mia couto, ler, 200910

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  • 8/14/2019 Mia Couto, Ler, 200910

    1/11

    Em

    cima

    damesatem

    ocomput

    ador

    porttilenobolsotrazocaderninhodeapontamentos.Osinstrum

    entosparaguardarasideias

    quevaosurgindoestaosempreporperto.MiaCoutoacreditanasvirtudesdoesquecimento,

    comoadianteseve

    r,masjhmuitodesc

    obriuqueexistempequ

    enosrelampagosquete

    mde

    serguardadosparanaoseperderem.

    ap

    artirdelesqueescreve

    osseuslivros,comoomais

    recenteJesusalm

    ,tentandocadavezma

    isfugirsuafacilidade

    debrincarcom

    aspalavras.

    Tentandoesquecer

    ,namedidadopossvel,aimagemquecrioudesiproprioenquantoescritor.

    NAO QUERO Q

    VALOUCOMIA

    COUT

    O

    ~

    ^

    ^

    ~

    ~

    ~

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    UE A ESCRITATO

    MECON

    TA

    DEMIM.FICA

    ENTREVISTAD

    E

    CA

    RLOSVAZMARQUE

    S

    FOTOGRAFIADEPEDRO

    LOUREIRO

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    Quevirtudesencontranoesquecimento?O esquecimento como se fosse a pgina onde nsescrevemos.

    O lugarembrancodessapginaondeescrevemos o presente cria-do pelo esquecimento. Mas sempreum falsoesquecimento,no

    existeum esquecimento verdadeiro. O esquecimento toconstru-

    docomo a prpria lembrana. o outrolado queficainacessvel.

    Perguntei-lhe isto porquea necessidade de esquecer temsido umaideiarecorrenteemvrioslivrosseus.Sim, eusou alimentadopor aquilo que umprocessodeamnsia

    colectivaqueagora atravessa a sociedademoambicana. um es-

    quecimentoqueseadoptou como soluoparaescapar deumtem-

    po,de umamemria.

    Amemriadaguerra?Sim.Se visitaragora Moambique ningumse lembrade nada.No

    aconteceunada. Foram 16anos deguerra, talvezdas guerrasmaiscruisque possvel imaginar, morreuum milhodepessoas e no

    aconteceunada. Noexisteregistonenhum.Ningumsequerlem-

    brar. Haliumenterro daquilo quefoi.

    Issocorrespondessituaesdeamnsiaporquepassamaspessoasqueviveramumasituaotraumtica? uma misturade economiade sofrimentocomumprocessode sa-

    bedoria. Porquese percebe queas razesdesseconflitoainda no

    estocompletamenteresolvidas. Halitenses queno valea pena

    despertar. Portanto, vamos deixar os demnios dentroda caixa.

    A estratgia essa.

    Oseultimolivro,Jesusalm(Caminho),abrecomumaepgrafeondese

    faladodesejodeesquecercomoomaisviolentoemaiscegodosdesejoshumanos.DeondequevemessafrasedoHermanHesse?Nosei.Apanheiessafrasej emestadode citao.Pareceu-meque

    eraumaboamaneiradeabrirestahistria.

    Acreditarealmentequeodesejodeesquecermaisfortequeapul-sodamemria?Nofundosoamesmacoisa.Oprocessoquelevaaescolher,aselec-

    cionaraquiloquesobreviveeaquiloquedeveserapagadoomesmo.

    umprocessoficcional.Porqueoqueseescolhenuncaexactamen-

    teverdade.Ascoisasnuncasepassaramexactamenteassim.

    sempreumaelaboraosobreosfactos? uma elaborao. Tal e qualcomoo relatode umsonho sempre

    umaelaborao.Ningumse lembraexactamentedo quesonhouporqueissoimplicavafalara lnguadossonhos e ningumfalaa ln-

    guadossonhos.Quando fazemosestatraduo temos de colocar

    aquilonuma outraordem, numa outralgica.

    J no romanceOOutroP daSereiaobarbeirodiziaqueprecisoesquecerparaterpassado.omesmoprocesso?Exactamenteo mesmo processo.Quersejaem termos colectivos

    (amemria deumanao), quer setratedamemria individual,ela

    feita sempre deste processo de reelaborao ficcional, digamos

    assim.Nessesentido,somostodosescritoresquando reescrevemos

    o nossopassado. A aco,com o tempo,transformou-senuma coi-

    sa cada vezmaisdifcil.Quantomenosnospodemos reverno pre-

    sente, mais somos atirados para o passado. O passadosurge comumagrandeurgnciapara termosalgum tempo queseja nosso.

    Masdepois percebemos queessepassado umacoisaque ouno

    est lou umamentira, umainveno.

    Oquemeparececuriosoeinvulgarofactodeproacentotnicono esquecimentoquandonormalmenteos criadores pem o acentotniconamemria.Eu vivieste processode umamaneiraintensa. Esta habilidade de

    esquecerfoinotvel.Foi umadas coisasque maisme tocouemtoda

    a minhavida. Este consensosilencioso de umasociedade inteira,

    semnunca trocaropiniosobreisso, comosefosse umacoisa deci-

    dida partida.Parecia-metoinvulgar, tofantstico,quespodia

    entenderisso percebendo queeraa reiterao deumprocessoan-

    tigo.Quandovou procura,porexemplo, dememriasda escrava-

    tura ou deguerras anteriores, percebo queocorreuo mesmo pro-

    cesso.Portanto, haquiuma coisaqueestinscritanaquiloque

    a cultura delidar com o tempo.

    A amnsia.

    A amnsia como estratgia desuportaro prprio tempo.Issopodeservistocomoo v,comoalgodesbio,mas tambmse podeargumentarqueguardarosdemniosdentrodeumacaixaalgode muitoperigoso. sempremuitoperigoso.E achoqueestamosa pagaro preodis-

    so.Quandoessetempo votadoa este esquecimento, isso nonos

    ajudaa construir aquiloquepodemosquererque sejamosnossos

    mitos fundadorescomo nao, como gente,como povo. Comesta

    ausncia,comeste vazio, estamos semprea comear.Mas tambm

    haquiumaconta que sefaz:estamosconvivendocomumpresen-

    te cheio de surpresas queno podemosdominar e temos de ter

    a habilidadede serqualquercoisa, de seroutros. Quantomenos

    trouxermos do passado alguma coisa quenos obriguea sermosquemj fomos, melhor, maisdisponveis estamos.Os moambica-

    nos esto disponveis paraser qualquer coisa na modernidade

    e abraam isso comuma facilidadeenorme.

    32 [outubro 2009] revista LER

    [ ]Entrevista

    EMMOCAMBIQUEnaoaconteceunada.Foram16anosdeguerra,

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    revista LER [outubro 2009] 33

    comoumviajantecommaismobilidadeporviajarmenoscarregado.Eleno traz a mochila dopassado.Estnaestrada espera doque

    possa acontecerque o convide a ser qualquer outracoisa. essadisponibilidadequeestali presente.

    Esteprocessodeamnsiatambmaconteceunoseucasopessoal?Aprendiaperceberqueissoquenosentreguecomoonossoretrato,

    oretratodequemj fomos,nopodeserlevadoasrio.Porqueseno

    eunoteriatambmessamobilidadedequefalamosnosentidoco-

    lectivoequemeapeteceter.Tivedeviajarnumacoisaqueeraaminha

    heranaportuguesa,europeia,parapoderabraaroutrasidentidades

    enofazeristoscomoumavisitatursticaporoutrasidentidades.

    Psdepartemuitacoisadoseuprpriopassado?No.Entendi que tinhade lidarcom issocomocom umlivro: uma

    coisaquefoi construda, elaborada.Osmeus paisconstrurampara

    mime para os meus irmos umafamliaficcionada. Noexistiamavs queme poderiam marcarfazendoessa descrioemocional

    e afectiva.Notnhamosa presena deprimos,de tios, essa presen-

    afamiliar quecriao vnculocom o passado.Atcom umcertosen-

    timento deeternidade.Os meus pais contavamhistrias. A minha

    meumagrandecontadoradehistrias,sempredeummododi-

    ferente.OtioAblioerasempreumapessoanovaeaquilotinhamui-

    tagraaenspercebamosqueanossafamliaestavasendocons-

    truda. Os meus pais eram eles prprios os avs, eram os tios.

    O lugaronde eunascitambmera umbocadoficcionado.

    NasceunacidadedaBeira.A Beiraera umacidadeafricana,digamosassim.Masquesonhava

    ser Europa, ser Portugal, ser uma grande cidade. Vivia quase emestadode fico. Foi construda numterritrioproibido,numpn-

    tano.Omarentravatodososdiasporalidentroederepentenosa-

    bamossequer se tnhamos cho. Isso ajudou-mea verna fico

    umacoisa toreal como as grandes famlias, a ptria,o territrio.

    Nofundoanicacoisaquetenhocomorealacasa.Acasa,sim.

    Acasadasuainfncia?A casa daminhainfncia,essasim. comosefossea minhaptria.

    Aindaexiste,essasuaptrianaBeira?Fui lrever. umacoisamuitocuriosaporquefui lcommedo. Pas-

    saram-se20 anos e eusabia quetinhade fazeraquelaexcurso.

    Achamada romagemdesaudade.

    Sim. Daqual samossempre a perder. Masfui l e quandochegueia casaera umdestroo.Eramsrunas.

    Issoafectouasuamemriadela?Tive quefazer alium jogo.Realmenteaquilo foium choque.Fiquei

    quase arrependido: porque quevim?Depois tentei saber quem

    eraodonodacasa.Elenoestava.Deiavoltaefuiparaoptiotra-

    seiro.Estavaml unsmeninosa brincar. Curiosamentebrincavam

    a algumas dasbrincadeirasa que eutambm brinqueinaquelep-

    tio.Os mesmosjogoscomos mesmosnomes.Aquelemomentosal-

    vou-me.Pensei:A casano exactamenteo queest ali. estare-

    laocomotempo.Essacasaqueestdentrodemimnuncaficar

    emrunas. Salvei-mepor causadessejogo infantil.

    Lembra-sedomomentoemquetomouconscinciadequeeramoam-bicanoenoexactamenteumcolonodesegundagerao?Noseisefoiummomento.Houvemomentosemquemeconfron-

    teicomestacoisadequemsoueu?

    Questes com que, em vrios dos seus livros, inclusive no ltimo,os seus personagensseconfrontamtambm.

    Sim, sobrea identidade. Acho quenuncacoloqueiemcausaqueeraparte deMoambique. O facto desermoambicano brancocoloca-

    va-mealgumas questesdequanto, porinteiro,eu pertenciaque-

    lelugar. Sepodiacasar com umlado mais ntimo, mais sagrado da-

    quele territrio. Vrias vezes me confrontei e pensei: H aqui

    portasem queno possoentrar.

    Aindasemantmesseinterditonalgumasdessasportas?Nalgumas portasnoposso entrar mesmo.No pordecisodas

    outras pessoas masporque os meus mortosno esto ali. uma

    sociedadequedefineoqueounoprprio.UmlugardosVaz

    Marques, vamos chamar-lheassim,porqueos seus antepassados

    estol enterrados. Portanto, haliumarelao coma terra,com

    o ladodivino, a que eunotenho acesso.Sente faltadessarelao ouintegraissocomoalgodenatural e semdrama?Sintofaltaejsenticomodrama,comtristeza.Masagorano.Sin-

    tofaltacomo dequalquer coisa que sei que ummundo que no

    posso visitar completamente.

    Houvealgumdrama familiarnadecisodese envolvercom a Frelimo?No.Shouvequandodecidi abandonaros estudos dauniversida-

    deporcausa dessaopo.

    Jestava emMedicina.EstavaemMedicina.QuandoentreiemMedicinaaFrelimocontac-

    tou-meepediu-meparaotermousadoera infiltrar osrgosdein-

    formao.Portanto,euiriadeixardeestudar.Oupelomenosestudarscomodisfarce. A,foipreciso falarcomosmeuspais. Mas apesar

    detudoeles aceitaram.ForamcontactadosporalgumdaFrelimo

    quenegociouqueainterrupodocursoerasdeumanoequede-

    poiseuretomava. Mas a minhaeducaona infnciaj foi paraque

    eu, senofosse daFrelimo,viesse a ser pelo menossimpatizante

    dacausadalibertao.

    Osseuspaissentiam-se,eles prprios,moambicanos?Osmeuspaissentiam-seafavordalutapelaindependnciamasnose

    sentiammoambicanos.Sentiram-sesempreportugueses,comsauda-

    desdePortugal,mascomumamorprofundoporaqueleterritrio.Eles

    tmagoraoitentaetalanosepensoquevoacabarasuavidal[em

    Moambique].Sopessoasqueestorepartidasentredoismundos.Perguntei-lhesehouvedramaporque,apesardetudo,integraraFreli-moimplicavaumaruptura,nemquefossesimblica,comopasdosseuspais.Issonodeveserfcildegerir,emocionalmente.No,porqueem minhacasaouvamos,por exemplo, a rdioda Fre-

    limo, por deciso domeupai.Ele prprio nos dizia: que seeu fosse

    mais novofugia,ia parao outrolado.OoutroladoeraaTanznia.

    Achoque haquiumagenerosidadea queeu nemsequerdouo de-

    vidovalor. Elessabiam queestavam a criar trs filhospara serem

    de?umoutroterritrio, deumoutromundo.

    Estavama oferecer filhos.Estavam a oferecer filhos a um outro pas queeles amavam. Era

    a consequncialgica daopoquetomaram.FoiaFrelimoqueodesvioudaMedicina?Foi a Frelimo.Depoisveio o jornalismo. Maso jornalismo porcau-

    sadaFrelimo.Aprendia gostar deserjornalistae aprendi a gostar

    talvezdasguerrasmaiscruisque possvel imaginar, emorreuummilhaodep

    essoas.Naoexister

    egistonenhum.Ning

    umsequerlembra

    r.

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    deseroutras coisas, a gostar deescrever, detrabalhar comteatro.

    Quandodecidiregressar universidadeeraparaMedicina queia

    mastiveque repensar aquilo tudo. Reinscrevi-me em Medicinae mandaram-me refazer as cadeiras de Anatomia,queeram um

    pesadelo.Disseram-me queera porcausa da revoluoe eu per-

    guntei: Mas coma revoluo o corpohumanomudou?[Risos.]Dis-

    seramquenomasqueosmtodostinhammudado.Foiaquede-

    cidi irparaBiologia,ajudadotambm pelo factodeestarcasadocom

    umamdicaeporsaberquecomamedicinanotinhatantoespa-

    opara fazeroutras coisas.

    Fezocursol?Sim,em85.

    LiqueparapassardesimpatizanteamilitantedaFrelimotevequepas-sarnumaprova.

    Haviaumaprova, sim. A chamadanarrao de sofrimento.Quesofrimentoquenarrounessaprovadeadmisso?Eunotinhagrandesofrimento. [Risos.] Aquilosignificavaqueha-

    viaumaseleco. Era umpartido quenoqueriasimplesmente re-

    crutare angariars paraefeitosdepopularidade. Todoo militante

    tinhadepassarporessaprovadupla:noseuempregoenoseulu-

    garde residncia.Assisti a vrias. Vigenteque tinha sofrido mis-

    ria, tinhasido presa.Eu tinhatido umavida boa, nuncatinhasofri-

    dopor aalm.Entodisse:Eusofrode outra maneira, sofroporque

    sonhocomumacoisaaquenopossopertencer,estacoisadacau-

    sa;sonhoquepodiaandarlacombater(tinhaaimagemidlicado

    CheGuevara,umacoisamuitoadolescente);sofroporverosoutros

    sofrer, porver casos de racismo, queme explicaram.O retratodo?queeraa sociedadecolonialestava alisemmscaras.

    Sofreuquandonooautorizaramaintegraralutaarmada?Sim.Esteprocessoacontecej depoisdo25deAbril.Eutinhaligao

    comaFrelimonaclandestinidade,antes.issoquemefazentrarnum

    rgode informao.Entreiparao jornalismoantesdo 25deAbril.

    Militante,sdepois?Formalmesmo, s depois.

    Depoisdaindependnciaouaindaantes?Ainda antes,logoa seguirao 25 deAbril.

    Portanto,jestevecomomilitantenoEstdiodaMachava[ nacerim-niadadeclaraodeindependncia].

    Sim. Jtinhacartoe tudo. Antes tinha tido colegas meus queti-nhamfugidopara integrar o exrcito de libertaoe tinha notcia

    dequeindivduosbrancos e mulatosnopodiampegaremarmas.

    Porhaver umadesconfianada Frelimoemrelaoaosbrancose mu-latos?Basicamenteera isso.Haviauma linhamais racistadentroda Fre-

    limoquedizia:Ehp,essestiposno!HaviaalinhaabertadoSa-

    mora Machelque dizia:Nohraa,todos osmoambicanosme-

    recema mesmaconfiana.Masa soluodeequilbrioera assim:

    Estestipos merecemconfiana masquandotiveremquedisparar

    comumaarmasobreumprimoouumtiooquequevofazer?

    Essaquestoalgumdialhepassoupelacabea?

    Passou, porqueeurecebiaem minha casa primosqueno conhe-ciae quevinham parar ao exrcito colonialportugus.Passavam

    dias emminhacasa. Eusonhava que ia passara fronteira e pegar

    emarmase isso atravessou-meo espritocomo umdrama.

    Eresolveuessedramanasuacabea?No, porquefelizmente nunca tivequepegar em arma nenhuma.

    Seriaum desastre.Essa desconfianaem relao aosbrancos correspondia, no fundo,a umasituaoderacismo oficialdentro daFrelimo.Sim, exactamente. O MPLA, em Angola, nunca o teve toaberta-

    mente.Tambmhaviaracistasno MPLA masnuncativerampeso

    suficienteparaobrigara fazeruma concesso dessas.

    Comoqueconviveucomisso?Deumamaneira muitom.Foiumprimeirochoquequetive. Nun-

    ca pensei quehouvesse essaexcluso:nspodermos sermilitan-

    tesmasnoporinteiro.

    A suanarrao dosofrimentopoderia tertidoissocomomatria.Noevoqueiisso.Faleisobreopassadoqueeradoquesefalava

    Aindahmarcasdessamatrizracistanasociedademoambicana.H, mas muitopoucas. Estes 30anos emque a Frelimoestevenopoder e penso que ainda estarpor umtempo produziramum

    resultado notvel: a ideia deque Moambique um pas que est

    abertoequecompostoporummosaicodegente,porculturasdi-

    ferentes. A Frelimodeixouissobem marcado. Erauma coisa que

    estavanascanes,nasmensagens,na maneiracomo eramnomea-

    dosos quadros.

    Aideiadeumanaomultirracial.Sim.Agora,nose resolveu porcompleto. Tambmnoconheo

    nenhumpasdomundoqueo tenharesolvido. Nomeuquotidiano

    esqueo quetenhoraa. Masde vezem quando, muitoraramente,

    tropeo nisso.Algum mefaztropearnela.Algumlho lembra?Sim:Ateno,quetutensraaetensaquelaraaqueadeumpas-

    sadoquenosequer.

    Issoaconteceaonveldopoderouaumnvelpopular?A nvelpopular, quase nunca. lembrado quando huma portaes-

    treitae s pode passarum. Imagine: precisoescolherum repre-

    sentante da cultura ou da literatura. Pensa-se duas vezes se no

    melhorencontrar umoutro.

    Seria possvela instrumentalizaodessasdiferenasraciaisparafinspolticos comotemacontecido noZimbabu vira acontecertam-bmemMoambique?Humatensolatente?

    No h. A nossaHistria bem diferente.Htodos osmotivosparapensarqueissoinvivel.Masprecisoestaratento.NoZimbabu,

    h 10 anos, tambm sepensaria queisso era completamente im-

    provvel.Esta coisa de um dirigenteestara perderpodere recor-

    rera algo queera completamente impensvel porquerazopode-

    riaacontecercomMoambique?

    Derepente,soltaram-seos fantasmas.Podeser a raa,a tribo, a regio. Asmaiores tensesemMoambi-

    quenosotantodaraa porqueosbrancosmoambicanosrepre-

    sentam0,01porcentoedetmmuitopoucodoquehojeaeconomia.

    Oscentrosdaeconomianoestocomeles.Aterranoestcomeles.

    AterraaindaestcomoEstado.

    A terra doEstadomas deumamaneiraencobertatemproprieda-deprivada.Emboraissoseja ilegal. Sabe-se queh donosdaterra.

    A terra compra-se evende-sea umnvel oculto. Mas osgrandespro-

    prietrios sooutros. gente, svezes,ligada aopodertambm.

    34 [outubro 2009] revista LER

    [ ]Entrevista

    ESCREVEMOSpararesolverqualquercoisaque umacarenciainterior,sim.muitocomumserofactodeestarmosrfaosdanossa

    propriainfancia.Estamosprocuradeumoutrot

    empo,que

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    Dequemodoaquiloqueescrevefoimarcadopelofactodeserprove-nientedeumaminoriatnicanoseupas?

    Foi marcado no sporser minoria.Li qualquercoisa sobreo factodeosescritoresquetmumacertadimensoseremresultadodemi-

    graes.Haliumaespcie deferidadeorfandade, digamosassim.

    Hqualquercoisaquefazirembuscadaorigem,daminhahistria,

    etc.Humaportaqueestaliequeaescrita:aliteratura.

    Sentequeessaorfandadefoiummotorparaasuaescrita?Escrevemospararesolver qualquercoisaque umacarnciainte-

    rior,sim.muitocomumserofactodeestarmosrfosdanossapr-

    priainfncia.Nopropriamentedessadeslocaodeterritrio.Esta-

    mosprocuradeumoutrotempo,quevivemoscomoumparaso,

    comumaespciedeplenitude.O quenomeucasotambmacontece.

    A minha ptria a minha infncia.Tiveumainfnciaplena,feliz,ab-

    soluta.Maisdoqueserfilhodeimigrantes,soufilhodessainfncia.Ofactodepertencertalminoriagerouequvocos,algunsatdiver-tidos,comoofactodeoconfundiremmaisdoqueumavezcomumamulher negra.

    Sim, aconteceu-me.

    Hoje,sendomaisconhecido,imaginoquejnohavertantosepis-

    diosdesses.Pareceincrvel masainda acontece.Asediesfrancesasdos meus

    livros notmfotografia. UmprofessorcongolsdeLiteraturache-

    gou a Maputo, telefonou-mee disse-me: Ainda bemqueo encon-

    tro, querofalarconsigo, porqueuso osseus livroscomo um exem-

    plode umescritorafricanoquevai buscars suas razesafricanas

    a cargadosseus antepassados.Eledisse aquilodetalmaneiraque

    notivecoragemdeo contrariar.

    Aotelefone.Aotelefone.Mas eledisse: Agora vamosencontrar-nos. E euno

    lheconsegui dizer. Perguntei qual era o hotel,como que o senhor

    estavavestido, demoreiumbocadinhoe elevoltoua telefonar e dis-

    se-me: Entretantofiz umtelefonemae sei que o senhorno exac-tamente dastribosmais representativasde frica. Quandome

    encontreicomeleainda noestavaconvencido.Deviahaveralgum

    antepassadode que eu no me lembrava. Perguntava-me se eu

    vivemoscomoumparaiso,comumaespciedeplenitude.Aminhapatria aminhainfancia.

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    sabia a histria dosmeus antepassados todos.Eu disse quenomas que nunca tinhahavido fricanaminhafamlia. E ele:No,

    no,halgumedoCongo,porquehaquicoisasquetmaver

    comoqueomeuaveomeubisavmecontavam.

    Issoengraadoporqueremeteparaofactodeaspessoasquereremmuitasvezesencaixaras coisasnum clich.Issoperturba-o?A mimdiverte-me. Essesequvocosso umaprovado que a mi-

    nhaprpriavida.Lembrei-me agora deoutrocaso contado pela

    professorabrasileira deLiteratura Laura Padilha.Elaestava com

    o pai, negro,muitovelho, acamado,e leu-lhe unscontosmeus.E o

    senhordisse:Essehomemumvelhonegrodafrica,muitove-

    lho,porqueo meuavcontava-mehistrias queeram parecidas

    comestas.Afilhadisse-lhe:No,esteumbrancoenaalturaeramoo.Maseleinsistia: No,eleouviuisso emalgumlado.Estas

    coisas,paramim,so como prmios.Nosentidoem que possvel

    atravessar e contrariar esses esteretiposde quem quem.

    Ahistriamaisdivertidaaqueladosvestidosquelheforamofere-cidospelasautoridadescubanas.Essa assim:euvouparaCuba, como jornalista, e recebemos, todos

    ns,caixascomprendas. Estvamos no tempodaguerra, nohavia

    nada,e euestava ansioso por abrira caixa. Quando chegueia Mo-

    ambiqueabri e eramvestidose brincos.

    Aindaguarda isso?Dei minhamulher. Mas jfoihmuito tempo.

    Como quereagiu?Com espanto, sentidodehumor, irritao?Diverti-melogo. Rimo-nostodos,l emcasa.Umavez, no Porto, fui

    convidado para umaconfernciae ficmosnuma casa dehspedes.

    Uma coisa deluxo.Vi que o homem darecepo,quandome viu,fi-

    couatrapalhadoe quedavaordensparadesfazer qualquercoisa.Tinham-mepreparadoo quarto cor-de-rosa. [Risos.]

    AindaexisteobilogoMiaCouto?Ah,sim. Comcarto-de-visita e tudo.

    36 [outubro 2009] revista LER

    SOUMUITOmaucientista.Deviaserreprovado.Ocritrio sabersemexecomigo.

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    O seucarto-de-visitadiz bilogo?Sim,nodiz escritor. Esseimprodutivoest expulso.

    Masoseudia-a-diaconsumidopelotrabalhodebilogo?. Em termos denmero dehoras, sim. Entro demanh, soito

    da manh,e saio sseisdatarde,sendos bilogo. noite, ento,

    souescritor. Souum escritornocturnoe deinsnias.

    Nuncapsahiptesedeserescritoratempointeiro?No.No quero.

    Porquegostatanto dabiologiaque noconsegue larg-la ou porquenoquerqueaescritasetorneprofisso?Hvriasrazes.A escrita umapaixo enorme. umavertigem.

    Euno quero que ela tomeconta demim.No quero lev-la muito

    a srio.Ficavalouco.Gostomuito detrabalharemequipa,com pes-

    soas.Gostodeproduzir, deverresultados dascoisasfeitasemequi-

    pa.Issoumacoisadequenoqueroabdicar.Oquequefazenquantobilogo?Estudos de impactoambiental. Fazemos alguma pesquisa para

    planosde gesto de reservas e parques, reasde conservao em

    Moambique.

    Oquequeestafazernestemomento?Estou a fazero estudo sobre a barragem de Mpanda Nkwua, no

    Zambeze, a 60quilmetros dadeCahoraBassa. Est-se a pensarse

    vivelou no. Isto implica falarcompessoas, pensaro reassenta-

    mentodessagentequevivenaquiloqueareadeinundao.Im-

    plicaveras consequnciasnavegetao,nafauna,etc. umtraba-

    lhode quegosto.H alitambm umaoportunidade,comoescritor,

    para falarcomgente e recolherhistrias. Essa divisono muitoclara:quando estou a serbilogo, quandosouescritor. H umas

    interfernciasque sealimentamreciprocamente.

    Essetrabalhopermite-lhe irprocuradasvozesanoitecidas.Dasvozes anoitecidas,sim.Euestou semprel,semprerecebendo

    histrias,semprenaszonasrurais,comgente.Voumostrar-lheuma

    coisaquesencontroporquefaoistodabiologia.Quandoacabeieste

    ltimolivro,Jesusalm, fuifazer umdocumentriosobreparques e

    reservas. Eusereio condutordestahistria. [Abreo computadorpor-

    ttile comeaa mostrar-me fotografiastiradasduranteasgravaes.]

    Haquiumrioeeuencontroestehomemqueestaqui.Chama-se

    Nguezi.Veja:usabrincos,colares.Na reservadisseram-me: hum

    gajoaqueumcaadortradicionalesemprequeprecisomatarumelefanteou umacoisaassimmaisperigosavai-sechamarestese-

    nhorporqueelesonhacomoespritodosanimais.Primeirofazuma

    triagemparasaberseaquiloumanimalverdadeiroouno.Depois

    eleestblindado:nuncaumanimallhepodefazermal.Eudisselogo

    quequeriafalarcomestefulano.Vamoslcomascmarasdetelevi-

    soeelediz-me:Eunofaloportugus,noquerodarentrevistane-

    nhuma,noseiquem vocsso.Estavasentado numaesteira com

    umfaco,umacatana,afazerumacestadevime.umadascoisas

    queeuponhooSilvestre[personagemde Jesusalm] a fazer. Portan-

    to,eu reencontreiaminhapersonagem.Estetipoviveabsolutamen-

    teforadomundo.Temdeseandarhorasparasechegaraostioonde

    estafamliadele.Otipodiz-me:Nofao.Eeudespeo-me:Mui-toprazer.Faleiemportugus, embora eledissessequenofalava

    portugus.Disse-lhe:Fazmuitobem,eutambmnodavaentrevis-

    tas a umtipoque aparecesseassim emminhacasa.Eleolhou para

    mimpelaprimeiravez e perguntou aos outrosquemeraeu.Disse-

    ram-lhequeeucontavahistrias,queescrevia.A, qualquercoisamu-

    dounele.Disseparaeuvoltarnodiaseguinte,quemeiamostrarumstioqueseleconheciachamadoagrutadashienas,ondenascem

    ashienas.Fuilbusc-lodecarronodiaseguinteeelenoqueriaen-

    trarnocarro.Porqueestesfulanosquetmespritosde animaisno

    entramemcarros.Tivedefazertodaumahistria, abrirosvidrosto-

    dos.Elefoideolhosfechados,dentrodocarro,comumaarma.Dere-

    penteestremeceediz:aqui.Saidocarroecomeaaconduzir-me

    pelo mato.Vai mostrandopegadasdeanimais. O mato estavamuito

    fechado e eledisse:D-me uma catanae euamanhjtenho isto

    prontoparavoslevaraostio.Ohomemjtemumacertaidadeeeu

    dissequeelenoiaficaralidenoitecomacatana:Venhajantarcon-

    nosco. Eleperguntou:Hvinho portugus? E eudissequesim.

    Estehomemnuncafoicidade.Chegouprximoenuncaquisentrarporquedizqueviuquealiquemmandavaeraodinheiro.

    o Silvestre Vitalcio [noromanceJesusalmSilvestre isola-se domundocomosfilhos]. o SilvestreVitalcio.Masno s.Quando, noite,lhe perguntei

    senodiaseguinteamosverosanimais,respondeu-me: Voc no

    percebeu queeu soucego, que quase novejo? Perguntei como

    era possvel.Ele tinha-nos mostrado o mato e as pegadas. E ele:

    Mas noera eu que estava a ver; quandoestou assimalgum v

    pelosmeusolhos.Eleconfiouemmim,pediu-meparaolevarci-

    dade mastinhade sereu: Voc umamigo. Ialev-lo aohospital

    para queelefosse a umaconsulta porque hmuitotempo atrs ele

    dispararae umsoprode plvoraentrara-lhenos olhos. Nofim deJesusalmoMwanito[filhodeSilvestreVitalcio]diz:Eutenhoce-

    gueira. E o irmodiz: No, no podeser, como que vocescre-

    veutudoissosemver? Era a perguntaqueeu estavaa fazera este

    homem. E nolivroele diz: Deixo deser cegoapenasquando escre-

    vo. Para este fulano, andar no mato e ver as pegadasera o seu

    modo de escrever. Isto marcou-me muito porquej estavatudo

    escrito e nofundo vima descobrir que o tipoexiste, no ?

    Querdizer,oseulivrotevealgodepremonitrio.Nofoiestahistriaqueviveuqueolevousuahistria.No.Olivrojestavaacabado.ChegueiaMaputoepensei:Istotudo

    estna minhahistria.Fui procurarcomo quetinhaescrito.

    ComoqueoMiaCouto,bilogo,cientistaconvivecomesteladom-gico,dasuperstio, africano? porque eu soumuitomau cientista. Como cientistadeviaser

    chumbado e reprovado. Devia-meser retirada a carteira. O critrio

    paramimsabersemexecomigo.Setembeleza,sedesarrumaal-

    gumacoisa, houtra verdadequeestali. umadasvrias janelas

    quequero abrirpara entrar luz, para vero mundo. Mas no uma

    crenatotal.Seeuquiser pegar nomeu ladodecientistadigoque

    j estou sensibilizado. Isto aconteceucomo aconteceum leque

    de coisas a todaa gente.Fui marcado por estas porqueasescolhi.

    Comosefosseumamemriasavessas.Masnoseiseistome

    satisfaz.Prefiro deixar emaberto a explicao.

    Mashconflitoemsientreessasduasracionalidades?H, de vezem quando. Massei resolver isso dentrode mim. Mas

    nemquero assim tanto resolver. Fico feliz comessasvozesml-

    tiplas,queno tmde serclassificadas.

    revista LER [outubro 2009] 37

    janelasquequeroabrirparaentrarluz,paraveromundo.Masnao umacrencatotal.

    Setembeleza,sedesarru

    maalgumacoisa,houtra

    verdadequeestali.umadasvrias

  • 8/14/2019 Mia Couto, Ler, 200910

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    ApercepoquenaEuropasetemdefricaedessesaspectosafrica-nos parece-lhe umapercepocorrectaou distorcida?

    Quase sempredistorcida. Quase semprefolclrica e extica. Qua-sesempre como prova deuma coisamaisou menosprimitiva,de

    umpensamentomgicoque jhouve hmilniosna Europamas

    que, entretanto, foi um assuntoque jseresolveu aqui.No como

    umaideia dequeesse tipode racionalidadeafinalest presenteem

    todose sumaquestodegraduao. Oseuropeustmaindaden-

    trodeles, residindo,o mesmopensamento mgicoque osfazira F-

    tima dejoelhos para resolver problemas.Esse tipo decoisas emre-

    lao squais noquero reproduziro mesmo tipo de preconceito

    queoseuropeuscometem quandofalamsobreascoisasprimitivas

    de frica.

    Opodermoambicanolosseuslivros?

    Acho queuma partesim. Tenhosinaisde quesim.Sinaisde incomodidade?Hgente dopoder que tem uma atitude simptica e que mecongra-

    tula. Mash outrosquepreferema distncia:No aconteceunada,

    ningumfeznada.H umareacoquemepareceinteligentedo

    pontodevistadaestratgiadopoder:istocirculapouco,sefossetea-

    troou seo queeu dissessetivessemais circulao provavelmente

    a reaco noseriatoamorfa.Assim:deixapassar. Tambm pre-

    ciso dizer queali jexisteuma democracia,umamodernidade, uma

    atitudecivilizadaem relaoa estas coisas.Issofoi sendo constru-

    donosltimosanos. preciso dizerisso.

    Fiz-lheestaperguntaporque,apesardetermoscomeadoporfalarde

    esquecimento,hemJesusalmumapassagememquefazquestodelembrarocasodojornalistaCarlosCardoso,assassinadodepoisdeterfeito denncias decorrupo.Foiumaforma,neste caso,deten-tarcombatero esquecimento?Foi, sim. Semdvida. No foiuma coisa queeu tivesse planeado:

    Agoravou meter poraqui esse tipode recordao amarga. Mas

    nesse confrontoqueesta famliada histria fazcoma cidadehou-

    vecoisasqueeuquis quefossemimpossveisdeesquecer, queno

    fossem sujeitasaomesmoprocesso de ocultao.

    Porisso lhepergunteise lidopela classedirigente,porque imaginoqueistopode eventualmente tocarumou outroresponsvelpoltico.Toca.Mas seolharpara o conjuntoa atitude moderna,civilizada.

    Peranteo casoCarlosCardoso, Moambique fez algo queme pare-ce surpreendente: umaparte dosculpados foiencontradae julga-

    da.Foi feitoumjulgamentopblico.

    Maschegou-seotopodapirmide?No. No sei se sevaichegaralgumavez por Por coisas que no

    possodizeraqui.[Risos.]Porquehaliumanegociaode silncios

    quepossoat dizerqueentendo comopoliticamentenecessrios.

    Outravezatalvirtudedoesquecimento?A virtude doesquecimentoEucontra mimfalo, contra toda a luta

    paraquese encontrassemos verdadeirosculpadosdoassassinatodo

    CarlosCardoso.Hojecontinuoamilitarporisso,sepreciso,mastam-

    bmentendoqueoassuntonotosimplesassim,tofcilassim.

    Sente-seumsmbolodeMoambiquenoexterior?Eu noquero. Recusomuito essa ideia de que possa representar

    outracoisaquenosejaeuprprio.Mas

    Masjrepresenta.

    Opontoesse.Comoquemevemamim.Comomeolham.Ano

    posso fugir e at o faocomorgulho e com gosto.

    Sente-seconfortvelnesse papel?No.Mas h aquiumconflito dentrode mim. Por umladogosto,

    porqueachoqueh stiosonde euchegoe onde Moambique no

    chegou de umaoutramaneira. Sinto queesse papel pioneiro pela

    literaturabonito.Noumacoisapessoal.quequandoalitera-

    turaabre portasao que no esperadoquecheguede frica um

    futebolista,umdanarino,um msico isso d-mealgumavaidade.

    Achoque importanteque,de frica, cheguem sinaisque esto

    paraalm desse esteretipo.

    AlgumavezpsahiptesedeviverforadeMoambique?No.

    Maseulembro-medeumaentrevistasua,hquase10anos,emque,

    justamente apropsito daquestodaraa,diziaquehavia uma sinali-zaotopresentedofactode ser brancoqueissonaalturao incomo-davaeondereferiaahiptesedeterdesairdeMoambique.A maneira comoissofoipuxadoparattulofoium equvoco. Foi iso-

    ladodocontextodapergunta.O contextoera:separaa comunidade

    brancaem Moambique fosse impossvel ficar, porcausado nvel

    deagressoque fosse feitocontraela,se nessa hiptese euadmi-

    tiria sair dopas.Eudissequesim,evidentementeque sim.

    Portanto,ssesesoltassemostaisfantasmas.Sseosdemniossaremcpara forae Moambiquefor invivvel.

    Nuncaescreveunada quenotivessea vercomMoambique. Porquenolheinteressaouapenasporquenoaconteceu?

    Estedesejodeevaso,esteconfronto como passadomalresolvidopode acontecerem qualquerlado,no umassunto moambicano.

    Masocontextomoambicano.Achoqueestoucondenado.[Risos.]

    Issopodealterar-seseforpordianteoprojectodeescreverapeadeteatrosobreosltimosdiasdeMugabenopoder,quetemplaneadaameiascomoJosEduardoAgualusa.Podeser.Masachoquensnuncavamosfazerisso.

    Nocomearamaindaaescrever?No. Isso foiumaideiae derepente j temosoutras. Vivemosnes-

    tacoisameio adolescente dequevamos fazercoisas quesubver-

    tam a ideia da escrita individual e de que escrevera duas mos

    umaformamenorou umaaventurapouco admitida.

    Masahipteseestpostadeparte?Acho quecomemos a pensarnoutrascoisase esquecemos essa

    ideia.Euj nemme lembravadisso.

    Jque falmos doAgualusa: aceita paraaquilo queescrevea designa-odebarrocotropical?Aceitosim. Aindanoli o livro massei queno est a falarespeci-

    ficamentedoromance.

    No.Estouafalardoconceito,queatnemdoJosEduardo,dopoetamoambicano Virglio deLemos.O VirgliodeLemos enviou-me vrios textossobre isso.Nosei se

    deleouseeleoretomoudeumoutro.Masaceitoquenonossolugar,

    nostrpicos,existeestatentaodobarroco,comoqualquercoisaque

    umavia demostrarquesomoscapazesdefazerumacoisacomamesmaelaborao,omesmoexcesso.Emboraeurecuseaideiadeque

    o tropicalpassesempre porisso. Masvejocomoescrevemcolegas

    meus,moambicanos,e estsemprepresenteum certonvelbarroco

    38 [outubro 2009] revista LER

    [ ]Entrevista

    OSEUROPEUStemaindaomesmopensamentomgicoqueosfazir

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    notratamentodalinguagem.Nacabeadelesaindamoraessefantas-

    ma:Eles,oseuropeus,tmdesaberoqueeusoucapazdefazer.

    Neste seu ltimolivro e jno anterior senti umesforo dasuapar-teparaumaescritamaisdirecta.Sim.Talvezno maisdirecta, porquea elaboraopoticaque est

    aqui no diferentedos outros

    Refiro-meescritaenotantoelaboraopoticadahistria.Emtermosdaquiloque o tratamentodalinguagem,sim.Euque-

    rodesamarrar-medessacoisaquesecrioudequesouumtipoque

    inventa umaspalavrase fazumasbrincadeiraslingusticas.

    Issoquerdizerquesequerafastardatalmatrizbarroca?Queroafastar-medequalquercategoriaquemeaprisione.Mesmoque

    reduzaaexpectativadealgumaspessoasquetinhamessarelaocom

    aminhaescrita.Emprimeirolugartenhodeserverdadeirocomigo

    prprioeresponderquiloque omeugrandedesejodemesurpreen-der,demequestionar,demudar,defazerumacoisasemprenova.

    umatentativaderenegarasuaheranaliterriadeLuandinoeGui-maresRosa?No, porqueeupossoretomarquandoquiser. Quero terprimeiro

    umarelaocomigoprprioedepoiscomosoutros.Possoviajarpor

    diferentes estilos,possofazera abordagempor viada poesiaou da

    nopoesia,porqueoquemeinteressaterestaignornciaprofun-

    dade que quandochegoa umlivro eunoseio que vou escrever,

    comovou escrever. Esse nosaber que meapaixona.

    QuerserumaespciedeSilvestreVitalcio[personagemdoromanceJesusalmquerenunciaaomundo]inventandomundosemcadalivro?

    Agoraapanhou-mena esquina. Quero sim,no sentidoem queeletambmqueriaesquecer-se deumacargadepassado, queriareco-

    mear. Masquemnoquer?

    Porquequesecansoudessarefernciaaosseusneologismos?

    Achoquehaviaaliuma tendncia redutora. Haviaumaideia deque

    o fulano faz umartifcio, habilidosomasda at ser escritor hum

    passoqueno est presente.Sentiaque o diminuamaoapontarem-lhe essaparticularidade?No.Sentia isso tambm comoumprmio.Euera equiparadoao

    Luandinoe aoGuimaresou aoManueldeBarros.Maseles fazem

    sempremaisdoqueisso.Elesnososgentequebrincacomoidio-

    ma.Sogentequediz coisas.Eraisto queeu queriadesarmadilhar.

    Mastambmnolhequero darmuitaimportncia. umaquesto

    comigomesmo. Noqueroautoplagiar-me, acomodar-menumesti-

    lo.Mesmoseeuagorameconsolidarnuma outramaneirade cons-

    truodalinguagem,danarrativa, depois partireiparaoutracoisa

    e sersempreassimatdeixardeescrever.

    Jnoandacomo caderninho para tomar notade novaspalavras?

    Ando,ando,est aqui.Masaindatemamesmafuno?Anotoaspalavras, tambm. Depoisquero queelassurjam deuma

    maneira menosconstruda.Cheguei a umcertomomento emque

    penseiquepior doquedeixardeescrever, eraescreverdemasiada-

    menteomesmolivro.

    Temaalgumapalavrinhaquelhetenhaocorridorecentemente?Umapalavra sozinhaachoque no. Tenhoideias[folheia o caderno

    de capavermelha e l]: O moribundo perguntaquanto falta para

    morrerou perguntaquantotempotenhoparaviver?

    Depoisnomomentodaescritavaibuscarideiasaocaderninho?Agoraistotemdesepassarparaocomputador.Porexemploesta[vol-

    taa lerdocadernoquecontinuoua folhear]:Opaidescobrequeofilhoestaescreverumlivroeficamagoadssimo;ofilhosemprefoicala-

    do,porquequeagoraestaescrever?epergunta:issoquevocfaz?

    eofilhodiz:eusouumcriador;nofazmaisnada?eofilhoresponde:

    criartoabsorventequeDeusnofezmaisnadasenoacriao.

    Seiqueestouaprepararumacoisacomosefosseumaostrafazendo

    aprolanoquerdizerquetenhaovalordeprolamascomo

    sefossesendoconstrudoemcamadas.Umacebola,digamosassim.

    Apesarde confessar que passoua ter uma mrelao com a ideia deinventar palavrasno resistiu ideia deinventarumapalavranovaparaottulodoseultimoromance.Sim.

    paradoxal. verdade. [Risos.]Eutivedoisttulos paraestelivro.O primeiroera

    O Afinador de Silncios edepoisuseium,quefoiafinaloquesaiu

    noBrasil,equeAntesde Nascero Mundo.

    Porque que o livro saiuno Brasilcomoutro ttulo?Porqueo editorbrasileiro alertou-meque este ttulono Brasilpodia

    serapropriado para umacoisaquenoera exactamente o queeu

    queria.AsigrejasevanglicasnoBrasiltmumpesoenorme:Jesus

    salva e Jesuslava. Podia haveressaleitura.

    A minhaquesto era acercadofacto de, maisuma vez,no ter resis-tidoaoneologismo.Noresistimasno exactamenteporessejogosubversivo. Foipor-

    quemepareceuquequando,nofinal,quemestaescreverestelivroentrega aoirmoesteconjuntodetextose dizEst aquiJesu-

    salm,pareceu-me que isso nomeavanoapenaso territrioque,

    em delrio, o velho Silvestre j tinha nomeado mas mostrava

    revista LER [outubro 2009] 39

    aFtimadejoelhospararesolverproblemas.Masnaoqueroreproduzirotipodep

    reconceitoqueeles

    cometemquandofalamsobreascoisasp

    rimitivasdefrica.

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    tambmqueesseterritrionoerasdaordemdageografia.Era

    umterritriocriadoem fico,em linguagem.

    Jsedeuconta queem vrios artigos daimprensao ttulotemapare-cidotrocado?EmvezdeJesusalmapareceJerusalm.Eujcontava com issoe por isso, por viado ZeferinoCoelho, falei

    como GonaloM. Tavares,porqueimaginei queacontecesseo que

    acontecessehaveriaessainterferncia. Ele divertiu-se como as-

    sunto.Era sobretudocom eleque eutinhaqueter esse respeito.

    Foiumpedidodeautorizaoparaottulo?Foi. Seo Gonalo achassemaleu nopublicava.

    Como que reage agora aovero seu ttuloassim trocado?Aonvelondeestettulovaiviver,naspessoasquetmalgumarelao

    comosmeuslivros,issovaiaolugar.Aquelesvaientrarna calha.

    Opontodepartidaparaahistriafoiaquelemundoforadomundo,inicial,oufoiaportuguesaquevaiparafricaprocuradomarido?

    ApersonagemqueconduziutodaestahistriafoiDordalma,quenoestpresentea noserde umamaneirafantasmagrica.Elafoiapri-

    meiraaexistir.Eexisteporqueeuliumanotciadequenoreinoda

    Suazilndia umamulher foivioladaportodos osocupantesde um

    autocarro.Claroqueolivronosobreissomasficoucomoumavio-

    lnciacoma qual eunosabia conviver. umacoisa,infelizmente,

    muitocomum:estaviolnciacontraa mulher, contraa criana.

    Issofoiodetonador?Foi.A Dordalma,paramim, era algumexactamentecomoo nome.

    O nome tambmme ajuda a construir o personagem.Seriauma

    mulherquesexistiriaemalmaeaalmadelasexistiriaenquan-

    todor. elaque organizatoda esta histria.

    Oleitorentranolivroporaquelasituaodogrupodehomensquecriamum territriofora domundo, parte. Issorecordou-mea situa-odeTerraSonmbula. Ocorreu-lhe o paralelo?No.Vejoagoraquesim,quepodehaverumparalelomasachoquea

    situaodiferente.Aquelemeninoeovelhoqueatravessamahist-

    riadaTerraSonmbulaestoafugirdaguerraparaprocuraremum

    mundodepaz.umaespciedejogodesobrevivncia.Aprocuradas

    memrias essencialparaosdois.Aqui umasituaodiferente:

    algumqueparteparalugarnenhum,quantomenoslugarforesse

    territriomelhorparaeles.Eestoemrupturacomopassado.

    Nosdoiscasoshumasituaodeviolnciaquefazcomqueumn-cleo depessoas seafastedomundo.O narradordeJesusalm,Mwa-

    nito,atfoneticamentefazlembraroMuidinga,de TerraSonmbula.Podemseromesmomenino?Noso.Estemuitomaiseudoqueooutro.Hcoisasquetmpa-

    ralelo,sim, porqueso osdois quepor viadaescrita vodar senti-

    do histria,vofechara histria.

    engraadoquehpoucotenhaditoqueasuaptriaasuainfnciaecuriosoqueascrianastenhamumpapeltoimportantenalgunsdosseuslivros:issocorrespondeobviamenteaumavisodomundo.Sim,umavisoemqueaquelaquensachamosserumalgicame-

    nor, infantilizada, pode tersuficiente fora e beleza. Tambm h

    aquiavontadedecontrariaressacoisadequeasabedoriaestcom

    osvelhos. Isso muitoforteemfrica. umdosgrandesestere-

    tipos:quando morreumvelhoafricano ardeumabiblioteca e etc.umesteretipoquenocorrespondeaumarealidade?Todos os esteretipos traduzem algumarealidade.Escondem

    que houtrasverdades.Como, porexemplo, queneste momento

    ascrianasquepassarampelaescolatransportamo universo daes-

    crita e tmsabedorias queao perderem-sesoperdas tograves

    comoasdequemmoranatradio.Estaideiadequefricasse

    reencontrana sabedoria tradicional umacoisa gravemente pe-rigosa, porqueparece serum territriocondenadoa s se rever

    no passado. Sem direito modernidade que so estes meninos

    quetransportama lgicada escrita,queso capazesdedara volta

    e dese relembrareme costurarema tradio com o futuro.

    Sente-seespecialmenteprximodo mundodainfncia?OMwanito,comoum meninoqueviveucaladoe aquemessesilncio

    era elogiadona famlia como qualquercoisaquenoerasimples-

    menteumaameaa, haviaalino uma ausnciamas umninhode

    qualquercoisaqueestavaa serfabricado, lembramuitoa minhain-

    fncia.Eueraummidocaladoeosmeuspaisatmechamavam mor-

    co,queumapalavraaquidoNortedePortugal,dazonadoPorto.

    OsseuspaissodoNorte?OmeupaidoPortoeaminhamedoAltoDouro.Chamavam-memorcoepenseiqueestapalavrasediziaemtodoolado,masno.

    Qualfoiolivromaisimportanteparaasuacarreiracomoescritor?Foio GrandeSerto: Veredas, doGuimares Rosa.

    Euestavaaperguntar-lheporumlivroseu.Foi TerraSonmbula,semdvida.

    Pelos prmiosque obtevecomele?Notanto.Poraquiloaqueelemeobrigou.Foiumlivrofeitoemdel-

    rio,contraumaguerraquenaquelemomentoestavapresente.Pensei:

    Euhei-deescreversobreestaguerra.Maspenseiquenoeraposs-

    velescreversobrea guerrasemestarempaz.Efoimuitocuriosopor-

    quecomeceiaescreveraquele livroe jestavaa recebersinaisde queapazestavaaaconteceralgures,vindoatdeforadeMoambique.

    TerraSonmbulafoiescolhidocomoumdos12melhoresromancesafri-canosdosculoXX.Queimportnciatemumadistinodestasparasi?Dessa gosteiparticularmente.Reconheo queesses critrios so

    sempremuitofalveis. Maso factodehaverum jri africano,cons-

    titudo poracadmicosafricanos, queseleccionouesselivro foiuma

    coisaqueme deumuitoorgulho,muitavaidade.

    ForammaisimportantesparaasuacarreiradeescritorosprmiosqueobtevecomoTerraSonmbulaouofactodeterconseguidoedi-taroseuprimeirolivrodeficoemPortugal?Foia publicaoemPortugal.Tinhade ser, obviamente,pelanossa

    Histria.O escritordeAngola, deMoambique,daGuin,deCaboVerde,etc.,percebe isso.Ningum chega lnguainglesa,francesa

    ouespanholasenoforporviadestaplacagiratria.

    ComoqueVozesAnoitecidasfoipublicadoemPortugal?Foiumacidente.Olivrinhoeratofeio,tomaleditado.Atipografia

    emMoambique naquelaalturaeraumdesastre.

    Meadosdosanos80.Sim,saiuem 85,pora.ViajouparaPortugaleestavanumamesacom

    maislivros,ondeaMariaLciaLepeckifocouoolharnaquelelivroto

    feio.Quehorror, oque esta coisa?Pegou,comeou a ler e depois

    publicouumacrticanojornal.OZeferinoCoelholeueassimcomeou

    tudo.curiosocomoumacoisacomeaassimpelanegativa,no?

    Foiofactodeolivrosertofeioquelhedeuumaoportunidade.Acho quesim. [Risos.]

    aleidoscontrriosafuncionar.Exactamente. T

    40 [outubro 2009] revista LER

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