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A GUERRA das SALAMANDRAS 6A PROVA - A Guerra das salamand1 1 3/10/2011 10:40:57

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A GUERRA das

SALAMANDRAS

6A PROVA - A Guerra das salamand1 1 3/10/2011 10:40:57

6A PROVA - A Guerra das salamand2 2 3/10/2011 10:40:57

KAREL ČAPEK

A GUERRA das

SALAMANDRAS

R

R I O D E J A N E I R O • S Ã O PA U L OE D I T O R A R E C O R D

2011

Tradução de Luís Carlos Cabral

6A PROVA - A Guerra das salamand3 3 3/10/2011 10:40:58

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

C24g Čapek, Karel, 1890-1938 A guerra das salamandras / Karel Čapek; tradução de Luís Carlos

Cabral. — Rio de Janeiro: Record, 2011.

Tradução de: Válka s MlokyISBN 978-85-01-08053-0

1. Ficção tcheca. I. Cabral, Luís Carlos II. Título.

11-2543. CDD: 891.863 CDU: 821.162.3-3

Título original:Válka s Mloky

Copyright da tradução © Luís Carlos Cabral, 2011

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados.

Editoração eletrônica: FA Editoração

Design de capa: Fernando Leite

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasiladquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literária desta tradução. Impresso no Brasil

ISBN 978-85-01-08053-0

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6A PROVA - A Guerra das salamand4 4 3/10/2011 10:40:58

SUMáRio

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

PRiMEiRo LivRo: ANDRiAS SCHEUCHZERi

I. As excentricidades do capitão Van Toch . . . . . . . . . 13

II. Os Srs. Golombek e Valenta . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

III. G.H. e seu conterrâneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

IV. O estabelecimento comercial do capitão Van Toch . 56

V. O capitão J. van Toch e seus lagartos amestrados . . 65

VI. Um iate na lagoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

VII. Um iate na lagoa (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . 90

VIII. Andrias Scheuchzeri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

IX. Andrew Scheuchzeri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

X. As festas em Nové Strašecí . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

XI. Sobre os lagartos humanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

XII. O sindicato das salamandras . . . . . . . . . . . . . . . . . 138

6A PROVA - A Guerra das salamand5 5 3/10/2011 10:40:59

SEGUNDo LivRo: o PRoGRESSo DA CiviLiZAÇÃo

I. O Sr. Povondra lê jornal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

II. O progresso da civilização

(História das salamandras) . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

III. O Sr. Povondra volta a ler jornal . . . . . . . . . . . . . . 238

tERCEiRo LivRo: A GUERRA DAS SALAMANDRAS

I. Massacre nas ilhas Cocos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245

II. Conflito na Normandia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253

III. Incidente no canal da Mancha . . . . . . . . . . . . . . . . 259

IV. Der Nordmolch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264

V. Wolf Meynert escreve sua obra . . . . . . . . . . . . . . . . 271

VI. X adverte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278

VII. O terremoto de Louisiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 288

VIII. O Chief Salamander impõe condições . . . . . . . . . . . 295

IX. A conferência de Vaduz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302

X. O Sr. Povondra assume a culpa . . . . . . . . . . . . . . . . 315

XI. O autor fala consigo mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325

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7

PREfáCio

o MoDERNo APoCALiPSE DE ČAPEK

O título acima não é meu. É o de um extenso artigo de Ivan Klíma, escritor tcheco, a respeito de toda a obra de Karel Čapek. Modernidade e apocalipse dariam margem a infinitas digressões sobre evolução e finitude. Descanse, não será o caso. Falarei brevemente da alma. Da alma tcheca. E nem sei por onde começar.

Vivi em Praga dos 11 aos 16 anos. Saí de lá em 1966, an-tes da entrada dos tanques soviéticos, levei 23 anos para voltar e desde então vou sempre que posso. Senti medo uma única vez, a última: a vez em que ensaiei ficar sozinho, olhando pela janela de um hotel que substituíra meu velho lar o triste pátio da infância que ressurgia. A porção eslava de minha alma na fresta. Corri. Entrei no botequim de marinheiros de terra seca. Dei de cara com Van Toch. Muitos, muitos Van Toch. Uma infinidade de sonhos perdidos em cada mesa. Talvez seja esta a principal qualidade da alma tcheca, que chamá-la de eslava seria exacerbar a já incômoda generalização: hoje perdi e vou celebrar, mas amanhã será um novo dia, e celebrarei de novo, chova ou faça sol.

As intempéries políticas, quase sempre impostas de fora, são rotina na vida dos tchecos: Guerra dos Cem Anos, Guerra

6A PROVA - A Guerra das salamand7 7 3/10/2011 10:40:59

dos Trinta Anos, dominação austro-húngara, ocupação alemã, invasão soviética, a longa marginalização da própria língua. O apocalipse sempre à espreita, mais, presente. A violência conforma a alma, radicaliza procedimentos. Não haverá nin-guém mais leal. Não haverá ninguém mais traiçoeiro.

Čapek é montanhês. Nasceu em Malé Svatoňovice, nas montanhas Krkonoše, na fronteira ocidental norte, ao lado da Polônia, filho de médico, e jamais esqueceu suas origens ru-rais. Dášenka, biografia minuciosa de uma cadela, bate Bambi e A dama e o vagabundo, os clássicos de Walt Disney, em ca-pacidade de emocionar. Cresceu em Úpici. Estudou primeiro em Hradec Kralové, Brno e depois filosofia, história da arte, cultura alemã, inglesa e da Bohemia na Universidade de Car-los, em Praga, uma das primeiras da Europa. Passou pela Sor-bonne e a Universidade de Berlim. Aos 25 anos, doutorou-se em filosofia.

É tão eslavo como Jaroslav Hašek e Franz Kafka. Os três são da mesma época. Hašek, do Bravo soldado Svejk, e Kafka, bem, Kafka, nasceram com meses de diferença no mesmo ano de 1883. Čapek, sete anos mais tarde. O primeiro era um boêmio aloprado e do segundo, quem sou eu para falar, a não ser lembrar o fato de ter optado por escrever no peculiar ale-mão que se falava em Praga, coisa que acabou facilitando sua entrada no mundo.

Karel Čapek foi prolixo, escreveu de tudo, algumas vezes em parceria com o irmão três anos mais velho, Josef: literatu-ra infantil, peças, contos, romances, ensaios políticos, crôni-cas para jornais, publicou livros de entrevistas, dirigiu teatro. Morto, expuseram sua correspondência. Foi amigo de T. G. Masaryk, o fundador da Tchecoslováquia. E morreu cedo, de pneumonia, aos 48 anos de idade.

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Levei um susto ao tentar comprar o livro Válka s mloky, este A guerra das salamandras, numa livraria de Praga, a cida-de das livrarias, onde os camelôs não vendem quinquilharias, vendem livros em suas barracas pressionadas por filas. Não foi possível. Não havia. Estava esgotado. Marta Hanzlova e Maša Chvojková, duas amigas queridas, tiveram de ir à luta para me ajudar. E acabaram descobrindo um exemplar surrado de 1939 num sebo centenário.

Čapek, bem mais moço, 65 anos mais moço do que Jules Verne, também se dedicou à ficção científica, à literatura fan-tástica. Tentou empreender a tarefa utópica de inventariar a imaginação. Vejo-o ao lado de Jorge Luis Borges, H. G. Wells, H. P. Lovecraft, Robert Louis Stevenson. Sua peça R.U.R. (Rossum’s Universal Robots) lança a palavra robô, derivada de robota, que poderíamos traduzir por “trabalho forçado”. A guerra das salamandras é um exemplar dessa vertente premo-nitória; a absurda alegoria do que então é iminente, mas ainda não aconteceu: a ascensão do nazismo. É um livro ao mesmo tempo divertido e trágico, uma sátira a respeito dessa boba-gem dramática que é o ser humano, uma espécie que engendra permanentemente seu próprio fim. Traduzi-o do tcheco, mas cercado de muletas: uma péssima tradução para o espanhol, uma excelente ao inglês. E de todo o universo de amparo que a tecnologia proporciona. Meu objetivo é ser fiel ao autor e agradável ao leitor.

Devolvo a palavra a Ivan Klíma:

Čapek foi um escritor de grandes metáforas, fantasias brilhan-tes e visões apocalípticas. Foi um autor que aparentava mirar os acontecimentos do mundo exterior, a disputa ideológica, o conflito entre nações — conflitos de natureza claramente

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impessoal. Mas pode a verdadeira literatura ser desenvolvida a partir de impulsos impessoais, de uma mera necessidade in-telectual de abordar problemas, mesmo os mais importantes? Eu duvido.

Não será difícil concordar com Klíma. No livro que aqui começa, o leitor encontrará uma humanidade profunda — sim, profunda, poço sem fim — que o levará a rir e a refletir.

Luís Carlos Cabral

6A PROVA - A Guerra das salamand10 10 3/10/2011 10:40:59

PRiMEiRo LivRo

R

ANDRiAS SCHEUCHZERi

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I

AS ExCENtRiCiDADES Do CAPitÃo vAN toCH

Se você fosse procurar no mapa a ilhota de Tana Masa, veria que ela fica exatamente na Linha do Equador, um pouco a oes-te de Sumatra. Mas, se estivesse no convés do Kandong Bando-eng e perguntasse ao capitão J. van Toch o que era aquela Tana Masa diante da qual acabara de lançar âncoras, ele praguejaria um pouco e diria depois que era o buraco mais sujo de todas as ilhas de Sunda, ainda mais miserável que Tana Bala e pelo menos tão maldita como Pini ou Banjak; que o único homem, com perdão da palavra, que vive ali — sem contar, é claro, os piolhentos bataques — é um agente comercial que está sempre bêbado, uma mistura de cubano e portuguesa, um sujeito mais ladrão, pagão e porcalhão que toda Cuba e todos os brancos juntos; e que, se há no mundo uma coisa maldita, senhores, é a maldita vida na maldita Tana Masa. Depois disso, provavel-mente você lhe perguntaria por que, então, lançara as malditas âncoras naquele lugar, como se pretendesse ficar ali três maldi-tos dias, e Van Toch resmungaria, irritado, e murmuraria algo do tipo: que o Kandong Bandoeng não navegara até aquele lu-gar apenas por causa da maldita copra do azeite de palma, isso é fácil de entender, e, além do mais, vocês não têm nada a ver com isso e façam o favor, senhores, de tratar de seus próprios

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assuntos. E praguejaria com a fluidez e amplitude que cabe a um velho capitão de navio bem conservado para sua idade.

Mas se, em vez de lhe fazer perguntas impertinentes, você deixasse o capitão Van Toch resmungar e praguejar sozinho, acabaria conhecendo muitas outras coisas. Não dá para per-ceber que o homem precisa desabafar? Deixe-o em paz! Sua amargura acabará encontrando uma via de escape por si só.

— Preste atenção, senhor, aquela gente da nossa Amster-dã, aqueles malditos judeus lá de cima, só sabem dizer uma coisa: “Pérolas, homem! Averigue onde pode haver pérolas. Estão dizendo por aí que as pessoas andam loucas por pérolas ou coisas parecidas!”

O capitão cospe indignado.— É claro! Querem investir dinheiro em pérolas! Isso

acontece porque vocês estão sempre querendo uma guerra ou seja lá o que for. Todo mundo está preocupado com seu di-nheiro. Isso é tudo. E chamam isso de crise, meu senhor!

O capitão Van Toch hesita um momento. Não sabe se de-ve começar a conversar com você sobre questões econômicas. Hoje em dia não se fala de outra coisa. Só que aqui, em Tana Masa, faz muito calor e a sensação de indolência é enorme. O capitão Van Toch faz um gesto com a mão e grunhe:

— É fácil dizer pérolas, meu senhor! No Ceilão, elas se esgotaram há cinco anos; em Formosa, é proibido pescá-las... Mas eles... “Procure novos bancos, capitão Van Toch. Vá até aquelas malditas ilhas, talvez lá encontrem um viveiro com-pleto”...

O capitão assoa o nariz com desprezo em seu lenço azul.— Aquelas ratazanas europeias imaginam que aqui ain-

da é possível encontrar alguma coisa que ninguém conheça.

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Mãe de Deus! São umas mulas! Ainda bem que não querem que eu olhe para o focinho dos bataques para ver se piscam pérolas... Novos bancos? Em Padang há um novo bordel, isso sim, mas novos bancos de pérolas? Senhores, eu conheço estas ilhas melhor do que minhas próprias calças; do Ceilão até a maldita ilha de Cliperton... Se alguém pensa que aqui ainda é possível encontrar alguma coisa lucrativa, então boa viagem, meu senhor! Ando por aqui há trinta anos e agora esses idiotas querem que ainda descubra alguma coisa!

O capitão Van Toch quase se sufoca de raiva ao pensar numa exigência tão ofensiva.

— Que mandem para cá algum novato! Ele descobrirá tantas coisas que ficará boquiaberto! Mas pedir isso a alguém que conhece a região tão bem como o capitão Van Toch... Compreenda, senhor. Na Europa talvez ainda fosse possível descobrir alguma coisa, mas aqui? A gente vem pra cá só pra farejar o que se pode rangar e nem mesmo rangar: o que se pode comprar e vender. Meu senhor, se ainda restasse nestes malditos trópicos alguma coisa que tivesse valor haveria três agentes gesticulando e fazendo sinais com seus lenços imun-dos aos navios de sete nações para que parassem. Assim é a coi-sa, senhor. Eu conheço isto aqui melhor do que os empregados do escritório colonial de Sua Majestade, a rainha, queiram me desculpar.

O capitão Van Toch se esforça para controlar sua justa in-dignação, coisa que consegue depois de praguejar e resmungar durante algum tempo.

— O senhor está vendo aqueles miseráveis folgazões? São pescadores de pérolas do Ceilão, que Deus não me castigue; cingaleses como o Senhor os criou; embora, na realidade, não

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16

consiga compreender por que ele fez uma coisa dessas. Carre-go-os agora comigo, senhores, e quando, às vezes, encontro um pedacinho de litoral onde não esteja escrito “Agência”, “Bat’a Corporation” ou “Escritório Aduaneiro”, atiro-os na água para que procurem pérolas. O menor desses pilantras mergulha até uma profundidade de 80 metros; há pouco, nas ilhas Prince, um sujeito pescou a 90 metros uma manivela de câmera cine-matográfica, meu senhor, mas pérolas? Nem sonhando! Esses cingaleses são uns ambiciosos inúteis. Esta é a minha maldita tarefa, meus senhores: finjo que compro azeite de palma e fico procurando novos viveiros de pérolas. Quem sabe ainda vão querer que eu descubra um continente virgem, não é mesmo? Essa não é uma tarefa apropriada para um honrado capitão da marinha mercante; o Sr. J. van Toch não é nenhum maldito de um aventureiro, não senhor.

E continua falando do mesmo jeito.— O mar é grande e o oceano do tempo não tem fron-

teiras. Cuspa no mar, homem, pra ver que ele nem se mexe; conte-lhe sua história e ele nem se comoverá.

E assim, depois de muitos preparativos e rodeios, chega-mos ao momento em que o capitão J. van Toch, do navio holandês Kandong Bandoeng, lamentando-se e praguejando, subiu em um bote para descer no kampong de Tana Masa, on-de trataria de assuntos comerciais com o agente embriagado, mestiço de cubano e portuguesa.

— Sinto muito, capitão — disse finalmente o mestiço —, mas aqui em Tana Masa não cresce nenhum molusco. Esses bataques imundos — acrescentou, com uma expressão de asco — devoram até medusas. Ficam mais tempo na água do que na terra e as mulheres fedem a peixe. O senhor nem pode

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17

imaginar...! O que eu estava dizendo? Ah, sim! O senhor per-guntava pelas mulheres...

— E não há aqui um pedacinho de litoral onde esses bata-ques não se enfiem na água? — perguntou o capitão.

O mestiço negou com a cabeça:— Não há, a não ser Devil Bay, mas lá não há nada pro

senhor.— E por quê? — Porque ninguém pode ir lá. Posso ajudá-lo em mais

alguma coisa, capitão?— Obrigado. Tem tubarão?— Tubarão e o todo o resto... — balbuciou o mestiço.

— Lugar ruim, senhor. Os bataques não gostariam que al-guém metesse o nariz ali.

— Por quê?— Lá tem diabo, senhor. Diabo marinho.— O que é diabo marinho? Algum tipo de peixe? — Peixe não, senhor — respondeu, evasivo, o mestiço.

— Simplesmente diabo, senhor. Diabos submarinos. Os ba-taques os chamam de tapa. Tapa. Dizem que esses diabos têm uma cidade no fundo do mar. Sirvo-lhe mais bebida?

— E qual é a aparência do tal diabo marinho? O cruzamento de Cuba e Portugal deu de ombros.— Parece diabo, senhor, só isso, é como um diabo. Eu vi

um uma vez, quer dizer, só a cabeça. Estava voltando de Ca-pe Haarlem em um bote... De repente, exatamente diante de mim, uma cabeça surgiu da água...

— Bem, e como era? Parecia o quê?— Bem. A cabeça era, mais ou menos, como a de um ba-

taque, mas completamente calva, senhor.

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— E não podia ser um bataque?— Não era, senhor. Não há bataque que se meta na água

daquele lugar! Além do mais, piscava para mim com as pálpebras inferiores, senhor. — O mestiço tremeu ao se recordar. — As pálpebras inferiores lhe cobrem todo o olho. Era um tapa.

O capitão J. van Toch rodou em seus grossos dedos o co-pinho com vinho de palma.

— E você não estava bêbado? Não estava inteiramente de porre?

— Estava, senhor. Se não estivesse não teria remado até aquele lugar. Os bataques não gostam que alguém moleste os diabos.

O capitão Van Toch balançou a cabeça.— Homem, diabos não existem. E se existissem, seriam

parecidos com os europeus. Talvez fosse um peixe ou coisa parecida.

— Peixe... — gaguejou o mestiço. — Peixe não tem mão, senhor. Eu não sou nenhum bataque, senhor. Frequentei a escola de Bandoeng. Talvez ainda me recorde dos Dez Man-damentos e de outros ensinamentos científicos. Um homem culto sabe distinguir perfeitamente um diabo de um animal. Pergunte aos bataques, senhor.

— Isso é superstição de negro, homem — esclareceu jo-vialmente o capitão, com a superioridade de um homem culto. — Do ponto de vista científico, é uma coisa sem sentido. Os diabos não podem viver na água. O que fariam ali? Você não deve levar a sério a conversa dos nativos, rapaz. Alguém deu a esse golfo o nome de Devil Bay e, desde então, os bataques têm medo. É assim que a coisa é — acrescentou o capitão,

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batendo a mão gorda na mesa —, ali não há nada, rapaz, isso é cientificamente claro.

— É, senhor — concordou o mestiço que frequentara a escola de Bandoeng —, mas nenhum homem equilibrado tem o que fazer em Devil Bay.

O capitão Van Toch ficou vermelho.— Como? — gritou. — Seu cubano sujo, você acha que

eu tenho medo dos seus diabos? Vamos ver! — disse, levantan-do com toda dignidade seus significativos 100 quilos. — Não vou perder meu tempo com você. Estou preocupado com os negócios. Mas lembre-se bem: nas colônias holandesas não existe nenhum diabo; se existisse algum, estaria nas francesas. É lá que poderiam estar! E agora chame o chefe deste maldito kampong.

Não foi preciso esperar muito tempo pelo mandatário. Estava sentado de cócoras ao lado da tenda do mestiço, mas-cando cana-de-açúcar. Era um senhor de certa idade, embora muito mais magro do que os prefeitos europeus costumam ser, e estava nu. Logo atrás dele, mantendo uma distância apro-priada, estava acocorada toda a aldeia (inclusive mulheres e crianças), esperando, naturalmente, para ser filmada.

— Agora me ouça, rapaz — disse o capitão Van Toch em malaio (poderia ter falado também em holandês ou inglês, porque o mui honorável velho bataque não sabia uma palavra de malaio e toda a fala do capitão teve de ser traduzida pelo mestiço de cubano com portuguesa para o bataque; mas, por alguma razão, o capitão considerava o malaio uma língua mais adequada). Ouça, rapaz, estou precisando de alguns rapazes grandes, fortes, valentes que possam vir pescar comigo. Pescar, você entende?

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20

O mestiço traduziu e o prefeito fez que sim com a cabeça, para mostrar que compreendia. Depois se virou para o amplo auditório e teve uma conversa com sua gente, desenvolvida com evidente êxito.

— O chefe disse — traduziu o mestiço — que toda a al-deia vai pescar com o tuan capitão onde ele quiser.

— Está vendo? Diga-lhes, então, que vamos pescar pérolas em Devil Bay.

A resposta levou a um quarto de hora de agitadas discus-sões das quais participou toda a aldeia, principalmente as mu-lheres mais velhas. Por fim o mestiço se virou para o capitão:

— Senhor, eles estão dizendo que não é possível ir a De-vil Bay.

O capitão começou a ficar vermelho.— E por que não?O mestiço deu de ombros.— Porque ali há tapa-tapas. Diabos, senhor.O capitão começou a ficar roxo.— Bem, então lhes diga que se não vierem arrancarei seus

dentes, arrancarei suas orelhas, serão enforcados e tocarei fogo nesse kampong piolhento, está entendendo?

O mestiço traduziu tudo escrupulosamente e de novo se seguiu uma longa discussão. Por fim, dirigiu-se ao capitão:

— Eles estão dizendo, senhor, que vão denunciá-lo à polí-cia de Padang. Vão dizer que tuan os ameaçou... Dizem que há leis que proíbem isso... O prefeito garante que não vai deixar as coisas assim...

O rosto do capitão Van Toch começou a ficar azul.— Bem, então lhe diga — gritou — que é um...E falou sem nem parar para respirar durante bons 11 minutos.

6A PROVA - A Guerra das salamand20 20 3/10/2011 10:40:59

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O mestiço traduziu até onde lhe bastou seu estoque de palavras e, depois de uma longa e efetiva discussão com os bataques, traduziu ao capitão:

— Eles disseram, senhor, que estão dispostos a não levar o assunto às autoridades, mas, a título de multa, tuan capi-tão tem de botar um dinheiro nas mãos do chefe local. Falam — hesitou um momento — em 200 rupias, mas eu acho que é muito... Ofereça 5.

Manchas escuras ameaçaram a tomar o corpo do capitão Van Toch. Primeiro disse que assassinaria todos os bataques do mundo, depois reduziu o castigo a trezentos pontapés e, finalmente, se conformou em dissecar o prefeito para exibi-lo no Museu Colonial de Amsterdã. Os bataques, por sua vez, também foram reduzindo suas exigências, de 200 rupias a uma bomba de ferro com uma roda; no final se conformaram que o capitão, como castigo, desse ao prefeito um isqueiro a benzina.

— Aceite, senhor — tentou convencê-lo o mestiço —, eu tenho três no armazém, mas sem pavio.

E assim foi restabelecida a paz em Tana Masa, mas o capi-tão J. van Toch percebeu que agora o prestígio da raça branca estava em jogo.

R

Ao entardecer, um bote partiu do navio holandês Kandong Bandoeng; levava, entre outros, o capitão J. van Toch, o sueco Jensen, o islandês Gudmundson, o finlandês Gillemainen e dois pescadores de pérolas cingaleses. O bote se dirigiu a Devil Bay.

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22

Às 3 da tarde, no auge da maré baixa, o capitão estava na praia, o bote singrava a uns 100 metros da costa para afastar os tubarões e os dois escafandristas cingaleses esperavam, com as facas preparadas, um sinal para mergulhar na água.

— Bem, você primeiro — disse o capitão, apontando o mais alto dos homens nus. O cingalês pulou na água, deu al-gumas braçadas e depois desapareceu sob a superfície. O capi-tão olhou o relógio.

Quatro minutos e vinte segundos depois, apareceu, cer-ca de 60 metros à esquerda, uma cabeça marrom; com uma pressa paradoxalmente desesperada e paralisada, o cingalês se equilibrava nas pedras; tinha em uma das mãos, meio solta, a faca de abrir ostras e, na outra, uma ostra.

O capitão se aborreceu.— O que está havendo? — disse, secamente.O cingalês continuava deslizando pelas pedras, dando gri-

tos de pavor.— O que aconteceu? — gritou o capitão.— Sahib, sahib! — expeliu finalmente o cingalês, e desa-

bou na praia, respirando com dificuldade.— Sahib, sahib...— Tubarões?— Djins! — soluçou o cingalês. — Diabos, senhor. Milha-

res de diabos! — Enfiava os punhos nos olhos. — Os próprios diabos, senhor!

— Deixe-me ver essa ostra! — ordenou o capitão, e abriu-a com uma faca. Encontrou uma pérola pequena e limpa.

— E você não achou outras dessas?O cingalês tirou três ostras do saquinho pendurado em

seu pescoço.

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23

— Há ostras, senhor, mas são guardadas pelos diabos... Eles ficaram me olhando enquanto eu tentava descolá-las... — Seus cabelos cacheados se eriçaram de espanto. — Sahib, aqui não!

O capitão abriu as ostras. Duas estavam vazias, mas a ter-ceira continha uma pérola do tamanho de uma ervilha, redon-da como uma gota de mercúrio. O olhar do capitão Van Toch ia da pérola ao cingalês desabado no solo.

— Você — disse, hesitando — não quer mergulhar mais uma vez?

O cingalês fez que não com a cabeça, sem palavras.O capitão J. van Toch sentiu na língua uma forte vontade

de praguejar, mas percebeu, com surpresa, que estava falando baixinho, quase suavemente.

— Não tenha medo, rapaz. E qual é o aspecto desses... diabos?

— Parecem crianças pequenas. — O cingalês suspirou. — Têm rabo, senhor, e são altos assim. — Indicou cerca de 1,20 metro acima do chão. — Estavam ao meu redor e olhavam o que eu fazia... Formavam um círculo assim... — O cingalês tremeu. — Sahib, sahib, aqui não!

O capitão Van Toch refletiu por um momento.— E o que mais? Piscam com as pálpebras inferiores ou

de que jeito?— Não sei não, senhor — disse com voz roufenha o cin-

galês. — Há pelo menos 10 mil!O capitão olhou para o outro cingalês. Estava a 1,5 me-

tro de distância e esperava indiferente, com as mãos cruzadas sobre os ombros. O fato é que, quando o sujeito está pelado, não tem outro lugar para colocar as mãos a não ser em seus próprios ombros. O capitão lhe fez, silenciosamente, um sinal,

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e o pequeno cingalês pulou na água. Emergiu depois de três minutos e cinquenta segundos, deslizando nas pedras com su-as mãos escorregadias.

— Saia! — gritou o capitão, mas depois olhou com aten-ção e começou a correr pelas pedras em direção àquelas mãos vacilantes.

Ninguém jamais imaginaria que um homenzarrão daque-les pudesse pular com tanta agilidade. No último momento, agarrou o cingalês por uma mão e arrancou-o da água. Depois, colocou-o sobre as pedras e secou seu suor. O rapaz jazia iner-te; tinha uma ferida na panturrilha, provavelmente causada por alguma pedra, mas fora isso estava ileso. O capitão levan-tou suas pálpebras. Via-se apenas o branco dos olhos voltados para cima. Não tinha nem ostras nem faca.

Nesse exato momento, o bote com a tripulação se aproxi-mou da margem.

— Senhor — gritou o sueco Jensen —, tem tubarão aqui! O senhor vai continuar pescando?

— Não — respondeu o capitão —, venham recolher estes dois.

Quando voltavam ao navio, Jensen chamou a atenção do capitão Van Toch.

— Veja, senhor, como ficou raso de repente. Vai direta-mente até a margem — apontava enfiando o remo na água. — Como se houvesse algum dique sob a água.

R

O pequeno cingalês só recuperou a consciência quando che-gou ao navio. Ficou sentado com os joelhos sob o queixo e

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todo o seu corpo tremia. O capitão mandou as pessoas embora e se estirou em seu assento.

— Ande, desembuche — disse —, o que você viu?— Djins, sahib — cochichou o pequeno cingalês. — Suas

pálpebras também começaram a tremer e todo seu corpo ficou coberto de pequenas erupções, como as da pele de ganso.

O capitão Van Toch tossiu.— E como eles são...?— Como... Como... Os olhos do cingalês voltaram a exibir uma faixa branca.

O capitão Van Toch, com uma inesperada agilidade, esbofe-teou-o nas duas faces com as palmas e o dorso da mão para fazê-lo voltar a si.

— Obrigado, sahib... O pequeno cingalês suspirou, e no branco de seus olhos flutuaram de novo as meninas.

— Tudo bem com você? — Sim, sahib.— Você viu ostras?— Sim, sahib. O capitão Van Toch continuou seu interrogatório cerrado

com não pouca paciência e eficiência.— Sim, e vi demônios.— Quantos?— Milhares e milhares. São do tamanho de uma criança

de 10 anos, senhor, e quase negros. Nadam na água e andam levantados no leito do mar. Com as duas patas, como o se-nhor ou eu, senhor, mas ao mesmo tempo vão contorcendo os corpos, assim, assim, sempre assim, assim... Sim, senhor, eles também têm mãos, como as pessoas. Não, não são garras, pare-cem mais mãos de crianças. Não, sahib, não têm chifres nem

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são peludos. Sim, a cauda é um pouco parecida com a dos peixes, mas sem barbatanas. E uma cabeça redonda como a dos bataques. Não, não diziam nada, senhor, mas era como se estalassem a língua.

Quando o cingalês estava descolando as ostras a cerca de 16 metros de profundidade, sentiu nas costas um toque — pa-reciam dedos frios. Olhou ao redor e viu centenas e centenas.

— Centenas e centenas, senhor, nadando ou em pé nas rochas, e todos observavam o que eu fazia.

Então largou a faca e as ostras e tentou voltar à superfície. No caminho tropeçou em alguns diabos que nadavam acima dele. E não se lembrava de mais nada do que acontecera de-pois.

O capitão Van Toch contemplou pensativo o trêmulo e pequeno escafandrista. “Este rapaz nunca mais servirá para nada”, pensou, “de Padang o enviarei a sua casa no Ceilão.” Resmungando e grunhindo, foi ao seu camarote. Quando lá chegou, deixou cair de um saquinho de papel duas pérolas sobre a mesa. Uma era pequenina como um grão de areia, e a segunda, uma ervilha, com um brilho prateado e meio rosado. O capitão do navio holandês bufou e tirou do armário seu uísque irlandês.

R

Às 6 da manhã fez o bote levá-lo de novo à aldeia e diretamen-te ao mestiço de cubano e portuguesa. “Grogue”, disse, e essa foi a única palavra que pronunciou. Sentou-se na varanda de ferro corrugado, sustentou nos dedos gordos o copo de vidro grosso e bebeu e cuspiu olhando fixamente, sob suas espes-

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sas sobrancelhas, as magras galinhas amareladas que bicavam Deus sabe o quê no sujo e pisoteado pátio, no meio de pal-meiras. O mestiço evitava dizer qualquer coisa, limitando-se a servir bebida. Pouco a pouco, os olhos do capitão se encheram de sangue e seus dedos começaram a se mexer com dificulda-de. Já anoitecia quando se levantou e tirou as calças.

— Já vai dormir, capitão? — perguntou cortesmente o mestiço de demônio e diabo.

O capitão levantou um dedo no ar.— Eu me espantaria — disse — se houvesse no mundo

algum diabo que eu ainda não conhecesse. Ouça, onde fica o maldito noroeste?

— Ali. — O mestiço apontou. — Aonde vai, capitão?— Para o inferno! — rosnou o capitão J. van Toch. — Vou

ver Devil Bay.

R

As excentricidades do capitão J. van Toch começaram naquela noite. Voltou ao kampong ao amanhecer e não disse palavra. Fez-se levar ao navio e se trancou em seu camarote até que anoiteceu. Mas isso não pareceu estranho a ninguém, porque o Kandong Bandoeng tinha muito a carregar da bendita ilha de Tana Masa (copra, pimenta, cânfora, guta, azeite de palma, ta-baco e força de trabalho). Mas, quando lhe anunciaram à noite que a mercadoria já estava embarcada, só resmungou e disse:

— Um bote! Vamos ao kampong!E só voltou ao amanhecer. O sueco Jensen, que o ajudou a

subir ao convés, perguntou-lhe solenemente, por cortesia:— Então continuaremos hoje a viagem, capitão?

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O capitão se virou como se tivessem beliscado seu traseiro.— E o que você tem a ver com isso? Cuide de seus maldi-

tos assuntos.O Kandong Bandoeng ficou ancorado durante todo o dia a

uma milha de distância da costa de Tana Masa, sem fazer nada. Ao anoitecer, o capitão saiu de sua cabine e ordenou:

— Um bote! Vamos ao kampong!O pequeno Zapatis ficou olhando para ele com um olho

cego e o outro piscando.— Rapazes — gaguejou —, ou o nosso velho tem uma

garota ou enlouqueceu completamente. O sueco Jensen franziu o cenho. — O que você tem a ver com isso? — explodiu com Zapa-

tis. — Cuide de seus malditos assuntos!Depois, com a ajuda do islandês Gudmundson, baixou

um pequeno bote e remaram em direção a Devil Bay. Ficaram com o bote ao lado dos pedregulhos e esperaram para ver o que aconteceria. Na baía, o capitão andava de um lado ao ou-tro e parecia esperar alguém. Ao cabo de um momento, parou e chamou: ts, ts, ts...

— Olhe — disse Gudmundson, apontando para o mar, naquele momento vermelho e dourado devido ao pôr do sol.

Jensen contou duas, três, quatro, seis barbatanas, afiadas como punhais, que se dirigiam a Devil Bay.

— Maldição — exclamou Jensen. — Veja a quantidade de tubarões que temos aqui!

A cada momento desaparecia um par de barbatanas, uma cauda se agitava na superfície da água e formava-se logo um re-demoinho. Então o capitão Van Toch começou a pular furio-samente na praia, praguejando e ameaçando os tubarões com

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os punhos. O crepúsculo tropical chegou rapidamente e a lua brilhou sobre a ilha. Jensen pegou os remos e trouxe o bote a uns 200 metros da margem. O capitão se sentara nas pedras e fazia ts, ts, ts...

Alguma coisa se movia em volta dele, mas não dava para reconhecer bem o que era.

— Parecem focas — pensou Jensen —, mas as focas se arrastam de outra maneira.

Saíam da água no meio das pedras e claudicavam como pinguins. Jensen remou silenciosamente e se aproximou cerca de 100 metros do capitão. Sim, o capitão dizia alguma coisa que só o diabo poderia entender. Parecia malaio ou tâmil. Esti-cava as mãos como se atirasse algo àquelas focas (“Mas não são focas”, dizia Jensen para si mesmo) e, ao mesmo tempo, falava com elas em chinês ou malaio.

Naquele momento, um remo escorregou das mãos de Jensen e esbofeteou a água. O capitão ergueu a cabeça, le-vantou-se, deu uns trinta passos, chegou à água e logo uma coisa começou a brilhar e a explodir. O capitão disparava sua browning em direção ao bote. Quase simultaneamente se ouviu um sussurro no golfo e, depois, um ruído, um espirro, como se milhares de focas tivessem pulado de repente na água. Mas Jensen e Gudmundson já haviam pegado os remos e afas-taram o bote às pressas, até ficar escondido atrás das rochas mais próximas. Quando voltaram ao navio, não disseram nada a ninguém. Os nórdicos sabem de fato ficar calados quando é necessário. O capitão chegou de madrugada. Seu aspecto era mal-humorado e cruel, mas não disse nada. Só quando Jensen o ajudou a subir a bordo os dois pares de olhos azuis se encon-traram em um olhar frio e fixo.

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— Jensen — disse o capitão. — Sim, senhor. — Partiremos hoje. — Sim, senhor. — Você vai pegar seus papéis em Surabaya.— Sim, senhor. E basta. Naquele dia o Kandong Bandoeng navegou para

Padang. Dali o capitão J. van Toch enviou a sua companhia de Amsterdã um pacotinho segurado em 1,2 mil libras esterli-nas e, ao mesmo tempo, um pedido telegráfico de um ano de férias. Urgentes razões de saúde e coisas assim. Depois peram-bulou por Padang até encontrar a pessoa que procurava. Era um selvagem de Bornéu, um daiaque, um caçador de tubarões por quem os viajantes ingleses às vezes se interessavam só pelo prazer de ver como os matava. Os daiaques ainda trabalhavam à moda antiga, armados apenas com um longo facão. Era, cer-tamente, um canibal, mas cobrava um preço fixo: 5 libras por tubarão e comida. Fora isso, causava uma impressão terrível: tinha as pernas, os braços e o peito marcados pelos tubarões; dentes de tubarão enfeitavam suas narinas e ouvidos. E era chamado de Shark, o tubarão.

O capitão J. van Toch se estabeleceu na ilha de Tana Masa com esse daiaque.

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II

oS SRS. GoLoMbEK E vALENtA

Era um verão muito quente, mais quente ainda na pesada re-dação; um daqueles verões em que não acontece nada, mas absolutamente nada, nos quais não se faz política e nem sequer existe uma crise europeia. E, no entanto, também nessa época os leitores de jornais, deitados em tédio agoniado na beira das praias ou sob as sarapintadas sombras das árvores, desmorali-zados pelo calor, a natureza, a tranquilidade campestre e, em resumo, pela vida simples e saudável das férias, esperam a cada dia, para se decepcionar depois, jornais que tragam algo de novo, refrescante, algum crime, uma guerra ou um terremoto. Enfim, Alguma Coisa. E, quando isso não chega, abandonam os diários amargurados, dizendo que naqueles jornais não há mais nada, absolutamente Nada para se ler, e que não irão mais comprá-los.

E, enquanto isso, cinco ou seis indivíduos estão sentados na redação, completamente abandonados, pois os outros cole-gas também saíram de férias. Afastam com desprezo os jornais, queixando-se de que em toda a edição não há nada, absolu-tamente nada que valha a pena. E da linotipia sai o mestre tipógrafo dizendo, em tom de reprovação:

— Senhores, senhores, até agora não temos um artigo de fundo para amanhã!

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— Bem, então publique aquele artigo sobre a situação eco-nômica da Bulgária — sugere um dos senhores abandonados.

O mestre tipógrafo suspira pesadamente:— Mas quem vai ler uma coisa dessas, senhor redator? De

novo não haverá Nada no jornal que valha a pena Ler. Os seis senhores abandonados levantam os olhos para o te-

to, como se nele pudessem descobrir Algo que se pudesse Ler. — Se de repente acontecesse Alguma Coisa... — sugere um.— Ou se tivéssemos alguma reportagem interessante...

— acrescenta outro. — A respeito de quê?— E eu sei lá!— Ou se fosse inventada uma nova vitamina — resmunga

um terceiro.— Agora no verão? — replica o quarto. — Homem, as

vitaminas são objetos didáticos. Pegariam melhor no outono, quando as aulas recomeçarem...

— Meu Deus do céu, que calor! — boceja o quinto. — A gente poderia publicar alguma coisa sobre a região polar.

— Mas o quê?— Bem, algo como aquela história do esquimó Welzl. De-

dos gelados, gelos perpétuos e coisas assim.— Falar é fácil — intervém o sexto —, mas de onde vamos

tirar isso?Um silêncio desesperançado se espalha pela redação.— Eu estive domingo em Jevičko — disse, hesitando, o

senhor tipógrafo.— E daí? — Parece que está passando férias lá um tal de capitão

Vantoch. Dizem que nasceu em Jevičko.

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— Qual Vantoch? — Um gordo. Dizem que esse Vantoch é capitão de um

navio. Dizem que pescou pérolas em algum lugar. O Sr. Golombek olhou para o Sr. Valenta.— E onde mesmo ele pescou pérolas?— Em Sumatra e no mar das Celebes... Enfim, pros lados

de lá. Parece que viveu ali por uns trinta anos.— Homem, não é uma má ideia — disse o Sr. Valenta.

— Poderíamos fazer uma reportagem formidável. Vamos, Go-lombek?

— Bem, podemos tentar — decide o Sr. Golombek, des-cendo da mesa em que está sentado.

R

— É aquele senhor ali — disse o hospedeiro de Jevičko. No jardim, perto das mesas, esparramava-se em seu assento um homem gordo com um boné branco de marinheiro; bebia cer-veja e, pensativo, garatujava com seu gordo dedo indicador em uma mesa. Os dois senhores se dirigiram a ele.

— Redator Valenta. — Redator Golombek.O senhor gordo ergueu a vista.— What? O quê?— Sou o redator Valenta.— E eu, o redator Golombek. O senhor gordo se levantou com dignidade.— Capitão J. van Toch. Very glad. Sentem-se, rapazes.Os dois senhores se sentaram com prazer e puseram diante

de si blocos de anotação.

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— O que vão beber, rapazes? — Refresco de framboesa — disse o Sr. Valenta.— De framboesa? — repetiu, incrédulo, o capitão. — Por

quê? Garçom! Traga-lhes cerveja. Bem... E o que querem? — disse, apoiando o cotovelo na mesa.

— É verdade que o senhor nasceu aqui, Sr. Vantoch?— Sim. Nasci.— Por favor, diga-me como chegou ao mar.— Via Hamburgo. — E há quanto tempo o senhor é capitão? — Há vinte anos, rapazes. E tenho a documentação aqui

— disse, batendo energicamente no bolso do peito —, posso mostrá-la.

O Sr. Golombek tinha vontade de ver os papéis do capi-tão, mas se conteve.

— Nesses vinte anos, capitão, o senhor deve ter visto uma boa parte do mundo, não é mesmo?

— Sim, uma boa parte, sim.— E onde esteve?— Em Java, Bornéu, nas Filipinas, ilhas Fiji, Salomão, Ca-

rolinas, em Samoa. Damned Cliperton Island. A lot of damned islands, rapazes. Por quê?

— Só porque é interessante. Gostaríamos de ouvi-lo, sabe?— É isso! Então só porque é interessante, não é?O capitão fixou neles seus olhos azuis esmaecidos.— Vocês são da p’lis, quero dizer, da polícia, não é?— Não, capitão, somos do jornal.— Ah, do jornal! Repórteres, hem? Então podem escrever:

capitão J. van Toch, capitão do navio Kandong Bandoeng.— Como disse?

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— Kandong Bandoeng, porto Surabaya. Objeto da viagem: vacances... Como se diz isso?

— Férias.— Ah, diabos, férias. Ponham então no jornal quais foram

os navios que atracaram. E agora escondam seus papéis, meus jovens. Your health.

— Sr. Vantoch, viemos atrás do senhor para que nos conte algo da sua vida.

— E por quê?— Vamos publicar no nosso jornal. O público tem muito

interesse em ler sobre países distantes e tudo o que neles viu e viveu um compatriota, um tcheco natural de Jevičko.

O capitão assentiu com a cabeça.— É verdade, rapazes, sou o único captain de toda Jevičko.

Assim é a coisa. Dizem que também há aqui um capitão de... de... de cadeira de balanço. Mas eu acho — acrescentou, con-fidencialmente — que não é um capitão de verdade. Isso se mede pela tonelagem, vocês sabem?

— E quanto pesava o seu navio?— Doze mil toneladas, rapazes.— Então o senhor é um grande capitão. — Sim, grande — disse o capitão com dignidade. — Ra-

pazes, vocês têm dinheiro?Os dois senhores se olharam um pouco confusos.— Temos pouco. O senhor está precisando, capitão?— Sim. Precisaria.— Vamos ver. Se nos contar muitas coisas, escreveremos

nos jornais e o senhor receberá dinheiro por isso.— Quanto?

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— Talvez... Alguns milhares... — disse, magnânimo, o Sr. Golombek.

— De libras esterlinas? — Não, de coroas tchecoslovacas.O capitão J. van Toch balançou a cabeça.— Isso eu não quero, rapazes, eu mesmo tenho muitas.Tirou do bolso das calças um grande pacote de cédulas.

“See?” Depois apoiou o cotovelo na mesa e se inclinou para os dois senhores.

— Senhores, eu posso lhes oferecer um big business. Como se diz?

— Um grande negócio.— Sim, um grande negócio. Mas vocês teriam que entrar

com 15... Esperem! Quinze, 16 milhões de coroas. O que lhes parece?

Os dois senhores se olharam outra vez intranquilos. Os jornalistas convivem, naturalmente, com as mais extraordiná-rias categorias de loucos, vigaristas e inventores.

— Esperem — disse o capitão —, posso lhes mostrar algo. — Enfiou os dedos grossos no bolso do jaleco, pescou alguma coisa e colocou-a na mesa. Eram cinco pálidas pérolas rosadas do tamanho de caroços de cereja. — Vocês entendem de pé-rolas?

— Que valor podem ter? — O Sr. Valenta suspirou.— Ja, lots of money, rapazes. Carrego estas apenas para exi-

bir. São amostras. Bem, então vocês viriam comigo? — disse, oferecendo sua mão larga por cima da mesa.

O Sr. Golombek suspirou.— Sr. Vantoch, tanto dinheiro...— Pare! — interrompeu-o o capitão. — Já sei, você não

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me conhece... Mas pergunte pelo capitão Van Toch em Sura-baya, na Batávia, em Padang! Onde quiser! Vá e pergunte, e todos dirão: “Yes, captain Van Toch, he is as good as his word.”

— Sr. Vantoch, acreditamos no senhor — protestou o se-nhor Golombek —, mas...

— Espere! — ordenou o capitão. — Já sei, você não quer dar o seu belo dinheirinho assim sem mais nem menos. Isso é elogiável, rapaz. Mas você vai investir num navio, see? Você compra o tal do navio, torna-se então um ship-owner e poderá vir comigo. Yes, poderá vir e ver como eu o administro. Mas o dinheiro que a gente fizer ali será fifty fifty. É um negócio honesto, não é mesmo?

— Mas, Sr. Vantoch — conseguiu dizer finalmente o Sr. Golombek, um pouco agoniado —, o caso é que nós não te-mos tanto dinheiro!

— Ah, então a coisa é diferente — disse o capitão. — Sorry. Agora fico sem saber, senhores, por que vieram me procurar.

— Para que o senhor nos conte histórias, capitão. O se-nhor deve ter tanta experiência!

— Isso sim, rapazes. Eu tive experiências malditas. — Naufragou alguma vez? — O que está querendo dizer? Um ship-wrecking? É claro

que não! O que você está pensando? Se me der um bom barco, nada de ruim poderá lhe acontecer. Pode pedir minhas refe-rências em Amsterdã. Vá até lá e pergunte.

— E como são os nativos? O senhor conheceu muitos na-tivos?

O capitão Van Toch sacudiu a cabeça.— Isso não é nada para gente culta. Não vou contar.— Então nos conte uma coisa diferente.

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— Sim, contar... — grunhiu o capitão, incrédulo. — E depois vocês vendem a história a uma companhia qualquer e ela manda seus navios para lá. Eu lhe digo, my lad, as pessoas são grandes ladras. E os maiores ladrões são aqueles banquei-ros de Colombo.

— O senhor esteve muitas vezes em Colombo?— Sim, com muita frequência. E também em Bangkoc e

em Manila. Jovens — disse de repente —, eu sei de um navio muito arrumado e muito barato. Está em Roterdã. Venham vê-lo. Roterdã fica aqui ao lado. — E apontou com o indica-dor por cima do ombro. — Hoje em dia os navios estão muito baratos, a preço de ferro-velho. Esse é um navio de uns 6 anos, com motor a diesel. Querem vê-lo, rapazes?

— Não podemos, Sr. Vantoch.— Vocês são pessoas muito estranhas! — O capitão suspi-

rou, e assoou o nariz ruidosamente no seu imenso lenço azul-celeste. — E não conhecem alguém que queira comprar um navio?

— Aqui em Jevičko? — Sim, aqui ou perto daqui. Eu gostaria que esse negócio

fosse feito por alguém da minha terra.— O senhor é muito bondoso, capitão.— Sim, porque os outros são desonestos, e, além do mais,

não têm dinheiro. Vocês, pessoas dos newpapers, devem co-nhecer os peixes gordos daqui, banqueiros, ship-owners... Co-mo se diz, senhores de navio?

— Armadores. Não, não conhecemos ninguém, Sr. Vantoch.— É uma pena! — Exclamou, contrariado, o capitão.O Sr. Golombek se lembrou de uma coisa.— O senhor por acaso conhece o Sr. Bondy?

6A PROVA - A Guerra das salamand38 38 3/10/2011 10:41:00

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— Bondy?... Bondy?... — ficou pensando o capitão. — Espere! Devo conhecer este nome... Bondy. Sim, em Londres há uma Bond Street onde vive gente que é de fato rica. Esse Sr. Bondy não tem algum tipo de comércio na Bond Street, rapazes?

— Não, senhor, ele vive em Praga e acho que nasceu em Jevičko.

— Diabos! — exclamou alegremente o capitão. — Você tem razão, rapaz. Aquele sujeito que tinha na praça do merca-do uma lojinha que vendia de tudo... Sim, Bondy... Como se chamava?... Max, Max Bondy. Quer dizer que ele agora tem um comércio em Praga?

— Não, o senhor está falando do pai. O filho é Bondy, G.H. Presidente G.H. Bondy, capitão.

— G.H. — o capitão negou com a cabeça—, aqui não havia nenhum G.H. Talvez seja Gustl Bondy... Mas ele não era nenhum presidente. Um judeuzinho sardento... Não pode ser ele.

— Deve ser sim, Sr. Vantoch. Faz muitos anos que o se-nhor não o vê.

— Você tem razão. Muitíssimos anos. Pode ser que esse Gustl já tenha virado adulto. E o que ele faz?

— É presidente do Conselho de Administração da MEAS, sabe? Aquela fábrica imensa que constrói caldeiras e coisas pa-recidas. E, além disso, presidente de umas vinte sociedades e cartéis. Um grande senhor, capitão Vantoch. É chamado de capitão da nossa indústria.

— Capitão? — estranhou o capitão Van Toch. — Então não sou o único capitão de Jevičko! Diabos! Então o Gustl também é captain! Preciso encontrá-lo. E ele tem dinheiro?

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— Sim, dele próprio. Rios de dinheiro, Sr. Vantoch! Deve ter centenas de milhões. É o homem mais rico do país.

O capitão Van Toch estava pensativo.— E também captain!... Muito obrigado, rapazes. Vou na-

vegar até ele. Sim, Gustl Bondy, I know. Era um judeuzinho pequeno... E agora é o captain G.H. Bondy. Sim, sim, o tem-po passa. — Suspirou melancolicamente.

— Senhor capitão, temos que partir agora. Não podemos perder o trem noturno.

— Eu os acompanharei até o porto — disse o capitão por força do hábito, e começou a levantar as âncoras.

— Fico feliz de terem vindo, senhores. Conheço um reda-tor em Surabaya, um bom sujeito, ja, good friend of mine. Um tremendo pinguço, meus jovens. Se vocês têm interesse, posso arranjar uma vaga para vocês no jornal de Surabaya. Não que-rem? Está bem, rapazes!

Quando o trem começou a andar, o capitão J. van Toch agitou, lentamente e com solenidade, seu imenso lenço azul. Ao abri-lo, caiu na areia uma grande pérola de formato irregu-lar. Uma pérola que nunca ninguém encontrou.

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III

G.H. E SEU CoNtERRâNEo

É coisa sabida que, quanto mais importante é uma pessoa, há menos coisas escritas na placa de sua porta. Um senhor como o velho Max Bondy, de Jevičko, tinha cartazes sobre sua loja, ao lado das portas e nas janelas, e eles diziam que ali estava Max Bondy, comerciante de todo tipo de artigos — enxovais para noivas, batismos, toalhas, toalhas de mesa e lençóis, ho-landas e algodões, tecidos de primeira qualidade, sedas, corti-nas, cortininhas, passamanaria e tudo o que é necessário para costurar. Casa fundada em 1885.

Seu filho G.H. Bondy, capitão de indústria, presidente da sociedade MEAS, conselheiro da Câmara de Comércio, conselheiro da Bolsa, vice-presidente da Confederação das In-dústrias, cônsul honorário da República do Equador, membro de muitos conselhos de administração etc. etc., tinha em sua porta uma simples placa de vidro negro com letras douradas que dizia simplesmente:

b o n d y

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Nada mais. Apenas Bondy. Há outros que escrevem em suas portas Julius Bondy, representante da firma General Motors, ou Philosophy Dr. Ervin Bondy ou S. Bondy e Cia. Mas há um único Bondy que é simplesmente Bondy, sem nenhuma indicação adicional. (Acho que o papa também tem escrito em sua porta apenas Pio, sem nenhum título nem número. E Deus não exibe uma placa nem na Terra nem no céu. Você já deve saber, homem, você já deve saber que Ele vive ali! Mas isso não vem ao caso, e fica mencionado apenas entre parênteses.)

Era um dia de calor angustiante quando parou diante da-quela porta um senhor de boné branco, boné branco de ca-pitão de Marinha, e o homem, esse, enxugou o pescoço com um lenço azul que era dele. “Maldita casa de nobres”, pensou o homem, e, um pouco inseguro, apertou o botão de latão da campainha.

Veio então o porteiro Povondra, que mediu com os olhos aquele homem imenso dos pés aos galões do boné e disse, com certa reserva:

— O que deseja? — Escute, rapaz — ressoou a voz do cavalheiro —, aqui

vive um tal de Sr. Bondy?— O senhor deseja...? — perguntou friamente o Sr. Po-

vondra. — Diga-lhe que o captain J. van Toch, de Surabaya, quer

falar com ele. Sim — disse, se lembrando —, aqui está meu cartão. — E entregou um cartão de visita ao Sr. Povondra, no qual, sob uma âncora, estava impresso o seguinte:

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O Sr. Povondra inclinou a cabeça e hesitou por um mo-mento. “Devo dizer que o Sr. Bondy não está em casa? Ou que sinto muito, mas o senhor Bondy está participando neste exato momento de uma reunião importante?” Há visitas que devem ser anunciadas, e outras das quais um porteiro eficiente se desembaraça sozinho. O Sr. Povondra sentiu uma aflitiva ausência da intuição que sempre o ajudara em casos semelhan-tes. Aquele cavalheiro gordo podia ser incluído na já famosa classe de indivíduos que não precisam ser anunciados? Não parecia nem um agente comercial nem funcionário de alguma sociedade beneficente.

Enquanto isso, o capitão J. van Toch bufava e enxugava a testa com seu lencinho de bolso azul, piscando seus olhos pálidos, também azuis. O Sr. Povondra resolveu de repente assumir toda a responsabilidade. “Por favor, por aqui”, disse, “vou anunciá-lo com prazer.”

O captain J. van Toch enxugou a testa com o lenço azul e admirou o vestíbulo.

— Diabos! O Gustl tem tudo organizado. Parece o salão de um daqueles barcos que navegam de Roterdã à Batávia! Que

Captain J. van toCh

E. I. & P. L. Co. S. Kandong Bandoeng

Surabaya Naval Club

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dinheirama deve custar tudo isto! E naquela época não passava de um judeuzinho sardento! — admirava-se o capitão.

Enquanto isso, G. H. Bondy lia, surpreso, o cartão do ca-pitão.

— O que será que ele quer aqui? — perguntou. — Não sei, senhor — resmungou respeitosamente o Sr.

Povondra.O Sr. Bondy ainda tinha o cartão entre os dedos. A âncora

de um navio enfeitado com relevos. Capitão J. van Toch, Su-rabaya. “Onde fica mesmo Surabaya? Não é em algum lugar de Java?” O Sr. Bondy imagina uma coisa estranha e distante. “Kandong Bandoeng... isso soa como batidas de gongo. Sura-baya. E hoje está fazendo mesmo uma temperatura Surabaya, tropical...”

— Traga-o! — ordenou o Sr. Bondy. Um homem imenso, com um boné de capitão da Mari-

nha, apareceu na porta e cumprimentou-o.G. H. Bondy foi ao seu encontro.— Very glad to meet you, captain. Please, come in. — Olá, olá, Sr. Bondy! — exclamou prazerosamente o

captain.— O senhor é tcheco? — admirou-se o Sr. Bondy.— Sim, tcheco. Sr. Bondy, nós nos conhecemos desde

Jevičko. Mercearia Vantoch, do you remember?— É verdade, é verdade — alegrou-se ruidosamente Bon-

dy, mas sentindo uma espécie de decepção (Então ele não é holandês!).

— Sim, a mercearia Vantoch, ficava na praça, não é mes-mo? O senhor não mudou muito, Sr. Vantoch. É o velho de sempre! Então como vão as coisas, como está o armazém?

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— Thanks — respondeu o capitão atenciosamente. — Faz tempo que papai se foi... Como se diz?

— Morreu? Ora, ora! É verdade... Você deve ser filho dele... — Os olhos do senhor Bondy se animaram com a repentina recordação. — Homem de Deus! Você não é aquele Vantoch com quem eu brigava em Jevičko quando éramos meninos?

— Ja, esse sou eu, Sr. Bondy — confirmou o capitão com seriedade. — Exatamente por isso meus pais me despacharam para Moravská Ostrava.

— A gente brigava com muita frequência, mas o senhor era mais forte do que eu — reconheceu esportivamente o Sr. Bondy.

— Sim, esse era eu. O senhor era um judeuzinho fracote e levou muita palmada na bunda... Muita!

— É verdade, muita pancada — recordou G. H., comovi-do. — Bem, sente-se, conterrâneo. O senhor é muito amável por ter se lembrado de mim. Como foi isso?

O capitão Van Toch se sentou dignamente no sofá de cou-ro e pôs o boné no chão.

— Estou aqui de férias, Sr. Bondy. Sim, é assim. That’s so.— O senhor se lembra — disse, embriagando-se nas re-

cordações, o Sr. Bondy — como gritava quando me perseguia: “Judeu, judeu, os demônios virão buscá-lo”?

— Ja — disse o capitão, e trombeteou comovido em seu lenço azul. — Ah, sim, que tempos mais belos aqueles, rapaz! O que vai se fazer! O tempo voa. Agora somos dois captains e pessoas de idade.

— É verdade, o senhor é capitão — lembrou o Sr. Bondy. — Quem diria! Captain of long distances... Não é assim que se diz?

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— Yah, sir. A highseaer. East India and Pacific Lines, sir.— Bela profissão! — suspirou o Sr. Bondy. — Eu trocaria

agora mesmo de vida com o senhor, capitão. Precisa me contar muitas coisas.

— É isso o que eu quero — animou-se o capitão. — Gos-taria de lhe contar algo, Sr. Bondy. Uma coisa muito interes-sante, meu jovem.

O capitão Van Toch olhou intranquilo ao seu redor.— Está à procura de alguma coisa, capitão? — Ja, o senhor não bebe cerveja, Sr. Bondy? A viagem de

Surabaya a Praga me deu uma sede imensa.O capitão começou a escarafunchar nos imensos bolsos de

suas calças e tirou um lenço azul, um saquinho de pano com algo dentro, uma bolsa de tabaco, uma navalha, um compasso e um maço de cédulas bancárias.

— Eu gostaria de mandar alguém comprar cerveja. Quem sabe esse steward que me trouxe a essa cabine...

O Sr. Bondy tocou a campainha.— Deixa pra lá, capitão. Enquanto espera, acenda um des-

tes charutos.O capitão pegou um puro com um anel negro e dourado

e cheirou-o.— Tabaco de Lombok. Ali há grandes ladrões, para dizer

a verdade.E depois, diante dos olhos horrorizados do Sr. Bondy, es-

magou o caríssimo puro em sua potente palma e enfiou as migalhas em seu cachimbo.

— Sim, Lombok ou Sumba.O Sr. Povondra surgiu na porta.— Traga cerveja — ordenou o Sr. Bondy.

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O Sr. Povondra levantou as sobrancelhas.— Cerveja? Quantas?— Um galão — grunhiu o capitão, esmagando o fósforo

aceso no tapete. — Em Áden fazia um calor terrível, rapaz. Tenho uma novidade para lhe contar, Sr. Bondy. Das Sunda Islands, see? Ali é possível fazer um negócio formidável. A big business. Mas, para isso, teria de lhe contar toda... Como se diz? Story, não é?

— História.— Ja. É uma história magnífica, senhor. Espere. — O ca-

pitão cravou no teto os olhos azuis de miosótis, a não-te-es-queças-de-mim. — Não sei por onde começar...

(“Outra vez outro negócio”, pensou G. H. Bondy. “Deus meu, que chateação! Ele vai dizer que poderia exportar má-quinas de costura para a Tasmânia ou caldeiras a vapor e al-finetes para as ilhas Fiji. Negócio formidável! Já sei... Foi por isso que veio. Ao demônio! Eu não sou nenhum lojista. Tenho fantasias. Sou um poeta, à minha maneira. Marinheiro, fale das Sindibad, de Surabaya ou das ilhas Fênix. Não foi atraído pela Montanha Magnética, o pássaro Noh não o levou ao seu ninho? Você não está voltando com um carregamento de péro-las, canela e bezoar? Vamos lá, homem, comece a mentir!”)

— Bem, acho que vou começar falando daqueles escor-piões — anunciou o capitão.

— Que escorpiões? — admirou-se o financista Bondy.— Bem, aqueles... Como se diz?... Lizards.— Lagartos?— Ja, diabos, lagartos. Ali há uns lagartos, Sr. Bondy...— Onde?

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— Em uma daquelas ilhotas. Não posso dizer seu nome, rapaz. É um grande segredo, worth of millions. — O capitão Van Toch enxugou a testa com o lenço. — Diabos, onde está a tal da cerveja?

— Já vão trazê-la, capitão.— Ja. Está bem. Para o seu governo, Sr. Bondy, os lagartos

são animais muito simpáticos e muito bons. Eu os conheço muito bem, rapaz — o capitão bateu com cuidado na mesa —, e essa história de que são diabos é mentira. A damned lie, sir. É mais fácil que o senhor e eu sejamos diabos, eu, o capitão Van Toch, senhor! Pode acreditar em mim, senhor.

G. H. Bondy se espantou. “Está delirando”, pensou. “Ca-dê o maldito Povondra?”

— Há, ali, uns bons milhares de lagartos, mas são devora-dos pelos... Diabo! Como se diz? Sharks.

— Tubarões? — Sim, tubarões. Por isso há tão poucos lagartos, Sr. Bon-

dy, e só podem ser encontrados em um lugar da costa que não posso dizer.

— Então esses lagartos vivem no mar?— Sim, no mar. Eles só aparecem na praia quando anoite-

ce, mas logo têm de voltar de novo para a água. — E qual é seu aspecto? — o Sr. Bondy se esforçava para

ganhar tempo até que o maldito do Povondra voltasse.— Bem, pelo tamanho seriam como focas, mas quando

caminham sobre as patas traseiras então são altos assim. — O capitão apontou. — Não se pode dizer que sejam bonitos, isso não! Não têm o corpo coberto por aquelas pequenas lâ-minas...

— Escamas?

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— Sim, escamas. São completamente pelados, Sr. Bondy, como as rãs e as salamandras. E suas patas dianteiras parecem mãozinhas de crianças, mas só têm quatro dedos. São uns coi-tadinhos! — acrescentou, compassivo, o capitão —, mas mui-to espertos e muito simpáticos, Sr. Bondy. — O capitão ficou de cócoras e começou a balançar o enorme corpo de um lado a outro. — Aqueles lagartos andam assim, Sr. Bondy.

O capitão se esforçava para dar certo ritmo aos movimen-tos ondulantes de seu gigantesco corpo e, ao mesmo tempo, mantinha as mãos diante do corpo como um cãozinho pe-dinte; cravava seus olhos, que pareciam implorar simpatia, no Sr. Bondy. G. H. Bondy estava impressionadíssimo e, pode-se dizer, humanamente envergonhado. E, para o cúmulo de seus males, surgiu na porta o silencioso Sr. Povondra com uma jarra de cerveja na mão; o homem levantou, surpreso, suas expressi-vas sobrancelhas ao ver a posição pouco digna do capitão.

— Deixe a cerveja aqui e saia — gritou apressadamente o Sr. Bondy.

O capitão se levantou ofegando.— Os tais animais são assim, Sr. Bondy. Your health! —

disse, e bebeu. — Você tem uma boa cerveja, rapaz, é preciso reconhecer. Uma casa como a sua... — O capitão enxugou os bigodes.

— E como o senhor encontrou esses lagartos, capitão? — Esse é, precisamente, o tema da nossa conversa, Sr.

Bondy. Aconteceu o seguinte: um dia fui pescar pérolas em Tana Masa — o capitão parou de repente —, ou por ali. Era outra ilha, mas o nome dela é segredo meu, rapaz. As pessoas roubam, roubam muito, Sr. Bondy, e o sujeito tem que ter cui-

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dado com a boca. E quando aqueles dois malditos cingaleses estavam tirando de baixo da água aquelas shells com pérolas...

— Ostras? — Sim, ostras que ficam grudadas nas rochas, tão presas

como os judeus a sua fé, e é necessário arrancá-las à faca. Pois bem, aqueles lagartos começaram a observar o que os cingale-ses faziam, e os malditos acharam que eram diabos marinhos. Os cingaleses e bataques quase não têm cultura! Garantiam que ali só havia diabos. Sim. — O capitão trombeteou com força em seu imenso lenço. — Rapaz, você sabe como são as coisas. E não sei se os tchecos são o povo mais curioso que exis-te, mas aonde quer que tenha encontrado um compatriota, ele sempre tinha de enfiar o nariz em tudo quanto é canto para ficar sabendo o que havia atrás de cada coisa. Parece-me que isso se deve ao fato de nós, os tchecos, não querermos acredi-tar em nada, o senhor não acha? Então eu enfiei nesta minha velha cabeça estúpida que precisava ver esses diabos de perto. Bem, na verdade eu estava bêbado, mas era tudo por culpa dos diabos que eu não conseguia tirar da minha cabeça idiota. É que lá embaixo, no Equador, tudo é possível, homem, e então resolvi ir, à noite, dar uma olhada em Devil Bay.

O Sr. Bondy tentou imaginar uma baía tropical cercada de rochas e florestas virgens.

— E aí?— Sentei ali e fiz ts, ts, ts para ver se aqueles diabos se

aproximavam. E veja só, rapaz, um pouco depois um daqueles lagartos saiu da água, levantou-se sobre as patinhas traseiras e começou a retorcer seu corpo enquanto também fazia para mim ts, ts, ts... Se eu não estivesse bêbado, talvez tivesse atira-do nele, mas, companheiro, eu estava tão de porre como um

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inglês, e por isso me aproximei dele e disse: “Venha, venha cá tapa-boy, eu não quero machucá-lo.”

— E você falou com ele em tcheco?— Não, em malaio. Ali, o que mais se fala é malaio, rapaz.

E ele não fazia mais do que ficar ali pisoteando, e se retorcia como uma criancinha quando está envergonhada. Ao nosso redor havia centenas de lagartos, que enfiavam seus pequenos focinhos para fora da água e me olhavam. E eu, juro que esta-va completamente bêbado, fiquei de cócoras e comecei a me retorcer como um lagarto, para que não me temessem. Depois outro lagarto saiu da água. Era do tamanho de uma criança de 10 anos e também começou a se mexer daquele jeito... E tinha nas patinhas dianteiras uma daquelas conchas em que as pérolas ficam encaixadas. — O capitão voltou a beber. — À sua saúde, Sr. Bondy! Na verdade, eu estava inteiramente de porre, e então me aproximei e disse: seu espertalhão, você quer que eu abra essa ostra? Então se aproxime que eu a abrirei com a minha faca. Mas ele nada, continuava sem se atrever. E assim comecei de novo a me retorcer, como se fosse uma menininha quando fica envergonhada diante de alguém. Ele foi se apro-ximando mais e mais, até que estendi a mão e tirei a concha de suas patas. Estávamos os dois com medo, o senhor pode imaginar, Sr. Bondy, mas como eu estava bêbado, não percebia o que fazia. Peguei a faca e abri o molusco, tentando descobrir com os dedos se escondia alguma pérola, mas só encontrei o bicho escorregadio que vive lá dentro! “Tome”, eu lhe disse, “ts, ts, ts, coma-o se quiser.” E atirei-lhe a concha aberta. Pre-cisava ver, rapaz, como ele a lambia! Para aqueles lagartos, as ostras devem ser um formidável tit-bit... Como se diz?

— Uma guloseima.

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— Sim, guloseima. Só que os pobrezinhos têm as mãos muito finas e não conseguem abrir aquelas conchas duras. É uma vida muito difícil! — O capitão bebeu. — Depois, medi-tando sobre tudo isso, pensei: “Quando aqueles lagartos viram os cingaleses arrancar as ostras, certamente disseram entre si: ‘Ah! Eles as comem’, e quiseram ver como os cingaleses faziam para abri-las.” Na água, um cingalês é bastante parecido com um lagarto, mas os lagartos são muito mais espertos do que qualquer cingalês ou bataque, porque querem aprender algu-ma coisa. E um bataque nunca aprende mais do que roubar — acrescentou o capitão Van Toch, indignado. — Pois bem, quando eu lhes fiz ts, ts, ts naquela praia e me retorci como se fosse um lagarto, certamente pensaram que eu era uma imensa salamandra. Por isso não ficaram muito assustados e vieram pedir que eu abrisse aquela ostra. Esses animais são muito in-teligentes e seguros!

O capitão Van Toch ficou vermelho e continuou a contar:— Quando já os conhecia um pouco melhor, Sr. Bondy,

fiquei inteiramente pelado para ficar mais parecido com eles... Todo lisinho. Mas os lagartos estranhavam ao ver meu peito peludo e todo esse negócio... Sim. — O capitão passou o lenço na nuca bronzeada. — Não sei se minha história está ficando muito longa, Sr. Bondy.

G. H. Bondy ouvia-o fascinado.— Não, não, capitão. Continue contando, capitão.— Isso eu posso fazer. Quando aquele lagarto estava lam-

bendo de novo a ostra, os outros que o observavam vieram à praia. Alguns também tinham ostras nas patas dianteiras. É bastante estranho, rapaz, que soubessem arrancá-las daque-las pirambeiras com aquelas mãozinhas infantis. Ficaram por

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alguns momentos envergonhados, e depois permitiram que as ostras fossem tiradas de suas patas. Bem, não eram apenas ostras de pérolas o que me entregavam para que abrisse, mas todo tipo de conchas imundas e falsas; essas eu atirava na água, dizendo: “Essas não, crianças; não vou abrir com minha faca essas besteiras sem valor.” Mas, quando era uma ostra verda-deira, eu abria e tateava para ver se escondia alguma pérola. Depois, dava-lhes o molusco para que o comessem. E aí já havia algumas centenas de lagartos ao meu redor, observan-do como eu abria as ostras. Alguns até tentavam me imitar, usando um pedacinho quebrado das conchas que eu jogara na areia. Achei aquilo muito estranho, rapaz. Não existe animal que saiba manejar ferramentas. O que se sabe é que os animais são apenas uma parte da natureza. É verdade que certa vez vi em Buitenzorg um macaco que abria com uma navalha uma daquelas latas... De conserva, acho que se chamam assim. Mas um macaco não é um animal qualquer, meu senhor, e mes-mo assim achei muito estranho. — O capitão bebeu outra vez. — Naquela noite encontrei 18 pérolas nas ostras que me deram para abrir! Havia das pequenas e das maiores, e três delas eram como caroços de frutas, senhor. Assim de grandes! — O capitão Van Toch balançou cerimoniosamente a cabeça. — Quando, na manhã seguinte, voltei ao meu barco, pensei: “Capitão Van Toch, foi tudo um sonho!” Estava bêbado, sir. Mas o que valia é que tinha 18 pérolas no bolso! Ja.

— Esta é a melhor história que ouvi em toda minha vida. — O Sr. Bondy suspirou.

— Está vendo, rapaz!? — exclamou o capitão Van Toch, se comprazendo. — Durante o dia avaliei bem todo o assunto. Pensei: “Vou domesticar esses lagartos, e eles me trarão essas

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pearl-shells. Em Devil Bay deve haver montanhas delas.” E as-sim, pois, voltei no dia seguinte, porém um pouco mais cedo. Quando o sol começava a se pôr, os lagartos tiraram as cabeças de dentro da água, aqui e acolá, até que a praia ficou cheia deles. Sentei na beira do mar e fiquei fazendo ts, ts, ts. De re-pente olhei e vi um tubarão se aproximando. Só as barbatanas estavam acima da linha-d’água. De repente ouvi um barulho e um lagarto desapareceu. Contei uns 12 tubarões na Devil Bay ao cair do sol. Sr. Bondy, em uma única tarde essas feras engoliram vinte dos meus lagartos — resmungou o capitão, assoando com raiva o nariz. — Sim, mais de vinte. É coisa natural, um lagarto com aquele tipo de pata não pode se de-fender. Qualquer pessoa choraria ao ver um negócio daqueles. Se o senhor estivesse ali, rapaz!

O capitão ficou pensativo durante alguns momentos. — É que eu amo muito os animaizinhos, homem — disse,

finalmente, e levantou os olhos para G. H. Bondy. — Não sei como o senhor encara uma coisa dessas, captain Bondy.

O Sr. Bondy balançou a cabeça para manifestar que estava completamente de acordo.

— Então me alegro — disse o feliz Van Toch. — Esses tapa-boys são muito legais e sensatos. Quando alguém fala com eles, prestam atenção como um cão quando ouve seu amo. E, mais do que tudo, suas mãozinhas infantis... Quer saber de uma coisa, rapaz? Eu sou um homem velho e não tenho famí-lia... Sim, uma pessoa velha está sempre sozinha — resmungou o capitão, tentando dissimular sua emoção. — Esses lagartos são tremendamente simpáticos, é preciso reconhecer. Se não fossem devorados pelos tubarões! Quando comecei a atirar pedrinhas neles, quero dizer, naqueles sharks, eles também,

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os tais tapa-boys, começaram a tacar. Você não vai acreditar nisso, Sr. Bondy. É verdade que não alcançavam muito longe, porque têm os braços muito curtos, mas de qualquer maneira é estranho. “Como vocês são bonzinhos, lagartos”, disse-lhes, “por favor, tentem abrir uma ostra com minha faca.” E deixei a faca no chão. A princípio pareciam tímidos, mas rapidamente um deles pegou a faca e tentou enfiar a ponta entre as duas conchas. “Tem que abrir devagar”, disse-lhe, “está vendo? Gire a laminazinha e pronto!” O pobrezinho tentava e tentava, até que, finalmente, se ouviu um rangido e o molusco se abriu. “Você está vendo?”, disse-lhe. “Sim, é muito simples. Se es-ses cingaleses e bataques sabem fazer, como um tapa-boy não saberia, não é mesmo?” É claro que eu não poderia dizer aos lagartos que abrir uma concha era uma coisa maravilhosa e extraordinária. Mas creia-me! Eu estava... Bem, estava com-pletamente perplexo.

— Sim, como se tivesse uma visão — sugeriu o Sr. Bondy.— Sim, isso mesmo, como um cara que tem visões. Tudo

isso me dava tantas voltas na cabeça que resolvi ficar em meu barco, naquele lugar, mais um dia. E ao entardecer retornei a Devil Bay e de novo vi os tubarões matando meus indefesos lagartos. Naquela noite, rapaz, jurei que não ia deixar as coisas daquele jeito. Dei a todos eles a minha palavra, Sr. Bondy. “Tapa-boys, o captain J. van Toch promete, sob essas terríficas estrelas, que vai ajudá-los!”

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IV

o EStAbELECiMENto CoMERCiAL Do CAPitÃo vAN toCH

Ao contar tudo isso, os cabelos da nuca do capitão Van Toch se eriçavam de entusiasmo e emoção.

— Sim, senhor, foi isso que jurei. Desde aquele dia, rapaz, não tive um momento de tranquilidade. Em Batang, pedi fé-rias e enviei aos judeus de Amsterdã 157 pérolas, todas trazidas pelos animaizinhos. Depois encontrei um homem, um shark killer daiaque daqueles que matam as feras a facadas dentro da água. Um ladrão, um assassino terrível. E, depois de vagar algum tempo pelos barcos, voltei com ele a Tana Masa em um pequeno cargueiro. “E agora, companheiro”, disse-lhe, “você vai matar com seu punhal esses tubarões para que deixem meus lagartos em paz.” Mas o daiaque era tão assassino e tão pagão que não se preocupava com os tapa-boys. Diabos ou não, tanto fazia para ele. E, enquanto isso, eu fazia minhas observations e experiments com aqueles lagartos. Vou lhe mostrar. Tenho um grosso caderno de bordo no qual escrevia todos os dias. — O capitão tirou do bolso do paletó um maço de papéis e come-çou a folheá-los.

— Que dia é hoje? É verdade, 25 de junho. Então va-mos pegar como exemplo o dia 25 de junho do ano passado. Sim, está aqui. “O daiaque matou um tubarão. Os lagartos

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demonstram grande interesse pelo bicho.” Toby — era um la-garto muito menor, mas muito esperto, explicou o capitão —, tive de lhes dar todo tipo de nomes, o senhor sabe, para po-der escrever um livro sobre eles. — Bem... — continuou —, “Toby enfiou o dedo em um dos buracos feitos pelo facão. À noite, os lagartos me trouxeram galhos secos para o fogo”. Isso não é nada — grunhiu o capitão. — Vou procurar outro dia. Talvez 20 de junho, não? “Os lagartos construíram um... Um...” Como se diz jetty?

— Molhe, não? — Sim, molhe. Uma espécie de represa. Pois bem, cons-

truíram um novo dique na parte noroeste, no fundo da Devil Bay. Se você o tivesse visto, homem! — explicava o capitão. — Era uma obra formidável. Um verdadeiro breakwater.

— Quebra-mar?— Ja. Eles botavam seus ovos naquele lugar e queriam que

as águas ficassem calmas, see? Eles próprios idealizaram uma espécie de dique, e eu lhe digo que nenhum empregado ou engenheiro do Waterstaat de Amsterdã teria feito um proje-to melhor para um dique submarino daquele tipo. Uma obra formidável! Uma prova da sua habilidade! Mas foi levado pela água. Os lagartos fazem perto da costa, sob a água, buracos profundos onde vivem durante o dia. São animais extrema-mente inteligentes, senhor. Parecem beavers.

— Castores.— Ja. Aqueles ratos enormes que sabem construir diques

nos rios. Meus lagartos tinham feito uma grande quantidade de diques grandes e pequenos na Devil Bay; uns dams tão bo-nitos! Eram completamente retos. Aquilo parecia uma cidade submarina. E queriam fazer um dique que cruzasse toda a De-

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vil Bay. Foi isso mesmo, amigo — continuou. — “Já apren-deram a transportar pedras de um lugar a outro, fazendo-as rolar... Alberto, um tapa-boy, esmagou os dedos.” “Dia 21 de junho: O daiaque comeu Alberto. Depois ficou muito doente. Quinze gotas de ópio. Prometeu não fazer aquilo nunca mais. Choveu durante todo o dia.” “Dia 30 de junho: Os lagartos construíram um dique. Toby não quer trabalhar.” Esse sim era esperto, senhor! — explicava com admiração o capitão. — Os espertinhos estão sempre inventando alguma coisa para não fazer nada. Precisava ver o Toby! O que se pode fazer? Até en-tre os lagartos há grandes diferenças. “Dia 3 de julho: hoje en-treguei uma faca a Sergeant.” Sergeant era um lagarto grande e forte. E muito hábil, meu senhor... “Dia 7 de julho: Sergeant matou com seu facão um cuttle-fish.” É aquele peixe que tem uma espécie de tinta marrom dentro dele, sabe?

— Sépia?— Ja. Acho que sim. “Dia 20 de julho: Sergeant matou

com uma faca um grande jelly-fish.” É uma espécie de bicho com gelatina, que queima como as urtigas. Um bicho repug-nante! E agora atenção, Sr. Bondy. “Dia 13 de julho”, eu subli-nhei: “Sergeant matou com a faca um pequeno tubarão. Peso: 35 quilos.” Está tudo aqui — declarou solenemente o capitão —, escrito em preto no branco. Foi um dia glorioso, rapaz. Preci-samente o dia 13 de julho do ano passado.

O capitão fechou seu maço de anotações.— Não me envergonha dizer isso, Sr. Bondy. Naquele dia

caí de joelhos na Devil Bay e chorei de pura alegria. Então compreendi que meus tapa-boys não me decepcionariam. Co-mo prêmio, Sergeant ganhou um novo arpão. Quando você quer caçar tubarões, o arpão é o melhor instrumento, rapaz. E

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eu lhe disse: “Be a man, Sergeant, e mostre aos tapa-boys que eles também podem se defender.”

O capitão bateu com entusiasmo na mesa e continuou:— Homem! Você sabe que três dias depois boiava o cadá-

ver de um imenso tubarão cheio de...?— Feridas? — Ja, cheio de buracos feitos pelo arpão. — O capitão be-

beu com avidez. — Essa é a mais pura verdade, Sr. Bondy. Foi aí que fiz uma espécie de contrato com aqueles tapa-boys, quer dizer, dei-lhes minha palavra de honra de que, se me trouxes-sem ostras com pérolas, eu lhes daria harpoons e knives, facões como aqueles para que pudessem se defender, o senhor com-preende? Era um business honesto, senhor. O que é certo é que o sujeito deve ser honesto até com os animais. E também lhes dei alguma madeira e dois wheelbarrows de ferro.

— Wheelbarrows? Carrinhos de mão. Troles.— Sim, troles para que pudessem carregar pedras até seu

dique. Os pobrezinhos tinham que levá-las nas mãos, sabe? Enfim, dei-lhes uma grande quantidade de coisas, porque não queria enganá-los, isso não. Espere, rapaz, vou lhe mostrar uma coisa.

O capitão Van Toch levantou com uma mão a barriga e com a outra pescou uma bolsinha de pano no bolso da calça.

— Aqui estão — disse, e esvaziou o conteúdo na mesa.Havia cerca de mil pérolas de todos os tamanhos, peque-

ninas como sementes, grandes, enormes como ervilhas e al-gumas do tamanho de cerejas. Pérolas perfeitas como gotas, pérolas disformes, pedras prateadas, barrocas, azuladas, cor de carne, amareladas, de tonalidades escuras e rosadas. G. H. Bondy estava extasiado, não podia evitar; precisava tocá-las,

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fazê-las rodar com as pontas dos dedos, escondê-las sob as pal-mas das duas mãos.

— Que maravilha, capitão! — exclamou. — Parece um sonho!

— Sim — disse o capitão, sem se alterar. — São belís-simas. E, no ano em que passei com eles, mataram cerca de trinta tubarões. Está tudo escrito aqui — disse, batendo no bolso do paletó. — E aquelas facas que lhes dei e cinco da-queles arpões? Aqueles facões custam para mim uns 2 dólares americanos cada um. São facas muito boas, rapaz, daquele aço que nunca é atacado pelo rust.

— Ferrugem.— É isso. São facas para serem usadas embaixo d’água,

quero dizer, no mar. E aqueles bataques também custaram uma dinheirama.

— Que bataques? — Refiro-me aos nativos daquela ilhota. Eles acreditam

que os tapa-boys são uma espécie de diabo e morrem de medo deles. Quando viram que eu conversava com seus diabos, qui-seram, simplesmente, me matar. Ficaram noites inteiras tocan-do uma espécie de sino para afastar os diabos de sua aldeia. Fa-ziam um ruído terrível, senhor. E depois, de manhã, queriam que eu lhes pagasse por todo o barulho que haviam armado. Segundo diziam, pelo trabalho que os demônios lhes davam. O que eu podia fazer? Os bataques são grandes ladrões. No entanto, posso lhe dizer, senhor, que seria possível fazer com os tapa-boys, com os lagartos, um business magnífico e extrema-mente honesto. De fato, um excelente negócio, Sr. Bondy!

G. H. Bondy achava que estava vivendo em um conto de fadas.

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— Comprando suas pérolas?— Ja. O problema é que em Devil Bay já não resta nenhu-

ma, e nas outras ilhas não há mais nenhum tapa-boy. E agora chegamos ao assunto, rapaz.

O capitão J. van Toch levantou o rosto de modo triunfal.— Esse é, precisamente, o grande negócio que tenho meti-

do na minha cabeça. Amigo velho — disse, estalando os dedos gordos no ar —, esses lagartos têm se multiplicado bastante desde que eu os pus sob minhas asas! Agora podem se defender sozinhos, you see? E cada vez haverá mais deles. O que o senhor pensa, senhor Bondy? Não acha que poderia ser um negócio magnífico?

— Eu continuo sem entender! — exclamou, inseguro, o Sr. Bondy. — Qual é a sua ideia, capitão?

— Levar os tapa-boys a ilhas onde há pérolas! — excla-mou o capitão. — Observei que, sem ajuda, os lagartos não conseguem atravessar as ondas nem o mar profundo. Precisam nadar um pouco e caminhar outro tanto pelo fundo, mas nos lugares mais profundos a pressão é muito grande para eles, sabe, e como são muito moles... Mas, se eu tivesse um tipo de navio no qual pudesse construir uma espécie de tanque, um reservatório de água onde pudessem ficar, poderia levá-los aonde quisesse, see? Eles procurariam pérolas e eu iria ao seu encontro e lhes levaria facões, arpões e outras coisas do gênero. Esses pobrezinhos da Devil Bay se multi... Como se diz?

— Multiplicaram. — Ja, se multiplicaram tanto que daqui a pouco não vão

ter o que comer. Devoram peixes pequenos, moluscos e todos os bichinhos marinhos que encontram, mas também podem comer batatas, biscoitos e coisas comuns. Não seria, portanto,

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difícil alimentá-los nos tanques dos navios. E, em um lugar apropriado, onde não houvesse muita gente, eu devolveria os meus lagartos à água e construiria uma espécie de fazenda para eles. Gostaria que os pobres animaizinhos pudessem ganhar a vida. São tão simpáticos e tão espertos, Sr. Bondy! Quando você puder vê-los, rapaz, dirá, hello, captain, você tem animais extremamente úteis. Ja. Todo mundo agora é louco por péro-las, Sr. Bondy. Pois bem, esse é o grande negócio que eu havia imaginado.

G. H. Bondy estava confuso.— Sinto imensamente, capitão — começou a dizer, hesi-

tando —, mas eu, na realidade, não sei...Os olhos azul-celeste do capitão Van Toch se encheram de

lágrimas.— Não gosto disso, rapaz. Eu deixaria aqui todas essas

pérolas como garantia do navio, mas não posso comprá-lo sozinho. Sei de um muito bonito que está em Roterdã... É movido a diesel...

— Por que não ofereceu o negócio a algum holandês?O capitão balançou a cabeça.— Eu conheço aquela gente, rapaz. Não posso falar com

eles sobre essas coisas. Além do mais, eu poderia transportar — disse, pensativo — outras coisas no navio, todo tipo de produtos, senhor, e vendê-los naquelas ilhas. Sim, eu poderia fazer isso. Tenho muitos conhecidos, Sr. Bondy. E, ao mesmo tempo, transportaria meus lagartos naquela espécie de tan-que...

— Bem, agora temos uma coisa a considerar — refletiu G. H. Bondy. — Precisamente... Sim, nós temos que procurar no-vos mercados para a nossa indústria. Por acaso, andei conver-

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sando sobre isso com algumas pessoas... Gostaria de comprar um ou dois navios, um para a América do Sul e outro para os confins orientais.

O capitão se animou.— Fará muito bem, Sr. Bondy. Os navios estão, no mo-

mento, muito baratos; é possível comprar, por pouco dinhei-ro, todo um porto. Basta querer.

O capitão começou a dar uma explicação técnica sobre onde e a que preços havia navios, boats e tank-steamers à ven-da. G. H. Bondy não o ouvia; só observava; G. H. Bondy sabia julgar as pessoas. Nem por um momento levou a sério os lagartos do capitão Van Toch, mas o capitão valia a pena. Ho-nesto? Sim. E conhecedor do ambiente lá debaixo. Claro, um louco, mas extremamente simpático. Uma espécie de corda fantástica vibrou no coração de G. H. Bondy. Um navio com pérolas e café, um navio com especiarias e todos os perfumes da Arábia... G. H. Bondy voltava a ter a sensação que sem-pre experimentava antes de tomar uma decisão afortunada; uma sensação impossível de ser expressa em palavras. “Não sei por quê, mas acho que vou entrar nesse negócio”, pensou. Enquanto isso, o capitão Van Toch desenhava no ar, com suas mãos imensas, navios com convés de abrigo e tombadilho, na-vios formidáveis, rapaz...

— Quer saber de uma coisa, capitão Van Toch? — disse de repente G. H. Bondy. — Volte daqui a 14 dias. Voltaremos a falar sobre o tal navio.

O capitão Van Toch compreendeu o quanto aquelas pala-vras poderiam significar. Ficou vermelho de alegria e só con-seguiu dizer:

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— Então, aqueles lagartos... Também poderei levá-los no meu barco?

— Claro que sim, mas, por favor, não fale a respeito deles com ninguém, as pessoas pensariam que você ficou louco... E eu também.

— E posso deixar estas pérolas aqui?— Pode. — Está bem, mas tenho de escolher duas belas pérolas

para enviar a alguém.— A quem?— A dois jornalistas, rapaz. Eu... Diabos! Espere...— O que aconteceu?— Diabos, como se chamavam? — o capitão Van Toch

piscou, pensativo, os olhos azuis. — Tenho uma cabeça! Ima-gine que não consigo recordar o nome daqueles dois boys.

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V

o CAPitÃo J. vAN toCH E SEUS LAGARtoS AMEStRADoS

— Que eu caia fulminado se você não é Jensen! — disse um homem em Marselha.

O sueco Jensen levantou os olhos.— Espere — disse —, e não diga nada até que eu o re-

conheça. — Pôs a mão na testa. — Seagull, não. Empress of India, não. Pernambuco, não. Já sei! Vancouver. Há cinco anos em Vancouver, Osaka-Line, Frisco. E o chamam de Dingle, seu sem-vergonha... Você é irlandês.

O homem mostrou os dentes amarelados e confirmou:— Right, Jensen. E bebo todo tipo de aguardente que exis-

te. De onde você surgiu?Jensen apontou com a cabeça.— Estou agora fazendo a linha Marselha-Saigon. E você?— Estou de férias — jactou-se Dingle —, e por isso estou

indo para casa. Quero saber quantos filhos ganhei na minha ausência.

Jensen olhou-o com seriedade.— Você tomou outro porre. Ficou bêbado no trabalho e

esse tipo de coisa, não é verdade? Se frequentasse a Associação Cristã dos Moços, como eu, homem, então...

Dingle exclamou com entusiasmo:

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— E há uma filial da ACM aqui neste lugar?— Você sabe que hoje é sábado, não? — grunhiu Jensen.

— E por onde tem viajado?— Estou numa espécie de vagabundagem... — respondeu

Dingle, evasivo. — Tenho andado por todas as ilhas imaginá-veis lá de baixo.

— Capitão? — Um tal de Van Toch, holandês ou coisa parecida.O sueco Jensen refletiu um pouco.— O capitão J. van Toch. Também naveguei com ele há

alguns anos. Navio: Kandong Bandoeng. Linha: do demônio ao diabo. Gordo, careca, e pragueja até em malaio, para que tenha mais efeito. Conheço-o muito bem.

— Já era tão maluco?O sueco Jensen negou com a cabeça.— O velho Van Toch é all right, man. — Já carregava aqueles lagartos no navio? — Não. — Jensen hesitou um momento. — Ouvi falar

alguma coisa sobre isso em Cingapura. Um falastrão disse um monte de maluquices a respeito.

O irlandês se ofendeu.— Não é invencionice, Jensen, a história dos lagartos é a

mais santa verdade. — O cara de Cingapura também dizia que era verdade

— grunhiu o sueco — e apanhou na cara — terminou, vito-rioso.

— Deixe-me contar o que há de verdade nesse assunto, companheiro. Vi esses bichos com meus próprios olhos! — defendeu-se Dingle.

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— Eu também — murmurou Jensen. — Eram quase ne-gros, tinham um rabinho, 1,60m de altura e andavam sobre duas patas. Eu sei.

— São repugnantes — estremeceu Dingle —, cheios de verrugas. Ouça... Virgem santa! Eu não tocaria neles de jeito nenhum. E devem ser venenosos!

— E por quê, homem? — respondeu o sueco. — Eu servi em muitos barcos que estavam sempre repletos de gente, de homens, mulheres e coisas parecidas dançando e jogando ba-ralho o tempo todo no deque de cima e no deque de baixo... Eu era um simples foguista... E agora, seu estúpido, me diga o que é mais venenoso...?

Dingle cuspiu.— Se fossem jacarés, eu não diria nada. Eu também uma

vez levei serpentes a um jardim zoológico de Banjarmasin. Co-mo fediam, meu Deus! Mas esses lagartos, Jensen, são animais muito estranhos. Durante o dia ficavam nos tanques de água que haviam preparado para eles, mas à noite saíam: tap, tap, tap... Todo o navio repleto deles. Andavam sobre as patas tra-seiras e viravam totalmente a cabeça para olhar alguém... — O irlandês se benzeu. — Além do mais, chamavam os homens como as putas de Hong Kong: ts, ts, ts... Que Deus me perdoe, mas eu acho que as coisas não estão certas com eles. Se não fosse tão difícil arranjar trabalho, eu não teria ficado ali nem uma hora, Jensen, nem uma hora!

— Então — disse Jensen — é por isso que está voltando para sua mãezinha, não é mesmo?

— Em parte, sim. Você tem de beber como um conde-nado para poder suportar aquilo, e, já sabe, o capitão é um cão quando se trata disso. Você precisava ver o escândalo que

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armou quando, certa vez, dei um pontapé num bicho daque-les! Sim, chutei mesmo... E com que prazer, cara! Até quebrei sua espinha. Você precisava ver o velho gritar... Ficou azul, me agarrou pelo pescoço e por pouco não me atirou na água. Se o companheiro Gregório não estivesse ali... Você o conhece?

Jensen assentiu com a cabeça.— Chega, basta, disse Gregório, e derramou um balde de

água na minha cabeça. Desembarquei em Kokopo.O Sr. Dingle cuspiu abundantemente.— O velho se interessava mais por aqueles bichos do que

pelas pessoas. Você sabe que ele os ensinava falar? Juro pela mi-nha alma! Trancava-se com eles e ficava falando durante horas e horas. Acho que ele os amestra para o circo. Porém o mais estranho é que depois deixa que voltem à água. Para em algu-ma ilha estúpida, vai com um bote até a margem e mede a pro-fundidade; depois se enfia naqueles tanques, abre as eclusas e deixa aqueles bichos pularem na água. Rapaz! Pulam uns atrás dos outros por aquela janelinha como se fossem focas amestra-das, sempre dez ou 12 de cada vez... E depois, à noite, o velho Van Toch vai até a praia com umas caixas... Ninguém pode saber o que há nelas. E a viagem continua. Assim está a coisa com o velho Van Toch, Jensen. Estranho, muito estranho!

Os olhos do Sr. Dingle ficaram fixos por um momento. — Deus todo-poderoso, Jensen! Você não sabe a angústia

que eu sentia. Bebia, ouça, bebia como um louco... E quando andavam à noite por todo o navio e faziam ts, ts, ts, eu pensa-va: cara, isso deve ser efeito da bebida. Já havia me acontecido uma vez em Frisco, você sabe, Jensen, mas aquela vez vi ara-nhas em tudo que era canto. De-li-rium, diziam os doutores do Sailor Hospital. Sei lá... Mas depois perguntei a Big Bing se

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também havia visto lagartos à noite e ele respondeu que sim. Disse que havia visto com seus próprios olhos um dos lagartos colocar a pata dianteira na maçaneta da cabine do capitão, abrir a porta e entrar. E aí já não sei, porque Joe também bebia terrivelmente. Você acha que Joe também tinha delirium? O que lhe parece?

O sueco limitou-se a dar de ombros.— E Peter, aquele alemão, nos contou que, quando levou

o capitão à praia das Manihiki Islands, se escondeu atrás das rochas e viu o que o velho Van Toch fazia com aquelas caixi-nhas. Disse que os lagartos abriram sozinhos as caixas com um cinzel que o velho lhes deu. E sabe o que havia nelas? Facas, companheiro! Facas grandes assim, arpões e coisas parecidas. Rapaz, eu não acredito muito nesse Peter, porque tem óculos pendurados no nariz, mas é estranho. O que você acha?

As veias da testa de Jensen saltaram.— Bem — grunhiu —, eu vou lhe dizer que esse seu ale-

mão enfia o nariz onde não deve, está entendendo? E digo que não gosto da atitude dele!

— Pois então escreva isso para ele. — O irlandês sorriu.—E o endereço mais seguro é o do inferno, talvez lá receba a carta. Sabe o que eu acho mais estranho? O velho Van Toch vai de vez em quando visitar os lagartos nos lugares onde os alo-jou. Juro pela minha alma, Jensen! Pede para ser levado a terra ao anoitecer e volta de manhã. Diga-me você mesmo, Jensen, quem ele vai procurar naqueles lugares? E me diga também o que há naqueles pacotes que envia à Europa? Olhe, são uns pacotes desse tamanho, com seguros, por exemplo, de mil li-bras esterlinas...

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— Como sabe disso? — enfureceu-se Jensen. — Cada um sabe o que sabe — respondeu Dingle, evasivo.

— E você sabe de onde o velho Toch traz esses lagartos? Devil Bay! Da Baía do Diabo, Jensen. Eu tenho lá um conhecido, que é agente e uma pessoa muito culta, e ele me disse: Cara, esses lagartos não são amestrados. Nada disso! Que alguém vá contar para criancinhas de peito que são apenas animaizinhos! Não se deixe enganar, rapaz.

O Sr. Dingle piscou os olhos cheio de intenções.— Assim é a coisa, Jensen. É bom que você saiba. Vai dizer

para mim que captain Van Toch é all right?— Repita isso! — pigarreou, ameaçador, o gigante sueco.— Se o velho Toch fosse all right, não carregaria diabos

pelo mundo. E não os plantaria em todas as ilhotas, como per-cevejos em um colchão. Jensen, naquele tempo em que estive com ele, o capitão transportou milhares e milhares. O velho Toch vendeu a alma, homem. E eu sei muito bem o que os diabos lhe dão em troca: rubis, pérolas e coisas parecidas. Você pode imaginar que não faria nada de graça...

Jensen se enfureceu.— E o que você tem a ver com isso? — gritou, batendo na

mesa. — Cuide de seus malditos assuntos!O pequeno Dingle pulou assustado.— Por favor — gaguejou —, o que aconteceu com você

tão de repente? Só estou contando o que vi. Se você quiser, posso dizer que tive apenas um sonho. É que é você, Jensen. Se quiser, direi que foi um delirium. Você não pode ficar zangado comigo, Jensen. Sabe que já tive esse negócio certa vez em Frisco! Um caso difícil, disseram os doutores do Sailor Hospi-tal. Homem, a minha alma achou que eu vi lagartos ou sei lá o quê. Não havia nada disso.

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— Havia, Pat — disse, sombrio, o sueco. — Eu também os vi.

— Não, Jensen — tentou contradizê-lo o irlandês. — Vo-cê só teve um delirium. O velho Van Toch é all right, mas não devia transportar diabos pelo mundo. Quer saber de uma coi-sa? Quando eu voltar para casa, mandarei rezar uma missa pela alma dele. Que eu caia morto se não fizer isso!

— Na nossa religião isso não se faz — grunhiu Jensen, pensativo. — O que você acha, Pat... Ajuda rezar uma missa por alguém?

— Homem! Muito! — exclamou o irlandês. — Ouvi cada história lá onde vivo... De ajuda mesmo. Até nos casos mais difíceis. Também contra diabos e coisas parecidas, quer saber?

— Pois eu também mandarei rezar uma missa — resol-veu Jens Jensen. — Sim, pelo captain Van Toch. Mas farei com que seja rezada aqui, em Marselha. Acho que naquela igreja grande será mais barato, como se fosse a preço de fábrica.

— Talvez, mas as missas irlandesas são as melhores. Na mi-nha terra, há padres diabólicos que sabem até fazer feitiçarias, como os faquires e os pagãos.

— Olhe, Pat — disse o sueco —, eu poderia lhe dar 12 francos para essa missa, mas você é bandido, irmão, vai acabar bebendo o dinheiro todo.

— Jensen, eu não carregaria semelhante pecado. Mas espe-re: para que você acredite em mim, assinarei um recibo reco-nhecendo que lhe devo esses 12 francos. Está bem assim?

— Não seria mal — disse o sueco, um defensor da ordem. O Sr. Dingle pegou um pedaço de papel e um lápis e se

espalhou comodamente na mesa.

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— Bem, o que devo escrever?Jens Jensen olhou para ele por cima do ombro.— Escreva lá em cima que se trata de recibo.Depois Dingle, lentamente e esticando a língua por causa

do esforço e chupando de vez em quando o lápis, escreveu:

ReciboCertifico aqui que recebi de Jens Jensen, para a missa pela alma do capitão Van Toch, 12 francos

Pat Dingle — Está bem assim? — perguntou o Sr. Dingle, inseguro.

— E qual dos dois deve ficar com o recibo?— É claro que você, seu idiota! — disse o sueco com na-

turalidade. — O recibo serve para que a pessoa não se esqueça de que recebeu dinheiro, homem.

R

O Sr. Dingle bebeu os 12 francos em Le Havre e, fora isso, em vez de ir para a Irlanda, se dirigiu a Djibouti. Em resumo: a missa não foi rezada e, portanto, nenhum poder supremo interveio no curso normal dos acontecimentos.

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VI

UM iAtE NA LAGoA

O Sr. Abe Loeb piscava contemplando o pôr do sol. Gostaria de expressar de alguma forma como tudo era belo, mas sua queridinha Li, aliás, Miss Lily Valley, de nome verdadeiro Lí-lian Nowak, em resumo, a Li dos cabelos dourados, a White Lili, a Lílian Pernas Longas e toda uma série de nomes que usaram para denominá-la até seus 17 anos, dormia na areia quente envolvida em um suave roupão e enovelada como um cãozinho adormecido. Por isso o Sr. Abe não disse nada sobre a beleza do mundo e se limitou a suspirar, escarafunchando os dedos de seus pés descalços, porque tinha grãos de areia no meio deles. No mar estava ancorado o iate batizado de Gloria Pickford, presente de papai Loeb por ter feito os exames de ingresso na universidade. Papai Loeb era um homem formi-dável. Jesse Loeb, magnata cinematográfico etc. “Abe, con-vide alguns amigos ou amiguinhas e vá conhecer um pouco do mundo”, dissera o velho senhor. Que sujeito formidável o papai Loeb! Ali, na superfície nacarada, o iate Gloria Pickford se movimenta, e aqui, na areia quente, dorme a queridinha Li. Abe suspirou feliz. “Dorme como uma criança pequena, pobrezinha.” Mr. Abe sentiu um imenso desejo de protegê-la de alguma maneira. “Na realidade, deveria me casar de verdade com ela”, pensa o jovem Sr. Loeb, sentindo em seu coração

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uma bela e atormentadora pulsão, composta de firme decisão e temor. Mamãe Loeb provavelmente não concordaria e papai Loeb agitaria os braços: “Você está louco, Abe!”

“Os pais simplesmente não conseguem entender, é isso.” E Mr. Abe, suspirando ternamente, cobriu com uma ponta do roupão de banho o tornozelo branco de sua queridinha Li. “Que aborrecido”, pensou confuso, “que eu tenha pernas tão peludas!”

“Deus meu, como tudo isso é belo, como é belo! É uma pena que Li não esteja vendo.” Mr. Abe contemplou a linha firme de suas ancas e, por uma espécie de associação, come-çou a pensar em arte. A queridinha Li era uma artista. Artista de cinema. É verdade que ainda não tinha rodado nenhum filme, mas estava firmemente decidida a ser a maior estrela cinematográfica de todos os tempos. Li sempre conseguia o que queria. “É isso o que mamãe não compreende”, pensou Abe. “Uma artista é, simplesmente, uma artista, e não pode ser como as outras garotinhas. E, além do mais, as outras garo-tinhas não são nem um pouco melhores do que ela”, concluiu Mr. Abe. “Por exemplo, a tal da Judy que está no iate... Uma moça tão cheia de dinheiro! E eu sei muito bem que Fred vai a seu camarote todas as noites, enquanto Li e eu... Em resumo, Li não é dessas. Eu desejo muita sorte a Baseball Fred”, pensou, magnânimo, o jovem Abe... “É meu melhor amigo da faculda-de, mas toda noite! Uma garota tão endinheirada não deveria fazer isso. Quer dizer, uma garota de uma família como a de Judy. E, além do mais, Judy não é artista.” (“A respeito do quê essas garotas ficavam às vezes cochichando?”, pensou Abe. “E como seus olhos brilham! E suas risadinhas! Fred e eu nunca falamos dessas coisas.”) (“Li não deveria beber tantos coque-

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téis, depois não sabe o que diz.”) (“Como, por exemplo, hoje à tarde. Foi tudo excessivo.”) (“A discussão que ela e Judy ti-veram sobre qual das duas tinha pernas mais bonitas... É claro que Li.”) (“E Fred não deveria ter inventado um concurso de beleza de pernas. Isso pode ser feito em algum lugar de Palm Beach, mas não num encontro tão íntimo... Além do mais, as garotas não precisavam levantar tanto as saias. Já não se tra-tava apenas de pernas! Pelo menos Li não deveria ter feito, e menos ainda diante de Fred! E não fica bem que uma garota tão endinheirada como Judy faça essas coisas.”) (“Creio que eu também não fiz bem em chamar o capitão para ser o juiz. Foi uma besteira da minha parte. E como o capitão ficou verme-lho! Seus bigodes ficaram totalmente eriçados! Depois disse apenas: ‘Perdoem-me, senhores’, e saiu batendo a porta. Em-baraçoso. Terrivelmente embaraçoso. O capitão não precisava ser tão rude. No final das contas, é meu iate, não é mesmo?”) (“É verdade que o capitão não tem aqui nenhuma amiguinha com ele. Como pode, o pobre, olhar com tranquilidade essas coisas? Quero dizer, se é obrigado a ficar sozinho?”) (“E por que Li chorou quando Fred disse que as pernas de Judy eram mais bonitas? Depois Li me disse que Fred era um grosso e que havia estragado toda a viagem... Pobrezinha da Li!”) (“E agora as garotas não se falam. E, quando eu quis conversar com Fred, Judy o chamou como se fosse seu cachorro. Afinal das contas, Fred é meu melhor amigo! É natural: se é amante de Judy, tem de dizer que ela tem as pernas mais bonitas. Mas, claro, não precisava ser tão categórico. Ele não teve muito tato com Li. Li tem razão quando diz que Fred é um garotinho mal-educado, muito convencido. Um garotinho terrível!”) (“Na realidade,

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eu havia imaginado esta viagem de outra maneira. O diabo me deve esse Fred!”).

Mr. Abe se deu conta de que já não contemplava extasiado o mar perolado, mas sim que estava de fato irritado, muito irritado enquanto deixava grãos de areia e minúsculas conchas escorrerem entre seus dedos. Sentia-se incomodado e alterado. Papai Loeb lhe dissera: “Vá ver um pedaço do mundo.” Já vi-mos um pouco do mundo? Mr. Abe procurou recordar tudo o que havia visto, mas não conseguia se lembrar de nada, só voltava à sua memória a imagem de Judy e de sua queridinha Li exibindo as pernas, e Fred, o Fred de ombros imensos, de cócoras diante delas. Abe ficou ainda mais carrancudo. “Como se chama esta ilha de coral?” “Taraiva, eu acho”, disse o capitão. Taraiva ou Tahuara ou será que é Taraihatuara-ta-huara? Que tal dizer na volta ao velho Jesse, pai, “nós estivemos em Ta-raihatuara-ta-huara?” (“Se pelo menos eu não tivesse chamado o capitão”, pensou Mr. Abe irritado.) (“Preciso dizer a Li para não voltar a fazer coisas como aquela. Meu Deus! Como pode acontecer de eu querê-la tão terrivelmente? Quando acordar, conversarei com ela. Direi que poderíamos nos casar...”) Mr. Abe tinha os olhos cheios de lágrimas. “Meu Deus, me diga: é amor ou dor, ou essa dor faz parte do fato de eu a amar?”

As sobrancelhas sombreadas de azul de sua queridinha Li, parecidas com duas delicadas conchinhas, se moveram.

— Abe — disse, meio adormecida —, você sabe o que eu estou pensando? Que poderíamos fazer um filme for-mi-dá-vel nesta ilhota.

Mr. Abe cobriu com areia suas pernas terrivelmente peludas.— Uma ideia magnífica, queridinha. E que tipo de filme?Queridinha Li abriu seus enormes olhos azuis.

6A PROVA - A Guerra das salamand76 76 3/10/2011 10:41:02

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— Bem, imagine que eu fosse uma Robinson Crusoé aqui nessa ilha. Uma Robinson mulher. Não é mesmo uma ideia magnífica e original?

— Sim — respondeu Abe, pouco seguro. — E como teria chegado aqui?

— Magnificamente — respondeu uma voz doce. — Sabe, nosso iate naufragaria na tempestade e todos vocês se afoga-riam, Judy, o capitão, todos!

— E Fred também? Fred é um grande nadador. A testa lisa ensombreceu.— Bem, então Fred teria de ser devorado por um tuba-

rão. Um detalhe formidável — disse queridinha aplaudindo. — Fred tem um corpo maravilhoso para isso, você não acha?

Mr. Abe suspirou.— E o que mais? — E eu, que teria perdido a consciência, seria arrastada

por uma onda até a praia. Estaria usando aquele pijama azul listrado de que você gostou tanto anteontem. — Entre as so-brancelhas entreabertas navegou um olhar profundo, típico da sedução feminina. — Na realidade, teria que ser um filme colorido, Abe. Todos dizem que o azul combina muito bem com meu cabelo.

— E quem a encontraria aqui? — continuou perguntando Mr. Abe.

Queridinha refletiu por um momento.— Ninguém. Se houvesse alguém aqui, eu já não seria uma

garota Crusoé — disse Li com uma lógica surpreendente. — Por isso seria um papel tão formidável, Abe. Eu estaria aqui sempre sozinha. Imagine Lily Valley no único papel principal...

— E o que você faria durante todo o filme?

6A PROVA - A Guerra das salamand77 77 3/10/2011 10:41:02

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Li apoiou-se em um cotovelo.— Já pensei nisso. Tomaria banho e cantaria em cima das

rochas.— De pijama? — Sim — disse queridinha. — Você não acha que seria

um sucesso extraordinário?— Você não está querendo dizer que ficaria nua durante

todo o filme! — grunhiu Abe com vivo sentimento de desa-provação.

— Por que não? — estranhou inocentemente queridinha. — Qual seria o problema?

Mr. Abe disse algo incompreensível.— E depois... — continuou imaginando Li. — Espere, já

sei. Depois seria raptada por um gorila, sabe? Um gorila terri-velmente peludo, um gorila bem negro.

Mr. Abe enrubesceu, tentando esconder ainda mais suas desgraçadas pernas na areia.

— Mas aqui não há gorilas! — exclamou, pouco conven-cido.

— Há. Aqui há todo tipo imaginável de animais. Você precisa ver as coisas do ponto de vista artístico, Abe. Um go-rila escuro combinaria magnificamente com minha tez. Você percebeu que Judy tem pernas muito peludas?

— Não — respondeu Abe, que não gostava do tema. — Pernas terríveis — continuou queridinha, observando

suas panturrilhas. — E, quando o gorila estivesse me levando em seus braços, um jovem belo e selvagem sairia da selva e me salvaria.

— Como estaria vestido?

6A PROVA - A Guerra das salamand78 78 3/10/2011 10:41:02

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— Carregaria um arco — decidiu, sem vacilar, a queridi-nha — e teria uma coroa de flores silvestres na cabeça. E esse selvagem me levaria prisioneira a uma tribo de canibais.

— Aqui não existem canibais — disse Abe, tentando de-fender a ilhota de Tahaura.

— Sim, existem! E esses canibais quereriam me sacrificar a seus deuses, e cantariam, para celebrar, canções havaianas, sabe? Como aquelas que os negros cantam no restaurante Pa-radise. Mas o canibal jovem se apaixonaria por mim — a que-ridinha suspirou, arregalando os olhos com entusiasmo —, e ainda se apaixonaria por mim um outro selvagem, talvez o chefe da tribo... E depois um branco...

— E de onde o branco sairia? — perguntou, por seguran-ça, Abe.

— Também seria um prisioneiro da tribo. Poderia ser um tenor famoso que caíra nas mãos dos selvagens. É para que possa cantar no filme, sabe?

— E como estaria vestido? Queridinha examinou o polegar de seu pé.— Estaria vestido... Sem nada, como os canibais.Mr. Abe mexeu a cabeça com desaprovação.— Queridinha, isso é impossível. Todos os tenores famo-

sos são terrivelmente gordos!— Que pena! — exclamou a queridinha. — Então Fred

poderia interpretar o papel do branco, e o tenor só cantaria. Você sabe como os filmes são sincronizados?

— Mas Fred foi engolido por um tubarão!Queridinha se aborreceu.— Não seja tão terrivelmente realista, Abe. É impossível

falar de arte com você. E o tal do chefe da tribo cingiria meu corpo com um cordão de pérolas.

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— De onde as tiraria?— Aqui há uma barbaridade de pérolas — garantiu Li.

— E Fred, cheio de ciúmes, boxearia com ele nas rochas, aci-ma do movimento furioso das ondas do mar. Fred ficaria for-midável em silhueta, tendo como fundo o céu, você não acha? Não é mesmo uma ideia formidável? Durante a luta, os dois cairiam no mar — queridinha ficou radiante —, e podería-mos usar, então, o detalhe do tubarão. Que raiva Judy sentiria se Fred trabalhasse num filme comigo! E eu me casaria com aquele belo selvagem. —Li, dos cabelos dourados, ficou em pé de um pulo. — Estaríamos aqui, nesta praia, contra o pôr do sol, completamente nu... E o filme acabaria lentamente... — Li tirou o roupão. — Vou para a água!

— Você não vestiu o maiô — avisou Abe, angustiado, vi-rando-se para onde estava o iate, querendo ver se alguém a olhava. Mas sua queridinha Li já dançava na areia, correndo em direção à lagoa.

“Na verdade, vestida fica melhor”, ressoou dentro do jo-vem uma voz brutalmente fria e crítica. Abe ficou surpreso com sua tibieza de apaixonado, sentindo-se quase culpado, mas... Well, quando usava vestido e sandálias, Li ficava muito mais bonita.

“Talvez você queira dizer mais decente”, Abe tentou de-fender-se daquela voz fria.

“Well, isso também. E muito mais atraente: por que cami-nha de forma tão estranha? E por que a carne de suas pernas treme quando anda?” Por que isso e por que aquilo...

“Pare agora!”, gritou Abel, horrorizado. “Li é a garota mais bela do mundo. Eu a amo demais.”

“Até quando não está usando nada?”, disse, sem piedade, a voz fria e crítica.

6A PROVA - A Guerra das salamand80 80 3/10/2011 10:41:02

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Abe afastou os olhos, dirigindo-os ao iate na lagoa. Que formosura! Como são belas as suas linhas! Pena que Fred não estivesse ali. Poderia conversar com ele sobre a beleza de seu iate.

Enquanto isso, queridinha já estava enfiada na água até os joelhos. Levantou os braços ao sol poente e cantou.

“Com os diabos, que se banhe de uma vez”, pensou Abe, chateado. Mas como estava bonita deitada na areia feito um novelinho e envolta no roupão felpudo com os olhos fechados! Queridinha Li... E Abe, cheio de emoção, suspirou e beijou a manga de seu roupão. Sim, gostava dela demais. Gostava tanto que até doía.

De repente ouviu um grito penetrante vindo da lagoa.Abe ficou de joelhos para ver melhor. Queridinha Li grita-

va, agitava os braços e corria para a praia, pulando e espalhan-do água ao seu redor... Abe se levantou e correu até ela.

— O que é, Li?(“Olhe como corre de modo esquisito”, avisava-o a voz

fria e crítica. “Levanta tão exageradamente as pernas! E, além disso, por que agita tanto as mãos a sua volta? Em resumo, isso, simplesmente, não é belo. E, ainda por cima, cacareja, sim, cacareja!”)

— O que aconteceu, Li? — Abe, Abe! — choramingou a queridinha, e zás, se pen-

durou nele, molhada e gelada — Abe, havia um animal estra-nho na água.

— Não é nada — consolou-a Abe —, provavelmente al-gum peixe.

— Mas tinha uma cabeçorra terrível! — gemeu a queridi-nha, apertando seu narizinho molhado contra o peito de Abe.

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Abe teve vontade de bater paternalmente em seu ombro, mas, contra o corpo dourado, isso produziria muito barulho.

— Não, não — grunhiu. — Olhe, não há mais nada ali.Li olhou desconfiada para a lagoa.— Foi uma coisa tão terrível... — Suspirou. E de repente

voltou a gritar: — Lá... lá! Você está vendo?Uma cabeça negra se aproximava lentamente da praia,

com a boca se abrindo e fechando. Queridinha gritou histeri-camente e começou a correr como uma desesperada para longe da beira da água.

Abe estava indeciso. “Devo correr atrás de Li para que ela não sinta medo ou ficar aqui para mostrar-lhe que não te-nho medo daquele bicho?” Preferiu, naturalmente, a segun-da opção. Aproximou-se da margem até que a água molhou seus tornozelos, e com os punhos fechados olhou nos olhos do animal. A cabeça negra parou, balançou de forma estranha e disse:

— Ts, ts, ts.Abe sentiu certa angústia, mas dissimulou-a o melhor que

pôde.— O que há? — disse secamente, dirigindo-se à cabeça.— Ts, ts, ts — fez a cabeça. — Abe, Abe, Abe! — gritou queridinha Li. — Já vou! — respondeu Abe, e lentamente (para preservar

sua dignidade) se aproximou da garota. No entanto, parou de novo e olhou para o mar.

Na margem, onde o mar desenhava na areia seu eterno e efêmero rendado, em pé sobre as patas traseiras, estava uma espécie de animal escuro com uma cabeça redonda que se re-torcia. Abe ficou paralisado. Seu coração batia fortemente.

6A PROVA - A Guerra das salamand82 82 3/10/2011 10:41:02

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— Ts, ts, ts... — fez o animal. — Abe... — gemeu a queridinha, quase desmaiando. Abe retrocedeu passo a passo, sem afastar os olhos do ani-

mal. Este não se movia, virando apenas sua imensa cabeça em sua direção.

Abe chegou, finalmente, à sua queridinha, que, deitada com o rosto virado para o chão, chorava horrorizada.

— É uma espécie de foca — exclamou Abe, um pouco inseguro. — Temos que voltar para o barco, Li.

Mas Li só tremia.— Não é nada perigoso — afirmou Abe.Teria preferido ajoelhar-se ao lado de Li, mas deveria per-

manecer, como um valente, entre ela e o estranho animal. “Se eu não estivesse só de calção”, pensou, “ou se tivesse um cani-vete ou um bastão...”

Começava a anoitecer. O animal voltou a se aproximar. Quando estava a uns trinta passos, parou. E depois dele cinco, seis, oito animais absolutamente iguais emergiram do mar e, hesitando, com um movimento balouçante, gingaram até o lugar onde Abe protegia a queridinha Li.

— Não olhe agora, Li. Abe suspirou, mas foi desnecessário, porque Li não olharia

por nada nesse mundo. Do mar vieram novas sombras, que se aproximaram e for-

maram um largo semicírculo.“Já devem ser uns sessenta, pelo menos”, contou Abe men-

talmente. “Aquela coisa clara ali é o roupão de banho da minha queridinha Li.” Sim, era o roupão sobre o qual ela dormia até momentos antes. Enquanto isso, os animais se aproximavam daquele objeto claro, largamente estendido na areia.

6A PROVA - A Guerra das salamand83 83 3/10/2011 10:41:02

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Então Abe fez uma coisa ao mesmo tempo natural e sem sentido, como aquele cavaleiro de Schiller que entrou na jaula do leão para recolher a luva de sua dama. O que se pode fazer! Há tantas coisas naturais e sem sentido que os homens farão enquanto o mundo for mundo! Sem pensar, com a cabeça er-guida e os punhos cerrados, Mr. Abe Loeb se enfiou entre os animais para recuperar o roupão de sua queridinha Li.

Os animais retrocederam um pouco, mas não fugiram. Abe recolheu o roupão, jogou-o sobre o braço, como um tou-reiro, e ficou parado.

— A-be... — gemia uma voz atrás dele. Abe se sentiu impelido por uma força poderosa e uma

grande coragem.— Bem, o que há? — disse àqueles animais, e se aproxi-

mou deles mais um passo. — O que vocês estão mesmo que-rendo?

— Ts, ts, ts... — mascou um dos animais. E depois, com uma espécie de coaxo gutural e envelhecido, se ouviu. — Naif !

— Naif ! — ressoou um pouco mais longe. — Naif, naif !— A-be !— Não tenha medo, Li — gritou Abe.— Li — gritaram diante dele. — Li, Li, A-be ! Abe achou que estava sonhando.— O que é? — Naif !— A-be — gemeu a queridinha Li —, por favor, venha cá!— Já vou. Vocês querem dizer knife? Faca? Eu não tenho

aqui nenhuma faca, não vou machucá-los. O que mais vocês querem?

6A PROVA - A Guerra das salamand84 84 3/10/2011 10:41:02

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— Ts, ts, ts... — pareciam mastigar ruidosamente. Balan-çando-se, aproximavam-se de Abe.

Abe enrolou o roupão ao redor do braço, mas não retro-cedeu.

— Ts, ts, ts... — repetiam os estranhos animais.— O que vocês querem? — perguntou Abe a um animal

que se aproximava. Parecia oferecer-lhe a sua pata dianteira, mas Abe não gostou daquilo.

— O quê? — disse, com certa aspereza. — Naif — latiu o animal, e soltou de sua pata uma coisa

branca como uma gota de água. Mas não era nenhuma gota, porque rolou pela areia.

— Abe — soluçava Li —, não me deixe aqui!Mr. Abe havia perdido completamente o medo.— Saia do meu caminho! — disse, e agitou o roupão. Os animais, surpreendidos, retrocederam desajeitadamen-

te. Agora Abe já podia se afastar com orgulho, mas ainda disse para si mesmo: “Que Li veja como sou corajoso”, e se agachou para pegar aquela coisa branca que o animal deixara cair de sua pata. Eram três bolinhas lisas, duras e de brilho opaco. Mr. Abe aproximou-as dos olhos, porque já escurecia.

— A-be — gemia a abandonada Li. — Já vou — respondeu Mr. Abe. — Li... Tenho um pre-

sentinho para você. Li... Estou levando uma coisa para você.Fazendo o roupão girar sobre sua cabeça, Mr. Abe Loeb

caminhava pela praia como um jovem deus.Li estava sentada de cócoras, como um novelo, e batia os

dentes.— Abe — soluçou —, como você pôde... Como você pôde?Abe se inclinou solenemente diante dela.

6A PROVA - A Guerra das salamand85 85 3/10/2011 10:41:03

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— Lily Valley, os deuses marinhos, ou seja, os tritões, vie-ram render-lhe homenagem. Comunico-lhe que desde os tem-pos em que Vênus surgiu da espuma, nenhuma artista jamais despertou tanta admiração como você. Como prova de seu fascínio, os tritões lhe enviam — Abe esticou a mão — estas três pérolas. Veja.

— Não diga besteira, Abe — resmungou a queridinha Li.— Estou falando sério, Li. Olhe e verá que são pérolas

verdadeiras.— Mostre — choramingou Li, e com os dedos trêmulos

tocou as três bolinhas brancas. — Abe — suspirou —, sim, são pérolas. Você as encontrou na areia?

— Mas Li, queridinha, pérolas não crescem na areia.— Crescem sim — afirmou queridinha. — Está vendo?

Eu já lhe disse que aqui havia muitas pérolas.— As pérolas crescem em uma espécie de moluscos, em

baixo d’água. — disse Abe, quase com segurança. — Eu juro, Li, as pérolas foram trazidas para você por esses tritões. Viram você se banhando e quiseram entregá-las pessoalmente, mas como você estava com tanto medo deles...

— Mas é que são tão feios! — Li suspirou. — Abe, são pérolas magníficas. Eu sou louca por pérolas.

(“Agora está muito bonita”, disse a voz crítica. “Ajoelhada aqui na areia, com as pérolas na mão... Enfim, formidável, é preciso reconhecer.”)

— Abe, e é verdade que foram esses animais que as trou-xeram para mim?

— Não são animais, queridinha, são deuses marinhos. Chamam-se tritões.

Queridinha não se espantou nem um pouco.

6A PROVA - A Guerra das salamand86 86 3/10/2011 10:41:03

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— Isso é muito bonito da parte deles, não é mesmo? São extremamente amáveis. O que você acha, Abe? Devo agrade-cer-lhes de alguma maneira?

— Não está mais com medo deles?Queridinha tremeu.— Estou. Abe, por favor, tire-me daqui!— Olhe, precisamos chegar ao nosso barco — disse Abe.

— Venha sem medo.— Mas eles estão parados no nosso caminho... — gemeu

Li. — Abe, você não prefere ir até eles sozinho? Mas não pode me deixar aqui abandonada!

— Eu a levarei em meus braços — sugeriu Abe heroica-mente.

— Assim eu acho que é possível — aprovou Li.— Mas vista o roupão — grunhiu Abe. — Agora mesmo. — A jovem ajeitou com as duas mãos

seu famoso cabelo dourado.— Não estou horrivelmente despenteada? Abe, você não

tem um batom aí com você?Abe jogou o roupão em seus ombros.— É melhor ir agora, Li. — Eu tenho medo — sussurrou queridinha. Mr. Abe le-

vantou-a nos braços. Li se sentia leve como uma nuvem. “Dia-bos, ela é mais pesada do que você imaginava, não é mesmo?”, disse a voz de Abe, fria e crítica. “E agora suas duas mãos estão ocupadas, homem! Se esses animais vierem atrás da gente, o que acontecerá?”

— Você não quer correr um pouco? — propôs queridinha.— Sim — respondeu Abe, que movia as pernas com difi-

culdade.

6A PROVA - A Guerra das salamand87 87 3/10/2011 10:41:03

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A noite caía rapidamente. Abe se aproximava daquele lar-go semicírculo de animais.

— Ande depressa, Abe, corra, corra! — cochichava a que-ridinha.

Os animais começaram a fazer seu peculiar movimento ondulante com a parte superior do corpo.

— Então corra, corra depressa! — gritava a queridinha Li, esperneando histericamente, enquanto cravava no pescoço de Abe suas unhas pintadas de prata.

— Diabos, Li, me deixe em paz! — grunhiu Abe.— Naif — ladraram ao lado dele. — Ts, ts, ts... Naif, Li,

Naif, Li.Já haviam atravessado o semicírculo e Abe sentia as pernas

afundarem na areia úmida.— Você pode me pôr no chão — disse queridinha no mo-

mento exato em que as mãos e as pernas de Abe começavam a perder força.

Abe ofegava pesadamente, enxugando com o braço o suor da testa.

— Vá para o bote, depressa! — gritou ele para sua queri-dinha Li.

O semicírculo de sombras negras se voltara todo para Li e pouco a pouco se aproximava.

— Ts, ts, ts... Naif. Li. Mas Li não gritou, Li não começou a correr. Levantou os

braços ao céu e o roupão caiu no chão. Li, pelada, movia os braços em direção às sombras e jogava beijos. Em seus lábios trêmulos apareceu uma coisa que todos teriam qualificado de sorriso encantador.

— Vocês são tão doces... — disse com voz vacilante.E seus braços brancos se esticaram de novo para aquelas

sombras cambaleantes.

6A PROVA - A Guerra das salamand88 88 3/10/2011 10:41:03

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— Li, venha me ajudar — grunhiu Abe com rudeza, em-purrando o bote para dentro da água.

A queridinha Li recolheu seu roupão.— Fiquem com Deus, queridinhos! Viram aquelas sombras chapinharem na água em sua direção.— Ande logo, Abe! Rápido, rápido! — gritou Li, correndo

para o bote. — Estão novamente aqui! Abe Loeb tentava desesperadamente enfiar o bote na água.

A Srta. Li pulou para dentro, agitando os braços como numa saudação.

— Fique do outro lado, Abe, você está me encobrindo.— Naif, ts, ts, ts, A-be !— Naif, ts, naif.— Ts, ts, ts.— Naif ! Finalmente o bote balançou sobre as águas. Mr. Abe se

agarrou a ele, apoiando-se com toda a força nos remos. Um deles bateu em algum corpo resvaladiço.

A queridinha Li respirou aliviada.— Não são superamáveis e eu não fiz tudo perfeitamente?Mr. Abe remava com todas as suas forças em direção ao iate.— Vista o roupão, Li — disse secamente.— Acho que fiz um tremendo sucesso — constatou a Srta.

Li. — E essas pérolas, Abe, quanto será que valem?Mr. Abe parou de remar por um momento.— Acho que você não deveria ter se exibido daquela ma-

neira, queridinha.A jovem ficou um pouco ofendida.— E o que é que tem? Logo se vê, Abe, que você não é um

artista. Por favor, reme; estou com frio neste roupão!

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VII

UM iAtE NA LAGoA

(CoNtiNUAÇÃo)

Naquela noite não houve disputas pessoais no iate Gloria Pickford. Foram emitidas apenas taxativas opiniões científicas. Fred (apoiado lealmente por Abe) argumentava que aqueles animais deviam ser alguma espécie de lagartos, enquanto o capitão defendia que eram mamíferos.

— Não há lagartos no mar —, afirmava exaltado o ca-pitão, mas os jovens senhores universitários não cediam aos seus argumentos, porque lagartos eram algo mais sensacional. Queridinha Li se conformou com o fato de serem tritões sim-plesmente encantadores; em resumo, como fizera um tremendo sucesso, estava satisfeita; vestida com o pijama de listras de que Abe gostava tanto e os olhos brilhantes, ela sonhava com as pérolas dos deuses marinhos. Judy estava convencida de que tudo eram embustes inventados por Li e Abe e fazia sinais fu-riosos a Fred para que largasse aquilo. Abe pensava que Li po-deria relatar com entusiasmo como ele se metera sem medo no meio dos lagartos para recolher o roupão que ficara esquecido na areia; e, para ver se ela se animava, repetiu três vezes que Li enfrentara os lagartos enquanto ele empurrava o bote para a água. Já estava a ponto de repetir a história pela quarta vez, embora nem o capitão nem Fred lhe dessem a menor aten-

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ção, envolvidos em sua discussão sobre lagartos e mamíferos. (Como se daquilo dependesse o que havia acontecido, pensou Abe.) Finalmente, Judy bocejou e anunciou que ia dormir, olhando cheia de intenções para Fred, mas este acabara de re-cordar que antes do dilúvio universal existira um tipo de gra-ciosos lagartos — como, diabos, se chamavam? Diplossauros, bigossauros ou algo parecido — que andavam sobre as patas traseiras, meu senhor. Fred vira isso em uma curiosa publi-cação ilustrada, um livro assim de grosso. Um livro imenso, senhor, precisava ver.

— Abe — manifestou-se a queridinha Li —, tenho uma magnífica ideia para um filme.

— Qual?— Uma coisa extraordinariamente nova. Sabe, nosso iate,

por exemplo, afundaria perto desta ilha e só eu me salvaria. E eu viveria aqui sozinha como uma garota Robinson.

— E o que faria aqui sozinha? — perguntou o capitão, ceticamente.

— Tomaria banho e faria também outras coisas — disse simplesmente a queridinha. — E então três tritões marinhos se apaixonariam por mim e me trariam muitas pérolas. Es-tá vendo? Exatamente como aconteceu! Poderia ser, ao mes-mo tempo, um filme educativo e sobre a natureza, vocês não acham? Algo como Trader horn, aquele filme de ficção rodado na África que ganhou o Oscar.

— Li tem razão — disse Fred de repente. — A gente deve-ria filmar esses lagartos amanhã à noite.

— Você quis dizer esses mamíferos — corrigiu-o o capitão.— Ou melhor, filmar a minha pessoa no meio dos tritões

marinhos.

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— Mas de roupão de banho — exigiu Abe. — Usarei o maiô branco — disse Li. — E Greta terá de

fazer um penteado apropriado em mim. Hoje eu estava sim-plesmente horrível.

— E quem vai filmar? — Abe. Pelo menos servirá para alguma coisa. E Judy terá

de cuidar da iluminação se já estiver escuro.— E Fred?— Fred terá um arco e uma coroa na cabeça e, se os tritões

quiserem me levar, me defenderá, não é mesmo?— Obrigado de todo o coração — sorriu Fred —, mas

prefiro usar uma arma. E acho que o capitão também deveria estar lá.

Os bigodes do capitão se eriçaram combativamente.— Não se preocupem. Farei o que for necessário. — E o que vai ser isso?— Levarei três homens da tripulação. E bem armados,

senhor.Queridinha se entusiasmou de forma encantadora.— O senhor acha que são tão perigosos assim, capitão?— Não acho nada, menina — grunhiu o capitão —, mas

tenho ordens de Mr. Jesse Loeb, pelo menos no que se refere ao Sr. Abe.

Os senhores começaram a planejar, cheios de entusiasmo, os detalhes técnicos da produção. Abe piscou para a queridinha.

— Você já deveria estar na cama! — disse, e outras coisas do tipo.

Li saiu, obediente.— Sabe, Abe — disse, já em seu camarote —, acho que

será um filme fantástico.

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— Vai ser, queridinha — afirmou Abe, tentando beijá-la.— Hoje não, Abe... — defendeu-se a queridinha. — Vo-

cê precisa compreender que devo me concentrar terrivelmente para amanhã.

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A Srta. Li passou o dia inteiro se concentrando. A pobre ca-mareira Greta teve as mãos cheias de trabalho. Preparou ba-nhos com sais e essências importantíssimas, lavou cabelos com xampu Everblonde, ondulou-os, penteou-os, fez massagem, maquiou, foi pedicure, provou e passou vestidos, fez pequenos consertos e muitas coisas mais. Judy, arrastada pelo entusiasmo geral, ajudava queridinha Li com desinteresse. (Há momentos em que as mulheres são extremamente leais entre si; quando se trata, por exemplo, de vestidos.) Enquanto no camarote da Srta. Li reinava essa atividade febril, os senhores se reuniam diante de cinzeiros e de cálices com aguardente e discutiam seu plano estratégico: onde cada um ficaria e de que se ocu-paria caso acontecesse algo desagradável. Durante a reunião, o capitão foi ofendido várias vezes em relação a questões de comando. À tarde, enviaram à praia a câmera de filmar, mais uma pequena metralhadora, uma cesta com talheres e comi-da, fuzis, toca-discos e outros objetos necessários em caso de guerra. Tudo isso foi magnificamente camuflado entre folhas de palmeira. Antes do pôr do sol, três homens da tripulação e o capitão investido na função de comandante ocuparam seus postos. Depois foi levado à margem um enorme cesto com algumas miudezas de uso pessoal da Srta. Lily Valley; pouco

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mais tarde, chegaram Fred e a Srta. Judy e, finalmente, o sol começou a se pôr em toda sua magnificência tropical.

Enquanto isso, o Sr. Abe batia — já pela décima vez — com os nós dos dedos na porta do camarote da Srta. Li.

— Queridinha, agora é sério, já estamos no tempo-limite. — Já vou, já vou — respondeu a voz de queridinha. —

Por favor, não me deixe ainda mais nervosa! Tenho que me arrumar, não é mesmo?

O capitão avaliava a situação. Lá adiante brilhava, sobre a superfície das águas, uma espécie de cinturão que separava o fluxo ondulado do mar das tranquilas ondas da lagoa. “É como se houvesse embaixo d’água alguma espécie de dique ou de quebra-ondas”, pensou o capitão. “Talvez seja areia ou um banco de coral, mas parece mais uma obra artificial.” Lugar estranho aquele. Na tranquila superfície da lagoa já apareciam, de vez em quando, algumas cabeças negras que se aproxima-vam da praia. O capitão franziu os lábios e apertou, intran-quilo, sua pistola. Seria melhor se as mulheres ficassem no barco. Judy começou a tremer, pendurando-se freneticamente em Fred. “Como ele é forte, meu Deus”, pensou, “e como eu gosto dele.”

Por fim o último bote abandonou o iate. Nele estava a Srta. Lily Valley, com um maiô branco e um dressing gown transparente no qual, aparentemente, seria lançada nas águas depois do naufrágio. Com ela estavam também a Srta. Greta e Mr. Abe.

— Por que está remando tão devagar, Abe? — queridinha jogou-lhe na cara.

Mr. Abe olhou as cabeças negruscas que se aproximavam da margem e não disse nada.

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— Ts, ts, ts. — Ts, ts, ts.Mr. Abe puxou o bote para a praia e ajudou Li e a Srta.

Greta a descer.— Vá correndo e se prepare para filmar — sussurrou-lhe a

artista. — Quando eu disser “agora”, comece a rodar.— Mas não se vê mais nada — objetou Abe. — Pois então Judy terá de iluminar. Greta!Enquanto Mr. Abe ocupava seu posto junto à câmera, a

artista se deixou cair na areia como um cisne moribundo, e a senhorita ajeitou as pregas de seu dressing gown.

— Que dê para ver um pouco das minhas pernas — sus-surrou a náufraga. — Está pronto? Fora mulher! Abe, agora!

Abe começou a girar a manivela— Judy, luz! Mas nenhuma luz se acendeu. Do mar saíam sombras

cambaleantes que se aproximavam de Li. Greta teve de enfiar uma mão na boca para não gritar.

— Li! — gritou Mr. Abe. — Fuja, Li!— Naif, ts, ts, ts... Li, Li, Abe...Alguém engatilhou um revólver.— Diabos, não disparem! — murmurou o capitão. — Li! — gritou Abe, parando de rodar. — Judy, luz! Li, lentamente, com movimentos graciosos, ergueu-se e

começou a levantar seus braços para o céu. O leve dressing gown escorregou de seus ombros. A branca Li apareceu levan-tando seus encantadores braços acima da cabeça, como fazem os náufragos ao voltar a si após um desmaio. Mr. Abe fez girar violentamente a manivela.

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— Diabos, Judy, acenda!— Ts, ts, ts.— Naif, naif.— Naif.— A-be.As sombras negras se balançavam e fechavam o círculo ao

redor da branca Li. — Esperem, esperem! Isso não é mais uma brincadeira.

— Li já não levantava os braços sobre a cabeça, mas tentava afastar alguma coisa de seu corpo, gritando:

— Abe, Abe, aquela coisa tocou em mim!Naquele momento, tudo ficou iluminado por uma luz ce-

gante. Abe moveu rapidamente a manivela, Fred e o capitão, com os revólveres engatilhados, correram até Li, que estava de cócoras, soluçando aterrorizada. Ao mesmo tempo puderam ser vistas, correndo sob a luz abrupta, dezenas e centenas da-quelas longas e escuras formas que se lançavam no mar. Dois marinheiros atiraram uma rede sobre uma das sombras que fugia. Greta, por sua vez, desmaiou, desabando como um sa-co. Ouviram-se dois ou três disparos; o mar se agitou como se estivesse em ebulição. Os marinheiros que sustentavam a rede estavam agachados sobre algo que se retorcia e forcejava debaixo dela. De repente, a luz que estava nas mãos da Srta. Judy se apagou.

O capitão acendeu sua lanterna de bolso.— Menina, aconteceu alguma coisa com você?— Aquilo roçou minha perna! — gemeu queridinha. —

Fred, foi uma coisa tão terrível! Mr. Abe também se aproximou com sua lanterna.— Foi magnífico, Li, mas Judy devia ter iluminado antes!

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— Mas não queria acender! — gritou Judy. — Não é ver-dade que não queria acender, Fred?

— Judy estava com medo — tentou desculpá-la Fred. — Eu lhes juro que não fez de propósito, não é verdade, Judy?

Judy se ofendeu. Enquanto isso, os dois marinheiros se aproximaram, levando na rede algo que se agitava como um enorme peixe.

— Está aqui, capitão! E vivinho. — Monstro, atirou uma espécie de veneno na gente. Tenho

as mãos cheias de bolhas, e elas queimam como o inferno.— Ele também me tocou! — gemeu a Srta. Li. — Abe,

acenda. Não tenho alguma bolha aqui?— Não, você não tem nada, queridinha — garantiu Abe,

que teria beijado com gosto seu joelho. Mas queridinha, preo-cupada, continuava esfregando a perna.

— Era uma coisa tão fria, brrr — queixou-se queridinha.— A senhorita perdeu uma pérola, madame — disse de

repente um dos marinheiros, entregando a Li uma bolinha que acabara de recolher na areia.

— Meu Deus, Abe! Voltaram a me trazer pérolas! — gri-tou a Srta. Li. — Crianças, venham me ajudar a procurar pé-rolas! Deve haver uma barbaridade de pérolas por aqui, esses pobrezinhos as trouxeram para mim. São simpaticíssimos, não é verdade, Fred? Outra pérola? E aqui!

Três lanternas voltaram seus círculos luminosos para o chão.

— Encontrei uma imensa!— É minha — gritou a Srta. Li. — Fred! — soou a voz fria de Judy.

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— Imediatamente! — respondeu Fred, arrastando os joe-lhos na areia.

— Fred, quero voltar para o iate.— Alguém a levará até lá — sugeriu Fred, muito ocupado.

— Com os diabos, como isso é divertido!Três homens e a Srta. Li se mexiam na areia como enormes

vaga-lumes.— Aqui há três pérolas! — anunciou o capitão.— Mostre, mostre! — gritou Li entusiasmada, correndo

de joelhos até o capitão.Naquele momento, brilhou uma luz de magnésio e se ou-

viu a manivela da câmera cinematográfica.— Bem, agora sim eu os filmei — declarou, vingativa,

Judy. — Será uma magnífica fotografia para os jornais. “Alta Sociedade Americana Procura Pérolas”. “Lagartos Marinhos Atiram Pérolas às Pessoas”.

Fred sentou.— Com os diabos! Judy tem razão. Ei, rapazes, devemos

publicar isso nos jornais.Li sentou.— Judy é queridinha. Judy, por favor, rode mais algumas

cenas, dessa vez de frente.— Você perderia muito, amorzinho — disse Judy.— Crianças, faríamos melhor se continuássemos procu-

rando. A maré alta está chegando.Na escuridão, na beira da praia, agitou-se uma sombra ne-

gra. Li deu um grito, horrorizada.— Ali, ali... Três lanternas dirigiram a luz para aquele lado. Era apenas

Greta que, de joelhos, procurava pérolas no escuro.

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Li tinha no colo o boné do capitão, que continha 21 pérolas. Abe servia bebidas e Judy brincava com o gramofone. Era uma belíssima noite estrelada acompanhada pelo eterno sussurro do mar.

— Bem, que título vamos usar? — perguntou Fred.— Filha de industrial de Milwaukee filma répteis

Fósseis.— Lagartos antediluvianos rendem homenagem à beleza e à

juventude — sugeriu Abe poeticamente.— Iate Gloria Pickford descobre seres desconhecidos

— opinou o capitão. — Ou talvez O mistério da Ilha de

Tahaura.— Isso serviria mais como subtítulo. O título deve dizer

muito mais.— Talvez: Baseball Fred luta contra monstros —

exclamou Judy. — Fred estava formidável quando se lançou contra eles. O importante é que saia bem no filme.

O capitão tossiu:— É que eu cheguei antes, Srta. Judy, mas não falemos

disso. Acho que o título deve ser científico. Precisa ser sucinto e... Em resumo, científico. Animais pré-diluvianos em ilha

do Pacífico.— Pré-diluvianos? — corrigiu Fred. — Não! Pré-diluvia-

nos? Diabos, como se diz? Antediluvianos, anti-individuais, antidiluvianos... Não, não pode ser. É preciso usar um título mais simples, para que todo mundo possa pronunciá-lo. Judy é craque nisso.

— Antediluvianos — disse Judy.

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Fred fez que não.— Muito longo, Judy. Mais longo do que esses bichos,

com cauda e tudo. O título deve ser conciso, mas Judy é fan-tástica, não é? Diga você, capitão! Não é verdade que é mag-nífica?

— É — corroborou o capitão. — Uma garota excelente.— Você é um bom rapaz, capitão — disse, agradecido,

o jovem colosso. — Rapazes, o capitão é um sujeito formi-dável, mas pré-diluviano é uma estupidez. Não é título para jornal! Melhor seria Os amantes da Ilha Das Pérolas ou algo assim.

— Tritões enchem branca Lily de pérolas — gri-tou Abe. — Homenagem do império de Poseidon. Nova

Afrodite! — Bobagem — protestou Fred, excitado. — Nunca exis-

tiram tritões. Isso está comprovado cientificamente, garoto. E tampouco houve uma Afrodite, não é verdade, Judy? Choque

de seres humanos com lagartos pré-históricos! Valente

capitão ataca monstros antediluvianos. Homem, um tí-tulo desses seria impressionante.

— Edição especial — gritou Abe. — Artista de cinema

atacada por monstros marinhos. Sex appeal de mu-

lher moderna vence lagartos pré-históricos. Répteis

fósseis preferem as loiras!

— Abe — ouviu-se a voz da queridinha Li —, tenho uma ideia.

— Qual? — Para um filme... Seria uma coisa formidável, Abe. Ima-

gine que eu estaria me banhando na beira do mar...

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— Esse maiô lhe assenta à perfeição, Li — respondeu apressadamente Abe.

— Verdade? E os tritãos se apaixonariam por mim e me levariam ao fundo do mar e eu seria sua rainha.

— Ao fundo do mar?— Sim, embaixo d’água. Ao seu império secreto, sabe?

Eles, é claro, devem ter suas cidades.— Mas, queridinha, você se afogaria!— Não se preocupe, sei nadar — disse a queridinha dis-

plicentemente. — Uma vez por dia, sairia à superfície para respirar um pouco de ar. — Li fez uma excelente exibição de exercícios respiratórios, acompanhados de agitados movimen-tos dos seios e compassadas braçadas de nadadora. — Algo assim, o que você acha? E na praia se apaixonaria por mim... Quem sabe um jovem pescador... E eu por ele. Loucamente! — suspirou queridinha. — Ele seria forte e belo. Os tritões tentariam afogá-lo, mas eu o salvaria e fugiria com ele para sua cabana. Os tritões nos cercariam e depois... Bem, depois vocês poderiam chegar e nos salvar.

— Li — disse Fred com seriedade —, isso é tão estúpido que juro, por minha saúde, que poderia ser filmado. Difícil seria o velho Jesse transformar isso em um grande filme.

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Fred tinha razão. Com o tempo, aquilo serviu de base para um grande filme, produzido pela Jesse Loeb Pictures com a Srta. Lili Valley no papel principal. Além do mais, foram emprega-das seiscentas nereidas, um Netuno e 12 mil extras fantasia-dos dos mais variados lagartos antediluvianos. Mas, antes que

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tudo isso acontecesse, correu muita água pelos rios e diversos acontecimentos tiveram lugar, entre outros:

1. O animal capturado, guardado na banheira do camaro-te de queridinha Li, foi, durante dois dias, o centro de atenção de todo o grupo. No terceiro dia, parou de se mexer e a Srta. Li garantiu que o pobrezinho estava nostálgico. No quarto dia, começou a feder e teve de ser lançado ao mar em avançado estado de decomposição.

2. Das cenas filmadas no lago, só duas estavam em boas condições. Em uma delas, queridinha Li, de cócoras, se de-fendia aterrorizada dos animais eretos que a cercavam. Todos garantiram que era uma tomada magnífica. Na segunda, havia três homens e uma garota ajoelhados e com os narizes roçando o solo. Todos estavam de costas e pareciam adorar alguém. A tomada foi rechaçada por unanimidade.

3. Quanto às manchetes dos jornais, deve-se dizer que quase todas foram aproveitadas (sim, até aquelas da fauna an-tediluviana). Foram publicadas em centenas e centenas de diá-rios americanos e, em geral, em jornais, semanários e revistas de todo o mundo. Sob os títulos ia uma relação dos aconte-cimentos, com toda uma série de detalhes e fotografias, tais como: fotografia de queridinha Li entre os lagartos; fotografia de um lagarto solitário na banheira; fotografia de Li sozinha em traje de banho; fotografia da Srta. Judy, de Mr. Abe, de Ba-seball Fred, do capitão do iate, do próprio iate Gloria Pickford, da ilha de Taraiva e das pérolas, colocadas sobre veludo negro. Com isso a carreira de queridinha Li estava garantida. Até re-cusou as ofertas que lhe faziam para trabalhar em espetáculos de teatro de revista e declarou, em entrevista, que pensava em dedicar-se apenas à Arte.

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4. Sem dúvida, também houve gente que, baseando-se em conhecimentos científicos, garantisse que — de acordo com as fotografias — não se tratava de lagartos pré-históricos, mas sim de uma espécie de salamandras. Pessoas ainda mais catego-rizadas disseram, mais tarde, que tal classe de salamandras não havia sido reconhecida cientificamente e que, portanto, nem mesmo existiam. Houve longos debates na imprensa em torno disso e eles foram encerrados pelas declarações do professor J. W. Hopkins (Universidade de Yale). A destacada autoridade disse que examinara detidamente as fotografias e que as consi-derava uma pilhéria (hoax) ou resultado de truques cinemato-gráficos; que os animais retratados recordavam, de certo mo-do, a Grande Salamandra (Cryptobranchus japonicus, Sieboldia maxima, Tritomegas Sielbodia ou Megalobatrachus Sieboldia), mas não exatamente, pois parecia uma imitação torpe, feita por pessoas que entendem pouco do assunto. E assim o assun-to ficou resolvido cientificamente, por algum tempo.

5. Finalmente, e no momento oportuno, Mr. Abe Loeb contraiu matrimônio com a Srta. Judy. Baseball Fred, seu melhor amigo, foi testemunha do casamento, celebrado com grande solenidade e na presença de destacadas personalidades dos círculos políticos, artísticos e outros.

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VIII

ANDRiAS SCHEUCHZERi

A curiosidade humana é infinita. As pessoas não se conforma-ram com as declarações do professor J. W. Hopkins (Univer-sidade de Yale), a maior autoridade viva em répteis da época, de que aqueles misteriosos animais eram uma verdadeira frau-de anticientífica e pura fantasia. Na imprensa especializada e nos demais jornais começaram a se multiplicar notícias sobre a aparição de certos animais, até então desconhecidos, pareci-dos com enormes salamandras, nos lugares mais diversos do oceano Pacífico. As notícias relativamente mais convincentes eram as de que haviam sido encontradas algumas daquelas salamandras nas ilhas Salomão, na ilha Schouten, em Kan-pingamarangi, Butarita e Tapeteuea e, além do mais, em todo o seguinte grupo de ilhas: Nukufetau, Funafuti, Nukomono e Fukaofu, depois até em Hiau, Uahuka, Uapu e Pukapuka. Foram citadas lendas sobre os diabos do capitão Van Toch (sobretudo na região da Melanésia) e sobre os tritões da Srta. Lily (especificamente na região da Polinésia). Os jornais consideraram que se tratava, certamente, de alguma espécie descendente dos monstros submarinos antediluvianos, em es-pecial porque começara a temporada de verão e não havia o que escrever. Os monstros pré-históricos faziam muito sucesso entre os leitores, em particular nos Estados Unidos, onde os

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tritões entraram em moda. Em Nova York, foi apresentado mais de trezentas vezes consecutivas um show sobre Poseidon e trezentos formosos tritões, nereidas e sereias. Em Miami e nas praias californianas, a juventude se banhava com trajes de tritão e nereida (ou seja, três fileiras de pérolas e nada mais), enquanto nos estados do centro e do centro-oeste se fortale-ceu extraordinariamente o Movimento para a Defesa da Moral (MDM), e por esse motivo aconteceram manifestações de rua durante as quais vários negros foram em parte enforcados e em parte levados à fogueira.

Finalmente se publicou, na National Geographic Magazi-ne, um boletim da Expedição Científica da Universidade de Columbia (organizada a expensas de J. S. Tincker, chamado de o Rei das Conservas); as informações eram assinadas por P. L. Smith, W. Kleinschmidt, Charles Kovar, Louis Forgeron e D. Herrero, quer dizer, por autoridades de fama mundial, especialmente no ramo de parasitas de peixes, lombrigas, bio-logia das plantas, cefalópodes e pulgões. Publicamos aqui um resumo das informações:

(...) Na ilha Rakahanga a expedição tropeçou, pela primei-ra vez, com pegadas das patas traseiras de uma salamandra até então desconhecida. Essas pegadas têm cinco dedos, cujo comprimento oscila entre 3 e 4 centímetros. Pelo número de pegadas encontradas nas praias da ilha de Rakahanga, deve haver ali um verdadeiro formigueiro de salamandras. Por não terem sido encontradas pegadas das patas dianteiras (à exce-ção de uma pegada de quatro dedos, seguramente de alguma salamandra mirim), a expedição deduziu que esses animais

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andam, com toda a probabilidade, sobre suas extremidades inferiores.

Queremos sublinhar que na ilhota de Rakahanga não existe nenhum rio ou pântano; essas salamandras devem viver, pois, no mar, e são com toda segurança as únicas de sua espécie a habitar um ambiente pelágico. É sabido que o axolotle mexicano (Amblystoma mexicanum), uma espécie de anfíbio caudado, vive em lagos de água salgada, mas não encontramos referência alguma a salamandras pelágicas (que vivem nos mares) nem mesmo na obra clássica de W. Korn-gold intitulada Anfíbios caudados (Urodelos), Berlim, 1913.(...) Esperamos até o pôr do sol para caçar ou pelo menos ver um exemplar vivo, mas inutilmente. Abandonamos, la-mentando, a encantadora ilhota de Rakahanga, na qual D. Herrero conseguiu encontrar uma bela nova classe de perce-vejo (...)

Na ilhota de Tongarewa tivemos, de longe, muito mais sorte. Ficamos esperando na praia com os fuzis engatilhados. Ao cair da tarde, emergiu das águas uma cabeça de salaman-dra, relativamente grande e um pouco achatada. Ao cabo de alguns momentos, as salamandras começaram a sair do mar e caminharam até a praia, balançando-se, mas bastante firmes em suas patas traseiras. Sentadas, tinham altura de pouco mais de 1 metro. Sentaram-se em círculo e começaram, com certos movimentos especiais, a retorcer a parte superior do corpo, como se dançassem. W. Kleinschmidt se levantou para ver melhor. As salamandras voltaram suas cabeças para ele e, por alguns instantes, ficaram paralisadas. Depois se aproximaram com grande velocidade, produzindo sons guturais, como se ladrassem. Quando já estavam cerca de sete passos de distân-

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cia, disparamos nossos fuzis. Elas fugiram precipitadamen-te e mergulharam no mar. Não voltaram a aparecer naquela tarde. Na praia, ficaram apenas duas salamandras mortas e uma com a espinha quebrada, que emitia uns sons especiais, parecidos com “ogod, ogod, ogod”. Morreu mais tarde, quando W. Kleinschmidt abriu com uma faca sua cavidade toráci-ca. (Segue um informe anatômico detalhado, que nós, leigos na matéria, dificilmente entenderíamos; os leitores especializados podem consultar o citado boletim.)

Ficou claro, então, a partir das características apontadas acima, que se tratava de um típico exemplar dos répteis cau-dados (urodelos), os quais, como todo mundo sabe, perten-cem à família das verdadeiras salamandras (Salamandrida), que, por sua vez, abarca o grupo dos tritões, salamandras, galipatos e todos os anfíbios pisciformes (Ichthyoidea), inclu-sive os branquiados (Cryptobranchiata e Phanerobranchiata). A salamandra descoberta na ilha de Tongarewa parece ser o parente mais próximo da salamandra anfíbia e, por muitos outros detalhes, entre eles seu tamanho, recorda a salamandra gigante japonesa (Megalobatrachus Sieboldii) e a americana hellbender, chamada de “diabo do barro”, delas se distinguin-do por ter sentidos mais desenvolvidos e as extremidades mais fortes, o que lhe permite mover-se com bastante habilidade na água ou na terra. (Seguem informações detalhadas sobre ana-tomia comparada.)

Quando estudamos os esqueletos dos animais que havía-mos matado, descobrimos uma coisa muito interessante: o esqueleto dessas salamandras coincide exatamente com as pe-gadas fósseis do esqueleto de salamandra encontrado em uma lousa de ônix pelo Dr. Johannes Jakub Scheuchzeri, que o

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descreveu em seus escritos, publicados em 1726, como “Ho-mo diluvii testis”.

Recordaremos aos leitores menos especializados que o citado Dr. Scheuchzeri considerava que o citado fóssil era formado por restos do homem antediluviano. Ele escreveu:

“Segundo a figura anexada, apresentada ao mundo erudi-to em uma magnífica gravura em madeira, é possível compro-var, sem sombra de dúvida, que se trata do retrato do homem que foi testemunha do dilúvio universal. Não há uma única linha a que uma imaginação exuberante tivesse de recorrer para encontrar semelhanças com o homem; pelo contrário, existe uma completa harmonia com as diferentes partes do esqueleto humano, e, ao mesmo tempo, uma perfeita sime-tria. A fotografia do homem fóssil apresentada nas primeiras páginas é um monumento à humanidade extinta, ele é mais antigo do que todos os túmulos romanos e gregos, e até egíp-cios, e de todo o Oriente em geral.”

Mais tarde, Cuvier reconheceu nas pegadas fósseis do ônix o esqueleto de uma salamandra fossilizada, que chamou

Andrias Scheuchzeri

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de Andrias Scheuchzeri Tschudi, e que foi considerada parte de uma espécie desaparecida há muito tempo. Através de uma comparação osteológica, conseguimos relacionar nossa salamandra ao antigo e possivelmente desaparecido Andrias Scheuchzeri. O misterioso lagarto pré-histórico, como é cha-mado pelos jornais, não é outra coisa senão a salamandra fóssil Andrias Scheuchzeri, ou, se é necessário aplicar-lhe um nome novo, Criptobranchus Tinckeri Erectus, ou seja, sala-mandra gigante da Polinésia.

(...) Continua sendo um mistério a razão pela qual es-sa salamandra tão interessante escapou à atenção da ciência, apesar de aparecerem em grande número, pelo menos nas ilhas Rakahanga e Tongarewa, do arquipélago de Manihiki. Nem sequer foram nomeadas por Randolph e Montgomery em seu livro Dois anos no arquipélago Manihiki (1885). Os nativos desses lugares asseguram que estes animais — que consideram venenosos — começaram a aparecer somente há cerca de sete ou oito anos. Contam que os “diabos marinhos” sabem falar (!) e constroem nos golfos em que vivem uma série de defesas e diques ao estilo de cidades submarinas. Di-zem que, nesses golfos, a água é calma durante todo o ano, como a de um tanque, e que edificam embaixo d’água metros e metros de passadiços onde vivem durante o dia. À noite, saem para roubar inhame, batata-doce e outros tubérculos dos campos, carregando, também, as enxadas, picaretas e ou-tras ferramentas dos camponeses. As pessoas não gostam de-les e até os temem, e por isso, em muitos casos, eles preferem abandonar o lugar e mudar para outras paragens. Trata-se, certamente, apenas de lendas primitivas; talvez a imaginação dos nativos tenha sido amplificada pelo aspecto repugnante

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dessas grandes salamandras que caminham quase como seres humanos.

(...) É necessário citar, ainda que com reserva, as notícias de viajantes e exploradores segundo as quais tais salamandras também apareceram em outras ilhas além das Manihiki. Por outro lado, não resta a menor dúvida de que as pegadas de patas traseiras aparecidas recentemente em uma praia da ilha de Tongatabu pertencem, segundo publicou o capitão Crois-set em La Nature, a Andrias Scheuchzeri. Essa descoberta é especialmente importante, porque estabelece uma relação dos achados das ilhas Manihiki com a região australiana e neo-zelandesa, que guarda tantos resíduos da evolução da fauna pré-histórica. Recordemos, principalmente, o lagarto “ante-diluviano” Hatterii ou Tuataru, que ainda hoje vive na ilha de Stephen. Nessas ilhotas isoladas, em geral pouco habitadas e afastadas da civilização, é possível que se tenham conservado exemplares desse tipo de fauna, desaparecida de outros luga-res. Ao lagarto fossilizado Hatterii é preciso acrescentar agora, graças ao senhor J. S. Tincker, a salamandra antediluviana. O bom Dr. Johannes Jakub Scheuchzeri teria podido testemu-nhar agora a ressurreição de seu Oeningen Adam...

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Esse boletim tão científico teria bastado, certamente, para es-clarecer, do ponto de vista da ciência, a questão dos miste-riosos monstros marinhos que tantas discussões haviam sus-citado. Desgraçadamente, foi publicado ao mesmo tempo o informe de um expert holandês chamado Van Hogenhouck, que classificou a mencionada salamandra gigante no grupo das

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verdadeiras salamandras ou tritões, sob o nome de Megatriton moluccanus, e indicou sua multiplicação nas ilhas holandesas de Sunda, Dgilolo, Moratai e Ceram. Também influiu a opi-nião do cientista francês Dr. Mignard, que as classificou como salamandras típicas, dando-lhes como lugar de origem as ilhas francesas de Takaros, Rangiroa e Raroira e nomeando-as, sim-plesmente, de Cryptobranchus salamandroides. Ainda citaremos o informe de W. Spencer, reconheceu que nelas uma nova es-pécie de pelágicos naturais das ilhas Gilbert, capaz de adquirir existência zoológica sob o nome genérico de Pelagotriton Spen-cei. O Sr. Spencer conseguiu transportar um exemplar vivo ao Jardim Zoológico de Londres, onde foi objeto de novas investigações sob os nomes de Pelagobatrachus Hooker, Sala-mandrops maritimus, Abranchus giganteus, Amphiuma gigas e muitos outros. Muitos experts asseguraram que o Pelagotriton Spencei era em tudo semelhante ao Cryptobranchus Tinckeri e que a salamandra de Mignard não era outra senão a Andrias Scheuchzeri. Houve muitas discussões sobre prioridade e ou-tras questões puramente científicas e, por fim, ocorreu que a história natural de cada país teve sua própria salamandra, cri-ticando com crueldade as salamandras de outros países. Por isso, nunca se conseguiu uma clara explicação científica sobre a importante questão das salamandras.

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IX

ANDREw SCHEUCHZERi

Aconteceu numa quarta-feira, quando o Jardim Zoológico de Londres estava fechado ao público. O Sr. Thomas Greggs, guarda do pavilhão de répteis, limpava os tanques e terrenos de seus protegidos. Estava completamente só no departamento das salamandras, cuja mostra era formada pela salamandra gi-gante japonesa, o hellbender americano, o Andrias Scheuchzeri e toda uma série de pequenos lagartos, salamandras, ambis-tomas mexicanum, enguias, sirênios e anfíbios, pleurodilos e branquiados. O Sr. Greggs se esmerava com o pano de chão e a vassoura, assoviando Annie Laurie, quando, de repente, coaxaram às suas costas:

— Olhe, mamãe. O Sr. Greggs se virou e não viu ninguém. Apenas o hellben-

der mastigava e aquela salamandra negrusca e grande, aquele Andrias, estava apoiada com as patas dianteiras na borda do tanque e retorcia o corpo.

“Devo ter sonhado...”, pensou o Sr. Greggs, e continuou varrendo o chão até deixá-lo reluzente.

— Olhe, uma salamandra — ouviu de novo às suas costas.O Sr. Greggs virou-se rapidamente. Aquela salamandra

negra, aquele Andrias, olhava-o, piscando as sobrancelhas in-feriores.

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— Brrr, como é feio! — disse de repente a salamandra. — Vamos sair daqui, querido.

O Sr. Greggs ficou boquiaberto.— O quê?— Ele não morde? — grasnou a salamandra.— Você... Você sabe falar? — gaguejou o Sr. Greggs, não

acreditando nos seus sentidos. A salamandra contorceu o corpo.— Eu tenho medo — expeliu a salamandra. — Mamãe,

o que ele come? — Diga bom-dia — disse, admirado, o Sr. Greggs. A salamandra se retorceu.— Bom-dia — disse em uma espécie de ladrido. — Bom-dia,

bom-dia. Pode me dar um pedaço de bolo? O Sr. Greggs, confuso, enfiou os dedos em um bolso e

achou um pedaço de biscoito.— Tome. A salamandra pegou o biscoito com uma pata e começou

a mordiscá-lo.— Olhe, uma salamandra — disse, satisfeita. — Papai,

por que é tão negra? A salamandra mergulhou de repente na água e só deixou

a cabeça de fora.— Por que está na água? Por quê? Nossa, como é feia!O Sr. Greggs coçou a nuca, surpreso. “Ora”, pensou, “a

salamandra repete o que ouve a gente dizer.”— Diga Greggs — experimentou.— Diga Greggs — repetiu a salamandra.— Sr. Thomas Greggs.— Sr. Thomas Greggs.

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— Bom-dia, senhor.— Bom-dia, senhor. Bom-dia, senhor. Bom-dia, senhor. Parecia que a salamandra não conseguia saciar sua vontade

de falar, mas Greggs já não sabia o que dizer. O Sr. Thomas Greggs não era um homem de muitas palavras.

— Então feche a boca agora — disse. — Quando termi-nar o trabalho, se você quiser, eu lhe ensinarei a falar.

— Então feche a boca agora — disse. — Quando termi-nar o trabalho, se você quiser, eu lhe ensinarei a falar. Bom-dia, senhor. Olhe, salamandra. Vou ensiná-la a falar.

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Acontece que a direção do Zoo não via com bons olhos que os guardas ensinassem qualquer truque a seus pupilos. Os ele-fantes eram coisa diferente, mas os outros animais estavam ali para servir ao ensino e não deviam fazer exibições circenses. Por isso o Sr. Greggs despendia seu tempo no pavilhão das salamandras meio secretamente, quando não havia mais nin-guém por ali. Como era viúvo, ninguém achava estranho o seu isolamento. Cada pessoa tem os próprios hábitos. Além do mais, pouca gente frequentava o pavilhão das salamandras. O crocodilo, por exemplo, gozava de muito mais popularidade, mas Andrias Scheuchzeri passava dias e mais dias em relativa solidão.

Uma vez, quando escurecia e os pavilhões estavam sendo fechados, o diretor do Zoo, Sir Charles Wiggan, visitava algu-mas seções para certificar-se de que tudo estava em ordem. Ao passar pelo pavilhão das salamandras, ouviu um barulho de água sendo agitada em um dos tanques e alguém coaxou:

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— Boa-noite, senhor.— Boa-noite — respondeu o diretor, surpreso. — Quem

está aí? — Perdão, senhor — coaxou a voz. — Não é o Sr. Greggs.— Quem está aí? — repetiu o diretor. — Andy, Andrew Scheuchzer.Sir Charles aproximou-se mais do tanque. Nele havia, ape-

nas, uma salamandra em pé e imóvel.— Quem está falando?— Andy, senhor — disse a salamandra. — Quem é o

senhor?— Wiggan — disse, maravilhado, Sir Charles.— Muito prazer — respondeu Andrias respeitosamente.

— Como vai o senhor? — Com os diabos! — gritou Sir Charles. — Greggs! Ei,

Greggs!A salamandra deu meia-volta e desapareceu rapidamente

na água.O Sr. Greggs apareceu na porta, ofegante e inquieto.— Deseja alguma coisa, senhor?— Greggs, o que significa isso? — explodiu Sir Charles.— Aconteceu alguma coisa, senhor? — gaguejou Greggs,

inseguro.— Este animal fala!— Perdão, senhor — disse o Sr. Greggs confuso. — Não

se deve fazer uma coisa dessas, Andy. Eu já lhe disse mil vezes para não chatear as pessoas com sua conversa. Perdoe-me, Sir Charles, mas isso não voltará a se repetir.

— Você ensinou essa salamandra a falar?

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— Foi ela quem começou — tentou desculpar-se o Sr. Greggs.

— Espero que isso não volte a se repetir, Greggs — disse severamente Sir Charles. — Vou ficar de olho em você.

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Algum tempo depois o diretor Sir Charles estava conversando com o professor Petrov sobre a chamada inteligência dos ir-racionais, os reflexos condicionados e a tendência das pessoas a exagerar o conhecimento dos animais. O professor Petrov manifestou suas dúvidas sobre os cavalos de Elberfeld, que, segundo se dizia, sabiam não apenas contar, mas também po-tencializar os números e calcular raízes quadradas. “Ora, nem um homem com uma cultura normal entende de raiz quadra-da”, pensava o célebre professor. Sir Charles se lembrou da salamandra falante de Greggs.

— Eu tenho aqui uma salamandra... — começou, indeci-so. — É a conhecida Andrias Scheuchzeri. O senhor sabe que ela aprendeu a falar como um papagaio?

— Impossível! — disse o erudito. E, depois de um momento, acrescentou:— As salamandras têm a língua presa.— Então venha vê-la — disse Sir Charles. — Hoje é dia

de limpeza e por isso não haverá muita gente.E foram.Sir Charles se deteve na entrada do pavilhão das salaman-

dras. Lá dentro se ouvia o roçar da vassoura contra o chão e uma voz monótona que escandia alguma coisa.

— Espere — cochichou Sir Charles Wiggan.

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— Há gente em Marte? — silabava a voz monótona. — Quer que eu leia?

— Leia-me qualquer coisa, Andy — respondeu uma se-gunda voz.

— Quem ganhará o Derby este ano, Pelham-Beauty ou Gobernador?

— Pelham-Beauty — respondeu a outra voz —, mas leia. Sir Charles abriu silenciosamente a porta. O Sr. Thomas

Greggs varria o chão e no tanque com água do mar estava sentado Andrias Scheuchzeri, que lentamente, com uma voz que mais parecia um grasnido, silabava diante de um jornal vespertino que sustentava nas patas dianteiras.

— Greggs! — chamou Sir Charles. A salamandra sacudiu o corpo e desapareceu imediata-

mente debaixo d’água.O Sr. Greggs, assustado, deixou a vassoura cair.— Sim, senhor... — O que significa isso?— Imploro que me desculpe, senhor — gaguejou o infeliz

Greggs. — Andy lê para mim enquanto eu limpo, e quando ele varre, leio eu para ele.

— E quem o ensinou? — Aprendeu sozinho, senhor. Eu... Eu lhe dou o jornal

para que não fale tanto. Ele quer falar o tempo todo. Achei então que seria melhor que aprendesse a falar como uma pes-soa culta.

— Andy — chamou Sir Charles Wiggan. A cabeça negra saiu da água.— Sim, senhor — grasniu.— O professor Petrov veio vê-lo.

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— Muito prazer, senhor. Sou Andy Scheuchzeri.— E como você sabe que seu nome é Andrias Scheuchzeri?— Está escrito aqui, senhor. Andrias Scheuchzeri. Gilbert

Islands. — E você lê jornais com muita frequência?— Sim, senhor. Todos os dias, senhor.— E o que lhe interessa mais nos jornais?— Notícias da corte criminal, corridas de cavalo, futebol...— Já viu algum jogo de futebol?— Não, senhor.— Ou uma corrida de cavalos?— Não, senhor.— Então, por que lê a respeito?— Porque está no jornal, senhor.— Não se interessa pela política?— Não, senhor. Haverá guerra?— Isso ninguém sabe, Andy.— Alemanha constrói novo tipo de submarino — disse

Andy, preocupado. — Raios da morte podem transformar fortaleza em deserto.

— Você também leu isso no jornal? — perguntou Sir Charles.

— Sim, senhor. Próximo Derby será vencido por Pelham-Beauty ou Gobernador?

— O que você acha, Andy? — Gobernador, senhor. Mas o Sr. Greggs acredita em Pe-

lham-Beauty. — Andy mexeu a cabeça.— Compre mercadorias inglesas, senhor. Os melhores

suspensórios são os Snider! O senhor já comprou o novo seis cilindros Tancred Junior? Rápido, barato, elegante!

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11�

— Obrigado, Andy. Já basta. — Que artistas de cinema você prefere?O professor Petrov ficou com os cabelos e os bigodes eri-

çados.— Perdoe-me, Sir Charles — balbuciou —, mas preciso

ir embora agora.— Está bem, vamos. Andy, você se aborreceria se eu lhe

mandasse alguns cientistas? Creio que teriam interesse em fa-lar com você.

— Terei muito prazer, senhor — grasniu a salamandra. — Até logo, Sir Charles! Até logo, professor!

O professor Petrov correu resfolegando e falando sozinho.— Perdão, Sir Charles — disse finalmente. — O senhor

poderia me apresentar algum animal que não leia jornais?

R

Os homens de ciência eram Sir Bertram, doutor em medicina, professor Ebbigham, Sir Oliver Dodge, Julian Foxley e outros. Citaremos apenas uma parte do informe de suas experiências com Andrias Scheuchzeri.

— Como você se chama?Resposta: Andrew Scheuchzeri. — Qual a sua idade?Resposta: Isso eu não sei. Quer parecer jovem? Use coletes

Libella.— Que dia é hoje?Resposta: Segunda-feira. Faz um bom tempo, senhor. Neste

sábado Gibraltar correrá em Epsom. — Quanto é 3 vezes 5?

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Resposta: Por quê?— Você sabe contar?Resposta: Sim, senhor. Quanto é 17 vezes 29?— Deixe-nos perguntar, Andrew. Diga o nome de algum rio

da Inglaterra. Resposta: Tâmisa...— Algum outro?Resposta: Tâmisa.— Não conhece outros, não é verdade? Quem governa a In-

glaterra?Resposta: Rei Jorge, que Deus o tenha.— Está bem, Andy. Quem é o maior escritor inglês? Resposta: Kipling.— Muito bem. Já leu alguma coisa dele?Resposta: Não. Vocês gostam de Mae West?— Achamos melhor que nós é que façamos as perguntas, An-

dy. O que sabe a respeito da história da Inglaterra?Resposta: Henrique VIII.— E o que pode nos dizer sobre ele?Resposta: O melhor filme da última temporada. Luxuosa

apresentação, extraordinário espetáculo.— Você o assistiu? Resposta: Não vi. Querem conhecer a Inglaterra? Comprem

um Ford Baby.— O que gostaria de ver mais do que tudo? Resposta: As regatas Oxford-Cambridge, senhor.— Quantas são as partes do mundo? Resposta: Cinco.— Muito bem. E quais são?Resposta: Inglaterra e aquelas outras.

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— Quais são essas outras?Resposta: Os bolcheviques, os alemães e a Itália.— Onde ficam as Ilhas Gilbert?Resposta: Na Inglaterra. A Inglaterra não ficará com as mãos

presas ao continente. A Inglaterra precisa de 10 mil aviões. Visi-tem as praias do sul da Inglaterra.

— Você permite que examinemos sua língua? Resposta: Sim, senhor. Limpem os dentes com pasta Flit. É

excelente, é a melhor, é inglesa. Querem ter um hálito cheio de frescor? Usem pastas Flit.

— Obrigado, isso basta. E agora diga-nos, Andy...

E assim por diante. O informe da conversa com Andrias Scheuchzeri ocupou 16 páginas e foi publicado em The Natu-ral Science. Nas últimas páginas do informe estavam resumi-dos os resultados da experiência da seguinte forma:

1. Andrias Scheuchzeri, salamandra criada no Jardim Zooló-gico de Londres, sabe falar, embora com um som cavernoso. Dispõe de um vocabulário de cerca de quatrocentas palavras. Diz apenas o que ouviu ou leu. Não se pode, de maneira al-guma, dizer que pense por si só. Sua língua é bastante flexível; devido às circunstâncias, não foi possível examinar mais de perto seus órgãos vocais.2. A salamandra acima mencionada sabe ler, mas apenas os jornais vespertinos. Tem interesses semelhantes aos de um in-glês mediano e reage aos acontecimentos da mesma maneira, ou seja, de acordo com as opiniões comuns correntes. Sua vida psíquica — se é que se pode falar de tal coisa — é precisamente uma herança das ideias e opiniões próprias dos tempos atuais.

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3. Não é necessário superestimar sua inteligência, porque em nenhum aspecto ultrapassa a do homem comum de nossos dias.

R

Apesar dessa opinião sensata dos experts, a salamandra falante virou a sensação do Jardim Zoológico de Londres. O querido Andy foi cercado pelo público, que queria entabular com ele conversas sobre temas os mais variados, começando pelo tem-po e terminando pela crise econômica e política. No entanto, ganhou tantos bombons e chocolates de seus visitantes que acabou contraindo uma séria inflamação no estômago e nos intestinos. O pavilhão das salamandras teve de ser fechado, mas já era tarde: Andrias Scheuchzeri, conhecido como Andy, morreu em consequência de sua popularidade. Como se pode ver, a fama desmoraliza até as salamandras.

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X

AS fEStAS EM Nové StRAšECí

O Sr. Povondra, porteiro da casa do Sr. Bondy, passava as férias daquele ano em sua aldeia natal. O dia seguinte seria feriado. E quando o Sr. Povondra saiu de casa levando pela mão seu filho Frantík, de 8 anos, se sentia em toda Nové Strašecí um cheiro agradável de tortas. As ruas eram cruzadas por mulheres e garotas que levavam bandejas cheias de tortas de queijo para assar no forno da padaria. Na praça, dois con-feiteiros e um comerciante de artigos de cristal e porcelana já levantavam suas barracas. Uma mulher espalhafatosa vendia em voz alta todo tipo de mercadoria. Além disso, havia uma espécie de tenda protegida por todos os lados com retalhos de lona. Um homenzinho estava em cima de uma escada. Fixava um cartaz.

O Sr. Povondra parou para ver o que acontecia.O homenzinho seco desceu da escada e olhou satisfeito

para o cartaz dependurado. E o Sr. Povondra leu, com grande surpresa, o seguinte:

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O Sr. Povondra se lembrou daquele homem grandalhão e forte com boné de marinheiro, o capitão que certa vez deixara entrar para ver o Sr. Bondy. “Como o pobre homem decaiu”, pensou o senhor Povondra. “É capitão e agora precisa percor-rer o mundo em um circo tão miserável! E era um homem tão bem-apessoado! Preciso vê-lo”, disse a si mesmo o Sr. Povon-dra, compadecido.

O homenzinho, nesse meio-tempo, já havia pregado ao lado da entrada da tenda outro cartaz:

O capitão J. van Toch

e

suas salamandras amestradas.

LAGARTOS FALANTESA grande sensação científica!!

Entrada: 2 coroas. Crianças acompanhadas: meia-entrada.

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O Sr. Povondra hesitou. Duas coroas pela sua entrada e uma pela do menino era um pouco demais. Mas Frantík era um bom aluno e conhecer animais exóticos fazia parte de sua formação. O Sr. Povondra estava disposto a fazer um sacrifício pela educação do filho e por isso se aproximou do homenzi-nho pequeno e seco.

— Amigo — disse —, gostaria de falar com o capitão J. van Toch.

O homenzinho inflou o peito sob a camiseta listrada.— Eu sou ele, senhor. — O senhor é o capitão Van Toch? — admirou-se o Sr.

Povondra.— Sim, senhor — respondeu o homenzinho, apontando

uma âncora tatuada na munheca.O Sr. Povondra o contemplou pensativo. O capitão pode-

ria ter encolhido daquela maneira? Não era possível.— É que eu conheço o capitão Van Toch pessoalmente,

senhor — disse. — Eu sou Povondra.— Isso é diferente — exclamou o homenzinho. — As sa-

lamandras pertencem, de fato, ao capitão Van Toch, senhor. Salamandras australianas garantidas, senhor. Faça o favor de ver lá dentro. Está começando a grande performance — caca-rejou, levantando a lona que servia de porta.

— Vamos, Frantík — disse o pai Povondra, e entraram. Uma mulher altíssima e gorda se sentou, rapidamente,

diante de uma pequena mesa. “Trata-se de um estranho casal”, pensou o Sr. Povondra entregando-lhe 3 coroas. No barracão não havia nada além de um cheiro desagradável que tomava conta de tudo e uma espécie de banheira de latão.

— Onde estão as salamandras? — perguntou o Sr. Povondra.

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— Naquela banheira — respondeu displicentemente a gi-gantesca dama.

— Não tenha medo, Frantík — disse Povondra, aproxi-mando-se da banheira.

Na água estava atirada uma coisa negra e indolente, do tamanho de um peixe-gato; a pele de sua nuca inflava e de-sinflava.

— Olhe, este é o lagarto antediluviano de que os jornais falaram — disse didaticamente pai Povondra, sem manifestar sua desilusão (“Mais uma vez me deixei enganar!”, pensava, “mas o menino não precisa saber disso. Pena ter gastado 3 coroas!”)

— Por que ela está na água, papai? — perguntou Frantík.— Porque as salamandras vivem na água.— E o que ela come?— Peixes e coisas assim — respondeu papai Povondra.

(“Deve comer alguma coisa.”)— E por que é tão horrorosa? — quis saber Frantík.O Sr. Povondra não sabia o que dizer, mas, naquele mo-

mento, o homenzinho entrou no barracão.— Por favor, senhoras e cavalheiros... — disse com voz

rouca. — Vocês só têm essa salamandra? — perguntou o Sr. Po-

vondra em tom acusador. (“Se ao menos fossem duas não seria tão caro.”)

— A outra morreu há pouco — disse o homenzinho. — Pois então... — continuou. Senhoras e cavalheiros este é o famoso, importante, Andrias, a venenosa salamandra das ilhas da Austrália. Em seu território de origem chega a alcançar a altura de um homem e anda sobre duas patas. Venha! — disse, cutucando com um pau a coisa negrusca e indolente deitada

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imóvel na água. A coisa negra se mexeu e saiu com dificuldade da água. Frantík recuou um pouco, mas papai Povondra aper-tou sua mãozinha como se lhe dissesse: “Não tema, eu estou aqui.”

O animal se ergueu sobre as patas traseiras, sustentando-se com as dianteiras na borda da banheira. As guelras de seu pes-coço se moviam convulsivamente e seu focinho negro tentava capturar oxigênio. Sua pele, inteiramente solta, era cheia de verrugas, e seus olhos, redondos como os de um sapo, eram cobertos, por alguns instantes, como se estivessem doloridos, pelas membranas de suas sobrancelhas inferiores.

— Como estão vendo, senhoras e cavalheiros — continua-va o homenzinho —, este animal tem guelras e pulmões, para que possa viver na água e respirar quando vai à praia. Nas patas traseiras, tem cinco dedos, e, nas dianteiras, quatro. Também sabe pegar e segurar coisas com as mãos. Tome. — O bicho pegou com os dedos a vara e sustentou-a diante dele como se fosse um cetro melancólico.

— Além do mais, sabe dar um nó perfeito em um barban-te — anunciou o homenzinho. E entregou-lhe uma corda su-ja. O animal sustentou-a durante algum tempo entre os dedos e depois fez de fato um nó.

— Agora tocará tambor e dançará — cacarejou o homen-zinho, dando ao animal um tambor infantil e uma baqueti-nha. O animal bateu várias vezes no tambor e rebolou a parte superior do corpo. O movimento o levou a deixar a baqueta cair na água.

— Afaste-se, estúpida! — exclamou o homenzinho pes-cando a baqueta. — E este animal — acrescentou, tornando a voz mais solene — é tão inteligente e talentoso que sabe falar com qualquer pessoa. — Ao dizer isto, bateu palmas.

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— Guten Morgen — grasnou o animal, piscando dolorosa-mente suas sobrancelhas. — Bom-dia.

O Sr. Povondra quase se assustou, mas Frantík não ficou especialmente interessado.

— O que se diz ao distinto público? — perguntou-lhe secamente o homenzinho.

— Bem-vindos! — disse a salamandra, inclinando-se. Suas guelras se abriram convulsivamente.

— Willkommen. Ben venuti.— Sabe fazer contas?— Sei.— Quanto é 6 vezes 7?— Quarenta e dois — disse com dificuldade a salamandra.— Está vendo, Frantík? Ela sabe fazer contas — observou

papai Povondra.— Senhoras e cavalheiros — cacarejou novamente o ho-

menzinho —, vocês mesmos podem fazer as perguntas que quiserem.

— Ande, Frantík, pergunte alguma coisa! — o Sr. Povon-dra incentivou o filho.

Frantík começou a se contorcer sem saber o que fazer.— Quanto é oito vezes nove? — exclamou por fim. Certa-

mente, achava isso a coisa mais difícil do mundo.A salamandra respondeu lentamente:— Setenta e dois.— Que dia é hoje? — perguntou Povondra.— Sábado.O Sr. Povondra mexeu a cabeça admirado.— É verdade! Parece um ser humano! Qual é o nome da

nossa cidade?A salamandra abriu a boca e fechou os olhos.

6A PROVA - A Guerra das salamand128 128 3/10/2011 10:41:05

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— Ela já está cansada — explicou o homenzinho. — O que você vai dizer aos senhores?

A salamandra se inclinou.— Meus respeitos. Muito obrigado. Fiquem com Deus.

Até logo — e desapareceu rapidamente na água.— É um... É um animal verdadeiramente especial — dis-

se, com admiração, o Sr. Povondra. Mas como, apesar de tudo, 3 coroas eram mesmo muito dinheiro, acrescentou: — E você não tem outra coisa aqui que pudesse mostrar ao meu menino?

O homenzinho esticou o lábio inferior com perplexidade.— Isso é tudo — disse. — Antes a gente tinha umas ma-

caquinhas, mas com elas acontecia uma coisa... — disse vaga-mente. — Mas talvez eu possa lhe mostrar minha mulher... Ela já foi a mulher mais gorda do mundo. Maruška, venha cá!

Maruška se levantou com dificuldade.— O que você quer? — Mostre-se aos senhores.A mulher mais gorda do mundo inclinou faceiramente a

cabeça para um lado, adiantou uma perna e levantou a saia acima do joelho. Surgiu uma meia vermelha de lã que abrigava uma coisa parecida com um presunto.

— Na parte de cima, a circunferência da perna mede 84 cen-tímetros — explicou o homenzinho —, mas hoje, com a concor-rência, Maruška não é mais a mulher mais gorda do mundo.

O Sr. Povondra afastou rapidamente o maravilhado Frantík.— Beijo suas mãos — grasnou a coisa da banheira. — Ve-

nham nos ver outra vez. Auf Wiedersehen.— Bem, Frantík, você aprendeu alguma coisa? — pergun-

tou papai Povondra a seu filhinho quando chegaram à rua. — Aprendi — respondeu Frantík. — Papai, por que aque-

la senhora usa meias vermelhas?

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XI

SobRE oS LAGARtoS HUMANoS

Seria um exagero dizer que naquela época só se falava e escrevia sobre as salamandras e nada mais. Comentava-se e escrevia-se também sobre a futura guerra, a crise econômica, os jogos de futebol, as vitaminas e a moda. Mas falava-se muito das sala-mandras falantes e muitas vezes isso era feito por pessoas não muito preparadas. Por isso, um destacado estudioso, o profes-sor Dr. Vladimir Uher (Universidade de Brno), escreveu um artigo para o Lidové Noviny no qual observava o seguinte:

Dizem que Andrias Scheuchzeri sabe falar de maneira articu-lada, mas isso é, essencialmente, a mesma coisa que o fato de papagaios pronunciarem palavras, e, do ponto de vista cien-tífico, não é nem de longe tão interessante como outras ques-tões relativas a esse anfíbio incomum. O mistério científico apresentado por Andrias Scheuchzeri está em outro lugar: por exemplo, onde fica seu lugar de origem, no qual viveu duran-te todo um período geológico? Por que se manteve desconhe-cido durante tanto tempo se agora anunciam que foi visto em grande quantidade em quase toda linha equatorial do oceano Pacífico? Parece que se reproduziu de maneira extraordinária nos últimos anos. De onde surgiu a vitalidade desse monstro da época terciária que, até há pouco tempo, como se presu-

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me, tinha uma existência esporádica e, como é de se supor, geograficamente isolada? Será que, em um sentido biologica-mente favorável, as condições de vida desse monstro do Mio-ceno mudaram tanto a ponto de seus descendentes chegarem a uma época evolutiva? Se for assim, não está descartado que Andrias Scheuchzeri não só esteja se reproduzindo rapida-mente, mas que suas características também passem por uma fase de desenvolvimento; nossa ciência, então, terá uma opor-tunidade única de assistir, pelo menos em um ser vivente, à imensa mutação da história in actu. Sendo assim, devemos pensar que Andrias Scheuchzeri não está apenas se reprodu-zindo rapidamente; suas características também devem estar passando por uma fase de desenvolvimento. Nossa ciência te-rá, então, uma oportunidade única de assistir in actu e em um ser vivente à imensa mutação da história. Os profanos acham que o fato de Andrias Scheuchzeri grasnar algumas dezenas de palavras e ter aprendido a fazer algumas coisas é uma ma-nifestação da inteligência, mas, do ponto de vista científico, não é nenhum milagre. O que considero verdadeiro milagre é o poderoso impulso vital de se multiplicar que tão de repente e com tanta força foi capaz de retomar a apagada existência de um ser de evolução tardia e quase desaparecido. É preciso ob-servar algumas circunstâncias especiais: Andrias Scheuchzeri é a única salamandra que vive no mar e — ainda mais estra-nho — a única que se apresenta na região etíope-australiana, a mítica Lemúria. Não poderíamos dizer, praticamente, que a Natureza está tentando recuperar agora, com atraso e qua-se precipitadamente, seres vivos que abandonara quase que por completo naquela região ou fora incapaz de trazer a uma vida plena? Além do mais, seria estranho que numa região

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oceânica situada entre a grande salamandra japonesa, por um lado, e os alleghanians por outro, não houvesse nenhum elo que os unisse. Se Andrias não existisse, o lugar que teríamos estabelecido como o de sua existência pretérita seria, precisa-mente, a região onde apareceu agora. É como se, de repente, ocupasse o lugar no qual, segundo os geógrafos e as condições de evolução, tinha de ter vivido na pré-história. De qualquer forma, vemos, com respeito e admiração, nessa ressurreição da salamandra miocênica, que o Gênio da Evolução ainda não terminou sua obra criadora em nosso planeta.

Assim concluiu o erudito professor. Este artigo foi publi-cado apesar dos silenciosos e enérgicos protestos dos jornalis-tas. Eles achavam que tais dissertações eruditas não cabiam em um jornal. Logo depois da publicação, o professor Uher recebeu uma carta de um leitor:

Prezado senhor:

No ano passado, comprei uma casa na pra-

ça de Čáslav. Ao percorrer os diversos apo-

sentos, encontrei, em uma caixa que havia

no vestíbulo, velhos documentos científicos

interessantes, como, por exemplo, dois anos

completos da revista Hyllos (1821-2), Os ma-

míferos, de Jan Svatopluk Presl, Fundamentos

da natureza ou a física, de Vojtech Sedláček,

19 anos completos da enciclopédica revista

Krok e 13 anos da Revista do Museu Central

Tcheco. Em uma tradução de Preslov da obra

de Cuvier Dissertações sobre as mudanças da

6A PROVA - A Guerra das salamand132 132 3/10/2011 10:41:05

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crosta terrestre (de 1834), encontrei mar-

cando uma página um recorte de um jornal an-

tigo, no qual li um informe sobre uma espécie

rara de lagartos.

Ao ler seu extraordinário artigo sobre

as salamandras, recordei o citado recorte e

fui procurá-lo. Creio que possa ser de seu

interesse. Receba-o, pois, de um entusiasta

amigo da natureza e seu leitor fervoroso.

Com todo respeito,

J. V. Najman

Não havia nem título nem ano no recorte do artigo ane-xado. A letra e a ortografia davam a entender que devia ser da terceira década do século XIX. Estava tão amarelado e des-gastado que era difícil lê-lo. O professor Uher já ia atirá-lo na cesta de papéis, mas estava emocionado pela antiguidade daquele impresso e resolveu dar-lhe atenção. Ao cabo de um momento, respirou com força e disse: “Cruzes!”, ajeitando os óculos, muito excitado. Era o seguinte o texto do recorte:

Sobre os lagartos humanos Lemos em um jornal estrangeiro que certo capitão (coman-dante) de um navio de guerra inglês, ao retornar de países distantes, informou sobre alguns répteis que encontrara em uma pequena ilha do mar da Austrália. Em tal ilhota existe um lago de água salgada que não tem nenhuma comunicação com o mar, sendo também bastante impenetrável. O capitão e o médico do navio estavam descansando junto a esse la-

6A PROVA - A Guerra das salamand133 133 3/10/2011 10:41:05

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go quando, de repente, saiu das águas um animal parecido com um lagarto, mas que caminhava sobre as extremidades, como as pessoas; era do tamanho de um cão marinho ou de uma foca e, ao chegar à margem, começou a rebolar como se dançasse. O capitão e o médico correram e capturaram dois desses animais. Dizem que têm o corpo liso, sem pelo ou escamas, e são bastante parecidos com as salamandras. Devido ao mau cheiro que expeliam, tiveram de deixá-los no lugar e ordenaram aos marinheiros que caçassem naquele lago um par de monstros e os levassem vivos ao navio. Os marinheiros chegaram ao lago e aniquilaram os lagartos, levando apenas dois ao barco. Diziam que lançavam um lí-quido venenoso que produzia uma ardência semelhante à das urtigas. Os dois lagartos foram enfiados em um barril com água do mar, a fim de que chegassem vivos à Inglaterra, mas tudo foi inútil! Quando o barco de aproximou da ilha de Sumatra, desapareceram. Segundo dizem, os lagartos pri-sioneiros escaparam dos barris e usaram uma janelinha pa-ra pular no mar. Segundo declarações do capitão e de outras testemunhas, o animal é muito estranho, mas, no entanto, não oferece perigo ao ser humano. Poderíamos chamá-los, com direito, de Lagartos Humanos.

Vinha até aqui o recorte.— Cruzes! — repetia, excitado, o professor Uher. — Por

que não há aqui nenhum dado ou pelo menos o título do jornal do qual alguém em alguma época recortou essa notí-cia? Qual seria o jornal estrangeiro? Qual seria o nome do co-mandante? Como se chamaria o navio inglês? Em que ilhota do mar da Austrália teriam se dado tais fatos? As pessoas não

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poderiam ser mais exatas e por isso, sim, sim, mais científicas? Trata-se de um documento histórico de valor incalculável...

“Sim, uma ilhota no Mar da Austrália. Um lago com água salgada. De acordo com isso, devia ser uma ilha de coral, um atol de difícil acesso. Exatamente o lugar apropriado para que esses animais fósseis pudessem ser conservados, isolados do ambiente de evolução mais progressiva e sem que ninguém os molestasse em sua reserva natural. Logicamente, não podiam se multiplicar muito, porque não teriam encontrado o alimen-to necessário para isso.

“Uma coisa está clara”, disse a si mesmo o professor. “Ani-mais parecidos com lagartos, mas sem escamas e caminhando sobre duas extremidades, como as pessoas; ou seja, Andrias Scheuchzeri ou outra salamandra muito parecida com ele. Su-ponhamos que fosse nosso Andrias. Suponhamos que aqueles malditos marinheiros exterminaram todas as salamandras que encontraram no lago. Suponhamos que tenha chegado vivo ao navio apenas um casal que, quando a embarcação se apro-ximou de Sumatra, fugiu para o mar. Ou seja, diretamente à Linha do Equador, onde havia condições biológicas extrema-mente favoráveis e um ambiente rico em alimentos.

“É plausível que a mudança de ambiente tenha dado às salamandras do Mioceno um grande impulso de desenvolvi-mento? É certo que elas também estavam habituadas à água salgada. Se imaginarmos sua nova residência em uma baía tranquila, fechada, com grande quantidade de alimentos, o que teria podido acontecer? A salamandra, transladada a um ambiente propício, começa a se multiplicar com enorme ener-gia. É isso! A salamandra começa a se desenvolver com grande entusiasmo, agarra-se à vida com loucura e se multiplica ex-

6A PROVA - A Guerra das salamand135 135 3/10/2011 10:41:05

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traordinariamente, porque seus novos ovos e girinos não têm naquele ambiente nenhum inimigo. Ocupa uma ilha atrás da outra (mas o estranho é que parecem ter ignorado algumas ilhas). Quanto ao resto, é uma imigração típica motivada pela busca de alimento. E agora uma questão: por que não se de-senvolveram antes? Isso não está relacionado ao fato de não existir, até aquele momento, nenhuma salamandra na região etíope-australiana? Não aconteceram nessa região, talvez du-rante o Mioceno, algumas mudanças desfavoráveis, no sentido biológico, às salamandras? O lagarto miocênico foi conserva-do em apenas uma ilha, em um pequeno lago fechado; na-turalmente, ao preço da paralisação de seu desenvolvimento. Seu curso evolutivo foi paralisado, como uma corda metálica em tensão que não pudesse ser enrolada. É possível também que a natureza tivesse grandes planos para essa salamandra, que deveria se desenvolver, pouco a pouco, até sabe-se lá que altura...” (O professor Uher sentiu um pequeno calafrio ao imaginá-la.) “Talvez Andrias Scheuchzeri fosse precisamente a salamandra que deveria se converter no homem do Mioceno!

“Mas esperem aí! Esse animal, não desenvolvido comple-tamente, está de repente em um novo ambiente, muito pro-missor. A corda em estado de tensão cede. Com quanta ânsia de vida, com que vigor miocênico e avidez Andrias Scheu-chzeri se precipita pelo caminho do desenvolvimento! Com que febre tenta recuperar todo o tempo perdido, centenas de milhares e milhões de anos! Será que se conformará com o de-senvolvimento gradual que experimenta hoje? Estará satisfeito com seu florescimento atual, do qual somos testemunhas? Ou estamos no umbral de sua evolução e isto é, apenas, a prepara-ção para chegar quem sabe aonde?”

6A PROVA - A Guerra das salamand136 136 3/10/2011 10:41:05

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Essas foram as considerações e pontos de vista que o pro-fessor Dr. Vladimir Uher pôs no papel ao examinar o recorte amarelado do velho jornal, tremendo com o entusiasmo inte-lectual de um descobridor.

— Publicarei isso em um jornal — disse. — Ninguém lê revistas científicas. Que todo mundo saiba que grande proeza da natureza estamos testemunhando! E usarei o seguinte títu-lo: As salamandras têm futuro?

Mas os redatores do Lidové Noviny leram o artigo do pro-fessor Uher e sacudiram a cabeça. De novo as salamandras! Os nossos leitores estão certamente cansados dessa história. Já é hora de tratar de outras coisas... E, além do mais, relatos científicos não cabem nos jornais.

E assim o artigo sobre o futuro das salamandras jamais foi publicado.

6A PROVA - A Guerra das salamand137 137 3/10/2011 10:41:05

13�

XII

o SiNDiCAto DAS SALAMANDRAS

O presidente G. H. Bondy tocou a campainha e ficou em pé.— Respeitável assembleia... — começou. — Tenho a hon-

ra de abrir esta reunião geral extraordinária da Sociedade Ex-portadora do Pacífico. Dou as boas-vindas a todos os presentes e agradeço sua numerosa presença.

“Senhores”, continuou com voz comovida, “cabe-me o triste dever de comunicar-lhes uma dolorosa notícia. O ca-pitão Jan van Toch não existe mais. Faleceu o nosso, por as-sim dizer, fundador, o pai da feliz ideia de estabelecer relações comerciais com milhares de ilhas do distante Pacífico, nosso primeiro capitão e mais fervoroso colaborador. Faleceu no princípio deste ano, a bordo de nosso navio Šárka, não longe da ilha de Fanning, em consequência de um ataque que o aco-meteu durante o cumprimento de seu dever (‘É provável que o pobre estivesse aprontando alguma!’, foi o pensamento que passou pela cabeça do Sr. Bondy). Suplico que em honra de sua brilhante memória os senhores fiquem em pé.”

Os senhores se levantaram, arrastando cadeiras, e guarda-ram um silêncio solene dominado pela ideia comum de que aquela reunião poderia demorar muito. (“Pobre velho Van Toch!”, pensava verdadeiramente emocionado G. H. Bondy. “Que aspecto terá agora? Certamente usaram a prancha para

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lançá-lo no mar; deve ter feito splesh! Bem, era um bom ho-mem e tinha olhos tão azuis...)

— Muito obrigado, senhores — disse brevemente —, por terem recordado com tanta piedade o capitão Van Toch, meu amigo particular. Suplico ao Sr. diretor Volavka que nos in-forme sobre os resultados econômicos com os quais a S.E.P. pode contar este ano. As cifras não são definitivas, mas quero adverti-los de que não devem esperar que possam sofrer algu-ma mudança significativa até o final do ano. Então, senhor diretor, faça-nos o favor.

— Mui honorável assembleia — começou balbuciando o senhor diretor Volavka, e ai engrenou. — A situação do mer-cado de pérolas é muito preocupante. Depois do ano passado, em que a produção de pérolas se multiplicou por quase vinte em comparação ao já favorável ano de 1925, o preço das péro-las começou a cair catastroficamente, chegando a cerca de 65 por cento. Por isso, o Conselho de Administração resolveu não negociá-las este ano, guardando-as para uma época em que a demanda estiver maior. Por azar, no outono do ano passado as pérolas saíram de moda, talvez pelo fato de terem barateado tão consideravelmente. Temos no armazém de nossa filial de Amsterdã mais de 200 mil pérolas, e elas, por ora, quase não têm saída.

“Por outro lado”, o diretor Volavka continuou a explanar, “este ano a produção de pérolas está caindo bastante. Foi pre-ciso abandonar muitas criações porque seu rendimento não compensava os gastos da viagem àqueles lugares. Os bancos de pérolas encontrados há dois ou três anos parecem estar mais ou menos esgotados. Por isso, o Conselho de Administração resolveu dirigir suas atenções a outros produtos das profun-

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dezas dos mares, como os corais, as conchas e os cogumelos marinhos. É verdade que temos conseguido reviver o mercado de joias de coral e outros adornos, mas na atual conjuntura os corais da Itália estão valendo mais que os do Pacífico. O Conselho de Administração estuda a possibilidade de se de-dicar à pesca intensiva nas profundezas do oceano Pacífico, mas o problema é como transportar o pescado aos mercados europeus e americanos. Os informes que recebemos até agora não são muito alentadores.

“No entanto, em contrapartida”, leu o diretor, levantan-do um pouco mais a voz, “nota-se um aumento na venda de mercadorias secundárias, como têxteis de exportação, panelas esmaltadas, rádios e luvas, para as ilhas do Pacífico. Esse co-mércio tem possibilidade de estender-se e aprofundar-se. Este ano o déficit será, proporcionalmente, insignificante, mas, na-turalmente, não há a menor esperança de que a S.E.P. possa pagar dessa vez qualquer tipo de dividendos aos seus acionis-tas. Por isso, o Conselho de Administração preferiu anunciá-lo aos senhores antecipadamente...”

A essa declaração se seguiu um silêncio constrangedor. (“Como serão essas ilhas Fanning?”, pensou G. H. Bondy. “O adorável Van Toch morreu como um verdadeiro marinheiro. É uma pena! Era um homem correto... E nem era tão velho assim! Não era nem mais velho do que eu...”). O Dr. Hubka pediu a palavra. Em seguida reproduziremos o informe da as-sembleia extraordinária da Sociedade Exportadora do Pacífico:

O Dr. Hubka pergunta se está se pensando em liquidar a S.E.P.

G. H. Bondy responde que o Conselho de Administração decidiu esperar por novas sugestões a respeito do tema.

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M. Louis Bonefant critica o fato de o recolhimento de pérolas nos bancos não ter sido posto sob a vigilância de representantes permanentes, com residência fixa no local, incumbidos de con-trolar se a pesca estava sendo efetuada com a intensidade e a eficiência necessárias.

O diretor Volavka afirma que isso foi levado em conta, mas chegou-se à conclusão de que tal providência provocaria uma re-dução considerável dos lucros da companhia. Seriam necessários, pelo menos, trezentos agentes remunerados. Além do mais, a assembleia deveria levar em conta a seguinte questão: como seria possível controlar tais agentes para saber se estavam entregando todas as pérolas capturadas?

M. H. Brinkeler pergunta se é possível acreditar que as sala-mandras estão entregando todas as pérolas que encontram em vez de destiná-las a pessoas não creditadas junto à Organização.

G. H. Bondy responde que, pela primeira vez, as salaman-dras haviam sido citadas naquele âmbito. Até então, havia sido regra geral não dar nenhum detalhe sobre os fatos que envolviam a pesca de pérolas. Adverte que precisamente por isso fora adota-do o simples título Sociedade Exportadora do Pacífico.

M. H. Brinkeler pergunta se, porventura, é proibido falar naquele lugar de coisas que interessam à Sociedade e que, além do mais, são conhecidas há muito tempo por amplas camadas do público.

G. H. Bondy responde que não é proibido, mas é uma coisa nova. Alegra-se de que se possa falar sobre essa questão aberta-mente. À primeira pergunta do Sr. Brinkeler pode responder que, segundo seu entendimento, não cabe duvidar da total honradez e do trabalho desinteressado das salamandras empregadas na pesca de pérolas e corais. Mas deve-se levar em consideração o fato de

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que os bancos de pérolas estão ou estarão esgotados em pouco tempo. No que se refere a novos mananciais, o nosso inesquecível amigo e colaborador capitão Van Toch morreu precisamente quan-do se dirigia a ilhas ainda não exploradas. É impossível substituí-lo, por ora, por um homem com sua mesma experiência e honradez e que tenha um amor tão grande por tal assunto.

O coronel D. W. Bright reconhece plenamente os méritos do falecido capitão Van Toch. No entanto, pede atenção para o fato de que o capitão, cuja perda todos lamentam, mimava demasiadamente as referidas salamandras (aprovação). Não acha necessário entregar às salamandras facas e ferramentas de primeira qualidade, como fazia o capitão Van Toch, nem gastar tanto com sua alimentação. Teria sido possível diminuir consideravelmente os gastos com a manutenção das salamandras e assim aumentar os lucros da Sociedade (vivos aplausos).

O vice-presidente J. Gilbert está de acordo com o coronel Bright, mas observa que quando o capitão Van Toch estava vivo, era impossível fazê-lo, pois ele afirmava que tinha compromissos pessoais com as salamandras. Por vários motivos, não era possível nem desejável deixar de levar em conta os desejos do falecido capitão.

Curt von Fritsch pergunta se não seria possível ocupar as sa-lamandras de forma a fazê-las produzir mais do que pescando pérolas. Poderíamos levar em conta suas qualidades naturais de, digamos, castores, e usá-las na construção de diques e outras obras submarinas. Talvez fosse possível aproveitá-las no aprofun-damento dos portos, na construção de atracadouros e em outras tarefas de engenharia hidráulica.

G. H. Bondy informa que o Conselho de Administração está estudando intensamente esse ponto específico. Em tal direção se

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abrem, sem dúvida, grandes possibilidades. Indica que a quanti-dade de salamandras pertencentes à Sociedade é de, aproxima-damente, 6 milhões. Se levarmos em conta que um casal de sala-mandras engendra, anualmente, digamos, cem girinos, poderemos dispor, no próximo ano, de 300 milhões de salamandras. Daqui a dez anos a cifra será astronômica.

G. H. Bondy pergunta o que a Sociedade pensa em fazer com essa imensa quantidade de salamandras que, já agora, têm de ser alimentadas em fazendas superpovoadas com copra, batatas, milho etc., pois há escassez de alimentos naturais.

Curt von Fritsch pergunta se as salamandras são comestíveis.J. Gilbert: Não senhor. A pele delas também não serve para

nada.M. Bonefant pergunta ao Conselho de Administração o que

se pensa fazer.G. H. Bondy (se levanta). “Respeitáveis senhores, convo-

camos esta assembleia extraordinária a fim de chamar sua atenção para as perspectivas desfavoráveis de nossa Sociedade, que, per-mitam-me recordar com orgulho, repartiu nos últimos anos um divi-dendo de 20 ou 30 por cento, a partir de boas bases de reservas e contratos. Agora estamos diante de um dilema. Os métodos comerciais que foram proveitosos em anos passados estão agora praticamente esgotados. Não nos resta outro remédio a não ser procurar novos caminhos (aplausos entusiasmados).

“Atrevo-me a dizer que talvez seja uma indicação do destino o fato de que, precisamente agora, tenha falecido o nosso magní-fico capitão e amigo J. van Toch. Sua pessoa estava ligada a esse romântico, belo e — direi francamente — de certo modo insen-sato negócio de pérolas. Considero-o um capítulo encerrado na história da nossa Sociedade. Aquilo tinha, por assim dizer, certo

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encanto exótico, mas não era apropriado para a época moderna. Respeitáveis senhores, as pérolas não podem ser nunca a base de um empreendimento arriscado em todas as direções, horizontal e vertical. Para mim, pessoalmente, todo esse assunto das pérolas foi apenas um pequeno divertissement (intranquilidade). Sim, se-nhores, divertissement que, a vocês como a mim, proporcionou um belo de um dinheiro. Além disso, quando começamos nosso negócio, essas salamandras tinham, diria eu, o encanto da novi-dade. Trezentos milhões de salamandras já não terão o mesmo encanto...” (sorrisos).

“Eu disse novos caminhos. Enquanto meu bom amigo, o ca-pitão Van Toch, vivia, estava descartada a possibilidade de dar a nossa empresa outro caráter que não fosse aquele que poderíamos chamar de ao estilo do capitão Van Toch (por quê?). Porque tenho um bom gosto extremo, senhores, e sei misturar diversos estilos. O estilo do capitão Van Toch era, a meu ver, o estilo dos romances de aventura. O estilo de Jack London, Joseph Conrad e outros. Um estilo antigo, exótico, colonial, quase heroico. Não nego que, até certo ponto, me fascinou. Mas, depois da morte do capitão Van Toch, não temos o direito de dar continuidade a essa aventura infantil. Diante de nós não há um novo capítulo, mas sim uma nova concepção, senhores, tarefa para uma imaginação basicamente diferente. (“Você está falando como se se tratasse de um romance!”). Sim, senhores, vocês têm razão. O negócio interessa a mim como artista. Sem certa arte, senhores, nunca teria sido possível idealizar uma coisa nova. Precisamos ser poetas se quisermos manter o mundo em movimento” (aplausos).

G. H. Bondy se inclinou. “Senhores, encerro com tristeza esse capítulo que chamei de vantochesco; nele, alimentamos o que restava em nós de infantil e aventureiro. É chegada a hora

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de terminar esse conto de pérolas e corais. Simbad está morto, senhores. A questão é: o que fazer agora? (“É isso o que estamos perguntando exatamente para vocês!”) Está bem, senhores. Façam o favor de pegar o lápis e escrever. Seis milhões. Entenderam? Multipliquem por cinquenta. O resultado é 300 milhões, cor-reto? Multipliquem outra vez por cinquenta. Chegamos aos 15 bilhões, não é verdade? E agora, senhores, tenham a amabilidade de me dizer o que vamos fazer daqui a três anos com 15 bilhões de salamandras. Em que vamos empregá-las? Como vamos ali-mentá-las? E assim por diante (“Ora, deixem que se ferrem!”). Sim, mas não é lamentável, senhores? Não acham que cada uma dessas salamandras representa uma espécie de valor econômico, uma força de trabalho que espera ser aproveitada? Senhores, com 6 milhões de salamandras podemos, mais ou menos, saber o que fazer; com 300 milhões já seria mais difícil, mas 15 bilhões de salamandras é bem mais do que podemos administrar! As sala-mandras devorarão nossa Sociedade. A questão é essa” (“Você será responsabilizado por isso! Você começou todo esse negócio das salamandras!”).

G. H. Bondy levanta a cabeça. “Assumo completamente minhas responsabilidades, senhores. Quem desejar poderá se desfazer imediatamente das ações da Sociedade Exportadora do Pacífico. Estou disposto a pagar por elas... (quanto?). Seu valor nominal, senhor” (comoção. A presidência anuncia um intervalo de dez minutos.).

Após o intervalo, o Sr. H. Brinkeler pede a palavra. Expressa sua tranquilidade diante do fato de as salamandras se multiplicarem daquela maneira, aumentando o patrimônio da Sociedade. “Mas, senhores, seria, sem dúvida, uma loucura criá-las ao deus-dará. Se nós não temos, sozinhos, capacidade de empregá-las, pro-

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ponho, em nome de um grupo de acionistas, que as salamandras sejam vendidas como força de trabalho a qualquer um que queira empreender obras na água ou debaixo dela... (aplausos). A ali-mentação das salamandras custa alguns cêntimos diariamente; se um casal de salamandras fosse vendido, digamos, a 100 francos, e se a salamandra operária durasse, vamos dizer, apenas um ano, o dinheiro investido pelo comprador seria facilmente amortizado.” (manifestações de aprovação).

J. Gilbert observa que as salamandras atingem uma idade bastante superior a um ano. No entanto, ainda não temos experi-ência suficiente para saber o quanto vivem.

H. Brinkeler modifica sua proposta: que o preço das sala-mandras — entregues no porto — seja fixado em 300 francos o par.

S. Weissberger pergunta que trabalhos as salamandras pode-riam de fato realizar.

O diretor Volavka esclarece que, por seu instinto natural e sua extraordinária habilidade técnica, as salamandras servem, so-bretudo, para a construção de diques, quebra-ondas e trabalhos de terraplenagem, para o aprofundamento de portos e canais, pa-ra retirar bancos de areia e aluviões de lodo e para abrir caminhos aquáticos. Podem garantir e regular as margens do mar, ampliar os continentes etc. Em todos esses casos, trata-se de trabalho coletivo que precisa da mão de obra de centenas de milhares; é um trabalho tão vasto que a técnica moderna nunca se atreveria a realizá-lo se não tivesse a sua disposição uma mão de obra tremen-damente barata (é isso mesmo! Formidável!).

O Dr. Hubka objeta que, com a venda das salamandras, que poderiam se multiplicar em suas novas residências, a Sociedade perderia seu monopólio sobre elas. Sugere que os empresários ou

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empreiteiros de obras hidráulicas se limitem a alugar as salaman-dras, devidamente treinadas e qualificadas, com a condição de que seus possíveis rebentos pertençam à Sociedade.

O diretor Volavka faz notar que não é possível vigiar nas águas milhões e talvez bilhões de salamandras e menos ainda sua prole. Lamentavelmente, muitas salamandras já foram roubadas e destinadas a jardins zoológicos e criadouros de feras.

O coronel D. W. Bright diz que deveriam ser vendidas ou alugadas apenas salamandras machos, para que não pudessem se multiplicar fora das colônias, que, afinal, pertencem à Sociedade.

O diretor Volavka não pode garantir que as fazendas de sala-mandras pertençam à Sociedade. Não se pode ter ou comprar um pedaço do fundo do mar. A questão legal sobre sua propriedade de fato, as salamandras que vivem em águas territoriais, perten-centes, digamos a título de exemplo, a Sua Majestade a rainha da Holanda, é muito incerta e poderia levar a uma série de litígios (intranquilidade). Na maioria dos casos, não temos nem mesmo garantido o direito à pesca; de fato, senhores, nossas fazendas de salamandras das ilhotas do oceano Pacífico foram organizadas sem titulação legal (intranquilidade crescente).

J. Gilbert responde ao coronel Bright dizendo que, segun-do os conhecimentos adquiridos até o momento, as salamandras machos isoladas perdem, ao cabo de algum tempo, sua energia e capacidade de trabalho; tornam-se preguiçosas, indolentes, e, muitas vezes, morrem de nostalgia.

Von Fritsch pergunta se não seria possível castrar ou esterilizar as salamandras antes de vendê-las.

J. Gilbert: “Isso seria muito complicado. Simplesmente, não podemos evitar que as salamandras que vendermos continuem a se multiplicar.”

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S. Weissberger reivindica, como membro da Sociedade Protetora dos Animais, que a futura venda das salamandras seja feita de forma humanitária, para não ofender os sentimentos das pessoas.

J. Gilbert agradece a advertência. Compreende-se que a ca-ça e o transporte das salamandras será confiada, somente, a pes-soal treinado, que estará sob certo controle. Não podemos, no entanto, prever como os compradores tratarão suas salamandras.

S. Weissberger declara que está satisfeito com as explicações do vice-presidente J. Gilbert (aplausos).

G. H. Bondy: “Senhores, temos de descartar a ideia de que, no futuro, possamos manter o monopólio das salamandras. Lamen-tavelmente, segundo as leis em vigor, não podemos patenteá-las” (risos). “Devemos e podemos assegurar nossa posição privilegiada neste comércio de salamandras de outra forma. No entanto, uma condição necessária para isso é que nosso negócio continue em outro estilo e com uma amplitude muito maior do que até agora” (‘‘Ouçam!”). “Tenho aqui, senhores, todo um tratado a respeito de acordos preliminares. O Conselho de Administração propõe que seja criado um novo truste vertical sob o título de Sindicato das Salamandras. Seriam membros do Sindicato das Salamandras, além dos membros de nossa Sociedade, determinadas empresas de grande porte e poderosos grupos financeiros. Por exemplo: determinada empresa produziria utensílios de aço patenteados pa-ra as salamandras (O senhor se refere à MEAS?). Sim, senhor, me referia à MEAS. Além disso, determinado cartel de pro-dutos químicos e alimentícios produziria alimentos patenteados, muito baratos, para as salamandras. Uma empresa de cargas fará patentear — fazendo uso dos conhecimentos adquiridos até a data — um tanque especialmente higienizado para o transporte

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das salamandras; um truste de companhias de seguro assumirá a responsabilidade de fazer o seguro dos animais comprados con-tra riscos de ferimentos e morte durante o transporte ao lugar de trabalho. Também estão interessadas nessa grande empreitada destacadas indústrias de exportação e instituições financeiras que, por razões especiais, não nomearei agora. Talvez seja suficiente dizer-lhes, senhores, que esse Sindicato disporia, para começar, de 400 milhões de libras esterlinas” (emoção). “Esse tratado, senhores, é formado por contratos que bastaria ser assinados para que surgisse uma das maiores organizações econômicas de nossa época. O Conselho de Administração lhes pede, senhores, que lhe concedam plenos poderes para fundar essa enorme empresa, cuja tarefa será a reprodução racional e a exploração adequada das salamandras” (aplausos e vozes de protesto).

“Senhores, façam o favor de considerar as vantagens dessa colaboração. O Sindicato das Salamandras não fornecerá apenas salamandras, mas também todas as ferramentas de que necessitam para seu trabalho e, além disso, os produtos para sua alimentação, ou seja, milho, fécula, sebo e açúcar para bilhões de salamandras. Há de se acrescentar a isso o transporte, o seguro, os cuidados veterinários etc., a preços muito mais baixos, que nos propor-cionariam talvez não o monopólio, mas pelo menos uma segura vantagem diante de possível concorrentes que quisessem pôr sala-mandras à venda. Que alguém tente competir conosco, senhores! Não seria por muito tempo!” (bravo!). “Mas não é apenas isso: o Sindicato das Salamandras fornecerá todo tipo de material para os trabalhos que as salamandras executariam na água e debaixo dela. Portanto, também seremos respaldados pela indústria pesada, as fábricas de cimento, de madeira e pedra para construções...” (mas o senhor ainda não sabe como as salamandras vão trabalhar!). “Se-

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nhores, neste momento 12 mil salamandras trabalham no porto de Saigon em novas docas, ancoradouros e tanques” (ninguém nos disse isso!). “Não. É o primeiro grande teste. Esse ensaio, se-nhores, foi realizado com um resultado extremamente satisfatório. Hoje, o futuro das salamandras já não oferece lugar a dúvidas” (aplausos entusiasmados).

“E não apenas isso, senhores. Como já disse, as tarefas do Sindicato das Salamandras estão longe de serem esgotadas. O Sindicato das Salamandras se dedicará também a procurar em to-do o mundo trabalho para milhões de salamandras. Apresentará planos e ideias para dominar o mar. Propagará a utopia e sonhos fantásticos. Apresentará projetos para um novo desenho das cos-tas e novos canais, para a construção de diques que unam os continentes, para toda uma cadeia de ilhas artificiais a serviço dos voos transoceânicos, para novos continentes construídos no meio do mar. É aí que está o futuro da humanidade! Senhores, quatro quintos no nosso globo estão cobertos de água; sem dúvida, é muito. A superfície do nosso planeta, o mapa dos mares e das terras deve ser retificado. Vamos fornecer ao mundo os operários do mar, senhores. Isso não será feito mais ao estilo do capitão Van Toch. Substituiremos a história de aventuras baseadas em pérolas e corais por um hino ao trabalho. Ou seremos simples lojistas ou seremos criadores! Mas, se não pensarmos nos continentes e nos oceanos, não teremos estado à altura de nossas possibilidades. Aqui se falou, meus senhores, do preço pelo qual se deve vender um casal de salamandras. Eu gostaria que pensássemos nos bilhões de salamandras, nos bilhões de unidades de força de trabalho, na transformação da crosta terrestre, em novos gêneses e novas eras geológicas. Hoje já podemos falar de uma nova Atlântida, de velhos continentes que avançarão mais em direção ao mundo mari-

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nho, de Novos Mundos que a própria espécie humana edificará. Perdoem, senhores, talvez lhes pareça utópico. Sim, entramos de fato na utopia. Já estamos nela, amigos! Devemos resolver o fu-turo das salamandras tecnicamente” (e também do ponto de vista econômico!).

“Sim. Falemos da parte econômica. Senhores, nossa Socie-dade é muito pequena para poder explorar, sozinha, bilhões de salamandras. Não somos suficientes para isso nem econômica nem politicamente. Se é o caso de mudar o mapa da terra e dos mares, esse assunto também interessará às grandes potências, se-nhores. Mas disso não falaremos agora, nem nomearemos as altas personalidades que demonstram, já hoje, sua simpatia pela nossa Sociedade. Peço-lhes, no entanto, que não percam de vista o imenso alcance da questão sobre a qual vão votar” (aplausos entusiasmados e prolongados. Bravo! Formidável!).

R

Nem por isso foi menos necessário que, antes de ser votada a criação do Sindicato das Salamandras, a companhia tivesse que prometer pagar no final do ano um dividendo de dez por cento por conta das reservas existentes por cada ação da So-ciedade Exportadora do Pacífico. Oitenta e sete por cento dos acionistas votaram a favor e apenas 13 por cento contra essa proposição. E assim o projeto do Conselho de Administração foi aprovado por unanimidade. O Sindicato das Salamandras entrou em ação e G. H. Bondy foi parabenizado.

— Seu discurso foi magnífico, Sr. Bondy — disse-lhe, li-sonjeiro, o velho Sigi Weissberger. — Magnífico! Diga-me, Sr. Bondy, como lhe ocorreu tal ideia?

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— Como? — respondeu G. H. distraidamente. — Para dizer a verdade, Sr. Weissberger, foi por causa do velho Van Toch. Tinha tanto carinho pelas suas salamandras! O que pen-saria se deixássemos seus tapa-boys serem mortos ou morrerem de fome?

— Que tapa-boys?— As malditas salamandras. Pelo menos agora serão tra-

tadas decentemente, já que terão seu preço. Sr. Weissberger, esses bichos só servem para subsidiar alguma utopia.

— Eu não entendo nada disso — explicou o Sr. Weissber-ger. — O senhor já viu uma salamandra? Eu mesmo não sei o que são. Por favor, que aparência elas têm?

— Isso eu nem lhe conto, Sr. Weissberger. Sei lá o que é uma salamandra? Para que teria de saber? Eu lá tenho tempo de me preocupar com questões de aparência? Só preciso ficar feliz por termos colocado o Sindicato das Salamandras debai-xo do nosso telhado.

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APÊNDICE

A viDA SExUAL DAS SALAMANDRAS

Uma das ocupações favoritas da mente humana é imaginar como será o mundo, e como será a humanidade num futu-ro distante; que milagres técnicos terão sido realizados, que questões sociais terão sido resolvidas, até onde chegarão os progressos da ciência e da organização social, e assim por diante. A maioria desses utópicos não deixa, no entanto, de se interessar vivamente em saber como acabará, em tal mun-do tão avançado, ou, pelo menos, tão desenvolvido tecnica-mente, uma instituição tão antiga, mas sempre tão popular, como o matrimônio, a família ou a vida sexual, a fecundação, o amor, a questão feminina etc. Em relação a esse ponto, ve-ja-se a literatura de Paul Adam, H. G. Wells, Aldous Huxley e muitos outros. Levando em conta os exemplos mencionados, o autor considera sua obrigação, já que lançou um olhar ao futuro do nosso planeta, tratar também de como será, nesse mundo vindouro, a organização sexual das salamandras. E prefere cumprir essa obrigação imediatamente, para não ser obri-gado a retornar ao assunto. A vida sexual de Andrias Scheu-chzeri confirma, em seus traços fundamentais, a reprodução de outros urodelos; não existe a copulação no verdadeiro sentido da palavra; a fêmea bota os ovos em várias etapas, os

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ovos fecundados se convertem em larvas etc. Isso poderia ser lido em qualquer livro de história natural. Referimo-nos, portanto, apenas a algumas particularidades que foram per-cebidas em Andrias Scheuchzeri. Em princípios de abril, relata H. Bolte, os machos e as fêmeas se aproximam; em geral, em cada período sexual o macho fica todo o tempo ao lado da mesma fêmea e não se afasta nem um passo durante vários dias, ao longo dos quais jamais se alimenta, enquanto a fêmea manifesta grande vo-racidade. O macho a persegue na água e se esforça para colar sua cabeça na dela. Quando o consegue, levanta seu focinho e coloca-o sobre a fêmea, certamente para evitar que escape. Assim, com suas cabeças em contato e seus corpos formando um ângulo de cerca de trinta graus, os dois animais flutuam sem se mover, um ao lado do outro. Há momentos em que o macho começa a se sacudir tão violentamente que golpeia a fêmea com seu costado; depois volta a ficar imóvel, com as patas muito esticadas, tocando apenas com seu focinho a cabeça da companheira escolhida, que, enquanto isso, indi-ferente a tudo, devora o que encontra em seu caminho. Esse beijo — vamos chamá-lo assim — dura alguns dias. Algumas vezes, a fêmea escapa em busca de alimento; então o macho a persegue, muito excitado, poderíamos dizer que até furioso. Finalmente a fêmea para de opor resistência, para de fugir, e o casal se deixa levar pela água sem se mexer, como se fossem madeiras enegrecidas amarradas uma à outra. Então o corpo do macho é sacudido por movimentos espasmódicos durante os quais expele uma matéria fecundante bastante pegajosa. Em seguida abandona a fêmea e se esconde entre as pedras, completamente exausto; nesse período é possível cortar-lhe uma pata ou a cauda sem que ele reaja para se defender.

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Enquanto isso, a fêmea fica imóvel durante algum tempo, sem mudar de posição; depois se agita com força e começa a botar ovos enlaçados em uma cadeia, cobertos por uma subs-tância gelatinosa. Às vezes recorre ao auxílio das patas tra-seiras, assim como fazem os sapos. Os ovos, entre quarenta e cinquenta, ficam pendendo do corpo da fêmea como uma madeixa. A fêmea nada com eles até um lugar resguardado, e os fixa nas algas, ervas ou simplesmente nas pedras. Ao cabo de dez dias, sem ter voltado a se encontrar com o macho, a fêmea bota mais uma série de ovos, de vinte a trinta. Os ovos são, certamente, fecundados em um receptáculo de seu apa-relho genital, onde conserva os espermatozoides. Normal-mente volta a botar ao cabo de sete ou oito dias, dessa vez de dez a 15 ovos de cada vez. Após umas três semanas, os girinos saem dos ovos. Respiram através de brânquias externas que vão perdendo depois paulatinamente. Ao cabo de um ano, os girinos se transformam em salamandras adultas capazes de se reproduzir, e assim por diante. A Srta. Blanche Kistemaeckers observou, por sua vez, um macho e duas fêmeas que mantinha cativos e relatou o seguinte: durante o período sexual, o macho ficava só com uma das fêmeas, e a perseguia com bastante brutalidade, gol-peando-a fortemente com a cauda quando ela tentava es-capar. Não gostava que se alimentasse e tentava afastá-la da comida; era possível notar claramente que a queria só pa-ra si, e por isso a aterrorizava. Quando expeliu a substân-cia fecundante, lançou-se sobre a outra, tentando devorá-la. Foi necessário transferi-lo de recipiente. Apesar de tudo, a segunda fêmea também botou ovos fecundados. Eram 63. A Srta. Kistemaeckers percebeu que naqueles dias os órgãos expelentes dos três animais ficaram muito inflamados. “Ao

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que tudo indica”, escreveu a senhorita, “os Andrias Scheu-chzeri não fecundam através da copulação, nem da matéria fecundante, e sim de algo que poderíamos chamar de am-biente sexual.” Como se vê, não é necessária nem a união par-cial para que se consiga a fecundação dos ovos. Isso incitou a jovem pesquisadora a fazer outras experiências interessantes. Afastou o macho das fêmeas e, quando chegou o momento oportuno, espremeu a matéria fecundante do macho, pon-do-a na água em que estavam as duas fêmeas. Estas começa-ram a botar ovos fecundados. Em outra experiência, a Srta. Blanche Kistemaeckers filtrou o esperma do macho, e pôs o líquido filtrado, livre dos corpos envolventes (era puro, um pouco ácido), na água das fêmeas. Também nesse caso as fê-meas começaram a botar ovos, cerca de cinquenta cada uma, a maioria dos quais estava fecundada e produziu girinos nor-mais. Foi isso, exatamente, que levou a Srta. Kistemaeckers a uma dedução muito importante sobre os ambientes sexuais, que criam uma troca independente entre a partenogênese e a multiplicação sexual. A fecundação dos ovos se produz, sim-plesmente, por uma mudança química do ambiente (certa acidificação que, até agora, não se conseguiu produzir ar-tificialmente), mudança que, de alguma forma, tem relação com as funções sexuais do macho. Mas essas funções, de per se, não são necessárias. O fato de o macho se manter grudado na fêmea é, certamente, um resíduo da forma de se multipli-car em tempos antigos, quando Andrias se reproduzia como outras salamandras. Essa união é, na realidade — como disse com acerto a Srta. Kistemaeckers —, uma espécie de ilusão de paternidade; na realidade, o macho não é o pai dos girinos; a fecundação é produzida por uma espécie de meio quími-co, basicamente impessoal. Se tivéssemos, em um recipien-

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te, cem casais de Andrias Scheuchzeri unidos, pensaríamos estar presenciando cem atos independentes de fecundação. Mas, na realidade, se efetuaria um único ato, ou seja, a sexu-alização coletiva do ambiente dado, ou, para ser mais exato, a acidificação da água na qual os ovos maduros de Andrias re-agem automaticamente, transformando-se em girinos. Pro-duza-se artificialmente esse ambiente ácido os machos não serão necessários. Assim, pois, a vida sexual dos extraordiná-rios Andrias surge diante de nós como uma Grande Ilusão. Sua paixão erótica, seu matrimônio e sua tirania sexual, sua fidelidade temporária, seu pesado e lento prazer, tudo são coisas inúteis, passadas, quase simbólicas, que acompanham, ou melhor, adornam o ato na realidade impessoal do macho, com o qual se cria o ambiente fecundante. A mesma indife-rença com que a fêmea recebe essa frenética e inútil corte do macho é um claro testemunho de que nesse namoro ela sen-te instintivamente que se trata de uma espécie de cerimônia ou introdução ao ato de aliança, na qual os sexos produzem o meio fecundante. Poderíamos dizer que a fêmea Andrias compreende esse estado de coisas mais claramente e o vive sem ilusões eróticas. (Os ensaios da Srta. Kistemaeckers foram completados por uma interessante experiência do erudito abade Bontem-pelli. Esse abade secou e moeu a matéria fecundante do ma-cho, acrescentando-a à água em que estavam as fêmeas. Estas começaram a botar ovos fecundados. Obteve o mesmo resul-tado quando secou e moeu o aparelho genital do macho An-drias, ou quando fez um extrato desse aparelho com álcool e derramou-o no recipiente em que as fêmeas viviam. Efeito semelhante também foi obtido com extrato de miolos e até com extrato das glândulas da pele de Andrias espremidas na

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época do cio. Em todos os casos citados, a fêmea a princípio não reagia a tais compostos, mas ao cabo de algum tempo começava a perder o interesse pela comida e ficava imóvel na água. Depois de algumas horas, começava a botar ovos, envoltos em uma substância gelatinosa e do tamanho dos ex-crementos de barata.) Em relação a isso, mencionaremos também um estranho ritual chamado Dança das Salamandras. (Não nos referimos à Salamander-Dance que esteve na moda há alguns anos, particularmente na alta sociedade e que foi considerada pelo bispo Hirama como “a dança mais repugnante de que ouvi falar em minha vida”.) Nas noites de plenilúnio, a não ser na época do cio, os Andrias — exclusivamente os machos — pro-curavam as praias e ali se sentavam em grupo e começavam a contorcer e a rebolar a parte superior do copo, com um movi-mento ondulatório. Esse movimento era característico dessas grandes salamandras também em outras circunstâncias. Mas, durante a chamada “dança”, entregavam-se a ela selvagem e ferozmente até o esgotamento, como se fossem dervixes dan-çantes. Alguns experts consideravam esses loucos movimen-tos, esse retorcer e mudar de um pé a outro, um culto à lua, e, portanto, um ritual religioso. Outros, ao contrário, viam naquilo uma dança erótica e a explicavam, precisamente, pe-las peculiares regras sexuais de que falamos antes. Dissemos que, no Andrias, o elemento fecundador é, na realidade, um ambiente sexual, um meio coletivo e impessoal entre machos e fêmeas. Também se disse que as fêmeas aceitam essas rela-ções impessoais com muito mais naturalidade do que os ma-chos, que — seguramente com sentido de fatuidade e ar de dominação masculina — querem, pelo menos, uma espécie de triunfo sexual e, por isso, brincam de cortejar e de pos-sessão matrimonial. Trata-se de uma imensa ilusão erótica,

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curiosamente complementada por essas grandes festas dos machos, que nada mais são que um esforço instintivo para convencer a si mesmo de que são o Coletivo Masculino. Com essa dança coletiva, eles atingem a atávica e absurda ilusão do individualismo sexual do macho; esse movimento circular, embriagador e frenético não é senão uma manifestação do Macho Coletivo, do Noivo Comum, do Grande Copulador que executa sua solene dança de aliança e se entrega a um grande ritual nupcial, sem a participação — coisa estranha! — da fêmea que, enquanto isso, está mordiscando um peixe ou uma sépia. O famoso Charles Powell, que chamou essas festas das salamandras de “A dança do princípio masculino”, escreveu mais tarde:

E não são por acaso esses rituais comuns das salamandras a própria raiz e fonte de seu extraordinário coletivismo? Con-sideremos que encontramos o verdadeiro coletivismo somen-te naqueles animais nos quais a vida e o desenvolvimento não estão baseados em um par sexual: abelhas, formigas e cupins. A associação das abelhas pode ser expressa pelas palavras Eu Colmeia Materna. A das salamandras se expressa de uma for-ma completamente diferente: Nós, o Princípio Masculino. Todos os machos que em um dado momento expelem em conjunto o meio sexual procriador são esse Grande Macho que penetra no seio da fêmea e a fecunda. Sua paternidade é coletiva e, por isso, sua natureza é coletiva e se manifesta em atos comuns, enquanto as fêmeas, ocupadas em botar os ovos, levam até a primavera seguinte uma vida mais ou me-nos interessante e solitária. Só os machos são a comunidade, só eles executam as tarefas coletivas. Em nenhuma espécie animal as fêmeas desempenham um papel tão secundário co-mo na dos Andrias: estão à margem das atividades comuns

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e, sem dúvida, tampouco demonstram muito interesse por elas. Seu momento começa quando o Princípio Masculino expele na água em que vivem aquele ácido químico, quase imperceptível, mas cheio de vida, que faz efeito até nas mais fortes marés, altas ou baixas. É como se o próprio oceano se convertesse em um macho, que fecunda em suas margens milhões de embriões.

Continua Charles J. Powell:

Apesar do orgulho tradicional dos galos, a natureza conce-deu, na maioria das espécies viventes, certa vantagem vital às fêmeas. Os machos estão no mundo somente para des-frutar e matar. São cheios de si e extremamente individua-listas, enquanto a fêmea representa a raça com sua força e suas atividades fixas. Em Andrias (e, muitas vezes, também no homem), as relações são basicamente diversas. A criação da associação e solidariedade masculinas dá ao macho cer-ta vantagem biológica, já que ele fixa o desenvolvimento de outro ser em maior medida do que a fêmea. É possível que, precisamente por causa dessa interessante orientação mascu-lina, a técnica, ou seja, a típica disposição masculina, seja tão valiosa no Andrias. Andrias nasceu técnico, com uma inclina-ção para as grandes realizações coletivas. Esse traço secundário do sexo masculino, ou seja, seu talento técnico e seu senso de organização, se desenvolve nele tão rapidamente e com tanto êxito que poderíamos falar de um fenômeno da natureza se não soubéssemos que seus poderosos motivos são os deter-minantes sexuais. Andrias Scheuchzeri é um animal faber que em nossa época supera tecnicamente até o próprio homem, e isso só em virtude de fatores naturais, por ter chegado a criar uma coletividade masculina.

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SEGUNDo LivRo

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I

o SR. PovoNDRA LÊ JoRNAL

Há pessoas que colecionam selos, outras, livros antigos. O Sr. Povondra, porteiro da casa de G. H. Bondy, procurou, du-rante muitos anos, um complemento para sua vida; hesitava entre seu interesse por tumbas pré-históricas e sua paixão pela política estrangeira, mas uma tarde, quando menos esperava, apareceu em sua vida o que lhe faltava para torná-la completa. As grandes coisas, geralmente, acontecem de repente.

Naquela tarde o Sr. Povondra estava lendo o jornal, sua esposa remendava as meias de Frantík, e este fazia uma cara de quem estava decorando os nomes dos afluentes da margem esquerda do Danúbio. Reinava um plácido silêncio.

— Devo estar louco — grunhiu o Sr. Povondra.— O que está acontecendo? — perguntou a Sra. Povondra

com a agulha na mão.— As salamandras... — exclamou o Sr. Povondra. — Leio

aqui que no último semestre foram vendidos 70 milhões delas. — É muita coisa, não é verdade!? — exclamou a Sra. Po-

vondra.— Eu acho! É uma cifra imensa, mamãe. Imagine: setenta

milhões!O Sr. Povondra balançou a cabeça.

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— Esse negócio deve dar muito dinheiro. E veja como trabalham! — acrescentou ao cabo de um momento de medi-tação. — Leio aqui que em todas as partes estão construindo novas terras e ilhas. As pessoas podem construir agora quantos continentes quiserem. Isso é uma coisa monumental, mamãe. Digo que significa mais progresso do que o descobrimento da América — o Sr. Povondra ficou pensativo. — Uma nova era na história da humanidade, você sabe? É isso mesmo, ma-mãe... Vivemos uma grande época!

O amável silêncio caseiro voltou a reinar. De repente, pa-pai Povondra chupou com força seu cachimbo.

— Quando penso que, se não fosse por mim, nada disso teria acontecido!

— O quê?— Todo esse negócio das salamandras. Essa Nova Época.

Pensando bem, fui eu mesmo quem começou tudo isso.A Sra. Povondra ergueu a vista dos furos das meias.— Diga-me como, por favor.— Tudo começou naquele dia em que deixei o capitão

entrar para falar com Bondy. Se eu não o tivesse anunciado, aquele capitão nunca teria se encontrado com o Sr. Bondy. Se não fosse por mim, nada disso teria acontecido.

— Talvez o capitão tivesse encontrado outro sócio — ob-jetou a Sra. Povondra.

Papai Povondra grunhiu com desprezo.— O que você entende dessas coisas? Só o Sr. G. H. Bon-

dy sabe fazer um negócio desses. Querida, ele enxerga mais longe do que qualquer pessoa. Os outros teriam pensado que se tratava de uma loucura ou de um golpe, mas o Sr. Bondy, ora, ora... Esse tem um olfato...

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O Sr. Povondra lembrou...— Aquele capitão, como se chamava mesmo? Vantoch,

sim, não tinha, digamos, um belo aspecto. Era um sujeito gordo e grandalhão. Qualquer outro porteiro lhe teria dito: “Aonde você vai, homem? Ou “o senhor não está em casa” ou algo do tipo. Mas eu tive uma espécie de intuição. “Vou anun-ciá-lo”, pensei, “mesmo que isso me custe uma reprimenda.” Eu sempre repito a mesma coisa: o porteiro precisa ter certo olfato para conhecer as pessoas. Às vezes chega um senhor que parece um barão e acaba se descobrindo que é um agente de uma loja de geladeiras. Em outras situações, chega um sujeito gordo e vá ver o que representa! É necessário saber conhecer as pessoas — refletiu papai Povondra. — Disso se deduz, Fran-tík, que até em um emprego muito humilde é possível fazer grandes coisas. Tome isso como exemplo e esforce-se sempre para cumprir com sua obrigação, como eu mesmo faço.

O Sr. Povondra mexeu a cabeça solenemente, um pouco emocionado.

— Eu podia ter despedido aquele capitão na própria entra-da, e teria economizado o esforço de subir e descer os degraus. Outro porteiro, por se achar importante, teria fechado a porta na fuça dele. Com isso teria aniquilado um progresso tão fan-tástico do mundo. Lembre-se, Frantík, se cada um cumprisse seu dever, o mundo seria um paraíso. E preste atenção quando estou falando com você!

— Sim, papá — resmungou tristemente Frantík.Papai Povondra tossiu.— Empreste-me a tesoura, mamãe. Vou recortar tudo o

que os jornais publicam para deixar, ao morrer, alguma recor-dação minha.

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E foi assim que o Sr. Povondra começou a colecionar recortes que falavam das salamandras. Ao seu entusiasmo de colecio-nador devemos muito do material que, de outra maneira, te-ria caído no esquecimento. Recortava e guardava tudo o que os jornais diziam a respeito das salamandras. Não omitiremos que, depois de certo nervosismo experimentado nos primeiros dias, aprendeu a recortar nos jornais que o café que frequentava punha à disposição da clientela todos os artigos que tratavam das salamandras. E isso debaixo das narinas do garçom, sem que este percebesse e com a habilidade de um prestidigitador. Como se sabe, todos os colecionadores estão sempre dispostos a roubar ou assassinar quando querem conseguir uma peça nova para sua coleção. Mas isso não diminuía, de maneira al-guma, suas qualidades morais.

Agora sua vida tinha, finalmente, um sentido: era a vida de um colecionador. Noite após noite, arrumava e contava seus recortes de jornais, diante dos olhos indulgentes da Sra. Po-vondra, que sabia que todos os homens são um pouco loucos ou um pouco infantis. Era melhor que brincasse com os recor-tes de jornais em vez de beber nas tavernas ou jogar baralho. Até abriu um espaço no armário para as caixas que ele mesmo havia montado para guardar sua coleção. Pode-se pedir mais de uma mulher, de uma dona de casa?

O próprio Sr. G. H. Bondy ficava às vezes surpreso com os conhecimentos enciclopédicos do Sr. Povondra em relação a tudo o que se referia às salamandras. O Sr. Povondra confes-sou, um pouco envergonhado, que arquivava tudo o que era publicado sobre as salamandras, e mostrou suas caixinhas ao

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Sr. Bondy. O Sr. Bondy elogiou calorosamente a coleção. O que poderia fazer? Só os grandes senhores sabem ser bondosos, e só os poderosos podem tornar os outros felizes sem que isso lhes custe um cêntimo. Os grandes senhores têm a sorte de estar sempre bem. Por exemplo: o Sr. Bondy ordenou simples-mente ao Sindicato das Salamandras que enviasse a Povondra os recortes sobre as salamandras que não precisava arquivar. O feliz e emocionado Sr. Povondra recebia diariamente uma infinidade de documentos em todas as línguas do mundo, entre eles jornais impressos em alfabeto grego, em letras he-breias, chinesas, bengalesas, em javanês, birmanês etc., o que lhe infundia um grande respeito. “Quando penso”, dizia, con-templando-os, “que isso não teria ocorrido se não fosse por mim...”

Como dissemos, a coleção do Sr. Povondra era composta de muito material exclusivo sobre toda a história das salaman-dras. No entanto, isso não significa que fosse suficiente para satisfazer um historiador científico. Primeiro: o Sr. Povondra, que não tivera uma formação especializada sobre a forma de contribuir para a história da ciência, nem sobre métodos de arquivamento, não anexava a seus recortes nenhuma nota a respeito da fonte de informação ou data de sua publicação, e por isso não se sabe quando nem onde foi publicada a maioria dos documentos arquivados. Segundo: o Sr. Povondra guar-dava de preferência artigos longos, por considerá-los mais im-portantes, e atirava as notícias curtas e despachos simples no cesto de papéis. Como consequência, conservamos pouquíssi-mas notícias e dados daquela época. E terceiro: as intervenções da Sra. Povondra eram constantes. Quando as caixas do Sr. Povondra ficavam muito cheias, ela tirava às escondidas alguns

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recortes e os queimava, operação que repetia várias vezes ao ano. Conservava apenas aqueles que não cresciam com muita rapidez, ou seja, os recortes impressos em malabar, tibetano ou copta. É possível dizer que esses estavam completos, mas, por certas precariedades da nossa formação, não nos servem para nada. Naquilo que nos diz respeito, o material que temos à nossa disposição sobre a história das salamandras é, basica-mente, como os livros de registro de propriedade do século VIII ou como as poesias completas de Safo. Só por casualidade se conservam fragmentos sobre este ou aquele acontecimento da história do mundo que, apesar de todos os vazios, tentamos apresentar-lhes sob o título “O progresso da civilização”.

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II

o PRoGRESSo DA CiviLiZAÇÃo

(HiStóRiA DAS SALAMANDRAS)1

Na época histórica que o Sr. G. H. Bondy anunciou, com palavras proféticas, como o começo da utopia,2 na memorável assembleia geral da Sociedade Exportadora do Pacífico, não se podiam medir os acontecimentos históricos por séculos nem por décadas de séculos, como se havia feito até então na histó-ria do mundo, mas por trimestre, já que as estatísticas econô-micas eram publicadas trimestralmente.3

1 Ver os escritos de G. Kreuzmann, “Geschichte der Molche”; Hans Tiet-ze, “Der Molch des XX. Jahrhundersts”; Kurt Wolff, “Der Molch und das Deutsche Volk”; Sir Hebert Owen, “The Salamanders and the British Empire”; Giovanni Focaja, “L’evoluzione degli anfibii il Fasásmo”; León Bonnet, “Les urodéles et la Societé des Nations”; S. Madariaga, “Las salamandras y la civilización”, e muitos outros.

2 Ver “A guerra das salamandras”, primeiro livro, capítulo 12.3 Como prova disso publicamos o primeiro recorte da coleção do Sr. Po-

vondra:O MERCADO DAS SALAMANDRAS

(CTK) Segundo as últimas notícias publicadas pelo Sindicato das Salaman-dras no final do trimestre, a venda dessas aumentou em trinta por cento. Em três meses foram entregues quase 70 milhões de salamandras, sobretudo em países do sul e do centro da América, Indochina e Somália italiana.

Em pouco tempo será iniciado o aprofundamento e ampliação do canal do Panamá, a limpeza do porto de Guaiaquil e a remoção de alguns bancos de

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Poderíamos dizer que a história avançava a passos rápidos e, por isso, o tempo histórico se multiplicava aceleradamente (segundo cálculos, cinco vezes mais). Hoje não podemos es-perar centenas de anos para que aconteça algo de bom ou de ruim no mundo. Por exemplo: o traslado de uma nação de um lugar a outro, que antes durava várias gerações, poderia ser feito, com o transporte disponível, em cerca de três anos. Não fosse assim, não seria possível tirar disso nenhum proveito. O mesmo ocorreu com a liquidação do Império Romano, com a colonização de continentes, com o extermínio de índios etc. Todas essas coisas podem hoje ser realizadas com extraordiná-ria rapidez; basta confiá-las a empresas altamente capitalizadas. Nesse sentido, o imenso êxito alcançado pelo Sindicato das Salamandras e sua tremenda influência na história do mundo apontam, sem dúvida alguma, o caminho do futuro.

A história das salamandras se distingue desde o princípio pela sua organização perfeita e racional. O principal — em-bora não único — mérito deve ser atribuído ao Sindicato das Salamandras; deve-se reconhecer também que organizações filantrópicas e culturais, a imprensa e muitas outras institui-ções participaram efetivamente do extraordinário desenvolvi-mento e progresso das salamandras. Deve-se, também, levar em conta que foi o Sindicato das Salamandras aquele que, dia

areia e pedras existentes no estreito de Torres. Esses trabalhos representarão, segundo cálculos aproximados, a remoção de 9 mil metros cúbicos de terra firme. Pensa-se iniciar na próxima primavera a construção de uma sólida ilha para a aviação na linha Madeira-Bermudas. Está tendo prosseguimento a am-pliação das ilhas Marianas, sob domínio japonês; até agora, foram tomados do mar 840 mil acres de nova terra firme, entre as ilhas Tinian e Saipan. Em vista da crescente demanda, o preço das salamandras continua firme: Leading, 61, Team, 620. Conta-se com reservas suficientes.

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após dia, conquistou novos continentes para suas protegidas, mesmo precisando vencer muitos obstáculos que freavam tal expansão.4

O boletim trimestral do Sindicato mostra como, gradual-mente, os portos da Índia e da China vão sendo colonizados pelas salamandras. Menciona, ainda, como a colonização de salamandras invade as costas africanas e chega ao continen-te americano, onde de repente surgem, no Golfo do México, as mais modernas obras, executadas por elas. Ao lado dessa ampla onda de colonização, vão sendo enviadas, também, salamandras destinadas a desempenhar o papel de pioneiras, vanguarda da futura exportação. Dois exemplos: a Holanda, que poderíamos chamar de Estado aquático, recebeu do Sin-dicato das Salamandras mil exemplares de primeira qualidade, e a cidade de Marselha, seiscentas salamandras para a limpeza do antigo porto. Há outros casos. Ou seja, à diferença da co-lonização humana do mundo, a expansão das salamandras se desenvolve planejada e desinteressadamente. Se esse trabalho

4 Esses obstáculos são evidenciados, por exemplo, na seguinte notícia re-cortada pelo senhor Povondra de um jornal (não há data):

A INGLATERRA SE FECHA ÀS SALAMANDRAS?

(Reuters) A pergunta acima, formulada pelo Sr. J. Leeds, membro da Câmara dos Comuns, foi respondida hoje por Sir Samuel Mandeville. Ele disse que o governo de Sua Majestade fechou o Canal de Suez para todo tipo de trans-porte de salamandras. Além do mais, não permitirá que nenhuma salamandra trabalhe nas costas ou em águas territoriais das Ilhas Britânicas. O motivo dessas decisões — declarou Sir Samuel — é, por um lado, a segurança das costas britânicas, e, por outro, a vigência de leis e contratos sobre a elimina-ção do tráfico de escravos.

À pergunta de um membro do Parlamento, o Sr. B. Russels, Sir Samuel res-pondeu que esse ponto de vista não se refere, sem dúvida, aos domínios e colônias britânicos.

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houvesse sido confiado à natureza, os acontecimentos teriam sido retardados em centenas de milhões de anos. É inegável que a natureza não é, nem nunca foi, tão empreendedora nem tão prática como a produção e o comércio humanos. Parece que o aumento da demanda também influiu na fecundidade das salamandras; a desova de uma fêmea aumentou em até 150 girinos/ano. Foram interrompidas também, e quase to-talmente, as habituais perdas de salamandras provocadas por tubarões. As salamandras receberam pistolas submarinas com balas dundum para que pudessem se defender de peixes vora-zes.5 A expansão das salamandras não se concretizou em todos os lugares tão facilmente. Às vezes, os círculos conservadores faziam críticas duras e se opunham à nova força de trabalho, vendo nela uma concorrência desleal ao trabalho humano.6

5 Usavam para isso pistolas quase comuns, inventadas pelo engenheiro Mirek Safránek e produzidas pela empresa Zbrojovka, de Brno.

6 Em relação a isso, publicamos a seguinte notícia da imprensa:

MOVIMENTOS GREVISTAS NA AUSTRÁLIA

(Havas) O líder das Trade Unions australianas, Harry Mac Namara, anunciou

uma greve geral dos operários portuários, de transporte, eletricidade e outros.

Os dirigentes das organizações sindicais exigem que a importação de sala-

mandras operárias pela Austrália seja contingenciada pelas leis de imigração.

Por outro lado, os granjeiros australianos se esforçam para que seja permitida

a importação de salamandras, já que seu incremento aumenta consideravel-

mente o consumo de milho nacional e de sebo, sobretudo o de ovelha. O

governo se esforça para chegar a um acordo. O Sindicato das Salamandras

propôs pagar às Trade Unions 6 xelins por cada salamandra importada. O

governo está disposto a negociar para que as salamandras sejam empregadas

apenas na água e que, por questão de decência, não saiam da água mais do que

65 centímetros, ou seja, à altura do peito. As Trade Unions insistem em 20

centímetros e 10 xelins adicionais como cota de inscrição. Tudo indica que se

chegará a um acordo, com a contribuição do Tesouro nacional.

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Outros expressavam seu temor de que as salamandras, por ali-mentar-se de pequenos animais marinhos, ameaçassem a pes-ca. Alguns asseguravam que, com seus passadiços e caminhos, minavam as costas das ilhas. Para dizer a verdade, houve muita gente advertindo sobre o perigo representado pelas salaman-dras. Mas sempre acontece a mesma coisa; cada novidade e cada progresso tropeçam, no começo, em certa repulsa e falta de confiança. Foi o que aconteceu quando instalaram máqui-nas nas fábricas, e voltou a acontecer com as salamandras. Em outros lugares se produziram desavenças de outro caráter,7 mas

7 Publicamos um interessante documento da coleção do Sr. Povondra:

SALAMANDRAS SALVAM A VIDA

DE 36 NÁUFRAGOS(Do enviado especial)

Madras, 3 de abril.

No porto local, o barco Indian Star co-lidiu com uma embarcação que con-duzia quarenta nativos, a qual afundou imediatamente. Antes que as lanchas da polícia chegassem ao lugar do acon-tecimento, as salamandras que trabalha-vam na limpeza do porto acorreram em ajuda dos náufragos e conduziram 36

pessoas à praia. Uma salamandra salvou sozinha três mulheres e duas crian-ças. Como recompensa por esse ato heroico, as salamandras receberam uma carta de agradecimento das autoridades locais, acondicionada em um estojo impermeável.

Apesar disso, os nativos estão indignados com o fato de que se tenha permitido às salamandras tocar nos náufragos, pessoas de casta superior. Consideram as salamandras sujas e repugnantes. No porto, se concentraram alguns milhares de pessoas exigindo que se proíba o acesso das salamandras ao cais. A polícia, no entanto, conseguiu restabelecer a ordem. Três pessoas morreram e 120 ficaram feridas. Às 10 horas da noite a tranquilidade estava totalmente restabelecida. As salamandras continuam trabalhando no porto.

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graças à desinteressada contribuição da imprensa mundial, que avaliou devidamente não apenas as grandes possibilidades do comércio de salamandras, mas também os produtivos inves-timentos a elas associados, foram instaladas salamandras em todas as partes do mundo; na maioria dos lugares elas foram recebidas com vivo interesse e até com certo entusiasmo.8

O comércio das salamandras estava, em sua maior parte, nas mãos do Sindicato das Salamandras, que as expedia em navios-cisterna de sua propriedade, construídos especialmente para esse fim. O centro comercial, onde funcionava uma es-pécie de bolsa de salamandras, era o Salamander Building de Cingapura.

Publicamos um amplo e objetivo informe, assinado com as iniciais e. w. em 5 de outubro:

S-TRADE “Cingapura, 4 de outubro, Leading 63. Heavy 317. Team 648, Odd Jobs 26.35. Trash 0.08. Spawn 80-132.”

Notícias como essa podem ser lidas diariamente nas páginas econômicas dos jornais entre os telegramas que indicam os preços do algodão, do estanho e do trigo. Mas os senhores sabem o que

8 Vejam, senhores, o seguinte recorte. É de grande interesse, mas foi, por azar, escrito em língua desconhecida e é, portanto, intraduzível:

Saht na kchri te salaam Andeer bwtat

Saht gwan t’lap ne Salaam Ander bwtati og t’cheni bechri ne Simbwana m’bengwe ogandi sûkh na moï-moï opwana Salaam Ander sri m’oana gwens. Og di limbw, og di bwtat na Salaam Ander Kchri p’we ogandi p’we o’gwandi te ur maswali sukh? Na, ne ur lingo t’Islamli kcher oganda Salaam Andrias sahti. Bend op’tonga kchri Simbwana mêdh, salaam!

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significam essas misteriosas palavras acompanhadas de certos nú-meros? Claro que sim! O comércio de salamandras, ou seja, o S-Trade. No entanto, a maioria dos leitores está pouco informa-da a respeito de como o dito comércio funciona. Talvez imaginem um grande mercado com milhares e milhares de salamandras pe-lo qual passeiam compradores com chapéus tropicais e turbantes, observando a mercadoria à venda até que, finalmente, apontam com o dedo uma jovem salamandra saudável, bem desenvolvida, e dizem: “Venda-me esse pedaço, por favor! Quanto custa?”.

Na realidade, o mercado de salamandras é muito diferen-te disso. No edifício de mármore do S-Trade de Cingapura os senhores não veriam uma única salamandra, mas funcionários eficientes e elegantes vestidos de branco, recebendo as encomendas por telefone. “Sim, senhor. Leading custa 63. Quanto? Duzen-tas unidades? Sim, senhor. Doze Heavy e 180 Team. Okay. Entendo. O navio sairá daqui a cinco domingos. Right? Thank you, sir.” Em todo o palácio do S-Trade ressoam as campainhas e as conversas telefônicas. Parece mais um escritório ou banco do que um mercado. E, no entanto, esse nobre edifício branco com esbeltos pilares em sua fachada é de fato um mercado, mais conhecido mundialmente do que o bazar de Bagdá nos tempos do califa Harun Al-Raschid.

Mas voltemos à mencionada notícia sobre o mercado e seu, poderíamos dizer, jargão comercial.

Leading é o nome de salamandras especialmente seleciona-das, inteligentes, em geral de cerca de 3 anos, treinadas para serem capatazes ou chefes nas colônias de trabalho das salaman-dras. São vendidas por unidade, sem que se leve em conta seu peso, avaliando-se apenas sua inteligência. O Leading de Cinga-pura fala um bom inglês e é considerado de primeira qualidade

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e de total confiança. Também são oferecidas diferentes categorias de salamandras chefes, como as chamadas Capitão, Engenheiro, Chefe Malaio, Contramestre e outras, mas as Leading são as mais valorizadas. Hoje, seu preço oscila ao redor de 60 dólares a unidade.

Heavy são salamandras fortes, atléticas, geralmente de 2 anos de idade, cujo peso oscila entre 50 e 60 quilos. São vendidas apenas em lotes de seis (chamados de pelotões). São treinadas para trabalhos mais pesados, como quebrar rochas, transportar blocos de pedra etc. Se na notícia acima mencionada se diz: Hea-vy 317, isso significa que um pelotão de seis salamandras pesadas custa 317 dólares. Para cada pelotão de Heavy se destina, em geral, uma Leading como responsável e guardiã.

Team são as salamandras para trabalho comum, com peso de 40 a 50 quilos, vendidas apenas em equipes (team) de vinte peças. São destinadas ao trabalho coletivo e realizam atividades de dragagem e de construção de bancos de areia e represas. A cada team de vinte salamandras corresponde uma Leading.

Odd Jobs é uma categoria particular. Trata-se de salaman-dras que, por diversos motivos, como, por exemplo, terem cres-cido fora das fazendas estabelecidas para as salamandras, não completaram sua aprendizagem nem são especializadas em ne-nhum trabalho. São, poderíamos dizer, meio selvagens, mas, em muitos casos, muito inteligentes. São compradas por unidade ou dúzias e usadas em diferentes trabalhos ou tarefas menores, para as quais não valeria a pena enviar todo um pelotão de salaman-dras ou uma equipe. Assim como consideramos a Leading como a elite das salamandras, poderíamos dizer que as Odd Jobs são algo assim como o pequeno proletariado. Nos últimos tempos, são compradas de preferência como matéria-prima, sendo depois

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educadas por particulares e transformadas em Leading, Heavy, Team ou Trash.

Trash ou dejeto são salamandras de menor valor, débeis e com algum defeito físico. Não são vendidas separadamente nem em grupos, mas em quantidade e por peso, em geral às dezenas de toneladas. Atualmente, 1 quilo custa de 8 a 10 cêntimos. Não se sabe, na verdade, para que são compradas, talvez para algum trabalho ligeiro debaixo da água. Para evitar más interpretações, queremos lembrar que a carne das salamandras não é comestível. A Trash é comprada, geralmente, por chineses, mas ainda não se averiguou para onde a levam.

Spawn é, simplesmente, o rebento da salamandra, ou, me-lhor dizendo, os girinos de até 1 ano. Comprados e vendidos por centena, são muito solicitados, principalmente porque são bara-tos e seu transporte é muito mais simples. Uma vez trasladados ao lugar determinado, são criados até a época em que se tornam aptos a trabalhar. São transportados em barris, já que os girinos, ao contrário das salamandras adultas, não precisam sair da água diariamente. Pode acontecer de os girinos se tornarem indiví-duos de extraordinária inteligência, que se aproximem do tipo standard Leading. Por isso o negócio dos girinos desperta maior interesse. As salamandras muito inteligentes também são vendi-das por peça, alcançando preços de algumas centenas de dólares a unidade. O milionário norte-americano Denicker pagou 2 mil dólares por uma salamandra que falava fluentemente nove idio-mas e a transportou a Miami em um navio especial. A viagem custou 20 mil dólares. Nos últimos tempos, girinos são comprados para os chamados estábulos de salamandras, onde se selecionam e treinam salamandras esportivas velozes. Estas são atreladas, em grupos de três, a pequenas embarcações em forma de concha.

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As regatas de conchas puxadas por salamandras estão muito em moda, sendo a diversão favorita da juventude norte-americana em Palm Beach, Honolulu e Cuba. São chamadas de Corridas de Tritões ou Regatas de Vênus. As competidoras, vestidas com os mais belos e diminutos trajes de banho, se equilibram em conchas leves e enfeitadas que deslizam pela superfície do mar, segurando em suas mãos as rédeas do terceto de salamandras. Disputa-se o título de Vênus. O Sr. J. S. Tincker, chamado de o Rei das Conservas, comprou para sua filha três salamandras de corrida, Poseidon, Hengist e Rei Eduardo, por nada menos que 30 mil dólares. Mas tudo isso já fica fora do marco da S-Trade, que se limita a vender, em todo o mundo, apenas trabalhadoras das categorias Leading, Heavy e Team.

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Mencionamos acima as fazendas de salamandras. Que o leitor não imagine grandes estábulos e campos cercados. São apenas alguns quilômetros de costa desnuda, na qual se elevam umas casinhas com tetos de amianto ondulado. Uma é para o veteriná-rio, outra, para o diretor e as demais, para o pessoal que guarda as salamandras. Na maré baixa, é possível ver, desde a costa até o mar, longos diques que dividem o litoral em vários tanques: um para os girinos, outro para os Leading etc. Cada categoria é treinada e alimentada separadamente e as duas atividades são realizadas ao entardecer. Ao pôr do sol, as salamandras saem de seus buracos, reunindo-se ao redor de seus mestres que, em geral, são militares aposentados. Primeiro têm uma hora para aprender a falar. O professor diz uma palavra — por exemplo, cavar —, e com um gesto indica seu significado às salamandras.

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Depois as organiza em filas de quatro e as ensina a marchar. A isso se segue meia hora de ginástica e, depois, descanso na água. Em seguida, aprendem a usar diferentes ferramentas e armas e então, sob a vigilância de seus professores, fazem algum tipo de trabalho prático, construções aquáticas etc. Terminado isso, as salamandras voltam à água e recebem seu alimento, que consiste em biscoitos especiais à base, especialmente, de milho e sebo. As salamandras Leading e Heavy são alimentadas com carne. Pa-ra castigar a preguiça e a desobediência, os culpados ficam sem comida. Não são aplicados castigos físicos porque a sensibilidade das salamandras às dores físicas é mínima. Quando o sol se põe, passa a reinar nas fazendas de salamandras uma tranquilidade sepulcral. As pessoas vão descansar e as salamandras desaparecem sob a superfície das águas.

Essa rotina só é alterada duas vezes por ano. Uma, na época do cio, em que as salamandras são deixadas sozinhas durante 15 dias, e a outra, quando chega à fazenda o navio-tanque do Sindicato das Salamandras para entregar ao diretor as ordens sobre quantas salamandras de cada classe serão embarcadas. A seleção é feita à noite. O oficial do barco, o diretor da fazenda e o veterinário sentam a uma mesa iluminada por uma lâmpada, enquanto os seguranças e a tripulação do navio fecham o acesso das salamandras ao mar. Depois, as salamandras se aproximam, uma a uma, da mesa, e se define se estão aptas ou não. As sa-lamandras selecionadas sobem, então, em uma barcaça que as conduz ao navio-tanque. A maioria vai voluntariamente, ou seja, basta que recebam uma ordem taxativa. Algumas vezes, no entanto, é preciso usar um pouco de força, como, por exemplo, amarrá-las. As larvas ou girinos são, naturalmente, recolhidos em redes.

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O transporte das salamandras nos navios-tanques é humano e higiênico. A cada dois dias a água dos recipientes é trocada e elas dispõem de alimentos em abundância. A mortalidade du-rante o transporte alcança somente cerca de dez por cento. A pe-dido da Sociedade Protetora dos Animais, em cada navio-tanque há um capelão que se preocupa com o tratamento humanitário das salamandras. Noite após noite, ele faz uma pequena prédica na qual, sobretudo, lhes inculca o respeito aos homens, a obe-diência e a gratidão aos seus futuros senhores, que não desejam mais do que se ocupar paternalmente do seu bem-estar. Sem dú-vida, é bastante difícil explicar às salamandras essa preocupação paternal, já que desconhecem o sentimento da paternidade. As salamandras mais educadas resolveram chamar o dito capelão de Papá Salamandra. Também tiveram muito bom resultado os filmes educativos projetados para as salamandras durante a via-gem; eles tratam das técnicas humanas, de seu futuro trabalho e de suas obrigações.

Há quem traduza a abreviatura S-Trade (Salamander Tra-de) por Slave Trade, ou seja, comércio de escravos. Observadores imparciais, somos obrigados a dizer que, se o antigo comércio de escravos tivesse sido tão bem organizado e tão higiênico como o atual das salamandras, não poderíamos fazer menos do que felicitar os escravos. As salamandras mais caras, principalmente elas, recebem uma série de atenções e delicadezas, sobretudo por-que o capitão e a tripulação do navio respondem com seus soldos pela vida das salamandras que lhes foram confiadas. Quem es-creve este artigo testemunhou como até os mais duros marinheiros do navio-tanque S.S.14 foram profundamente afetados quando duzentas formidáveis salamandras contraíram uma pesada diar-reia. Observavam-nas com lágrimas nos olhos e davam vazão aos

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seus sentimentos humanitários com palavras ásperas tais como: “O diabo estava nos devendo estes bichos fedorentos!”

O aumento dos lucros provenientes da exploração das sala-mandras levou ao surgimento do comércio selvagem; o Sindi-cato das Salamandras não pôde controlar e administrar todas as incubadoras em que o falecido capitão Van Toch deixara salamandras, especialmente as das ilhas da Micronésia, Me-lanésia e Polinésia; assim, muitas baías em que viviam e se multiplicavam ficaram abandonadas. Como resultado, estabe-leceu-se, ao lado da criação racional de salamandras, a caça das selvagens, que recordava, em muitos aspectos, as antigas ex-pedições de caça às focas. De certo modo, essa caça era ilegal, mas, como inexistia lei de proteção às salamandras selvagens, só era possível perseguir os piratas por intromissão nas águas territoriais deste ou daquele país. E como, ao se multiplicarem tão extraordinariamente naquelas ilhotas, as salamandras cau-savam um sem-fim de problemas aos nativos, além de destruir suas hortas e campos, essa caça de salamandras era conside-rada, ainda que em silêncio, como uma maneira de regular a população salamândrica.

Reproduzimos uma autêntica investigação judicial:

Bucaneiros do Século xx E.E.K. Eram 11 horas da noite quando o capitão do nosso navio ordenou que a bandeira de nosso país fosse arriada e os botes, lançados na água. Fazia uma noite clara de plenilúnio. A ilhota para a qual remávamos era, segundo creio, Gardner Island, do

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arquipélago Fênix. Em noites enluaradas como aquela, as sala-mandras saem para dançar na praia. É possível se aproximar sem que elas ouçam, tão envolvidas ficam em sua silenciosa dança coletiva. Éramos vinte os que chegamos à praia com remos na mão; espalhados em semicírculo, começamos a nos aproximar do escuro rebanho que se agitava na areia, sob a leitosa luz da lua.

É difícil descrever a impressão causada pela dança das sa-lamandras. Cerca de trezentos animais estão sentados sobre suas patas traseiras em um círculo exato, com o rosto virado para o centro da tal roda, que permanece vazia. As salamandras não se movem, parecem petrificadas, uma espécie de paliçada diante de algum altar secreto. Mas ali não havia deus nenhum. De repente, um dos animais estala a língua, “ts, ts, ts”, e começa a se contorcer, fazendo um movimento circular com a parte superior do corpo. Essa espécie de balanceio vai se transmitindo a umas e outras salamandras e, ao cabo de alguns segundos, todas me-xem circularmente a parte superior, sem sair do lugar, cada vez mais depressa, sem som, como fanáticos em uma furiosa e louca embriaguez. Ao cabo de um quarto de hora, algumas salaman-dras ficam debilitadas, depois outra e mais outra; balançam-se e, exaustas, ficam paralisadas. Voltam a ficar quietas, sentadas co-mo estátuas, descansando por alguns momentos. Depois de alguns segundos se ouve de novo “ts, ts, ts” e outra salamandra começa a se mexer, transmitindo sua dança para umas e outras até que todo o círculo rebola freneticamente. Sei que, por essa descrição, a dança lhes parecerá um pouco mecânica, mas acrescentem vocês a isso a alvacenta luz da lua e o sussurro melodioso das ondas. Tudo isso tem em si algo de bruxaria, de magia. Fiquei parado com o coração na garganta, sentindo algo entre o horror e a ad-miração. “Homem, mexa os pés!”, gritou um companheiro mais próximo. “Você vai fazer um buraco na areia!”

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Cada vez fechávamos mais o cerco ao redor dos animais dan-çantes. Os homens tinham os remos preparados e falavam aos sussurros, não tanto porque as salamandras poderiam ouvi-los, mas porque era noite. “A elas, depressa!”, gritou o oficial. Cor-remos para o círculo em ebulição; os remos atingiam com um estalido seco as costas das salamandras. De repente elas voltaram a si, fugindo para o centro do círculo ou tentando passar entre os remos para chegar ao mar, mas os golpes que recebiam as le-vavam a retroceder, encolhidas de dor e de medo. Empurravam-se para o centro do círculo, esmagando-se, pisoteando-se, caindo umas sobre as outras, formando já várias camadas. Dez homens as levantavam e as enfiavam atrás de um cerco de remos e dez espicaçavam e golpeavam as que tentavam passar por baixo ou escapar. Era uma espécie de novelo negro que se mexia e tremia, uma massa de carne que coaxava sob pesados golpes. Abriu-se uma brecha entre dois remos; uma salamandra se esgueirou por ali e foi aturdida por um golpe de remo na nuca; depois dela, a segunda e a terceira, até que estavam ali tombadas cerca de vinte. “Fechem!”, gritava o capitão, e o espaço entre os remos era fechado de novo. Bully Beach e Dingo pegavam cada um uma pata de uma salamandra aturdida e a arrastavam pela areia até o bote, como se fosse um saco sem vida. Às vezes o corpo do ani-mal se enganchava nas pedras; os marinheiros, enfurecidos, pu-xavam com força, ficando com as patas nas mãos. “Não é nada”, grunhia o velho Mike, que estava ao meu lado. “Elas crescerão de novo!” Quando as salamandras aturdidas estavam no bote, o oficial ordenava secamente: “Tragam outras!” E de novo choviam golpes de remo sobre as salamandras. Aquele oficial — Bellamy se chamava — era um homem inteligente e silencioso, excelente jogador de xadrez. Mas aquilo era uma caça, ou melhor, um

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negócio, e, por isso, para que fazer rodeios? E assim caçamos mais de duzentas salamandras aturdidas, restando umas setenta que certamente estavam mortas e já não valia a pena levar.

Uma vez no buque, as salamandras eram lançadas nas cisternas. Nossa embarcação era um velho navio-tanque para o transporte de gasolina. Os tanques, pouco limpos, fediam a petróleo, e a água que havíamos colocado neles estava graxenta e tinha reflexos de arco-íris. Quando atiraram as salamandras naquela água, ela adquiriu uma aparência espessa e repugnante; parecia uma sopa de macarrão. Em certos lugares alguma coisa se mexia, débil e dolorosamente, mas durante todo o dia nada se fez para que as salamandras pudessem se recuperar. No dia seguinte, chegaram quatro homens com longos paus e começaram a futucar naquela “sopa” (a palavra correta é soup). Removiam aqueles corpos espessos e observavam se algum ficava imóvel ou se sua carne se desprendia. Então espetavam um enorme gancho no animal e o puxavam, jogando-o no mar. “A sopa está limpa?” “Sim, senhor.” Essa limpeza da sopa se repetia diariamente e a cada vez se lançava no mar a “mercadoria estragada”, como era chamada. Nosso barco era acompanhado por uma fiel procissão de grandes tubarões bem alimentados. As cisternas fediam terri-velmente e, apesar de trocada com frequência, a água tinha uma cor amarelada e o fundo estava cheio de imundícies e biscoitos desfeitos; nela chapinhavam ou flutuavam languidamente corpos negros que respiravam com dificuldade. “Aqui até que está bom”, afirmou o velho Mike. “Eu vi um navio que as levava em barris de lata de gasolina; ali ficaram com tudo entupido.”

Ao cabo de seis dias voltamos a recolher nova mercadoria em Nanomea Island.

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Assim é, pois, o comércio das salamandras; na realidade, falando rigorosamente, um comércio ilegal, pirataria moderna que, po-de-se dizer, nasceu da noite para o dia. Afirma-se que quase um quarto das salamandras vendidas e compradas é capturado dessa forma. Há salamandras que não justificam, segundo o Sindicato, a manutenção de fazendas permanentes, e em algumas ilhas do Pacífico elas se multiplicaram de tal maneira que começaram a ser de fato um transtorno. Os nativos não as querem, e asseguram que suas covas e passadiços estão perfurando todas as ilhas. Por isso, tanto a administração das colônias como o Sindicato das Sa-lamandras fecham os olhos a essas incursões. Acredita-se que haja cerca de quatrocentos navios piratas que só se dedicam ao roubo de salamandras. Ao lado de pequenas empresas, essa pirataria moderna é praticada por companhias de navegação plenamente estabelecidas, entre as quais a maior é a Pacific Trade Comp., com sede em Dublin; seu presidente é o honorável Sr. Charles B. Harriman. Há um ano as condições eram, relativamente, muito piores. Então um bandido chinês chamado Teng atacou com três navios uma fazenda do Sindicato, e não hesitou em assassinar o pessoal que tentou opor resistência. Em novembro passado, Teng, com sua pequena esquadra, foi atingido pelo canhoneiro norte-americano Minnentonka, perto da ilha de Midway. Desde essa data, a pirataria contra as salamandras tem tido um aspecto muito menos feroz e goza de certo florescer, tendo fixado certas re-gras que são respeitadas discretamente. Por exemplo: ao penetrar em uma costa estrangeira, as bandeiras devem ser retiradas dos mastros. A pirataria não será usada para a importação e expor-tação de outras mercadorias. As salamandras não serão vendidas a preços de dumping e serão anunciadas no comércio como de

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segunda qualidade. No mercado ilegal de salamandras, elas são vendidas de 20 a 25 dólares a unidade. Embora sejam de uma classe muito inferior, essas salamandras são consideradas muito resistentes, devido ao fato de terem sobrevivido às terríveis con-dições existentes nos navios piratas. Calcula-se que nessas viagens morram de vinte a trinta por cento das salamandras capturadas, mas as que restam com vida são de uma resistência ímpar. Na linguagem comercial, são chamadas de Maccaroni e, nos últimos tempos, são até mencionadas nas notícias regulares do mercado.

— — —

Dois meses mais tarde, eu estava jogando uma partida de xadrez com o Sr. Bellamy, no hall do hotel France de Saigon; é claro que eu já não era marinheiro de seu barco.

— Ouça, Bellamy — disse-lhe —, você é um homem decen-te e, como se diz, um gentleman. Não sente, às vezes, a sensação de estar trabalhando para algo que, no fundo, é a mais miserável forma de escravidão?

Bellamy deu de ombros.— Salamandras são salamandras — grunhiu, evitando o

assunto.— Há duzentos anos também se dizia que os negros eram

apenas negros.— E por acaso não é verdade? — disse Bellamy. — Xeque! Perdi aquela partida. De repente me pareceu que cada jo-

gada que se apresentava no tabuleiro já fora feita antes. Talvez nossa história também já tenha sido vivida alguma vez, e mova-mos as figuras com os mesmos movimentos e atingindo as mesmas derrotas dos tempos passados. Talvez precisamente um homem

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tão decente e silencioso como Bellamy tivesse caçado, algum dia, negros na Costa do Marfim para levá-los ao Haiti ou à Loui-siana, deixando-os morrer nos porões dos navios. Então aquele Bellamy tampouco tinha maus pensamentos. Os Bellamy nunca têm maus pensamentos. Por isso são incorrigíveis.

— As negras perderam — disse Bellamy, satisfeito, e se le-vantou para se espreguiçar.

Ao lado da boa organização do comércio e da ampla propagan-da da imprensa, também contribuiu para o desenvolvimento das salamandras uma imensa onda de idealismo técnico que inundou o mundo naquela época. G. H. Bondy previra cor-retamente que o espírito humano começaria então a trabalhar em novos continentes e novas Atlântidas. Durante toda a Era das Salamandras reinou entre os técnicos uma viva e prolífica polêmica: deveriam construir os pesados continentes à beira-mar com concreto armado ou era melhor usar a suave areia trazida dos mares? Quase diariamente surgiam novos projetos gigantescos. Um engenheiro italiano propunha a construção de uma Grande Itália, que ocuparia quase todo o mar Medi-terrâneo, até Trípoli, as Baleares e Dodecaneso, ou a constru-ção de um novo continente que seria chamado de Lemúria, a leste da Somália italiana, que chegaria um dia a ocupar todo o oceano Índico. Na verdade, foi construída, com a ajuda de um batalhão de salamandras, uma nova ilha diante do porto de Mogadishu, na Somália, de 13,5 acres de extensão. O Japão projetou, e em parte fez, uma nova grande ilha no lugar an-tes ocupado pelo arquipélago das Marianas, preparando tam-bém a união das ilhas Carolinas com as Marshall, chamada antecipadamente de Novo Nippon. Em cada uma delas tinha

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que ser construído uma espécie de vulcão artificial, para que os futuros habitantes recordassem o sagrado monte Fuji. Cir-culavam ainda rumores de que engenheiros alemães estavam construindo secretamente uma fortaleza de concreto que de-veria ser uma futura Atlântida e ameaçaria a África Ocidental Francesa, mas, ao que parece, só foram fixados os alicerces. Na Holanda, foi iniciada a dessecação da Nova Zelândia; a França uniu Guadalupe, Grande Terre, Basse Terre e La Désirade em uma única ilha; os Estados Unidos começaram a construir, no meridiano 37, a primeira ilha-aeroporto (tinha dois andares, imensos hotéis e estádios esportivos, um parque de diversões e um cinema para 5 mil pessoas). Em resumo: parecia que ha-viam sido derrubadas as últimas barreiras que o mar apresen-tava ao florescimento da espécie humana. Teve início uma feliz época de extraordinários projetos técnicos; o homem entendia que era precisamente agora que se transformava em Senhor do Mundo. E isso graças às salamandras. Elas haviam apareci-do no momento certo da história do homem. “Por fatalidade histórica”, é possível dizer. As salamandras provavelmente não teriam se desenvolvido daquela maneira se nossa época técnica não tivesse preparado tantas tarefas e um campo tão amplo de trabalho contínuo. O porvir dos operários do mar parecia assegurado por centenas de anos.

A ciência desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento favorável das salamandras, já que logo se dedi-cou a investigá-las, tanto no aspecto físico como no psíquico.

Apresentamos um informe sobre o Congresso Científico de Paris,

descrito por uma testemunha ocular, r.d.:

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1er. Congrès d’Urodèles.

Abreviando, se chama Congresso dos Batráquios Urodelos, embo-ra o título oficial seja um pouco mais longo: Primeiro Congresso Internacional de Zoólogos para a Investigação Psicológica dos An-fíbios Urodelos. Mas o parisiense autêntico não gosta de títulos longos. Aqueles professores eruditos que se reúnem no anfiteatro da Sorbonne são para ele, simplesmente, os senhores urodelos, os senhores anfíbios urodelos, e basta. Ou na versão mais resumida e menos respeitosa: Ces Zoos-là.

Fui, pois, à reunião de ces Zoos-là mais por curiosidade do que por dever de comunicador. Curiosidade, entendam bem, não em relação àqueles senhores universitários, em sua maioria velhas auto-ridades de óculos, mas, exatamente, por aqueles seres (por que não quer sair da pena a palavra “animais”?) sobre os quais tanto já havia sido dito não só nos boletins científicos como nas canções de bulevar; e que — segundo alguns — eram “uma fraude jornalística” e — se-gundo outros — “mais inteligentes do que o próprio rei da criação”, como é chamado, ainda hoje (quero dizer, mesmo depois da guerra mundial e outras circunstâncias históricas) o homem. Pensava que os sábios senhores participantes do Congresso para a investigação da al-ma dos anfíbios urodelos esclareceriam definitivamente aos leigos na matéria a questão da famosa racionalidade do Andrias Scheuchzeri. Que nos diriam: sim, é um ser inteligente, tão apto a ser civilizado pelo menos como você e eu, e por isso contaremos com ele para o futuro, assim como precisamos contar para o futuro com espécies hu-manas consideradas em outros tempos selvagens e primitivas... Mas o congresso não deu nenhuma resposta nem apresentou nenhuma questão; a ciência contemporânea é excessivamente profissional e

não se interessa por esse tipo de problema.

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Enfim, aprendamos, pelo menos, o que cientificamente é cha-

mado de a vida psíquica dos animais. Esse senhor de barbas longas

e ondulantes que parece um mago e agora mesmo grita no estrado é

o famoso professor Dubosque; parece estar refutando alguma teoria

derrotista de seus respeitáveis colegas, mas não compreendemos cla-

ramente esse ponto de sua dissertação. Ao cabo de alguns minutos,

ficamos sabendo que o apaixonado mago fala da reação de Andrias

às cores e de sua capacidade de distinguir diferentes tonalidades e

nuances. Não sei se entendi bem, mas fiquei com a impressão de

que Andrias Scheuchzeri é de certa maneira acromatópsico e de

que o professor Dubosque deve ser bastante míope: bastava ver

como ele precisava aproximar os papéis até bem perto das suas

brilhantes lentes de fundo de garrafa. Em seguida falou um sorri-

dente estudioso japonês, o Dr. Okagawa; disse algo sobre as curvas

de reação e sobre os fenômenos produzidos quando se corta uma

espécie de conduto sensitivo no cérebro de Andrias; depois descre-

veu a reação de Andrias quando tem seu labirinto (o do ouvido)

triturado. O professor Rehmann explicou, então, detalhadamente,

como Andrias reage aos estímulos elétricos. De repente instalou-se

uma espécie de apaixonada polêmica entre ele e o professor Bruck-

ner. C’est un type, o professor Bruckner: pequeno, raivoso e quase

tragicamente vivaz. Entre outras coisas, afirmou que Andrias é tão

mal provido de sentidos como o homem, distinguindo-se pela mes-

ma pobreza de instintos. Considerando-se estritamente o aspecto

biológico, é um animal tão decadente como o homem e, como este,

tenta compensar sua insignificância biológica com o que se chama

de intelecto. Pareceu-me que os demais experts não levaram o

professor Bruckner a sério, certamente porque ele não falou de ne-

nhum tipo de condutos sensitivos e não enviou nenhuma corrente

elétrica ao cérebro de Andrias. Depois, tomou a palavra o profes-

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sor Van Dieten que, rapidamente, e quase como se executasse um

ofício divino, explicou as alterações que atingem Andrias quando

seu lobo frontal direito ou o esquerdo occipital são removidos. E aí

chegou a vez do professor americano Devrient... Perdoem-me, mas, na verdade, não sei qual foi sua contribui-

ção; naquele momento, comecei a pensar que tipo de alterações o

professor Devrient sofreria se lhe tirassem parte do osso craniano e

parte do occipital, como o sorridente Okagawa reagiria aos cho-

ques elétricos e o professor Rehmann se comportaria se seu labirinto

fosse triturado. Também senti uma espécie de insegurança sobre

minha capacidade de distinguir as cores ou sobre os efeitos do fa-

tor T em minhas reações motoras. Martirizava-me uma dúvida:

temos o direito de falar de nossa vida (quero dizer, a humana)

psíquica enquanto não tivermos exibido uns aos outros as mem-

branas que cobrem o cérebro e destruído nossos condutos sensitivos?

Na realidade, deveríamos, com bisturis nas mãos, nos lançar uns

sobre os outros com o objetivo de poder estudar nossa vida psíquica.

No que a mim se refere, estaria disposto, em nome da ciência, a

quebrar os óculos do professor Dubosque ou aplicar choques elé-

tricos na careca do professor Van Dieten. Depois, publicaria um

artigo sobre suas reações. Para dizer a verdade, posso imaginar

tudo vivazmente. Imagino menos vivazmente o que aconteceria

na alma de Andrias Scheuchzeri durante essas experiências, mas

acredito que ele é um ser muito paciente e bondoso. Nenhuma das

distintas autoridades mencionou que Andrias Scheuchzeri tenha se

enfurecido uma única vez.

Não tenho dúvidas de que o Primeiro Congresso dos Anfíbios

Urodelos teve uma grande importância científica. No entanto,

quando tiver um dia livre, irei ao Jardin des Plantes, diretamente

ao tanque em que está Andrias Scheuchzeri, para lhe dizer em

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voz baixa: “Ouça, salamandra, quando chegar o seu dia, não vá

querer investigar a vida íntima do homem!”

— — —

Graças a essas dissertações científicas o povo deixou de ver as salamandras como algo prodigioso. À sóbria luz da ciência, elas perderam muito da aura extraordinária e excepcional de seu primeiro nimbo. Ao ser objeto de experiências psicoló-gicas, demonstraram características medíocres e pouco inte-ressantes. Seus grandes atributos naturais foram atirados pela ciência ao reino da fantasia. A ciência descobriu a Salamandra Normal, que era um ser entediado e bastante limitado. Ape-nas os jornais ainda encontravam, de vez em quando, uma Salamandra Maravilhosa, que sabia multiplicar mentalmente números de cinco dígitos, mas até isso deixou de interessar aos leitores, sobretudo quando foi demonstrado que, com treina-mento adequado, o ser humano podia fazer a mesma coisa. As pessoas simplesmente começaram a considerar as salamandras uma coisa tão natural como as máquinas calculadoras ou ou-tros aparelhos automáticos. Já não viam nelas aquele segre-do que surgira um dia das profundezas desconhecidas Deus sabe por que e para quê. Além do mais, a humanidade não acha misterioso aquilo que lhe serve e beneficia, mas o que a prejudica e ameaça. E como, segundo ficou demonstrado, as salamandras eram seres extremamente úteis em vários aspec-tos, foram aceitas como algo pertencente ao curso racional dos acontecimentos.

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A utilidade das salamandras foi investigada, particular-mente, pelo pesquisador hamburguês Wuhrmann, de cujo in-forme citaremos, pelo menos, um pequeno extrato:

Bericht über die somatische

Veranlagung der Molche

As experiências que realizei com a salamandra gigante do Pa-cífico (Andrias Scheuchzeri Tschudi), em meu laboratório de Hamburgo, foram direcionadas a um objetivo inteiramente preciso: testar a resistência de Andrias a certas mudanças de ambiente e a outras influências externas. Queria demonstrar, assim, seu aproveitamento prático em certas regiões geográfi-cas e sob certas condições alteradas.

A primeira série de experiências serviria para saber quan-to tempo uma salamandra resiste fora da água. Os animais envolvidos na experiência foram colocados em recipientes vazios, a uma temperatura de 40-50 ºC. Ao cabo de algumas horas, as salamandras deram claros sinais de cansaço, e ao serem aspergidas com água, voltaram a se animar. Depois de 24 horas a seco, jaziam exaustas, movendo apenas as sobran-celhas. O pulso ficou lento e todas as suas atividades corpo-rais foram reduzidas ao mínimo. Notava-se que os animais sofriam. Cada movimento lhes custava um grande esforço. Ao cabo de três dias, começou o estado de paralisação cata-léptica (xerose); os animais não reagiram nem quando lhes foi aplicado o eletrocautério. Quando a umidade do ambien-te foi aumentada, começaram de novo a dar sinais de vida (fechar os olhos diante de uma luz potente etc.). Quando as salamandras assim conservadas foram metidas de novo na

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água após sete dias, reanimaram-se depois de certo tempo. Todos os animais submetidos à experiência que ficaram um tempo mais longo fora da água morreram. As salamandras colocadas diretamente sob os raios de sol morreram ao cabo de algumas horas.

Outras salamandras foram obrigadas a girar uma mani-vela em um ambiente seco e escuro. Ao cabo de três horas, sua capacidade de trabalho começou a diminuir, mas voltou a aumentar quando foram borrifadas abundantemente. As sa-lamandras aspergidas com bastante frequência conseguiram girar a manivela durante 17, 20 e, em um caso, até 26 horas consecutivas, enquanto um homem, ao cabo de cinco horas de trabalho mecânico, estaria consideravelmente esgotado. Dessas experiências devemos tirar a seguinte conclusão: as sa-lamandras podem ser bem aproveitadas em trabalhos em ter-ra seca sob as seguintes condições: não podem ficar expostas diretamente ao sol e devem ser borrifadas, de vez em quando, com água fresca.

A segunda série de experiências se referia à reação ao frio das salamandras de origem tropical. Quando a água em que estavam foi esfriada repentinamente, elas morreram de di-senteria, mas adaptaram-se com facilidade a uma lenta acli-matação a um ambiente mais frio. Ao cabo de oito meses, já conservavam sua vivacidade a uma temperatura mínima de 7 ºC, com a condição de que fosse aumentada a gordura de sua comida (de 150 para 200 gramas diários). Se a tempera-tura baixava a menos de 5 ºC, caíam em um estado de rigor hipotérmico (gelosis); nesse estado, poderiam ser congeladas e mantidas em um bloco de gelo durante vários meses. Quan-do o gelo derretia e a temperatura ultrapassava os 5 ºC, reco-

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meçavam a dar sinais de vida e, depois de 7 a 10 ºC, passavam a se interessar avidamente por comida. Disso se deduz que as salamandras podem se aclimatar em nosso país ou nas regiões frias da Noruega e da Islândia. Para saber se suportariam as condições climáticas polares, é necessário fazer novas experi-ências.

Por outro lado, as salamandras são muito sensíveis às in-fluências químicas. Durante experiências feitas com lixívia muito diluída, resíduos industriais, produtos usados em cur-tumes etc., sua pele se despedaçava em tiras e elas morriam devido a certa gangrena das brânquias. Por isso, elas não têm nenhuma serventia para os nossos rios.

Em outra série de experiências, conseguimos descobrir quanto tempo as salamandras resistem sem alimentação. Po-dem jejuar três semanas ou mais sem que se perceba nelas outro sintoma além de um ligeiro mal-estar. Deixei uma sa-lamandra cobaia faminta ao longo de seis meses; nos últimos três meses, dormia sem interrupção e sem se mexer. Quando, depois, joguei em seu barril alguns pedaços de fígado, estava tão débil que não reagiu e teve de ser alimentada artificial-mente. Ao cabo de alguns dias, já comia normalmente e esta-va pronta para novas experiências.

A última série de experiências abordou as possibilidades regeneradoras das salamandras. O rabo cortado de uma sala-mandra volta a crescer em 14 dias. Repetimos a experiência sete vezes com uma salamandra e os resultados foram os mesmos. As patas cortadas crescem em poucos dias. Para fazer uma experiência, cortamos as quatro patas e o rabo de uma sala-mandra. Em trinta dias ela estava de novo completa. Quando uma salamandra quebra um osso da perna ou do braço, o

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membro inteiro cai e cresce outro em seu lugar. Olhos fura-dos ou línguas cortadas voltam a crescer da mesma maneira. Um fato interessante ocorreu quando cortamos a língua de uma salamandra, pois a que surgiu em seu lugar obrigou-a a reaprender a falar. No entanto, quando se amputa a cabeça de uma salamandra ou se secciona seu corpo entre o pescoço e a pélvis, o animal morre. Por outro lado, é possível arrancar parte de seus intestinos, uma terça parte do fígado e outros órgãos sem que suas funções físicas sejam interrompidas, e por isso se pode dizer que uma salamandra destripada pode continuar vivendo tranquilamente. Nenhum outro animal é tão insensível a ferimentos como a salamandra. Desse ponto de vista, poderia ser um animal de primeira classe, invulne-rável, muito útil em situações de guerra. Lamentavelmente, a salamandra é muito pacífica e é indefesa por natureza.

— — —

Paralelamente a essas experiências, meu assistente, o Dr. Wal-ter Hinkel, testou o valor das salamandras como matéria-prima. Descobriu que o corpo das salamandras contém um elevado teor de iodo e fósforo; não está descartado que essas importantes matérias-primas poderiam ser extraídas e apro-veitadas, em caso de necessidade, na indústria. A pele da sala-mandra, que por si só é de péssima qualidade, pode ser moída e prensada a grande pressão. A pele artificial assim obtida é leve, bastante resistente, e poderia substituir o couro vacum. A gordura da salamandra não pode ser usada devido ao seu sabor desagradável, mas serve para uso técnico porque conge-la a temperaturas muito baixas. A carne da salamandra havia

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sido considerada imprópria para o consumo, até venenosa. Quando comida crua, provoca fortes dores, vômitos e até alu-cinações. O Dr. Hinkel comprovou, depois de muitos ensaios em que ele próprio foi cobaia, que esses efeitos prejudiciais desaparecem se a carne, cortada em pedaços, é escaldada com água fervente (o mesmo acontece com alguns cogumelos) e, depois de lavada cuidadosamente, posta durante 24 horas em uma solução de permanganato. Depois pode ser guisada ou cozida normalmente. Tem o mesmo sabor da carne de vaca de segunda. E assim nós comemos uma salamandra que cha-mávamos de Hans. Era um animal culto e inteligente, com uma disposição especial para o trabalho científico. Trabalhava no departamento com o Dr. Hinkel, como seu ajudante, e podíamos lhe confiar as análises químicas mais delicadas. Nas noites mais longas, tínhamos conversas interessantes com ele, e seu insaciável afã de saber nos distraía. Fomos obrigados a nos desfazer — com grande pesar — de nosso Hans porque, devido a umas experiências que fiz com ele sobre trepanação, ficou cego. Sua carne era escura e esponjosa, mas não tivemos nenhuma reação desagradável. É certíssimo que, em caso de guerra, a carne da salamandra será bem recebida, como um substituto econômico da carne do gado vacum.

Ao lado de tudo isso, é natural que as salamandras tivessem deixado de ser uma sensação: havia milhões delas no mundo. O interesse que despertaram nas pessoas quando ainda eram uma espécie de novidade também ecoou, durante algum tem-po, nos filmes cômicos (Sally and Andy, duas boas salamandras). Nos cabarés, as cantoras que tinham uma voz ruim se apresen-tavam vestidas de salamandras, expressando-se gramaticamen-

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te mal e cantando com uma espécie de grasnido. Quando as salamandras viraram uma coisa corriqueira, sua problemática, por assim dizer, mudou.9 A verdade é que a grande sensação

9 Uma prova típica é proporcionada por enquete organizada pelo jornal Daily Star sobre o seguinte tema: As salamandras têm alma? Citaremos algumas respostas a essa pesquisa (naturalmente, sem assumir a respon-sabilidade pela sua veracidade) dadas por personalidades destacadas:

Dear Sir, Meu amigo, o reverendo H. B. Bertram, e eu observamos durante um longo tempo as salamandras que trabalhavam no dique de Aden. Também conversamos com elas duas ou três vezes e nunca tropeçamos em demonstrações ou mostras de sentimentos elevados como a Honra, a Fé, o Patriotismo ou o Espírito Esportivo. E que outra coisa, pergunto eu, podemos considerar como alma? Respeitosamente, seu

Coronel W. Britton

Nunca vi uma salamandra, mas estou convencido de que seres que não produ-zem música tampouco têm alma.

Toscanini

Deixemos de lado a questão da alma. Quando observei o Andrias, percebi que não tem individualidade, uns parecem ser iguais aos outros, igualmente apli-cados, igualmente capazes e igualmente inexpressivos. Em uma palavra: atendem a certo ideal da civilização moderna, ou seja, a Mediocridade. André D’Artois

Decididamente não têm alma. Nisso se parecem com o homem. Seu G. B. Shaw

Sua pergunta me deixa totalmente confusa. Sei, por exemplo, que meu cachorrinho chinês Bibi tem uma alminha encantadora, assim como meu gatinho persa Sidi Hanum. Que alma mais formidável e cruel! Mas as salamandras? As pobrezinhas são bem dispostas e inteligentes; sabem falar, contar e ser terrivelmente úteis. Mas são tão feias! Sua Madeleine Roche

Que haja salamandras, mas que não sejam marxistas.Kurt Huber

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que despertavam languesceu e deu lugar a outra coisa, até cer-to ponto mais sólida: A Questão das Salamandras.

A protagonista da Questão das Salamandras foi — como aconteceu muitas vezes ao longo da história — logicamente uma mulher, Mme. Louise Zimmermann, diretora do pensio-nato feminino de Lausanne, que, com extraordinária energia e incansável entusiasmo, proclamava aos quatro ventos seu nobre slogan: Deem às salamandras a devida educação escolar! Ela esbarrou durante um bom tempo na incompreensão do público, enquanto chamava incansavelmente a atenção para a natural disposição das salamandras ao aprendizado e sobre o perigo que a civilização poderia correr se as salamandras não tivessem uma educação moral e intelectual adequada.

“A civilização romana não entrou em colapso diante da in-vasão dos bárbaros? Pois nossa cultura também será extinta se for uma ilha no meio de um mar de criaturas espiritualmente oprimidas e impedidas de participar dos mais altos ideais da humanidade dos dias que correm”, declarou, profeticamente,

Não têm alma. Se a tivessem, teríamos que reconhecer sua igualdade

econômica com o homem, o que seria absurdo.

Henry Bond

Não têm sex appeal, portanto não têm alma. Mae West

Têm alma assim como cada ser e cada planta, assim como tudo o que vive. Grande é o mistério de toda a vida.

Sandrabhâta Nath

Têm um estilo interessante e boa técnica de natação. Podemos aprender muito com elas, sobretudo na natação de longa distância. Tony Weissmüller

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nas 6.350 conferências que pronunciou em clubes femininos de toda a Europa e América, assim como no Japão, na China, na Turquia e em outros países.

“Se queremos manter a cultura, terá de ser através da edu-cação de todos. Não podemos usufruir tranquilamente os fru-tos de nossa civilização e de nossa cultura enquanto existirem ao nosso redor milhões e milhões de seres desgraçados e in-feriores, mantidos artificialmente em estado de animalidade. Assim como o lema do século XIX foi a Libertação da Mulher, o de nossa época terá de ser DEEM BOAS ESCOLAS ÀS SALA-MANDRAS!” E assim por diante. Graças à sua eloquência e tenacidade incríveis, Mme. Louise Zimmermann mobilizou mulheres de todo o mundo, conseguindo uma ajuda financei-ra suficiente para criar em Beaulieu (perto de Nice) o Primeiro Liceu para Salamandras, no qual os girinos das salamandras aprenderam língua e literatura francesas, retórica, urbanidade, matemática e história da cultura.10

10 Ver o livro Mme. Louise Zimmermann, sa vie, sés idées, son ouvre (Alcan). Citamos da referida obra as recordações de uma salamandra que foi uma de suas primeiras alunas:

“Ela recitava pra gente fábulas de La Fontaine, sentada em nosso sim-ples, mas limpo, tanque; sofria, sem dúvida, por causa da umidade, mas nada lhe importava, entregue, como estava, completamente às suas tare-fas docentes. Chamava-nos de “mes petits Chinois” porque, assim como os chineses, também não conseguíamos pronunciar a letra r. Ao cabo de algum tempo, acostumou-se tanto com isso que pronunciava seu nome Mme. Zimmelmann. Todas a adoravam, e os pequenos que ainda não tinham desenvolvido os pulmões e, portanto, não podiam sair da água, choravam por não poder acompanhá-la em seus passeios pelo jardim da escola. Era tão comedida e amável que, até onde consigo saber, só se

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Menor êxito teve a Escola Feminina para Salamandras de Mentón, em que certos cursos, especialmente os de mú-sica, culinária dietética e trabalho manual delicado (nos quais Mme. Zimmermann insistia principalmente por motivos peda-

aborreceu uma vez. Foi quando nossa jovem professora de história, em um dia quentíssimo de verão, vestiu um maiô e enfiou-se com a gente no tanque, onde nos explicou a luta pela libertação dos Países Baixos, sentada com a água até o pescoço. Naquele dia nossa querida Srta. Zim-melmann se aborreceu seriamente: “Vá imediatamente tomar um banho, Mademoiselle, vá, vá”, gritava com lágrimas nos olhos. Mas, para nós, foi uma delicada embora compreensível lição de que, apesar de tudo, nosso lugar não é entre a gente. Mais tarde agradecemos à nossa mãe espiritual pelo fato de ter gravado essa verdade em nossas mentes de uma forma tão decidida e sutil.

Quando estudávamos corretamente, ela nos lia, como recompensa, versos modernos, como os de François Coppéa. “É, de fato, um pou-co moderno demais”, dizia, “mas, apesar de tudo, pode ser considerado atualmente parte de uma boa formação.” Quando o ano escolar termi-nou, foi organizada uma festa pública, assistida pelo prefeito de Nice, além de outras altas personalidades oficiais. Os alunos mais inteligentes e destacados, que já tinham pulmões, foram enxugados pelo zelador da escola e vestidos com uma espécie de túnica branca. Depois declama-ram, atrás de uma fina cortina (para que as damas não se assustassem), as fábulas de La Fontaine, fórmulas matemáticas e a história da dinastia dos Capetos, acompanhada das correspondentes datas. Depois o senhor prefeito, em um belo e longo discurso, expressou seu reconhecimento e agradeceu à nossa querida diretora, e com isso o dia feliz terminou. Tanto como de nosso progresso espiritual, preocupava-se também com nossa felicidade corporal. Uma vez por mês éramos examinadas por um veterinário, e a cada meio ano nos pesavam para ver se estávamos com o peso apropriado. Nossa extraordinária protetora tentava nos convencer, principalmente, a abandonar o hábito vergonhoso e primitivo da Dan-ça da Lua. Envergonha-me dizer que, apesar disso, alguns alunos mais velhos se entregavam durante o plenilúnio a essas vergonhosas mostras de animalidade. Espero que nossa maternal amiga nunca fique sabendo disso, pois isso cortará seu grande, nobre e amoroso coração.

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gógicos), esbarravam na falta de interesse, para não dizer oposi-ção, das jovens salamandras do corpo discente. Por outro lado, o primeiro ensaio público das Jovens Salamandras teve tanto êxito que imediatamente depois foi fundada (com financiamento da Sociedade Protetora dos Animais), em Cannes, a Politécnica Marítima para Salamandras, e, em Marselha, a Universidade das Salamandras. Foi ali que, mais tarde, uma salamandra ob-teve, pela primeira vez, o título de doutor em direito.

A questão da educação das salamandras começou, então, a desenvolver-se rapidamente e pelas vias normais. Professores progressistas apresentaram inúmeras objeções às exemplares Écoles Zimmermann; afirmava-se, particularmente, que os métodos usados pela velha escola humanista para educar os seres humanos não eram apropriados às salamandras adoles-centes. Rechaçava-se, categoricamente, o ensino de literatura e história, recomendando-se que maior espaço e tempo fossem dedicados a matérias práticas e modernas, como ciências na-turais, desenvolvimento técnico, educação física e assim por diante. Essa que era denominada de Escola da Reforma — ou seja, Escola para a Vida Prática — foi criticada apaixonada-mente pelos representantes do ensino clássico. Afirmaram que o latim era o único meio de aproximar as salamandras dos seres humanos; não bastava que aprendessem a falar se não fossem capacitadas a recitar versos e a proferir discursos com a pronúncia exata de Cícero. Houve longos e exaltados debates sobre o assunto, solucionado, finalmente, pela estatização das escolas para as salamandras e a reforma das escolas para a ju-ventude humana, de maneira que se aproximassem o máximo possível dos ideais da Escola da Reforma para Salamandras.

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Naturalmente, também surgiram em outros países vozes que reinvindicavam o estabelecimento, sob controle governa-mental, da educação compulsória das salamandras. Isso ocor-reu gradualmente em todas as nações marítimas (à exceção, é claro, da Grã-Bretanha). E, como essas escolas para salaman-dras não estavam comprometidas com as velhas tradições clás-sicas das escolas para seres humanos e, portanto, podiam ado-tar os métodos mais modernos da educação psicotécnica, da educação técnica, da instrução pré-militar, enfim, todos os mais recentes avanços pedagógicos, logo viraram as instituições mais modernas e científicas do mundo, o que era motivo justificado de inveja de todos os pedagogos e estudantes humanos.

E, de mãos dadas com o problema da educação das sa-lamandras, surgiu o problema do idioma. Qual das línguas mundiais as salamandras deveriam aprender preferencialmen-te? As originárias das ilhas do oceano Pacífico se expressavam em Pidgin English, que haviam aprendido com os nativos e os marinheiros; muitas falavam malaio ou algum dialeto local. As salamandras criadas para o mercado de Cingapura eram indu-zidas a falar o Basic English, o inglês cientificamente simplifica-do, reduzido a algumas centenas de palavras e desprovido dos antigos rodeios gramaticais. Por isso, esse inglês padronizado começou a ser chamado de Salamander-English. Nas exem-plares Escolas Zimmermann, as salamandras se expressavam no idioma de Corneille, não por motivos nacionalistas, mas porque assim se atendia à cultura superior. Por outro lado, nas Escolas Reformadas se aprendia o esperanto, considerada uma língua mais compreensível. Além disso, surgiram naquela época umas cinco ou seis novas línguas universais, que preten-diam substituir a confusão babilônica dos idiomas humanos e

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dar uma língua materna única aos homens e às salamandras; houve, porém, muitas controvérsias sobre qual dessas línguas internacionais era a mais apropriada, mais agradável ao ouvido e mais universal. Finalmente, decidiu-se que cada país propa-gasse a língua universal que mais lhe conviesse.11

A estatização das escolas para salamandras simplificou tu-do. Cada país educou suas salamandras em seu próprio idio-ma. Embora Andrias tivesse o dom de aprender línguas com relativa facilidade e muito entusiasmo, sua habilidade linguís-tica apresentava algumas imperfeições, devido não apenas à configuração de seus órgãos vocais, mas, para sermos mais

11 Entre outras coisas, o famoso filólogo Curtius propôs em sua obra Janua linguarum aperta que fosse adotado, como língua única para as salaman-dras, o latim da Idade de Ouro de Virgílio. “Hoje depende de nós”, dizia, “a possibilidade de o latim — a língua mais perfeita, mais rica e mais extensa em regras gramaticais e cientificamente mais trabalhada — voltar a ser uma língua mundial viva. Se a humanidade culta não está aproveitando essa oportunidade, façam-no vocês mesmas, salamandras, gens maritima. Elejam como sua língua materna eruditam linguam lati-nam, a única língua digna de ser falada no orbis terrarum. Imortal será vosso mérito se ressuscitardes a uma nova vida a língua eterna dos deuses e heróis, porque nessa língua, gens Tritonum, receberíeis também algum dia a herança de Roma, governadora do mundo.”

Ao mesmo tempo, um funcionário dos telégrafos da Letônia chamado Wolteras, com o pastor eclesiástico Mendelius, inventou ou elaborou uma linguagem para salamandras chamada língua pôntica (pontic lang). Nela aproveitou elementos de todas as línguas do mundo, principalmente os dialetos africanos. Esse salamandrês, como também se chamava, conseguiu se espalhar principalmente nos países nórdicos, mas só entre os seres hu-manos. Em Upsalla foi criada uma cátedra para o ensino do salamandrês, mas, segundo se sabe, não havia nenhuma salamandra que falasse o dito idioma. A língua mais divulgada entre as salamandras era o inglês básico que, mais tarde, se converteu em sua língua oficial.

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exatos, a um motivo psíquico. Tinha, por exemplo, dificulda-de de pronunciar palavras longas, de muitas sílabas, e tentava reduzi-las a uma só, que pronunciava de forma curta e, de certo modo, grasnando. Dizia l no lugar de r e ceceava um pouco. Comia os finais das palavras, nunca aprendeu a dis-tinguir “eu” de “nós” e não lhe importava se uma palavra era feminina ou masculina (talvez isso fosse manifestação de sua frieza sexual fora da época do acasalamento). Em resumo, cada idioma ficava caracteristicamente reformado quando era fala-do pelas salamandras, que o racionalizavam, de certo modo, em uma forma mais simples e rudimentar. É digno de aten-ção o fato de os neologismos, sua pronúncia e sua primitiva gramática terem começado rapidamente a influenciar, de um lado, a gente dos portos e, de outro, a chamada boa sociedade. Depois, essa maneira de se expressar se estendeu aos jornais e logo se tornou popular. Até entre a gente abastada começaram a desaparecer os gêneros gramaticais e foram eliminadas as ter-minações e as declinações. A juventude dourada suprimiu o r e aprendeu a cecear. Era difícil encontrar alguém, mesmo entre a gente culta, que soubesse o significado de indeterminismo ou de transcendente, simplesmente porque essas palavras haviam ficado demasiadamente longas e impronunciáveis. Em resu-mo, bem ou mal, as salamandras sabiam falar todas as línguas do mundo, de acordo com a região costeira em que vivessem. Foi publicado então, em um jornal de nosso país (creio que o Národní Listy), um artigo no qual, com razão, se perguntava amargamente por que as salamandras também não aprendiam o tcheco, já que sabiam português, holandês e outras línguas de nações pequenas. “Lamentavelmente, nosso país não tem litoral”, dizia o tal artigo, “e por isso não existe aqui nem uma

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única salamandra marítima. Mas, ainda que não tenhamos mar, isso não significa que não tenhamos participação — até muito mais importante do que outras nações cujas línguas são faladas por milhares de salamandras — na cultura mundial. Seria justo que as salamandras conhecessem nossa vida espi-ritual, mas como vão se informar se entre elas não há uma única que fale nosso idioma? Não esperemos que alguém que reconheça essa dívida cultural crie a cátedra de tcheco e litera-tura tchecoslovaca em alguma instituição de ensino das sala-mandras. Como disse o poeta, ‘não acreditemos em ninguém no vasto mundo, não temos nenhum amigo ali’. Devemos nos preocupar em remediar nós mesmos essa situação”, pedia o artigo. “Tudo o que conseguimos no mundo foi sempre pelas nossas próprias forças! É nosso direito e obrigação desenvol-ver esforços para fazer amigos também entre as salamandras. Mas, ao que parece, nosso Ministério das Relações Exteriores não demonstra muito interesse pela propagação de nosso no-me e de nossos produtos entre as salamandras (embora nações menores dediquem milhões para abrir-lhes os tesouros de sua cultura) e, ao mesmo tempo, despertar seu interesse por nossa produção industrial.” O artigo despertou grande entusiasmo, sobretudo na Federação das Indústrias, e, pelo menos, atingiu o seguinte resultado: foi publicado um livro intitulado Tcheco para salamandras, com passagens da formosa literatura tche-ca. Parecerá incrível, mas foram vendidos mais de setecentos exemplares desse livro. Foi, pois, em seu todo, uma proeza digna de interesse.12

12 Publicamos um artigo da pena de Jaromír Seidl-Novometsky, preserva-do na coleção do Sr. Povondra.

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As questões de educação e idioma eram, sem dúvida, ape-nas uma parte da grande Questão das Salamandras que, por assim dizer, crescia a olhos vistos. Por exemplo: surgiu de re-pente a questão de como deveriam ser tratadas as salamandras

Nosso Amigo das Ilhas Galápagos

Em viagem com minha esposa, a poetisa Jindra Seidlová-Chrudimská, para

que a magia de novas emoções nos fizesse esquecer em parte a morte de nossa

nobre tia, a escritora Bohumila Jandová-Stresovická, chegamos às solitárias ilhas

Galápagos, cercadas de tantas lendas. Dispúnhamos de duas horas, que aprovei-

tamos para passear pela praia de uma das ilhotas do abandonado arquipélago.

— Olhe, que belo pôr do sol — disse à minha esposa. — Não lhe parece que o

firmamento está se afogando em uma inundação de ouro e sangue?

— O senhor é tcheco? — ouvi dizer às minhas costas em puro e autêntico tcheco.

Viramos, surpresos, a cabeça na direção da voz. Não havia ninguém, à exceção

de uma grande salamandra sentada nas rochas que sustentava nas mãos uma coi-

sa parecida com um livro. Ao longo da nossa viagem ao redor do mundo já tínha-

mos visto várias salamandras, mas, até então, nunca tivéramos a oportunidade

de falar com uma delas. Por isso o amável leitor compreenderá nossa surpresa

quando, em um litoral tão abandonado, nos encontramos com Andrias e, além

do mais, o ouvimos fazer uma pergunta em nosso próprio idioma.

— Quem está falando? — exclamei em tcheco.

— Eu me permiti esse atrevimento, senhor — respondeu a salamandra levan-

tando-se respeitosamente. — Não pude evitá-lo ao ouvir, pela primeira vez em

minha vida, alguém falar em língua tcheca.

— Como — perguntei maravilhado —, você fala tcheco?

— Estava, exatamente, entretido com a conjugação do verbo irregular ser — res-

pondeu a salamandra. — Esse verbo, na verdade, é irregular em todas as línguas.

— Como, onde e por que você aprendeu o tcheco? — perguntei.

— A casualidade fez chegar às minhas mãos este livrinho — respondeu a

salamandra, entregando-me o que tinha em suas mãos.

Era Tcheco para salamandras e suas páginas exibiam as marcas de um uso

constante e tenaz.

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do ponto de vista, vamos chamá-lo assim, social. Nos primei-ros, quase pré-históricos dias da Era das Salamandras, havia sociedades protetoras de animais que procuravam, de maneira febril, evitar que fossem tratadas de modo cruel e desumano.

— Chegou aqui junto com uma remessa de livros educacionais. Poderia ter es-

colhido uma Geometria para cursos superiores das escolas de ensino médio, uma

História da tática militar, o Guia das dolomitas ou Princípios do bimetalismo. No

entanto, preferi este livro, que virou meu melhor amigo. Já o conheço inteiramente

de memória e, apesar disso, sempre encontro nele uma fonte de entretenimento e

aprendizado.

Minha esposa e eu demonstramos nossa alegria e admiração diante dessa

notícia e ao ouvir sua pronúncia quase compreensível.

— Lamentavelmente, não há aqui ninguém com quem possa falar tcheco

— confiou-nos com modéstia nosso amigo. — Eu não sei exatamente se o sétimo

caso da declinação da palavra cavalo, kůň, é koni ou koňmi.

— Koňmi — disse eu.

— Oh, não! Koni — exclamou vivazmente minha esposa.

— O senhor poderia ser amável a ponto de me contar o que há de novo em Praga,

a cidade das cem torres? — perguntou nosso simpático amigo com entusiasmo.

— Você não pode imaginar como está crescendo — respondi, entusiasmado

pelo seu interesse e, em umas quantas palavras, resumi o florescimento de nossa

dourada metrópole.

— Que notícias mais agradáveis! — disse a salamandra sem ocultar sua

satisfação. — Ainda estão penduradas na torre da ponte as cabeças dos nobres

tchecos justiçados?

— Faz tempo que não — respondi um pouco surpreso (reconheço) diante

daquela pergunta.

— Que pena! — exclamou a salamandra com simpatia. — Era uma extra-

ordinária recordação histórica. Clama aos céus que tantas recordações notáveis

tivessem sido destroçadas na Guerra dos Trinta Anos. Se não me engano, a terra

tcheca foi na época convertida em um deserto coberto de sangue e lágrimas.

— E você se interessa pela nossa história? — perguntei, cheio de alegria.

— Sem dúvida, senhor — afirmou a salamandra. — Sobretudo o desastre

de Bilá Hora, a Montanha Branca, e a servidão dos trezentos anos. Li muito a

respeito de tudo isso nesse livro. Vocês devem ter muito orgulho de sua servidão dos

trezentos anos. Foi uma grande época, senhor.

— Sim, uma época dura — expliquei —, época de opressão e de cólera.

— E vocês gemeram? — perguntou nosso amigo com grande interesse.

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Graças à sua constante intervenção, conseguiu que em quase todas as partes as instituições competentes ficassem atentas pa-ra que fossem respeitadas, em relação às salamandras, as reco-mendações policiais e veterinárias válidas para qualquer outra espécie animal.

— Gememos, sofrendo indescritivelmente sob o jugo de nossos opressores.

— Como me alegro! — A salamandra suspirou. — É exatamente o que diz o meu

livro, e estou muito contente de que diga a verdade. É um livro precioso, senhor, me-

lhor do que Geometria para cursos superiores das escolas de ensino médio. Gostaria

muito de visitar algum dia o memorial do lugar em que foram executados os nobres

tchecos e também outros lugares onde se cometeram cruentas injustiças.

— Você deveria visitar nosso país — sugeri-lhe de todo coração.

— Obrigado pelo seu amável convite — inclinou-se a salamandra. — Lamen-

tavelmente, a liberdade não é tão grande assim.

— Poderíamos comprá-la! — exclamei. — Quero dizer, através de uma coleta

nacional poderíamos proporcionar-lhe os meios.

— Meus mais sinceros agradecimentos — murmurou nosso amigo, visivel-

mente comovido —, mas ouvi dizer que a água do Moldava não é muito boa.

O senhor sabe? Sofremos de disenteria em águas turvas. — Depois meditou um

momento e disse: — Tampouco poderia abandonar meu querido jardim.

— Eu sou uma jardineira entusiasta! — exclamou minha esposa. — Não sabe

quanto lhe agradeceria se me mostrasse a flora local.

— Com grande prazer, honorável senhora — disse a salamandra, inclinando-

se respeitosamente ao falar —, se não se importa com o fato de meu jardim estar

debaixo d’água.

— Debaixo d’água?

— Sim, alguns metros debaixo d’água.

— E que flores você cultiva?

— Anêmonas marinhas e múltiplas variedades de flores raras — respondeu a

salamandra. — Também estrelas-do-mar e pepinos-do-mar, sem contar a mata

de corais. “Bendito aquele que cultivou uma rosa, uma árvore frutífera para sua

pátria”, como disse o poeta.

Estávamos tristes ao ir embora, mas nosso barco dava sinais de que ia partir.

— Não quer nos encomendar alguma coisa, senhor, senhor...?

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Os inimigos da vivissecção também assinaram muitos ma-nifestos e petições para que fossem proibidas as experiências científicas com salamandras vivas, e em uma série de países se promulgou, efetivamente, uma lei nesse sentido.13

No entanto, com o avanço do nível cultural das sala-mandras, sentia-se uma crescente perplexidade diante da sua inclusão pura e simples entre as espécies atendidas pelas leis de proteção aos animais; por alguma razão (não inteiramen-te esclarecida) isso parecia bastante impróprio. Foi então que surgiu, sob o patrocínio da duquesa de Huddersfield, a Li-ga para a Proteção das Salamandras (Salamander Protecting League). Essa liga, que contava com mais de 200 mil sócios, principalmente na Inglaterra, fez um considerável e proveitoso trabalho a favor das salamandras; a instituição conseguiu que fossem construídas, ao longo das costas, quadras de esporte e recreação especiais para as salamandras, onde elas pudessem praticar, sem serem incomodadas por espectadores curiosos,

— Meu nome é Boleslav Jablonsky — disse apressadamente a salamandra.

— Parece-me um nome mui belo, senhor, escolhi-o no livro.

— O que o senhor quer dizer à nossa nação, senhor Jablonsky?

A salamandra ficou pensativa por alguns momentos.

— Diga aos seus compatriotas — disse profundamente emocionada — que

não se deixem levar pela velha discórdia eslava, que preservem agradecidos a

lembrança de Lipany e, sobretudo, da Bilá Hora! Saudações e meus respeitos

— terminou de repente, tentando ocultar seus sentimentos.

Caminhamos até o bote pensativos e emocionados. Nosso amigo, em cima das

rochas, nos saudava comovido; parecia dizer algo.

— O que ele está gritando? — perguntou minha senhora.

— Não sei — disse-lhe —, mas me pareceu ouvir alguma coisa como saudações

ao Dr. Baxa, prefeito de Praga.

13 As vivissecções foram proibidas, sobretudo na Alemanha; evidentemen-te, só aos cientistas judeus.

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suas “reuniões e festas esportivas” (o significado correto era, provavelmente, Dança Secreta da Lua). Além disso, os alunos de todas as escolas e centros de ensino (até mesmo os da Uni-versidade de Oxford) foram instados amavelmente a parar de apedrejar as salamandras; os jovens girinos matriculados nas escolas de salamandras não deveriam ser sobrecarregados; e mais: permitiu-se que os locais de trabalho e residência das salamandras fossem cercados por uma espécie de paliçada alta para protegê-las de possíveis molestadores e, principalmente, para separar seu mundo do mundo dos seres humanos.14

14 Ao que parece, tratava-se também de uma decisão em defesa da moral. Entre os papéis do Sr. Povondra foram encontrados Proclamas escritos em muitas línguas, publicados certamente em toda a imprensa mundial e assinados pela própria duquesa de Huddersfield, que diziam:

“A liga para a proteção das salamandras se dirige particularmente a vocês, mulhe-

res, para que, em nome da decência e dos bons costumes, contribuam com o tra-

balho de suas mãos para um grande movimento cujo objetivo é procurar roupas

adequadas para as salamandras. O mais apropriado é um saiote de 40 centímetros

de comprimento e 60 centímetros de largura, preferivelmente com elástico na

cintura. Aconselhamos saias plissadas, que caem melhor e permitem uma maior

liberdade de movimento. Para as regiões tropicais, basta uma espécie de avental

com cintas, para atá-los à cintura, feito de qualquer tipo de tecido; de qualquer

vestido usado, por exemplo. Assim estarão ajudando as pobres salamandras, que

não terão de se apresentar despidas em público, o que ofende seu pudor e causa

má impressão às pessoas decentes, principalmente mulheres e mães.”

Parece que a iniciativa não atingiu os resultados esperados. Não houve

uma única salamandra que aceitasse usar saiotes ou aventais; certamente, porque as incomodavam em seu trabalho subaquático e sustentavam-se com dificuldade. Quando mais tarde foram construídas valas para sepa-rá-las das pessoas, acabaram, de ambos os lados, os motivos de vergonha e as sensações desagradáveis.

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No entanto, essas louváveis tentativas privadas de solucio-nar de forma decorosa e humanitária o problema das relações entre a sociedade humana e as salamandras logo se mostraram insuficientes. Havia sido relativamente fácil incorporar as sala-mandras ao processo de produção, mas envolvê-las em alguma forma de ordem social era muito mais complicado. Os conser-vadores garantiam que não havia o que conversar sobre pro-

A respeito de nossa alusão ao fato de que era preciso proteger as salamandras de possíveis moléstias, referíamo-nos em particular aos ca-chorros, que nunca se acertaram com elas e as perseguiam furiosamente até debaixo d’água, sem se importar em ficar com os focinhos inflamados quando mordiam alguma salamandra fugitiva. Às vezes as salamandras se defendiam, e mais de um cão magnífico foi destroçado a golpes de pica-reta ou a machadadas. Podemos dizer que uma longa e mortal inimizade foi desenvolvida entre cães e salamandras, e nada pôde mitigá-la. Pelo contrário, a animosidade cresceu mais ainda após a construção das valas. Mas essas coisas acontecem frequentemente, e não apenas entre cães.

Diremos, entre parênteses, que aquelas valas de concreto — em al-guns casos elas se estendiam por quilômetros e quilômetros ao longo das costas — foram aproveitadas para fins didáticos. Ao longo delas fo-ram pintados cartazes com lemas apropriados às salamandras, como, por exemplo:

Vosso trabalho, vosso êxito. — Aproveitem cada segundo! — O dia

só tem 86.400 segundos! — A medida do valor de cada um é igual ao

trabalho que realiza. — Um metro de dique pode ser construído em

57 minutos! — Quem trabalha serve a todos. — Quem não trabalha

não come!

E assim por diante. Se levarmos em conta que essas cercas protetoras

foram edificadas às margens do mundo inteiro, totalizando mais de 300 mil quilômetros de praias, poderemos ter uma ideia da quantidade de slogans exortatórios e geralmente úteis que poderiam ser colocados ao longo delas.

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blemas legais ou públicos. As salamandras pertenciam aos seus empregadores, que respondiam por elas e, consequentemente, pelos prejuízos que pudessem ocasionar. Apesar de sua indubi-tável inteligência, as salamandras não passavam de um objeto legal, coisas ou bens, e qualquer lei especial a elas destinada se-ria uma intervenção nociva no sagrado direito da propriedade privada. Outros, por sua vez, afirmavam que as salamandras, como seres inteligentes e, até certo ponto, responsáveis, po-diam infringir por diversos meios as leis vigentes. Por que o dono das salamandras deveria pagar pelos delitos cometidos por elas? Um risco desses acabaria, sem dúvida alguma, com a iniciativa privada em tudo o que se referisse ao trabalho das salamandras. “Não havia barreiras no mar”, era o que se di-zia. Não era, portanto, possível trancafiar as salamandras para mantê-las sob controle. Era, então, necessário dominá-las por via legal, fazendo-as respeitar as leis humanas e se guiar pelos regulamentos promulgados especialmente para elas.15

15 Publicamos a seguir o primeiro Processo das Salamandras, que teve lugar em Durban e foi amplamente comentado na imprensa mundial (ver os recortes do Sr. Povondra):

As autoridades portuárias de A. empregavam uma colônia de salaman-dras. Estas se multiplicaram de tal forma ao longo do tempo que já não lhes bastava o lugar que habitavam, e por isso estabeleceram várias co-lônias de girinos nas costas vizinhas. O fazendeiro B., a quem pertencia parte daquele litoral, pediu às autoridades marítimas que retirassem as salamandras de sua praia privada, já que tinha ali sua piscina. As auto-ridades marítimas responderam que, quando as salamandras ocupavam alguma parte do litoral, esta passava a ser sua propriedade privada. En-quanto essas discussões se prolongavam adequadamente, as salamandras (em parte por sua condição natural e em parte pelo entusiasmo para o trabalho que lhe fora inculcado durante o treinamento) começaram,

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Até onde sabemos, as primeiras leis para salamandras fo-ram promulgadas na França. A primeira estabelecia as obri-gações das salamandras em caso de mobilização e guerra; a segunda, chamada de Lei Deval, recordava às salamandras que só podiam se estabelecer nos trechos do litoral indicado por seu proprietário ou pelas autoridades departamentais; a ter-ceira indicava que as salamandras deviam obedecer incondi-cionalmente a todas as disposições da polícia. Caso contrário, as autoridades policiais tinham o direito de castigá-las, tran-cafiando-as em lugares secos e ensolarados ou, finalmente, afastando-as do trabalho por algum tempo. Os partidos de esquerda, por sua vez, apresentaram proposta ao Parlamento no sentido de que fosse elaborada uma legislação social para as salamandras que ajustasse suas obrigações de trabalho e impu-sesse aos patrões certos compromissos em relação a elas (por exemplo, férias de 14 dias na primavera, durante a época de acasalamento). A extrema esquerda exigia que as salamandras

sem ordem ou permissão alguma, a construir diques e embarcadouros na praia do senhor B. Este apresentou, então, uma denúncia de danos à sua propriedade. Tal denúncia foi rechaçada em primeira instância, com base no fato de que a propriedade do senhor B. não fora danificada pelas obras, mas sim aperfeiçoada. A segunda instância deu razão ao recla-mante, alegando que ninguém tem obrigação de suportar em seu terreno animais criados pelo vizinho e, portanto, as autoridades marítimas de A. tinham de reparar os prejuízos causados por suas salamandras, assim como os camponeses pagavam pelos danos provocados por seus animais domésticos. A parte denunciada protestou, dizendo que não podia en-cerrar as salamandras em um pedaço de mar e que, portanto, não era res-ponsável pelo que fizessem. O juiz contestou, dizendo que era necessário responsabilizar alguém pelos danos causados pelas salamandras, assim como havia responsáveis pelos danos causados pelas galinhas, embora estas tampouco pudessem ser trancadas, já que tinham asas e voavam.

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fossem totalmente proibidas, pois eram inimigas da classe ope-rária e estavam a serviço do capitalismo: trabalhavam muito depressa e quase gratuitamente, ameaçando assim o nível de vida dos trabalhadores. Para apoiar essas demandas, foi decla-rada uma greve em Brest. Grandes manifestações aconteceram em Paris. Houve muitos feridos e o ministro Deval se viu obri-gado a apresentar pedido de demissão. Na Itália, as salaman-dras foram submetidas a um organismo especial, composto de patrões e autoridades; na Holanda, foram postas sob controle do Ministério de Obras Aquáticas. Em resumo: cada país re-

O advogado das autoridades marítimas perguntou que meios seus clien-tes teriam para transportar as salamandras ou convencê-las a abandonar a praia do senhor B. O juiz respondeu que isso não era da sua alçada. O advogado perguntou o que pareceria ao juiz se as autoridades marí-timas de A. mandassem matar todas aquelas desagradáveis salamandras. O juiz respondeu que, como gentleman britânico, essa lhe parecia uma solução pouco apropriada e, além do mais, uma violação do direito do Sr. B. à caça. A parte demandada seria obrigada a retirar as salamandras da propriedade do demandante e, além do mais, reparar os danos cau-sados pelos diques e embarcadouros, de maneira que o pedaço de litoral voltasse a ficar como era antes. O representante da parte demandada fez então a seguinte pergunta: “As salamandras podem ser usadas em obras de demolição?” O juiz respondeu que de maneira alguma, a não ser que se pedisse diretamente ao denunciante, já que a esposa deste sentia uma grande repugnância pelas salamandras e não queria banhar-se em um mar repleto delas. A parte demandada objetou que sem as salamandras jamais poderia destruir os diques instalados embaixo d’água. A isso con-testou o juiz que o Tribunal não podia nem queria decidir sobre detalhes técnicos. “Os tribunais existem para defender o direito de propriedade”, disse o juiz, “e não para decidir o que se pode ou não fazer.” Com isso ficou encerrado o assunto. Não se sabe como as autoridades marítimas de A. saíram do apuro, mas esse caso demonstrou, acima de tudo, que era necessário regulamentar a questão das salamandras com novos dis-positivos legais.

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solveu a questão das salamandras à sua maneira, mas as deter-minações governamentais que estabeleciam deveres públicos e restringiam a liberdade das salamandras foram, em todos os lugares, praticamente as mesmas.

Compreende-se que, com a promulgação das primeiras leis das salamandras, surgisse gente que, em nome da lógica e do direito, assegurasse que a sociedade, para impor obrigações às salamandras, tinha, também, que reconhecer alguns direitos seus. O Estado que promulgava leis para as salamandras as reconhecia ipso facto como seres responsáveis e livres, como sujeitos jurídicos e, afinal das contas, até como suas cidadãs. Por isso, tornava-se necessário regulamentar de alguma for-ma suas relações de cidadãs com o Estado sob cuja legislação viviam. Sem dúvida, seria possível considerar as salamandras imigrantes estrangeiras, mas, nesse caso, o Estado não poderia lhes impor nenhuma atividade determinada nem a obrigação de mobilização em tempos de guerra, como ocorria então em todos os países civilizados (à exceção da Inglaterra). “Segu-ramente, queremos que, em caso de guerra, as salamandras defendam nosso litoral, mas então não poderemos lhes negar certos direitos de cidadania, como, por exemplo, o direito ao voto, o de reunião, a representação em diferentes organismos etc.”,16 diziam os defensores dessa tese. Até se chegou a pro-

16 Alguns levaram a igualdade de direitos das salamandras tão ao pé da letra que pediram que as deixassem exercer qualquer tipo de cargo pú-blico na água ou na terra (J. Courtaud), ou que fossem formados com elas exércitos submarinos completamente armados, com seu próprio general de mares profundos (general Desfoueurs); outros pediam que fossem permitidos os casamentos mistos entre salamandras e seres huma-nos (advogado Louis Pierrot). Os cientistas naturais se opunham a tais

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por que se desse às salamandras uma espécie de autonomia submarina. Mas essas e outras considerações não passaram de projetos, não se chegando a nenhuma solução prática, prin-cipalmente porque as salamandras nunca reivindicaram seu direito à cidadania.

Da mesma forma, sem interesse direto ou intervenção das salamandras, tratou-se de outro problema, que girava em tor-

matrimônios dizendo que eles eram, por questões anatômicas, impossí-veis, mas maître Pierrot declarou que não se tratava de possibilidades da natureza, mas de um princípio legal, e que ele mesmo estava disposto a tomar por esposa uma salamandra fêmea, para demonstrar que a cita-da reforma do direito matrimonial não ficaria apenas no papel. (Maître Pierrot se transformou em um advogado muito solicitado em questões relativas a divórcio.)

(Talvez seja necessário relatar que na imprensa americana apareciam de vez em quando notícias de que garotas que estavam tomando ba-nho de mar haviam sido violentadas por salamandras. Em consequên-cia, aconteceram nos Estados Unidos muitos casos de linchamento de salamandras machos, que depois eram queimados em fogueiras. Os es-tudiosos protestavam inutilmente, assegurando que, por motivos anatô-micos, esse tipo de crime era fisicamente impossível de ser praticado por salamandras. Mas as jovens juravam que haviam sido assim molestadas e, com isso, a questão ficou clara para qualquer americano conservador. Mais tarde, a diversão popular da queima de salamandras foi restringida; só podia ser realizada aos sábados e mesmo assim sob a vigilância do Cor-po de Bombeiros. Surgiu, então, o Movimento contra o Linchamento de Salamandras, presidido pelo reverendo Robert J. Washington, ao qual aderiram cerca de 100 mil pessoas, quase todas negras. A imprensa ame-ricana começou a afirmar que tal movimento era político e derrotista e, por isso, os bairros habitados por negros foram atacados e muitos deles, que estavam rezando em suas igrejas por suas irmãs salamandras, tam-bém foram queimados. A indignação contra os negros chegou ao auge quando, durante o incêndio criminoso de uma igreja em Gordonville (Louisiana), o fogo se propagou por toda a cidade. Mas isso só indireta-mente diz respeito à história das salamandras.

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no da conveniência ou não de batizá-las. Desde o princípio, a Igreja Católica concluiu que era uma providência comple-tamente desnecessária porque, não sendo descendentes de Adão, as salamandras não haviam herdado o pecado original e, portanto, não precisavam se redimir por meio do batismo. A Santa Igreja não quis intervir de forma alguma na discussão a respeito da possibilidade de as salamandras terem uma alma imortal ou serem beneficiadas pela misericórdia e as graças que Deus concede a suas criaturas. Sua boa vontade em relação às salamandras se manifestava apenas quando lhes dedicava orações especiais, lidas em dias determinados, ao lado de pe-didos pelas almas do purgatório e a intercessão pelos pagãos.17 Muito mais complicada era a questão das igrejas protestan-tes. Reconheciam que as salamandras tinham inteligência e, portanto, eram capazes de compreender os ensinamentos de Cristo, mas hesitavam em torná-las membros da igreja e, con-sequentemente, irmãos em Cristo. Conformaram-se, então, em publicar uma versão (sintética) das Sagradas Escrituras pa-ra salamandras em papel impermeável, editando milhões de

Mencionaremos apenas algumas das vantagens e direitos civis que beneficiaram as salamandras: cada salamandra foi inscrita no Registro de Salamandras e em seu local de trabalho. Deviam ter permissão de residência, tinham de pagar impostos por cabeça, o que era feito por seu proprietário, reduzindo depois sua comida para se ressarcir (já que as salamandras não recebiam nenhum dinheiro); também tinham de pa-gar aluguel pela praia onde moravam, impostos municipais e escolares, taxa para a construção da vala e outros encargos públicos. Em resumo: honestamente, devemos reconhecer que, nesse aspecto, as salamandras foram tratadas tal como os demais cidadãos, e por isso desfrutavam certa igualdade de direitos.

17 Veja-se a encíclica do Santo Padre Mirabilia Dei opera.

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exemplares. Pensou-se também em fazer para as salamandras, ao estilo do Basic English, uma espécie de Basic Christian, com os ensinamentos básicos bem simplificados; no entanto, esses projetos levantaram tal número de protestos entre os teólogos que, finalmente, se desistiu de tudo.18 Algumas seitas religio-sas (sobretudo americanas) não tiveram escrúpulos e envia-ram missionários para pregar às salamandras a Verdadeira Fé, batizando-as de acordo com as palavras das Escrituras: “Ide por todo o mundo, ensinai a todas as nações.” Mas poucos missionários cruzaram a vala que separava as salamandras das pessoas. Os proprietários impediam seu acesso, para que com seus sermões não distraíssem inutilmente as salamandras de seus trabalhos. Aqui e ali se viam pregadores encarapitados nas valas de concreto, no meio de cães que ladravam furiosamente para seus inimigos do outro lado da cerca. No entanto, apesar de todos os inconvenientes, predicaram com grande fervor a Palavra de Deus.

Como se sabe, o que mais prosperou entre as salaman-dras foi o monismo: algumas acreditavam também no mate-rialismo, no padrão-ouro e em outras crenças científicas. Um filósofo popular chamado Georg Sequenz elaborou até uma doutrina especial para as salamandras. Seu principal e mais elevado mandamento era a fé na Grande Salamandra. É verda-de que essa fé não encontrou muitos adeptos entre as salaman-dras; no entanto, conquistou inúmeros partidários entre as pessoas, sobretudo nas grandes cidades, onde surgiu, da noite

18 Sobre esse tema foi publicada tanta literatura que só a bibliografia ocu-paria três grandes tomos.

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para o dia, uma grande quantidade de templos para o culto das salamandras.19 Nos últimos tempos, quase a totalidade das salamandras havia aceitado outra religião que não se sabe co-mo chegou a ela. Era o culto a Moloch, a quem imaginavam como uma imensa salamandra com cabeça humana. Tinham, dizem, gigantescos ídolos submarinos de ferro fundido fabri-

19 Veja-se um folheto extremamente pornográfico encontrado entre os papéis do Sr. Povondra, que, pelo que se diz, foi copiado de um boletim policial em B***. A íntegra desse “relatório privado editado com fins educativos” não cabe em um livro decente. Publicamos apenas alguns detalhes:

O templo para o culto das salamandras, situado na rua xxx, número xxx, tem no centro uma grande piscina de mármore vermelho-escuro. A água da piscina, perfumada e morna, está iluminada por luzes que mudam continuamente de cor. Fora isso, reina no templo a mais total escuridão. Sob os cânticos da Litania das Salamandras, entram na piscina, ilumi-nada com as cores do arco-íris, os crentes salamandras, completamente despidos; de um lado os homens e do outro, as mulheres, todos pessoas da melhor sociedade. Nomearemos apenas a baronesa M., a atriz de ci-nema S. e o embaixador D., entre outras destacadas personalidades. De repente um refletor azul ilumina uma enorme pedra que sobressai da água, na qual descansa, respirando com dificuldade, uma enorme sala-mandra negra chamada Mistr Salamandra. Depois de alguns momentos de silêncio, Mistr começa a falar, convidando os fiéis a entregar-se com toda a alma à cerimônia da Dança das Salamandras e a venerar a Grande Salamandra. Ao dizer isso, levanta-se e começa a mexer circularmente a parte superior de seu corpo. Então os crentes homens, enfiados na água até o pescoço, começam a mexer, cada vez com mais velocidade, a parte superior de seu corpo, para criar, segundo dizem, o Ambiente Sexual. Enquanto isso as salamandras fêmeas os chamam fazendo ts, ts, ts com gritos roucos. Depois as luzes da piscina se apagam uma a uma e começa uma orgia geral.

Não podemos garantir que tudo isso seja a mais pura verdade; o que sabemos de concreto é que, em todas as grandes cidades da Europa, a polícia perseguia severamente, por um lado, essas seitas de salamandras, enquanto por outro tinha um imenso trabalho para ocultar os grandes escândalos da alta sociedade relacionados com as ditas seitas. No entanto, acreditamos que o culto à Grande Salamandra se difundiu extraordinaria-mente, mas, em geral, não se celebrava com tanta ostentação como des-creve o folheto. E, em camadas sociais menos favorecidas, era praticado até mesmo em lugares secos.

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cados pelas indústrias Armstrong ou Krupp, mas nunca se soube de mais detalhes de suas cerimônias e rituais — dizia-se que eram cruéis e secretos — porque eram celebrados embaixo d’água. Parece que essa fé se difundiu muito entre elas porque a palavra Moloch recordava seu nome científico (Molche) ou o alemão Molch, que significa salamandra.

R

Como se vê claramente, no princípio e durante muito tem-po, a Questão das Salamandras se referiu somente ao seguinte aspecto: as salamandras eram seres racionais e bastante civili-zados, capazes de desfrutar certos direitos, mesmo que apenas à margem da sociedade e da ordem humanas? Em outras pa-lavras, era uma questão interna dos diferentes países, inserida no marco dos direitos civis. Durante muitos anos, ninguém imaginou que a Questão das Salamandras pudesse algum dia ter uma grande importância internacional, e que talvez fosse preciso negociar com elas não só como seres inteligentes, mas também como uma coletividade ou nação. Para dizer a verda-de, o primeiro passo em direção a essa concepção da Questão das Salamandras foi dado pelas seitas cristãs, até certo ponto excêntricas, que tentaram batizá-las aplicando aquelas palavras da Escritura: “Ide por todo o mundo, ensinai a todas as na-ções.” Dessa forma foi manifestado pela primeira vez em pala-vras o conceito de que as salamandras eram algo parecido com uma nação.20 Mas o primeiro reconhecimento internacional

20 O documento católico a que nos referimos anteriormente também defi-nia as salamandras como Dei creatura de gente Molche (a nação das sala-mandras, criaturas de Deus).

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e fundamental das salamandras como nação foi o contido no famoso manifesto da Internacional Comunista, assinado pelo camarada Molokov e dirigido a “todas as salamandras revolu-cionárias oprimidas do mundo”.21 E embora, ao que parece, esse manifesto não tenha afetado nem um pouco as salaman-dras, teve grande repercussão na imprensa mundial e, em con-sequência, choveram sobre as salamandras, por dizer assim,

21 O manifesto, preservado entre os papéis do Sr. Povondra, dizia assim:

Camaradas salamandras!O sistema capitalista encontrou suas últimas vítimas. Quando sua

tirania já começava a desmoronar definitivamente diante da força

revolucionária do proletariado com consciência de classe, o capita-

lismo podre encarcerou vocês, operárias do mar, para seu serviço,

escravizou-as moralmente com sua civilização burguesa, subme-

teu-as com suas leis de classe, privou-as de toda noção de liberdade

e fez o necessário para poder explorá-las brutal e impunemente.

(14 linhas censuradas)

Trabalhadoras salamandras! Aproxima-se o momento em que vo-

cês se darão conta de todo o peso da escravidão em que vivem.

(7 linhas censuradas)

e o de exigir seus direitos como classe e como nação. Camaradas

salamandras! O proletariado revolucionário do mundo inteiro es-

tende-lhes a mão.

(11 linhas censuradas)

por todos os meios. Fundam conselhos de fábrica, elejam seus dele-

gados, estabeleçam um fundo para as greves! Levem em conta que

a classe operária consciente não as abandonará em sua justa luta e,

de mãos dadas com vocês, empreenderá a luta final.

(9 linhas censuradas)

Salamandras oprimidas e revolucionárias de todo o mundo, uni-

vos! Começa a luta decisiva!

Assinado: MOLOKOV

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convites dos mais diferentes partidos para que aderissem em conjunto a este ou aquele programa social ou político da so-ciedade humana.22

22 Na coleção do Sr. Povondra, encontramos alguns desses manifestos; os outros foram certamente queimados pela Sra. Povondra. Do material conservado, publicaremos, pelo menos, alguns títulos:

Salamandras! Abandonem as armas! (Manifesto pacifista)

Molche, wirft Judeu heraus! (Salamandras, expulsem os judeus! Panfleto alemão)

Camaradas! Salamandras! (Convocação de um grupo de anarquistas bakuninistas)

Camaradas salamandras! (Convite público dos scouts aquáticos)

Cidadãs salamandras! (Convocação da fração da Reforma Cidadã de Dieppe)

Amigas salamandras! (Convocação pública da Federação Central de Aquariófilos e Criadores de Animais Aquáticos)

Salamandras, amigas! (Convocação da Sociedade pelo Renascimento Moral)

Colegas salamandras: adiram às nossas fileiras! (Associação Beneficente dos Antigos Marinheiros)

Especialmente interessante, a julgar pela atenção cuidadosa que me-

receu do Sr. Povondra, devia ser a convocação que reproduzimos em seu tamanho original:

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Naquele momento, a Organização Mundial do Trabalho, sediada em Genebra, começou a tratar da Questão das Sala-mandras. Enfrentavam-se ali duas correntes de opinião: uma reconhecia as salamandras como uma nova classe trabalhadora e lutava para que se estendessem a elas todos os tipos de leis sociais relativas a jornada de trabalho, férias pagas, seguro de invalidez, de velhice etc.; a segunda defendia que as salaman-dras representavam o surgimento de uma concorrência peri-gosa para as forças trabalhadoras humanas e que seu trabalho devia ser proibido por ser antissocial. Contra essa opinião se pronunciavam não apenas os representantes patronais, como também os delegados da classe operária, afirmando que as sala-mandras não eram apenas uma força de trabalho, mas também grandes clientes, cada vez mais importantes. Como demons-traram com números, nos últimos tempos havia aumentado a um nível nunca alcançado o número de vagas para operários nas indústrias de ferramentas de metal (utensílios de trabalho, máquinas e ídolos para salamandras), armamento e produtos químicos (explosivos submarinos), produção de papel (livros didáticos para salamandras), cimento, madeira, produtos ali-mentícios artificiais (salamander-food) e em muitos outros seg-mentos industriais. A tonelagem total dos navios aumentara em 27 por cento em comparação com a época pré-salamândri-ca e a produção de carvão, em 18,6 por cento. Com o aumen-to do número de operários empregados e do bem-estar das pessoas, elevou-se também indiretamente a produção de ou-tros segmentos industriais. Mais recentemente, as salamandras passaram a encomendar até acessórios para máquinas de sua própria fabricação. Pagavam por tais insumos, aumentando sua produtividade e o lucro que ela propiciava. Já então uma

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quinta parte de toda produção mundial da indústria pesada e mecânica ligeira dependia das encomendas das salamandras. Acabem com as salamandras e terão de fechar imediatamente as portas de quinta parte das fábricas. No lugar da prosperida-de de hoje, terão milhões de desempregados. A Organização Internacional do Trabalho não podia, naturalmente, descon-siderar essas objeções. Depois de muita negociação se conse-guiu, finalmente, chegar pelo menos à seguinte solução: os trabalhadores do grupo S (anfíbios) só poderiam ser usados em trabalhos subaquáticos ou aquáticos e a 10 metros da mar-ca da maré mais alta para executar tarefas nos litorais. Não deveriam extrair carvão ou petróleo do fundo do mar; não deveriam fabricar para clientes de terra firme papel, têxteis ou pele artificial de algas marinhas etc. Essas limitações impostas à produção das salamandras estavam contidas em um código de 19 parágrafos que era uma prova da magnanimidade da so-lução internacional dada à Questão das Salamandras do ponto de vista econômico e social. O código, obra importante e me-ritória, foi publicado, mas não reproduziremos seus detalhes, sobretudo porque, naturalmente, ninguém o levou em conta.

Mais lentamente foi tratada a questão do reconhecimento da presença das salamandras na esfera das relações culturais. Quando apareceu na imprensa especializada de maior circu-lação um artigo intitulado “Composição geológica do fundo do mar nas ilhas das Bahamas”, assinado por John Seamen, ninguém sabia, naturalmente, que se tratava do trabalho cien-tífico de uma salamandra. Mas quando diretores de várias aca-demias e instituições de ensino começaram a receber notícias e estudos de pesquisadores salamandras sobre oceanografia, hi-drobiologia, matemática pura e outras ciências exatas, come-

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çou a reinar uma grande confusão. Mais uma intranquilidade que foi manifestada pelo grande Dr. Martel com as seguintes palavras: “Esses bichos têm a pretensão de querer nos ensinar alguma coisa?” O cientista japonês Dr. Onoshito, que se atre-veu a citar a opinião de uma salamandra (era algo sobre o de-senvolvimento da vesícula biliar dos girinos no fundo do mar, Argyropelecus hemigymnus Cocco), foi boicotado cientificamen-te e fez um haraquiri. Para a ciência universitária, era questão de honra e de princípio não levar em consideração nenhum trabalho científico de salamandras. Maior foi a atenção (para não dizer escândalo) despertada por um gesto da Universidade Central de Nice23 quando convidou o Dr. Charles Mercier,

23 A coleção do Sr. Povondra conservava uma informação superficial e algo folhetinesca a respeito desse ato. Lamentavelmente só foi preservada a metade; a segunda parte deve ter sido perdida.

Nice, 6 de maio.

O belo e claro edifício do Instituto de Estudos Mediterrâneos da Prome-nade des Anglais está hoje cheio de vida. Dois agentes da polícia garantem na calçada a livre passagem das personalidades convidadas, que avançam pelos tapetes vermelhos para entrar no anfiteatro agradavelmente refrigerado. Nota-mos, entre outros, o prefeito local com seu chapéu alto, o general com seu uni-forme azul-celeste, senhores com o botão vermelho da Legião de Honra, damas de certa idade (este ano a cor da moda é terracota), vice-almirantes, jornalistas, professores e distintos anciãos de todas as nações, daqueles que a Côte d’Azur sempre está cheia. De repente acontece um pequeno incidente. Entre todas es-sas personalidades avança, um pouco assustado e tentando passar inadvertido, um ser estranho. Está coberto da cabeça aos pés por uma espécie de túnica ou dominó negro e tem, diante dos olhos, óculos imensos. Avança apressadamente e pouco seguro pelo vestíbulo repleto de público. “Hé, vous!”, grita um dos guardas. “Qu’est-ce que vous cherchez ici?” Mas já se aproximam do assus-tado ser as personalidades universitárias e cher docteur aqui, cher docteur lá.

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grande estudioso de salamandras do porto de Toulon, para fa-zer uma conferência (que ele de fato deu com considerável sucesso) sobre a teoria da seção cônica na geometria não eucli-diana. A esse ato também estava presente, como delegada da organização de Genebra, a Sra. Maria Dimineanu; essa mag-nífica e generosa dama estava tão emocionada com a modéstia e o saber do Dr. Mercier (“Pauvre petit, il est tellement laid!”,

Este, pois, é o doutor Charles Mercier, sábia salamandra, que profere hoje uma conferência diante da flor e nata da Côte d’Azur. Entremos rapidamente para tentar conseguir um lugar neste auditório solene e emocionado!

Monsieur le Maire, Monsieur Paul Mallory (o grande poeta), Madame Maria Dimineanu, delegada do Centro Internacional para a Colaboração In-telectual, o diretor do Instituto de Estudos Mediterrâneos e outras personalida-des governamentais tomam seus assentos no pódio. Ao lado dele, há um púlpito para o conferencista e atrás dele... Sim, é, de fato, uma banheira de zinco, uma banheira normal e corriqueira! Dois funcionários acompanham ao tablado o ser tímido, escondido entre os panos abundantes das capas. Ressoam alguns aplausos indecisos. O Dr. Charles Mercier se inclina envergonhado e olha inseguro ao seu redor, procurando um lugar para se sentar. “Voilà, Monsieur”, murmura um dos funcionários apontando a banheira, “é para o senhor.” O Dr. Mercier está emocionado, não sabe como agradecer tanta atenção: trata de ocupar, o mais despercebidamente possível, um lugar na banheira, mas enreda a longa túnica em alguma coisa e cai chapinhado na água. Molha bastante os senhores que estão sentados na tribuna, embora estes se comportem como se não tivesse acontecido nada; no auditório alguém ri histericamente, mas os senhores das primeiras filas se viram indignados ordenando silêncio. Psiu... Nesse momento, já se levanta Monsieur le Maire e Deputado e faz uso da palavra: “Senhoras e senhores, tenho a honra de dar as boas-vindas às terras de nossa formosa cidade, Nice, ao Dr. Charles Mercier, destacado representante da vida científica de nossos vizinhos mais próximos, os habitantes das profundezas dos mares.” (O Dr. Mercier ergue meio corpo d’água e se inclina profundamente.) “É a primeira vez na história da civilização que o mar e a terra se dão as mãos em torno da colaboração inte-lectual. Até agora, a vida espiritual tinha uma fronteira intransponível: os ocea-nos do mundo. Podíamos cruzá-los, podíamos ir de navio em todas as direções, mas sob sua superfície, senhoras e senhores, não podia penetrar a civilização.

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exclamou) que tomou para si a tarefa de levar as salamandras a serem admitidas na Sociedade das Nações. Os estadistas explicavam inutilmente à enérgica e obstinada senhora que as salamandras não têm, em nenhum lugar do mundo, sua

Este pequeno pedaço de continente, no qual vivem e crescem seres humanos, estava até agora cercado pelo mar virgem e selvagem. Era um magnífico marco, mas também um limite para toda a vida; de um lado, a civilização crescente, de outro, a eterna e invariável natureza. Este limite, meus queridos ouvintes, não existe mais.” (Aplausos.) “Nós, filhos desta grande época, tivemos a sorte incomparável de sermos testemunhas de como nossa pátria cruza suas próprias costas, avança sobre as ondas do mar, conquista as profundezas das águas e une a velha e culta terra ao moderno e civilizado oceano.” (Bravo.) “Senhoras e cavalheiros, somente com o nascimento da cultura oceânica, a cujo iminente re-presentante temos hoje a honra de dar as boas-vindas ao nosso ambiente, nosso planeta se converteu em um planeta real e completamente civilizado.” (Aplau-sos entusiasmados.) O Dr. Mercier se ergue na banheira e se inclina. “Querido doutor e grande sábio”, disse depois Monsieur le Maire e Deputado virando-se para o Dr. Mercier, que se apoiava na beirada da banheira, emocionado e respirando penosamente por suas guelras, “o senhor pode transmitir a seus con-cidadãos e amigos do fundo do mar nossa felicitação, nossa admiração e nossa mais calorosa simpatia. Diga-lhes que nos senhores, nossos vizinhos marinhos, saudamos a vanguarda do progresso que, passo a passo, colonizará interminá-veis dimensões do mar e organizará nos oceanos um novo mundo cultural. Já vejo nascer das profundezas do mar uma nova Atenas e uma nova Roma, vejo florescer uma nova Paris, com um Louvre e uma Sorbonne submarinos, com um Arco do Triunfo submarino e um túmulo ao soldado desconhecido, com seus teatros e bulevares. E, permita-me que expresse meus mais secretos pensamentos: espero que diante de nossa querida Nice nascerá das ondas azuis uma nova e gloriosa Nice, vossa Nice, aquela que com suas admiráveis ruas submarinas, jardins e parques marginará nossa Côte D’Azur. Queremos conhecer os senhores e que os senhores nos conheçam. Estou pessoalmente convencido de que relações científicas e sociais mais amplas, as que hoje iniciamos sob tão bons auspícios, levarão nossas nações a uma continua e estreita colaboração cultural e política, em prol de toda a humanidade, da paz mundial, da felicidade e do progresso.” (Longos aplausos.)

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própria soberania estatal, nem sequer sua própria terra, e que, portanto, não podiam ser membros das Sociedade da Nações. Madame Dimineanu começou, então, a propagar a ideia de que as salamandras deviam ter, em algum lugar, um país livre e seu Estado submarino. Essa ideia, no entanto, não foi muito bem recebida, para não dizer diretamente rechaçada. Por fim, conseguiu-se chegar a um acordo feliz, ou seja, que na Socie-dade das Nações seria criada uma comissão para o estudo da Questão das Salamandras, para a qual se convidariam também dois delegados salamandras. Como um deles foi nomeado, de-vido à insistente pressão da Sra. Dimineanu, o Dr. Charles Mercier, de Toulon, e o outro um tal de Don Mário, gordo e sábio professor de Cuba, trabalhador científico no ramo de es-tudos pelágicos. Com isso as salamandras conseguiram o mais alto reconhecimento internacional de sua existência.24

Agora se levanta o Dr. Charles Mercier e tenta agradecer com algumas palavras ao senhor prefeito e deputado de Nice. Mas, por um lado, está ex-tremamente emocionado, e, por outro, sua pronúncia é um pouco estranha. De suas palavras, pude entender apenas algumas expressões pronunciadas com mais clareza. Se não me engano, eram: “relações culturais” e “Victor Hugo”. E estava tão nervoso que voltou a se esconder na banheira.

Paul Mallory toma a palavra. O que pronuncia não pode ser chamado de um discurso, e sim de hino poético iluminado pela filosofia profunda. “Agra-deço ao destino”, disse, “porque me fez viver para ver cumprida e confirmada uma das mais belas lendas da humanidade. É uma confirmação e um estranho complemento: no lugar da mítica Atlântida submersa, vemos, cheios de admi-ração, uma nova Atlântida que surge das profundezas do mar. Querido colega Mercier, você que é um poeta da ciência geométrica de seus sábios amigos, você é o primeiro embaixador desse novo mundo que avança desde o mar. Não uma Afrodite espumosa, mas sim Palas Anadyomene; no entanto, muito mais extra-ordinário e incomparavelmente mais misterioso é que, além disso...”

24 Nos papéis do Sr. Povondra havia uma fotografia não muito clara, pu-blicada nos jornais, na qual os dois delegados salamandras sobem pelas

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Vemos, pois, as salamandras em avanço seguro e contínuo. Seu número já é calculado em 7 bilhões, embora o progresso da civilização leve à redução da força procriadora (cada fêmea têm, anualmente, de vinte a trinta girinos). Já ocuparam mais de 70 por cento de todas as costas do mundo; ainda estão de-sabitadas as costas dos polos, mas as salamandras canadenses começam a colonizar os litorais da Groenlândia, onde levam os esquimós a retroceder ao interior do país e tomam em suas mãos os negócios da pesca e do óleo de peixe. Seu progresso ci-vil acompanha o ritmo de sua expansão material. Incorporam-se às fileiras das nações cultas com a frequência obrigatória de todos os seus membros à escola, e podem vangloriar-se de ter centenas de jornais submarinos próprios, publicados aos mi-lhões de exemplares, centros científicos modelo etc. Compre-

escadas do lago de Genebra ao Quai du Mont Blanc, para se dirigir à reunião da Comissão. Parece que estavam hospedados oficialmente no próprio Lac Léman.

No que se refere à Comissão de Genebra para o Estudo da Ques-tão das Salamandras, pode-se dizer que realizou um trabalho meritório, sobretudo porque evitou cuidadosamente todas as questões políticas e econômicas delicadas. Esteve em sessão permanente por muitos anos e celebrou mais de 1.300 reuniões, nas quais tratou aplicadamente de uma nomenclatura internacional única para as salamandras. Nesse sen-tido, reinava um caos sem esperanças. Ao lado do termo salamandra, Molche, Batrachus e assemelhados (esses termos começavam a parecer pouco respeitosos), foi proposta uma série de nomes: tritões, neptuni-dos, tethydos, nereidas, atlântidas, lêmures, pélagos, litorâneos, pontiks, bathys, abissais, hidriontes, povos dos mares (gens de mer), sumarinis e assim por diante. A Comissão para o Estudo da Questão das Salamandras tinha de escolher, entre todas essas propostas, o nome mais apropriado e se dedicou ao tema, com ardor e critério, até o próprio fim da Era das Salamandras. Mas nunca se chegou a um acordo final e unânime.

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ende-se que esse avanço cultural não foi realizado facilmente e sem resistência interna.

É verdade, sabemos muito pouco a respeito dos proble-mas internos das salamandras, mas segundo alguns sinais (por exemplo, o fato de terem sido encontrados cadáveres de sa-lamandras com o nariz e a cabeça mordiscados), parece que durante um longo tempo reinou sob a superfície das águas uma lenta e apaixonada luta de ideias entre as Velhas Sala-mandras e as Jovens Salamandras. As jovens eram partidárias do progresso sem obstáculos nem restrições, e declaravam que também embaixo d’água se devia alcançar um grau de instru-ção semelhante ao existente nos continentes. Tudo e em todos os aspectos! Sem exceção do futebol, do flerte, do fascismo e da inversão sexual! Diante disso, as Velhas Salamandras se afer-ravam, conservadoras, à natureza salamandrina, e não queriam abandonar os velhos e bons costumes animais e instintivos. Sem dúvida, condenavam o afã por novidades e viam nele um fenômeno de decadência e traição aos ideais salamandrinos hereditários. Certamente também se opunham às influências estranhas às quais sucumbia cegamente a juventude, e se per-guntavam se a imitação dos seres humanos era uma coisa digna das orgulhosas salamandras, sempre seguras de si mesmas.25

Podemos imaginar que, por essa razão, surgiram lemas co-mo “De volta ao Mioceno!”, “Fora todos os que tentam nos humanizar!”, “À luta pela integridade salamandrina!”, e assim

25 O Sr. Povondra também guardou em sua coleção dois ou três artigos de política nacional que se referiam à juventude de hoje. Provavelmente se devia a um descuido o fato de tê-los incluídos entre os da época da civilização das salamandras.

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por diante. Sem dúvida, existiam todas as condições necessá-rias para um vivo conflito de opiniões entre as diferentes gera-ções e para uma profunda revolução espiritual na evolução das salamandras. Lamentamos não poder dar informações mais detalhadas a respeito; só podemos esperar que as salamandras tenham feito o que foi possível em relação a esse conflito.

Agora seguimos as salamandras pelo caminho de seu flores-cimento máximo. Mas o mundo dos homens também desfruta uma prosperidade ímpar. Foram construídos febrilmente novos litorais nos continentes, nos velhos bancos de areia cresce terra firme, no meio do oceano se elevam ilhas artificiais destinadas à aviação. Mas tudo isso não é nada se comparado ao gigantesco projeto técnico de completa reconstrução de nosso planeta, que espera solenemente que alguém o financie para ser executado. As salamandras trabalham durante a noite sem descanso em todos os mares e no litoral de todos os continentes. Parecem estar felizes e nada pedem além de trabalho e algum lugar onde possam fazer seus túneis e suas habitações escuras. Têm cidades submarinas e subterrâneas, suas metrópoles das profundezas, suas Essex e Birminghams, a profundidades entre 25 e 50 me-tros. Contam com bairros industriais muito povoados, portos, linhas de transporte e milhões de aglomerações. Em resumo: têm seu mundo, não muito conhecido, mas, aparentemente, muito adiantado do ponto de vista técnico.26

26 Um senhor de Dejvice contou ao Sr. Povondra que um dia estava to-mando banho na praia de Katwijk am Zee. Quando se afastou no mar, foi chamado por um barqueiro que lhe dizia aos gritos para voltar. O tal senhor (Přihoda, representante comercial) não lhe deu importância e continuou nadando. Então, o barqueiro pulou no barco e remou até ele.

— Ei, senhor — disse-lhe —, não é permitido tomar banho aqui.

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Não dispõem, naturalmente, de fundições ou altos-fornos, mas os homens lhes fornecem metais em troca de seu trabalho. Não fabricam explosivos, mas os seres humanos também lhes vendem. Obtêm energia do movimento do mar, das marés al-tas e baixas, das correntes profundas e das diferenças de tem-peratura. É verdade: as turbinas são fornecidas pelos homens, mas as salamandras sabem manejá-las. E não é civilização o sa-ber usar coisas inventadas por outros? Embora as salamandras não tenham ideias próprias, podem muito bem ter sua ciên-cia. É verdade que não têm música ou literatura, mas podem prescindir delas de modo magnífico, e as pessoas começam a perceber que o que as salamandras fazem é formidavelmen-te moderno. Ora, com os diabos, a gente tem muita coisa a aprender com as salamandras! E não é estranho. Elas não têm tido um grande êxito? E que outra coisa devemos tomar como exemplo se não os êxitos? Nunca havia se produzido tanto na história da humanidade, nunca se havia construído e ganhado como nessa grande época. Não é necessário refletir. Com as salamandras, chegou ao mundo um gigantesco progresso e um ideal que se chama Quantidade. “Nós, pessoas da Era das Sala-mandras...”, todo mundo diz com verdadeiro orgulho. Como ela pode ser comparada à antiquada época humana, com sua lenta, fútil e inútil pompa que era chamada de cultura, arte, ciências exatas ou quem sabe Deus como? A gente consciente

— E por que não? — perguntou o Sr. Přihoda. — Porque há salamandras. — Eu não tenho medo delas — objetou o Sr. Přihoda. — É que elas têm debaixo d’água uma fábrica ou coisa assim — grunhiu

o barqueiro. — Aqui nunca ninguém toma banho. As salamandras não gostam.

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e de acordo com a época das salamandras não perderá mais seu tempo procurando a profundidade e o fundamento das coisas. Terá o bastante apenas calculando a produção global. O porvir do mundo consiste, apenas, no aumento contínuo da produ-ção e do consumo. Portanto, há de haver ainda muito mais sa-lamandras que possam produzir e consumir mais. As salaman-dras são, simplesmente, multidão: sua grande importância é sua imensa quantidade. Só agora a imaginação humana pode trabalhar plenamente, já que trabalha com números imensos, com uma capacidade máxima e um rendimento recorde. Em resumo: vivemos uma grande época. O que falta, então, para que a satisfação geral e a prosperidade transformem em reali-dade uma época nova e feliz? O que impede que nasça a so-nhada utopia, na qual se colheriam todos os triunfos técnicos e as magníficas possibilidades que se abrem mais e mais longe, até o infinito, para a felicidade humana e as atividades das salamandras? Realmente nada, porque agora o comércio com as salamandras será coroado pela compreensão dos estadistas que, antes de tudo, se preocuparão para que o eixo da nova época não chegue a ranger.

Em Londres, reúne-se a conferência dos países marítimos, na qual se prepara e se aprova a Convenção Internacional das Salamandras. Os importantes participantes dessa convenção se comprometem a não mandar suas salamandras a águas ter-ritoriais de outros países; afirmam que não permitirão que suas salamandras interrompam, de nenhuma maneira, a in-tegridade ou a esfera de influência reconhecida de qualquer outro Estado. Não interferirão jamais nos interesses de outras potências marítimas. No caso de conflitos entres salamandras de dois ou mais países, eles serão dirimidos pelo Tribunal de Conciliação de Haia. Nenhum país equipará as salamandras

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com nenhum tipo de armamento cujo calibre supere o das pistolas submarinas contra tubarões (as chamadas shark-guns, ou mata-tubarões). Não será permitido que as salamandras en-tabulem nenhum tipo de relações íntimas com salamandras pertencentes a outros países. As salamandras não serão ajuda-das a construir novos continentes ou ampliar seus territórios sem a aprovação prévia da Comissão Marítima Permanente de Genebra etc. (Havia 37 parágrafos.)

Por outro lado, foi rechaçada a proposta britânica no sen-tido de que as nações marítimas não sujeitassem suas sala-mandras ao treinamento militar. A França propôs que as sala-mandras fossem internacionalizadas e ficassem sob a tutela de um Centro Internacional das Salamandras para o Acerto das Águas Internacionais. A Alemanha propôs que as salamandras fossem marcadas a ferro com um sinal do país a que pertences-sem e que a cada país marítimo fosse permitido só um deter-minado número de salamandras, estabelecido relativamente. A Itália propôs que aos países com um número excessivo de sa-lamandras fossem concedidas novas costas ou partes do fundo do mar para a colonização. O Japão se ofereceu para exercer, na qualidade de representante de todos os países coloridos, um mandato sobre as salamandras (naturalmente escuras).27 A maioria dessas propostas foi arquivada. Deveriam ser submeti-das a discussões na próxima conferência das potências maríti-mas, que, por diversos motivos, nunca chegou a ser realizada.

27 Ao que parece, essa proposta foi lançada com uma ampla propagan-da política. Um de seus documentos, de grande importância, chegou a nossas mãos graças à atividade de colecionador do Sr. Povondra. O documento afirma ao pé da letra:

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“Com esse ato internacional”, escreveu M. Jules Sauerstoff em Les Temps, “está garantido o porvir das salamandras e, por algumas dezenas de anos, a evolução pacífica da humanidade. Felicitamos a conferência de Londres pelo término feliz de suas difíceis deliberações. Felicitamos também as salamandras por-que, através desses estatutos, ficam sob a proteção do Tribunal de Haia. Agora podem, com confiança e tranquilidade, dedi-car-se ao seu trabalho e ao seu progresso submarino. Deve-se sublinhar que a despolitização da Questão das Salamandras,

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obtida na Convenção de Londres, é uma das mais importantes garantias da paz mundial. O desarmamento das salamandras é de suma importância para a redução da possibilidade de um conflito submarino entre os diferentes países. O fato é que, embora ainda haja numerosas disputas sobre fronteiras entre diferentes potências de quase todos os continentes, a paz mun-dial não corre nenhum risco na atualidade. Pelo menos no que se refere aos mares. Mas também em terra firme parece estar agora mais assegurada do que nunca. Os países maríti-mos estão muito ocupados com a construção de novas costas e podem ampliar seus territórios até as águas internacionais em vez de tentar avançar suas fronteiras de terra firme. Não é mais necessário lutar com armas e gases por cada palmo de terreno. Bastam, simplesmente, as pás e as picaretas das salamandras para que cada país construa o território de que necessitar. E esse tranquilo trabalho das salamandras pela paz e felicidade de todas as nações é garantido, precisamente, pela Convenção de Londres. Nunca o mundo esteve tão perto de uma paz du-radoura e de um florescimento tranquilo, mas glorioso, como está precisamente agora. Em vez da Questão das Salamandras, sobre a qual tanto já se falou e escreveu, talvez se fale agora, com toda a razão, da Idade de Ouro das Salamandras.”

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III

o SR. PovoNDRA voLtA A LER JoRNAL

Nada revela tanto a passagem do tempo como as crianças. On-de está aquele pequeno Frantík, que deixamos (não faz muito tempo, é verdade!) debruçado sobre os afluentes do lado es-querdo do Danúbio?

— Onde está Frantík? — grunhe o Sr. Povondra, abrindo o jornal da tarde.

— Você sabe... No lugar de sempre — responde a Sra. Povondra, inclinada sobre seu trabalho.

— Quer dizer que foi ver de novo a namorada! — diz, ameaçador, o Sr. Povondra. — Aos diabos com esse rapaz! Só tem 30 anos e não passa uma tarde em casa.

— E você precisa ver como ele fura meias! — suspira a Sra. Povondra, enfiando de novo o ovo de madeira na meia arrebentada. O que vou fazer com isso? — pergunta, contem-plando o buraco do calcanhar, semelhante à ilha do Ceilão. — Seria melhor jogá-la fora! — exclama criticamente, mas, apesar disso, e depois de longas considerações estratégicas, cra-va a agulha na costa sul do Ceilão.

Volta a reinar o silêncio familiar, tão caro ao Sr. Povondra. Só é interrompido pelo sussurro do papel, respondido pelos movimentos rápidos da agulha.

— Ele já foi preso?

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— Quem? — O assassino que matou a mulher... — Você acha que esse tal de assassino me interessa? — gru-

nhe papai Povondra com certa repugnância. — Estou lendo aqui que explodiu uma animosidade entre o Japão e a China. Isso é que é grave. Lá a coisa é sempre grave.

— Acho que não o prenderão... — Quem não será preso?— O tal do assassino. Quem mata uma mulher quase

nunca é preso.— Os japoneses não gostam de a China estar regulando o

rio Amarelo. A política é assim! Enquanto o Rio Amarelo esti-ver fazendo das dele, a cada ano haverá na China inundações e fome, e isso debilita muito os chineses, sabe? Empreste-me a tesoura, mamãe, vou recortar essa notícia.

— Por quê?— Estou lendo aqui que 2 milhões de salamandras traba-

lham nesse rio Amarelo.— É muita coisa, não é mesmo? — É o que eu acho. Mas, certamente, os Estados Unidos

pagam tudo, com os diabos! Por isso o Mikado queria enfiar ali suas próprias salamandras! Veja aqui!

— O que está acontecendo? — Le Petit Parisien diz que a França não pode deixar as

coisas assim.— E o que é que não deve deixar assim? — A Itália quer alargar a ilha de Lampedusa. É uma posi-

ção estratégica muito importante, não é mesmo? Assim a Itália poderia ameaçar a Tunísia a partir de Lampedusa. Le Petit Pa-risien garante que a Itália pretende construir na tal da Lampe-

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dusa uma fortaleza marítima de primeira qualidade. Dizem que há ali umas 60 mil salamandras, todas armadas. Coisa séria. Sessenta mil salamandras são três divisões, mamãe. Eu digo que no Mediterrâneo ainda vai acontecer alguma coisa. Quer ver? Eu vou recortar isso.

Enquanto isso, o Ceilão desaparecia sob as mãos hábeis da Sra. Povondra. Já fora reduzido a uma extensão menor que a da ilha de Rhodes.

— A Inglaterra também vai enfrentar dificuldades. Disse-ram na Câmara dos Comuns que a Grã-Bretanha está fican-do atrás de outros países na construção de obras aquáticas. Dizem que outras potências coloniais constroem rapidamente novas costas e continentes, enquanto o governo britânico, em sua desconfiança conservadora em relação às salamandras... É verdade, mamãe. Os ingleses são terrivelmente conservadores. Eu conheci um criado da embaixada britânica. A gente podia matá-lo que ele não comeria uma salsicha tcheca. Dizia que no país dele não se comia aquilo e que, portanto, ele também não comeria. Não acho estranho, pois, que outros países se adiantem — o Sr. Povondra balançou gravemente a cabeça. — A França amplia suas costas em Calais e os jornais ingleses armam um escândalo dizendo que a França vai canhoneá-los através do canal. A culpa é deles. Podiam ter ampliado suas costas em Dover e disparar contra a França.

— E por que iriam disparar? — perguntou a Sra. Povondra.— Você não compreende essas coisas. Há razões militares

para isso. Eu não acharia estranho se acontecesse alguma coisa ali. Ali ou em outro lugar. O fato é que agora, por causa das salamandras, a situação internacional é completamente dife-rente, mamãe. Totalmente diferente.

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— Você acha que pode explodir uma guerra? — pergun-tou, preocupada, a Sra. Povondra. Você sabe que pergunto por causa do nosso Frantík. Torço para ele não ser obrigado a ir.

— Guerra? — opinou o Sr. Povondra. — Teria de haver uma guerra mundial para que os países pudessem repartir o mar. Mas nós somos neutros. Sempre há alguém que fica neu-tro para poder vender armas aos demais. Assim são as coisas — concluiu o Sr. Povondra —, mas as mulheres não com-preendem isso.

A Sra. Povondra apertou os lábios e com rápidas agulha-das terminou de arrumar a ilha do Ceilão na meia do jovem Frantík.

— E pensar — continuou o Sr. Povondra, com o orgulho um pouco amortecido — que essa situação ameaçadora não existiria se não fosse eu! Se aquela vez não tivesse deixado o tal do capitão entrar para falar com o Sr. Bondy, a história do mundo seria outra. Qualquer outro porteiro não o teria deixado passar, mas eu disse para mim mesmo: vou assumir a responsabilidade. E veja agora como estão tendo dificuldades com isso nações como a Inglaterra e a França! E ainda nem sabemos o que poderá acontecer com tudo isso um dia... — O Sr. Povondra sugou sua pipa excitado. — É assim mesmo, querida. Os jornais estão repletos dessas salamandras. Aqui de novo... — papai Povondra afastou o cachimbo. — Dizem aqui que na cidade de Kankesanturai, no Ceilão, as salamandras atacaram uma aldeia. Antes disso os aldeões haviam matado algumas delas. “A polícia e uma unidade da tropa nativa foram chamados” — leu o Sr. Povondra em voz alta — “e chegou a haver um tiroteio entre salamandras e humanos. Vários sol-

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dados ficaram feridos!” — o senhor Povondra largou o jornal. — Não estou gostando nem um pouco disso, mamãe.

— Por quê? — surpreendeu-se a Sra. Povondra, batendo satisfeita com a tesoura na ex-ilha do Ceilão. — Isso não tem nada a ver!

— Não sei — grunhiu o Sr. Povondra, andando agitado de um lado a outro da sala —, não estou gostando nem um pouco disso. Não. Não me agrada. Salamandras e seres huma-nos não deviam trocar tiros.

— Talvez as salamandras estivessem apenas se defenden-do — tentou apaziguá-lo a Sra. Povondra, abandonando as meias.

— Exatamente por isso — grunhiu o Sr. Povondra, in-tranquilo. — Quando essas feras começarem a se defender, estaremos feitos! É a primeira vez que fazem uma coisa des-sas... Maldição! Não estou gostando nem um pouco disso — o Sr. Povondra se deteve. — Eu não sei, mas... Talvez tivesse sido melhor não ter deixado aquele capitão ir falar com o Sr. Bondy!

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tERCEiRo LivRo

R

A GUERRA DAS SALAMANDRAS

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I

MASSACRE NAS iLHAS CoCoS

O Sr. Povondra estava equivocado em uma coisa: o tiroteio ocorrido na cidade de Kankesanturai não era o primeiro en-frentamento entre salamandras e seres humanos. O primeiro conflito historicamente reconhecido ocorrera alguns anos an-tes, nas ilhas Cocos, ainda na idade de ouro das expedições piratas de caça às salamandras. Mas tampouco aquele havia sido o primeiro incidente desse tipo. Nos portos do oceano Índico fora bastante comentado um acontecimento lamentá-vel no qual as salamandras haviam oferecido resistência até ao oficial S-Trade. É natural que a história não registre incidentes desse tipo.

O que aconteceu nas ilhas Cocos (ou de Keeling) foi o seguinte: chegou ali, sob o comando do capitão James Lindley, o navio Montrose, da conhecida companhia Harriman Pacific Trade. Iam à consabida caça de salamandras do tipo Macca-roni. Nas ilhas Cocos havia uma conhecida e profícua colô-nia de salamandras, estabelecida ainda nos tempos do capitão Van Toch, mas que, devido à sua localização afastada das rotas convencionais, fora abandonada, como se diz, ao deus-dará. Ninguém poderia acusar o capitão Lindley de ter sido negli-gente, nem de permitir que sua tripulação descesse desarmada a terra.

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(Naquela época, a caça ilegal de salamandras já estava re-gularizada. A verdade é que antes os barcos piratas e sua tripu-lação iam armados com metralhadoras e até canhões ligeiros, naturalmente não contra as salamandras, mas contra a con-corrência desleal de outros corsários. A tripulação do navio da Harriman enfrentou certa vez, na ilha de Karakelong, homens de um barco dinamarquês cujo capitão considerava Karake-long seu couto de caça. Naquela ocasião, as duas tripulações acertaram velhas contas, sobretudo as referentes ao seu prestí-gio e a divergências comerciais, a ponto de terem abandonado a caça das salamandras e começado a disparar seus rifles e seus canhões Hotchkiss uns contra os outros. Os dinamarqueses ganharam na terra, atacando com facas, mas o navio da Harri-man disparou mais tarde seus canhões contra a embarcação di-namarquesa e teve êxito: afundou-a com tudo o que continha, inclusive o capitão Niels. Esse episódio ficou conhecido como “o incidente de Karakelong”. Naquela ocasião, intervieram as autoridades e os governos dos respectivos países; dali em dian-te, os navios bandidos foram proibidos de usar armamento pesado, metralhadoras e granadas de mão. Além disso, as com-panhias flibusteiras dividiram entre si a chamada caça livre de salamandras, de maneira que cada localidade habitada por elas era visitada apenas por certos navios piratas. Esse acordo de ca-valheiros entre os grandes corsários foi respeitado e cumprido lealmente até pelas pequenas empresas piratas.) Mas, voltan-do ao capitão Lindley: ele agiu inteiramente dentro do espí-rito das convenções aduaneiras, comerciais e navais vigentes naqueles dias quando enviou seus homens às praias das ilhas Cocos para caçar salamandras, armados exclusivamente com

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porretes e remos, e as autoridades que investigaram depois o caso inocentaram de modo categórico o capitão morto.

Os homens que desembarcaram naquela noite enluarada nas ilhas Cocos eram comandados pelo tenente Eddie Mc Carth, oficial da Marinha com experiência nesse tipo de caça. É ver-dade que a manada de salamandras encontrada na praia era excepcionalmente numerosa — de acordo com as estimativas, havia de seiscentos a setecentos machos vigorosos, enquanto o tenente tinha sob seu comando apenas 16 homens. Mas não se pode acusá-lo de não ter abandonado a caça, embora, pelos hábitos vigentes, os oficiais e marinheiros dos navios corsários recebessem um tanto por cada peça caçada. Na investigação que se seguiu aos fatos, foi dito que “o tenente Mc Carth era, naturalmente, responsável pelo incidente”, mas que, naquelas condições, “ninguém teria agido de maneira diferente”. Pelo contrário, o pobre do jovem tenente teve visão suficiente para ordenar que, em vez de cercar as salamandras, coisa que teria sido difícil fazer devido à diferença numérica, se fizesse um ataque frontal destinado a isolá-las do mar, fazê-las retroce-der até o interior da ilha e depois deixá-las tontas a golpes de remos e porretes. Lamentavelmente, a linha de ataque dos marinheiros foi rompida e umas duzentas salamandras esca-param para a água. Enquanto os homens começavam a atacar as salamandras refugiadas na ilha, estalaram às suas costas os disparos secos das pistolas submarinas (shark-guns). Ninguém havia imaginado que salamandras que viviam na natureza em estado selvagem poderiam estar armadas com pistolas contra tu-barões. Nunca foi possível averiguar quem as havia fornecido.

O marinheiro Michael Kelly, sobrevivente de toda essa ca-tástrofe, conta o seguinte:

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Quando os disparos começaram a espocar, achamos que os ti-ros vinham da tripulação de algum outro navio que também chegava àquele lugar à procura de salamandras. O tenente Mc Carth se virou rapidamente e gritou: “O que estão fazen-do, seus estúpidos? Esta é a tripulação do Montrose.” Nesse momento, foi ferido na cintura, mas ainda puxou o revólver que trazia e começou a disparar. Depois recebeu uma bala no pescoço e caiu. Foi aí que nos demos conta de que eram as salamandras que estavam disparando, tentando nos isolar do mar. Long Steve levantou um remo e se lançou contra elas, gritando: “Montrose! Montrose!” Nós também começamos a gritar Montrose e a golpear aqueles bichos com os remos, co-mo podíamos. Uns cinco de nós ficaram no chão e os demais conseguiram fugir até o mar. Long Steve pulou na água e vadeou até o bote, mas umas quantas salamandras se pendu-raram nele, arrastando-o para o fundo. Também afogaram Charlie, que gritava para a gente: “Rapazes, pelo amor de Jesus Cristo, não me abandonem!” Mas não pudemos socor-rê-lo. Aqueles porcos atiravam pelas costas. Bodkin se virou e recebeu um balaço no ventre. Disse apenas “assim não”, e caiu. Tratamos, então, de voltar ao interior da ilha. Já havía-mos quebrado, golpeando aquelas bestas, nossos porretes e remos, e só nos restava correr como lebres para fugir delas. Dos 16 homens, só quatro ficamos em pé. Tínhamos medo de nos afastar muito das margens e não poder depois chegar ao navio. Ficamos escondidos atrás de uns arbustos e pedras e fomos obrigados a ver nossos companheiros serem massa-crados pelas salamandras, que os afogavam na água como se fossem gatinhos, e quando alguns deles ainda nadavam, lhes davam uma pancada na cabeça. Eu me dei conta de que tinha torcido um tornozelo e não podia continuar caminhando.

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Parece que, enquanto isso acontecia, o capitão James Lin-dley, que ficara no Montrose, ouviu disparos. Talvez tivesse pensado que seus homens haviam se encontrado com nativos ou com outro grupo de traficantes de salamandras. O fato é que chamou o cozinheiro e dois maquinistas que haviam fica-do no navio, fez conduzir ao bote que restava o fuzil automá-tico que levava, apesar da proibição, secretamente no navio, e navegou para ajudar seus homens. Teve a precaução de não desembarcar na praia; limitou-se a aproximar o bote no qual estava montada a metralhadora e ficou em pé, com os braços cruzados. Deixemos que o marinheiro Kelly continue contan-do a história:

Não queríamos avisar ao capitão para que as salamandras não nos localizassem. O Sr. Lindley estava em pé no bote, com os braços cruzados, e gritava: “O que está acontecendo aqui?” Então as salamandras se dirigiram a ele. Na praia, ha-via umas duzentas, e da água surgiam sem parar outras, que se aproximavam do bote, cercando-o. “O que está acontecendo aqui?”, repetiu o capitão, e então uma salamandra enorme se aproximou ainda mais e lhe ordenou: “Para trás!” O capitão olhou-a, ficou calado por uns momentos e depois perguntou: “Você é salamandra?”

“Nós somos salamandras”, disse a salamandra. “Para trás, senhor.”

“Eu quero saber o que vocês fizeram com os meus ho-mens”, disse o nosso velho.

“Não deviam ter nos atacado”, respondeu a salamandra. “Volte ao seu navio, senhor!”

O capitão ficou calado por algum tempo e depois, intei-ramente calmo, disse:

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“Então está bem. Jenkins, queime!”E o maquinista Jenkins começou a atirar de metralhadora

nas salamandras.

(Nas investigações posteriores sobre todo esse caso, as au-toridades marítimas declararam com todas as letras: “Nesse sentido, o capitão James Lindley se portou como cabe a um marinheiro britânico.”)

Continua a testemunha Kelly:

Havia centenas de salamandras, e caíam como trigo no cam-po. Alguns atiraram com aquelas pistolas no Sr. Lindley, mas este continuou com os braços cruzados e nem se mexeu. Na-quele momento, surgiu da água, atrás do bote, uma salaman-dra negra que tinha na mão algo assim como uma lata de conserva. Pegou alguma coisa com a outra mão e atirou-a na água, logo ali, debaixo do bote. Antes que se pudesse contar até cinco, surgiu daquele lugar uma coluna de água e se ouviu uma amortecida, porém forte, explosão, que fez tremer até a terra sob os nossos pés.

(Segundo o relato de Kelly, a comissão de investigação considerou que se tratava do explosivo W3, que era entregue às salamandras que trabalhavam nas fortificações de Cinga-pura para detonar as rochas existentes embaixo d’água. Mas continuou sendo um mistério o modo como esses explosivos chegaram às mãos das salamandras das ilhas Cocos. Para al-guns, deviam ter sido levados até lá por homens; para outros, as salamandras deviam ter, já então, alguns sistemas de comu-nicação de longa distância. A opinião pública pediu, por isso,

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que fosse proibido que se confiassem a salamandras explosivos tão perigosos. No entanto, as autoridades competentes decla-raram que, no momento, não era possível substituir o W3, al-tamente explosivo e relativamente seguro, por nenhum outro. E não houve quem os removesse dali.)

Continua a declaração de Kelly:

O bote voou pelos ares. As salamandras que ainda estavam vivas se aproximaram do palco dos acontecimentos. Não po-díamos ver bem se o Sr. Lindley estava vivo ou não, mas meus três companheiros — Donovan, Burke e Kennedy — pula-ram e foram ajudá-lo para que não caísse em poder daquelas bestas. Eu também teria ido, mas o tornozelo torcido me doía terrivelmente, e tentava botá-lo no lugar. Por isso não sei o que aconteceu naquele momento, mas, quando levantei os olhos, Kennedy estava atirado de bruços na areia, e não havia o menor rastro de Donovan e Burke. Embaixo d’água, conti-nuavam as explosões.

Depois o marinheiro Kelly fugiu até o interior da ilha e encontrou uma aldeia de nativos, mas a gente se comportou de maneira estranha e não quis abrigá-lo. Talvez temesse as salamandras. Só depois de sete semanas um barco de pesca en-controu o Montrose, destroçado e abandonado, ancorado per-to das ilhas Cocos. Foram eles também que salvaram Kelly.

Passadas algumas semanas, o canhoneiro Fireball, de S. M. Britânica, navegou às ilhas Cocos e, depois de ancorar, espe-rou a chegada da noite. Era de novo uma noite branca de lua cheia. As salamandras saíram da água, sentaram na areia for-mando um círculo e começaram suas danças solenes. Então o

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navio disparou a primeira bomba no meio do círculo. As sala-mandras que não foram atingidas ficaram inertes por um mo-mento e depois submergiram rapidamente na água. Naquele momento ressoaram os terríveis disparos de seis canhões, e só algumas das salamandras ainda chapinharam na água. Depois, se ouviu a segunda, a terceira salva...

Então o navio Fireball, de S. M. Britânica, se afastou meia milha e começou a disparar embaixo d’água, navegando len-tamente ao longo da costa. Esse bombardeio marítimo durou seis horas e em seu transcurso foram disparados cerca de oi-tocentos canhonaços. Depois, o Fireball abandonou o lugar. Dois dias mais tarde, a superfície do mar próximo à ilha Cocos ainda estava coberta de corpos destroçados de milhares e mi-lhares de salamandras.

Na mesma noite desse acontecimento, o navio de guer-ra holandês Van Dijck disparou três canhonaços contra uma multidão de salamandras na ilhota de Goenong Api; o cru-zador japonês Kakadote lançou três granadas na ilha de Ai-linglab; o canhoneiro francês Bechamel interrompeu a dança das salamandras da ilha Rawaiwai. Foi uma advertência às salamandras, e não em vão. Não voltou a se repetir um caso semelhante à matança de Keeling (chamavam-na de Keeling-killing), e o comércio selvagem de salamandras continuou flo-rescendo sem interrupção.

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II

CoNfLito NA NoRMANDiA

O conflito ocorrido um pouco mais tarde na Normandia foi completamente diferente. As salamandras que trabalhavam nas costas de Cherbourg e viviam no litoral dos arredores ado-ravam maçã. Mas, como os empreiteiros locais não queriam acrescentar a fruta à dieta cotidiana (alegavam que, se o fi-zessem, estourariam consideravelmente o orçamento previs-to), elas organizavam por conta própria expedições às hortas frutíferas próximas para roubá-las. Os camponeses foram se queixar à Prefeitura e as salamandras receberam ordens para não sair da chamada Zona das Salamandras, mas isso de nada adiantou. As frutas continuaram desaparecendo das hortas e também os ovos dos galinheiros, e apareciam, cada vez com mais frequência, cães de guarda mortos a pauladas. Os campo-neses resolveram então vigiar suas hortas por conta própria. E, armados com velhas escopetas, atiraram nas salamandras gatu-nas. O assunto poderia ter sido um mero incidente local, mas os camponeses estavam amargurados, principalmente porque os impostos e o preço da munição haviam aumentado. Essas coisas juntas despertaram neles um ódio mortal em relação às salamandras. Organizaram-se em grupos armados e passaram a promover expedições punitivas. Quando a multidão atacou e disparou contra as salamandras em seus locais de trabalho, os empresários das construções aquáticas foram se queixar ao

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prefeito. O prefeito mandou confiscar as armas enferrujadas dos camponeses. Os camponeses, naturalmente, se opuseram, e entraram em desagradáveis conflitos com os gendarmes. Os normandos cabeças-duras atiraram não apenas nas salaman-dras, mas também nos gendarmes. Chegaram, então, reforços, e a aldeia foi revistada casa a casa.

Na mesma época, ocorreu outro incidente extremamen-te desagradável. Nos arredores de Coutance, alguns garotos da aldeia atacaram uma salamandra que havia se enfiado em um galinheiro de maneira suspeita. Os meninos a cercaram, encurralando-a contra a parede, e começaram a apedrejá-la com pedaços de tijolos. A salamandra ferida abriu a mão e jogou no chão uma coisa parecida com um ovo. Ouviu-se uma explosão e a salamandra se desfez em pedaços, assim como os três garotos: Pierre Cajus, de 11 anos, Marcel Bernard, de 16, e Louis Kermadec, de 15. Além disso, foram feridos, com maior ou menor gravidade, outros cinco meninos. A notícia se espalhou rapidamente por toda a região. Umas seiscentas pessoas chegaram de ônibus, de todos os lugares, e, armadas de escopetas, ancinhos e foices, atacaram a colônia de sala-mandras da baía de Basse Coutance. Vinte salamandras foram assassinadas antes que a polícia pudesse intervir para dissolver a multidão inflamada. Os sapadores de Cherbourg chegaram a toda pressa e, usando arame farpado, construíram uma vala protetora ao redor da baía de Coutance. Mas, quando a noite chegou, as salamandras escaparam, destroçaram os alambrados com granadas de mão e se prepararam para atacar a aldeia. Ca-minhões militares trouxeram imediatamente companhias de infantaria com metralhadoras e um cordão de soldados force-jou para afastar as salamandras dos seres humanos. Enquanto isso, os camponeses atacavam as repartições de arrecadação de

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impostos. Um dos inspetores foi pendurado em um poste de luz, com o seguinte letreiro: “Fora, salamandras!” A imprensa, sobretudo a alemã, publicou grandes manchetes a respeito de uma revolução em curso na Normandia. O governo de Paris desmentiu categoricamente a notícia.

Os sangrentos conflitos entre as salamandras e os campo-neses se alastraram pela costa de Calvados, Picardia e Pas de Calais. O velho cruzador francês Jules Flambeau saiu de Cher-bourg em direção à costa da Normandia. Seu objetivo, como foi dito mais tarde, era o de tranquilizar os ânimos, tanto o dos habitantes locais como o das salamandras. O navio ancorou a 3 quilômetros da baía de Basse Coutance. Quando a noi-te chegou, o comandante do barco, querendo potencializar o efeito, ordenou que fossem disparados fogos de artifício. Mui-ta gente ficou olhando o espetáculo da praia. De repente se ou-viu um zumbido e uma monumental coluna de água surgiu na proa do cruzador. O navio se inclinou e nesse momento soou um ruído estrondoso. O cruzador afundava. Em 15 minutos lanchas chegaram ao palco dos acontecimentos para ajudar no salvamento, mas não foram necessárias. Afora três homens que morreram em consequência da explosão, toda a tripulação se salvou. O Jules Flambeau afundou cinco minutos depois de seu comandante ter abandonado o navio com palavras memo-ráveis: “Não há nada a fazer.”

A notícia oficial divulgada naquela mesma noite dizia que “o velho encouraçado Jules Flambeau, já destinado à aposen-tadoria, encalhou nas rochas durante uma viagem noturna e afundou devido à explosão de uma de suas caldeiras”. No entanto, os jornais não se apaziguaram tão facilmente. A im-prensa semioficial afirmou que o navio se chocara contra uma

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mina alemã de fabricação recente. E os diários oposicionistas e a imprensa estrangeira publicaram em letras garrafais:

ENCOURAÇADO FRANCÊSTORPEDEADO PELAS SALAMANDRAS!

MISTERIOSO ACONTECIMENTO na costa normanda

REBELIÃO DAS SALAMANDRAS!

“Chamamos à responsabilidade”, escreveu exaltadamente em seu jornal o deputado Barthelemy, “aqueles que fornece-ram bombas às salamandras para que matassem camponeses franceses e crianças inocentes, aqueles que deram aos mons-tros marinhos os mais modernos torpedos para que pudessem afundar navios franceses quando lhes desse na telha. Temos todo o direito de chamá-los à responsabilidade! Que sejam acusados de alta traição! Que se averigue quanto receberam das fábricas de armamento para prover de armas a canalha ma-rinha contra a marinha civilizada!”, e assim por diante. Em resumo, reinava a intranquilidade geral, as pessoas formavam grupos nas ruas e até começaram a levantar barricadas. Nos bulevares de Paris se viam atiradores senegaleses com seus fuzis armados em pirâmide. Nos subúrbios da cidade, aguardavam tanques e carros blindados. Naquele momento, o ministro da Marinha, M. François Ponceau, pálido, porém decidido, de-clarou no Parlamento:

O governo aceita a responsabilidade de ter armado as sala-mandras das costas francesas com fuzis e submetralhadoras submarinas, torpedos e baterias submarinas completas. No entanto, as salamandras francesas possuem apenas canhões

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ligeiros de pequeno calibre, mas as alemãs estão armadas com canhões de 32 centímetros; nas costas francesas existe um de-pósito submarino de granadas de mão, torpedos e explosivos em média a cada 24 quilômetros, mas nas profundezas das costas italianas existem arsenais de guerra a cada 20 quilôme-tros, e nas águas territoriais alemãs a cada 18 quilômetros. A França não pode deixar — e não deixará — suas costas inde-fesas. A França não pode deixar de armar suas salamandras. O ministério fará investigações e castigará severamente os culpa-dos pela trágica confusão ocorrida nas costas da Normandia. Parece que as salamandras consideraram os avisos vermelhos como uma ordem para que as tropas as atacassem e, como é natural, trataram de se defender. Até agora foram afastados de suas funções tanto o comandante do Jules Flambeau como o prefeito de Cherbourg. Uma comissão especial investigará, também, como os empreiteiros de obras hidráulicas se por-tam com as salamandras. Como consequência, será exercida forte vigilância nesse sentido. O governo lamenta profunda-mente a perda de vidas humanas. Os três jovens heróis nacio-nais, Pierre Cajus, Marcel Bernard e Louis Kermadec, serão condecorados e enterrados a expensas do governo e suas famí-lias receberão uma pensão honorífica. Serão feitas mudanças importantes nas mais altas esferas da Marinha francesa. O governo pedirá ao parlamento um voto de confiança até que possa dar notícias mais concretas.

Depois disso, o gabinete anunciou que entrava em reunião permanente.

Enquanto isso, os jornais (conforme sua coloração política) propunham expedições de castigo, submissão por fome, inva-são, cruzada contra as salamandras, greve geral, demissão do

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governo, detenção de todos os empreiteiros que empregavam salamandras, prisão dos dirigentes e agitadores comunistas e muitas outras medidas de segurança. Diante da perspectiva de fechamento das costas e dos portos, começou-se a armazenar febrilmente produtos alimentícios e, com isso, os preços de todos os tipos de mercadorias aumentaram de modo vertigi-noso. Nas cidades industriais, explodiu uma revolta contra o aumento dos preços. A bolsa ficou fechada durante três dias. Era a situação mais tensa e terrível dos últimos três ou quatro meses. Naquele momento, entrou em cena, alterando comple-tamente o panorama, o ministro da Agricultura, M. Monti. Ele ordenou que, duas vezes por semana, fosse lançado ao mar, nas costas francesas, certo número de vagões de maçãs para as salamandras (naturalmente por conta do Estado). Essa medida deixou as salamandras extremamente felizes e tranquilizou os hortelãos da Normandia e de outros lugares. Mas M. Monti foi ainda mais longe. Como, fazia tempo, havia problemas nas regiões vinícolas por causa da falta de consumo, o ministro ordenou que, ainda a expensas do Estado, fosse entregue dia-riamente a cada salamandra meio litro de vinho branco. No princípio as salamandras não sabiam o que fazer com ele, por-que, ao beber, sofriam fortes diarreias, e por isso o despejavam no ar. Mas com o correr do tempo se acostumaram e, desde então, notou-se que as salamandras se acasalavam com mais entusiasmo, embora com uma fecundidade menor do que an-tes. E assim foram resolvidas, de um só golpe, a questão agrária e a das salamandras. A terrível tensão cedeu, e quando, ao cabo de algum tempo, surgiu uma nova crise devido ao escândalo financeiro envolvendo Mme. Töppler, o Sr. Monti foi nomea-do ministro da Marinha.

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III

iNCiDENtE No CANAL DA MANCHA

Algum tempo depois, o navio de passageiros Oudembourgh, de nacionalidade belga, navegava de Ostende para Ramsgate. Quando estava na metade do Pas de Calais, o oficial de serviço observou que, meia milha ao sul do curso normal, “algo acon-tecia na água”. Como não podia distinguir se alguém estava se afogando, ordenou que se navegasse até aquele lugar for-temente agitado. Cerca de duzentos passageiros assistiram da coberta a um extraordinário espetáculo. Aqui e ali pulava da água uma espécie de repuxo, aqui e ali surgia um corpo negrus-co. Ao mesmo tempo, a superfície da água, em uma extensão aproximada de 300 metros, se agitava loucamente, fervia e se ouvia subir das profundezas um forte ruído. “Parecia que um pequeno vulcão fervia embaixo d’água.” Quando o Oudem-bourgh estava se aproximando do lugar, surgiu de repente, a uns 10 metros dele, uma enorme onda seguida de uma terrível explosão. Todo o navio se levantou bruscamente e uma chuva de água fervente caiu na ponte, trazendo consigo um corpo negrusco que se retorcia e emitia alaridos terríveis. Era uma salamandra completamente queimada e destroçada. O oficial comandante ordenou imediatamente que se desse marcha a ré, para que o navio não penetrasse no centro daquele inferno explosivo. Mas, no meio-tempo, foram produzidos estalidos

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em todas as direções e a superfície do mar ficou coberta por pedaços de salamandras destroçadas. O navio conseguiu, fi-nalmente, se virar e escapou a todo o vapor para o norte. Foi ouvida, então, uma explosão angustiante a uns 600 metros do seu costado e levantou-se do mar uma coluna de mais de 100 metros de água e vapor. O Oudembourgh se dirigia a Harwich e enviou em todas as direções uma advertência pelo telégra-fo com fio. “Atenção! Atenção! Na linha marítima Ostende- Ramsgate há um grande perigo de explosões submarinas. Não sabemos qual é a sua origem. Aconselhamos a todas as embar-cações a se desviar dessa rota.” Enquanto isso, as explosões e os ruídos continuavam, quase como se estivessem sendo executa-das manobras militares. Mas a visibilidade era nula por causa da fumaça e do vapor. Naquele mesmo momento já saíam de Dover e Calais, a toda a velocidade, torpedeiros e destroieres, assim como esquadrilhas da aviação militar. Dirigiam-se ao lo-cal dos acontecimentos. Mas, ao chegar, só encontraram águas turvas. Na superfície havia uma espécie de barro amarelado coberto de peixes mortos e pedaços de salamandras.

Nos primeiros momentos se falou da explosão de uma mina no canal, mas quando as costas nos dois lados do es-treito de Calais foram fechadas por cordões de soldados e o primeiro-ministro inglês, pela quarta vez nos anais da história mundial, interrompeu na tarde de sábado seu weekend e vol-tou apressadamente a Londres, começou-se a se suspeitar de que se tratava de um acontecimento de alcance internacional. Os jornais publicaram notícias as mais alarmantes, mas (coi-sa estranha!) ainda estavam muito longe de contar a verdade. Ninguém suspeitou que durante vários dias críticos a Europa, e com ela todo o mundo, estivera a um passo de uma confla-

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gração bélica. Só depois de muitos anos, quando Sir Thomas Mulberry, então membro do governo britânico, perdeu seu posto no Parlamento e resolveu publicar suas memórias políti-cas, foi possível saber o que ocorrera naqueles dias, embora, na realidade, isso já não interessasse mais a ninguém.

Em resumo, a história foi a seguinte: tanto a França como a Inglaterra começaram a construir no canal da Mancha, usan-do salamandras, fortalezas submarinas que, em caso de guer-ra, permitiriam o fechamento do dito canal. Depois, como é natural, uma acusou a outra de ter começado. No entanto, parece que as duas começaram ao mesmo tempo, temendo que o outro país, seu vizinho e amigo, pudesse começar an-tes. Em resumo: começaram a crescer sob as águas do canal da Mancha, uma diante da outra, duas enormes fortalezas de concreto, armadas com artilharia pesada, lança-torpedos, am-plas zonas minadas e, em síntese, todas as modernas possibili-dades inventadas até aquela época pelos homens interessados em aperfeiçoar a arte da guerra. Nas costas inglesas, a terrível fortaleza das profundidades foi ocupada por duas divisões de salamandras pesadas e cerca de 30 mil salamandras trabalha-doras, e, na parte francesa, por três divisões de salamandras guerreiras de primeira classe.

Tudo leva a crer que naqueles dias uma colônia de sala-mandras operárias inglesas e salamandras francesas se encon-traram e se desentenderam nas águas profundas do meio do canal. A versão francesa afirmava que suas pacíficas salaman-dras operárias haviam sido atacadas pelas britânicas, que que-riam expulsá-las do lugar. As salamandras britânicas armadas tentaram aprisionar algumas francesas que, naturalmente, re-sistiram. Depois as salamandras militares britânicas começa-

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ram a atacar as salamandras operárias francesas com granadas de mão e lança-minas, de maneira que as pobres salamandras francesas não tiveram remédio a não ser defender-se usando armas semelhantes. O governo francês se viu obrigado a pedir ao governo britânico uma plena satisfação, a evacuação do ter-ritório submarino onde se dera o problema mais a promessa de que fatos semelhantes não voltariam a acontecer.

Por outro lado, o governo britânico afirmou, em nota diri-gida especialmente ao governo da república da França, que as salamandras militarizadas haviam penetrado na metade ingle-sa do canal e se dispunham a miná-la. As salamandras britâni-cas as advertiram que estavam entrando em local de trabalho britânico. As salamandras francesas, armadas até os dentes, reagiram lançando granadas de mão que mataram algumas sa-lamandras operárias britânicas. O governo de Sua Majestade se sentia obrigado a exigir do governo da república francesa plena satisfação e a garantia de que, dali em diante, as salamandras militares francesas não penetrariam na parte britânica do canal da Mancha.

O governo francês respondeu que não podia consentir que o Estado vizinho construísse fortificações submarinas nas pro-ximidades da costa francesa. No que se refere à confusão ocor-rida no canal, o governo da república propunha que, segundo o espírito da Convenção de Londres, o desagradável incidente fosse levado ao Tribunal de Conciliação de Haia.

O governo britânico respondeu que não podia e não es-tava disposto a submeter a proteção das costas britânicas a nenhuma decisão externa. Como país atacado, voltava a pe-dir, e energicamente, que lhe fossem apresentados pedidos de desculpas, recebesse indenização pelas perdas sofridas e que

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a integridade de seu território fosse garantida no futuro. Ao mesmo tempo, a frota inglesa alocada no mar Mediterrâneo, baseada em Malta, navegou a todo o vapor em direção ao oes-te. A frota do Atlântico recebeu ordens para se concentrar em Portsmouth e Yarmouth.

O governo francês mobilizou cinco faixas etárias de mari-nheiros da reserva.

Parecia impossível que um dos dois países retrocedesse. Além do mais, via-se claramente que a questão se resumia a conseguir a supremacia no canal. Nesse momento crítico, Sir Thomas Mulberry fez uma revelação surpreendente: na parte inglesa, não existia nenhuma salamandra operária nem sala-mandras militares (pelo menos de jure), e nas ilhas britânicas ainda estava em vigor a lei aprovada um dia por Sir Samuel Mandeville, segundo a qual nenhuma salamandra podia ser empregada nas costas ou nas águas territoriais das ilhas britâ-nicas. Por isso, o governo britânico declarava oficialmente que as salamandras francesas não podiam ter atacado as inglesas, e todo o problema ficou reduzido à seguinte questão: as sa-lamandras francesas, por equívoco ou de propósito, haviam entrado ou não em águas territoriais britânicas? As autoridades da república francesa prometeram investigar o caso e o gover-no inglês nem sequer propôs que o assunto fosse levado ao Tri-bunal Internacional de Haia. Mais tarde, o almirantado inglês e o francês decidiram que deveria haver no canal da Mancha, entre as fortalezas submarinas dos dois países, uma faixa neu-tra de 5 quilômetros de extensão. E com isso a amizade entre as duas nações foi consideravelmente reforçada.

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IV

DER NoRDMoLCH

Não muitos anos depois do estabelecimento das primeiras colônias de salamandras nos mares Báltico e do Norte, um pesquisador, o cientista alemão chamado Hans Thüring, asse-gurou que as salamandras do Báltico exibiam — certamente por influência do meio ambiente — algumas características peculiares em sua constituição física: eram um pouco mais claras, tinham um passo mais ereto e as dimensões de suas cabeças eram uma prova de que tinham um crânio mais longo e mais estreito que o das demais salamandras. Essa variedade recebeu o nome de der Nordmolch ou der Edelmolch (Andrias Scheuchzeri var. nobilis erecta Thüring).

A partir daí a imprensa alemã começou a ocupar-se fe-brilmente das salamandras do Báltico. Deu-se uma importân-cia especial ao fato de que, influenciada favoravelmente pelo ambiente alemão, essa salamandra havia se transformado em um tipo de raça superior, sem dúvida alguma melhor do que qualquer outro tipo de salamandra. Escreveu-se com desprezo sobre as degeneradas salamandras mediterrâneas, pouco de-senvolvidas moral e fisicamente, sobre as selvagens salaman-dras tropicais e, por fim, sobre as bárbaras, maléficas e bestiais salamandras de outras nações. Da salamandra gigante à super-salamandra alemã era o slogan da moda da época. Não era a

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terra alemã o lugar de origem de todas as salamandras da nova era? Não ficava seu berço em Oeningen, onde o sábio alemão Dr. Johannes Jakub Scheuchzeri encontrara as formidáveis pe-gadas de seu esqueleto miocênico? Não havia, pois, a menor dúvida de que o primitivo Andrias Scheuchzeri nascera antes das eras geológicas em solo germânico, migrara depois para ou-tros mares e regiões e pagara por isso com sua degenerescência e o atraso de seu desenvolvimento. Mas, quando se estabeleceu na terra que foi sua pátria de origem, Andrias voltou a ser o que era antes: a nobre salamandra do Norte, a Scheuchzeri, mais clara, mais ereta e com um crânio maior. Assim, pois, apenas em terra alemã as salamandras podiam voltar ao seu tipo normal e mais puro, como aquele encontrado pelo grande Johannes Jakub Scheuchzeri nas pegadas deixadas na pedra de ônix. Como resultado de tudo isso, a Alemanha necessitava de novos litorais mais extensos; necessitava de colônias e de mares internacionais para que, em toda a parte e em águas territoriais alemãs, as novas gerações de salamandras de origem germânica de raça pura pudessem se desenvolver. “Precisamos de novas terras para nossas salamandras”, escreviam os jornais alemães. E, para que essa realidade estivesse sempre presente diante dos olhos da nação alemã, foi erigido um magnífico monumento a Johannes Jakub Scheuchzeri. O grande doutor foi representa-do com um imenso livro na mão e, aos seus pés, estava sentada uma formosa e nobre salamandra nórdica, que olhava ao lon-ge, às costas invisíveis dos oceanos mundiais.

Durante a inauguração do monumento, foram pronun-ciados, naturalmente, discursos solenes que despertaram de maneira extraordinária a atenção da imprensa mundial. “A Alemanha ameaça de novo”, apontaram especialmente os jor-nais ingleses:

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Já estamos habituados a esse tom, mas, nesse ato oficial, foi dito que a Alemanha precisa, em um prazo de três anos, de 5 mil quilômetros de novas costas marítimas. Vemo-nos obrigados a advertir claramente: Está bem, tentem! Quebra-rão seus dentes nas costas britânicas. Estamos preparados e estaremos ainda mais e melhor daqui a três anos. A Inglaterra deve ter e terá tantos navios de guerra como as maiores po-tências continentais juntas. Essa relação de forças é, de uma vez por todas, indiscutível. Se querem desencadear uma louca corrida no campo do armamento marítimo, que o façam! Ne-nhum britânico consentirá que sua pátria seja deixada para trás um único palmo.

“Aceitamos o desafio alemão”, declarou no Parlamento, em nome do governo, o primeiro lorde do almirantado, Sir Francis Drake.

Aquele que estender sua mão a qualquer mar que seja encon-trará nossos encouraçados. A Grã-Bretanha é bastante forte para rechaçar qualquer ataque contra sua ilha e as costas de seus domínios e colônias. Para evitar um ataque desses, estu-daremos a construção de novas fortalezas e bases aéreas em cada mar cujas ondas banhem os trechos mais minúsculos das costas britânicas. Que isso sirva como última advertência a qualquer um que tente retificar as costas marítimas, mesmo que seja apenas em uma jarda.

Depois disso, o Parlamento aprovou a construção de novos navios de guerra. O investimento inicial foi de 500 milhões de libras esterlinas. Era, na verdade, uma resposta desmesurada à

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construção do monumento a Johannes Jakub Scheuchzeri em Berlim, pois o dito monumento havia custado apenas 12 mil marcos.

Esse discurso foi respondido pelo magnífico publicitário francês marquês de Sade, geralmente muito bem informado, da seguinte forma:

O primeiro lorde do almirantado inglês declarou que a Grã-Bretanha está preparada para qualquer eventualidade. Bem, mas estará esse distinto lorde informado de que a Alemanha tem no Báltico um terrível exército permanente de salaman-dras fortemente armado? Que conta hoje em dia com 5 mi-lhões de salamandras militares profissionais, que podem ser postas imediatamente em pé de guerra tanto nas costas como na água? Somem os senhores a isso cerca de 17 milhões de salamandras envolvidas em serviços técnicos e de intendên-cia, preparadas para servir a qualquer momento como forças de ocupação ou de reserva. A salamandra do Báltico é hoje o melhor soldado do mundo, preparado à perfeição psicologi-camente, e vê na guerra sua verdadeira e mais elevada missão. Irá lutar com o entusiasmo dos fanáticos, com uma técnica fria e calculada e com a terrível disciplina de uma verdadeira salamandra prussiana. O primeiro lorde do almirantado britânico sabe, tam-bém, que a Alemanha constrói febrilmente barcos de passa-geiros que podem transportar brigadas inteiras de salaman-dras de guerra de uma só vez? Sabe que estão construindo centenas e mais centenas de pequenos submarinos com um raio de ação de 3 a 5 mil quilômetros, cuja tripulação estará formada por essas mesmas salamandras bálticas? Sabe que es-

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tá estabelecendo enormes depósitos de combustível em dife-rentes partes do oceano? Assim, pois, perguntamos mais uma vez: o cidadão britânico tem total certeza de que seu gran-de país está verdadeiramente bem preparado para qualquer eventualidade?

Não é difícil imaginar — continuou o marquês de Sade — o que significarão as salamandras em uma próxima guerra, ar-madas com canhões submarinos do tipo Berta, com lança-mi-nas e torpedos para o bloqueio das costas. Acredito piamente que, pela primeira vez na história do mundo, ninguém pode invejar a magnífica posição insular da Inglaterra. Mas, já que estamos falando disso... O almirantado britânico sabe que as salamandras do Báltico estão equipadas com umas máquinas — por outro lado muito úteis para a paz — que se chamam britadeiras pneumáticas, e que essas modernas perfuratrizes atravessam em uma hora uma profundidade de 10 metros da melhor terra sueca existente e de 50 a 60 metros da inglesa? (Isso foi provado em uma perfuração secreta, efetuada por uma expedição técnica alemã nas noites dos dias 11, 12 e 13 do mês passado na costa inglesa, entre Hythe e Folkestone, ou seja, diretamente debaixo dos narizes da fortaleza de Do-ver.) Aconselhamos nossos amigos do outro lado do canal a calcular eles mesmos em quantas semanas podem ser perfu-rados Kent ou Essex por baixo d’água, até que fiquem com buracos semelhantes aos de uma bola de queijo. Até agora o cidadão britânico ficava olhando o firmamento como se só dele pudesse chegar o perigo e a destruição de suas flores-centes cidades, de seu Bank of England, de suas pequenas e acolhedoras casinhas cercadas de jardins. Melhor farão se gru-

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darem seus ouvidos na terra em que brincam seus filhos para averiguar, hoje ou amanhã, se podem ser ouvidos os gemidos das incansáveis e terríveis britadeiras das salamandras que abrem caminho, passo a passo, para a colocação de explosivos de um poder até agora desconhecido. Não teremos mais uma guerra no ar, mas guerra submarina e subterrânea, a última de nossa era. Temos ouvido discursos cheios de confiança profe-ridos da ponte de comando da orgulhosa Albion. Sim, ela é, até agora, uma poderosa nave que balança sobre as ondas e as domina. Mas pode chegar o dia em que essas ondas se fechem sobre a nave destruída, que afundará, então, nas profundezas do mar. Não seria melhor tentar evitar esse perigo o quanto antes? Daqui a três anos será demasiadamente tarde!

A advertência do brilhante publicitário francês causou grande excitação na Inglaterra. Apesar de a notícia ter sido desmentida, os ingleses ouviam o ruído das brocas das sala-mandras em diferentes regiões da Grã-Bretanha. Os círculos oficiais alemães desmentiram, logicamente, o citado artigo, declarando que era, do começo ao fim, uma provocação sem sentido, mera propaganda hostil. No entanto, naqueles dias foram realizadas no Báltico manobras combinadas com a participação da Marinha alemã, das forças subterrâneas e das salamandras guerreiras. Em seu transcurso, as unidades de sa-lamandras sapadoras fizeram voar, ante a vista de observadores militares estrangeiros, um pedaço de terreno perfurado perto de Rügenwalde, de uma extensão de 6 quilômetros quadrados. Segundo disseram, foi um grande espetáculo: a terra se levan-tou com uma terrível explosão, como se fosse um iceberg ao se partir, e depois voou, imensa parede de fumaça, areia e pe-

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dra. De repente tudo ficou escuro como se fosse noite, a areia levantada atingiu um raio de cerca de 100 quilômetros, e, ao cabo de alguns dias, choveu areia sobre Varsóvia. Depois dessa experiência, uma imensa quantidade de areia e poeira ficou flutuando no ar; era tanta que, até o final do ano, a Europa foi brindada com um pôr do sol extraordinariamente belo, de um vermelho purpúreo incandescente, como nunca havia sido visto até então.

O mar ocupado pelo pedaço de costa destroçada recebeu, mais tarde, o nome de mar de Scheuchzeri, e virou local de pe-regrinação de muitas excursões escolares e passeios de crianças alemãs que cantavam o hino popular:

Solche Erfolche erreichen nur deutsche Molche

(Glória às nossas Salamandras)

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V

woLf MEyNERt ESCREvE SUA obRA

Os magníficos poentes devem ter sido a fonte de inspiração do solitário filósofo Wolf Meynert ao escrever sua monumental obra Untergang der Menschheit, o ocaso da humanidade. Po-demos imaginá-lo passeando animadamente pela costa, com a cabeça descoberta e o casaco desabotoado ondulando ao ven-to, atravessando com seus olhos arrebatados aquela inundação de fogo e sangue que ocupava mais da metade do firmamento. “Sim”, cochichou em êxtase, “já é tempo de escrever um epílo-go para a história da humanidade!” E escreveu-o.

— Termina a tragédia da espécie humana — começou Wolf Meynert. — Não nos deixemos enganar por seu febril afã empreendedor e sua felicidade técnica; isso é, apenas, o que as manchas rosadas são no rosto do organismo marcado pe-la tuberculose, pela morte. A humanidade nunca passou por uma conjuntura tão positiva como a de agora, mas apontem-me uma classe social que esteja satisfeita ou uma nação que não sinta seu cerne ameaçado! Em meio a todas as dádivas da natureza, às riquezas de Croesus espirituais e materiais de tantos países, se apodera cada vez mais de todos nós certo sentimento de insegurança, angustiante e incômodo.

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Wolf Meynert analisou, inexoravelmente, o estado psíqui-co do mundo daqueles dias, a mistura de ódio e medo, des-confiança e megalomania, cinismo e má-fé. “Em uma palavra: desespero; os típicos espectros do fim. A agonia moral”, con-cluiu o pensador.

A questão é: houve algum dia um homem capaz de ser feliz? O homem, cada ser vivente, sim; mas a humanidade, nun-ca. Toda a desgraça do homem consiste no fato de ter sido obrigado a converter-se em humanidade, ou talvez de ter se convertido em humanidade muito tarde, quando já havia uma diferença incorrigível entre nações, raças, credos, Esta-dos e classes, quando já havia pobres e ricos, cultos e incul-tos, governantes e governados. Peguem um único rebanho de cavalos, lobos, ovelhas e gatos, raposas e cervos, ursos ou cabras; encerrem-no em um curral e obriguem-no a viver nes-sa confusão que chamam de Leis Sociais e a respeitar certas regras necessárias à vida. Será um rebanho desgraçado, pouco feliz, fatalmente indiferente, um rebanho em que nenhuma das criaturas de Deus se sentirá em casa. Esse é um retrato exato do grande rebanho heterogêneo e desesperançado cha-mado humanidade. Nações, raças, classes não podem viver juntas sem se entediar e agoniar mutuamente, até chegar à intolerância. Podem viver eternamente separadas — o que seria possível se o mundo fosse grande o bastante para isso —, ou uma contra as outras, em uma luta de vida e de morte. Para os grupos biológicos humanos definidos por raça, nação ou classe, há apenas um caminho em direção à homogenei-dade e à felicidade: a construção de um lugar para si e o ani-quilamento dos demais. E isso é, precisamente, o que o ser

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humano esqueceu há muito tempo. Hoje já é tarde para isso. Assumimos um número excessivo de doutrinas e compromis-sos com aquilo que defendemos para “os outros”, em lugar de afastá-los de cima da gente. Inventamos regulamentos sobre moral, direitos humanos, compromissos, leis, igualdade, hu-manidade e muitas outras coisas. Criamos uma humanidade de ficção que nos precipita, a nós e aos “outros”, em uma espécie de unidade superior. Que equívoco fatal! Pomos a lei moral acima da lei biológica. Alteramos as grandes bases na-turais de toda a sociedade, que dizem que apenas uma socie-dade homogênea pode ser feliz coletivamente. Sacrificamos essa felicidade alcançável a um sonho grande, mas inatingível: criar uma humanidade e uma única ordem de que participem todos os homens, nações, classes sociais, níveis de vida. Pode-ríamos dizer que foi uma formidável besteira, o único esforço do homem (esforço digno de respeito) para elevar-se acima de si mesmo. O gênero humano paga hoje com sua inevitável destruição esse seu magnânimo idealismo.

O processo pelo qual o homem tenta se organizar de al-guma maneira em humanidade é tão velho como a própria civilização, como as primeiras leis e as primeiras aldeias. Se ao cabo de tantos milhares de anos só se conseguiu — como po-demos ver hoje — tornar muito mais profundo esse abismo entre raças, nações, classes e pontos de vista mundiais, então já não podemos fechar os olhos para o fato de que fracas-sou definitiva e tragicamente a tentativa histórica de fazer de todos os homens, sem mais nem menos, uma humanidade. Finalmente começamos a nos dar conta disso — e daí es-sas tentativas e planos de unificar o gênero humano de outra maneira, dando lugar a apenas uma nação, uma classe e uma

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religião. Mas quem pode dizer até que ponto estamos infec-tados por essa enfermidade incurável chamada diferenciação? Mais cedo ou mais tarde, cada presumido todo homogêneo desmoronará irremediavelmente em grupos sem coordena-ção, com diferentes interesses, partidos, posições etc., que ou bem se destruirão entre si ou sofrerão de novo os tormentos da vida em comum. Não há saída possível, movemo-nos em um círculo vicioso, mas a evolução não pode mover-se con-tinuamente em círculos. Por isso a natureza se ocupou por si mesma do assunto, criando no mundo um lugar para as salamandras.

Ia mais longe Wolf Meynert:

Não por acaso as salamandras surgem em nossas vidas preci-samente na época em que a doença crônica da humanidade, esse grande organismo mal desenvolvido e que desmorona continuamente, entra em fase de agonia. Salvo algumas pe-quenas exceções sem importância, as salamandras se apre-sentam como o único todo homogêneo e formidável. Não criaram, até agora, uma profunda diferença de raça, língua, nação, religião, classe ou casta; entre elas não há amos nem escravos, livres e oprimidos, ricos e pobres. Naturalmente, existem diferenças impostas pelos vários tipos de trabalho que executam, mas, em si, são unidas pela mesma raça (é co-mo se disséssemos pela mesma carne) e são da mesma forma primitivas biologicamente em todas as suas partes, da mesma forma maldotadas pela natureza, da mesma forma escravas, vivendo em condições semelhantes, péssimas condições. O último negro ou esquimó do mundo vive em melhores con-

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dições, não apenas materiais, mas também culturais, do que elas. E, no entanto, as salamandras não demonstram sofrer com isso. Pelo contrário, vemos que não necessitam de nada daquilo em que o homem procura consolo e alívio para os horrores metafísicos para a angústia vital. Podem prescindir da filosofia, da vida eterna e do ar. Não sabem o que é fanta-sia, humor, misticismo, brincadeira ou sonho. São completa-mente realistas. Estão tão longe da gente, os seres humanos, como as formigas ou os arenques. Só se diferenciam deles por se organizar em outro ambiente vital, ou seja, na civilização humana. Assentaram-se nela como os cães se assentam nos resíduos deixados pelos homens. Sem eles não podem viver, mas nem por isso deixam de ser o que são: animais muito primitivos e que se diferenciam muito pouco entre si. Basta-lhes viver e se multiplicar, e até podem ser felizes, porque não as inquieta nenhum sentimento de desigualdade. São sim-plesmente homogêneas. Por isso poderão qualquer dia desses, sim, em qualquer dia futuro, realizar sem obstáculos o que a humanidade não pôde fazer: unir suas classes em todo o mundo, criar sua sociedade mundial, em uma palavra, o Uni-verso das Salamandras, ou seja, o salamandrismo universal. Nesse dia terminará a agonia de milhares de anos do gênero humano. Em nosso planeta não haverá lugar suficiente para duas tendências, que se esforçarão para controlar o mundo inteiro. Uma terá de deixar o caminho livre para a outra. Já sabemos de antemão qual será!

Hoje vivem em nosso planeta cerca de 20 bilhões de sa-lamandras civilizadas, ou seja, perto de dez vezes o número total de homens. Disso se depreende, pela necessidade bio-lógica e a lógica da história, que as salamandras escravizadas

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terão de se libertar; que, sendo homogêneas, terão de se unir, terão de assumir a direção do mundo. Os senhores acredi-tam que serão loucas a ponto de voltar a respeitar o homem? Acreditam que repetirão o histórico equívoco daquele que subjugou nações e classes derrotadas em vez de aniquilá-las? O equívoco daqueles que, por orgulho, estabeleciam novas diferenças entre a gente e depois, por magnanimidade ou idea-lismo, esforçavam-se para revogá-las? Não, esse disparate his-tórico não será repetido pelas salamandras!, exclamou Wolf Meynert, e continuou: Ainda que ajam assim só para seguir os conselhos e advertências de meu livro. Serão herdeiras de toda a civilização humana; cairá em seu colo tudo o que te-mos feito, tudo o que tentamos fazer para conseguir dominar o mundo; mas irão contra si mesmas se também quiserem nos incluir nessa herança. Se quiserem conservar sua homo-geneidade racial, terão de prescindir dos seres humanos. Caso contrário, propagaremos entre elas, mais cedo ou mais tarde, nossas duas inclinações destrutivas: a de criar diferenças e a de sofrê-las. Mas não nos atrevamos a isso. Hoje, qualquer ser que dê continuidade à história do homem evitará repetir as loucuras suicidas da humanidade.

Não há dúvida de que o mundo das salamandras será mais feliz do que foi o do gênero humano. Será unido, homogêneo e estará dominado pelo mesmo espírito. As salamandras não se distinguirão uma das outras pela língua, opiniões, religião nem exigências vitais. Não haverá entre elas diferenças cultu-rais nem de classe, mas a diferença do trabalho. Ninguém será senhor ou escravo, porque todos servirão ao Grande Conjunto das Salamandras, que será seu deus, seu governo, seu patrão e guia espiritual. Formarão uma única nação com um só nível,

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viverão em um mundo melhor e mais perfeito que o nosso. Serão um poderoso Feliz Mundo Novo. Então, vamos lhes dar um lugar! A humanidade que se apaga já não pode fazer outra coisa a não ser apressar seu próprio fim, em uma trágica beleza, enquanto não for tarde demais também para isso.

— — —

Apresentamos aqui as opiniões de Wolf Meynert de forma compreensível. Sabemos que, com isso, perdem muito do efei-to e profundidade com que em outro tempo fascinaram toda a Europa e, sobretudo, a juventude, que recebeu com entusias-mo a notícia da queda e do fim da humanidade. O governo do Reich, naturalmente, proibiu os ensinamentos do Grande Pessimista, por causa de certas consequências políticas que se produziram, e Wolf Meynert teve de se exilar na Suíça. Ape-sar disso, todo o mundo culto se apropriou com satisfação da teoria de Meynert sobre a extinção da humanidade. Seu livro (632 páginas) foi publicado em todas as línguas do mundo e difundido, em muitos milhares de exemplares, também entre as salamandras.

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VI

x ADvERtE

Talvez também tivesse sido consequência do livro profético de Meynert o que os vanguardistas literários e artísticos dos centros culturais anunciaram:

Depois de nós, as salamandras! O futuro pertence às salaman-dras. As salamandras representam uma revolução cultural. Que importa que não tenham sua arte? Pelo menos não es-tarão carregadas de ideais estúpidos, tradições mortas e todo esse torturante, aborrecido e pedante desperdício chamado poesia, música, arquitetura, filosofia e, em geral, cultura — palavra senil que, quando ouvimos, nos revolve os estômagos. É melhor que não tenham caído, até agora, nos maneirismos da arte humana: nós, seres humanos, lhes faremos uma arte nova; a juventude à qual pertencemos aplanará o caminho para o futuro das salamandras. Queremos ser as primeiras salamandras, as salamandras do futuro!

E assim nasceu a sociedade de jovens poetas salamandrinos, surgiu a música tritônica e a pintura pelágica, que se inspirava nas formas do mundo das medusas, algas marinhas e corais. Além disso, descobriu-se que as obras padronizadas das sala-mandras eram novas fontes de beleza e de monumentalidade.

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“Já estamos fartos da natureza”, gritavam. “Que a superfície lisa do concreto substitua as velhas rochas. O romantismo está morto. Os futuros continentes estarão bordejados de linhas retas e serão refeitos em triângulos e losangos. O velho mun-do geológico será substituído pelo geométrico.” Em resumo: havia outra vez algo novo e promissor de que se ocupar, novas sensações psíquicas e novas manifestações culturais, e aqueles que não souberam seguir a tempo o caminho do futuro sa-lamandrismo sentiam amargamente que haviam perdido sua grande oportunidade e se vingavam declarando-se partidários da humanidade, da volta ao homem e à natureza, e outros slogans reacionários. Em Viena, foi assoviado um concerto de música tritônica, no Salão dos Independentes de Paris um malfeitor rasgou um quadro pelágico intitulado Capriccio en bleu. Em resumo: o salamandrismo trilhava o caminho da vi-tória, sem que nada nem ninguém pudessem detê-lo.

Naturalmente, não faltavam vozes retrógradas que se le-vantavam contra a “mania salamândrica”, como a chamavam. Mas a manifestação mais enérgica nesse sentido foi um texto inglês de autor desconhecido, publicado sob o título X adverte. Essa brochura foi muito lida, mas nunca se descobriu a identi-dade de seu autor, embora muitos acreditassem que se tratava de uma alta personalidade eclesiástica, considerando o fato de, em inglês, o X ser uma abreviatura de Cristo.

No primeiro capítulo, o autor procurava desenvolver es-tatísticas sobre as salamandras existentes, desculpando-se, ao mesmo tempo, pela pouca exatidão das cifras publicadas. As-sim, calculava que o número de todas as salamandras existen-tes já era de sete a vinte vezes superior ao de homens.

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Igualmente imprecisos são nossos conhecimentos a respeito de quantas fábricas, poços de petróleo, plantações de algas, criadouros de enguias, aproveitamento da força hidráulica e outras fontes naturais as salamandras têm embaixo d’água. Não temos a mínima ideia de sua capacidade industrial e, menos ainda, de qual a situação no que se refere a seu arma-mento. Sabemos, porém, que as salamandras dependem do homem no que concerne a metais, a insumos para a cons-trução de máquinas, a matérias explosivas e a muitos outros produtos químicos. Mas, por outro lado, cada país guarda o maior segredo sobre quantas armas e outro tipo de produtos entrega a suas salamandras. Também sabemos muito pouco sobre o que elas produzem no fundo do mar com as matérias-primas e os produtos semielaborados adquiridos do homem. O que é certo é que as salamandras não têm nenhum inte-resse em que tenhamos estas informações. Nos últimos anos morreram afogados ou estrangulados tantos mergulhadores no fundo do mar que já não se pode atribuir o fato apenas ao acaso. Esse é um sintoma muito alarmante, tanto do ponto de vista industrial como do militar.

Continuava X nos parágrafos seguintes:

No entanto, é difícil imaginar o que as salamandras podem querer da gente. Elas não podem viver em terra firme e nós não podemos molestá-las na água. Nosso ambiente vital e o delas são completamente distintos, coisa que perdurará por muitos séculos. É verdade que exigimos que trabalhem, mas, em troca, lhes fornecemos alimentos, matérias-primas e pro-dutos que, sem nossa ajuda, nunca chegariam a ter. Metais, por exemplo. Mas, ainda que não haja praticamente nenhum motivo para antagonismos entre nós e as salamandras, existe,

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diria eu, uma animosidade metafísica: as criaturas das pro-fundezas (criaturas abissais) são contra quem é da terra; as criaturas da noite, contra as criaturas do dia; os escuros tan-ques de água, contra a terra clara e seca. A fronteira entre a água e a terra é, de certa forma, mais tênue do que já foi. Nos-sa terra toca a água das salamandras. Poderíamos viver pelos séculos dos séculos perfeitamente afastados uns dos outros, intercambiando apenas pequenos serviços e produtos; mas é difícil ignorar a angustiante sensação de que não poderá ser assim. Não posso explicar claramente a razão, mas tenho a impressão — algo assim como um pressentimento — de que um dia a água se voltará contra a terra para resolver a questão de qual das duas...

Prossegue dizendo X:

Confesso que sinto uma opressão até certo ponto irra-cional, mas me sentiria muito aliviado se as salamandras en-frentassem a gente fazendo alguma reivindicação, exigindo alguma coisa. Então se poderia lidar com elas, seria possível fazer várias concessões, assinar contratos, definir compromis-sos. Mas seu silêncio é terrível. Assusta-me sua incompreen-sível demora. Poderiam, por exemplo, pedir certas vantagens políticas. Falando com franqueza, as leis para as salamandras vigentes em todos os países são bastante antiquadas e impró-prias a seres civilizados e tão poderosos numericamente. Os novos direitos e deveres das salamandras deveriam ser mo-dificados de forma mais vantajosa para elas. Deveriam ser consideradas algumas medidas de autonomia para as sala-mandras. Seria justo melhorar suas condições de trabalho e recompensá-las regularmente. Em muitos aspectos, seria até possível melhorar o seu destino, se ao menos pedissem alguma

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coisa. Depois poderíamos conceder-lhes várias coisas e firmar acordos de compensação; pelo menos ganharíamos alguns anos. Mas as salamandras nada pedem além do aumento de seus rendimentos e encargos. Hoje já podemos perguntar aonde tudo isso irá parar. Fala-se, às vezes, do perigo amarelo, ne-gro ou vermelho. Nesses casos, porém, trata-se de homens e podemos imaginar mais ou menos o que eles podem querer. Mas, embora eu não tenha ideia de como e contra o quê a humanidade terá de se defender, de uma coisa estou seguro: se as salamandras estiverem de um lado, toda a humanidade estará do outro.

Os homens contra as salamandras! Já é hora de dizer coi-sas assim. Sim, falando com franqueza, o homem comum odeia instintivamente as salamandras. Sente nojo e medo de-las. Uma espécie de sombra horrenda desabou sobre todos os homens. Que outra coisa é essa frenética ânsia de desfrutar, essa sede insaciável de diversão e prazer, essas orgias loucas em que a enlouquecida gente de hoje está imersa? Uma queda tão baixa da moral não ocorrera desde os tempos em que o Império Romano estava prestes a sucumbir à barbárie. Es-ses não são os frutos de uma felicidade material incomum, mas o surdo, desesperado medo da destruição, a angústia da extinção. Que tragam a última taça antes do ocaso de nossa vida! Que vergonha, que delírio! Parece que Deus, em Sua terrível misericórdia, permite que as nações e classes que se precipitam na perdição se debilitem. Querem ler as palavras mane teche*28escritas em fogo sobre o festim da humanidade?

* Referência às palavras Mane, thecel, phares que, segundo a Bíblia (Livro de Daniel), apareceram escritas na parede da sala onde o rei Belsazar — filho e sucessor de Nabucodonosor — promovia uma orgia sacrílega. (N. do T.)

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Vejam os anúncios que brilham à noite nos muros das cida-des dissipadas e corrompidas! Nesse aspecto, os seres huma-nos se aproximam das salamandras: vivemos mais de noite que de dia.

Desabafa X, entristecido:

Se pelo menos as salamandras não fossem tão terrivelmente medíocres. Sim, são mais ou menos educadas, mas devido a isso têm uma inteligência ainda mais limitada; aprenderam com a civilização humana só o que ela tem de corriqueiro e útil, de mecânico e repetitivo. Estão ao lado de Fausto; aprendem nos mesmos livros dos Faustos humanos, com a única diferença que isso lhes basta, pois não são corroídas por nenhuma dúvida. O mais terrível é que multiplicaram esse tipo prático, tolo e autossuficiente de mediocridade civilizada em milhões e milhares de milhões de peças iguais. Ou não: creio que me equivoco. O mais terrível é que tenham tanto êxito. Aprenderam a usar as máquinas e os números e já foi demonstrado que isso lhes bastou para se transformarem em senhoras de seu mundo. Prescindiram da civilização humana, de tudo o que tinha de imprestável, jocoso, fantástico ou an-tiquado. Assim, pois, desprezaram o que havia de humano na civilização e adotaram apenas sua parte prática, técnica, utili-tária. E essa triste caricatura da civilização humana é cheia de vida. Constrói prodígios técnicos, renova nosso velho planeta e, finalmente, começa a fascinar a própria humanidade. Ao lado de seu aluno e criado, Fausto aprenderá os segredos do êxito e da mediocridade. Ou a humanidade enfrenta as sala-mandras em uma conflagração histórica de vida ou de morte,

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ou se salamandriza irremediavelmente. No que me diz respei-to, gostaria de dizer que prefiro a primeira opção.

O escritor desconhecido continua:

Ainda é possível sacudir esse círculo pegajoso e frio que nos aprisiona. Devemos nos livrar das salamandras. Já são muitas! Estão armadas e podem voltar contra nós um potencial de guerra de cuja magnitude muito pouco se sabe. Mas o perigo mais terrível não reside em seu número ou em sua força; e, para nós, os homens são triunfante inferioridade. Não sei o que devemos temer mais, se sua civilização humana ou sua tenebrosa e fria crueldade animal. Essas duas coisas juntas formam algo indescritivelmente aterrador, quase diabólico. Em nome da cultura, em nome da cristandade e da humani-dade, devemos nos libertar das salamandras.

E aqui exclamou o anônimo apóstolo:

Seus loucos, parem de uma vez por todas de alimentar as sala-mandras!

Parem de empregá-las, renunciem aos seus serviços, dei-xem que partam para algum lugar onde possam se alimentar sozinhas, como outros seres aquáticos. A própria natureza saberá o que fazer com aquelas que sobrarem. É necessário que os homens, a civilização e a história da humanidade não continuem trabalhando para as salamandras.

E parem de dar armas às salamandras, interrompam o for-necimento de metais e de explosivos, não lhes enviem máqui-nas e fábricas humanas! Não deem dentes aos tigres e veneno

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às cobras! Não acendam o fogo sob os vulcões, não cavem diques embaixo d’água. Vamos embargar a entrega de armas e todo tipo de mercadoria às salamandras de todos os mares, vamos declarar as salamandras fora da lei, que sejam amaldi-çoadas e banidas do nosso mundo.

Que seja criada uma Liga das Nações contra as salamandras! Toda a humanidade deve estar preparada para defender

sua existência de armas nas mãos. Que seja convocada, por iniciativa da Sociedade das Nações, do rei da Suécia ou do papa de Roma, uma conferência mundial de todos os países civilizados para criar uma União Mundial ou, pelo menos, uma sociedade de nações cristãs contra as salamandras. Es-tamos num momento crítico em que, sob a terrível pressão do perigo salamândrico e da responsabilidade humana, será possível conseguir o que a Guerra Mundial não conseguiu, apesar de suas incontáveis vítimas: organizar os Estados Uni-dos do Mundo. É o que Deus quer! Se isso for atingido, então as salamandras não terão vindo ao mundo em vão. Serão um instrumento usado por Deus.

R

Esse panfleto patético causou grande sensação nas mais amplas camadas do público. As senhoras de idade estavam de acordo, sobretudo no se referia ao começo de uma decadência moral sem precedentes. Por outro lado, as colunas de economia dos jornais afirmavam, principalmente, que era impossível deixar de atender às encomendas das salamandras, porque isso leva-ria a uma grande queda da produção e a uma forte crise de vários setores industriais. O mesmo acontecia na agricultura,

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que produzia grandes quantidades de milho, batatas e outros produtos agrícolas para alimentar as salamandras. “Se o nú-mero de salamandras diminuir, cairão desastrosamente os pre-ços dos produtos alimentícios e os camponeses ficarão à beira da ruína.” As centrais sindicais de trabalhadores chamavam o senhor X de reacionário e declaravam que não permitiriam que fosse suspensa a entrega de mercadorias às salamandras. “Agora que a classe trabalhadora está atingindo o pleno em-prego e conquistando bônus de desempenho, o senhor X quer tirar o pão de suas mãos. Os operários se solidarizam com as salamandras e rechaçam qualquer tentativa de piorar seu nível de vida e de entregá-las, arruinadas e indefesas, às mãos do capitalismo.” Em relação à criação de uma Liga das Nações contra as Salamandras, todos os centros políticos importantes se manifestaram contra. Diziam:

Já temos, de um lado, a Sociedade das Nações, e, de outro, a Convenção de Londres, na qual os Estados marítimos se comprometeram a não equipar suas salamandras com armas pesadas. Não é coisa fácil pedir uma ação de desarmamento a um país que não tenha segurança absoluta de que outra potência marítima não continue armando suas salamandras, aumentando assim seu poder à custa do vizinho. Portanto, nenhum país ou continente pode obrigar suas salamandras a imigrar para outro lugar, simplesmente porque com isso aumentariam, por um lado, as vendas industriais e agrícolas, e, por outro, a capacidade de defesa e ataque dos outros países e continentes.

Surgiram muitas objeções como essas, e cada homem com um pouco de consciência era obrigado a considerá-las.

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Mas, apesar de tudo, o panfleto X adverte não deixou de ter um profundo efeito. Em quase todos os países foi ganhan-do terreno um movimento populista contra as salamandras. Fundaram-se associações para a liquidação das salamandras, clubes antissalamandrianos, comitês para a salvação do gêne-ro humano e muitas outras organizações desse tipo. Os dele-gados salamandras de Genebra foram insultados quando se dirigiam à milésima ducentésima décima terceira reunião da Comissão para o Estudo da Questão das Salamandras. Nas cercas de madeira das costas marítimas foram pintados slogans ameaçadores, como “Morte às salamandras!”, “Fora, salaman-dras!” e semelhantes. Muitas salamandras foram apedrejadas e nenhuma se atrevia a pôr a cabeça para fora da água antes que a noite chegasse. No entanto, elas não fizeram nenhuma demonstração de protesto e nenhum ato de represália. Eram, simplesmente, invisíveis, pelo menos durante o dia, e a gente que olhava através das valas protetoras via apenas o mar infi-nito e agitado. “Vejam esses bichos”, diziam as pessoas com ódio, “nem sequer se exibem!”

E, no meio desse silêncio angustiante, ressoou de repente o chamado Terremoto de Louisiana.

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VII

o tERREMoto DE LoUiSiANA

Naquele dia — 1 da madrugada de 11 de novembro — foi sentido em Nova Orleans um brusco movimento de terra. Al-guns casebres do distrito negro desabaram e as pessoas, toma-das pelo pânico, correram às ruas. Mas o tremor não se repetiu. Ouviu-se apenas um zumbido e um choque furioso, seguido de um curto ciclone que quebrou as janelas e varreu os tetos dos becos dos negros. Algumas dezenas de pessoas morreram. Depois disso, começou a cair uma chuva de lama.

Enquanto os bombeiros de Nova Orleans corriam para socorrer as áreas mais prejudicadas, chegavam telegramas de Morgan City, Plaquemine, Baton Rouge e Lafayette. “S.O.S.! Enviem imediatamente pelotões de salvamento! O terremoto e o ciclone nos varreram pela metade. O dique do Mississippi está prestes a ceder. Preparem imediatamente sapadores, am-bulâncias e todos os homens capazes de realizar qualquer tra-balho de ajuda.” De Fort Livingstone chegou uma mera nota lacônica: “Alô, vocês também receberam um presentinho?” Depois chegou uma mensagem de Lafayette: “Atenção! Aten-ção! New Siberia foi a área mais atingida pelo terremoto e o ci-clone. Parece que foram interrompidas todas as comunicações entre Iberia e Morgan City. Mandem auxílio para lá!” Morgan City telefonou de volta: “Não temos contato com New Iberia.

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Todas as estradas e linhas férreas foram destruídas. Enviem barcos e aviões a Vermillion Bay. Não precisamos mais de nada. Temos cerca de trinta mortos e cem feridos.” Logo de-pois chegou um telegrama de Baton Rouge: “Temos notícias de que a coisa está pior em New Iberia. Enviem ajuda a New Iberia. Precisamos apenas de mão de obra, mas rápido! Há perigo de rompimento dos diques. Estamos fazendo tudo o que podemos.” Depois: “Alô, alô, Shreveport, Natchitoches, Alexandria, enviem trens de socorro a New Iberia. Alô, alô, Memphis, Winona, Jackson estão enviando trens via Nova Orleans. Todos os automóveis carregam gente para a represa de Baton Rouge.” “Alô, alô, aqui Pascagoula. Estamos com alguns mortos. Precisam de ajuda?”

Carros de bombeiros, ambulâncias e trens de resgate já ha-viam partido para Morgan City, Patterson e Franklin. Depois das 4 da manhã, chegou a primeira notícia, um pouco mais concreta:

O caminho entre Franklin e New Iberia, 7 quilômetros a oeste de Franklin, foi interrompido pela água; parece que o terremoto abriu ali uma fenda profunda que chega à Ver-million Bay e está inundada pelo mar. De acordo com o que se pôde constatar até agora, a falha avança da Vermillion Bay na direção noroeste-oeste e perto de Franklin se desvia para o norte, seguindo para o estuário do Grand Lake. Depois segue de novo para o norte, pela linha Plaquemine-Lafayette, onde acaba em uma velha lagoa. O segundo ramal da fenda une, pelo leste, o Grand Lake e o lago de Napoleonville. O comprimento total da fenda é de cerca de 80 quilômetros e a largura varia de 2 a 11 quilômetros. Parece que o centro do

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terremoto ficava ali. Pode-se dizer que foi uma extraordiná-ria casualidade o fato de essa fenda ter se desviado de todas as povoações maiores. No entanto, o número de vítimas é bastante elevado. Em Franklin choveram 60 centímetros de lama, em Patterson, 45 centímetros. Os habitantes de Atcha-falaya Bay contam que durante o tremor o mar de afastou de repente cerca de 3 quilômetros, retornando logo na forma de uma onda de 30 metros de altura. Teme-se que muita gente tenha morrido no litoral. Ainda não há comunicação com New Iberia.

Ao mesmo tempo, havia chegado a New Iberia, pelo leste, um trem de Natchitoches; as primeiras notícias enviadas pe-las linhas de Lafayette e Baton Rouge eram terríveis. Alguns quilômetros antes de chegar a New Iberia o trem foi obriga-do a parar porque o caminho estava inundado de lama. New Iberia tinha desaparecido, aparentemente sob uma avalanche de lama. Era impossível avançar às escuras e sob uma chuva incessante. Ainda não fora possível estabelecer contato com New Iberia.

Simultaneamente chegaram notícias de Baton Rouge: “Nas margens do Mississippi já trabalham milhares de ho-mens pt se pelo menos parasse de chover pt precisamos de pás e picaretas enviem gente pt mandamos ajuda a Plaquemine a água já ultrapassou o nível das botas daqueles pobres.” Despa-cho de Jackson:

à 1h30 da manhã uma onda do mar atingiu trinta casas não

sabemos o que aconteceu cerca de trinta pessoas foram arras-

tadas precisamente agora acabo de consertar o equipamento o

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edifício dos correios também foi arrastado alô comuniquem a

Minny Lacost que não aconteceu nada comigo só quebrei uma

mão e fiquei sem roupa telegrafem por favor que foi isso que

aconteceu mas o principal é que o transmissor está ok fred

De Port Eads chegaram notícias mais breves:

temos mortos burywood foi arrastada completamente para o mar

Enquanto isso — isso era por volta das 8 da manhã —, voltavam os primeiros enviados aos lugares afetados pelos ter-remotos e ciclones. Toda a costa que vai de Port Arthur (Texas) até para lá de Mobile (Alabama) fora inundada por uma onda gigantesca; por todos os lados se viam casas destruídas ou da-nificadas.

O sudeste da Louisiana (desde a estrada de Lake Charles-Alexandria-Natchez) e o sul do Mississippi (acima da linha Jackson-Hattiesburgo-Pascagoula) estão inteiramente cober-tos de lama. O litoral de Vermillion Bay foi modificado; o mar avança pela terra formando uma nova enseada de 3 a 10 quilômetros de largura que parece um longo fiorde e vai ziguezagueando terra adentro até perto de Plaquemine. Pa-rece que New Iberia está destruída, mas é possível ver muita gente tirando a lama das casas e das estradas. Não foi possível aterrissar. O maior número de vítimas está, certamente, nas costas marítimas. Diante de Point au Fer está afundando um barco que parece ser mexicano. Junto às Chandeleur Islands o mar está coberto de ruínas. A chuva continua em toda a região. Há boa visibilidade.

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A primeira edição extra dos jornais de Nova Orleans saiu, naturalmente, depois das 4 da manhã. Durante o dia aumen-taram as edições de última hora cheias de detalhes; às 8 horas da manhã foram publicadas as primeiras fotografias das zonas atingidas e os mapas das novas enseadas. Às 8h30 os jornais estamparam uma entrevista com o Dr. Wilbur R. Brownell, proeminente sismólogo da Universidade de Memphis, na qual ele explicava os motivos do terremoto em Louisiana. Declarou o famoso sábio:

Por enquanto não podemos tirar conclusões definitivas, mas parece que esses tremores não têm nenhuma relação com as intensas atividades da região vulcânica do centro do México, que fica exatamente diante da região afetada. Pelo contrário, os terremotos de hoje parecem ser de origem tectônica, ou seja, produzidos pela pressão da massa montanhosa: de um lado, as Montanhas Rochosas e Sierra Madre, e do outro, o trecho dos Apalaches da vasta depressão do golfo do México, cuja continuação é a ampla depressão localizada nas proxi-midades do delta do Mississippi. A fenda que vem agora de Vermillion Bay é apenas um novo e quase imperceptível frag-mento, um pequeno episódio nos afundamentos geológicos que surgiram no golfo do México e no mar do Caribe, com seu arco nas Antilhas, tanto nas Pequenas como nas Grandes. Não há dúvida de que os assentamentos das camadas geoló-gicas continuarão e produzirão novos terremotos, rupturas e fendas. Não sabemos se a falha de Vermillion é, apenas, uma nova ouverture que revitaliza o processo tectônico, cujo centro está, precisamente, no golfo do México. Nesse caso, talvez sejamos testemunhas de uma gigantesca catástrofe que

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poderá converter um quinto do território dos Estados Unidos em fundo do mar. Por outro lado, se isso acontecer, podemos contar que o fundo do mar ao redor das Antilhas ou ainda mais ao leste, ali onde os antigos mitos apontavam a submer-sa Atlântica, começará a se elevar.

Continuava a respeitada autoridade científica, em tom consolador:

No entanto, não é necessário temer que nos lugares atingi-dos apareçam manifestações vulcânicas. As supostas crateras expelidoras de lama não passam de erupção de gases lodosos produzidos, seguramente, na fenda de Vermillion. Não se-ria estranho que na bacia do Mississippi fossem encontradas imensas borbulhas de gás que, ao entrarem em contato com o ar, podem explodir e com elas arrastar centenas de milhares de toneladas de água e lama. Mas, para poder dar uma expli-cação definitiva, será preciso analisar os resultados de outras pesquisas.

Enquanto as impressões de Brownell rodavam nos cilin-dros das impressoras, o governador do estado da Louisiana recebia o seguinte telegrama de Fort Jackson:

sentimos perdas vidas humanas pt temos tentado desviar suas

cidades mas não havíamos contado com expansão e choque

águas marinhas durante explosão pt encontramos 346 vítimas

em toda a costa pt expressamos nossos mais sentidos pêsa-

mes pt chefe salamander pt alô alô aqui fred dalton central

correios fort jackson neste momento acabam de sair daqui

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três salamandras que puseram há dez minutos telegrama nos

correios e me apontaram suas pistolas mas já foram embora

essas horríveis bestas pagaram e correram para a água perse-

guidas apenas pelo cão do farmacêutico não deveriam andar

pela cidade afora isso não há novidades recordações a minny

lacost beijos do telegrafista fred dalton

O governador do estado de Louisiana ficou um bom tem-po inclinado sobre este telegrama, movendo hesitante a cabeça. “Esse Fred Dalton deve ser algum piadista”, pensou, “será me-lhor se não entregar isso aos jornais.” E guardou o telegrama.

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VIII

o CHiEf SALAMANDER iMPõE CoNDiÇõES

Três dias depois do terremoto de Louisiana chegou a notícia de outra catástrofe geológica, dessa vez na China. Depois de um gigantesco e tonitruante terremoto, abriu-se uma fenda nas costas marítimas da província de Kiangsu, ao norte de Nanking, aproximadamente entre a desembocadura do Yang-tse e o velho leito do Hwan-ho. Essa fenda foi inundada pelo mar e se uniu aos grandes lagos de Pan-yun e Huns-tsu, entre as cidades de Hwaingan e Fugyang.

Tudo leva a crer que, devido ao terremoto, o Yang-tse saíra de seu leito e corria em direção ao lago Tai e a Hang-chou. No momento não era possível calcular as vítimas. Centenas de mi-lhares de pessoas fugiam para as províncias do norte e do sul. Os navios de guerra japoneses receberam ordens de navegar para as costas atingidas pelo terremoto.

Embora os terremotos de Kiangsu tivessem superado em muito, pela extensão, a catástrofe de Louisiana, foi-lhes dedicada uma atenção muito menor, porque todos já estão acostumados às calamidades da China, onde, ao que parece, não davam importância a alguns milhões de vida a mais ou a menos. Além disso, foi comprovado cientificamente que se tratava apenas de um terremoto tectônico, em conexão com

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as profundas fossas marinhas próximas das ilhas Riukiu e das Filipinas. No entanto, três dias depois os sismógrafos europeus registraram novos tremores de terra, cujo epicentro parecia estar em algum lugar do arquipélago de Cabo Verde. Notí-cias mais detalhadas garantiam que as costas de Senegâmbia, ao sul de San Luis, haviam sido açoitadas por fortes ventos. Uma profunda rachadura inundada pelo mar surgiu entre as localidades de Lampul e Mboro e avançou até Merinaghen e Dimarske. Segundo testemunhas oculares, brotou da terra, acompanhada por um ruído atroador, uma grande coluna de fogo e vapor que espargiu areia e pedras em uma grande cir-cunferência. Em seguida, foi ouvido o tempestuoso ruído do mar que avançava pela gretas abertas. O número de vítimas era desconhecido até aquele momento.

Esse terceiro terremoto despertou uma espécie de pânico. Será que está despertando uma atividade vulcânica da terra?, perguntaram os jornais. A crosta terrestre começa a se que-brar, anunciaram os vespertinos. Os experts opinaram que

a fenda senegambesa talvez tivesse surgido por causa da erup-ção de veios vulcânicos ligados ao vulcão de Pico, na ilha do Fogo, no arquipélago de Cabo Verde. Esse vulcão estivera em erupção no ano de 1847, e desde então era considerado extinto. O terremoto da África ocidental não tinha, pois, ne-nhuma relação com os movimentos sísmicos de Louisiana e Kiangsu, que eram, seguramente, de origem tectônica.

Mas, aparentemente, as pessoas pouco se importavam que a terra rachasse por motivos tectônicos ou vulcânicos. A rea-lidade é que, nesse dia, todas as igrejas ficaram cheias de fiéis

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mergulhados em orações. Em muitas regiões elas tiveram de ficar abertas durante toda a noite.

À 1 da manhã do dia 20 de novembro, os aparelhos de radioamadores da maior parte da Europa foram atingidos por fortes interferências, como se uma nova emissora, muito po-tente, estivesse transmitindo da longitude 203. Ouvia-se um tipo de ruído de máquinas ou de ondas marinhas. No meio dessa espécie de sussurro interminável, foi ouvida de repente uma voz terrível e cavernosa (todos a descreveram da mesma maneira: oca, grasnante, como se fosse uma voz artificial e, além do mais, amplificada consideravelmente por um mega-fone); e essa voz de rã clamava excitada: “Hello, hello, hello! Chief Salamander speaking. Stop broadcasting, you men! Stop your broadcasting! Hello! Chief Salamander speaking!” Depois outra voz, estranhamente oca, perguntou: “Ready? Ready?” Nisso se ouviu um som como o de quando se conecta algo e de novo uma voz estranha disse: “Attention! Attention! Atten-tion!” “Hello!” “Now!”

Ouviu-se, então, uma voz rouca, cansada, mas que, apesar disso, ressoava majestosamente no meio do silêncio da noite:

Hello, vocês, homens! Louisiana, Kingsu, Senegâmbia! Senti-mos muito as perdas de vidas humanas. Não queremos fazer vítimas desnecessárias. Só desejamos que vocês evacuem os litorais nos lugares que definiremos previamente. Se fizerem assim, sensíveis desgraças serão evitadas. Na próxima vez lhes avisaremos com pelo menos 14 dias de antecedência onde pretendemos ampliar nossos mares. Até agora fizemos meros ensaios técnicos. Seus explosivos funcionaram de maneira es-plêndida. Muito obrigado.

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Hello, vocês, homens! Mantenham a calma. Não temos objetivos hostis em relação a vocês. Mas precisamos de mais água, de mais bancos de areia. Somos muitas. Seus litorais já não nos bastam. Por isso teremos que destruir seus continen-tes. Serão usados para a construção de baías e ilhas. Assim poderemos multiplicar por cinco a extensão dos litorais do mundo. Vamos construir novos bancos de areia. Não po-demos viver nas profundezas dos mares. Vamos precisar do material de seus continentes para rechear o fundo dos ma-res. Não somos guiados pelo interesse de prejudicá-los, mas somos muitas. Por ora aconselhamos vocês a se mudar para as cidades do interior. Poderão viver nas montanhas, porque serão derrubadas por último.

Vocês nos procuraram, distribuíram a gente pelo mun-do. Pois agora estamos aqui! Queremos manter boas relações com vocês. Queremos que nos entreguem o aço de que pre-cisamos para construir nossas brocas, picaretas e pás. Que nos forneçam torpedos. Que trabalhem para a gente! Sem sua ajuda, não poderemos acabar com os velhos continen-tes. Hello, homens! O Chief Salamander, em nome de todas as salamandras do mundo, lhes oferece a oportunidade de colaborar. Trabalharão conosco na destruição de seu mundo. Muito obrigado.

A cansada voz grasnante emudeceu, e ouviu-se apenas o ruído de alguma máquina ou do mar. “Hello, Hello”, foi ouvi-da de novo a voz cavernosa, agora vamos retransmitir música ligeira de seus discos fonográficos. Tocaremos A marcha dos tritões, do filme Poseidon.”

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Os jornais classificaram essa transmissão noturna de “piada grosseira” de alguma emissora clandestina, mas, apesar disso, milhões de pessoas esperaram no dia seguinte, ao lado de seus aparelhos de rádio, que aquela terrível, nervosa e cavernosa voz voltasse a se manifestar. Foi ouvida novamente à 1 hora acompanhada de fortes e ruidosos zumbidos. “Good evening, you people”, grasnou alegre. “Primeiramente vamos oferecer ‘A dança das Salamandras’, de sua opereta Galatea.” Quando a cortante e indecorosa musiqueta acabou de soar, alçou-se de novo a terrível voz com certo sotaque de alegria.

Hello, homens! Um torpedo acaba de afundar o canhoneiro britânico Erebus, que tentava destroçar nossa emissora no ocea-no Atlântico. A tripulação afundou o navio. Hello! Chamamos a atenção do governo britânico! O navio Amenhotep, de Port Said, negou-se a desembarcar uma encomenda de explosivos em nosso porto de Makallahu. Segundo disse, recebeu or-dens para suspender a entrega de explosivos. Naturalmente, o mencionado navio foi torpedeado. Aconselhamos o governo britânico a suspender essa ordem antes do meio-dia de ama-nhã, radiograficamente; caso contrário, serão torpedeados e afundados os navios Winnipeg, Manitoba, Ontário e Que-bec, que transportam carregamentos de trigo do Canadá para Liverpool.

Hello, chamamos a atenção do governo francês. Chame os cruzadores que navegam para Senegâmbia. Precisamos am-pliar ali, ainda mais, a nova enseada recém-construída. Chief Salamander ordenou que transmitisse aos dois governos sua

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vontade inquebrantável de estabelecer relações amistosas com eles. Aqui terminam as notícias. Agora retransmitiremos sua canção Salamandra, valsa erótica.

Na tarde do dia seguinte, os navios Winnipeg, Manitoba, Ontário e Quebec foram afundados ao sudoeste de Mizen Head. O mundo experimentou uma onda de angústia. À noi-te, a BBC transmitiu uma notícia dizendo que o governo de Sua Majestade Britânica proibira a entrega de qualquer tipo de produtos alimentícios, químicos, maquinaria, armas e metal às salamandras. À noite, à 1 hora em ponto, grasnou na rádio uma voz excitada: “Hello, hello, Chief Salamander is going to speak.” E de repente se ouviu uma voz cansada e colérica:

Hello, homens! Vocês acreditam que vamos deixar que nos matem de fome? Cessem imediatamente com suas besteiras! Tudo o que tentarem se voltará contra vocês. Em nome de todas as salamandras do mundo, chamo a Grã-Bretanha. De-claramos, desde agora, um bloqueio sem quartel a todas as ilhas britânicas, à exceção do Estado livre da Irlanda. Vamos fechar o canal da Mancha. Vamos fechar o canal de Suez. Va-mos fechar o estreito de Gibraltar. A todos os navios: todos os portos ingleses já estão bloqueados! Todos os navios ingleses serão torpedeados, não importa onde estiverem. Hello, Ale-manha. Multiplique por dez o fornecimento de explosivos. Devem ser entregues imediatamente no depósito principal de Skagerak. Hello, França. Entregue imediatamente o pe-dido de torpedos submarinos ao forte C3, BFF e Oeste 5. Hello, homens! Advirto-os de novo. Se reduzirem a entrega de provisões, nós mesmas as tomaremos de seus navios. É o último aviso!

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A voz fatigada baixou até ser somente um grasnido quase incompreensível.

“Hello, Itália! Prepare-se para a evacuação das regiões de Veneza, Pádua e Udine. É o último aviso, homens! Já fizeram muita besteira.” Seguiu-se uma longa pausa durante a qual se ouvia o sussurro de um mar que parecia ser negro e frio. E de novo falou a voz cavernosa, mas alegre: “Agora vamos tocar, de suas gravações musicais, o último sucesso: ‘Triton-Trott.’”

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IX

A CoNfERÊNCiA DE vADUZ

Era uma guerra estranha, se é que é possível chamá-la assim, porque não existia nenhum Estado das Salamandras nem fora reconhecido um governo salamândrico que pudesse oficial-mente declarar-se inimigo. O primeiro país que se viu em guerra com as salamandras foi a Grã-Bretanha. Logo nas pri-meiras horas as salamandras afundaram quase todos os seus navios ancorados nos portos. Era um problema insolúvel. Muitas embarcações que estavam naquele momento em al-to-mar desfrutavam uma segurança precária, particularmente se permanecessem afastadas das costas. E assim foi salva tem-porariamente a parte da Marinha inglesa que rompeu o blo-queio das salamandras em Malta e se concentrou nas águas profundas do mar Jônico. No entanto, essas unidades foram perseguidas por pequenos submarinos das salamandras e afun-dadas uma depois da outra. A Grã-Bretanha perdeu, em seis semanas, quatro quintos de seus navios, fosse qual fosse sua tonelagem.

Mais uma vez na história John Bull teve a oportunidade de demonstrar sua famosa teimosia. O governo de Sua Majestade não negociava com as salamandras e não retirava a ordem de suspensão de entrega de mercadorias. “Os gentlemen ingleses”, declarou o primeiro-ministro inglês a toda a nação, “protegem

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os animais, mas não negociam com eles.” Em poucas semanas, a falta de alimentos atingiu as ilhas britânicas. As crianças eram as únicas a receber, diariamente, uma fatia de pão e algumas colherinhas de chá ou de leite. A nação britânica suportou a situação com estoicismo exemplar, embora chegasse ao extre-mo de matar até seus cavalos de corrida. O príncipe de Gales foi o primeiro a sulcar os campos do Royal Golf Club para que fossem plantadas cenouras destinadas aos orfanatos ingleses. Batatas foram semeadas nos campos de tênis de Wimbledon; cereais foram cultivados nas pistas de Ascot, onde eram pro-movidas as famosas corridas. “Sofreremos os maiores sacrifí-cios”, asseverou o chefe do Partido Conservador no Parlamen-to, “mas não abriremos mão da honra britânica.”

O bloqueio das costas britânicas era total e por isso o transporte aéreo se tornou o único caminho viável para o abas-tecimento da Inglaterra e a manutenção de suas relações com o exterior. “Teremos 100 mil aviões”, declarou o ministro da Aeronáutica, e tudo o que tinha mãos e pernas começou a tra-balhar a serviço desse objetivo. Providências febris foram ado-tadas para que fosse possível produzir diariamente mil aviões. Mas aí intervieram os governos das outras potências europeias, protestando de modo enérgico contra a violação do equilíbrio aéreo. O governo britânico teve de abandonar seu programa aéreo e comprometer-se a não construir mais de 20 mil aviões, e, ainda assim, em cinco anos. Não restou outro remédio a não ser continuar passando fome ou pagar preços altíssimos pelos alimentos, fornecidos por aviões de outros países. Uma libra de pão custava dez xelins, um par de ratazanas, um guinéu, uma latinha de caviar, 25 libras esterlinas. Em resumo: era uma época de ouro para o comércio industrial e agrícola do

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continente. Como a Marinha de guerra fora destruída com-pletamente logo no começo, as operações militares contra as salamandras eram efetuadas apenas em terra firme ou pelo ar. O Exército terrestre disparava seus canhões e fuzis na água sem que, pelo visto, causasse alguma perda significativa às salaman-dras. Êxito um pouco maior tinham as bombas aéreas lançadas ao mar. As salamandras responderam disparando seus canhões submarinos contra os portos britânicos, convertidos em mon-tanhas de ruínas. Londres foi bombardeada da desembocadura do Tâmisa. Então os chefes do Exército tentaram envenenar as salamandras com bactérias, petróleo e produtos corrosivos lan-çados ao Tâmisa e a algumas baías. As salamandras responde-ram lançando uma nuvem de gases contra as costas britânicas, em uma extensão de 120 quilômetros. Era apenas uma de-monstração, mas foi o suficiente. Pela primeira vez na história o governo britânico se viu obrigado a pedir a outras potências que tomassem providências, apelando à proibição do uso de gases na guerra.

Uma noite depois desses acontecimentos, ouviu-se na rá-dio a voz cavernosa, furiosa e pesada de Chief Salamander:

Hello, homens! A Inglaterra deve parar de fazer besteiras! Se envenenar nossas águas, envenenaremos seu ar. Usamos apenas suas próprias armas. Não somos bárbaros, não quere-mos lutar contra os homens. Queremos apenas viver em paz. Brindamos à paz. Vocês nos fornecerão seus produtos e nos venderão seus continentes. Estamos dispostos a pagar bem. Estamos oferecendo algo mais do que a paz: o comércio. Ofe-recemos ouro por suas terras. Hello! Estou me dirigindo ao governo da Grã-Bretanha. Informe o preço que deseja pela

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parte sul de Linconshire, junto a Wash Bay. Dou-lhe três dias para decidir. Até lá, suspenderei todos os atos hostis, à exce-ção do bloqueio.

No mesmo instante cessou o ruído dos canhões submari-nos nas costas britânicas. Os canhões terrestres também emu-deceram. Era um silêncio estranho, quase pavoroso. O gover-no inglês declarou no Parlamento que não estava disposto a negociar com as salamandras. Os habitantes de Wash Bay e Lynn Deep foram avisados de que, provavelmente, as sala-mandras desfechariam um ataque e seria melhor que se trasla-dassem para o interior do país. No entanto, os ônibus, trens e automóveis disponíveis levaram apenas as crianças e algumas mulheres. A maioria dos homens permaneceu em seus postos. Por mais que se esforçassem, não podiam compreender que os ingleses poderiam perder seu território. Um minuto depois de terminada a trégua de três dias, ouviu-se o primeiro disparo. Era a bala de um canhão inglês disparada pelo Royal North Lancashire Regiment enquanto tocava a marcha do regimen-to, A rosa encarnada. Em seguida foi ouvida uma explosão in-descritível. A foz do rio Nen afundou até Wisbeck e foi inun-dada pelo mar de Wash Bay. Entre outros, desabaram na água o castelo de Holland, a famosa abadia de Wisbeck, a taverna George and Dragon e outros edifícios históricos.

No dia seguinte, o governo de Sua Majestade Britânica de-clarou no Parlamento, respondendo a apelações de deputados, que, militarmente, fora feito todo o possível para defender as costas britânicas; que não estavam descartados ataques mais amplos ao território inglês; que, apesar disso, o governo de Sua Majestade não podia negociar com um inimigo que não

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respeitava a população civil, nem mesmo as mulheres (apro-vação).

“Hoje não se trata apenas do destino da Inglaterra, mas de todo o mundo civilizado. A Grã-Bretanha está disposta a levar em conta garantias internacionais que mitiguem estes terríveis e bárbaros ataques que ameaçam a própria humanidade.”

Alguns domingos mais tarde, foi realizada em Vaduz uma conferência mundial das nações.

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Foi realizada em Vaduz, nos Altos Alpes, porque não haveria perigo de que as salamandras chegassem lá e porque já se ha-viam refugiado naquela região a maioria da gente abastada e as mais destacadas personalidades dos países marítimos. De comum acordo, a conferência começou a tratar imediatamen-te de todas as questões mundiais da atualidade. Em primeiro lugar, todas as nações (à exceção da Suíça, Abissínia, Afeganis-tão, Bolívia e outros países desprovidos de mar) se recusaram a reconhecer as salamandras como uma potência de guerra independente, principalmente porque, se fosse assim, as sala-mandras de cada país poderiam se considerar parte do Estado Salamândrico. Não era improvável que o reconhecimento das salamandras como Estado as levasse a exigir direitos sobre to-das as águas e litorais que habitavam. Devido a isso, era legal e praticamente impossível declarar guerra às salamandras ou exercer sobre elas qualquer outro tipo de pressão internacio-nal. O direito de cada Estado se restringia à tomada de medi-das em relação às salamandras de sua propriedade; tratava-se de uma questão puramente interna. Não se podia, portanto,

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falar de medidas coletivas, diplomáticas ou militares contra as salamandras. A única ajuda internacional que poderia ser prestada aos países atacados pelas salamandras era a concessão de empréstimos estrangeiros voltados a sua defesa.

Em seguida, a Inglaterra propôs que todos os países se comprometessem, pelo menos, a deixar de vender armas e ex-plosivos às salamandras. Depois de examinada em detalhes, a proposta foi rejeitada.

Em primeiro lugar, porque compromisso semelhante já foi acordado na Convenção de Londres. Em segundo, porque não se pode proibir a nenhum Estado que forneça a suas salaman-dras equipamentos técnicos e armas para a defesa de suas cos-tas enquanto isso for considerado necessário. E, em terceiro, porque, naturalmente, interessa aos Estados marítimos manter boas relações com os habitantes do mar. Por essas razões, consi-dera-se conveniente não adotar no momento nenhuma medi-da que possa ser vista pelas salamandras como represália.

Por outro lado, todos os países concordaram em vender ar-mas e explosivos também aos países que haviam sido atacados pelas salamandras.

Em sessão secreta, foi aceita a proposta colombiana de que se entabulassem, pelo menos, negociações não oficiais com as salamandras. Chief Salamander seria convidado a enviar re-presentantes plenipotenciários à conferência. O representante da Grã-Bretanha se opôs categoricamente, declarando que não se reuniria com nenhuma salamandra. Por fim, foi aceito que passasse, por questões de saúde, alguns dias em Engadine. Na-quela noite foi enviado, em código oficial de todas as potên-

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cias marítimas, um convite a Sua Excelência Chief Salamander para que nomeasse dois delegados à conferência de Vaduz. A resposta foi rouca. “Sim, dessa vez ainda iremos ao seu encon-tro; mas, na próxima, vocês virão falar comigo debaixo das águas do mar.” Em seguida veio o anúncio oficial: “Os repre-sentantes das salamandras chegarão à estação de Buchs depois de amanhã à noite, no Orient Express.”

Foram reservados os banheiros mais luxuosos de Vaduz, e um trem especial trouxe, em cisternas, água do mar para os de-legados salamandras. À noite, na estação de Buchs, teria de ser celebrada a recepção oficial. Estavam presentes os secretários das delegações, representantes das autoridades locais e cerca de duzentos jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas.

O Orient Express entrou na estação exatamente às 6h25. Do vagão-restaurante saíram e desceram pelo tapete verme-lho três senhores altos, elegantes, e, atrás deles, uns quantos secretários perfeitamente normais, carregando pesadas pastas. “E onde estão as salamandras?”, perguntou alguém em voz abafada. Duas ou três personalidades oficiais se adiantaram in-seguras ao encontro daqueles três senhores. O primeiro deles disse rápida e pausadamente:

— Somos os delegados das salamandras. Sou o professor Dr. Van Dott, de Haia. Maître Rosso Castelli, advogado de Paris. Dr. Manoel Carvalho, advogado de Lisboa.

Os senhores se inclinaram e se apresentaram.— Então os senhores não são salamandras... — suspirou

o secretário francês. — É claro que não — disse o Dr. Rosso Castelli. — So-

mos seus advogados. Perdão, mas certamente estes senhores gostarão de nos filmar.

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Em seguida, a sorridente delegação foi fotografada e fil-mada. Os secretários presentes também exibiam sua satisfa-ção. Era um ato de decência das salamandras se terem feito representar por seres humanos. É mais fácil se entender com os homens. E, sobretudo, não haveria situações sociais desa-gradáveis.

Naquela mesma noite, foi realizada a primeira reunião com a delegação das salamandras. Na pauta, a questão de co-mo seria possível restabelecer a paz entre as salamandras e a Grã-Bretanha. O professor Van Dott pediu a palavra.

— Não resta dúvida de que as salamandras foram ataca-das pela Grã-Bretanha. O canhoneiro inglês Erebus atacou em alto-mar o navio-transmissor das salamandras; o almirantado inglês interrompeu as pacíficas relações comerciais existentes ao proibir o navio Amenhotep de desembarcar a carga de ex-plosivos encomendada; e, ao vetar qualquer tipo de comércio com as salamandras, levou-as a bloquear seus mares e costas. As salamandras não puderam denunciar esses fatos nem em Haia, porque a convenção de Londres não lhes deu sequer o direito de apresentar suas queixas em Genebra, já que não foram reconhecidas como membros da Sociedade das Nações. Assim, pois, não lhes restou outro remédio a não ser se defen-derem sozinhas. Apesar de tudo isso, Chief Salamander está disposto a suspender os atos bélicos, naturalmente diante de certas condições: 1. A Grã-Bretanha apresentará desculpas às salamandras pelos fatos acima mencionados; 2 — Serão sus-pensas todas as proibições de entrega de encomendas às sala-mandras; 3 — Como parte prejudicada, as salamandras en-trarão, sem nenhuma indenização, na zona da foz do Punjab, onde construirão novos litorais e baías.

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Em seguida, o presidente da conferência declarou que comunicaria essas condições a seu distinto amigo, o ausente delegado da Grã-Bretanha. Não ocultou seu temor de que tais condições não fossem facilmente aceitas. Tampouco se podia esperar que propiciassem um motivo para novas negociações.

Depois, seguindo a ordem do dia, a França protestou con-tra as explosões promovidas pelas salamandras nas costas da Senegâmbia, uma clara interferência em território colonial francês. O delegado das salamandras, o famoso advogado pa-risiense Dr. Julien Rosso Castelli, pediu a palavra.

— Vocês precisam provar o que afirmam — disse. — Grandes especialistas mundiais em sismologia atestaram que os tremores de terra ocorridos na Senegâmbia tiveram origem vulcânica e estão ligados a antigas atividades do vulcão Pico, da ilha do Fogo. Aqui — exclamou o Dr. Rosso, batendo com a mão na sua pasta — estão as conclusões científicas. Se os senhores têm provas de que o terremoto da Senegâmbia foi produzido pelas atividades de meus clientes, apresentem-nas, estamos esperando.

O delegado belga Creux:— Seu Chief Salamander foi quem declarou que tudo fora

obra das salamandras!Professor Van Dott:— Não foi um pronunciamento oficial. Maître Rosso Castelli:— Estamos autorizados a desmentir seu discurso. Peço

que sejam ouvidos os experts técnicos; eles devem dizer se é possível abrir na crosta terrestre, de maneira artificial, fendas de 67 quilômetros. Proponho-lhes que façam uma experiên-cia nesse sentido. Senhores, enquanto não existirem provas,

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falaremos de atividades vulcânicas. De qualquer forma, Chief Salamander está disposto a comprar do governo francês os golfos marítimos formados em consequência do terremoto de Senegâmbia. Eles serão destinados à construção de novas resi-dências para salamandras. Temos plenos poderes para negociar o preço com o governo francês.

O delegado francês, ministro Deval:— Se isso equivale a uma espécie de indenização pelos da-

nos causados, estamos dispostos a considerar a proposta.Maître Rosso Castelli:— Muito bem. O governo das salamandras pede que seja

incluído no contrato de venda o território de Landes, desde a foz do Gironde até Bayonne, com uma extensão de 6.720 quilômetros quadrados. Em outras palavras: o governo das sa-lamandras está disposto a comprar da França essa parte de seu território sul.

Ministro Deval (nascido em Bayonne e deputado por essa região):

— Para que suas salamandras transformem em mar o solo da França? Nunca! Nunca!

Maître Rosso Castelli:— A França se arrependerá dessas palavras, senhor. Hoje

ainda estamos falando sobre preço de venda.Depois disso, a sessão foi interrompida. O tema principal da segunda reunião foi uma grande ofer-

ta internacional às salamandras para que, em vez de destroçar antigos continentes tão densamente povoados, elas mesmas construíssem novos litorais e ilhas. Teriam como garantia um substancial crédito. Os novos continentes e ilhas construídos

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dessa forma seriam depois considerados territórios indepen-dentes administrados pelas salamandras.

O Dr. Manoel Carvalho (grande advogado lisboeta) agra-deceu a oferta e ficou de transmiti-la ao governo das salaman-dras. Acrescentou que até uma criança sabia que é muito mais demorado e complicado construir novos continentes do que destruir os antigos.

— Nossos clientes precisam urgentemente de novos lito-rais e baías — continuou. — Para eles, essa é uma questão de vida ou morte. Seria melhor para a humanidade aceitar a ge-nerosa oferta de Chief Salamander, hoje disposto a comprar o mundo dos seres humanos em vez de tomá-lo à força. Nossos clientes encontraram uma forma de extrair o ouro presente na água do mar. Devido a isso, dominam espaços quase incomen-suráveis. Podem pagar muito bem pelo mundo de vocês. Sim, um preço magnífico. Os senhores devem levar em conta que, para eles, o preço do mundo cairá cada vez mais ao longo do tempo, sobretudo se acontecerem, como é de se supor, outras catástrofes tectônicas ou vulcânicas, muito mais extensas do que aquelas que testemunhamos até agora, que reduziriam de modo considerável a atual extensão dos continentes. Quando acima da superfície dos mares restarem apenas os cumes das montanhas, ninguém dará um vintém por elas. Estou aqui, naturalmente, como representante e conselheiro legal das sa-lamandras — continuou o Sr. Carvalho —, e devo defender seus interesses; mas sou também um homem, e o bem-estar da humanidade me interessa tanto quanto aos senhores. Por isso eu lhes aconselho, não, suplico, que vendam os continentes enquanto ainda há tempo. Podem vendê-los em conjunto ou divididos por países. Chief Salamander, cuja magnanimidade

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e ideias avançadas são conhecidas de todos, compromete-se a evitar, de todas as maneiras, que haja vítimas humanas nas futuras mudanças do mundo, extremamente necessárias. A inundação dos continentes será feita de modo gradual, de for-ma a evitar o pânico ou calamidades desnecessárias.

“Temos poderes para começar as negociações, seja em uma conferência solene de todas as nações ou com os diferentes países em particular. A presença de advogados tão destacados como o professor Van Dott e maître Julien Rosso Castelli deve servir como garantia de que, ao lado dos interesses de nossos clientes, estaremos de braços dados com vocês para defender aquilo que é mais caro a todos nós: a cultura humana e o bem-estar de toda a humanidade.”

Em meio a uma grande tensão, surgiu a seguinte propos-ta: as salamandras teriam à sua disposição a China central e poderiam inundá-la, e, em troca, se comprometeriam a pre-servar para sempre os litorais dos Estados europeus e de suas colônias.

Dr. Rosso Castelli:— Para sempre talvez seja excessivo. Digamos melhor: por

12 anos.Professor Van Dott:— A China central é muito pouco. Digamos: as províncias

de Nganhuei, Honan, Kiangsu, Chi-li e Fong Tien.O delegado japonês protestou contra a entrega da provín-

cia de Fong Tien, situada na região sob influência japonesa. O delegado chinês fez uso da palavra, mas, por azar, não foi possível entendê-lo. No salão de reunião reinava uma grande intranquilidade. Já era 1 da madrugada.

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Naquele momento, entrou na sala o secretário da delega-ção italiana e murmurou alguma coisa ao ouvido do delegado italiano, o conde de Tosti. O conde empalideceu, levantou-se, e, sem levar em conta que o delegado da China, o Dr. Ti, ain-da estava falando, exclamou com voz rouca:

— Senhor presidente, peço a palavra. Neste exato momen-to, acabam de me comunicar que as salamandras inundaram há pouco parte de nossa província de Veneza em direção a Portogruaro.

Seguiu-se um silêncio impressionante. Só o delegado chi-nês continuava falando.

— Chief Salamander avisou-os há muito tempo — gru-nhiu o Dr. Carvalho.

O professor Van Dott se mexeu com inquietação e levan-tou a mão.

— Senhor presidente, talvez devêssemos voltar ao assun-to de que estávamos tratando. Temos na pauta a questão da província de Fong Tien. Estamos autorizados a oferecer às au-toridades japonesas uma remuneração em ouro. A questão é a seguinte: o que os países interessados oferecem aos nossos clientes para que acabem com a China?

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Naquele momento, os radioamadores noturnos estavam ou-vindo de novo a emissora das salamandras.

— Os senhores acabam de ouvir, em disco gramofônico, a “Barcarola” dos Contos de Hoffman — grasniu o locutor. — Alô, alô, agora entramos em contato com a Veneza italiana.

E depois se ouviu apenas algo semelhante ao ruído escuro e imenso de águas que avançavam.

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o SR. PovoNDRA ASSUME A CULPA

Quem diria que tantos anos e tanta água passaram pelo rio! O nosso Sr. Povondra nem é mais porteiro da casa de G. H. Bondy! Agora é, digamos assim, um respeitável ancião que pode usufruir com tranquilidade os frutos de sua longa e es-forçada vida, na forma de uma modesta pensão. Mas como algumas centenas de coroas poderiam enfrentar os exagerados preços da guerra? Menos mal que, de vez em quando, consi-ga pescar algum peixe. Sentado no barquinho, com a vara de pesca na mão, pensa no volume de água que corre durante o dia e em qual será a origem de tamanha quantidade. Algumas vezes pesca uma carpa, outras, uma perca. Agora os peixes es-tão muito mais abundantes, certamente porque os rios ficaram mais curtos. Uma perca tampouco cai mal; é verdade que é um peixe de muitas espinhas, mas sua carne é saborosa, lembra um pouco as amêndoas. E mamãe Povondra sabe prepará-las tão bem... O Sr. Povondra não sabe que, em geral, mamãe acende o fogo para guisar suas percas usando os recortes que em ou-tras épocas colecionava e classificava. É verdade: o Sr. Povon-dra abandonou seu vezo de colecionador ao se aposentar. Em troca, montou um aquário onde, ao lado de trutas douradas, vivem pequenos tritões salamandras. Ficava contemplando-as durante horas inteiras, imóveis na água ou tentando subir na

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praia que construíra usando pedrinhas. Depois mexia a cabeça e dizia: “Quem poderia falar delas!” Mas o homem não se con-tenta apenas em olhar, e, por isso, o Sr. Povondra se dedicou à pesca. “O que se pode fazer!”, pensava, indulgente, mamãe Povondra. “Os homens sempre terão suas manias. É melhor do que frequentar botequins ou se meter em política.”

É verdade. Correu muita, muitíssima água. Nosso Frantík já não é nem o colegial que estudava geografia nem o jovem que rasgava suas meias correndo atrás dos desafios do mundo. Aquele Frantík é agora um senhor adulto. Graças a Deus, é funcionário dos correios. O estudo entusiasmado de geogra-fia acabou servindo para alguma coisa. “Também já começa a adquirir consciência”, pensa o Sr. Povondra, deixando deslizar seu pequeno bote corrente abaixo, em direção à ponte da Le-gião. “Hoje ele virá me buscar. É domingo e não tem de tra-balhar. Eu o farei subir no bote e iremos até lá em cima, até a ponta da ilhota dos Arqueiros. É onde os peixes mordem mais as iscas. E Frantík me contará o que dizem os jornais. Depois iremos à nossa casinha em Vyšehrad e minha nora trará os dois netinhos...” O Sr. Povondra se entrega por uns momentos às delícias de ser avô. “Dentro de um ano Marenka irá à escola. Isso a deixa muito feliz. E o pequeno Frantík, meu netinho, já está pesando trinta quilos!”. O Sr. Povondra tem a sensação de que tudo está na mais perfeita ordem.

Seu filho já o espera junto ao rio e o cumprimenta com a mão. O Sr. Povondra se aproxima da margem.

— Já estava na hora de você chegar — diz em tom de re-provação —, e tenha cuidado para não cair na água.

— Estão mordendo?

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— Pouco — responde o ancião. — Vamos até lá em cima, não?

É uma bela tarde de domingo. Ainda não é hora de aque-les loucos folgazões voltarem do futebol e outras besteiras do tipo. Praga está vazia e silenciosa. Os poucos que passeiam pela beira do rio ou pelas pontes não têm pressa. Caminham decentemente e com dignidade. São pessoas melhores e mais compreensivas, que não se reúnem em grupelhos para zombar dos pescadores do Moldava. Papai Povondra volta a ter aquela forte sensação de que tudo está na mais perfeita ordem.

— O que dizem os jornais? — pergunta com rudeza pa-ternal.

— De modo geral, nada, papai — responde o filho. — Leio aqui que as tais salamandras chegaram a Dresden.

— Então a Alemanha está perdida — observa o ancião. — Você sabe, Frantík? A Alemanha é um país muito estra-nho. Culto, mas estranho. Eu conheci um alemão, era chofer de uma fábrica, um homem muito rude. Mas o carro estava sempre em ordem, é necessário reconhecer. Então a Alema-nha desapareceu do mapa-múndi... — reflete o Sr. Povondra. — E quanta confusão armava antes! Era uma coisa terrível, nada além de soldados e mais soldados... Não há nada a fazer! Nem os alemães podem com as salamandras. Quer saber de uma coisa? Eu conheço essas salamandras muito bem... Você se lembra de quando o levei, ainda menino, para vê-las?

— Atenção, papai! Um peixe mordeu a isca. — Esse não vale a pena — grunhe o ancião, afastando

a vara. — Caramba! A Alemanha também... Ninguém pode estranhar mais nada. Precisava ver como faziam antes, quando essas salamandras inundavam algum país. Mesmo que fosse

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somente a Mesopotâmia ou a China, os jornais estavam sem-pre cheios de informação. Hoje tudo é visto como coisa natu-ral! — exclama o Sr. Povondra, contemplando a vara de pescar. — A gente acaba se acostumando a tudo. O que se pode fazer? O principal é não chegarem aqui. Se as coisas não estivessem tão caras! Por exemplo, o que se pede hoje por um café... É verdade, o Brasil também desapareceu embaixo d’água. Sente-se comercialmente que metade do mundo está inundada.

O barquinho do Sr. Povondra dança sobre as ondas sua-ves. “Precisa ver a quantidade de terra que já foi inundada pelas salamandras!”, pensa o ancião. “Egito, Índia, China... Até com a Rússia se atreveram! Quando penso que hoje em dia o mar Negro chega ao círculo polar! Que quantidade de água, quantos continentes nos arrebataram! Menos mal que avancem pouco a pouco...”

— Então estão dizendo que as salamandras já estão em Dresden?

— Estão a 16 quilômetros de Dresden. É provável que toda a Saxônia já esteja embaixo d’água.

— Uma vez eu estive lá com o Sr. Bondy — relata papai Povondra. — Era uma terra riquíssima, Frantík, mas não pos-so dizer que se comesse muito bem. Afora isso, as pessoas eram muito agradáveis, melhores que os prussianos. Posso lhe dizer que não se pode nem comparar...

— A Prússia também desapareceu.— Não acho estranho. Eu não gosto dos prussianos. Mas

os franceses estão felizes porque a Alemanha está caindo. Pelo menos poderão respirar tranquilos.

— Mas não muito, papai — responde Frantík. — Outro dia li nos jornais que pelo menos um terço da França também está inundado.

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— Ai! — suspira o Sr. Povondra. — Na minha casa, quero dizer, na casa do Sr. Bondy, havia um criado francês, chamava-se Jean. E perseguia tanto as mulheres que era uma verdadeira vergonha. Você sabe? Essas frivolidades acabam sendo pagas mais cedo ou mais tarde.

— Mas dizem que as salamandras foram derrotadas a 10 quilômetros de Paris — continua Frantík. — Haviam feito uma espécie de trincheira, e jogaram-nas pelos ares. Aniquila-ram totalmente dois corpos do exército de salamandras.

— Os franceses são bons soldados — opina o Sr. Povon-dra, como conhecedor do assunto. — Aquele Jean também não levava desaforo para casa. Não sei de onde tirava aquilo. Cheirava como uma drogaria, mas quando brigava, brigava. Mas dois corpos de soldados do exército de salamandras... É pouco. Quando olho para isso — continua o ancião —, ve-jo que os homens sabem lutar muito melhor contra homens. Além do mais, antigamente as guerras não duravam tanto tempo. O conflito com as salamandras começou há 12 anos e até hoje os homens vivem se retirando para posições mais es-tratégicas. Na minha juventude, sim, é que havia batalha! Três milhões de homem aqui e três ali — apontava o ancião fazen-do o barquinho balançar —, e de repente, Cristo, se lançavam uns contra os outros. Essa guerra não vale a pena — diz com desprezo papai Povondra. — Não fazem mais do que fabricar paredes de concreto... Ataques a baioneta? Nem pensar!

— Mas as salamandras e as pessoas não podem lutar corpo a corpo, papai — diz Frantík, tentando defender a nova ma-neira de guerrear. — É impossível fazer um ataque a baioneta dentro d’água.

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— É verdade — grunhe, depreciativo, o Sr. Povondra. — Não podem nem se aproximar uns dos outros como é de-vido. Mas atire homens contra homens e você verá do que são capazes... O que você sabe sobre o que é a guerra?

— Só sei que espero que não chegue até aqui — disse Frantík, um pouco inquieto. — Você sabe, papai, quando a pessoa tem filhos...

— Como até aqui? — diz o ancião, um pouco excitado. — Você quer dizer até Praga?

— À Boêmia, à Tchecoslováquia em geral — responde o jovem Povondra, preocupado. — Acho que, se as salamandras chegaram a Dresden...

— Como você é esperto, garoto! — repreende-o o Sr. Povon-dra. — Como iriam chegar aqui? Atravessando as montanhas?

— Talvez pelo Elba e, depois, continuando pelo Moldava...O Sr. Povondra grita escandalizado.— Não me faça rir! Pelo Elba! Talvez pudessem chegar a

Podmokel, mas nada mais. Ali só há montanhas rochosas; es-tive lá uma vez. Não se preocupe, as salamandras não chegarão aqui. Nesse aspecto, estamos muito seguros. E a Suíça também tem a mesma sorte. Essa é a vantagem de não se ter costas ma-rítimas, sabe? Atualmente, quem tem mar está perdido.

— Mas o mar chega agora a Dresden... — Lá há alemães — declara o ancião, protestando. — Esse

é um assunto deles. Mas as salamandras não podem vir até aqui. É compreensível. Primeiro teriam que dar a volta nas montanhas. Já imaginou o trabalho que isso representaria?

— O trabalho é o de menos — objeta o jovem Povon-dra —, as salamandras sabem trabalhar muito bem. Você sabe que conseguiram afogar montanhas inteiras da Guatemala.

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— Isso é outra coisa — contesta decididamente o Sr. Po-vondra. — Não diga besteira, Frantík. Isso aconteceu na Gua-temala e não aqui. Em nosso país as condições são diferentes.

O jovem Povondra suspira.— Como quiser, papai, mas quando se imagina que esses

bichos já inundaram um quinto do total dos continentes...— Nos países com mar, tonto, mas não em outros lugares.

Você não entende de política. Esses países têm costas maríti-mas, estão em guerra com as salamandras, mas a gente, não. Somos neutros; portanto, não podem nos atacar. Ponto final. E não fale tanto ou não pescarei nada!

O silêncio reinava sobre a água. As árvores da ilhota dos Arqueiros já sombreavam a superfície do Moldava. Na ponte se viam passar os bondes e as criadas passeavam com carrinhos de bebê no meio da gente vestida de domingo...

— Papai — exclamou o jovem Povondra quase com an-gústia.

— O que há? — Aquilo não é um siluro?— Onde? Do Moldava, precisamente diante do Teatro Nacional, saía

uma enorme cabeça negra, que avançava lentamente contra a corrente.

— É um siluro? — repetiu Povondra Jr.A cabeçorra negra desapareceu debaixo d’água.— Não era um siluro, Frantík! — exclamou o Sr. Povondra

com uma voz estranha. — Vamos para casa, filho. Acabou tudo!— Mas o que foi que acabou, papai? — Era uma salamandra. Elas já estão aqui. Vamos para

casa — repetia, recolhendo com suas mãos nervosas os equipa-mentos de pesca. — Agora sim tudo está terminado.

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— Você está tremendo — assustou-se Frantík. — O que há com você?

— Vamos para casa! — exclamou o ancião excitado, e seu queixo tremia nervosamente. — Sinto frio, filho. Era só o que nos faltava! Quer saber de uma coisa? É o fim, Frantík, é o fim! Já estão aqui... Com os diabos! Que frio está fazendo! Quero chegar logo em casa.

O jovem Povondra, que o olhava fixamente, pegou os remos.

— Deixe que eu remo, papai — disse com voz insegura e, com uma forte sacudida, afastou o barquinho da ilha. — Vou amarrar o bote.

— Por que está fazendo tanto frio? — estranhou o ancião, batendo os dentes.

— Eu o apoio, papai, vamos — disse o jovem Povondra pegando-o pelo braço. — Acho que você se resfriou na água. Aquilo era apenas um pedaço de madeira, não se preocupe.

O ancião tremeu como uma folha.— Sim, um pedaço de madeira! É a mim que você vai

contar uma fábula dessas? Eu sei melhor do que ninguém o que são as salamandras! Me largue!

O jovem Povondra fez uma coisa que não fizera até aquele momento em sua vida: chamou um táxi.

— Para Vyšehrad — ordenou, e enfiou o pai no automó-vel. — Eu o acompanho, papai, é muito tarde.

— Sim, é muito tarde! — murmurou o velho Povondra. Isso é o princípio do fim! Não era um pedaço de madeira, Frantík! São elas!

O jovem quase teve de carregar o pai nos braços pelas es-cadas.

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— Prepare a cama dele, mamãe — sussurrou, ao chegar à porta. — Papai precisa se deitar imediatamente. Está adoen-tado.

Pois bem: agora papai Povondra está recostado entre edre-dons, seu nariz se destaca estranhamente no rosto e seus lábios murmuram algo incompreensível. Como parece velho! Agora se tranquilizou um pouco...

— Está melhor, papai?Aos pés da cama mamãe Povondra chora, com o rosto es-

condido no avental. A nora está ligando a estufa e as crianças, Marenka e Frantík, arregalam extraordinariamente seus ino-centes olhos para contemplar o avô, como se não conseguis-sem reconhecê-lo.

— Quer que eu chame o médico, papai? Papai Povondra olhou para seus netinhos e murmurou al-

guma coisa. De repente, seus olhos se encheram de lágrimas.— Quer alguma coisa, papai?— Fui eu! Fui eu! — soluçou o ancião. — Quero que você

saiba. É minha a culpa de tudo! Se naquele dia não tivesse dei-xado o capitão entrar para falar com G. H. Bondy, nada disso teria acontecido...

— Mas não aconteceu nada, papai! — tentou tranquilizá-lo o jovem Povondra.

— Você não compreende — respondeu o ancião. — Isso é o princípio do fim, sabe? O fim do mundo! Agora o mar chegará até aqui. Se as salamandras já estão em Praga... Meu Deus! Tudo é culpa minha... Não devia ter deixado aquele ca-pitão entrar... Que o mundo saiba algum dia de quem foi a culpa de tudo!

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— Isso é absurdo! — exclamou asperamente o filho. — Não esquente a cabeça, papai. Isso o mundo inteiro já fez. Foi o que fizeram os países, o que fez o capital... Todos queriam ter o maior número possível de salamandras. Todos queriam lu-crar à custa delas. Nós mesmos também lhes enviamos armas e Deus sabe o quê... Somos todos culpados!

Papai Povondra se mexeu intranquilo.— Antigamente, o mar ocupava todo o mundo e agora

voltará a ocupá-lo de novo... É o fim do mundo! Uma vez um senhor me contou que em Praga antes havia mar... Quer saber? Eu acho que naquela época também era obra das salamandras. Eu não devia ter anunciado aquele capitão. Ouvia uma voz que me dizia: “Não faça isso!”, mas depois pensei: “Talvez o capitão me dê uma gorjeta.” Sabe de uma coisa? Não me deu nada! O sujeito destrói inutilmente o mundo... — o ancião engoliu umas lágrimas. — Eu sei... Sei muito bem que esta-mos perdidos e sei também que a culpa é toda minha...

— Vovozinho, você não quer um pouco de chá? — per-guntou, comovida, a jovem Sra. Povondra.

— Eu só queria... — suspirou o ancião —, eu só queria que as crianças me perdoassem.

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XI

o AUtoR fALA CoNSiGo MESMo

— E você vai deixar as coisas assim? — interrompeu, nesse ponto, a voz interior do autor.

— O que posso fazer? — perguntou o escritor um pouco inseguro.

— Vai deixar o Sr. Povondra morrer dessa maneira?— Que outro remédio? — defendeu-se o autor. — Não

acredite que o faço por vontade, mas, além de tudo, o Sr. Povondra já tem lá sua idade; digamos que tem muito mais de 70.

— E você vai deixar que sofra moralmente? Nem ao menos diz: “Avozinho, as coisas não estão tão mal! O mundo não será destruído pelas salamandras, a humanidade se salvará, espere e verá.” Por favor, você não pode fazer nada para salvá-lo?

— Bem, mandarei o médico — propôs o autor. — O an-cião está, certamente, com uma febre nervosa. Claro que na sua idade não está descartado que possa contrair uma congestão pulmonar. Mas, talvez com a ajuda de Deus, resista a tudo. Tal-vez ainda balance a pequena Marenka nos joelhos e lhe pergunte o que aprendeu na escola... As alegrias da velhice, meu Deus... Que o pobre velhinho ainda viva as alegrias da velhice!

— Pequenas alegrias — enganou-se a voz interna. — Apertará os netinhos contra o coração, temendo que um dia

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eles tenham de fugir das águas que inundarão o mundo irre-mediavelmente... Piscará, apavorado, suas sobrancelhas pelu-das e cochichará: “Fui eu que fiz isso, Marenka, fui eu que fiz isso...” Ouça, você quer mesmo deixar que toda a humanidade morra?

O autor ficou sério.— Não me pergunte o que eu quero. Você acha que sou

eu quem está levando os continentes a afundar na areia, vo-cê acha que eu quis esse tipo de fim? Trata-se, simplesmente, da lógica dos fatos. Como poderia interferir nisso? Fiz o que pude. Aquele X era, de certa maneira, eu. Preguei: não forne-çam armas e explosivos de alta potência às salamandras, parem com esse comércio horroroso e coisas assim... Você sabe o que aconteceu. Todos tinham o tempo todo milhares de argumen-tos políticos e econômicos que pareciam perfeitamente lógicos para provar que isso não era possível. Não sou político nem economista. Como poderia convencê-los? O que deveria fa-zer? O mundo provavelmente se desintegraria e começaria a ser inundado — mas pelo menos isso aconteceria por razões políticas e econômicas universalmente aceitas; pelo menos aconteceria em nome da contribuição à ciência, da engenharia e da opinião pública, através do uso de toda a ingenuidade humana! Nenhuma catástrofe cósmica, mas apenas razões de Estado, econômicas, de poder e outras. Nada poderia ser feito contra isso.

A voz interior ficou calada por alguns momentos. — E você não tem pena da humanidade?— Espere, não vá assim tão depressa! Ninguém está di-

zendo que toda a humanidade tem de perecer. As salamandras só precisam de mais espaço litorâneo, precisam ter onde viver,

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onde botar seus ovos... Podemos dizer que, no lugar de conti-nentes compactos, elas transformariam as terras secas em lon-gos espaguetes para que tivessem a máxima extensão de litoral. Podemos dizer que naquelas tiras de terra poderiam viver mui-tas das pessoas que vivem em terras secas, certo? E fabricariam metais e outros produtos manufaturados para as salamandras. Além do mais, as salamandras não podem trabalhar sozinhas com o fogo, não é mesmo?

— Quer dizer que as pessoas servirão às salamandras? — É isso mesmo, se você quiser chamar assim. Irão sim-

plesmente trabalhar nas fábricas como fazem hoje. Só muda-rão os senhores. No final das contas, as mudanças não serão radicais.

— E você não tem pena da humanidade? — Pelo amor de Deus, me deixe em paz! O que devo fa-

zer? Foi isso o que as pessoas quiseram. Todos queriam ter salamandras: o comércio, a indústria e a engenharia queriam; os homens do Estado e das Forças Armadas queriam. Até o jo-vem Povondra disse: somos todos responsáveis por isso. É claro que eu tenho pena da humanidade! Mas sentia muito mais ao assistir como ela preparava apressadamente sua própria ruína. Para você basta a vontade de gritar quando olha agora para trás. Gritar e levantar as duas mãos como um homem que vê um trem disparando pelo trilho errado. É muito tarde para deter tudo isso. As salamandras continuarão se multiplicando e continuarão reduzindo os velhos continentes, peça por peça. Você se lembra de como Wolf Meynert demonstrou que o ho-mem deveria construir um espaço para as salamandras, e que só as salamandras estabeleceriam um mundo feliz, uniforme e homogêneo...

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— Por favor! Wolf Meynert! Wolf Meynert é um intelec-tual. Você conheceu algum dia algo tão horrível, tão assassino e tão sem sentido que um intelectual não quisesse agarrar com o propósito de regenerar o mundo? Não, deixe estar. Você sabe o que Marenka está fazendo agora?

— Marenka? Eu acho que ela está brincando em Vyšehrad. Disseram-lhe que precisa ficar em silêncio, pois vovô está dor-mindo. Ela não sabe o fazer e está entediadíssima.

— Mas o que ela está fazendo?— Não tenho ideia. Talvez esteja tentando alcançar a pon-

ta do nariz com a ponta da língua.— Então veja: você a deixaria ser atingida por algo seme-

lhante a um novo dilúvio?— Pare com isso! Você acha que posso fazer milagres? O

que tiver de acontecer acontecerá. Deixe que as coisas sigam seu curso inexorável. Isso também é uma espécie de consolo: tudo o que acontece segue sua própria inevitabilidade e atende a suas próprias leis.

— Não seria possível de alguma forma deter essas sala-mandras?

— Impossível. São muitas e é preciso lhes dar um lugar.— E não poderiam morrer de repente? Por alguma epide-

mia ou por degeneração?— Isso é muito pequeno, meu irmão. A natureza tem sem-

pre que ajeitar o que prejudica os homens? Você também está convencido de que os homens, por si mesmos, não poderão sair desse desastre. Você está vendo, você está vendo... Ao final queriam que alguém os salvasse. Vou lhe confiar um segredo: sabe quem, ainda agora, entrega explosivos, torpedos e brocas às salamandras? Sim, agora, quando um quinto da Europa já

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está inundado? Sabe quem trabalha febrilmente nos labora-tórios a fim de encontrar matérias e maquinaria mais eficazes para varrer o mundo? Sabe quem empresta dinheiro às sala-mandras, sabe quem financia este Fim de Mundo, todo esse Dilúvio?

— Sei. Todas as fábricas, todos os bancos, todos os Es-tados.

— Então você está vendo... Se fossem apenas as salaman-dras contra a humanidade, talvez não fosse tão difícil fazer alguma coisa. Mas homens contra homens... Não há quem possa deter isso...

— Espere! Homens contra homens... Ocorreu-me uma coisa. Talvez as salamandras pudessem lutar contra as salamandras.

— Salamandras contra salamandras? O que quer dizer?— Por exemplo... Se agora muitas salamandras começas-

sem a lutar entre si por algum pedaço de litoral, por um golfo ou o que seja... Depois continuariam lutando para possuir ca-da vez mais e mais pedaços do litoral... Acabariam combaten-do por litorais em todo o mundo, não é mesmo? Salamandras contra salamandras. O que acha? Não acredita que isso seria o mais lógico?

— Não, não pode ser. As salamandras não podem lutar entre si. Seria contra a natureza. As salamandras são, afinal, de uma mesma espécie.

— Homem, os homens também são todos de uma mesma espécie, e o que você vê? Que não dão muita importância a isso. São de uma única espécie e é só olhar para ver por quantas coisas se digladiam. Nem sequer pelo espaço vital, mas pelo poder, pelo prestígio, pela influência, pela glória, pelos merca-

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dos e que sei eu por quantas coisas mais! Por que as salaman-dras não iriam lutar entre si também por prestígio?

— Por que iriam fazer uma coisa dessas? Diga-me, por favor, o que ganhariam com isso...

— Nada. Apenas umas teriam, temporariamente, mais território e mais poder do que as outras. E ao cabo de algum tempo as coisas mudariam de novo.

— E para que umas querem ter mais poder do que as ou-tras? Todas são idênticas, todas são salamandras, todas têm os mesmos esqueletos, todas são igualmente feias e todas têm o mesmo nível... Para que martirizariam umas as outras? Por fa-vor, em nome de quê iriam lutar entre si?

— Deixe-as! Logo encontraremos algum motivo. Olhe, umas vivem nas costas ocidentais e outras nas orientais. Des-pedaçar-se-iam, sobretudo, em nome daquela coisa de “o Ocidente contra o Oriente”. Aqui você tem as salamandras europeias, e, lá embaixo, as africanas. O diabo me carregue se, no fim, umas não iriam querer ter mais do que as outras! Homem, umas podiam ir dar uma lição às outras, em nome da civilização, da expansão ou sei lá do quê... Sempre se pode encontrar algum motivo político ou ideológico pelo qual as salamandras de uma costa iriam querer atacar as de outra. As salamandras estão tão civilizadas como nós, os homens. Não faltarão argumentos de poder, econômicos, legais, cul-turais ou quaisquer outros.

— E elas têm armas. Não se esqueça de que estão formi-davelmente armadas.

— Sim, têm uma imensa quantidade de armas. Você está vendo... Não teria graça se não tivessem aprendido com os homens como se constrói a História!

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— Espere, espere um momento... — o autor se levantou de um salto e começou a passear para cima e para baixo. — A verdade é... Que o diabo me carregue se elas não o consegui-rem. Já estou vendo com clareza. Basta olhar o mapa-múndi. Com os diabos! Onde haverá um mapa-múndi?

— Eu o imagino muito bem. — Depende. Aqui você tem o oceano Atlântico, com o

mar Mediterrâneo e o do Norte. Aqui está a Europa e isto é a América... Bem, isto é o berço da cultura e da moderna civili-zação. Por aqui está submersa a antiga Atlântida...

— E agora as salamandras submergem a Nova Atlântida. É verdade. E aqui você tem os oceanos Pacífico e Índico. O distante e misterioso Oriente, o berço da humanidade, como se costuma dizer. Por aqui, ao leste da África, está afundada a mítica Lemúria. Aqui está Sumatra, e um pouco mais a oeste de Sumatra...

— A ilhota de Tana Masa. O berço das salamandras.— Sim. E ali governa o rei Salamandra, a cabeça espiri-

tual de sua raça. Em Tana Masa ainda vivem os tapa-boys do capitão Van Toch, originalmente salamandras meio selvagens do Pacífico. Em resumo, aquilo é seu Oriente, você sabe? Toda esta região agora se chama Lemúria, enquanto que a outra zo-na, civilizada, europeizada, americanizada e muito adiantada tecnicamente, é a Atlântida. O ditador de Atlântida é Chief Salamander, grande conquistador, grande técnico e militar, comandante das salamandras e destruidor de continentes. Uma enorme personalidade, ora.

(“... Diga-me, Chief Salamander é uma salamandra de ver-dade?”)

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(“... Não. Chief Salamander é um homem. Chama-se, na realidade, Andreas Schultze, e, durante a Guerra Mundial, foi ordenança em algum lugar.”)

(“Isso explica tudo!”)(“Claro, homem. Assim são as coisas...”) Bem, aqui estão a

Atlântida e a Lemúria. Essa divisão se deve a motivos geográ-ficos, administrativos, culturais...

— ... e nacionais. Não se esqueça dos motivos nacionais. As salamandras da Lemúria falam Pidgin English, enquanto as da Atlântida se expressam em Basic English.

— Está bem. Ao longo do tempo, as salamandras da Atlân-tida penetrarão pelo antigamente chamado canal de Suez, em direção ao oceano Índico...

— É natural. O caminho clássico para o leste. — Certo. Por outro lado, as salamandras da Lemúria

avançarão pelo cabo da Boa Esperança em direção à costa do que antes era a África. Assegurarão que toda a África pertence à Lemúria.

— É natural. — O slogan será: Lemúria para os lemúrios, fora os estran-

geiros! Etc. A Atlântida e a Lemúria aprofundarão o abismo de desconfiança e a inimizade de séculos... Inimizade de vida ou morte.

— Ou seja, se converterão em verdadeiras nações. — Sim, as da Atlântida desprezam as salamandras da Le-

múria e as chamam de “selvagens sujos”. As salamandras da Lemúria odeiam fanaticamente as da Atlântida e veem nelas imperialistas, diabos do oeste e violentadoras do antigo, limpo e original salamandrismo. Chief Salamander obterá concessões nas costas da Lemúria, alegando o “interesse da exportação e

6A PROVA - A Guerra das salamand332 332 3/10/2011 10:41:15

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da civilização”. Sua distinta majestade, o rei Salamandra, quei-ra ou não, terá de ceder, pois está em desvantagem bélica. O conflito explodirá na baía do Tigris, não longe da atual Bagdá. Os naturais da Lemúria atacarão uma concessão da Atlântida e matarão dois oficiais atlânticos, segundo dirão, “por ofensa a sua nação”. Como resultado disso...

— ... a guerra será declarada. — E assim chegaremos a uma guerra mundial de salaman-

dras contra salamandras.— Em nome da Cultura e do Direito, não se esqueça.— E em nome da Verdadeira Salamandra. Em nome da

Glória e da Grandeza nacionais. O lema será: “Ou nós ou elas! ” As da Lemúria, armadas com krises malaios e adagas yogas, destroçarão sem compaixão os invasores da Atlântida. Então, as progressistas e educadas salamandras da Atlântida lançarão nos mares da Lemúria venenos químicos e bactérias cultiva-das; elas terão efeitos desastrosos, a uma velocidade tão beli-cosa que inundarão todos os oceanos do mundo. O mar será infectado por pestes artificialmente cultivadas, que afetarão as guelras. E isso significará o fim, amigo. As salamandras desa-parecerão.

— Todas? — Todas, até a última. Sua espécie será extinta. Delas só

se conservará aquela velha pedra de ônix com as marcas do esqueleto de Andrias Scheuchzeri.

— E o que os homens farão? — Os homens? Ah, é verdade! Os homens... Bem, come-

çarão a voltar, pouco a pouco, das montanhas para as costas, àquilo que restar dos continentes. Mas os oceanos ficarão em-pestados, ainda por muito tempo, pelos resíduos das salaman-

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dras. Os continentes voltarão a crescer com os aluviões dos rios. O mar se afastará passo a passo e tudo voltará a ser quase como antes. Surgirá uma nova lenda sobre a inundação do mundo, enviada por Deus devido aos pecados da humanida-de. Falarão, também, das ruínas de nações míticas submersas, que, como se dirá, foram o berço da civilização e da cultura humanas. Serão contadas lendas sobre a tal da Inglaterra, ou da França, ou da Alemanha...

— E depois? — ... A continuação eu de fato não sei.

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