das oficinas, a vida

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  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    1/26

    das oficinas, a vida 

    A. de Almeida 

    Edições de LacunaAveiro, 2016 

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

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  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    3/26

    quatro livros à luz deste dia em que leio

    a roda dos expostos

    o pintor daltónico

    o poeta escreve o céu

    o pintor não foi cuidadoso

    nunca expôs a vida

    depois de empurrar para dentro

    no museu eles guardam antigas

    as marcas dos expostos

    a marca da água

    uma árvores está plantada

    porque te hei-de mentir

    homens devoraram

    a oficina de artes

    se ensinas uma teoria

    podes ver que os aprendizes

    os aprendizes nada te exigem

    eles são aprendizes e sabem

    a arte de voar

     filtro os sons da água

    nos ombros da mulher de pedra

    como desenhar as fronteiras

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

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  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

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    a roda dos expostos1

    ao pintor joão pires  

    revisão e reimpressão de impresso distribuído nas exposições do pintor João Pires:1

    Museu Princesa Santa Joana, Aveiro, 1991

    Museu Machado de Castro, Coimbra, 1992

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

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    O pintor vê passar um azul

    que deve ser sacrificado.

    Tem pena dele e ordena que seja

    substituído por um vermelho.

    Ele confessa que isso aconteceu

    porque viu o azul

    e não via o vermelho.  2 

      a partir de uma clássica chinesice2

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    7/26

    O poeta escreve o

    “céu

    sem uma gota

    de terra.”

    O pintor mistura, com muitos cuidados,

    as colas, os vernizes, os axis,

    as folhas, as raízes e a terra..

    Despeja a sua mistura numa tela.

    E, com os seus dedos sujos e os pincéis dos seus cabelos,

    espera um momento de céu até que,

    exausto,adormece sobre a tela.

    O céu torna-se então o eterno instante

    em que o pintor descansa

    coberto de terra,

    raízes, folhas,

    azuis, vernizes, colas,

    cuidados.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    8/26

    O pintor não foi cuidadoso:

    Começou por pintar as águas do canal e,

    nesse espelho,

    pintou o céu, as casas e algumas pessoas que passavam.

    Quando levantou os olhos

    para pintar a realidade acima das águas,

    ela não estava lá..

    Com horror,

    ouviu os gritos dos afogados.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

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  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    10/26

    Depois de empurrar para dentro

    os cotos dos lápis, o carvão, as bisnagas,

    as espátulas, os pincéis, as facas, os panos e os papéis,

     fechou cuidadosamente as gavetas atulhadas da velha cómoda.

    E pregou-as e colou-as. Com várias demãos de negro e verniz,

    o pintor tentou inutilmente tapar as manchas de cor da sua vida.

    Só uma pequena gaveta, que sempre estivera

    vazia, permaneceu aberta, negra

    e vazia.

    Na sala

    do museu, ninguém deixade espreitar para dentro daquela

    pequena gaveta

    vazia.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    11/26

    No museu

    eles guardam antigas

    mesas e cadeiras, molduras

    nas paredes, telas pintadas, esculturas.

    O pintor guardaria

    um inacessível ponto de luz

    e de fuga para que deus visse a gelada

    linha de luz, o trajecto feito de fio do esquecimento.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    12/26

    as marcas dos expostos3 

    aos pintores  

    impresso pelo autor com tiragem mínima de 1 exemplar, em 1995 e em Aveiro, como se fora3

    para “Edições da Laguna Poluída”, sem direitos de autor, sem depósito legal e sem qualquer

    mérito; sob o título “Oficina do Pintor João Pires”

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    13/26

    a marca de água

    O alimento dos animais

    e das plantas é ainda a nuvem que cai do alto

    sobre o cristal desvelado por cascos indomados

    por um fio de água, metal e vapor, uma raiz mineral abraça uma pedra

    e é do cerne viscoso da pedra que um caule vegetal brota

    para a luz uma fonte vira o seu olhar azul

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    14/26

    Uma árvore está plantada

    onde o lago começa

    O poeta disse que a árvore

    bebe a tensão do espelho,

    em que o sol reflecte

    a sua vaidade,

    e não bebe a água e que,

    ao contrário do pensamento

    dos pintores, é a folhagem

    que bate e expulsa o vento.

    O poeta sabe que é o sol

    quem vagarosamente bebe

    o vapor de água.

    e recorta

    com todo o cuidado

    um quadrado da neblina da manhã.

    O pintor atira a pedra

    rente à superfície das águas

    e conta as vezes que a pedra

    salta antes de se afundar na tela

    do lago da tela.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    15/26

    Porque te hei-de mentir em cada movimento?

    Que me custava obedecer-te? —

    —Estas são as dúvidas da mão do pintor

    da mão que treme.

    — Ateia o fogo à cabeleira

    do pincel e deixa-o contorcer-se

    de dor sobre a tela. —

    Este é o conselho do poeta amargurado

    que habita a oficina do pintor.

    Antes de pendurar as folhas brancas e suadas,

    para que corem expostas à vergasta do sol e à malícia humana,

    o pintor espreita a todas as portas iguais que toas as telas são.

    O pintor tenta ficar sossegado, apesar do que vê quando se espreita.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    16/26

    Homens devoraram uma aldeia

    e dela resta uma inóspita terra de cegos

    e as visões obstinadas de uma imortal bruxa.

    Os pintores são os cegos da aldeia da bruxa das visões.

    Quando se juntam

    Umas vezes são eles que pintam a descrição da bruxa.

    Outra vezes são os poetas a fornecer as cores e é a bruxa

    que, em transe, devolve as paisagens e a loucura dos evidentes.

    Os pintores contam o que sabem

    a ninguém..

    E os poetas sabem

    a ninguém.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

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  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    18/26

    Se ensinas uma teoria sem teoremas

    não tens que dominar a arte e a técnica da demonstração 

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    19/26

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    20/26

    Os aprendizes nada te exigem:

    nem demonstração, nem resposta.

    Eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas

    vão esvair-se como se esvai o sangue vermelho

    da nuvem desfeita em lágrimas ardentes

    por dentro da ausência

    de uma armação sem tela.

    Eles são aprendizes e sabem que,

    para ti,

    as mais intuitivas de todas as respostassão sobre a cor do vento e a forma do ar.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    21/26

    Eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar

    habita

    nesse

    que mostra e não demonstra.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    22/26

    a arte de voar5 

    aos sonhadores  

    impresso em papel de embrulho [4 páginas a5, ou a4 dobrada (frente e verso) ]numa tiragem5

    mínima de 1 exemplar sem qualquer referência a possível editor, sem data, sob o título “a arte de

    voar”

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    23/26

    Filtro os sons da água e a água

    e mergulho uma folha rabiscada

    para que se dissolva a sagrada

    escritura da minha mágoa

    e a tinta forme então a pomba

    que bate asas e desenha um voo

    como risco branco a rasgar o céu.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    24/26

    Nos ombros da mulher de pedra e pranto,

    repousam os cabelos da árvore caída.

    Enquanto

    a ave de granito,

    de asas partidas,

    ensaia o voo de um grito.

    da minha mão levanta voo a pedra.

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    25/26

  • 8/18/2019 Das Oficinas, A Vida

    26/26

    Bastou um autor

    Arsélio Martins

    sem direitos nem deveres, sem créditos nem débitos,

    sem qualidades nem quantidades; com mínimos:

    no mínimo dois dedos, um computador, uma impressora e papelpara um exemplar impresso

    para dar um princípio a isto

    Edições de Lacuna

    Aveiro, 2016

    e declarar que o primeiro livrinho chegou ao

    FIM