vários
níveis, já que nessas amizades Oiticica aglutina autores polivalentes da prática
literária: poetas, críticos, ensaístas, tradutores, romancistas, polemistas e artistas
visuais.
Os Campos de Oiticica
A relação entre Oiticica e os poetas concretos foi inaugurada a partir de um
breve encontro e, logo depois, de uma longa ruptura. O encontro entre os trabalhos
do jovem artista carioca e dos poetas ocorreu durante o estabelecimento de um
vértice construtivista na cultura brasileira. Seus trabalhos iniciais estavam
relacionados à categoria ainda ampla de “arte concreta” e foram reunidos em
dezembro de 1956 na 1° Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu
de Arte Moderna de São Paulo.
Já a ruptura ocorre apenas três anos depois, 1959, com o lançamento do
“Manifesto Neoconcreto” no Suplemento Dominical Jornal do Brasil (SDJB).
Integrante do grupo carioca, Oiticica manteve seu compromisso estético com seus
companheiros e rompeu com os artistas concretos de São Paulo. A partir de novos
debates teóricos – levados a cabo principalmente por críticos como Mário Pedrosa e
Ferreira Gullar, dois dos principais pensamentos críticos ligados ao período
neoconcreto – foram postos em xeque o apego ortodoxo por parte dos paulistas aos
princípios estritamente racionalistas do construtivismo europeu. Isso não quer dizer,
porém, que Oiticica não permaneceu leitor dos artigos e textos publicados pelos
poetas no SDJB e em outras publicações durante esse período de afastamento.
A tensão entre os grupos de São Paulo e do Rio de Janeiro era o ápice de um
momento de atualização radical das artes brasileiras. Após a eclosão dos
modernismos da década de 1920 e da participação decisiva de um estado ditatorial no
financiamento da cultura brasileira durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, as
vanguardas construtivistas dos anos cinqüenta aportam no país quase trinta anos após
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seu surgimento na Europa. Assim como no Modernismo de 22, em que diferentes
trajetórias reuniram-se em favor de um compromisso estético coletivo para
redimensionar a produção cultural brasileira, o movimento concreto da década de 50
reuniu artistas dos mais variados estilos – do grupo Frente do Rio de Janeiro ao
grupo Ruptura de São Paulo. Esses artistas assumiram um novo compromisso – ao
menos estratégico – de renovação de nossa produção estética e reflexão cultural.
Os caminhos divergentes de concretos e neoconcretos na virada dos anos
cinqüenta para os anos sessenta estavam relacionados à ampliação das possibilidades
de uma arte experimental no Brasil. Após uma convergência momentânea ao redor
dos princípios construtivistas da modernização, da supremacia da tecnologia na luta
pelo domínio do sensível e da racionalização utópica dos processos sociais, o
compromisso estético do concretismo é quebrado em prol de novos caminhos na
pesquisa e reflexão sobre uma arte moderna e brasileira.
Reivindicando a presença conceitual e física de um corpo e o aspecto
subjetivo da experiência em diálogo com as novas possibilidades estéticas, o
movimento neoconcreto descolou-se do grupo concreto de São Paulo e ganhou
autonomia frente aos escritos e posições dos seus teóricos. Na precisa definição de
Ronaldo Brito, o movimento neoconcreto foi o vértice da consciência construtiva
brasileira e, simultaneamente, o agente de sua crise. Expondo os dilemas e limites de
uma arte concreta no país, os artistas neoconcretos afastaram-se da rigidez dogmática
da primeira para trilhar caminhos inovadores na arte brasileira e mundial. Os
trabalhos subseqüentes do próprio Oiticica e de artistas como Lygia Clark, Lygia
Pape, Amílcar de Castro e Franz Weissmann demonstram claramente essas
inovações.
Durante a breve vigência do movimento neoconcreto, a figura e as idéias do
poeta e crítico maranhense Ferreira Gullar passam a ganhar destaque entre os artistas
plásticos cariocas – principalmente sua “Teoria do Não-Objeto”, publicada no
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil em 19 e 20 de março de 1959. Ela causou
forte impacto em Oiticica até o fim de sua vida. Gullar, aliás, foi outra grande
influência na trajetória de Hélio, principalmente nesse período, entre 1958 e 1962,
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quando o movimento neoconcreto se dissolve nas experiências pessoais de cada
artista que assinara seu manifesto em 1959. Em um texto pessoal de 1961, Oiticica
afirma que
O “Poema Enterrado” de Ferreira Gullar
constitui uma das obras mais importantes desse poeta,
para quem a poesia foi-se depurando e transformando-se
até chegar a admitir como elementos também seus, além
da palavra, a cor, o movimento, e a própria transformação
do seu “suporte”, que era o livro, tendo sido este
transformado no “livro-poema”, evoluindo logo após para
o não-objeto de (forma) ordem poética.10
Na sua convivência com Gullar, Oiticica o viu elaborar seus livros-poemas,
seus poemas espaciais e seu famoso Poema enterrado – trabalho que faria parte, ao
lado do Teatro integral de Reinaldo Jardim, do grande penetrável Projeto Cães de
Caça, primeiro projeto ambiental criado por Oiticica, em 1961. Os textos teóricos e
os posicionamentos de Gullar ecoam na formação do artista plástico carioca por bom
tempo. A idéia de se pensar um livro como um “não-objeto de forma poética” será,
anos depois, retomada em seus planos de edição das Newyorkaises.
É notório que após esse período de contato intenso com os artistas plásticos
reunidos a partir do pintor Ivan Serpa e do crítico Mário Pedrosa, Ferreira Gullar faz
uma revisão de sua prática artística e decide romper com os princípios construtivistas
do grupo neoconcreto. Assumindo um explícito interesse no conteúdo político do
trabalho intelectual e estético, Gullar filia-se ao Centro Popular de Cultura, o CPC da
UNE. Seus novos pontos de vista sobre a arte, que incluíam poemas em cordel e
condenações ao abstracionismo e às experiências sensíveis dos trabalhos feitos na
seqüência do momento neoconcreto, podem ser lidos no livro Cultura Posta em
Questão, de 1964.
10 Projeto HO # 0024.61, p.3
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Durante esse período, em que o pensamento de uma esquerda “oficial” era
ligado aos CPCs e aos movimentos de base dos partidos e sindicatos, Oiticica
experimenta a independência em sua formação estética e pessoal. Era o momento em
que sua produção de Núcleos, Bólides e Penetráveis estava finalmente desvinculada
de grupos e escolas. Após estar ligado ao grupo Frente, ao movimento concreto e ao
movimento neoconcreto, Oiticica torna-se um artista autônomo, criador de seus
próprios caminhos e suas próprias teorias da arte. É nesse mesmo momento que
Oiticica tem seu já mitológico encontro com a comunidade da Mangueira. A
“descoberta do povo”, isto é, a “tomada de consciência” que todo intelectual
engajado deveria desejar nesse período, chega à vida de Hélio sem filtros de
ideologia e sem traços do realismo socialista. Sua experiência na Mangueira lhe dá o
que ele chama de desmonte de sua condição burguesa. Sem vincular-se ao PCB ou ao
CPC, Oiticica vincula-se à EPM: Estação Primeira de Mangueira. No samba, nas
biroscas, nos riscos de ser um branco intelectual da Zona Sul em meio ao universo
marginal e mítico da favela, é aí que Hélio “abriu a cabeça”. O impacto de sua subida
e de suas vivências na Mangueira tornou suas leituras mais amplas, e novos
interesses apareciam em seus textos, cada vez mais abertos e menos teóricos, como
os emblemáticos “A dança na minha experiência” e “Bases fundamentais para a
definição do Parangolé”, ambos de 1964. Investindo cada vez mais no aspecto
experimental de seu trabalho, Oiticica descobre e assume um corpo que dança e
subverte. Ao chegar aos Parangolés e aos Penetráveis, ele atinge o auge do processo
de busca da expansão da cor no espaço. A presença explícita do seu convívio com a
favela e a participação vital do espectador conduz seu trabalho a novos patamares
cujas bases de criação estavam bem distantes dos trabalhos dos poetas concretos
nesse momento.
No início dos anos sessenta, os concretos estavam envolvidos diretamente
com um segundo momento de seu projeto, isto é, a consolidação de outro tipo de
espaço experimental de ação, elaborado a partir da implementação da poesia concreta
no campo cultural brasileiro. Com o lançamento da revista Invenção (1962), Augusto
de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari ampliaram suas parcerias e
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passaram a contar ao longo de suas edições com nomes como Affonso Ávila,
Ronaldo Azeredo, Cassiano Ricardo, José Lino Grunewald, os maestros do grupo
Música Nova e os então novatos poetas Paulo Leminski e Silviano Santiago. Além
disso, ampliaram as bases de sua práxis poética e seus temas de reflexão.
Pela ausência de referências explícitas nos textos escritos por Oiticica nessa
época, a revista Invenção, apesar de ter permanecido como veículo fundamental para
as vanguardas brasileiras dos anos sessenta, não pode ser apontada como uma de
suas leituras contumazes. Mesmo assim, há referências posteriores de sua leitura (em
cartas para os próprios organizadores, escritas na década seguinte). O fato é que, por
quase dez anos, Oiticica perdera o contato produtivo com os Irmãos Campos. Mais
do que isso, eles ocuparam por bom tempo espaços distintos no campo cultural
brasileiro de então – ao menos no que diz respeito ao campo das vanguardas. Seus
diálogos intelectuais só foram retomados a partir da eclosão do tropicalismo musical
em 1967.
Em um artigo de 2003 dedicado à relação entre Oiticica e Haroldo de
Campos, o jornalista Marcos Augusto Gonçalves fornece mais detalhes sobre esse
processo de afastamento e reaproximação entre o artista neoconcreto e os poetas
concretos.11 Segundo ele, após a distância do final dos anos cinqüenta, Oiticica e
Haroldo de Campos se reencontraram em Belém, em 1967, durante a realização de
um evento sobre arte e poesia. 1967 é o mesmo ano em que o penetrável Tropicália é
exibido na mostra Nova Objetividade Brasileira, realizada no MAM do Rio de
Janeiro. É também o ano em que é publicado o último número da revista Invenção. A
partir desses encontros entre Oiticica e Haroldo de Campos – e entre os seus projetos
e interesses renovados frente aos novos dilemas das vanguardas brasileiras de então –
suas relações tornaram-se cada vez mais sólidas ao longo dos anos.
É nesse segundo momento da relação entre Oiticica e os poetas concretos que
se inicia o que pode ser chamada de uma amizade criativa entre eles. Já atraído pela
poética e pelo pensamento de alguns teóricos e compositores ligados aos músicos
11 GONÇALVES, M. A.. “Um bate papo de vanguarda” in Folha de São Paulo – caderno Ilustrada, 24 de agosto de 2003, p. 1.
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tropicalistas – principalmente Rogério Duarte e Torquato Neto – Oiticica se
aproxima dos novos trabalhos dos Irmãos Campos e de Décio Pignatari não mais
como um jovem iniciante da década de cinqüenta, mas como um artista e um
intelectual maduro e influente no debate crítico brasileiro. Nesse período, 1967, o
próprio trabalho dos poetas passava por um momento de mudança de rumos e de
revisão dos postulados ortodoxos dos anos heróicos da poesia concreta (como o fim
do verso e a geometrização obrigatória do poema, por exemplo). Esse momento, e
aqui sigo a análise de Gonzalo Aguilar, era a última demonstração de uma ação
conjunta da poesia concreta como programa vanguardista.12 O reencontro entre Hélio
Oiticica e os poetas concretos ocorre, justamente, no momento de dispersão e
reformulação das vanguardas construtivistas brasileiras dos anos cinqüenta. Em 1967
e durante os primeiros anos da década seguinte, elas voltavam a atuar, mesmo que
breve e indiretamente, lado a lado.
E por que 1967? Certamente, o movimento tropicalista na música popular
brasileira se impõe como grande elemento unificador das duas frentes construtivistas
que, em determinado período, optaram por caminhos divergentes. Naquele momento,
elas convergiam a partir da transgressão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, músicos
que, juntos com Tom Zé, também foram criados durante sua juventude em um
ambiente de vanguarda cultural. Seu contato com um pensamento da ruptura ocorre
através da renovação da Universidade Federal da Bahia, durante a inovadora gestão
de Edgar dos Santos nos anos cinqüenta e sessenta. Assim, o reencontro dos poetas
concretos paulistas com o artista neoconcreto carioca é mediado pelos jovens
intelectuais baianos como Caetano Veloso, Torquato Neto (piauiense, porém sempre
visto como participante ativo do grupo) e Rogério Duarte. Monta-se um tripé
vanguardista gestado simultaneamente em três cidades distintas do país (São Paulo,
Rio de Janeiro e Salvador). Como epicentro dessas aproximações, os embates entre o
novo (a música pop e a cultura de massas) e o tradicional (a canção de protesto) no
âmbito da música popular brasileira e dentro do seu principal palco na época: a
televisão. 12 AGUILAR, G. Poesia Concreta Brasileira. São Paulo: Edusp, 2006. p.116.
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Mas como o meu tema aqui é a leitura e a escrita, creio que há outro elemento
– um elemento textual – que reuniu esse grupo em prol de um compromisso estético
ao redor do tropicalismo musical e da Tropicália de Oiticica: a antropofagia
oswaldiana. Mesmo que seja uma categoria exaustiva e banalmente utilizada hoje em
dia, os textos de Oswald de Andrade – sintetizados nas máximas da antropofagia
como “só me interessa o que não é meu” – eram o ponto que permitia que Oiticica,
os Campos, Zé Celso Martinez Corrêa e Caetano Veloso, por exemplo, coexistissem
em uma mesma frente de ação cultural.
Como disse acima, após a primeira fase polêmica e ortodoxa do movimento
concreto, o grupo lança em 1962 a revista Invenção. É interessante notar que nessa
publicação (com cinco números editados até 1967), estão publicados os principais
pontos de ligação entre os poetas concretos, o trabalho de Hélio Oiticica e os
compositores tropicalistas: a revisão da obra de Oswald de Andrade por parte dos
poetas, a participação dos músicos eruditos do grupo Música Nova e o interesse pela
música popular brasileira em relação à nascente cultura de massas do país.13
Acompanhando as edições de Invenção, encontramos no terceiro número da
revista, publicado em junho de 1963, o “Manifesto Música Nova”, assinado, entre
outros, por nomes-chave do tropicalismo como Rogério Duprat, Julio Medaglia e
Damiano Cozella. Já em seu quarto número, de dezembro de 1964, os principais
textos e ensaios são dedicados a Oswald de Andrade. Esses dois números, somados
ao texto “& se não perceberam”, publicado por Décio Pignatari na última edição de
Invenção, em 1967 (um “texto de fronteira” e de fechamento do programa coletivo
vanguardista da poesia concreta, na definição de Gonzalo Aguilar), trazem os
elementos que articulam a relação criativa entre os interesses dos concretos, os
trabalhos de Oiticica e as ações dos compositores tropicalistas. Assinado por Décio
Pignatari, o texto cita diretamente nomes e elementos da cultura de massas como
João Gilberto, Geraldo Vandré, “A Banda” (sucesso de Chico Buarque de Hollanda)
e a célebre frase adotada pelos compositores “o que são revoluções senão
13 As referências à revista Invenção que farei nesta parte da tese são retiradas do excelente trabalho de pesquisa realizado pelo crítico argentino Gonzalo Aguilar em Poesia Concreta Brasileira (2006).
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radicalizações da média?”. Tais elementos, inéditos no debate da “alta cultura”
brasileira na qual a poesia concreta estava localizada, aparecem justapostos em uma
seqüência que indicava a nova – e talvez a derradeira – guinada dos movimentos da
vanguarda brasileira: dos museus para a Mangueira, dos suplementos para os
televisores, das bienais para o Aterro do Flamengo e (por que não?) do
construtivismo para a Tropicália.
Nesse período, a obra de Oswald de Andrade e o que Waly Salomão chamou
posteriormente de seu “Espírito Brutalista” eram, sem dúvida, um dos pontos centrais
nessa aproximação criativa entre os poetas paulistas, os compositores baianos e o
artista plástico carioca. Sua obra era o elemento textual que unia todos esses pólos.
Foram os escritos de Oswald e sua proposta de ação cultural que contribuíram para a
circulação de informações produzidas pelos concretos e para o seu debate efetivo.
Em seu livro de memórias Verdade Tropical Caetano Veloso endossa esse papel
aglutinador da obra de Oswald para o grupo. Comentando o fato, sempre do ponto de
vista de sua trajetória artística naquele momento, o compositor demonstra a
especificidade do grupo de intelectuais reunidos ao redor do tropicalismo – e ao
redor de Oswald:
De fato, se eu fora rejeitado pelos sociólogos
nacionalistas de esquerda e pelos burgueses moralistas de
direita (ou seja, pelo caminho mediano da razão), tivera
apoio de – atraíra ou fora atraído por – “irracionalistas”
(como Zé Agrippino, Zé Celso, Jorge Mautner) e “super-
racionalistas” (como os poetas concretos e os músicos
seguidores dos dodecafônicos). Uma figura, contudo – eu
estava agora descobrindo em São Paulo entre 67 e 68 –
era visível por trás desses dois grupos que nem sempre se
aceitaram mutuamente: Oswald de Andrade.14
14 VELOSO, C. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.245.
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Vale aqui uma breve discussão sobre os diferentes Oswalds que circularam
pelo grupo ligado ao período tropicalista. Com suas peculiaridades, as trajetórias de
cada “tropicalista” – Hélio Oiticica, Caetano Veloso, os poetas concretos, Glauber
Rocha, Torquato Neto, Rogério Duarte, José Agripino de Paula, Jorge Mautner, José
Celso Martinez Corrêa, Gilberto Gil, José Carlos Capinam, Waly Salomão – se
relacionaram de uma forma específica e estratégica com a obra de Oswald de
Andrade.
No caso dos compositores baianos, esse contato foi aprofundado – e até
mesmo inaugurado – a partir de sua amizade com Augusto e Haroldo de Campos em
São Paulo, em 1968. Já para Hélio Oiticica, Oswald de Andrade fez parte de sua
formação, ao menos como leitura necessária a ser feita, dentro dos grandes nomes do
período modernista da literatura brasileira. Hélio já tinha lido os principais
manifestos do escritor ainda em sua juventude, durante os anos cinqüenta. Em 1966 e
1967, em dois de seus principais textos – “Esquema geral da Nova Objetividade” e
“Tropicália”, cita Oswald de forma articulada aos seus conceitos de arte e cultura
brasileira.
Já a relação de Glauber Rocha com a obra de Oswald de Andrade seguiu
caminhos tortuosos. O cineasta sempre deixou claro que entre os escritores
brasileiros, preferia José de Alencar e Guimarães Rosa a Oswald, Mário de Andrade
ou qualquer outro. Mesmo assim, nem a sua rejeição ao trabalho dos irmãos Campos
(apesar de Pátio, sua primeira experiência com o cinema em 1959, ser um exercício
inspirado na arte concreta) e nem seu distanciamento crítico ao modismo tropicalista,
o impediu de ter definido Oswald como um pensador “verdadeiramente genial”. Essa
afirmação, ao lado de outras considerações, aparece no texto “Tropicalismo,
Antropologia, Mito, Ideograma”, escrito em 1969 e publicado em Revolução do
Cinema Novo (1981). Nesse texto, um dos raros escritos em que ele endossa a
experiência tropicalista (apesar de escrevê-lo após o auge do movimento), Glauber
afirma que “O tropicalismo, a antropofagia e seu desenvolvimento são a coisa mais
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importante hoje na cultura brasileira”.15 Ele cola Tropicalismo e Antropofagia,
fazendo uso delas como “aporte cultural”, como estratégia de produção que
reconhece o subdesenvolvimento e, a partir desse reconhecimento, produz o novo,
produz uma arte revolucionária no terceiro mundo.
Além dos compositores baianos, de Oiticica e de Glauber Rocha, há outros
caminhos para a apropriação e uso estratégico da obra de Oswald nesse período.
Torquato Neto, desde a infância leitor de poesia e literatura brasileira, um jovem
formado pelas colunas “Poema Invenção”, publicadas pelo seu conterrâneo Mário
Faustino no SDJB durante a década de cinqüenta, já conhecia Oswald de Andrade
antes do contato com os irmãos Campos em 1968. Não é à toa que, dos
compositores, é justamente Torquato o que incorpora organicamente a poética
oswaldiana em suas letras e escritos. Outro nome marcado e marcante do breve
período tropicalista, José Celso Martinez Corrêa foi o grande divulgador da obra de
Oswald através de sua famosa montagem do espetáculo O Rei da Vela. O texto
original da peça chegou até ele através de sua busca por uma dramaturgia que fosse,
simultaneamente, original e radical, contestadora e performática. Foi Luiz Carlos
Maciel, na época dramaturgo e crítico de teatro, que apresentou a Zé Celso e ao
Teatro Oficina o texto de Oswald. A peça, escrita em 1933 e encenada em 1967,
amarrava todas essas pontas – ou fios desencapados – que se aproximavam de uma
forma ou de outra da obra de Oswald de Andrade. A encenação arrebatadora da peça
fez com que o escritor paulista voltasse à ordem do dia e, finalmente, fosse assumido
como a grande referência em comum dos artistas ligados ao movimento tropicalista.
Essa digressão sobre a relação dos Tropicalistas com a obra de Oswald de
Andrade serve para aprofundar um pouco mais a aproximação intelectual entre Hélio
Oiticica e os irmãos Campos (lembrando que Décio Pignatari também era um
interlocutor reverenciado por esses artistas). Aproximação essa ocorrida justamente
nesse período de 1967/1968. As leituras de Oiticica passam a ser diretamente
influenciadas pelo Paiudema Concreto (não mais no seu nível de radicalidade exigida
15 ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.
44
pelo Plano-Piloto de 1955, já incorporando novos autores como os brasileiros
Sousândrade e Pedro Kilkerry, além do próprio Oswald de Andrade). Seus textos
citam com maior freqüência expressões de Haroldo de Campos e o nome de Oswald.
Ernest Cassirer e Merleau-Ponty perdem espaço em suas referências teóricas em prol
de uma escrita mais livre, principalmente na sua reflexão para obras como
“Tropicália” ou eventos como “Apocalipopótese”, realizado no Aterro do Flamengo
durante 1968. Cultura e Loucura, nome de outro evento organizado por Oiticica e
Rogério Duarte no MAM-RJ (junho de 1968), eram palavras que ganhavam novas
cores e significados nas reflexões de Hélio.
Nesse período, os irmãos Campos publicam dois livros chaves para a crítica
cultural da época – e para os trabalhos do grupo tropicalista. Haroldo de Campos
lança em 1967 Metalinguagem, livro de ensaios críticos sobre autores como
Drummond, João Cabral de Melo Neto e, mais uma vez, Oswald de Andrade. Além
disso, ainda sobre Oswald, escreve prefácios para a reedição das obras completas do
escritor modernista. Já Augusto de Campos lança o emblemático Balanço da Bossa e
outras Bossas, livro que legitimou o tropicalismo e seus compositores como
produtores de uma nova informação cultural no Brasil – junto à Bossa Nova de João
Gilberto, Tom Jobim e Newton Mendonça e à Jovem Guarda de Roberto e Erasmo
Carlos. O livro, compilação de artigos de Augusto além de entrevistas e textos
teóricos sobre a música popular, assume publicamente o compromisso dos “super-
racionalistas” de São Paulo com as experiências tropicalistas no âmbito musical. A
retomada da convivência pessoal – e intelectual – entre Hélio Oiticica e os irmãos
Campos é mediada, inicialmente, pelos compositores baianos. Era nas reuniões
ocorridas no apartamento de Caetano e Dedé na Avenida São Luís, São Paulo, que
poetas, escritores, compositores, artistas plásticos e cineastas passaram a se
encontrar. Entre visitas esporádicas ao apartamento, Oiticica torna-se amigo do
grupo tropicalista, principalmente de seus “intelectuais”: Rogério Duarte, Torquato
Neto e Waly Salomão. Não é por acaso que sua relação mais íntima tenha ocorrido
com os poetas e não com os cantores. Apesar de ele ter tido uma relação de intensa
parceria e amizade com Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram com os
45
“irracionalistas” que Oiticica encontrou interlocutores para suas idéias, seus projetos
e, o mais importante, para a sua literatura.
Na carta escrita para Lygia Clark em 15 de outubro de 1968, Oiticica narra
esse exato momento de aproximação com o grupo dos músicos tropicalistas e suas
relações de amizade com Caetano, Torquato e Rogério Duarte.16 Rogério mora
durante alguns meses do ano com Oiticica e o influencia diretamente em suas leituras
e escritos. Herbert Marcuse e Franz Fanon passam a fazer parte de sua biblioteca e
referências. Eram os derradeiros passos para a crítica ao super-racionalismo
construtivista em direção ao irracionalismo da contracultura internacional. Hélio
encontrava-se em um momento decisivo de sua carreira. Ele estava prestes a
apresentar sua primeira (e única em vida) grande exposição internacional,
programada para Londres ainda em 1968, mas realizada em fevereiro de 1969. Nessa
época, alguns textos poéticos, descolados dos ensaios culturais e das criticas de arte,
já vinham sendo escritos por ele. Na carta citada acima, ele afirma estar “escrevendo
muito” e assume influências diretas de seu novo amigo Rogério Duarte e do poeta
norte-americano Alan Ginsberg. Faz também referências ao artigo – censurado – que
escreveu para a matéria “Marginália – arte e cultura na idade da pedrada”, publicada
por Marisa Álvares Lima na revista O Cruzeiro e de seu fascínio pelo caderno de
escritos de Luís Carlos Saldanha, assistente de direção de Glauber Rocha e
freqüentador de sua casa no Jardim Botânico. A escrita, antes exercício crítico de sua
obra plástica, passava a ocupar espaço cada vez maior nas reflexões de Oiticica. Ela
já apresentava os traços de desestabilização dos textos teóricos ou críticos que ele
escrevia até então. No texto para Marisa Lima, a proposta do supra-sensorial
desdobra-se em uma espiral de prazer do corpo e do texto. Sua escrita ganha uma
dinâmica veloz, em que Oiticica investe em um registro não-realista, trabalhando
mais com as sonoridades, com invenções de palavras e com a fabulação de pequenas
histórias. Eis o texto enviado e censurado para a reportagem d’O Cruzeiro:
16 FIGUEIREDO, L (org.). Lygia Clark e Hélio Oiticica: Cartas, 1964-1974. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
46
Supra (aboutissement) – a chegada ao supra-
sensorial é a tomada definitiva da posição à margem.
Supramarginalidade – la vita, malalindavita, o prazer
como realização, vitacopuplacer. Obra? Que é senão
gozar? Gostozar. Cair de boca no mundo.
Cannabilibidinar. Hummm... Sei que estou vivo – é só o
que resta – o sabor, salabor, salibidor. A nova era chegou:
marginalibidocannabianismo: l’opera morreu. Morra a
mão de ferro; sentir para o gozo. A palavra, o que se vê,
ouve-se, grita-se, canta-se, catarsis-se; o mundo quer
respirar. MARGINetical. A nova cara se descobre, é
linda, é o que há séculos estava escondido, sai, ergue-se
phalluvaginamente, supuxadamente, ergue-se a fumaça,
sauna do novo mundo. A rataria de cima corre – libertá ta
ta ta tiro, tara, a bichalouca mexe, mexe, ato gozo termal,
sob a saraivada 22, 32, 38, 45, sete meia cinco da noite
que chega. Está quente. A mulher se lava. O homem se
despe e recomeça.17
17 Ibid, p.55.
47
Barnbilônia
Figura 2: trecho da versão manuscrita de Barnbilônia
Após sua ida a Londres em dezembro de 1968, Oiticica só retomaria seu
contato com os irmãos Campos – Haroldo principalmente – em 1971, início de sua
estadia em Manhattan. A partir daí, as conversas foram permanentes entre as
duas/três partes. Não só passaram a trocar correspondências, como se tornaram
amigos próximos. Haroldo e Augusto de Campos visitaram algumas vezes Oiticica
na cidade. Haroldo, inclusive, participou como personagem conceitual de propostas
de trabalho de Hélio – como a proposição E PET CLO (nunca realizada) e as
conversas entre ambos, gravadas no Chelsea Hotel em 1971 e transformadas nos
polêmicos Heliotapes. Já o artista plástico conquistou através dos poetas amizades e
contatos profissionais, como sua relação por cartas com o poeta Octavio Paz e sua
48
convivência com o teórico da comunicação Quentin Fiore. Sua filha, Cristine Fiore,
foi uma das grandes amigas de Oiticica durante seu período em Manhattan.
Oiticica escreveu uma série de cartas para os Irmãos Campos durante esse
período. Nessas cartas, toda essa relação de diálogo criativo, de circulação e de
assimilação de informações está exposta exemplarmente. Escritas de forma
ins/trans/piradas por Oiticica, elas não são simples cartas de relato do cotidiano.
Cada página tornava-se um espaço criativo e performático para suas idéias e para o
desenvolvimento de sua escrita. As discussões, invariavelmente, giravam ao redor do
texto, isto é, do lido e do escrito, sejam seus próprios textos, sejam os textos dos
irmãos Campos, sejam os diversos textos alheios. Oiticica envia textos de sua lavra,
pede livros, consulta traduções, faz balanços críticos de suas leituras – quase sempre
relacionadas ao padrão poundiano do “make it new”, tão caro aos concretos. Ao
mesmo tempo, é Oiticica que informa os concretos sobre as movimentações e
publicações subterrâneas da contracultura brasileira como os jornais Flor do Mal e
Presença, a revista Polem e os filmes de Julio Bressane, Sganzerla ou Ivan Cardoso.
Uma das primeiras cartas escrita para eles nessa época é uma resposta
endereçada a Haroldo de Campos.18 Ela data de 18 de julho de 1971 (pleno verão em
Manhattan), dois meses depois de uma vista do poeta à ilha. Essa carta é exemplar
não só para demonstrar a influência dos Campos na (in)formação intelectual de
Oiticica naquele período, como para exemplificar a forma como ele construía sua
escrita-leitura. Oito dias antes dessa carta, 10 de julho, Haroldo enviara uma carta-
bilhete (um “bilhetter”, para usarmos uma invenção preciosa de Hélio) com uma
espécie de poema-comentário dos textos que Oiticica havia lhe dado durante sua
estadia em maio. Reproduzo o texto abaixo:
18 Projeto HO, # 0962.71.
49
hélio:
vai um abraço – sempreabraço – transamericano,
de mim, desta paulicéia infernalária
para a tua nueva lorca (El poeta en)
malassombrândade.
li seus textos: héliotextos
cheios de faíscas favilas cintilas
coruscâncias
e agora
enquanto o astronauta pisa o pó galáxio
te respondo com outras galáxias
francovertidas
galiciparlas
quero dizer
em tradução francesa
e/ou galicismos des-cartesianos
também recebi carta-planiscópio com
dama liberdade empunhando o facho e notícias
notícias notícias
viva o filme sousandradino!
viva o heliowork in progress!
um ninho de ave roca no central park
new York sham
rock 19
Essa carta-poema é uma síntese das conversas que ambos travaram nesse
período. Haroldo faz menção a Manhattan como a cidade de Lorca e Sousândrade,
dois poetas que registraram em seus livros suas vivências nova-iorquinas. Dentre os
textos que Haroldo leu, estava Barnbilônia, escrito em 10 de janeiro daquele ano por
Hélio. Haroldo relaciona as imagens elaboradas pelo autor nesse texto às imagens
poéticas dos dois poetas citados. “Malassombrândade”, aliás, é uma expressão criada
pelo próprio Hélio em seu texto. Haroldo também anuncia o envio de uma tradução
19 Carta de Haroldo de Campos para Hélio Oiticica, Projeto HO #1168.71
50
francesa de uma das páginas de suas Galáxias “francovertidas”. O poeta ainda faz
menção de um “carta-planiscópio” de Oiticica com uma foto de ambos na Estátua da
Liberdade e aos planos dele em fazer um filme sobre o Inferno de Wall Street, de
Sousândrade. Como podemos ver, em poucas linhas, Haroldo costurava uma série de
trabalhos e diálogos.
Mas voltemos à carta de Oiticica escrita em 18 de julho como resposta a esse
texto de Haroldo de Campos. Logo em seu primeiro parágrafo, a relação de seu texto
com Lorca e Sousândrade o faz ativar uma série de comparações e oposições entre
sua visão poética da cidade e a visão dos outros autores. Ao comentar a relação entre
o que estava escrevendo e o que lia nesses autores, nota-se o quanto ele estava
envolvido na feitura de seus próprios textos poéticos. Hélio abre a carta da seguinte
forma:
BARNBILÔNIA : a referência que você faz a
lorca, nueva lorca (el poeta en), é importante, pra mim
nem se fala: acredite ou não, não sei porque, comprei esse
livro de lorca há um mês, e só havia lido a parte dos
negros, que me interessava de imediato; não pensara em
conotações, e nunca havia ouvido falar do livro quando
escrevi barnbilônia ; no entanto, lendo agora outras
coisas, e a introdução do tradutor (edição bilíngüe
espanhol-inglês), vejo que barnbilônia é Lorca do começo
ao fim, com diferença de linguagem (?) e outras que quero
dizer aqui20
A partir daí, Oiticica inicia uma análise dos poemas do poeta espanhol
Federico Garcia Lorca (Poemas en Nueva York, 1930), relacionando-os não só a esse
texto dado a Haroldo, Barnbilônia, como ao Inferno de Wall Street, poema épico de
Sousândrade – autor maranhense apresentado nos anos sessenta pelos próprios
irmãos Campos. Há espaço ainda para citar, como paradigma de visão latina, o filme
20 Projeto HO # 0962.71 p. 1, em anexo no final da tese.
51
Simão no Deserto (México, 1965), de Luis Buñuel. De forma resumida, a rede de
intertextualidades sobre o cotidiano de Manhattan e seu impacto estético em um
estrangeiro ganha mais desdobramentos e seu passeio o leva a citações do trecho
nova-iorquino dos Tristes Tropiques de Claude Lévi-Strauss e da visão geométrica
de Piet Mondrian em seu famoso quadro Broadway Boogie-Woogie.
Oiticica escreve sobre a cidade – e sobre seu texto dedicado a ela –
embaralhando uma série de referências de leituras que estavam sendo feitas por ele
naquele momento (julho de 1971) ou que já tinham sido lidas anteriormente. Sua
escrita, nessa carta e nas demais cartas aos irmãos Campos, é típica de um arquivista,
já que lê os textos alheios a partir da constituição de um repertório em comum com
seu interlocutor. Sua escrita busca constantemente inter-relações cujos resultados são
muito mais a cumplicidade de um diálogo do que a discordância da polêmica. Seu
interlocutor, nesse caso Haroldo de Campos, é também leitor-escritor. Quem sabe ele
não seria também o leitor-escritor de seus textos?
Ampliando as referências sugeridas por Haroldo, a Nueva York de Lorca, a
Roma-Manhattan de Sousândrade e a Barnbilônia de Oiticica encontram-se, para ele,
em um mesmo espaço criativo, porém com algumas diferenças. Oiticica achava que
o excesso de expressionismo de Lorca – sua versão trágica e noturna de Manhattan,
resultado de sua visão “barroco-espanhol” e de seu “super-lamento” – contrastava
com a “indiferença moral à cidade” presente na obra do poeta maranhense. Apesar de
apontar semelhanças entre seu texto e os poemas de Lorca, Oiticica diz que ele se
parece mais com um holandês (Mondrian) chegando à cidade do que com um
espanhol (apaixonado) ou um francês racionalista (citando Lévi-Strauss).
O que quero ressaltar mais uma vez é que, no mesmo trecho citado acima,
percebe-se a busca de Oiticica – espontânea ou estratégica? – em apontar suas
afinidades intelectuais com seu interlocutor – no caso, Haroldo de Campos.
Afinidade essa que dava a Oiticica energia criativa e propiciava novos projetos de
sua parte. Nessa carta, era a estruturação do triângulo Lorca-Barnbilônia-
Sousândrade, que reforçava a ponte entre Oiticica e Haroldo. Ele era seu leitor, um
leitor especial que colocava seus textos em uma perspectiva ampla, no mesmo
52
diapasão dos grandes poetas que, assim como ele, viveram e escreveram sobre
Manhattan. Seu estilo de colocar as questões que o assaltavam durante a escrita da
carta propõe uma espécie de continum no pensamento de ambos. Até o final da carta,
os aspectos dessa relação são aprofundados, multiplicados. Após registrar esse
cruzamento de leituras, Oiticica dedica-se a uma descrição de seu texto poético e ao
comentário crítico de um trecho das Galáxias, enviado por Haroldo para sua leitura.
Barnbilônia, escrito em 23 de janeiro de 1971, é um dos primeiros textos
poéticos de Hélio feitos em Manhattan. Escrito e desenhado a lápis em um dos seus
inúmeros cadernos em espiral, o texto traz diferentes ritmos de escrita, com trechos
de prosa poética e fragmentos sobre a cidade e seus locais (a Manhattan de Oiticica)
ocupando e liberando de forma dinâmica os espaços vazios na folha em branco.
Além dos textos, algumas ilustrações do autor: um desenho da ilha de Manhattan-
penis, nome baseado na definição fálico-geográfica de sua nova cidade, pequenos
desenhos de cortes de cabelos lisos e afros, lenços de cetim, flechas e canetas
esferográficas representando arranha-céus da cidade. Abaixo, três dos principais
trechos do texto:
O playground-morte junk bowery A eldridge etc. : “I’m
the law” ____ to o elevador up-gaily : luz vermelha
instruções de vôo : de uma nova cova : rimbaud-hendrix :
Lola montes Lola by the kinks : Lola lalalalola →blonde
afro square gi : manman garra hoje são 3 : multisexo o
mundo não é tão redondo é manhattan-penis. (...)
bilinguex
the games people play
LOCAL louco e faminto ; sem direção quero dançar :
rainy day : sem Love
Schmuck: suck (já dizia Joyce: som som) seu scarf ao
vento (...)
como captéis de castelos uptown e pensar heróis ideais to
live with Tôrres lofts espaço dividido ninhos experienced:
53
sua indiferença small slum buildings low & slow e
bridges beijar sucko de frutas raras smoke hipp-a-drome
chacinas do everyday triscar bodies feridas prepuciais
arabesco 21
Barnbilônia, assim como os Poemas en Nueva York de Lorca ou o O Inferno
de Wall Street de Sousândrade, é, segundo o próprio autor, sua primeira impressão
poética sobre Nova York. De forma mais específica, Oiticica situa seu texto ao lado
dos poemas de Lorca e Sousândrade, pois ambos também foram feitos sob o impacto
que a ilha de Manhattan causava aos estrangeiros. A relação estabelecida entre seu
texto e os poemas alheios é uma relação de leitura poética da cidade chamada às
vezes por Hélio de “abrigo do norte”. Todos são textos que tratam de alguma forma
da busca de uma tradução estética desse impacto e dessa diferença que a metrópole
americana traz a tona em seus visitantes. O que Oiticica tinha em mente ao escrever
Barnbilônia era, em suas palavras, “o caráter latino-expressionista de nova-iorque”.
Para ele, esse expressionismo, familiar aos poetas e criadores latinos (daí a
associação dos poetas e de seu texto com o cineasta espanhol Luis Buñuel) que
viveram em meio à diferença norte-americana, atuava como elemento narcísico-
narcotizante para os mesmos.
Lorca chega à Nova York em 1929, no período agudo da crise de crédito no
país. Com o intuito de realizar conferências e estudar inglês na Columbia University,
o poeta Espanhol passa dois anos entre os Estados Unidos e Cuba. Durante esse
período, escreve seus poemas en Nueva York e trabalha em um roteiro
cinematográfico. Os poemas de Lorca são carregados de fortes imagens dramáticas
narrando uma cidade dura e desigual, uma civilização mecanizada e cinza.
Já Sousândrade chega por volta de 1870 em Manhattanville, a sete
quilômetros de Nova York. Segundo o estudo dos irmãos Campos, ele passa longo
21 O texto Barnbilônia está publicado em fac-símile no catálogo Hélio Oiticica – catálogo. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica/RIOARTE, 1997. Oiticica ainda tentou publicá-lo no jornal Flor do Mal em 1971, mas teve o texto censurado, segundo relata para Haroldo em carta de 19 de dezembro do mesmo ano. Guardou com orgulho a página impressa com um “X” imenso indicando a censura. Veja a íntegra do manuscrito em anexo no final da tese.
54
período na América, trabalhando como jornalista e publicando, entre 1874 e 1877, as
três edições nova-iorquinas do seu poema épico O Guesa e seu mais famoso trecho,
batizado pelos poetas concretos de “O Inferno de Wall Street”.22
Como exercício de análise, destaco a vontade de Oiticica em se situar como
parte desse universo poético-literário ao redor de Manhattan. Barnbilônia, na sua
própria análise crítica, filia-se a uma matriz, insere-se em uma tradição poética. Ele
faz seu texto dialogar com outros livros, utilizando-os como repertórios de referência
para sua poética: referências cruzadas e circulares entre suas leituras, seus encontros
de leituras com Haroldo de Campos, a escrita de seu texto e a relação de seu texto
com tais leituras feitas.
Outro ponto que reforça tais cadeias de relações textuais presentes nessa carta
é a idéia de Roma-Manhattan, ecoando não só nas referências a Sousândrade como
na obra de Oiticica. Entre seus filmes rodados em Manhattan, um deles foi feito
durante 1972 e tem como título a frase Agripina é Roma-Manhattan, elaborada pelo
poeta maranhense na estrofe 129 do “Inferno”. Nunca é demais lembrar que a leitura
da obra de Sousândrade só foi possível para a geração de Oiticica a partir do trabalho
de reedição levado a cabo pelos Irmãos Campos (a primeira edição das obras data de
1964). O aspecto “românico” de Manhattan é o que faz Oiticica constituir essa
especificidade do olhar latino sobre a cidade norte-americana.
22 CAMPOS, A. e CAMPOS, H. Re visão de Sousândrade. São Paulo: Perspectiva, 2002, 3° ed. rev.
55
Figura 3: ideograma de Oiticica para “Agripina é Roma-Manhattan”, 1971.
O segundo momento dessa carta a Haroldo de Campos (18 de julho de 1971)
abre uma discussão fundamental para esta e outras partes deste trabalho. Na segunda
página (já datando de 24 de julho), Oiticica inicia uma série de considerações sobre
alguns fragmentos das Galáxias (e uma tradução feita para o francês), enviados a ele
pelo seu autor. Os comentários presentes em sua leitura crítica desses fragmentos
(Oiticica leria muitos outros, sempre enviados pelo poeta), são preciosos para o
mapeamento da sua prática da leitura-escrita. Mais que isso, eles revelam os
56
caminhos que a idéia de Livro já trilhava nas preocupações de quem planejava, ainda
reticente, um projeto de publicação dos seus próprios textos poéticos.
Apesar de desenvolver esse tema com especial atenção mais a frente, vale a
pena eu deixar desde já claro que o projeto Galáxias foi uma obra na qual seu texto e
sua forma foram definitivos para as perspectivas poéticas e editorias de Oiticica.
Seus escritos e seu desejo de livro encontrariam no longo poema-prosa de Haroldo
um eco direto, uma filiação explícita, enfim, um igual. Suas referências eram
cultivadas pelo leitor e aprofundadas pelo escritor que coabitavam Oiticica. Nos
trechos citados a seguir, vemos um dos muitos comentários que ele fará ao longo dos
anos sobre as Galáxias:
li as galiláxias [sic] estupendas: camadas que se
superpõem como mapas regionais, sem limite preciso de
significado : overlapping transparencies; as traduções são
geniais, coisas totalmente novas, translações; o texto de
1970 já é diferente na continuidade de leitura : as palavras
tendem a se concentrarem mais, núcleo-palavras, como
bombinhas que se ativam, mais do que o fluir dos outros,
fluir-superposto; procurei ler de vários modos: em
silêncio, em voz alta, com rádio tocando, e a diferença é
grande e rica, sempre; (...) há um sistema de colisões-
deslizamentos, que o augusto faz de outro modo em
colidouescapo; esses textos galáxias devem ser dos mais
importantes feitos nessa década na américa latina: é
impossível que haja alguém fazendo algo melhor, e a
tradu-translação enriquece-os de tal modo, que penso que
as limitações que se estabelecem no contexto língua pra
língua, baseado e interpretações, equivalências etc.,
parecem se esboroar : os limites de idiomas se abrem;
você tentou para inglês? seria curioso ver no que podem
dar; layer-shifts; o texto – branco do papel se abrem em
camadas : não há suporte formal da pagina-livro :
parecem como se fossem superposições fílmicas
einsensteinianas : texto sensorial.
57
Após entrar em contato com os escritos poéticos de Oiticica, tais comentários
tornam-se evidentes, quase obrigatórios em sua leitura das Galáxias. Demonstram
que os poetas concretos não só influenciaram o repertório de leituras de Oiticica
(Pound, Sousândrade, Mallarmé, Joyce etc) como também tiveram influência direta e
decisiva na sua produção escrita. Em muitos dos seus textos, como o trecho citado
acima de Barnbilônia, vemos os “núcleo-palavras”, as “colizões deslizamentos”,
enfim, vemos a espacialidade e a inventividade permanente das Galáxias e de outros
trabalhos dos concretos (Colideuscapo, de Augusto, também assume um lugar
central nessas referências) como alguns dos principais motores de sua escrita.
Haroldo de Campos ainda enviaria para Oiticica outros trechos de seu livro ao logo
dos anos setenta. As Galáxias eram quase sempre assuntos certos na correspondência
entre Oiticica e seu autor.
São nas ultimas linhas do trecho citado acima que encontramos a entrada do
tema do Livro nessa carta. Ainda sem revelar seu projeto de publicação, Oiticica
destaca o aspecto gráfico e o formato das Galáxias. O texto estruturado no branco do
papel que se “abre em camadas”, a ausência do suporte formal da “pagina-livro” e a
comparação dos textos de Haroldo de Campos com as “superposições fílmicas
eisensteinianas”, em referência as imagens justapostas dos filmes de Eisenstein,
todos esses elementos serão, como veremos mais a frente, retomados por Oiticica ao
definir a forma de sua publicação. Ele lia os livros e textos não apenas como um
leitor interessado, mas também como um escritor cujo objetivo era a elaboração de
um livro próprio. Para além da engenhosidade poética do texto de Haroldo, é a sua
forma e sua proposta de uso página que interessam a esse leitor. Guardemos esse
tema.
No final dessa carta a Haroldo, ainda em julho de 1971, Oiticica fazia um
pedido ao poeta paulista cujo teor demonstra a sua cumplicidade intelectual e sua
busca pela informação cultural que a crítica dos Irmãos Campos produzia naquele
momento. Em tom de apelo, ele escreve: “Haroldo, mantenha-me em dia com o
trabalho de vocês, no momento o único neste país assolado de burrice e
58
mediocridade; não esqueça de mim”. Aliás, os pedidos de “manter-se em dia” sobre
os escritos e leituras dos irmãos Campos era uma constante nas cartas de Oiticica.
Em outra carta para Haroldo, de 19 de dezembro do mesmo ano (1971), ele faz uma
lista dos livros dos poetas concretos que não tinha e, segundo ele, precisava ter.
Sempre preocupado em se atualizar e participar dos debates intelectuais que estavam
em curso no Brasil, Oiticica fazia com que seus amigos lhe enviassem, além de
livros, como os irmãos Campos, recortes de jornal, matérias publicadas, discos
lançados etc. visando a formação do que ele chamava de “Repertório”. Nessa extensa
lista, devidamente encomendada a um dos autores dos livros, Oiticica mostrava a sua
intimidade com a obra dos poetas paulistas:
Haroldo, vou repetir aqui as coisas que não
possuo, que são quase todas, infelizmente : digo logo q
não tenho essa nova edição do SERAFIM q você
menciona: quem haveria de o mandar? senão você? 23
A lista, completa, era numerada com detalhes biográficos para alguns
pedidos:
1) o balanço da bossa, eu tinha o de Torquato
roubado mas ele pediu de volta; 2) seus livros q nunca
cheguei a ter: metalinguagem e a arte no horizonte do
provável (q li muito em Londres chez cae); roubaram-me
exemplares da INVENÇÃO e só fiquei com o n.4 :
portanto os que estiverem avaiable todos; mallarmagem;
texto de augusto sobre o lupiscinio (aquele publicado no
correio/estadão (?) ) – você veja o que mais : eu já tenho o
de kilkerry, o marco zero e exerc. findo do Décio,
equivoc. e colidoue. do augusto; (...) well my dear, you
23 Projeto HO # 0859.71
59
know better : why eu lhe aconselhar? salve-me da
ignorância-gnomínia.24
Essas filiações e esses diálogos literários entre o leitor Hélio Oiticica e os
irmãos Campos ocorriam em um momento no qual o principal objetivo do primeiro
era o planejamento e execução de novos espaços de ação na sua obra. Entre esses
espaços, textos e publicações. A partir de 1971 ele planeja incessantemente publicar
algo, de diversos formatos e propostas. Já na sua primeira carta para Augusto de
Campos, o assunto de uma publicação é aberto e ocupa grande espaço. A carta, de 16
de outubro de 1971, segue a mesma dinâmica da carta anterior, enviada para
Haroldo: comentários críticos sobre textos e leituras, indicações de novos autores, a
confluência em torno dos autores vinculados ao paideuma concreto. Ao lado desses
temas, a novidade: seus planos de editar livros.25
Oiticica escreve a Augusto exatamente na época em que Gilberto Gil vai a
Manhattan para uma série de shows. A presença de Gil e Guilherme Araújo marcava
a retomada de contatos entre o artista plástico e os músicos baianos após o período de
intenso convívio em Londres, em 1969. Ele é convidado por ambos para ser o
cenógrafo ou, em seus termos, o responsável pela “ambientação” (palco e luzes) do
show. Após narrar os acertos e desventuras das apresentações de Gil, Oiticica passa a
dedicar a carta a um encontro entre ele e um casal de amigos de Augusto de Campos
(um deles, um poeta cujo nome inicialmente não recorda e mais a frente diz ser
George Quasha). É a partir desse encontro que Oiticica introduz o tema de sua
publicação, mostrando suas primeiras idéias. Na carta, ainda se falava de
“publicações”, já que Oiticica planejava simultaneamente um livro “só de fotos com
pouco texto” e outro com seus projetos ambientais e maquetes. Pouco tempo depois a
publicação se tornaria um grande e único projeto.
24Ibid 25 Projeto HO # 091.71. Essa carta, ao lado outros textos de Oiticica, foi publicada no livro Fios Soltos: a arte de Oiticica, organizado por Paula Braga, página 325. A referência completa: BRAGA, Paula (org.). Fios Soltos: a arte de Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008.
60
Nesses dois projetos de 1971, é possível encontrar o embrião desse único
livro, mais tarde batizado por Oiticica de Newyorkaises. Ambos, o livro com suas
plantas das propostas ambientais e o livro com fotos e textos, eram dois caminhos
que iriam em breve confluir. O primeiro, já trazia para seu autor os dilemas da forma
(layout) da publicação e do financiamento para suas ousadas propostas editorias. O
segundo trazia a tona o caráter in progress que marcaria não só seus projetos de
publicação como toda sua obra. Oiticica afirma para Augusto que “daquele livro que
lhe falei, só de fotos e com pouco texto, ainda penso em aumentar: estou coletando
material”. Esse projeto, cujo rumo dele englobaria todos os outros projetos de
publicação de Oiticica, era o embrião de suas Newyorkaises.
Vale à pena destacar um trecho dessa carta, em que Oiticica já antecipa seus
dilemas sobre a formatação de um projeto editorial realizado por ele. Já nessa época,
é possível constatar as dificuldades que seguiriam os projetos e as ambições de
Oiticica a respeito de sua edição. Hélio afirma a Augusto que a Fundação
Guggenheim não poderia bancar sua publicação com os projetos ambientais e que
não sabia como fazer para editar um trabalho que já tinha o layout e a boneca
prontos:
porisso, resolvi fazer antes, o que fiz durante o
mês passado, esse projeto de publicar os projetos: as
plantas baixas de 4, que figuram na boneca, se desdobram
de dentro de um álbum (como álbum de disco, do mesmo
formato) : o texto-plano está nas antecapas, dentro, e
podem ser lidos à medida em que os mapas são
desdobrados; incluo fotos das maquetes, referências
quoting você, haroldo, pound e fenollosa, guy debord
(society of the spectacle), as fotos do que chamo de
repertório ; creio que ficou muito bonito, enxuto.26
26 Ibid.
61
Seu projeto trazia a complexidade formal que estaria presente em todas suas
empreitadas editorias: um livro com formato de álbum, com mapas desdobrados
trazendo textos cujas referências estão, de certa forma, conectadas ao trabalho dos
irmãos Campos (com a citação dos próprios e de Pound e Fenollosa, nomes-chave do
paideuma concreto). A presença de Guy Debord demonstra o ecletismo das leituras
de Oiticica, sempre cruzando fronteiras e ampliando suas apropriações.
Ainda no campo das leituras, ele comenta nessa mesma carta para Augusto o
seu contato com as obras de Yeats e dos já citados Pound e Fenollosa, além de
agradecer a indicação do livro Notations, do músico John Cage, publicado alguns
anos antes (1968). Demonstrando sua filiação ao mesmo repertório de leituras de
Augusto, Oiticica faz comentários sobre o livro de John Cage (aliás, os livros, já que
também cita a leitura de Silence, do mesmo autor) que nos mostram seu permanente
interesse nesse momento pela forma ou, em outros termos, pela engenharia presente
na relação entre texto e forma dos livros que chegavam as suas mãos. Para ele,
Notations era “de uma riqueza sem fim, cósmico, montagem fantástica” e emenda:
“tenho lido muito o silence também, com o qual sinto uma incrível afinidade; a
construção desses livros são obra de gênio”. Vale lembrar que dois anos mais tarde
Notations será uma das bases para os desenhos e fotogramas de uma das séries
Cosmococas, feitas por Hélio em parceria com Neville de Almeida.
O que é interessante ressaltar nesses trechos é esse permanente diálogo entre
um leitor e um escritor, sobre livros. O foco de Oiticica é geralmente a respeito da
forma dos livros, da engenhosidade editorial – como o caso das Galáxias e dos livros
de John Cage. Sua leitura-escrita cotidiana estava, nesse momento, condicionada ao
seu projeto maior, de Livro, ou de alguma publicação intermediária que pudesse dar
vazão ao seu processo criativo a partir da leitura-escritura. Ainda nessa mesma carta
a Augusto de Campos, temos um trecho eloqüente para ilustrar os procedimentos
utilizados por Oiticica em sua escrita:
62
Estou trabalhando muito em textos nos quais
quero repor tudo sobre a minha posição estética, etc.; sem
cair em teorias discursivas : com muita citação,
juxtapostas, com fotos, imagens, recortes de jornal e
revista, etc.
Há um texto de Oiticica desse período cuja feitura demonstra de forma
exemplar essa proposta de escrita narrada para Augusto. Em “Hafers – Mondrian –
FK. Loyd Wright – Rosselini”, de 13 de novembro de 1971, as “justaposições” de
textos e imagens, a ausência de “teorias discursivas”, as citações, todos esses
elementos estão presentes. Em seu estilo fragmentário e descritivo, Oiticica apresenta
uma espécie de diário-reportagem, de crônica-crítica do seu cotidiano em Manhattan
e das reflexões que sua circulação pela cidade suscitava em seu trabalho. O texto foi
escrito com remetente certo: ele deveria fazer parte da série “Babylonest”, nome da
seção que Oiticica publicara a primeira parte ainda em 1971, no jornal Flor do Mal,
de Luis Carlos Maciel, Rogério Duarte, Tite de Lemos e Torquato Mendonça.
O texto começa com uma definição do espaço da folha mesclando o registro
da imagem sobreposto ao registro da escrita. Sua primeira parte abre com a “área”
reservada para a foto de um mapa feito para se encontrar o local de um piquenique –
e então ele mergulha em uma seqüência de situações e lugares e citações em um
encontro seu com seu amigo João Roberto Suplicy “Jua” Hafers, colecionador de arte
e negociante de café brasileiro na bolsa de valores de New York. Hafers era, na
época, uma espécie de embaixador cultural do Brasil na cidade e recebia volta e meia
Oiticica em seu escritório em Wall Street. Foi Hafers quem indicou Oiticica para
receber a bolsa Guggenheim e se instalar nos Estados Unidos. No texto, Oiticica se
refere a um encontro deles em Ward’s island, parque localizado em uma pequena
ilha do East River, Manhattan.
Logo nessa introdução de cunho pessoal, a marca de um estilo inconfundível
nos escritos de Oiticica: a escolha em ligar as sentenças através de setas, travessões e
dois pontos, a construção de frases-sínteses como “pontes, nuvem-carneiro, arco-
poluição-íris”, a referência a um repertório estético (nesse primeiro parágrafo,
63
Magritte), o uso da caixa-alta para demarcar uma função específica de cada palavra
em destaque.
Apesar de dedicar mais a frente uma análise do processo de escrita de
Oiticica, ressalto já aqui alguns pontos fundamentais para lermos esses textos. Essa
marca textual atravessa a grande maioria de seus escritos, sejam eles pessoais ou
públicos. Ele obedece a um jogo permanente entre o que Oiticica vê (uma exposição
de Mondrian no Museu Guggenheim, uma mostra de filmes sobre Rosselini), o que
ele pensa (o impacto da obra de Mondrian na sua formação e na arte mundial) e o
que ele lê (a citação de um trecho das Galáxias de Haroldo de Campos, referente à
Mondrian em Manhattan ou as referência à Teoria do Não-Objeto de Ferreira Gullar
e ao stream of consciousness de James Joyce).
Figura 4: trecho inicial de “Hafers – Mondrian – FK. Loyd Wright – Rosselini”.
“Hafers – Mondrian – FK. Loyd Wright – Rosselini” é um dos textos de
Oiticica que nos serve como exemplo do que venho chamando aqui de uma escrita
pautada em leituras, feita a partir de procedimentos lúdicos, sobrepondo e
64
reinventando os elementos poéticos localizados entre suas vivências pessoais e as
referências circunstanciais do cotidiano. São textos feitos a partir do que se lê,
costurando o que se lê com o que o próprio autor cria enquanto escritor. Esse texto-
reportagem para os leitores da Flor do Mal, ou seja, um texto que seria publicado e
lido pelo público brasileiro, parte de eventos prosaicos de seu cotidiano – um
piquenique, uma ida ao Guggenheim Museum para uma retrospectiva de Mondrian –
e explode em considerações críticas e poéticas sobre o dia, o pintor, o museu e a
cidade. É o texto de um escritor-leitor, um leitor de Sousândrade, de Haroldo de
Campos que não cede uma vírgula do seu projeto de escrita peculiar. Através de
Mondrian, Oiticica tece considerações sobre o objeto na obra de arte, situa a
contribuição do pintor às vanguardas brasileiras, apropria-se de trechos das Galáxias
e insere de forma corrente em seu próprio texto. Tudo isso em sentenças breves,
snap-shots que conectam leituras e escrita em um ritmo de permanente movimento:
MONDRIAN : só MONDRIAN me faz ir ao
GUGGENHEIM : primeira vez: LLOYD WRIGHT,
MONDRIAN : suspensão, tempo : mas MONDRIAN é
ou evoca meu começo : onde estaríamos sem ele : quer
dizer no dia 13 de nov., 71 ? → chegar – ir além – levar
no espaço, no tempo pra depois de MONDRIAN, o
marco, marco do século do fim da pintura – GULLAR
(TEORIA DO NÃO OBJETO) = Mondrian limpa a tela,
retira dela todos os vestígios do objeto, não apenas sua
figura, mas também a cor, a matéria e o espaço que
constituíam o universo da representação : sobra-lhe a tela
em branco. Sobre ela o pintor não representará mais o
objeto : ela é o espaço onde o mundo se harmonizará
segundo os dois movimentos básicos da horizontal e da
vertical. Com a eliminação do objeto representado, a tela
– como presença material – torna-se o novo objeto da
pintura. Ao pintor cabe organizá-la mas também dar-lhe
uma transcendência que a subtraia à obscuridade do
objeto material. A luta contra o objeto continua =
65
MONDRIAN, o marco, marco do século do fim da
pintura : marca as paragens dos trópicos, rio-paulistas :
onde estaríamos sem ele – HAROLDO DE CAMPOS
(fragmento GALÁXIAS) = e flambava luz láctea vejam a
famosa skyline de manhattan downtown Manhattan
bastidores acesos revezando quadros e esquadros contra o
horizonte garrafa mondrian me fecit mr. Anoma ou mr.
Assamoi no hully-gully agora rindo de dentes perfeitos =
FK. LOYD WRIGHT fez o GUGGENHEIM para a
pintura : MONDRIAN, prova-limite disso.27
É possível afirmar sem erro que, ao menos nos textos desse período, e em
períodos posteriores, os irmãos Campos ocupavam um grande espaço de referência
em sua escrita e em suas leituras. Em uma carta enviada para Julio Bressane, Rosa
Fernandes e Neville de Almeida em outubro de 1971, Oiticica se refere a eles dois
como ídolos.28 Em outra carta, essa para Waly Salomão, falando dessa vez da estada
dos próprios Bressane e Rosa em seu Loft 4, Oiticica descreve a rotina deles como
“uma espécie de sarau permanente”, em que liam juntos “oswald, sousândrade,
irmãos campos, pound, etc”. Na mesma carta, em uma viagem no fim de semana,
“rosa lia a revisão de Sousândrade, ensaio dos irmãos campos, sem parar; Júlio,
inferno de wall; uma loucura; aproveite para ler um livro do cummings genial: i, six
non-lectures : obra prima!”.29
Durante todo o período que esteve em Manhattan, Oiticica recomendava a
qualquer um no Brasil que entrasse em contato com Augusto e Haroldo de Campos
seja qual fosse o assunto ou proposta de trabalho. Nessa mesma carta – e em outra
carta do mesmo mês, para Caetano Veloso e Dedé Gadelha – ele transcreve em
inglês um poema de Andriéi Vozniessiênski, poeta russo traduzido por Haroldo e
Augusto de Campos em colaboração com Boris Schnaiderman para o livro Poesia
Russa Moderna (1968). Na sucinta biografia de apresentação do poeta, os tradutores
27 Projeto HO # 0218.71 28 Projeto HO, n° 0858.711, carta de 20 de outubro de 1971. 29 Projeto HO # 0911.71
66
o descrevem como “um dos lideres da juventude inconformista”, cuja escrita atuava
bastante “no limiar entre a poesia e a prosa, sendo também evidente sua preocupação
com o visual do texto”.30 Talvez daí a predileção de Oiticica por seus poemas.
Essa referência a Vozniessiênski é chave porque ela fecha (ou reabre) uma
espécie de circularidade e simultaneidade entre os documentos até aqui trabalhados.
O nome do poeta russo aparece na mesma página das Galáxias citada por Oiticica
em “Hafers – Mondrian – FK. Loyd Wright – Rosselini”, porém em um trecho
diferente. O trecho do livro, intitulado “a liberdade” se refere a uma passagem do
autor (Haroldo de Campos) por Manhattan e foi escrito em novembro de 1966. No
texto de Oiticica, de 1971, a parte citada desse trecho refere-se aos “quadros e
esquadros contra o horizonte garrafa” de Mondrian. Porém, logo abaixo, aparece o
poeta russo, ao lado de outros autores que Oiticica dizia estar lendo para Haroldo em
carta citada mais acima, de julho desse ano: Lorca e Sousândrade. O trecho completo
das Galáxias é o seguinte:
...vejam a famosa skyline de Manhattan
downtown Manhattan bastidores acesos revezando
quadros e esquadrões contra o horizonte garrafa mondrian
me fecit mr. anoma ou mr. assamoi no hully-gully agora
rindo de dentes perfeitos come-se alguma coisa como
frango frio e desossado algo macio desmanchado no
palato para além deve ser battery park e aquela linha reta
ali é broadway vladímir lorca vozniessiênski mas antes de
todos sousândrade estiveram aqui...31
Apenas Vladimir Maikóvski, cuja referência de Haroldo deve ser o livro
Minha Descoberta da América, escrito em 1925 por ocasião de uma visita do poeta a
seis cidades da América Central e América do Norte (entre elas, claro, Nova York),
não foi incorporado nesse momento pelos textos de Oiticica. Já Lorca, Sousândrade e
30 Poesia Russa Moderna. Traduções de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Shcnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 6° edição, 2001, p. 361. 31 CAMPOS, H. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 2° Ed, 2004.
67
Vozniessiênski eram autores trabalhados a partir desse fluxo de leituras, conversas e
escritas ancoradas em grande parte nas Galáxias e na correspondência com os irmãos
Campos. Em nove de agosto, nova etapa na troca de informações literárias: Haroldo
escreve a Oiticica, dando conta do envio dessa página de Galáxias. O poeta inclusive
cita as “afinidades eletivas” que seu texto tem com os textos de Oiticica,
aprofundando essa trama:
Mando-lhe também um texto meu sobre nova
Iorque, integrante das galáxias, publicado no n°5 (1966)
de invenção: foi o meu primeiro contato com a lone babel
barbarilonga durante um surrealista congresso do pen
clube de new york, que me convidou para um painel sobre
o escritor na era eletrônica, presidido por marshall
mcluhan. É um texto-homenagem aos poetas que
visistaram n.y.: sousândrade, lorca, vladimir maiakovski,
adriéi vozniessiensky. (...) como v. verá, há no meu texto
algumas “afinidades eletivas” com a sua visão da cidade
(quadros e esquadros mondrianescos revezando-se no
horizonte).32
O ciclo se completa com essa outra carta de Oiticica para Haroldo, de 19 de
outubro de 1971. Ele comenta o trecho das Galáxias e comenta a ampliação de suas
leituras:
Gostei muito do fragmento das galáxias
Manhattan que você me enviou: cada vez descubro mais
coisas nele; comprei um livro de poemas do
vozniessiênski (aqui é voznesensky, traduzido por anselm
hollo) : são lindíssimos: “without fools, or railway
stations like weeding cakes – a future of poets and
airports!”33
32 Projeto HO # 1175.71, carta em anexo no final da tese. 33 Projeto HO # 0859.71
68
O que quero demonstrar com esses trechos de correspondência é a forma
direta que os escritos de Haroldo e Augusto de Campos, suas traduções, suas dicas de
leitura, circulavam no processo criativo de Oiticica nesse momento de fermentação
de uma idéia de publicação, de produção escrita. Mais: os textos e dicas dos poetas
paulistas estavam enraizados na prática literária de Hélio. Ele lia seus livros de
ensaios e poemas, ele lia os livros que eles liam, recomendavam ou enviavam. Lia
colando sem hesitação suas demandas estéticas e seus projetos nas direções
apontadas pelos Campos. O caso das Galáxias é exemplar para isso. Suas páginas
abertas e verborrágicas inauguravam uma série de possibilidades textuais, formais,
estéticas, lingüísticas e poéticas para sua produção futura. Oiticica estava escrevendo
textos e cartas, comprando livros e desdobrando descobertas pessoais a partir de suas
leituras da obra. Para esse novo morador de Manhattan que escreve sobre a cidade
(como em Barnbilônia), são os poetas que por lá passaram e ficaram registrados no
trecho das Galáxias que ele procura ler e se relacionar. Oiticica reverbera trechos
desse livro em sua obra como se ele, também, fizesse parte dessa linhagem de artistas
desterrados na cidade norte-americana. Afinal de contas, ele escreve seus textos com
eles.
O Salto e o Troço
Não foram apenas os irmãos Campos, porém, que marcaram as leituras – e a
escrita – de Hélio Oiticica durante sua estadia em Manhattan. Mantendo suas
relações estreitas com poetas e escritores brasileiros, outros dois amigos exerceram
um diálogo criativo e produtivo com sua obra: Silviano Santiago e Waly Salomão,
um professor, escritor e crítico literário e um amigo das rodas tropicalistas de 1968,
ainda buscando publicar seu primeiro livro. Ambos, poetas. Entre eles e Oiticica,
literatura seria um tema constante.
Silviano Santiago tornou-se amigo de Oiticica em 1971. Conheceram-se
rapidamente no ano anterior, na casa do pintor carioca Rubens Gerchman, que já
69
morava há dois anos em Manhattan. Silviano era professor de Literatura Francesa na
Universidade de Buffalo, a alguns quilômetros da cidade. A partir de um encontro
fortuito, em um dia que também estava presente na casa de Gerchman o crítico
literário Roberto Schwarz, Silviano e Oiticica tornaram-se amigos freqüentes.
Oiticica ainda morava no seu “Babylonest”, o famoso Loft 4 localizado no número
81 da Second Avenue, no East Village. O prédio era ao lado do famoso palco de
shows da época, Filmore Theather, e sua rua era um desfile de todos os tipos de
freaks, artistas e intelectuais de vanguarda. É nesse cenário, entre seus ninhos,
câmeras, gravadoras, convidados e gadgets diversos funcionando de forma
permanente que Silviano e Hélio constroem sua amizade e suas contribuições
teóricas e estéticas. Além de trocarem livros, cartas e idéias, Silviano organiza uma
exposição para Oiticica na conceituada Albright-Knox Gallery em 1973.34 Por sua
vez, Oiticica cita Silviano em alguns dos seus principais textos/trabalhos do período
na Babylon e concebe de forma dedicada o design (palavra que ele detestava) de um
livro de poesias do crítico, nunca publicado.
Durante três anos de convívio (1971-1973), Silviano Santiago e Hélio Oiticica
exerceram influencia mútua em suas obras. Suas conversas eram aguçadas por uma
cumplicidade intelectual que alimentava a sua relação de amizade e de trabalho.
Algumas vezes, dessa cumplicidade surgiram idéias aplicadas em seus projetos
pessoais. Para Hélio, Silviano era um crítico “único em matéria de situar problemas
com precisão e como crítico relevante” pela sua capacidade de não ser apenas
“crítico-espectador”. Era um privilégio conviver com alguém que reunia tal “precisão
crítica” aliada a sua condição de poeta.35 Já os relatos posteriores do próprio Silviano
nos mostram uma relação produtiva entre ambos. Segundo o crítico, muitas vezes
34 Silviano Santiago permanece durante cinco anos como professor de Literatura Francesa da Universidade de Buffalo, nas proximidades de Manhattan. Durante esse período, Silviano vem ao Brasil em 1972 para dar aulas na PUC-RJ, retornando aos EUA em 1973. 35 Essa declarações de Oiticica sobre Silviano Santiago encontram-se em carta escrita para Lygia Pape em 7 de janeiro de 1973, in Projeto HO #1183.73
70
suas conversas giravam em torno de alguns de seus temas de pesquisa ou dos
projetos de Oiticica36. No cerne dessas conversas, livros, leituras e escritas:
Na minha primeira visita falamos muito de
psicanálise e de Nietzsche (assuntos que me interessavam
na época). Hélio tinha desconfiança da primeira e, aos
doze anos, tinha lido o filósofo alemão. Disse-me que iria
relê-lo. Acrescentei que estava preocupado com
problemas de linguagem e com novas alternativas de
pensamento político. Hélio foi sensível a essas e outras
conversas. Funcionaram demais para mim e parece que
funcionaram também para ele.37
Se Silviano estava interessado em questões e textos ligados à psicanálise pós-
estruturalista, a temas da obra de Nietzsche e a novos pensamentos políticos, Oiticica
estava investindo, como vimos na sua relação com os irmãos Campos, cada vez mais
na operação da escrita. Os seus textos poéticos e os registros diários em seus
cadernos e blocos de notas eram, ao lado da fotografia e do cinema, um novo norte
de seu trabalho. Citando mais uma vez Silviano:
Hélio estava mais e mais se desligando do
‘universo da pintura e das amizades’ e adentrando-se pela
linguagem fotográfica e verbal. Com enorme carinho e
zelo, mantinha um caderno de anotações, que era a sua
verdadeira produção artística do tempo. Em textos que
enviou depois para as revistas Navilouca e Pólem vi que
havia alusões às nossas conversas e até mesmo a meu
trabalho e pessoa.38
36 SANTIAGO, S. “Hélio Oiticica, a gramática da anarquia”, in: Revista Piaui n° 0. Rio de Janeiro: Editora Alvinegra, 2006, pp.36-38. 37 Idem. “Fé no veneno – lembranças de Hélio Oiticica”. Texto impresso para leitura, 2005. 38 Ibid.
71
Umas das alusões a essas conversas na obra de Oiticica é a “proposição”
VIGÍLIA, elaborada pelo artista plástico no ano novo de 1973 para 1974 para ser
levada a cabo por Silviano. Nas próprias palavras do criador do conceito, as
Proposições eram textos com instruções de trabalhos para terceiros. Elas
funcionavam como “anotações-sugestões-idéias” para serem executadas por pessoas
escolhidas por seu idealizador: o próprio Oiticica.39
VIGÍLIA propõe a execução de um evento em que Silviano Santiago, após
cumprir uma série de especificações, deveria ler o poema-sonoro Über Coca, de
autoria de Hélio e dedicado a ele. O título do poema é retirado de um texto que
chegou a suas mãos através das conversas com Silviano. Era o artigo homônimo
“Über coca”, escrito por Freud em 1884. O poema de Hélio gira em torno do tema e
sua homenagem a Silviano decorre dessa ponte entre o autor e os textos de Freud
sobre o tema da coca. Junto da leitura da Proposição, deveria ocorrer uma série de
interferências visuais e sonoras em um ambiente especialmente arranjado para o
evento. A seguir, um trecho do poema:
39 Para ler na íntegra a transcrição de VIGÍLIA, conferir COELHO, F. O. “Vigília”, in Margens. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.88.
72
Figura 5: trecho inicial do poema “Über Coca”, 9 de julho de 1973
Influenciado pelas leituras e usos que ambos fizeram nesse período da obra de
Rimbaud (principalmente dos poemas “Matinée D’Ivresse” e “Veillées”), o tema
principal do texto – e o cerne da proposta para Silviano executar – é a idéia de
“vigília”, não como estado de atenção permanente, mas como o momento entre o
sono e o despertar, como uma “indiferença atenta”. VIGÍLIA é, para Oiticica, “um
estado q estaria permanentemente a serviço de uma condição de produção”.
Nesse estado criativo permanente, Oiticica escreve as instruções de execução e
sua reflexão teórico-poética sobre o tema proposto. Ao longo do texto, encontramos
73
uma série de informações cruzadas, numa espécie de escrita telegráfica que apresenta
para o leitor um microcosmo do pensamento e ação de Oiticica nesse período: seu
interesse permanente pelas informações de sua obra através de registros e cópias, sua
valorização intransigente da invenção como princípio motor de qualquer trabalho
artístico e intelectual, suas críticas ao domínio e a banalização da idéia de happening
nas artes plásticas, sua aposta na idéia do jogo como elemento aberto e fundamental
da arte e a percepção – a partir de suas conversas com um Silviano já leitor de
Derrida – das ambigüidades existentes nos usos das palavras (cura/veneno). Em seu
texto “Fé no Veneno” (citação do verso de Rimbaud em “Matinée D’Ivresse”),
Silviano situa essa relação entre as leituras de Rimbaud e as conversas entre ele e
Hélio sobre as leituras de Freud e Derrida:
Hélio lia muito. Poesia, sempre. Rimbaud
principalmente (“Veilées”), e havia um verso mágico
sempre no ar da nossa conversa: “Nous avons foi au
poison” (Temos fé no veneno). Eu estava lendo um longo
artigo de Jacques Derrida, “A farmácia de Platão”, onde
se dizia da ambigüidade no significado das palavras. A
marca “maldita” num dos significados da palavra,
coagulando-o pelo bom senso, era um produto da
civilização ocidental. “Pharmakon”, no original grego,
era ao mesmo tempo veneno e/ou remédio. Pairava no ar a
pergunta: por que a droga é só veneno?
VIGÍLIA – escrita na mesma época em que Oiticica produzia sua série
Cosmococas – é, como seu livro, um Programa in progress, isto é, uma proposta de
trabalho poeticamente aberta, nunca fechada ou pré-determinada. Como várias
Proposições de Oiticica, ela nunca foi executada antes, permanecendo aberta até
hoje. Sua origem era literária, proposta a partir de leituras de Freud, Rimbaud e de
uma poesia escrita por Hélio. Seu percurso tinha um endereço certo: um amigo cujo
contato através de um “nó” fez sua obra expandir fronteiras, leituras e propostas.
74
Para Hélio, o valor e admiração a um amigo eram expressos através do diálogo
aberto e constante e de uma cumplicidade criativa. Ao lado de Silviano, outros
amigos-artistas como Carlos Vergara, Waly Salomão, Lygia Pape e Antônio Dias
receberam suas Proposições e as devidas instruções para serem seguidas. Através
delas, criava-se uma união indissolúvel entre Oiticica e o outro, já que era através
desse “outro” que o artista plástico realizava suas idéias “propostas”, numa simbiose
entre teórico, proponente e executor. Ele enxergava nesse outro um potencial que
apenas sua sensibilidade percebia, traçando para si e para todos novas possibilidades
de ação. Levava ao limite a idéia de trabalho coletivo, sugerindo – ou exigindo, em
alguns casos – a realização de um projeto cuja criação é vinculada ao que Hélio
espera do outro. A obra só existe, assim, na junção coletiva e perfeita entre
propositor e executor, como se ambos fossem portas distintas do mesmo labirinto. Há
uma frase de Silviano que resume e finaliza poeticamente essa relação ora profícua,
ora tensa, entre Hélio, seus amigos e seus trabalhos: “Hélio era capaz de faiscar no
outro o seu próprio ouro”. Cito um trecho de VÍGILIA:
all right: na verdade quando me veio essa razão de PROPOR
VIGÍLIA – programa in progress a SILVIANO o q de início
queria era q o q fosse proposto fosse algo aberto
poeticamente → RIMBAUD-VEILLÉS na mente →
VEILLÉS-COSMOCOCA → queria q o q eu desse a
SILVIANO tivesse uma razão de ser q fosse dirigida
somente (ou especificamente) a ele: abrir algo
q não o “obrigasse” a nada → poetizar e não
burocratizar (no sentido de “ter q levar algo a cabo”)
→ SILVIANO : ótimo em situar condições-soluções
faz-se crítico porque é poeta para quem precisar
condições críticas conduz a condições de INVENTAR :
abrir e não estancar: e por isso PROPOR VIGÍLIA
me vem como um atiçamento de absurdidades
poéticas não esperadas quando se pensa em
PROPOR algo → como os bloco-experiências
75
q nasceram comigo e NEVILLE de um tipo
de trivialidade absurda (quem levaria aquilo
a sério!) essa PROPOSIÇÃO quero-a poética
e caprichosa como um amor à primeira vista:
prescende-se dela mas ela bateu com a
irremediabilidade de um raio:
Durante o período de convivência com Oiticica (1971-1973), o trabalho de
Silviano dividia-se entre seus ensaios críticos e sua poesia. Quando conheceu
Oiticica ele acabara de lançar no Brasil seu livro de poemas Salto.40 Publicado de
forma independente em Minas Gerais, o livro traz uma afinidade com a estética da
poesia concreta, além da dedicatória a Haroldo de Campos na série “Alguns
Floreios” e os agradecimentos à revista Invenção pela publicação prévia de alguns
dos poemas. Salto é um livro que, apesar de ter sido escrito por Silviano antes de
conhecer a Oiticica, traz os traços de um trabalho que poderia perfeitamente ser feito
a partir dos interesses e espaços de vivência do artista plástico. Se lermos os poemas
de Silviano e os textos de Oiticica, constatamos que eles falavam, nessa época uma
“mesma língua”.
Um dos principais poemas do livro de Silviano, intitulado “Man”, versa sobre
a ilha de Manhattan. Hélio, ao ler esse poema, passa a situar o poeta mineiro ao lado
de Lorca, Sousândrade, Vozniessiênski e, por que não, Oiticica, como mais um dos
poetas estrangeiros que abordaram esteticamente a cidade e seus dias. Assim como o
texto em prosa Barnibilônia, o poema de Silviano é bilíngüe e fragmentado, trazendo
uma visão caleidoscópica e cáustica da cidade. Cito seus versos iniciais, cuja
abertura traz o jogo com o nome da cidade e suas três palavras “internas” man
(homem), hat (chapéu) e tan (bronzeado). O homem que se protege do sol:
40 SANTIAGO, S. Salto. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1970.
76
man
hat
tan
em forqu ilha
de rios
pedra fecunda
pedra abotoada
pelas águas
(hudson harlem east)
em bragu ilha
de
knifepointed buildings
s-t-r-e-t-c-h-
ing up
(down) up
de down até uptown
de east até Westside
nova nova nova
iorque
jets d’eau do
Hudson harlem e east 41
1971, o ano do Salto e de intensa produção por parte de Oiticica, é o mesmo
período em que o crítico acabava de escrever seu até hoje influente ensaio “O entre-
lugar no discurso latino-americano”. Aliás, a maioria dos ensaios que, ao lado do
“entre-lugar”, formariam o livro Uma literatura nos trópicos, de 1978, foram escritos
nesse período de convivência entre Silviano e Oiticica. São dessa época “Eça, autor
de Madame Bovary” (1970), “Os abutres” (1972), “Caetano Veloso enquanto
superastro” (1972) e “Bom Conselho” (1973).42
41 Ibid, p. 59. 42 SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
77
Longe de querer mostrar alguma “influência” de Oiticica nos textos de
Silviano ou vice-versa, vale a pena registrarmos que, como Salto, ao menos os três
últimos ensaios dialogaram diretamente com o universo e as conversas que rodeavam
o artista plástico nessa época e, igualmente, interessavam ao crítico. Em dois deles,
“Os abutres” e “Bom conselho”, Silviano devolve a deferência de Oiticica com seu
trabalho e o cita textualmente. Já nesse período o artista plástico é posto como uma
influência na escrita e nas escolhas de autores literários. Seu trabalho, para Silviano,
já transcendia as galerias e exposições de arte. Oiticica atuava como “mestre
supremo e pouco democrático da palavra”, em um elogio capcioso a sua capacidade
polivalente de atuação exercida por Hélio naquele momento. É, aliás, em “Os
abutres” que Silviano Santiago aborda a obra de outro grande amigo e companheiro
intelectual de Oiticica nesse período: Waly Salomão.
A relação de Oiticica com Waly foi quase sempre mais orgânica do que
formal, do ponto de vista da interlocução entre eles. Mesmo sem a deferência que
Oiticica declinava aos poetas concretos, e mesmo um pouco mais aliviada do viés
teórico presente em suas conversas com Silviano, Waly era um de seus parceiros
fundamentais. O poeta baiano sempre deixou claro em suas entrevistas e
depoimentos que foi Hélio, ainda em 1970, o responsável pela sua
“profissionalização” ao ler seus primeiros escritos e incentivá-lo a investir na poesia,
propondo inclusive a diagramação e a publicação de um livro (que sairia em 1972
com o título Me segura que eu vou dar um troço pela José Álvaro Editores).
É a partir dessa parceria em torno de um livro que Oiticica e Waly constroem
sua amizade. Quando lemos os textos de Oiticica ou alguns trabalhos de Waly nos
anos 70, essa relação literária fica clara. Mais uma vez, não é a idéia hierárquica de
influência que deve ser levada em conta, mas sim a idéia de organicidade, isto é, de
convivências e confluências estéticas entre seus autores que os leva a uma
sobreposição de temas, idéias e, principalmente, estilos. Durante esse período,
Oiticica e Waly moraram juntos – ou próximos – em Manhattan (Waly Salomão
permanece na cidade entre 1973 e 1975). Quando não estavam convivendo
diretamente, trocavam cartas, sempre em comunicação.
78
Entre 1971 e 1973 Waly alimentava o “repertório” de Oiticica para seus
planos de publicação com a criação de sua Groovie Promotion. A Groovie
Promotion consistia em uma operação de corte e recorte da vida urbana brasileira
naquele período por parte de Waly. Sua “promoção” era feita através do envio de
pacotes/envelopes que Waly remetia a Oiticica pelo correio, contendo notícias da
imprensa popular carioca, com manchetes trágicas e fotos em geral, geralmente
abordando temas da violência urbana. As ações do Esquadrão da Morte, em pleno
vapor naquele período, era um dos pratos principais da Groovie Promotion. Hélio,
que escreveu uma série de fragmentos e apontamentos sobre a iniciativa de Waly –
dando-lhe, inclusive, o status de produção textual – chamou esse procedimento de
Prosa-pacote ou Prosa-recorte. Conceitos precisos para uma espécie de escrita do
corte-recorte que, em sua visualidade, constitui narrativas abertas feitas a cargo de
quem maneja os conteúdos dos pacotes. A retirada da foto ou da manchete do
contexto do jornal e sua reinserção em outro contexto autônomo que não a
informação da imprensa era o que permitia que a Groovie Promotion ganhasse sua
potência. Segundo Hélio, em anotações manuscritas sobre Waly em seu caderno no
dia 16 de julho de 1971:
GROOVIE é como q a esticada poética no tempo
disso: a necessidade de iconificar O DIA-jornal-herói: a
coincidência simultânea de camadas de front Page
miserável: trópico-trágico: grotesco do MATA O
CACHORRO E BEBE O SANGUE aparece em
GROOVIE sob outro ponto de vista: os fragmentos
cortados e juntados depois enviados são como q um tipo
de prosa recortada montagem de fragmentos q se estende
num tempo certo: WALY não seleciona iconificando mas
temporalizando os assuntos desassuntos foto manchete de
modo descontínuo como se construísse prosa-pacote ou
prosa-recorte do banal melancólico ao alegre show do
absurdo das eventuais assuntagens brasil-surrealista — Se
nos seus textos q publicou em ME SEGURA QUE VOU
79
DAR UM TROÇO ele monta prosa com a palavra escrita
na GROOVIE ele monta com a tesoura e o ajuntamento
no envelope q manda pra NYC ou para onde quer q seja.43
Essa escrita do corte-recorte de Waly, ou essa prosa-pacote montada com
tesoura e envelope, tornou-se uma referência para os futuros procedimentos de
escrita e montagem de textos adotados por Oiticica. A Groovie Promotion abriu uma
série de idéias – e questões – para seus futuros trabalhos. Nos primeiros meses,
Oiticica ainda pensou em utilizar as fotos selecionadas por Waly para a realização de
um filme, e não de um livro. Era ainda o caráter imagético que dominava suas
atenções. Mas com as dificuldades em se filmar e com os percalços técnicos para
realizar seus projetos cinematográficos, o material passa a fazer parte de outro tipo
de repertório, não mais imagético-visual, mas sim imagético-textual. A iniciativa de
Waly colabora para que Oiticica mergulhe durante 1971 no planejamento – e
divulgação – de um livro seu de fotos, sanfonado, com 54 páginas, poucos textos e
muitas imagens enviadas pelos amigos no Brasil, em que os conteúdos dos pacotes
do poeta eram as principais estrelas. A Groovie Promotion mostrou a Oiticica uma
espécie de procedimento na sua relação com a leitura e a escrita, uma possibilidade
de cortar e recortar, de deslocar imagens e textos de seus contextos originais.
Outra questão aberta pela Groovie era a percepção por parte de Oiticica do
que ele chamou de um “relato do vazio” presente nos arranjos de Waly. A questão do
vazio na arte era a questão para quem, como Oiticica, buscava sempre ocupar o
espaço e suas brechas ou demandava do participador de suas obras justamente o
preenchimento desses vazios criativos. Em suas palavras,
GROOVIE são como momentos de leitura
recortada q não tem intenção de contar o dia-a-dia
diariado mas q se vai contando e juntando coincidindo
com coincidências de ordem poética de um assunto-
43 Projeto HO # 0189.71 p.13
80
manchete confrontar-se com tópico-parágrafo de coluna
obsoleta: não há preconcepção de “efeitos-criados” mas
uma espécie de drift temporal q comanda a escolha do
autor: como se cansado de montar textos WALY se
renova-refresca na obsolência do texto diário do jornal q
ao contrário das conotações autobiografadas poetizadas
do diário-texto pessoal é a objetivação de atividades q se
anulam na própria atividade de reportar os acontecimentos
no jornal e atividade que se consome na forma da
montagem-jornal: ela é o que foi montado na escrita
mesmo q relate fatos: ela é não-narrrativa porque ela é
consumida e não absorvida: é portanto não-poética não-
prosa: contá-las e juntá-las e empacotá-las num grupo é
como juntar o q já é bagaço na origem: é juntar a
objetivação gráfica escritura esvaziada de todo e qualquer
conteúdo representacional: não-representação: negação
absoluta das anotações temporais da subjetividade
humana: mais negativa q a superficial negatividade dos
fatos q relata: relato do vazio: o não do não.44
Ao se apropriar criativamente dos jornais da época – e aqui vale dizer que
Oiticica propunha uma ponte entre a Groovie Promotion e os Flans de Antonio
Manuel, obra também feita na década de setenta a partir do jornal como espaço de
criação e subversão – Waly trabalhava com os “fatos do real” como matéria-prima.
Mas, se as notícias não “significam nada”, não representam e sim informam, elas são
“objetivação de atividades q se anulam na própria atividade de reportar os
acontecimentos no jornal”. Assim, a “prosa-pacote” de Waly, por retirar daí, desse
espaço de não-narração sua matriz, já trabalha com elementos textuais que já são
“bagaço na origem”. A Groovie Promotion torna-se assim um objeto concebido – ou
consumido – para além da não-representação. Seu “bagaço na origem” faz com que
esse processo de esvaziamento da representação seja radicalizado. Os recortes em um
envelope esvaziam e embaralham as referências da notícia de jornal, os
44 Idem
81
transformando no que Oiticica chama de o “não do não”. Quando Hélio recebia em
Manhattan os pacotes de Waly, quando ele os abria e via os recortes e manchetes, o
que ele estava “lendo” era o relato do vazio. Trinta anos depois, certamente sem estar
ciente desse trecho de Oiticica sobre a Groovie, Waly nos mostra que esse “relato”
permaneceu ecoando por muitos anos em sua obra, como nos mostra o próprio em
seu “Contradiscurso: do cultivo de uma Dicção da Diferença” (2001):
Nos meus intensos diálogos com Hélio Oiticica,
eu aprendi que a vaziez era uma das qualidades mais
desejáveis por um artista. Os artistas se repetem
exatamente porque não passam por um período de
abandono do deja-vu, do que tinham feito, da linguagem
que tinham alcançado, e não suportam aquele embate,
aquela agonia interior que sobrevém – até que você
atravesse e saia do outro lado a produza coisas –, e que
chegasse a ponto até de abandonar provisoriamente ou
suspender a categoria artista como uma tarjeta perpétua,
como uma linha de montagem de um produção fordista.45
Esse trecho nos mostra que não havia fronteiras entre quem ensinava e quem
aprendia: se Oiticica ensina para Waly sobre desejar a vaziez como condição
primordial do artista, foi no trabalho de Waly que Oiticica ratificou sua percepção do
que no trecho acima Waly chama de “abandonar provisoriamente ou suspender a
categoria artista”. Quando situa a Groovie Promotion em relação ao trabalho
literário de Waly, Oiticica se refere a uma estratégia positiva do autor em deslocar
seu foco de ação, suspender a categoria “escritor” e investir em recortes de jornal
como produção artística (batizar com um nome, dar um “estatuto de objeto estético”
etc.). Destacando o trecho citado acima, era como se Waly, “cansado de montar
textos” conseguisse um novo espaço de ação, pois “se renova-refresca na obsolência
do texto diário do jornal”. Era o espaço vazio, árido e sem representação do jornal
45 SALOMÂO, W. “Contradiscurso: do cultivo de uma Dicção da Diferença” in: Anos 70 – Trajetórias. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2001, p.78.
82
que permitia ao poeta refrescar-renovar seu repertório – e do próprio Hélio. Estaria
Oiticica, como Waly, utilizando a mesma estratégia de “suspender a categoria
artista” ao planejar livros durante os anos 70?
Esse destaque para a importância dada por Hélio à Groovie Promotion é aqui
invocado para marcar a cumplicidade estética que existia entre ambos. Os trabalhos
de Waly eram de suma importância para Hélio e quase todos, de uma forma ou outra,
foram incorporados em sua dinâmica literária. Nesse convívio intelectual e pessoal
entre os dois, os textos de Me segura tiveram também um papel central. Assim como
Oiticica enxerga nas Galáxias a grande obra a se inspirar no que diz respeito à forma
de um livro ou ao uso de uma página em branco, Me segura foi um livro cujos textos
– seu teor e sua voltagem poética – trouxeram para ele uma poesia e uma prosa
possíveis de dar conta do seu universo carioca dos morros, da barra pesada das
quebradas cariocas Mangueira-Mangue. Oiticica se reconhecia nas peripécias
literário-marginais e no périplo de Sailormoon pelas prisões, como em
“Apontamentos do Pav 2”, ou nas caminhadas heróicas e reveladoras de “Roteiro
turístico do Rio”.46
Mas é sobre outro texto de Me Segura, o auto-promocional e auto-
questionador “Um minuto de comercial” que encontro um comentário direto de
Oiticica sobre a escrita de seu amigo e o impacto que sua leitura causava nele. Em
um Heliotape de 1971, ou seja, anterior ao lançamento do livro de Waly, Oiticica
comenta a leitura desse texto. Como em outros comentários críticos de Oiticica, a
aproximação com obras de áreas diversas, nesse caso Heidegger e Brancusi, é
reivindicada para explicar suas impressões poéticas.47
“Um minuto de comercial” é composto por uma série de fragmentos cuja
intenção do autor é, simultaneamente, lançar e terminar seu livro. Utilizando
reiteradamente as idéias de “comprem o livro” e a expressão “The end”, o texto cria
46 Conferir SALOMÃO, W. Me segura que eu vou dar um troço. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003. 2 ed. Vale destacar que em “-FA-TAL – LUZ ATLANTICA EMBALO 71”, texto do livro, Waly faz referência à “cadeia GROOVY PROMOTION”, espécie de “cadeia de empresas” de Waly Sailormoon, codinome que assina o livro na época. 47 OITICIA, H. “Heliotape” In: SAILORMOON, Waly, op. cit., p.200
83
uma espécie de exposição do artista, ou melhor, de denuncia da condição agônica do
escrito poético, produto que precisa ser vendido e idéia que nunca termina para
tornar-se tal produto. De certa forma, o mesmo dilema de Oiticica com seu livro não
realizado: o planejamento minucioso de seu lançamento, de sua formatação, de sua
necessidade financeira ao lado da incapacidade de término, da impossibilidade de
parar de criar o próprio livro. Cito abaixo dois trechos de “Um minuto de comercial”.
O primeiro, na página 172:
Me segura qu’eu vou dar um troço é um livro
moderno; ou seja, feito obedecendo a uma demanda de
consumo de personalidades. a narração das experiências
pessoais – experiências de uma singularidade sintomática,
não ensimesmada – se inclui como aproveitamento do
mercado de Minha vida daria um romance ou Diário de
Anne Frank ou Meu tipo inesquecível ou ainda como meu
capítulo de contribuição voluntária para o volume Who is
Who in Brazil.
Uma imagem à venda: comprem o macarrão do
Salomão. salada do Salomão.
Noutro sentido, me segura é muito tradicional, é
uma versão feita por um lumpedelirante e pouco talentoso
do grande romance Ilusões perdidas ou Recordações da
casa dos mortos.
E o segundo trecho, na página 177:
The end.
Poeta prosseguirá transmissão desta série
diretamente da sarjeta in “Caídos na valeta” – lançamento
de alta classe GROOVY PROMOTION.
The end. me comprem pra possibilitar
prosseguimento dum programa de trabalho.
84
THE END antes que m’esqueça dos versos
doutro DIAS – exilálio de lombra sorumba sabiático –
que não se safou do som das aves – salve – daqui: viver é
luta renhida / viver é lutar. quero fazer uma coisa bem
viva: gravar um compacto, por exemplo. poder ver
doudos escorpiões d’idade d’ouro de Scorpio rising.
THE END
comprem colaborem comigo comprem Me
segura, recomendem.
THE END
Para Oiticica, o texto de Waly tratava, primeiramente, do que ele chamava de
“problema de criação de condições”. Criar condições era um dos lemas de Oiticica e
de seus amigos nesse período. A idéia de “criar condições” é correlata ao lema de
Torquato Neto divulgada em sua coluna “Geléia geral”: ocupar espaços. Isto é, não
esmorecer em sua produção artística, não se contentar com o cerceamento da crítica
ou do Estado ditatorial e torturador, não se conformar ao modelo acadêmico-literário
ou à lógica mercantilista das galerias de arte. Nas palavras de Torquato, “espantar a
caretice: tomar o lugar: manter o arco: os pés no chão: um dia depois do outro”.48
Oiticica apontava na exposição estratégica e irônica do poeta como um produto a ser
vendido e consumido, uma especificidade da poética de Waly: criar condições de
trabalho assumindo sua (dura) condição existencial. Cito Oiticica:
O problema de criação de condições que o Waly
coloca como espinha dorsal de seu trabalho, na realidade
é um problema universal, agora, essa questão na boca de
Waly assume um caráter de conflito, quer dizer, assume
uma dramaticidade que não só é espinha dorsal mas é o
problema MESMO, entende?
48 NETO, T. Coluna “Filmes”, escrita em 30 de novembro de 1971. In: PIRES, P. R (org.). Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p.315.
85
Talvez já ligado em demasia aos seus projetos de livro e às suas experiências
com a escritura, Oiticica enxerga não só esse nível dramático do texto – o conflito
entre a produção da arte e suas condições materiais – como aponta uma espécie de
dinâmica da escrita em Waly que, lida com atenção, pode ser vista como uma
descrição do seu próprio método de trabalho. Aliás, ele assume isso em sua fala:
No caso de Waly há uma identificação de uma
coisa e outra que eu acho ótima, é uma condição
existencial, é assumir uma posição diferencial na relação
com o dia a dia. É assumir o dia dia e o dia a dia não é
forçosamente o existencial, mas é uma coisa
importantíssima. A cada dia que você acorda você
pergunta o que eu devo fazer, o que que eu vou fazer, isso
é uma pergunta que, a meu ver, sempre o artista tem de
fazer até o fim da vida. Agora, no começo, você faz essa
pergunta e é um conflito. Você acorda de manhã e acha
assim que acordou numa continuidade, quer dizer, isso é
uma coisa assim que acontece de repente, portanto não se
pode criar uma continuidade absoluta do dia a dia, nem os
problemas existenciais se resume a isso, mas eles se
concentram em conflito, eu não sei nem se alguém já
escreveu sobre isso, mas é o que sinto em mim.
Após debater – citando inclusive conversas com Julio Bressane acerca de
Heidegger e a metafísica da “obra”, e com Ferreira Gullar acerca do problema da
escultura em Brancusi – essa dimensão existencial do escrito cotidiano e as
condições de criação cotidiana frente às continuidades e descontinuidades do dia a
dia, Oiticica concentra sua leitura na questão da reiteração de um “the end” no texto
de Waly. Mais uma vez, podemos ler suas palavras sobre o texto alheio como um
comentário crítico sobre seu próprio processo criativo. Mas que isso, arrisco dizer
que podemos ver na sua leitura sobre o fim/começo sempre repetido de Waly um dos
86
germes de seu livro inacabado: uma espécie de justificativa frente ao dado inexorável
do fechamento e da cristalização de uma obra.
Então isso é uma coisa muito importante, isso eu
sinto no teu trabalho e acho fundamental. É como se no
dia seguinte, quando você olha para o que você tinha
escrito na véspera, você procura recondicionar tudo
acrescentando uma nova perspectiva. E cada parte nova
que você acrescenta é o recondicionamento do que foi
feito antes, quer dizer, inclusive reformulada de outra
época. (...)
Na realidade esse problema, por exemplo, esse
texto da soma das coisas que eu comparei com o negócio
da escultura, na realidade em relação ao texto, à idéia de
texto em si, é como se você quisesse tirar a linearidade,
bom, isso é óbvio, em todos seus textos criados, não é
uma coisa feita de nenhuma linearidade mas também é
como se você quisesse consumir a idéia de começo, meio
e fim. Quer dizer que a priori você já aborda assim como
se não tivesse começo, meio e fim, mas o fim que é o fim
e o começo que é o começo, etc. e tal, quer dizer, não só a
forma sintática que assume o texto mas a forma, a forma
material de começar uma coisa, ter que acabar com outra,
é como se você tivesse assim consumindo
permanentemente esse texto.
Nesse último trecho (grifo meu), ressalto a idéia de Oiticica sobre uma
escritura/leitura que está “consumindo permanentemente” o texto, ou seja, uma
relação de permanente te(n)são com a escrita própria e alheia, sem limites temporais
ou materiais. Hélio opõe esse consumo permanente do texto às fórmulas materiais de
começar e ter que acabar uma coisa. Um texto ou um parangolé, um filme ou um
livro. Talvez daí a grande admiração de Oiticica em relação aos seus amigos
escritores, a capacidade de começar e terminar algo. Não que ele não terminasse suas
obras ou projetos. A questão aqui, porém, é em relação à escrita. Oiticica fazia de
87
seus cadernos permanentes laboratórios dessa escrita interminável. Seus rascunhos,
as páginas datilografadas, traduções de textos para outras línguas, são uma vigília
constante dessa escrita em movimento, desse escritor que consome permanentemente
seu texto. Em 1977, ele escreve quatro linhas que resumem poeticamente essa
questão do fim adiado e sempre recomeçado:
Figura 6: fragmento de documento, s/d
Me segura que eu vou dar um troço causou profundo impacto em Oiticica.
Como disse mais acima, sua identificação não só com os pontos estéticos e formais
do livro, mas principalmente com seus assuntos e cenários tipicamente cariocas
(cariocas do ponto de vista de Hélio, claro), era um tema constante em suas cartas e
textos. O livro, aliás, teve aceitação por parte da crítica e permanece até hoje como
um dos grandes livros da literatura brasileira daquele período. Alguns dos principais
críticos do período – ao menos aqueles que não se furtaram em dialogar e atuar “no
calor da hora” – foram leitores e comentaristas do livro de Waly. Heloísa Buarque de
Hollanda (que mais tarde reeditaria o livro através de sua editora Aeroplano, em
2003) esteve entre os que leram Waly de forma crítica e, em todos seus trabalhos
sobre os anos 70, situou o Me segura como referência de uma geração. No livro Anos
70 – Literatura, de 1979, Heloísa, ao lado de Armando Freitas Filho e Marcos
Augusto Gonçalves, aponta o estilo fragmentário da escrita de Waly e seu “quebra-
88
cabeça de flagrantes” como resultado de sua “tática Pound Tsé Tung”, em um projeto
“mais empenhado na campanha do que no resultado”.49 Essa leitura vai de certa
forma ao encontro da leitura que faço aqui sobre a obra de Oiticica – obra cujo
processo sempre foi tão ou mais importante que o produto.
Outro importante crítico que escreveu sobre o Me segura, o fez ainda na
época de seu lançamento. Esse crítico é justamente Silviano Santiago. Ele escreve
talvez o primeiro ensaio no âmbito da crítica literária acadêmica abordando o
trabalho de Waly. O já citado ensaio “Os abutres” é escrito em um período delicado
do campo cultural brasileiro. Eram os primeiros anos da década de setenta, em que
relações criativas e opiniões eram marcadas por profundas divisões de forças
políticas e projetos de ação cultural. Além disso, ocorria no país de forma
subterrânea, porém consistente, a afluência – através de livros e artigos,
principalmente – de um ideário ligado à idéia da contracultura e da então chamada
cultura marginal. Silviano morava nos EUA durante esse período e passava uma
temporada como professor-visitante na PUC-RJ (1972). Foi quando ele teve contato
com os novos livros publicados no Brasil e escreveu esse e outros artigos sobre o
tema.
“Os abutres” é dedicado aos primeiros livros de Gramiro Mattos (Urubu-Rei,
1971) e Waly Sailormoon (Me Segura que eu vou dar um troço, 1972), pseudônimo
do poeta Waly Salomão. Inicialmente, Silviano situa o espaço narrativo dessa
literatura no âmbito do que ele batiza de curtição, isto é, da “sensibilidade de uma
geração, sensação, estado de espírito, conceito operacional, arma hermenêutica,
termômetro, barômetro, divisor de águas etc”. Com os olhos de quem enxergava “à
distância” os confrontos na produção cultural brasileira de então, o crítico descreve
os principais conflitos dessa época como o “racha” do Pasquim entre conservadores
e “desbundados” após a saída de Tarso de Castro e Luiz Carlos Maciel, o confronto
velado entre os fãs de Caetano (o que foi para o exílio) e Milton (o que ficou) e o
49 FILHO, A. F., HOLLANDA, H. B. de e GONÇALVES, M. A. Anos 70 – Literatura. Rio de Janeiro: Europa, 1979, p.21-23.
89
racha virulento entre os diretores remanescentes do Cinema Novo e os diretores e
críticos ligados ao movimento do Cinema Marginal.50
O interessante desse texto é que, de certa forma, podemos enxergar Oiticica
como o vértice de um jogo textual entre seus escritos, suas leituras e os escritos e
leituras alheias que o circundam. Silviano Santiago é poeta e é amigo de Oiticica e,
ao mesmo tempo, é um crítico literário debatendo a obra de Waly Salomão – por sua
vez também poeta e amigo de Oiticica. Assim como Haroldo-Oitcica-Augusto, a
tríade Silviano-Oiticica-Waly surge como um dos pólos de uma série de variáveis,
como Haroldo-Silviano-Oiticica, Oiticica-Haroldo-Waly etc. Mais do que simples
jogos de nomes, essa circularidade demonstra, sobretudo, o papel central dos textos –
e da escrita – nesse momento da vida de Hélio. Além disso, nos mostra o caráter
dinâmico das suas relações intelectuais, construindo pontes e conexões para além de
seu trabalho pessoal.
Tanto com os irmãos Campos quanto com Silviano Santiago e Waly
Salomão, Oiticica permaneceu costurando conversas e livros, projetos e poemas,
vivências e escritas. Os textos escritos por ele em Manhattan – principalmente em
seus primeiros anos – estavam crivados dessas interlocuções. Eles são quase sempre
espécies de reportagens poéticas sobre suas leituras e transbordam de referências
desses contatos. Muitas vezes, eles eram escritos diretamente a outros, como a
“proposição” VIGÍLIA, para Silviano Santiago ou os Heliotapes, registro de suas
conversas com Haroldo de Campos.
Experimentando o sol do meio-dia
Há dois textos, porém, que quero destacar nessa parte da tese. Eles fecham – e
abrem novamente – os jogos de referências levantados aqui, cujas peças encontram-
se justamente na obra de Oiticica. O artista plástico arquiteta uma máquina de
leitura-escritura cujas engrenagens são as séries de referências que fornecem o
“movimento” de seus textos. 50 SANTIAGO, S. “Os abutres” in: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
90
Esses dois textos a seguir são trabalhos que confirmam uma proposta de
pensar as leituras e as várias relações intelectuais decorrentes delas sob o duplo ponto
de vista da apropriação/recriação exercido pelo seu “organizador”: o leitor-escritor
Hélio Oiticica. Eles foram publicados em 1974, porém um deles foi escrito durante
1972. Apesar dessa diferença de período, seus lançamentos no mesmo ano igualam
suas apropriações por parte de um público e da crítica. Optarei aqui em falar primeiro
do texto escrito em 1974 já que, mesmo posterior, ele foi publicado antes e sugere
uma série de questões para serem trabalhadas no texto seguinte.
O primeiro texto é uma longa carta-poema sem título, escrita por Hélio entre
23 de janeiro e 24 de fevereiro de 1974.51 Em sua versão manuscrita, ela ocupa
dezessete páginas do seu quarto notebook de 1973 (NTBK 4/73, na terminologia de
Oiticica). Ela era direcionada a Waly Salomão (Oiticica escreve “carta a WALY q é
material pra publicar”) para ser publicada no primeiro número da revista Polem.
Levemente “editada” (existem na versão publicada com quinze páginas e três fotos
algumas supressões de frases e expressões ligadas ao uso da cocaína, presentes no
texto original de Hélio), ela contém todos os procedimentos desse artista rompedor
de linguagens que se aloja na fronteira tênue do escritor-leitor e do leitor-escritor.
Sua relação desejosa com a escrita é pura fruição estética de suas impressões críticas
sobre o que ele lê – e muitas vezes, o que ele ouve e vê.
Feito em um ritmo eletrificado pela audição de Hendrix, Stones (Sticky
Fingers, 1971 e Exile on main street, 1972) e pelas noites e madrugadas viradas ao
lado da prima, a carta-artigo-prosa-poema embaralha em vários níveis referências,
conversas pessoais e textos dos seus principais parceiros de leitura/escritura desse
período: Waly, Silviano e os irmãos Campos. Outras vozes, porém, os fazem
companhia: Nietzsche, Rimbaud, Malévitch, Artaud, Torquato Neto, Jimi Hendrix e
os Stones também são citados e articulados em um rodízio permanente entre o lido, o
escrito, o ouvido e o vivido. Oiticica faz também referências diretas ao “livro” que
fazia (as aspas são dele) e descreve seu método fragmentário de compor seus textos a
partir de “livros/cartas/tapes/referências do pick out diário”. Ele recolhia uma série 51 Projeto HO # 0318.73
91
informações pesquisadas ou encontradas por acaso ao seu redor e as reordenava em
uma lógica pessoal de conexões e diálogos. Além disso, por ser uma “carta”, Oiticica
expõe uma série de conversas que trafegam entre a fofoca e a auto-promoção de seu
trabalho. A versão impressa traz fotos suas no seu Loft 4 e uma foto de Romero,
rapaz carioca que morava com Oiticica nesse período, trajando um de seus últimos
Parangolés feitos em Nova York.
Outro ponto que vale destacar nesse texto é a já ressaltada dificuldade – ou
recusa estratégica – de Oiticica em fechá-lo, em dar um fim. Ele precisa terminá-lo e
recomeçá-lo algumas vezes. Escrevê-lo durou um mês, com quatro inícios em dias
diferentes. No texto manuscrito, para cada dia reiniciado, Oiticica utilizou uma
caneta de cor diferente, demarcando claramente os diferentes momentos. Iniciou sua
escrita em 23 de janeiro, para retomá-la dois dias depois e, em um primeiro
momento, terminou o texto às nove e meia da noite. Em suas palavras, “Paro aqui às
9:30 PM do mesmo dia assinalado acima-último”. Três dias depois, porém, às seis e
quarenta da manhã, ele proclama novo reinício. A própria dúvida, porém, se era uma
continuação ou um novo trabalho, é exposta pelo autor no corpo do texto. Ele abre
esse momento afirmado de forma inusitada:
continuação
ou
NOVA:
who cares?
quem disse q sei parar na hora
certa ou errada?
NEVER!
I’M A BIG MOUNTH!
Se isso é começo ou recomeço, continuação ou novo texto, quem liga? Não o
autor. Quem disse que ele sabe parar na hora certa? Essa expressão, ouvida como a
voz de quem buscava escrever um livro, é chave. “Parar na hora certa” é exatamente
a dor e a delícia de se fazer um livro. O momento em que você termina sua jornada
92
(momento de morte) e o momento em que você fica livre para um novo começo
(momento de vida). Se para o escritor não há como definir começos e fins porque
não se sabe – e nem se quer saber – a hora de parar, o projeto de livro, seu ciclo
necessário de vida e morte torna-se incompleto. Aliás, ele torna-se desnecessário.
Oiticica ainda retomaria o texto, ao menos na versão publicada, no dia 24 de
fevereiro (como um anexo) para inserir um último poema, escrito de forma solitária,
mas possível de fazer parte do texto maior, escrito em fôlegos distintos.
Há pelo menos dois grandes “eixos” de escrita-leitura desse texto. Em um,
mais presente nas primeiras páginas, Oiticica dedica-se ao mergulho em uma cadeia
de sentidos amarrados pelas pontas de palavras-idéias como sol, neve (e sua tradução
snow) e branco. Essas três palavras interligam trechos de Nietzsche, poemas de
Rimbaud, trabalhos de Yoko Ono, o manto de plumas hagoromo traduzido por
Haroldo de Campos e os quadros suprematistas de Malévitch (Branco sobre Branco).
Mas não podemos esquecer que o objeto-motor que unia essas pontas soltas de obras
e sentidos era a prima, sua parceira cocaína, com sua brancura de neve eterna, com
sua pureza de sol de meio dia, com sua cor tão branca quanto os quadros de
Malévitch. Em outro “eixo” de escrita-leitura, Oiticica intercala suas associações
poéticas com dados de sua vida íntima e cotidiana, sua homossexualidade (raramente
tematizada por ele e não é à toa que apareça como comentário pessoal de vida e não
como questão teórica ou statement), seu uso diário de drogas, suas tentativas (quase
sempre mal sucedidas) de ganhar dinheiro com seus trabalhos etc. Esses dois “eixos”
– o poético e o pessoal – se cruzam o tempo inteiro, sobrepondo-se ora um ora outro
na dinâmica da escrita.
A respeito do primeiro “eixo” cito alguns trechos para ilustrar sua prosa
poética devoradora, típica de um leitor apressado em deglutir seus textos prediletos e
de um escritor em busca de diálogos e filiações. Oiticica, além de misturar registros,
jogava com as fronteiras das línguas, promovendo jogos de palavras e sentidos entre
o português, o inglês e o francês – como na página inicial em que ele se apropria de
uma entrevista concedida por Jimi Hendrix para registrar uma das frases que gostava
de dizer para se apresentar: Call me helium. Se Hendrix se referia ao gás mais leve
93
que existe, Oiticica era Hélio/Helium. Eis um fragmento da página 4 (a íntegra do
texto encontra-se em anexo no fim da Tese):
sonhando com o SOL DO MEIO-DIA
de NIETZSCHE e mEU
com a NEVE ETERNA DO SOL
do SOL q é SOLEIL
já q RIMBAUD quer q seja
NEIGE ÉTERNELLE DU SOL
q é SOL CHÃO q
pensando bem é
é!
CHÃO DE NEVE ETERNA
Mas EU quero q SOL seja SOL
(SILVIANO juntou SOL-SOLO q
Também tem a ver com isso:
E por isso me pergunto:
Q fusões-frissons se passam
nessas pensantes poéticas
de SOL
SOLO
CHÃO
NEVE
SOLEIL
ETERNO
NEIGE ETERNELLE DU SOL
!!!
94
Nietzsche e Rimbaud dão as cartas (“já que Rimbaud quer que seja...”) e
conduzem o escritor ao jogo permanente entre sentidos e imagens. O poeta francês
permite que Sol seja palavra-dobradiça para Oiticica, onde o astro-rei em português
significa “solo, terreno, chão” em francês. SOL/SOLO/CHÃO são a mesma palavra
tripartida nas várias imagens conexas que ela oferece. É nesse SOL-SOLO (cuja
junção Silviano Santiago já havia feito segundo o próprio Hélio) que as respostas ao
que Oiticica chama de fusões-frissões se projetam como sombras – ou como raios.
Elas surgem nas pensantes poéticas do autor anunciadas logo em seguida: a Neve-
Coca, o Sol Nietzsche do Meio-Dia, o Chão-Rimbaud, o Sol-Neve, o Branco sobre
Branco e o Sol Malévitch. Essas imagens, jogos poéticos com as referências de suas
leituras (Nietzsche e Rimbaud) e de suas obsessões (o branco sobre branco de
Malevitch e o uso de cocaína nesse momento de sua vida), eram constantes nos
escritos de Hélio feitos nesse período, como veremos mais a frente.
Já o outro “eixo” desse texto, quebra a fronteira entre o autor impessoal de
idéias e a pessoa por trás da máquina de escrever. Oiticica se expõe no seu cotidiano
íntimo de Manhattan de forma aberta. Devemos ler esses trechos com o olhar de um
leitor brasileiro de 1974, que vivia sob o moralismo da classe média afluente e
consumia a parca imprensa underground da época. Um leitor que é convidado a
invadir os ninhos babilônicos do autor do texto e repartir com ele sem filtros suas
agruras e contradições:
well:
meu amor se não paro
continuo:
q fazer? :
falar nunca fez mal a ninguém! :
são CINCO
PRÁS OITO de horário daqui q é de verão (daylight) no inverno
pra economizar energia (?!)
nos meus headphones EXILE explode
alto: no meu NINHO a cama está desfeita e nunca penso nela
feita: scraps do mundo arrebentante q me arrebata: fragmentos
95
do “livro” q faço e fotos e livros/cartas/tapes/referências
do pick out diário: ANDREAS dorme e em breve estará com
vocês: só a PRIMA senta ao meu lado branca e brilhante como
jóia rara e comigo acorda e permanece: isenta de opinião ou
demanda: perto de tudo: e quero q você diga aos CAMPOS q só
penso neles e q meu silêncio vai explodir em gozos e q
preparo o q vou mandar: eles como vocês ou é tudo ou nada:
como querer algo pela metade? : impossible! : mostre esse texto
a eles e já vai o q quero enviar: q eles aguardem a visita
dum friend of mine! ; e UÁLI vou escolher uma foto ou sei lá
q quero q entre aqui no texto no ponto q marco aqui agora (...)
Figura 7: fotos de Andreas Valentin publicadas junto ao texto na revista Polem, 1974.
96
whatever! : e mando o livro do HENDRIX e um Xerox do ARTAUD! :
with Love as always! : e sua foto e seu suor pingam no
vermelho plastificante da cabeceira: junto às fotos de
HENDRIX/MR. D/ROMERO/ um ÍNDIO-cartão enviado por CHRIS/
um COCAR DE ÍNDIO enviado por NEVILLE e tudo isso encima
caixas de tissues novos para serem usados e q aos poucos se
empilham restantes de catarrice ou esperma: e envio a foto
ROMERO-CAPA não porque seja obra mas porque é foto-situante
dum tempo meu/ROMERO q se refaz na colocação da foto como
instrumento-foto: está sendo feita em cartões: pra vender
ou sei lá q porra! : será q alguém vai comprar? : ao menos os
q o fizerem mostrarão bom gosto e tesão: será q EU-AUTOR e
FOTO-FOTO e ROMERO-ELE e ROÇAR DO VESTIR A CAPA
chuchulhante de carícias de imponência romana e brotar
feminino não serão suficientes pra dar tesão no pessoal?:
tesão consumitival: please não me levem a mal: não quero
dizer q devam se masturbar por ela: apenas comprar
pra molhar nossas mãozinhas! – : como você vê to mais puto q
nunca: the more the better! : e não penso em mais recados:
nem desencantos: o dia-luz sobe pela janela sacana da 2ª
avenida já às 8:20: caminhões sem rumo: nós.
O conteúdo erótico – raro em seus textos públicos – e tamanha exposição de
sua precária situação financeira naquele momento (“apenas comprar para molhar
nossas mãozinhas”) não devem ser vistas como simples frutos de um caráter
confessionário-biográfico do autor. Elas nos mostram até onde essa escrita não traça
limites entre o pessoal e o literário, entre o diário e o poema. A escritura de Hélio
podia entrar por uma porta (o poema-prosa) e sair por outra (a confissão-amargor de
uma carta) sem que isso causasse maiores traumas. Sexo, cocaína e (falta de)
dinheiro eram três elementos que estavam constantemente no seu foco durante esse
período. Deixar vazá-los para um texto a ser publicado, portanto, era continuar
escrevendo a partir das experiências e “iluminações” de suas vivências cotidianas,
era expô-las de forma poética ou, no mínimo, estetizadas. Essas “confissões” talvez
97
chocantes para artistas brasileiros da época – ainda vinculados a certos parâmetros da
esquerda ortodoxa ou a silêncios estratégicos e conciliatórios com o mercado das
artes – deixavam claro que Hélio, nessa altura, pouco se importava com limites no
momento em que escrevia.
Esse mesmo texto, logo após o lançamento da revista Polem, recebeu um
comentário crítico de Silviano Santiago para o jornal O Globo do dia 11 de
novembro de 1974. Essa critica demonstra, mais uma vez, como essas relações
literárias de Oiticica eram densamente costuradas: Silviano dedica sua análise a uma
revista com um texto de Oiticica escrito para Waly Salomão e com referências ao
próprio autor da crítica e aos irmãos Campos. Através de escritos que transbordam
suas vivências pessoais, suas conversas com amigos e suas referências intelectuais,
Oiticica acabava por costurar (e ser costurado em) uma longa cadeia de textos, de
leituras e citações que se alimentavam e replicavam em novas frentes de reflexão e
criação.
Intitulado “O gosto de passar a limpo”, o artigo de Silviano analisa, além da
Polem, as revistas Código e Bahia-Invenção, também lançadas em 1974. Após
inserir as revistas – todas reunindo textos literários, poemas e trabalhos ligados às
artes plásticas – em uma tradição de publicações que divulgaram e municiaram de
idéias a arte de vanguarda no século XX, Silviano passa a fazer um balanço sobre as
três publicações e seus participantes. O que é interessante nesse pequeno artigo é a
forma como o crítico enxerga com clareza os espaços de produção cultural no Brasil
da época – ao menos no que tange à sua produção experimental ou, ainda se podia
dizer na época, de vanguarda. Lembrando que Silviano acabara de voltar de um
longo período fora do Brasil, entre França, Canadá e Estados Unidos, talvez seu
olhar “descompromissado” naquele momento com alguns embates locais permitiu-
lhe traçar o seguinte quadro:
De início percebemos que na triagem implícita
ou explícita, feira pelas três revistas do que se passou nos
anos 60, sobram apenas os nomes de intelectuais
98
pertencentes à poesia concreta e ao movimento pós-
neoconcreto do Rio. Entre os nomes consagrados da
vanguarda brasileira, lá estão apenas os dois irmãos
Campos e mais Décio Pignatari, de um lado, e do outro,
Hélio Oiticica, Gerchman, Vergara, Antônio Dias etc.
Esse diagnóstico de Silviano nos mostra como, citando mais uma vez a
definição de Caetano Veloso, o pensamento “superacionalista” do construtivismo
brasileiro se adequou de forma harmônica aos intelectuais que, teoricamente,
militaram na imprensa alternativa, na contracultura literária, enfim, nos meios e
textos ligados ao “irracionalismo”. Polem foi editada pelo poeta baiano Duda
Machado, amigo de Waly, Rogério Duarte e Caetano desde os tempos “heróicos” do
tropicalismo (aliás, desde os tempos de Salvador). Por conseqüência, Duda também
era amigo de Oiticica. A revista era um desdobramento das ações do grupo reunido
durante 1972 em torno de Waly e Torquato na feitura da Navilouca, da qual falarei
logo depois.
Analisando especificamente os textos, Silviano destaca – dentre a “velha
guarda” – um poema de Augusto de Campos e a carta-poema-prosa de Oiticica,
citada acima. O crítico dedica a maior parte do artigo ao texto escrito para Waly.
Vale lembrar mais uma vez que Oiticica e Silviano eram amigos, com diversas
afinidades intelectuais e que o primeiro cita algumas vezes o nome e os trabalhos do
crítico em seu texto. Silviano situa a escrita de Oiticica em um tipo de produção de
quem está “acrescentando alguma coisa a sua obra, querendo dar um recado que vai
além do já-dito”. Sobre o texto:
Helio Oiticica, por ter enveredado por um texto
de temperatura obsessiva e próximo dos grandes
‘iluminados’ (Rimbaud, Nietzsche, Artaud, etc), texto
onde não se descolam figuras da realidade de seus
próprios fantasmas, todos agarrados a uma mordente e
desvairada visão metafórica da própria existência de quem
escreve e que deixa ser escrito. Sobressaem-se no texto o
99
branco de Malevitch e o sol de Nietzsche, Branco e sol,
arte-e-vida, forças do homem, branco de onde se descola
para a viagem ao sol, fonte de energia.
Silviano vai direto ao ponto: o texto de Oiticica é um texto de quem “escreve
e que deixa ser escrito”. E quais seriam os fantasmas do autor a que o crítico se
referia? Fantasmas da escrita, provavelmente. Ou fantasmas da vivência precária,
solitariamente povoada e aditivada de Manhattan que ele expõe nos trechos finais
citados acima? Esse texto de Oiticica, pautado pelos excessos – de linguagem, de
informação, de páginas, de drogas, de dias, de som – traz uma das marcas dos seus
escritos, que em outro achado Silviano chama de “temperatura obsessiva”. Em um
parágrafo – ou estrofe – desse mesmo texto Oiticica desfia em caixa alta a seqüência
de elementos que aumentavam a temperatura do texto e impulsionavam suas
obsessões durante os dias que o escrevera:
NEVE SOL BRANCO NIETZSCHE
RIMBAUD CHÃO LUZ MEIO-DIA COCA
MICK-KEITH HAGOROMO YOKO EU
HAROLDO SILVIANO LINHO ETERNO 52
Oiticica ainda poderia ter incluído nessa lista HENDRIX, MALÉVITCH e
ARTAUD e eles não estariam em nada deslocados. Presentes ao longo do texto, eles
são todos, junto aos nomes acima, retrabalhados no mesmo facho obsessivo e na
mesma temperatura. Waly-Silviano-Haroldo, Rimbaud-Hendrix-Malévitch ou
Hagoromo-Ecce Homo-Sticky Fingers são pontos luminosos nesse território poético-
existencial traçado por Oiticica. O “Sol do meio-dia” 53 e o chão cheio de neve do
poema de Rimbaud, o branco sobre branco dos quadros suprematistas de Malévitch e
o branco puro e luminoso da cocaína, todos são fragmentos de intensidade poética, 52 Projeto HO # 0151.74, p.6 53 Oiticica faz aqui uma alusão ao raio de sol que cai sobre Nietzsche e o permite “olhar para trás e para frente” no julgamento de sua trajetória vivida até então (Ecce Homo, p. 43)
100
espalhados e ligados ao mesmo tempo, organizados ao redor do que Oiticica tinha a
dizer para seu amigo-leitor-escritor Waly Salomão. O mais instigante é lermos esse
texto pelos olhos do crítico Silviano Santiago, apontando no trabalho do amigo sua
qualidade poética e sua mecânica obsessiva.
O segundo “texto” desse período que pode ser lido dentro dessa escrita
relacional-confessional é um pouco anterior ao trabalho publicado na Polem. Esse
“texto” é apresentado no almanaque de exemplar único Navilouca como um conjunto
de escritos, fotos, colagens e citações montado por Oiticica. Apesar de anterior (foi
elaborado em março de 1972, ano de fechamento da revista por Torquato Neto e
Waly Salomão), ele também só foi lançado em 1974.
Nesse trabalho da Navilouca, nos deparamos com dez “partes”: quatro fotos
(duas de Miguel Rio Branco) com pequenas legendas de seus recentes projetos e
obras intituladas “Etapas do experimental experimentado”; um extenso texto,
intitulado “Experimentar o experimental”; a reprodução de um trabalho gráfico
intitulado “Agripina é Roma-Manhattan”; a foto de um mendigo nas ruas de Nova
York; uma colagem de fotos da cidade com três fragmentos de poemas alheios
intitulado “Repertório 1”; a reprodução do trabalho gráfico “Escrerbuto”; uma foto
da capa 24 P31, Parangolé vestido por Omar Salomão; o texto “Nosferato”, escrito
sobre o filme de Ivan Cardoso de 1971; o cartaz de Sentença de Deus, filme de Luiz
Otavio Pimentel; e um texto breve com fotos sobre os trabalhos de Raymundo
Colares. Juntos, essas dez partes formam uma seção da revista. Vale lembrar que
Navilouca – Almanaque dos Aqualoucos foi planejado por Torquato Neto e Waly
Salomão entre 1971 e 1972 e teve no trabalho gráfico de Luciano Figueiredo e Óscar
Ramos dois parceiros fundamentais. Apesar de Torquato ter dedicado longo tempo a
essa empreitada, não conseguiu vê-la editada. Apenas em 1974 a editora Gernasa
consegue publicar o trabalho que contou com a participação de 17 artistas: Lygia
Clark, Luis Otavio Pimentel, Duda Machado, Jorge Salomão, Stephen Berg, Waly
Salomão, Rogério Duarte, Óscar Ramos, Luciano Figueiredo, Torquato Neto,
Chacal, Caetano Veloso, Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e, claro,
101
Oiticica. Cada artista tem sua seção, com trabalhos que vão desde poemas até
experiências gráficas.
A escolha do elenco para participar da Navilouca não foi tarefa simples na
época. Cartas entre Torquato e Oiticica ou entre Oiticica e participantes da revista
evidenciam que outros artistas gostariam de ter seus trabalhos incluídos e não foram
convidados. Isso nos mostra como o comentário de Silviano Santiago a respeito das
revistas de arte e literatura dos anos 70 (ao menos aquelas nascidas sob o impulso de
uma imprensa contracultural) era preciso: no rescaldo das vanguardas dos anos 60 e
70, os concretos e os neoconcretos permaneciam com certa hegemonia – e qualidade,
claro – nos meios culturais voltados para a invenção e a experimentação no país. Não
é a toa que os mesmos nomes que habitam o elenco dos Aqualoucos sejam os nomes
do elenco que habita as cartas e artigos de Oiticica.
Nesses textos do almanaque, Oiticica mantém – e aprofunda – o jogo
intertextual entre suas leituras, suas obsessões estéticas e sua vivência pessoal. Hélio
reivindica para seu trabalho, dessa vez com todas as letras, a formação de um
repertório. Apesar deles não trazerem a “temperatura obsessiva” do “Sol do meio-
dia” e da escrita aditivada pelo rock, pela coca e pela poesia, são trabalhos que
permanecem vinculados a um ritmo devorador de poéticas alheias e criador de novos
sentidos no encontro de sua escrita com as escritas de outros autores.
Não há como não apontar, também, para o aspecto de laboratório que essa
seleção de textos e fotos ganha em relação ao projeto de livro de Oiticica. Cada um
dos dez trabalhos publicados formava uma espécie de Bloco-seção, isto é, de parte
autônoma que poderia ser lida sozinha e, ao mesmo tempo, ganhava diversos
sentidos se disposta em relação aos outros trabalhos. Talvez esse pequeno esboço de
livro seja o mais próximo que Oiticica chegou de publicar seus textos nos formatos
que ele imaginava para sua Newyorkaises.
Vou me deter aqui em duas dessas partes da seção de Oiticica: a segunda, o
texto “Experimentar o experimental”, e a quarta, intitulada “Repertório”. O primeiro
texto se encaixa bem na prosa poética que Oiticica desenvolvia para sua escrita em
Nova York e que venho demonstrando até agora. “Experimentar o experimental” é
102
um texto-manifesto a favor da vivência do que ele chama de “aspecto experimental”
na arte brasileira (e não de uma “arte experimental”). Sua base é a profética frase de
Mário Pedrosa, sempre ecoando em alguns dos seus escritos: “o exercício
experimental da liberdade”. O desafio proposto por Hélio era “assumir a experiência
do experimental” na arte brasileira. Apesar desse tema “objetivo”, a prosa do texto é
disposta em forma de poema, é espacializada, em estrofes de linhas que dialogam
entre si como espécie de versos livres. Como em outros textos já analisado,
“Experimentar o experimental” traz uma série de reflexões sobre a obra e a própria
trajetória de Oiticica em relação ao mercado de artes brasileiro e aos artistas
“oficiais” que se alimentam e colaboram com esse mercado. Cito a primeira parte do
texto:
sentença de morte para a pintura começou quando o processo de
assumir o experimental começou
durante década começando de 59 minha obra passou a assumir o experimental
conceitos de pintura escultura obra (de arte ) acabada display
contemplação linearidade desintegraram-se simultaneamente
existe em 72 algum pintor importante q haja assumido o experimental
no canvas-moldura na aspiração mural ambiental espacial
não conheço
no brasil país sem memória mataborrão das diluições muito se passou
depois da fenomenal década 50 na 60 : nada foi absorvido
crises dos problemas extremos da pintura nos avassalaram problema-limite
de sólida importância
não quero fazer história
103
quero falar de como bilaterais deram em núcleos penetráveis bólides
PARANGOLÉ meu programinha sem tempo descoberta do corpo proposição
Coletiva tudo em meio à indiferença dos artistas do dia
foi enjeitado rejeitado
em 72 PARANGOLÉ me dá alegria parece tão claro novo como parecem claros
novos CONCRETOS de são paulo NÃO OBJETO rio coisas-gente daqui dali
esquecidos nos vai-vens das “artes”
artes q são mortos equívocos cineastas artistas poetas que envelheceram
ri melhor quem ri por último : competição de “criadores de obras”
pintura escultura arte (obra etc.) hão de continuar na área competitiva
(até bolsa de arte já temos) mas q têm a ver com assumir o experimental
talento potencial individuais são logo diluídos no dia-a-dia competitivo
q estanca o experimental
brasil-babel q há de novo sob o novo
quem é inventor sente-se novo é novo metavanguarda ri do sério da série
não ta na linha o bonde já passou
não me interessam talentos estou farto de querer achar o novo no vestido
de novo
talentos q pintam desenham gravam CONSERVAM q não querem adiam evitam
o experimental
o exercício experimental da liberdade evocado por MARIO PEDROSA não
consiste na “criação de obras” mas na iniciativa de assumir o experimental
pintura passou a ser pet da burguesia conservadora
104
cachorro bombom e pintura tapete cortina ir ao museu à madison vernissages
o potencial-experimental gerado no Brasil é o único anticolonial
não-culturalista nos escombros híbridos da “arte brasileira”
tão CONCRETO quanto à sua exportabilidade
voltarão sempre argumentos obscuros dúvidas de autenticidade assuntos
remordidos ignorância dos verdadeiros problemas (quais se o coma se
estabeleceu no q está à margem do experimental) 54
Para amarrar essas considerações pessoais-gerais sobra a arte, Oiticica lança
mão mais uma vez de uma série de citações dos autores de sua preferência. Aqui,
porém, ao contrário do texto escrito para Polem, as citações não obedecem ao fluxo
da escrita elétrica. Elas são quase que legitimações acadêmicas, ou melhor, autorais,
do aspecto experimental nas artes. Hélio cita, além de Pedrosa, Décio Pignatari,
Oswald de Andrade, Yoko Ono, Gertrude Stein, Marshall Mcluhan e John Cage.
Todos os nomes citados são acompanhados de seus respectivos fragmentos, sem
referências claras de onde foram retirados. Apenas o fragmento de Serafim Ponte
Grande, de Oswald, pode ser identificado pois Oiticica revela a fonte. Assim, fica no
ar a possibilidade daqueles fragmentos encabeçados por seus autores serem até
mesmo trechos reescritos por ele a partir de suas palavras. Apenas uma possibilidade.
Essas citações, contudo, são evocadas como vozes de aliados, e não de autoridades.
Cage e Mcluhan são encontros surgidos a partir de suas leituras, confluências do
pensamento de uma época com o pensamento dele e não meras legitimações
54 OITICICA, H. “Experimentar o experimental”. In: Navilouca – Almanaque dos aqualoucos. Rio de Janeiro: Gerbasa, 1974, s.p. O Texto foi republicado na íntegra em BRAGA, P. (org). Fios Soltos – a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008, p.341.
105
“superiores” de suas idéias. Hélio não cita, mas sim dá voz a outras vozes que, junto
com a sua, dizem o mesmo refrão: experimentar o experimental.
Em “Experimentar o experimental”, portanto, Oiticica permanece desenhando
seu mapa de filiações, relações e apropriações, expandido aos poucos por sua própria
conta, porém incorporando permanentemente as coordenadas textuais dos irmãos
Campos e de seus outros amigos escritores. Se ele traz Yoko Ono e Gertrude Stein
como alternativa ao Paideuma concreto – duas de suas descobertas nova-iorquinas
mais caras para seu trabalho posterior –, ele o reafirma ao citar Décio, John Cage e
Oswald de Andrade.
A filiação ao paradigma experimental ou de invenção nas artes era um
compromisso que Oiticica – e todos os presentes na Navilouca – não cansavam de
reafirmar. Essa filiação torna-se mais sólida quando a revemos em pleno
funcionamento no trabalho “Repertório 1”, outra parte feita por Oiticica no
almanaque. A página consiste em uma foto aérea da cidade de Manhattan com
efeitos de imagem definidos pela legenda como “cinetização POL BURY foto SAM
FALK”. Acompanhando a foto, lemos três fragmentos de poemas. Os três
fragmentos nos levam às leituras que Oiticica estava envolvido durante sua troca de
cartas com Haroldo de Campos. Eram, como vimos antes, Garcia Lorca e
Sousândrade que, ao lado do poeta russo Vozniessiênski, formavam a trinca dos
poetas citados por Haroldo em sua página das Galáxias dedicada a Manhattan. Após
Oiticica ter comentado essas relações em cartas e textos, ele a aplica aqui, no
trabalho para a Navilouca. A diferença agora é que, no lugar do poeta russo, aparece
um trecho do poema “Man”, de Silviano Santiago, citado mais acima. Um poema
cujo tema era justamente uma leitura de Manhattan – como os fragmentos dos
poemas “Asesinato – dos voces de madrugada em Riverside Drive” de Lorca e de “O
Inferno de Wall Street”, de Sousândrade. Isso mostra que, nesse meio tempo em que
Oiticica se corresponde com Haroldo de Campos e realiza seus trabalhos para o
almanaque (isso era 1972), ele se torna amigo de Silviano e passa a conhecer sua
obra poética. Sem deixar de exercer a prática do leitor-escritor, a poesia de Silviano é
rapidamente incorporada ao “repertório” de poetas que escreveram sobre Nova York.
106
O poema escolhido para aparecer ao lado de Lorca e Sousândrade faz parte,
como vimos, do livro Salto, lançado por Silviano em 1971. A inclusão de um poema
de Silviano, ao lado dos outros poetas estrangeiros que escreveram sobre Manhattan
amplia as relações intertextuais que essas obras e conversas criaram com os trabalhos
– e a escrita – de Oiticica. Haroldo e Augusto de Campos, Silviano Santiago e Waly
Salomão (e ainda outros como Torquato ou Rogério Duarte) eram pólos, ou
potências textuais, que atravessavam a leitura e a escrita do artista plástico durante
seu período em Nova York. E por atravessarem, organizavam e desorganizavam seus
projetos e seus desejos, sugeriam sempre novos caminhos e possíveis parcerias,
ampliavam as possibilidades das obsessões e ambições do escritor-leitor.
Há muitos outros textos e cartas de Oiticica que podem ser utilizados para dar
cabo dessa proposta em seguir algumas de suas leituras e percorrer as sobreposições
de textos e referências para demonstrar a presença fundamental que o(s) livro(s)
detém não só em seu projeto de publicação como na sua própria forma de conceber
um texto e uma obra escrita. E é sobre essa escrita que me debruçarei na próxima
parte.