ser e tempo. que ser que sentido

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martin heidegger

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  • CAPTULO 9

    Ser e Tempo. Que Ser? Que Sentido?

    Faamos uma retrospectiva: segundo o modelo teolgico, Martin Heidegger comeara como filsofo catlico. Seu pensar movia-se cm crculo na indagao por Deus como pedra fundamental e fiador de nos-so conhecimento do mundo e de ns mesmos. Heidegger vinha de uma tradio que s podia ainda afirmar-se defensivamente contra uma modernidade para a qual Deus perdera o seu sentido. Heidegger queria defender o cu sobre Messkirch tambm com as armas dessa modernidade, por exemplo com a tese husserliana da validade (Geltung) supratemporal e supra-subjetiva da lgica, idia que encontrou como modelo na filosofia metafsica da Idade Mdia. Mas l ele tambm j descobrira a dvida-de-si nominalista de uma razo que admite que no apenas Deus lhe permanece inconcebvel, mas tambm a haecceitas, o isso-a(dieses da), o indivduo nico. Individuum est ineffabile.

    Mas s a idia da historicidade revelou para ele toda a problemtica da historicidade. O pensar metafsico no conta com a imutabilidade do ser humano, mas com a imutabilidade das ltimas relaes de sentido. Heidegger aprendeu com Dilthey que tambm as verdades tm a sua histria. Pelo fim de seu trabalho de concurso de ctedra ele realizou a mudana decisiva de perspectiva: encarou da distncia o pensar medie-val, que lhe fora to prximo, e assim ele lhe pareceu uma poca encan-tadora mas declinante do esprito. A idia de Dilthey "de que sentido e importncia s surgem no homem e sua histria" se tornou o seu critrio. A idia radical da historicidade destri qualquer exigncia universalista

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    de validade. Talvez ela represente a maior ruptura na autoconcepo do ser humano na histria ocidental. Ela tambm significou o fim do filo-sofar "catlico" de Heidegger.

    A histria real a derrocada do mundo de ontem na guerra mundial acabou por deixar Heidegger sentir que o solo balana e que preciso fazer um novo comeo.

    Depois de 1918 a vida histrica se torna fundamento do filosofar para Heidegger. Mas com essa noo, diz ele, ainda no se conquistou muita coisa enquanto o conceito "vida" permanecer indefinido. Na esco-la da fenomenologia ele tomara conscincia de que a h um problema. A maneira fenomenolgica, ele se indagara que postura devo escolher para que a vida humana possa se mostrar em toda a sua singularidade (Eigentmlichkeit). A resposta a essa questo o fundamento da pr-pria filosofia: a crtica objetualizao (Vergegenstndlichung). Ele ensina que a vida humana nos escapa quando a queremos compreender de uma postura terica, objetivadora. Isso percebemos j na tentativa de tomar-mos conscincia da simples "vivncia da ctedra". No pensamento obje-tivador, desaparece o reino das relaes de mundo e vida (Lebensweltlich). A postura objetiva desvivencia (entlebt) a vivncia (Erleben) e des-munda (entweltet) o mundo que encontramos. O filosofar de Heidegger volta-se para a treva do momento vivido. Trata-se de uma profundeza miste-riosa, no um submundo do inconsciente ou um mundo superior do espi-ritual, mas a autotransparncia das realizaes da vida, tambm cotidianas. Para Heidegger filosofia torna-se a arte do estar-atento do dasein para si prprio. Voltar-se para o cotidiano tem uma nfase polmica dirigida contra uma filosofia que ainda acredita conhecer a determinao (Bestimmung) do ser humano. Heidegger age com o patos de um novo comeo. Em suas antigas conferncias h um prazer dadasta de destruir os nobres valores da cultura e desmascarar as significaes tradicionais como mero fantasma. Em carta a Lwith, em 1921, ele diz que trabalha

    feito doido cm sua facticidade, e est-se lixando para as tarefas culturais para um hoje generalizado. Primeiro laboriosamente mas depois com o crescendo de uma conquista triunfante, ele pouco a pouco faz emergir da treva do dasein, como agora chama a vida humana, os dispositivos apre-sentados em Ser e Tempo como existenciais (Existenzialien): ser-emy senti-

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    mento de situao (Befindlichkeit), compreender, decair (Vz rfaWzv), preocu-pao. Ele encontra a frmula do dasein, que se importa com o seu prprio poder-ser (Seinknnen).

    Os anos entre 1923 e 1927, poca do aparecimento de Ser e Tempo, so um perodo de incrvel produtividade. Em grandes conferncias j so desenvolvidos os temas de Ser e Tempo. Dentro desse macio intelec-tual mil e quinhentas pginas na edio completa , Ser e Tempo quase apenas a ponta do iceberg. Mas nessa obra os pensamentos so apresentados numa arquitetura sutil c altssimo equipamento termino-lgico. Permaneceram tambm os andaimes, portanto as medidas metodolgicas, c com isso a obra dava a impresso de algo monstruosa-mente desajeitado. Isso no diminuiu seu efeito no cenrio acadmico, que suspeita muito antes do que e simples. Para o pblico, a obscuridade do livro faz parte da sua aura. Estava em aberto se o dasein que era to obscuro, ou apenas a sua anlise. De qualquer modo, tudo parecia de certa forma misterioso.

    Em Ser e Tempo Heidegger trabalha com a prova filosfica de que o dasein humano no tem outro apoio seno esse ai (da), que e seu. Em certo sentido ele prossegue a obra de Nietzsche: pensar a morte de Deus e criticar os "ltimos seres humanos" (Nietzsche) que recorrem a lamen-tveis deuses-sucedneos e nem admitem o terror pelo desaparecimento de Deus. Em Ser e Tempo a frmula da capacidade de poder sentir terror : coragem para a angstia.

    Ser e Tempo. Um ttulo que promete tratar do todo. No cenrio acad-mico sabia-se que Heidegger preparava uma grande obra, mas no espe-ravam que fizesse uma exigncia to imensa. No podemos esquecer que por enquanto Heidegger ainda no passava por filsofo criativo mas por um intrprete virtuoso da tradio filosfica, que sabia prcscntific-la como nenhum outro, agindo com Plato ou Aristteles semelhana do que Rudolf Bultmann fazia com Cristo: revitalizadoramente.

    Hermann Mrchen recorda como no comeo de 1927, num encon-tro social com os estudantes de sua Unio, "mudo e expectante como uma criana que mostra seu brinquedo predileto", Heidegger apresentou "umas pginas das primeiras provas de um livro e a folha de rosto de Ser e Tempo".

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    A obra, de muita eficcia na sua dramaturgia, comea com uma esp-cie de prlogo no cu. Aparece Plato. Cita-se um trecho do dilogo Sofistas: "Pois obviamente h muito estais familiarizados com o que na verdade eu quis dizer usando a expresso ente (seiend): ns pensvamos um dia t-la compreendido, agora porm estamos embaraados".

    Esse embarao, diz Heidegger, ainda existe, mas no o admitimos a ns mesmos. Ainda no sabemos o que pensamos ao dizer que algo ente. O prlogo queixa-se contra um duplo esquecimento do ser. Esque-cemos o que ser e tambm esquecemos esse esquecer. E assim trata-se de renovar a indagao pelo sentido do ser, mas como esquecemos o esque-cer, trata-se sobretudo de despertar de novo a compreenso para o sentido des-sa pergunta.

    Como convm a um prlogo, j no incio alude-se ao ponto para onde tudo isso converge: a interpretao do tempo como o horizonte possvel de qualquer compreenso do ser. O sentido do ser tempo. Est revelado o tema, mas para torn-lo compreensvel Heidegger no precisar apenas de todo esse livro, e sim do resto de sua vida.

    A questo do ser. Na verdade Heidegger prope duas perguntas. Uma : o que precisamente queremos dizer empregando o termo ente? Per-gunta-se pelo sentido da expresso. Nessa pergunta Heidegger liga outra bem diferente, pelo sentido do prprio ser. Heidegger afirma, quanto pergunta em seu duplo sentido, que no existe nem mesmo uma com-preenso do sentido da pergunta. Estranha afirmao.

    Quanto indagao pelo sentido do ser (no apenas da expresso), podemos dizer que a pergunta que ocupa persistentemente a reflexo humana, desde os comeos da histria at hoje. a pergunta pelo senti-do objetivo e pela importncia da vida humana e da natureza. A pergun-ta pela avaliao (Werten) e orientao para a vida e o por que e para que de mundo, cosmos, universo. A vida moral-prtica faz as pessoas inda-garem por isso. Em tempos mais antigos, quando fsica, metafsica e teo-logia ainda estavam juntas, a cincia tambm tentou responder questo do sentido. Mas desde que Kant descobriu que como seres morais temos de fazer a pergunta, mas como cientistas no a podemos responder, des-de ento as cincias exatas recuam diante dessa pergunta. Mas vida pr-tica moral continua indagando, cotidianamente, na propaganda, na lite-

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    ratura e na reflexo moral, na religio. Como ento que Heidegger pode afirmar que no h mais compreenso para essa pergunta? Ele s pode dizer isso porque pensa que todas essas maneiras de dar sentido, e as perguntas pelo sentido que lhes correspondem, ignoram o sentido do ser. Afirmao ousada, que de imediato coloca o filsofo na luz certa. Pois ele aparece como algum que redescobre o que ficou esquecido c oculto desde os dias de Plato. J no "prlogo no cu", Heidegger se apresenta como protagonista de um interldio no tempo. Ainda vere-mos o que ele tem a nos dizer sobre o sentido do ser. Heidegger mestre em alongar os caminhos. S podemos nos alegrar verdadeiramente com a luz quando ela aparece no fim do tnel.

    Primeiro Heidegger deixa de lado a indagao pelo sentido do ser, que eu chamo de "pergunta enftica". Ele comea com a outra, a pergunta "semntica", que diz: O que queremos dizer ao empregar a expresso ente em que "sentido falamos do ser"? Essa pergunta est absolutamente den-tro do contexto das cincias modernas. Cada cincia, a fsica, a qumica, a sociologia, a antropologia, etc., elabora um determinado territrio do ente, ou trata do mesmo territrio mas com questionamentos e mtodos dife-rentes. Cada conscincia metodolgica quanto maneira adequada de abordarmos nosso objeto, implica uma ontologia regional, ainda que no a chamemos mais assim. Por isso no compreendemos direito a afirma-o de Heidegger, de que no temos mais clareza quanto ao sentido em que tomamos o ser no territrio de cada objeto. Exatamente o neokantismo desenvolvera um extraordinrio senso da conscincia do mtodo. Havia as sutis distines de Rickert e Windelband entre cincias da natureza e culturais, a hermenutica de Ditlhey, a sociologia compreensiva de Max Weber, o mtodo fenomenolgico de Husserl, a hermenutica psicanal-tica do inconsciente. Nenhuma dessas cincias era metodologicamente ingnua, todas tinham uma conscincia ontolgica do problema, na me-dida em que refletiam sobre o seu lugar no contexto total da pesquisa do real. Portanto, para a indagao semntico-metodolgica vale o mesmo que para a pergunta enftica pelo sentido do ser. Nas duas vezes Heidegger afirma que no h compreenso para o sentido das perguntas mas mesmo assim elas so feitas por toda parte. Na vida prtica moral, enfti-ca, nas cincias, a indagao semntico-metodolgica.

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    Heidegger deve pretender algo especial, apenas ainda no sabemos o que. Habilmente ele constri a tenso, para finalmente apresentar a sua tese. Exatamente na pesquisa do ser humano torna-se claro que as cin-cias no tm clareza a respeito do sentido em que fazem o ser humano ser ente. Fazem como se se pudesse divisar o ser humano como um todo, como outros objetos presentes no mundo. E com isso seguem uma ten-dncia espontnea do dasein, de compreender o prprio ser partindo do ente com o qual ele se relaciona na essncia constante e imediatamente, isto do mundo (SuZ, 15). Mas isso uma automistificao do dasein, de que enquanto ele viver nunca est concludo, inteiro e encerrado como seu objeto, mas sempre aberto para o futuro, cheio de possibilidades. Do dasein faz parte o ser-possvel (Mglich-sein).

    Diferentemente do resto do ente, o ser humano tem uma relao com o seu prprio ser. A isso Heidegger chama existncia (Existenz). Exis-tncia como j mostrei na interpretao, de 1922, de Heidegger sobre Aristteles tem um sentido transitivo. Ao instransitivo no dasein Heidegger chama o ser-lanado: acaso jamais um dasein como ele-mesmo decidiu livremente sobre..., se quer chegar ao dasein ou no? (SuZ, 228). Mas quando estamos-a intransitivamente , no podemos evitar de vi-ver transitivamente o que intransitivo em ns. Pelo que nos tornamos intransitivamente, e podemos e temos de ser transitivamente. Mais tarde Sartre encontrar a frmula para isso "fazer algo com aquilo que nos fizeram ser". Somos uma relao de mesmo e com isso simultaneamente uma relao de ser. A caracterstica (Auszeichnung^ ntica do dasein con-siste em que ele ontologicamente (SuZ, 12).

    A expresso ntico designa tudo o que existe. A expresso ontol-gico designa o pensar curioso, espantado, assustado, sobre o fato de que eu existo e que qualquer coisa exista. Ontolgica, por exemplo, a inimitvel frase de Grabbe: "uma vez no mundo, ento s como funileiro em Detmold!" Dasein ou existncia significam pois: ns no apenas somos, mas percebemos que somos. E nunca estamos acaba-dos, como algo presente, no podemos rodear a ns mesmos, mas em todos os pontos estamos abertos para um futuro. Temos de conduzir a nossa vida. Estamos entregues a ns mesmos. Somos aquilo que nos tornamos.

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    J de incio, na pergunta: como falar adequadamente do dasein? Heidegger tem em mira o tempo.

    Olhando para o tempo como para um horizonte aberto, percebemos que muitas coisas incertas nos aguardam, uma com toda a certeza: o grande passar, a morte. Ns a conhecemos, no apenas porque outros morrem, mas porque a cada momento podemos vivenciar o "passar": o rio do tem-po tantas pequenas despedidas, tantas pequenas mortes. Temporalidade a experincia do passar presente, futuro, e finalmente mortal.

    Os dois aspectos da temporalidade final e inaugural, o ser para a morte e o ser-possvel so um duro desafio para o dasein. E por isso com o que o crculo se fecha e voltamos ao incio o dasein tende a lidar consigo mesmo como com algo presente, que se pensa poder liqui-dar (fertig werden) antes mesmo de estarmos prontos (fertig sein). A objetivao cientfica do ser humano para Heidegger um fugir da temporalidade inquietante do dasein. Enquanto isso as cincias apenas prosseguem na j mencionada teimosa tendncia do dasein cotidiano, de se compreender a partir do mundo, isto , como coisa entre coisas. Cincia a forma culta e metodicamente executada da coisificao (Verdinglichkeit) cotidiana do dasein. Mas nesse corao de pedra que Heidegger quer mexer.

    Ele liga as duas indagaes, a enftica pelo sentido do ser, e a semn-tica-metdica pelo sentido da expresso "ser", na tese: a tendncia de lanar o dasein entre as coisas se mantm tambm diante da pergunta enftica pelo sentido do ser. O "sentido" buscado como um algo (Etwas) que existe no mundo ou num transcendental imaginrio, como algo pre-sente, no qual e possvel agarrar e se orientar: Deus, uma lei universal, as tbuas de pedra da moral.

    Esse jeito de indagar pelo sentido como por algo presente, para Heidegger faz parte da fuga do dasein de sua temporalidade e seu ser-possvel. A pergunta pelo sentido do ser foi feita e respondida na dimen-so de uma metafsica da presena, e por isso mesmo deu errado. Hoje essa insensatez celebra com efeito uma alegre ressurreio: "faz-se senti-do", h programas para conferir sentido, fala-se da precariedade das fon-tes de sentido, e que ele deve ser eficazmente produzido. Uma metafsica da presena bastante tola.

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    No se trata aqui de uma postura terica errnea. A indagao pelo sentido do ser, como j se comentou, nem vale mais como indagao das cincias exatas, que tiveram um avano magnfico exatamente porque se desabituaram de fazer essa pergunta. A pergunta pelo sentido feita pela conscincia cotidiana da moral prtica. Mas como compreendermos essa postura da conscincia?

    Faz parte do refinamento dramatrgico de Ser e Tempo, que s no meio da obra Heidegger faa aparecer o verdadeiro sujeito da pergunta pelo sentido do ser. O sujeito, o quem dessa pergunta, uma disposio (Stimmung); nele trata-se da situao fundamental da angstia. Na an-gstia o dasein indaga pelo sentido do ser, pelo sentido do seu ser. O famoso pargrafo 40 dedicado anlise da angstia. No existem em Ser e Tempo, apesar de Hannah Arendt, pargrafos sobre o jbilo, o amor disposies das quais tambm poderia nascer a indagao pelo senti-do do ser. Isso no tem a ver unicamente com a distino filosoficamente fundamentvel de determinadas impresses (Stimmungen) com relao sua fora filosfica de deduo, mas tambm tem a ver com o autor, com seus verdadeiros estados de nimo e sua preferncia por determina-dos desses estados.

    Ento, vamos angstia (Angst). Ela a rainha nas sombras entre as disposies de esprito. Deve ser distinguida do temor (Furcht). Este se dirige contra algo determinado, pequeno. Mas a angstia indeterminada e to ilimitada quanto o mundo. Temos angstia do mun-do como tal. Diante da angstia tudo cai por terra, nu, despido de qual-quer importncia. A angstia soberana, ela pode tornar-se poderosa em ns por motivos insignificantes. E como no o faria, pois seu verdadeiro contrrio o nada? Quem tem angstia, a esse mundo no tem mais nada a oferecer; nem mesmo o estar-junto de outros. A angstia no tolera outros deuses alm de si, e isola em dois sentidos. Ela rompe a relao com o outro, e faz o indivduo isolado cair fora das relaes de familiaridade com o mundo. Confronta o dasein com o isso nu do mundo e do prprio mesmo. Mas o que sobra quando o dasein passou pelo frio fogo da angstia no nada. O que foi queimado pela angstia revelou o cerne de fogo do dasein: o ser-livre para a liberdade do escolher-a-si-mesmo e do apreender-a-si-mesmo.

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    Na angstia pois o dasein experimenta a estranheza (Unheimlichkeit) do mundo e a prpria liberdade. Assim a angstia pode ser duas coisas ao mesmo tempo: angstia do mundo c angstia da liberdade.

    Essa anlise foi iniciada por Kierkegaard, com quem a angstia da liberdade se tornou angstia da culpa. Kierkegaard tenta vencer a angs-tia com o salto na f, um salto sobre o abismo. A angstia de Heidegger no o preldio desse salto. Ele perdeu a f na sua origem. Com Heidegger a angstia depois do salto, quando j estamos despencando.

    Naturalmente a filosofia da angstia de Heidegger tambm vive da disposio da crise generalizada dos anos vinte. O mal-estar da civiliza-o ensaio de Freud sob esse ttulo apareceu em 1929 estava muito difundido. A ensastica da concepo de mundo daqueles anos estava marcada pelo sentimento de desconforto de um mundo que naufragava, estava invertido ou estranho. Os diagnsticos eram sombrios e inmeras as terapias oferecidas. Buscava-se curar o todo enfermo em um ponto s. Como na poltica de Wcimar, o centro democrtico foi esmagado pelo extremismo dos que queriam mudana total, tambm na filosofa de crise daqueles anos preponderava a fuga para solues extremas. Elas tinham diversos nomes: "proletariado", "inconsciente", "alma", "sagrado", "povo", etc. Naquela ocasio Carl Christian Bry examinou o mercado das filoso-fias de controle da crise em seu livro Religies Disfaradas, best-seller dos anos vinte. Quando o livro apareceu, dois anos antes de Ser e Tempo, grassavam um fantico anti-semitismo e pensamentos sobre a raa, co-meava a "bolchevizao" no partido comunista alemo, Hitler escrevia Mein Kampf, cm Landsberg, milhes buscavam salvao em seitas ocultismo, vegetarianismo, nudismo, teo-antroposofia, havia muitas pro-messas de redeno e ofertas de orientao. O trauma da desvalorizao monetria fizera florescer os negcios dos santos da inflao. Tudo pode-se tornar "religio disfarada", dizia Bry, desde que se torne "mono-maniacamente" o princpio nico de interpretao e de salvao. Bry, ele prprio um homem religioso, encontrou um critrio supreendentemente simples para a diferena entre religio e religio-sucednca. Uma reli-gio de verdade educa por temor ao inexplicvel do mundo. Na luz da f, o mundo se torna maior, tambm mais obscuro, pois preserva seu mist-rio, e o ser humano compreende-se como parte disso. Permanece incerto

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    quanto a si mesmo. Para o monomanaco da "religio disfarada" porm, o mundo encolhe. "Ele encontra em tudo e em cada coisa apenas a con-firmao da sua opinio", que defende com o ardor da f contra o mundo e contra suas prprias dvidas.

    Ser e Tempo fazia parte dessa disposio de crise, mas distinguia-se do gnero em questo porque ali no se oferecia terapia. Em 1929 Freud introduzira seu diagnstico sobre O Mal-Estar na Civilizao com as palavras: "Assim falta-me o nimo para aparecer diante dos meus seme-lhantes como profeta, e aceito a sua acusao de que no sei trazer-lhes consolo, pois no fundo o que todos pedem". Essas palavras tambm servem para o empreendimento heideggeriano. Tambm ele pensa a partir da experincia do mal-estar e nega-se a aparecer como profeta e "trazer consolo".

    Porm com a enftica pergunta sobre o sentido do ser certamente se despertavam tais expectativas. E foram despertadas mas no realiza-das. Faz parte da mensagem de Ser e Tempo, que diz: No h nada por detrs, que essa expectativa tivesse de ser decepcionada. O sentido do ser o tempo; mas o tempo no uma cornucpia de ddivas, ele no nos d apoio nem orientao. 0 sentido o tempo, mas o tempo no nos d sentido.

    Na anlise do dasein de Heidegger a angstia o centro da vicissitu-dc: samos das relaes nas quais at ali nos estabelecamos vivendo (festgelebt). As anlises que precedem o captulo sobre a angstia tm como tema o dasein estavelmente estabelecido em seu mundo. V-se que a angstia, por deixar escapar o mundo e nessa medida ser um fenmeno de distanciamento, mais fcil de descrever do que esse ser-no-mundo do dasein cotidiano, singularmente no-distanciado e estabelecido. Se o que-remos tornar transparente, preciso de certa forma "participar" desse movimento no-distanciado do dasein, e no o podemos colocar em uma perspectiva fora disso. Exatamente aqui vale o princpio fenomenolgico: no se deve falar "sobre" o fenmeno, mas preciso escolher uma postura que permita ao fenmeno mostrar-se.

    Nesse sentido a filosofia pecou muito at aqui. Ou descreveu como a conscincia surge do mundo (naturalismo), ou como o mundo consti-tudo pela conscincia (idealismo). Heidegger procura um terceiro ca-minho. Seu ponto de irrupo original mas tambm forado: preciso

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    comear no ser-em (In-Sein). Pois "fenomenalmente" eu no experimen-to primeiro a mim mesmo e depois ao mundo, nem ao contrrio primei-ro ao mundo e depois a mim mesmo, mas as duas coisas so dadas na experincia numa ligao indissolvel. A fenomenologia chamara essa experincia de "intencionalidade". Para Heidegger era a mais importan-te idia da fenomenologia, mas que ele concebe como relao-de-mun-do do dasein e no apenas, como Husserl, como dispositivo consciente.

    A anlise do ser-em leva a bizarras complicaes na terminologia. Pois cada depoimento conceituai tem de evitar recair na separao to evidente entre sujeito e objeto, e na escolha de um ponto-de-vista "sub-jetivo" (interior) ou "objetivo" (exterior). Assim surgem as construes vocabulares com hfen, para designar os dispositivos numa ligao indissolvel. Alguns exemplos. Ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) signi-fica: o dasein no se defronta com um mundo mas sempre j se encontra diante dele. Ser-com-outros (Mit-sein-mit-anderen) significa: o dasein j se encontra sempre em situaes comuns com outros. Ser-adiante-de-si (Sich-vorweg-sein): o dasein no olha eventualmente do ponto-de-vista do agora, mas olha para o futuro constantemente providenciando (besorgend). Essas expresses mostram o carter paradoxal de todo o empreendimento. Anlise, afinal, significa que algo desmembrado. Mas Heidegger, analisando os efeitos da anlise, tenta revogar outra vez a separao em partes e elementos. Heidegger mete as mos no dasein como numa colnia de algas. No importa onde as pegamos, sempre as teremos de retirar como um todo. Esse esforo de pegar algo individual e sempre retirar junto o todo a ele ligado leva por vezes a uma involuntria autopardia. Assim por exemplo a preocupao (Sorge) determinada como j-estar-antecipado-a-si-em (um mundo) como ser-com (ente que en-contra dentro do mundo) (SuZ, 327).

    A complicao da linguagem deve se adequar complexidade do dasein cotidiano. Na preleo Pro/egmenos da Histria do Conceito de Tempo, do vero de 1925, Heidegger diz: se aqui somos obrigados a introduzir expres-ses pesadonas e talvez nada bonitas, no brincadeira minha nem prefern-cia especial por uma terminologia prpria, mas a coero dos prprios fen-menos... Se muitas vezes emergem formulaes desse tipoy no nos devemos chocar. No h nada de belo nas cincias e muito menos talvez na filosofia

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    (GA 20, 204). Alm disso a terminologia especial analogamente ao processo brechtiano uma tcnica de estranhamento, pois o que ali se examina no coisa estranha e desconhecida, mas ao contrrio a mais prxima, e por isso conduzindo a uma viso errnea (G A 20,205). At aqui trata-se de uma linguagem calculada. Ela diz o evidente de um modo que at filsofos o possam compreender. Nessa medida a linguagem tambm trans-mite os esforos da filosofia na pesquisa da vida cotidiana, qual via de regra at agora procurou evitar. O onticamente mais prximo e conhecido o ontologicamente mais distante, desconhecido e... ignorado (SuZ, 43).

    Heidegger chama a anlise do ser de anlise existencial e as determi-naes fundamentais do dasein de existenciais (Existenzialien). Muitos mal-compreendidos ligaram-se a esse conceito. Mas ele se formou sim-plesmente por analogia com o conceito tradicional da categoria. A filo-sofia tradicional habitualmente chamou as determinaes fundamentais de seus "objetos" de categorias, como por exemplo espao, tempo, expan-so, etc. Como para Heidegger o dasein no um "objeto" presente mas existncia, ele no designa as determinaes fundamentais de categori-as, mas antes as existenciais.

    Portanto Heidegger comea a sua anlise do dasein com o ser-em, porque o prprio dasein comea com ele. O ser-em no significa apenas que estamos em alguma parte, mas que sempre lidamos com algo, sem-pre temos a ver com algo.

    Radical sabidamente quem vai at as razes. Para Marx a raiz do ser humano era o ser humano que trabalha. O lidar com alguma coisa de Heidegger como determinao fundamental do ser humano ainda mais abrangente do que "trabalhar". Marx definira trabalho como "troca me-tablica com a natureza". Em Heidegger o lidar com tambm se relacio-na como mundo-em-torno (objetual, natural), mas igualmente com o mundo-do-si mesmo (Selbswelt) e o mundo-com (Mitwelt) (sociedade).

    A abordagem de Heidegger pragmtica, pois o agir, que o que significa o lidar com, vale como dispositivo fundamentador do dasein.

    Pragmtica tambm a ligao de agir e reconhecer. Na terminologia heideggeriana: o lidar-com primrio tem a sua circumviso (Umsicht) que sempre faz parte dele. Por isso tambm errado querer compreender a partir de si mesma a conscincia que reconhece. Isso dirige-se contra a

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    pesquisa da conscincia fenomenolgica de um Husserl. Como o reco-nhecer brota da lida prtica com o mundo, tem de ser investigado tam-bm a partir da atividade vital prtica.

    Isso ser um retorno ao princpio materialista bem conhecido "o ser determina a conscincia"? Objeo de Heidegger: se deixarmos a consci-ncia ser determinada pelo ser, pressupomos que sabemos o que o ser. Mas no sabemos isso, indagamos por isso, diz Heidegger. S podemos observar cuidadosamente e descrever fenomenologicamente como o mundo-em torno, o mundo-com e o mundo-do-si mesmo encontram o dasein.

    Em seguida ele pergunta: como e com o qu encontro o mundo-em-torno objetual? Encontro como instrumento (Zeug) com o qual tem de-terminada ligao no crculo de minha atividade.

    Exemplo: no percebo como uma tbua laqueada a porta que eu ha-bitualmente abro. Quando estou familiarizado com ela, nem a percebo. Eu a abro para ir ao meu escritrio. Ela tem seu "lugar" no meu espao vital, mas tambm no meu tempo vital: ela desempenha determinado papel no ritual de meu cotidiano. Seu ranger faz parte dele, os rastros de seu uso, as lembranas que se prendem nela, etc. Essa porta, segundo a expresso de Heidegger, est disponvel(zuhanden). Se acaso alguma vez, supreendentemente, ela estiver trancada e eu bater com a cabea nela, perceberei doloridamente a porta como tbua dura que ela realmente . Ento a porta disponvel (zuhanden) se tornar uma porta simplesmente existente (vorhanden).

    As relaes em que vivemos formam dessa maneira o mundo do que est disponvel. L existe uma relao de significao com a qual me fa-miliarizo agindo, mesmo sem a conhecer nos detalhes. Ns "vivemos" esses significados sem os trazermos expressamente conscincia. S quan-do ocorre uma perturbao, vinda de fora ou da conscincia, esse contex-to vivido se desfaz e as coisas chamam ateno como algo simplesmente existente (Vorhanden). Mas, no simplesmente existente, os significados vi-vidos do disponvel desapareceram ou perderam as foras. S com a trans-formao do disponvel em presente, as coisas se tornam objetos no senti-do estrito, que podem ser investigados em uma postura terica.

    A anlise de Heidegger tenta salvar o mundo do disponvel para o pensar, porque em geral ele visto com excessiva pressa (bereilt) pelo co-

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    nhecimento filosfico. Organizamos depressa demais as coisas (e pesso-as) de modo a que s existam de uma maneira indiferente. Mais tarde Heidegger chamar a transformao do mundo em algo meramente exis-tente de esquecimento-do-ser (Seinsvergessenheit), e a preservao cons-ciente do espao vital disponvel torna-se uma ligao-do-ser, compreen-dida como proximidade (Nhe) ou como morar junto das coisas (Wohnen bei der Dingen). A postura correspondente chamar-se- ento serenida-de (Gelassenheit).

    Em Ser e Tempo porm predomina outro ideal de existncia, como ainda veremos.

    O dispositivo fundamental desse lidar com o mundo o que Heidegger chama preocupao (Sorge). Ele d uma ampla significao a essa expres-so. Preocupao tudo. Para explicar isso Heidegger cita a "Cura" da Antigidade tardia fbula de Higino.

    Quando certa vez a Preocupao atravessou o rio, viu um terreno o argi-loso: refletindo pegou um pedao dele e comeou a form-lo. Enquanto refletia sobre o que estava criando, Jpiter aparece. A Preocupao pede-lhe que con-

    fira esprito argila formada. Jpiter lhe concede isso com prazer. Mas quando ela quis dar seu prprio nome figura, Jpiter proibiu e pediu que lhe desse o nome dele. Enquanto Jpiter e a Preocupao brigam por causa do nome, tambm a Terra (Tellus) se manifestou e quis que a figura tivesse nome dela, pois afinal ela lhe dera um pedao de seu prprio corpo. Os litigantes chama-ram Saturno com o juiz. E Saturno deu-lhes a seguinte deciso aparentemente justa: Tu, Jpiter,; porque lhe deste o esprito, ters o seu esprito depois da morte, tu, Terra, que lhe deste o corpo, receber s seu corpo. Mas porque a Pre-ocupao formou essa figura antes dos demais, enquanto ela viver ser pro-priedade da Preocupao (SuZ, 198).

    Portanto Preocupao no significa que nos preocupamos de vez em quando. Preocupao uma marca fundamental da conditio humana. Heidegger usa a expresso no sentido de providenciar, planejar, impor-tar-se, calcular, prever. A relao de tempo aqui decisiva. S pode ser preocupada uma criatura que v diante de si um horizonte temporal aberto e indisponvel no qual tem de viver. Somos criaturas preocupadas e pro-vedoras porque vivenciamos expressamente o horizonte temporal aberto para diante. Preocupao no seno temporalidade vivida.

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    Preocupados, impelidos pelo tempo, encontramos, agindo, o mundo que, partindo da perspectiva do lidar com ele, pode ser simplesmente existente (vorhanden) ou estar disponvel (zuhanden). Mas o dasein em si no nem algo simplesmente existente nem algo disponvel, mas existncia. Existir significa ter uma relao consigo mesmo; ter de relacio-nar-se consigo mesmo e com o seu ser. Como que o ser humano expri-me o seu prprio ser? Resposta de Heidegger: na disposio (Stimmung).

    As possibilidades de deduo do reconhecer so insuficientes... em relao deduo original das disposies em que o dasein colocado... diante do seu ser. (SuZ, 134).

    Heidegger combate enfaticamente uma automistificao tenaz da fi-losofia. Como filosofia um esforo do pensar, ela atribui ao pensar a maior fora dedutiva. Sentimentos e disposies seriam "subjetivos", por isso inadequados para propiciar o conhecimento do mundo, diz ele. Na-turalmente os chamados "afetos" sempre foram objeto de curiosidade terica. Puderam ser objetos do reconhecer, mas como rgos do reconhe-cer via de regra no eram admitidos. Com Nitezsche e a filosofia da vida isso mudara, mas para Heidegger ainda no de modo suficientemente radical. O filosofar que partia de disposies teria se deixado empurrar para o refgio do irracionalismo. Mau domiclio para a filosofia. O irracionalismo como contraparte do racionalismo s fala olhando de soslaio daquilo para o que este cego (SUZ, 136).

    Heidegger aborda as disposies diretamente e no olhando de soslaio.

    Sempre somos disposicionados de alguma forma. Disposio um sen-timento de situao (Befindlichkeit). Podemos entrar em disposies, mas essencial que elas se instalem, se insinuem, nos rondem, nos assaltem. No as dominamos. Na disposio descobrimos os limites de nossa au-todeterminao.

    Heidegger porm no examina todas as disposies possveis, e con-centra-se em algumas poucas que servem ao seu conceito. Como dis-posio fundamental cotidiana ele destaca a indisposio muitas vezes du-radoura, simtrica e plida com sinais de fastio e tdio. E v-se a: o ser evidenciou-se como um nus (SuZ, 134). A atividade cotidiana seria uma fuga dessa disposio. O dasein controla-se, torna-se ativo, no se per-

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    mitc o que a disposio anuncia. 0 dasein em geral se retrai... do ser revela-do na disposio (Suz, 135).

    Pode-se compreender a ontologia fundamental de Heidegger como a tentativa de cortar os caminhos de fuga do dasein. Com intensidade igual-mente insistente c penetrante Heidegger aborda aquelas disposies em que se evidencia o carter de nus do dasein plido e cotidiano no fastio e no tdio, colorido c dramtico no medo.

    Mas a afirmao de que as disposies onerosas seriam as fundamen-tais no convincente. Max Scheler, que semelhana de Heidegger atribui um carter fundamental s disposies, chega a outros resultados. Em sua anlise Natureza e Formas da Simpatia (1912) explica amor e afeto, o "balouar junto e ir junto", como situao fundamental, e inversamente julga o sombrio e o oneroso como uma perturbao e uma ausncia desse trao fundamental de simpatia.

    Poder-se-ia dizer simplesmente que Heidegger tomou como ponto de irrupo a disposio fundadora predominante nele, e a situao de tempos de crise de Weimar. Isso seria justificado, pois o prprio Heidegger sempre destaca a Je-meinigkeit e a historicidade da disposio. Mas ape-sar de Je-meinigkeit e historicidade, ele quer dar depoimentos fundamen-tais ontolgicos justificados: no apenas o prprio dasein c o de seu tempo, mas o dasein em geral deve ser abrangido em suas disposies fundamentais.

    Com sua anlise do dasein, Heidegger queria levantar a pergunta pelo ser, e por isso no queria que fosse compreendida apenas como uma cola-borao para a antropologia filosfica. Tanto mais chama ateno que importantes estudiosos de antropologia filosfica daquele tempo, Helmuth Plcssncr c Arnold Gchlcn, tambm partem do carter de nus do dasein humano. Mas os dois tiram outras concluses. Em contraste com isso, a abordagem de Heidegger fica especialmente ntida. Plessner, em sua prin-cipal obra antropolgica, Degraus do Orgnico e o Ser Humano (1928), define o ser humano referindo-se sua posio "excntrica". Ele no tem um mundo-em-torno orgnico especial em que fique perfeitamente in-serido. Ele est aberto ao mundo. No vive como os animais, "partindo do seu meio e entrando no seu meio", mas primeiro tem de procurar e criar esse seu meio. Ele um ser de distncia, que carrega como peso a si

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    mesmo e sua posio excntrica. Pois esta o enreda em melindrosas contradies. Ele procura a sua posio, estabelece relaes, mas no con-segue entregar-se inteiramente a elas. Sempre volta a cortar essas ligaes vivcnciando-sc por dentro como criatura reflexiva. Ele age dentro do mundo e se reflete para fora dele. Portanto no e apenas excntrico quan-to ao mundo, mas tambm a si prprio. "Como eu que possibilita para si mesmo a total volta do sistema vivo para si mesmo, o ser humano no est mais no Maqui-agora" mas "atrs" dele, atrs de si mesmo, expatriado, no nada... Sua existncia est verdadeiramente referida ao nada."

    Excentricidade significa: preciso carregar mais a vida do que ela nos carrega, ou, positivamente, preciso conduzir a sua vida. Vida humana est sob a lei da "artificialidade natural".

    A esse achado liga-se Arnold Gehlen nos anos trinta. Tambm para ele o ser humano est aberto ao mundo, c no se adapta instintivamente a nenhum mundo-em-torno especial. Essa no-adaptabilidade diminui-ria as chances de sobrevivncia biolgicas, se as carncias no fossem compensadas de outras maneiras. O ser humano tem de realizar em cul-tura o que lhe falta como natureza. Ele tem de criar para si mesmo o mundo-em-torno que lhe sirva. Com isso age segundo o princpio do alvio. Como j tem de "fazer" tanta coisa, esfora-se por conformar as coisas e a si prprio de modo tal que "funcionem" com um mnimo de dispendio cm espontaneidade, energia de motivao c estmulo. O ser humano tenta pois eliminar sua excentricidade e reflexividade organi-zando seu mundo vital de maneira a que ele o alivie daquilo que em toda uma tradio filosfica passara por ser a essncia da dignidade humana: espontaneidade, reflexividade, liberdade.

    A vida torna-se mais onerada quanto mais interiorizado o ser huma-no. Essa interioridade via de regra fraca demais para carregar seu mun-do prprio, mas forte o bastante para fazer sentir com presuno e "inverdade". Finalmente o ser humano, que sofre pelo "hiato" dessa interioridade, cai no inevitvel e deixa que a civilizao o alivie do peso do dasein mesmo que com isso tenha a sensao de perder a si mes-mo. O ser humano entra cm si e perde o mundo, c entra no mundo e perde a si mesmo. Para Gehlen, segue que: "O ser humano s pode man-ter ligao duradoura consigo mesmo e o seu semelhante, de maneira

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    indireta, precisa, renunciando a si, reencontrar-se por um desvio, e a esto instituies. E so com efeito... essas formas produzidas pelo ser humano, em que o espiritual... objetivado, se enreda com o curso das coisas e exatamente s por isso perdura. Assim pelo menos os seres hu-manos so queimados e consumidos pelas suas prprias criaes, e no pela natureza crua, como os animais".

    Gehlen e Plessner, como tambm Heidegger, comeam pelo carter de nus do dasein e descrevem depois as tcnicas culturais do alvio como necessidade elementar de sobrevivncia. Heidegger tambm fala da evi-dente e predominante tendncia de considerar fcil e tornar fcil (SuZ, 127). Mas para ele exatamente essa tendncia que priva o homem de seu poder-serprprio. Como lidamos com o carter de nus do dasein, procu-rando alvio ou assumindo o nus, isso decide sobre impropriedade e propriedade. Para Heidegger, o alvio est sob suspeita de ser uma ma-" nobra de fuga, de retrao, de caducidade de impropriedade. O propria-mente heri carrega como Atlas o peso do mundo e ainda dever ser capaz da habilidade de andar ereto e de ter um projeto audacioso de vida.

    Alm do famoso captulo sobre a morte, so as anlises sobre proprie-dade e impropriedade que criam grande publicidade para essa difcil obra nos anos vinte. A descrio de Heidegger do mundo da vida (Lebenswelt) imprprio tem um ntido trao de crtica ao seu tempo, embora ele sem-pre tenha negado isso. Seja como for, crtica massificao e urbaniza-o, vida pblica nervosa, indstria da diverso que cresce poderosa-mente, ao cotidiano frentico, popularidade novelesca da vida espiritual, entra na sua descrio de um dasein que no vive a partir de seu prprio poder-ser mas vivido pelo agente (Man): cada um o outro e nenhum ele mesmo (SuZ, 128).

    Esse mundo do agente foi por vezes descrito ainda mais insistente e precisamente por outros autores dos anos vinte. Robert Musil em O Homem Sem Qualidades'. W

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    de um mundo inteiro, mas um algo humano move-se em um lquido nutriente geral'".

    Walter Mehring em sua cano Epa, Estamos Vivos/: "Neste hotel na terra/hospedava-se a nata da sociedade/e com gestos leves/sustentava o grande nus da vida!"

    Vicki Baum cm seu bem sucedido romance O Hotel, de 1931, diz: "Quando voc sai, vem outro e se deita na cama dela. Fim. Sente-se umas horinhas no saguo e observe bem: mas as pessoas nem tm rosto! So s simulacros, todos juntos. Esto todos mortos e nem sabem..."

    O a gente de Heidegger tambm um desses simulacros: a gente com que se responde indignao pelo quem do dasein cotidiano, ningum, ao qual todo o dasein j se entregou na reciprocidade (SuZ, 128).

    As descries de Heidegger da modernidade de Weimar impressio-nam exatamente pelo ambiente em que foram colocadas. Isso faz com que o trivial e o cotidiano tenham a sua grande cena no palco organizado pela ontologia fundamental. Ele tem o papel principal no drama de nos-sa existncia. E por isso Heidegger tambm no quer ser compreendido como crtico de seu tempo, pois crtica seria algo ntico, e ele se interessa pelo ontolgico.

    Esses ninguns encenam uma pea espectral no palco de Heidegger. So mscaras, mas no h nada por trs delas. Nenhum si mesmo. Onde ficou o si mesmo? Impropriedade um estado de afastamento, de sepa-rao ou estranhamento do mesmo prprio? O verdadeiro si mesmo aguarda em ns ou atrs dos bastidores, para finalmente voltar a ser reali-zado (verwirklicht)? No, diz Heidegger. A impropriedade seria a forma original de nosso dasein, e no apenas no sentido do (oticamente) habi-tual, mas tambm do ontolgico. Pois a impropriedade um existencial como o ser-em (ln-Sein). Estamos sempre numa situao em que anda-mos muito ocupados. Isso j foi mencionado no exemplo do mundo-em-tornoy mas naturalmente tambm vale para o mundo-com (Mitwelt) e o mundo de si mesmo (Selbstwelt). Isso significa: O dasein imediatamente e geralmente no est consigo mesmo, mas l fora com suas ocupaes e com os outros. Primeiro eu no sou eu no sentido do prpro mesmo, mas os outros maneira do a gente... Primeiro o dasein a gente, e geralmente per-manece assim. Quando o dasein descobre por si o mundo e o aproxima de si,

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    quando e ele mesmo descobre o seu ser prprio, ento realiza-se essa descoberta de mundo e descoberta do dasein sempre como afastamento dos encobrimentos e obscuridadesy como quebra das dissimulaes com as quais o dasein se fecha para si mesmo (Suz, 129).

    J conhecemos um momento em que as dissimulaes se quebram e se revela o ser prprio', o momento do medo. O mundo perde sua impor-tncia, aparece como "isso" nu sobre o pano de fundo do nada, e o pr-prio dasein sente-se exilado, no-protegido, nem conduzido por nenhum sentido objetivo. A irrupo para o ser prprio acontece portanto como choque de contingncia como a experincia: no h nada por trs. Heidegger formulou mais claramente essa vivncia de iniciao para uma filosofia da propriedade na conferncia de posse em Freiburg, de 1929, do que cm Ser e Tempo. L ele diz que filosofia s comea quando temos a coragem de deixar o nada acontecer. Olho no olho com o nada percebe-mos que no somos apenas "algo" real, mas que somos criaturas criativas, que podem fazer algo brotar do nada. Decisivo : o ser humano pode experimentar-se como lugar onde do nada surge algo, e do algo surge o nada. A angstia nos conduz a esse ponto de transio. Ele nos confron-ta com o ser-possivel, que somos todos ns.

    A anlise da angstia de Heidegger no tem expressamente o medo da morte como tema. Pode-se dizer, antes, que seu tema o medo da vida, de uma vida que subitamente se torna presente a ns em toda a sua contingncia. A angstia evidencia que a vida cotidiana est fugindo de sua contingncia. Esse o sentido de todas as tentativas de se estabelecer na vida. Podia-se pensar que agente apenas todo mundo, mas so tam-bm os filsofos. Pois esses, diz a crtica de Heidegger, instalam-se na vida em suas grandes construes, seus mundos de valor e seus mundos-por-detrs (Hinterwelt) metafsicos. Tambm a filosofia em geral est ocupada removendo o choque da contingncia, melhor ainda, em nem o admitir. E agora, a prpria propriedade. Ela a negao da negao. Ela resiste tendncia para a fuga, para a retrao.

    Propriedade est voltada para nada. Ela significa vir ao mundo mais uma vez. Propriedade no descobre novos territrios do dasein. Tudo pode permanecer e provavelmente vai permanecer como era, s a postu-ra em relao a ele mudou.

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    Se a angstia a vivncia de iniciao da propriedade, ento o famoso precursor da morte j faz parte do sucesso dessa propriedade. Por isso o captulo da morte tem seu lugar no dispositivo artificial de Ser e Tempo na seo sobre possvel ser-inteiro do dasein outro termo para a propriedade.

    Tambm na relao com a morte, Heidegger escolhe como contraste a compreenso cotidiana da morte, que pode ser assim formulada: agente tambm morre no final\ mas de momento no somos atingidos (SuZ, 253). Enquanto vivemos, a prpria morte ainda no existe para ns mesmos e por isso no nos ameaa (SuZ, 253).

    No seria muito original, filosoficamente, se Heidegger quisesse en-riquecer a milenar tradio do memento mori com mais uma pregao de penitncia e converso. Ele alude a isso quando cita o texto do final da Idade Mdia, de Johannes Tepl, O Lavrador da Bomia: "Assim que che-ga na vida, o ser humano tem idade suficiente para morrer".

    Heidegger quer descrever fenomenologicamente as diversas manei-ras como somos, na vida, atingidos pela morte, no num discurso como-vido mas com uma terminologia muito bem equipada, objetivamente distanciada. Ao mesmo tempo sentimos aqui a excitao que indica que nos encontramos nas zonas quentes do filosofar. A morte, diz Heidegger, no fim da vida mas o ser-para-o-fim, ela no est nossa frente como a derradeira horinha, mas est dentro da nossa vida, pois sabemos do nosso morrer. A morte a possibilidade sempre nossa frente, e como tal a possibilidade da impossibilidade da prpria existncia. Embora todos sejamos atingidos pela morte, cada um tem de morrer a sua prpria mor-te. De nada lhe adianta a idia da comunidade desse destino. A morte individualiza, ainda que se morra em massa. A tentativa de a compreen-der como a fronteira absoluta tem de compreend-la ao mesmo tempo como fronteira da compreenso. A relao com a morte o fim de toda a relao. O pensar na morte o fim de todo o pensar. Na idia da morte Heidegger quer apanhar o rasto do mistrio do tempo: a morte no um acontecimento no tempo, mas o fim do tempo. Como acontecimento "no" tempo, a morte aparece quando sei da morte dos outros. Ento fico sob a sugesto do tempo espacializado (verrumlicht). O espao tempo-ral to espaoso que, depois da morte do outro eu ainda tenho espao dentro dele. Essas imagens espaciais do tempo nascem do pensar im-

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    prprio no tempo. No se pensa no tempo prprio, fato de que o irreversvel movimento do tempo, o grande passar, passa atravs de mim. As imagens espaciais imprprias tomam o tempo como algo simples-mente existente.

    Recordo aqui que Heidegger distinguira o ente (Seiend) do simples-mente existente (Vorhanden) como existncia. No contexto da anlise da morte essa distino se torna especialmente premente. O simples-mente existente o espacializado. Dasein humano porm tempo re-nunciado, suportado, vivido at o fim. presena ope-se o ter-passado. As coisas so no tempo, mas o dasein tem seu tempo, ele se temporaliza (Zeitigt); e como isso uma exigncia para a necessidade de segurana e estabilidade, existe essa poderosa tendncia de autocoisificao da vida. Gostaramos de repousar no tempo como as coisas. Os consoladores pen-samentos de imortalidade oferecem a fora do espao duradouro contra o tempo passageiro.

    A pergunta feita no incio, pelo sentido do ser do ponto de vista do pensar a temporalidade, aparece de repente numa nova luz. Reconhece-mos em que sentido em geral se faz a indagao pelo sentido, isto , indagando por um sentido persistente ou pelo sentido do que persiste. Contra esse persistir, contra a secreta e sinistra sugesto de espao que Heidegger pensa. O sentido do ser tempo isso significa: ser no nada persistente, algo passageiro, no nada presente, mas aconteci-mento. Quem realmente ousa pensar a sua prpria morte, descobre-se como verdadeiro acontecimento do ser. Essa descoberta j quase a mais alta medida de autotransparncia que o dasein consegue atingir para si mesmo. Se auto-encobrimento impropriedade, ento a autotrans-parncia um ato da propriedade. Mas como a filosofia de Heidegger trabalha com essa autotranspareia, compreende a si mesma como tal ato de propriedade.

    Muitos intrpretes de Ser e Tempo se esforam por purificar ontolgico-fundamentalmente a filosofia da propriedade de Heidegger de qualquer tica, s para rejeitar a suspeita de que pudesse haver uma relao entre essa propriedade e o futuro engajamento de Heidegger com o nacional-socialismo. Mas esse esforo violenta inadmissivelmente o formalismo dessa filosofia da propriedade. Pois Heidegger declarou expressamente

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    que a concepo de existncia prpria fundamentada por um ideal ftico do dasein (SuZ, 310).

    Esse ideal no comeo negativamente determinado. O dasein ento prprio quando tem coragem de depender de si mesmo e no confiar no que Heidegger chamava a "moralidade substancial" de estado, socie-dade e moral pblica; quando ela pode renunciar s ofertas de alvio de parte do mundo do a gente e consegue reunir foras para se recuperar da perdio\ quando no brinca mais com as mil possibilidades que existem mas agarra o scr-possvcl que somos ns mesmos.

    Quando Heidegger, o grande intrprete de Aristteles, posiciona a sua tica da propriedade contra a tica do pblico, tem de afastar-se da tradio aristotlica de uma tica prtica da vida pblica. Aristteles, ao contrrio de Plato, trouxera a "filosofia do bem" de volta para o cho da realidade social de seu tempo. Reabilitara o costumeiro e o comum. O bem moral para ele no se obtinha pelo afastamento do socialmente vi-gente, mas apenas na ligao com ele.

    Para Aristteles e para a tradio que parte dele at o pragmatismo tico e a teoria da razo comunicativa, vale como ponto de partida e padro de orientao para vida bem sucedida e eticamente responsvel, exatamente aquele territrio que Heidegger designa o mundo do agente.

    Quando o eu-mesmo se desliga outra vez do a gente recuperando-se para si prprio, aonde que chega? Resposta de Heidegger: chega cons-cincia da mortalidade e do tempo, compreenso da inconfiabilidade de toda a providncia civilizatria do dasein e, sobretudo, na conscincia do prprio poder-scr, portanto na liberdade, no sentido de espontanei-dade, iniciativa, criatividade. E um local de chegada ao qual tambm Gottfried Benn quer chegar por outras vias. No poema Destilao ele diz: "Deixo-me esboroar,/permaneo perto do fim,/ento entre escombros e fardos/aparece uma grande hora".2/ Em Benn o dasein que chega de si mesmo tem de "esboroar-se" primeiro, em Heidegger tem de se arrancar, e no encontra cho debaixo dos ps mas um abismo de liberdade e tam-bm uma "grande hora".

    27 Ich lasse mich zcrfal lcn/ ich blcibc dem Endc nah,/dann stchi zwischcnTrmmcrn und Ballen/einc grosse Stundc da. (N. d a T . )

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    Na espetacular disputa com Cassirer em 1919 em Davos, Heidegger esclarecer que o ser humano s em bem poucos momentos existe no pice de suas prprias possibilidades (K, 290).

    Na propriedade heideggeriana com efeito no se trata primeiramente do agir bom e eticamente correto, mas da abertura de chances para gran-des momentos, trata-se do aumento de intensidade do dasein; mas na medida em que tambm se trata do tico, as reflexes de Heidegger so-bre Ser eTempo se podem formular numa frase: faz o que queres, mas decide por ti mesmo e no deixes que ningum te roube a deciso e com isso a responsabilidade. Os universitrios que naquele tempo parodiavam Heidegger dizendo: "Estou decidido, s no sei sobre o qu", tinham compreendido muito bem o decisionismo heideggeriano, mas tambm o interpretavam mal. Compreenderam-no porque Heidegger realmente falava de uma deciso sem nomear contedos ou valores pelos quais a gente pudesse se decidir. Mas o interpretavam mal na medida em que deviam ter esperado da filosofia dele tais indicaes e orientaes. Essa postura de expectativa o que Heidegger quer decepcionar expressa-mente. Ela faz parte da maneira imprpria de fazer filosofia. Filosofia no a instncia de informaes morais, pelo menos com Heidegger ela o trabalho de desmontar e desfazer objetividades ticas fictcias. O que resta depois desse trabalho com efeito um nada medido pela rica tradio do pensar tico.

    Segundo bom costume filosfico-moral, Heidegger tambm aborda a conscincia, mas apenas para comprovar l esse nada em determina-es concretas. A conscincia nos convoca para a propriedade, mas no nos diz o que fazer para sermos prprios. O que que a conscincia clama ao conclamado? Rigorosamente nada... Nada se conclama ao prprio conclamado, mas convocado para nele mesmo quer dizer,; para o seu mais ntimopoder-ser (SuZ, 273).

    Heidegger no receia a acusao de formalismo. Na conferncia de Marburg, O Conceito do Tempo, ele aponta para o formalismo da filosofia moral de Kant, que sabidamente no elaborou nenhuma outra mxima moral seno aquela de que no prprio agir deve-se atentar para a razo do outro, isto : a sua liberdade. Dito de modo popular: o que no queres que faam a ti, no o faas ao outro.

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    Anlogo ao postulado kantiano do respeito mtuo pela razo e liber-dade, Heidegger desenvolve o seu princpio do respeito mtuo pelo dasein do outro: o ente com o qual o dasein se porta como ser-com porm no tem o modo-de-ser da coisa disponvel, ele mesmo dasein. Esse ente no provi-denciado, mas est na previdncia (Frsorge) (SuZ, 121).

    Heidegger escolhe uma formulao descritiva que, porm, na verdade contm um convite. Pois essa previdncia no designa a maneira cotidia-na, socialmente habitual com que as pessoas lidam umas com as outras, mas como deveriam "propriamente" agir umas com as outras. A previdn-cia, que diz respeito essencialmente prpria preocupao isto , existncia do outro e no um o que que ele providencia, mas ajuda o outro a tornar-se transparente para si em sua preocupao c livre para ela (SuZ, 122).

    No gesto de descrever Heidegger formula aqui seu imperativo cate-grico: faz parte da propriedade no fazer nem a si mesmo nem ao outro de coisa (Ding), de instrumento (Zeug). E tambm a deciso em favor de si mesmo, novamente oculta debaixo de uma formulao descritiva, presa a uma exigncia moral. Essa determinao deve abrir a possibilidade de deixar outros que so-com serem em seu mais prprio poder-ser... Do prprio ser-mesmo da determinao brota o ser-junto prprio (SuZ, 298).

    Mas por enquanto o que poderia ser o ser-com prprio permanece to indefinido quanto o ser-mesmo prprio. A nica informao aqui nova-mente negativa. O ser-junto (Miteinandersein), bem como o ser-mesmo tm de encontrar seu caminho para fora da perdio para o a gente. Ser concebvel uma erupo (Ausbruch) e irrupo (Aufbruch) coletiva que saia da impropriedade?

    Muitas vezes se equiparou a distino de Heidegger entre o ser-com prprio e imprprio com a distino entre sociedade e comunida-de, como fez Ferdinand Tnnies no livro do mesmo nome. A obra aparecera em 1887, mas de incio no teve influncia. Nos anos vinte tornou-se um best-seller sociolgico e colocou disposio da crtica conservadora da moderna sociedade de massas os conceitos mais im-portantes. Segundo ela, comunidade vale mais do que sociedade. Comu-nidade significa "organismo vivo" e convvio "duradouro e legtimo". Sociedade um "agregado e artefato mecnico" e produz apenas um convvio "transitrio e aparente". Na comunidade os seres humanos

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    esto "ligados apesar de toda a separao", na sociedade so "separados apesar de toda a ligao".

    Mas na verdade o ser-juntos (Miteinandersein) prprio de Heidegger no coincide com a representao de comunidade. Pois faz parte da ima-gem de comunidade que o indivduo queira se livrar de seu nus de dis-tncia, sua solido, sua individualidade. Mas a propriedade de Heidegger recusa qualquer conformismo. Como ele estimula o dasein ao seu poder-ser irrepresentvel (unvertretbar), o que quer dizer individual, uma co-munidade de homogeneidade densa deveria lhe parecer suspeita. Mas de sua tica da propriedade, Heidegger tirar outras conseqncias polti-cas. Ele compreender a revoluo nacional-socialista como irrupo coletiva saindo da impropriedade, e por isso vai-se ligar a ela. Mas essas conseqncias no se produzem coercitivamente da viso de mundo de Ser e Tempo. Outros tiraram disso outras conseqncias. A ontologia fun-damental de Heidegger, bem como a sua filosofia da propriedade so suficientemente imprecisas para dar espao a diversas opes em assun-tos polticos. Heideggerianos da primeira hora como Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Gnther Anders, Hannah Arendt, Karl Lwith, so exemplos disso.

    Mas no pode haver dvida de que, apesar da sua ontologia da liber-dade, em Ser e Tempo Heidegger se reconhece adversrio da democracia pluralista. Ele no tem compreenso para o princpio da coisa pblica democrtica. Ela (a coisa pblica) regula primeiramente toda a explicao de mundo e do dasein, e tem razo em tudo. E isso no... porque disponha de uma transparncia do dasein expressamente adequada, mas devido ao no-aprofundamento nas coisas, porque insensvel a todas as diferenas de nvel e de legitimidade (SuZ, 127).

    O que Heidegger censura aqui na coisa pblica democrtica no seno o seu princpio dispositivo. Com efeito fazia parte dela que todas as opinies e idias tivessem acesso a ela, no importando se l dispu-nham da transparncia do dasein. Faz parte desse tipo de vida pblica que nela os seres humanos apaream em toda a sua mediocridade e "falta de nvel" e possam tomar a palavra, seja ela legtima ou no. Tal existncia pblica, pelo menos segundo sua idia, um reflexo da vida, por mais trivial e desimportante ilegtima que seja. E tambm faz parte dela

  • SER F. TEMPO. Q U E SER? Q U E SENTIDO? - 2 1 1

    que as verdades tenham de suportar ser rebaixadas a mera opinio no mercado de opinies. A coisa pblica democrtica com efeito um cam-po de exerccios do a gente.

    E sabido que os mandarins acadmicos marcados por tradio apoltica ou antidemocrtica s em raros casos podiam travar amizade com a de-mocracia de Weimar. Eles desprezavam o que fazia parte da demoracia: o irrupcionismo, a multiplicidade de opinies e estilos de vida, a relativi-zao mtua das chamadas "verdades", a mediocridade e a normalidade no-herica. Nesses meios, estado, povo, nao, passavam por ser os va-lores em que prosseguia viva uma substncia metafsica decada: o Esta-do, por cima dos partidos, eficaz como idia tica que significa o corpo do povo; personalidades liderantes que expressam carismaticamente o esprito do povo. No ano em que apareceu Ser e Tempo, o reitor da uni-versidade de Munique, Karl Vossler, bradou contra o ressentimento antidemocrtico de seus colegas: "A velha insensatez sempre em novos disfarces: um politizar metafsico, especulativo, romntico, fantico, abs-trato e mstico... (a gente) pode ouvir suspirar como so sujos, incura-velmente sujos todos os negcios polticos, como mentirosa a impren-sa, como so falsos o gabinetes, como so maus os parlamentos, e assim por diante. Com essas lamrias a gente se julga nobre demais, intelec-tualizado demais para a poltica".

    Tambm o Heidegger prprio se coloca acima dos partidos e olha com desdm o negcio poltico.

    Mas como, nesse momento poltico, Heidegger imagina a superao da impropriedadc na esfera poltica? Ser e Tempo ainda no d uma resposta conclusiva sobre isso. Pois de um lado a converso para a propriedade per-manece um ato de isolamento radical. Heidegger cita, concordando, o con-de Yorck von Wartenburg: "Seria tarefa da poltica do Estado desfazer a opinio pblica elementar e fomentar o mais possvel a formao da indivi-dualidade do ver (Sehen) e do encarar (Ansehen). Ento em lugar de uma chamada conscincia pblica essa manifestao radical, estariam no po-der novamente conscincias individuais, isto , conscincias" (/., SuZ, 403).

    De outro lado, tambm faz parte do ser-no-mundo o fato de que o ser humano est inserido na histria do seu povo, no seu destino e na sua herana. E como a propriedade no oferece um territrio de ao especial

  • 2 1 2 - H E I D E G G E R - U M MF.STRF. DA A L E M A N H A E N T R E O B E M E O M A L

    com objetivos e valores particulares, mas significa na verdade uma pos-tura modificada com relao a qualquer reino da vida, o dasein tambm pode-se incluir prpria ou impropriamente nesse destino do povo. Mas como se pareceria uma assuno e prosseguimento prprios do destino de um povo, isso no se comenta mais em Ser e Tempo. Apenas se alude ao seguinte: o dasein, tambm o coletivo, no encontra sua propriedade por normas, decretos, instituies, mas apenas por modelos vividos, ape-nas deixando o dasein escolher seus heris (SuZ, 385).

    Mas apesar dessas obscuras aluses a um caminho coletivo para a pro-priedade, em Ser e Tempo continua predominando o trao individualista.

    Uma vez Heidegger at chama sua abordagem de um solipsismo exis-tencial (SuZ, 298). Nas questes decisivas da existncia, cada um perma-nece sozinho. Nem um povo nem um destino coletivo pode levar o indiv-duo s decises no terreno do poder-ser prprio. Em relao ao destino coletivo importa tornar-se clarividentepara os acasos da situao deduzida. Heidegger despede enfaticamente todos os projetos a longo prazo da ao histrica. Resta um ocasionalismo histrico. E preciso aproveitar, agarrar a oportunidade.

    Por qu, para qu? No por um objetivo histrico que fica distncia; se existe mesmo

    um objetivo, ele o prprio momento. Trata-se de uma intensificao do sentimento-de-dasein. Propriedade intensidade, nada mais.

    Heidegger ainda encontra seus momentos de intensidade sobretudo na filosofia. No demorar muito, h de procur-los tambm na poltica.