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    145Almanack. Guarulhos, n.05, p.145-177, 1º semestre de 2013 artigos

    Escravos, senhores e vida marítimano Atlântico: Portugal, África eAmérica portuguesa, c.1760 –c.1825

    Slaves, Masters, and Marine Life in

    the Atlantic: Portugal, Africa, andPortuguese America, c.1760-c.1825

    Jaime Rodrigues

    Professor no Departamento deHistória da Universidade Federalde São Paulo (EFLCH/UNIFESP –Guarulhos/Brasil)e-mail: [email protected]

    ResumoA partir da experiência marítima de africanos na África, analiso astransformações ocorridas em função da legislação portuguesa sobre amobilidade e o registro dos marinheiros cativos e as leituras disso nahistoriografia, culminando com uma análise das perspectivas de liberdadede marinheiros escravos em trânsito pelos domínios portugueses entre asegunda metade do XVIII e as primeiras décadas do século XIX.

    AbstractFrom the maritime experience of Africans in Africa, this paper analyzesthe changes that occurred in the Portuguese legislation about the mobilityand the registration of captive sailors and discusses the interpretationsof these themes by the current historiography. It ends with an analysisof the prospects of freedom for the enslaved sailors in transit within thePortuguese colonies between the second half of the eighteenth centuryand the first decades of the nineteenth century.

    Palavras-chavesescravidão, História Atlântica, Historiografia

    Keywordsslavery, Atlantic History, Historiography

    mailto:jaime.rodrigues%40unifesp.br?subject=mailto:jaime.rodrigues%40unifesp.br?subject=

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    Ocorre [...] que não sendo os escravos coisas, como oiro, prata e outrasinanimadas, não estão como elas sujeitas a só receberem em qualquer ocasião

    e em quaisquer circunstâncias o impulso que seu dono lhes queira dar (...)1

    A experiência marítima dos africanos na ÁfricaAl-Umari, autor árabe do século XIV, escreveu um relato dando conta domalogrado projeto de um sultão do Mali de atravessar o Atlântico. Emperegrinação a Meca, Mansa Musa – sucessor do soberano em questão –

    passou uma temporada no Egito e saciou a curiosidade do emir governantedo Cairo sobre o poderoso império africano ocidental. Contou que o rei queo antecedera acreditava ser possível cruzar o oceano e, para isso, providen-ciou a armação de duzentas embarcações e assim instruiu o comandanteda frota: “Não regresse senão depois de ter alcançado a outra margem dooceano ou caso se esgotem as provisões e a água”. Muito tempo se pas-sou até que uma única embarcação voltou ao litoral do império malinês,que naquela altura incorporara Gana e chegava à beira mar. Seu capitãoexplicou que haviam navegado “até que surgiu no meio do oceano um riocom uma corrente poderosa” no qual todos, exceto o narrador, entrarame desapareceram. Inconformado, o sultão preparou dois mil navios com

    homens, água e provisões e os fez partir sob seu próprio comando. “Foi aúltima vez que o vimos, e foi assim que me tornei rei”2, teria dito Musa aoemir egípcio.

    Esse breve relato pode ser lido por diferentes vieses. Primeiramente, éuma evidência do poder político e da força econômica do império do Malinaquela época, expressos no desejo do sultão em atravessar o mar comosinal de glória, empenhando para isso todos os esforços – ainda que os ta-manhos das frotas sejam obviamente exagerados. Após notar isso, alguémpode esboçar um sorriso anacrônico, considerando que um reino africano

     jamais conseguiria levar a cabo uma empreitada dessa monta. Mas a veros-similhança da menção à corrente poderosa como um rio caudaloso no meiodo oceano indica o acúmulo de alguma experiência na navegação marítimade longa distância. Hoje, sabemos que o Atlântico possui correntes queafetam o rumo dos navios à vela e que nele também deságua um rio cau-daloso (o Amazonas), cuja corrente se faz sentir muitos quilômetros alémda foz. O relato de Mansa Musa também nos diz algo sobre sua ambição esobre a forma como ele chegou ao poder após o desaparecimento de seuantecessor no mar, o que talvez fosse motivo suficiente para que não selevasse adiante o projeto de travessia do Atlântico, se é que ele de fato foiposto em prática pelos soberanos malineses no auge de seu poder imperial.

    Se razões humanas e físicas ajudam a explicar o desinteresse das

    populações costeiras africanas pelas expedições marítimas3

    , também écerto que os deslocamentos marítimos integravam, em alguma medida, asidentidades e habilidades dos africanos que viviam no litoral desde temposbastante remotos.

    Ao tratar das frotas de comércio na África, Jan Vansina apontou si-nais de experiência na navegação marítima entre povos do continente. Umdeles é a dispersão da estatuária de madeira policromada ao longo do golfoda Guiné, do território dos Yoruba até Loanga, indicando a “ampla difusãodessas técnicas transmitidas de lugar em lugar por via marítima”. Vansinanão supôs que essa dispersão resultasse de trocas comerciais feitas por viaterrestre, provavelmente por encontrar distinções estilísticas importantes

    na estatuária, embora elaboradas a partir da mesma técnica e materiais.

    1“Sobre a pretensão de alguns emigrados do

    Brasil dirigida a obstarem a liberdade dos seusescravos. Sobre a liberdade dos escravos queemigraram do Brasil em companhia de seusdonos.” Arquivos Nacionais/Torre do Tombo(doravante ANTT), Fundo Desembargo do Paço(Corte, Estremadura e Ilhas), Maço 2145, doc.91,despacho do juiz João de Carvalho Martins daSilva Ferrão em 3 de junho de 1825.

    2AL-UMARI. Itinerário dos olhares sobre os reinos

    das metrópoles. Reproduzido em SILVA, Albertoda Costa e (org. e notas). Imagens da África, daAntiguidade ao século XIX. São Paulo: Cia. dasLetras, 2012. p.48.

    3DIARRA, S. Geografia histórica: aspectos físicos.

    In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da África . Vol.1: Metodologia e pré-história da África. 2ª ed.Brasília: UNESCO, 2010. p.351.

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    Ele argumenta ainda que a experiência dos africanos no Atlântico é refe-rendada pelo fato de que, quando da chegada dos portugueses, pescadorespovoavam toda a costa atlântica subsaariana. Ao longo do litoral atlânticoafricano, do Senegal a Angola, as embarcações de pesca eram feitas pelospovos costeiros usando técnicas comuns.4

    Outro sinal indicado por Vansina é a presença ancestral dos bubi  em Fernando Pó – uma migração que requeria habilidades marítimas, jáque a ilha, atualmente chamada de Bioko, situa-se a uns 50 km da costa.

    A fixação dos bubi  ali pode ser anterior ao ano 1000 (na hipótese de Van Vansina) e talvez tenha se dado entre 3 mil e 5 mil anos antes dos primei-ros navegadores portugueses terem chegado ali (na hipótese do missionáriocatólico espanhol Antonio Aymemí). Pressionados pelos povos do interiordo continente, é certo que eles já haviam emigrado quando os portugueseschegaram a Fernando Pó, em 1470.5 Mesmo tendo alguma experiência ma-rítima, os bubi  não se empregaram como marinheiros nem auxiliaram trafi-cantes europeus, como os espanhóis que ocuparam a ilha no século XVIII enela projetaram uma grande base do tráfico de escravos para a América. Oprojeto malogrou por diversas razões, entre elas a guerra anglo-espanholade 1778, a concorrência de traficantes de outras paragens e a relutânciados que ali viviam em estabelecer comércio com estrangeiros. O mercadorholandês Willem Bosman descreveu os ilhéus em fins da década de 1680como gente selvagem e cruel6, uma opinião compartilhada pelos outroseuropeus que ali tentaram se estabelecer. Ibrahim Sundiata explica que ocontato dos espanhóis com os bubi  foi limitado e pouco amistoso:

    a estrutura da sociedade bubi  não era propícia ao comércio. Não existia ali umareserva de escravos capaz de serem vendidos a estrangeiros para exportação,nem havia uma autoridade política capaz de fazer voltar os recursos da ilha parao comércio com os europeus. A demanda por produtos de fora também não eragrande (...). Os bubi  resistiram fechando os contatos comerciais com estranhos até os

    primeiros anos do século XX (...).7

    A ausência de envolvimento de povos costeiros com a navegação delongo curso não foi regra imutável e ocorreu em outras paragens e em outrostempos. Os kru  da Libéria, Gana e Costa do Marfim atuais, por exemplo,tiveram historicamente uma atitude ambivalente. Embora se recusassem avender escravos, forneciam suprimentos aos traficantes e ofereciam traba-lhadores especializados aos comerciantes europeus para ajudá-los a vencercorrentes, recifes e pedras.8 Os homens desse povo, designado como kroomen pelos ingleses a partir do século XVIII, eram elogiados como hábeis navega-dores, desenvolvendo o kru pidgin english, língua de marinheiros e migrantesdas colônias britânicas na África Ocidental que ainda sobrevive de formalimitada.9 Desde muito antes disso, os portugueses valiam-se dos conheci-mentos deles sobre navegação, empregando-os nas viagens transoceânicas.Trabalhando em navios europeus, os kru  foram dar em várias partes das cos-tas africanas e americanas, sobretudo as caribenhas, onde marinheiros gui-tarristas desse povo atuaram na conformação de novas musicalidades. Juntocom marinheiros europeus, os africanos engajados na navegação formaram,de acordo com Julius Scott, um “segmento visível no submundo caribenho”de fins do século XVIII, cuja conduta era difícil de regulamentar e motivavaqueixas constantes dos administradores coloniais ingleses e franceses10. Além

    destes, os Fante da atual Gana também eram reconhecidos por sua experiên-cia marítima e engajamento em navios negreiros ingleses.11

    4 VANSINA, Jan. A África equatorial e Angola: asmigrações e o surgimento dos primeiros Estados. In:NIANE, Djubril Tamsir (ed.). História geral da África .

     Vol.4: África do século XII ao XVI. 2ª ed. Brasília:UNESCO, 2010. p.635-636; VENANCIO, Renato Pinto.Cativos do Reino : a circulação dos escravos entrePortugal e Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo:Alameda / Belo Horizonte: FAPEMIG, 2012. p.148.

    5AYMEMÍ, Antonio. Los Bubis en Fernando Poo .

    Madri: Galo Saez, 1942. cap.1. Ver tambémTHOMAS, Hugh. The Slave Trade:  The Historyof Atlantic Slave Trade (1440-1870). Londres:Picador, 1997. p.73; VANSINA, Jan. Op. Cit.;SUNDIATA, I. K. A Note on an Abortive SlaveTrade: Fernando Po, 1778-1781. Bulletin del’Institut Fondamental d’Afrique Noire , Dakar,serie B, v.35, n.4, p.794, 1973.

    6BOSMAN, Willem. A New and Accurate

    Description of the Coast of Guinea. Londres:J. Knapton, A. Fell, R. Smith, D. Midwinter, W.Hawns, W. David, G. Strahan, B. Lintgtt, J. Roundand J. Wale, 1705. p.399.

    7SUNDIATA, I. K. Op. Cit., p.803-804; RODRIGUES,

    Jaime. A rede miúda do tráfico: os pumbeiros eo comércio de escravos em Angola no final doséculo XVIII. Historia & Perspectivas , Uberlândia,v.23, p.67-83, 2000 e De costa a costa : escravos,marinheiros e intermediários do tráfico negreirode Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). SãoPaulo: Cia. das Letras, 2005. p.97.

    8McGOWAN, Winston. African Resistance to the

    Atlantic Slave Trade in West Africa. Slavery& Abolition, Londres, v.11, n.1, p.9, maio de 1990;RODRIGUES, Jaime. De costa a costa… Op. Cit., p.188.

    9Cf. BROOKS, George E. The Kru Mariner in the

    Nineteenth Century : An Historical Compendium.Newark: Liberian Studies Association in America,1972; MARTIN, Jane. Krumen “Down the Coast”:Liberian Migrants on the West African Coast in the19th and Early 20th Centuries. The InternationalJournal of African Studies , Boston, v.18, n.3,p.401-423, 1985; BREITBORDE, Lawrence B.City, Countryside and Kru Ethnicity. Africa , v.61,n.2, p.186-201, 1991; SCHMIDT, Cynthia E. Krumariners and migrants of the West African coast.In: STONE, Ruth M. (ed.). Garland encyclopediaof world music . Vol.10: World’s Music: general

    perspectives and reference tools. Nova York/Londres: Routledge, 2002. p.370-382; SANTOS,Elaine Ribeiro S. dos. Nas engrenagens do tráfico:grupos canoeiros e sua atuação nos portos doGolfo do Benin. Anais do XIX Encontro Regional deHistória da ANPUH  (Poder, violência e exclusão), 8a 12 de setembro de 2008, p.11-12 (CD-Rom).

    10BURNS, James. “The West is Cold”: Experiences

    of Ghanaian Performers in England and theUnited States. In: OKPEWHO, Isidore e NZAGWU,Nkiru (eds.). The New African Diaspora. Bloomington: Indiana University Press, 2009;PIZARRO, Errol L. Montes. Influencias musicales

    alrededor de la diáspora africana: más allá de lametáfora de raíz. Cuadernos de Investigación del

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    O fenômeno não se restringiu à África Ocidental. De forma similar, oscabinda eram empregados pelos portugueses nos navios de cabotagem naAngola no século XVIII12 e, como eles, os bijagós da Guiné, tidos por bonsmarinheiros e de índole belicosa na descrição de um antropólogo luso daprimeira metade do século XX.13 De modo geral, os portugueses empre-garam africanos de diversas origens nas tarefas da marinhagem, uma veztreinados para desempenhá-las. Atendendo a uma solicitação de envio demarinheiros experientes feita pelo governador de Benguela, o de Angola

    acabou mandando, em 1794,

    alguns marinheiros escravos que os mestres considerem já capazes do trabalho;pois que assim utilizando-se os direitos que devem pagar favorecesse o comércioe arremediasse a falta de homens para a dita ocupação, isto contudo se não podeprometer com excesso, mas com cálculo prudente, segundo o número da suatripulação, e é o mesmo que aqui pratico (...).14

    Um ofício de 1798 – enviado por Miguel Antonio de Melo, conde deMurça e então governador em Luanda, ao secretário da Marinha e Domí-nios Ultramarinos, Rodrigo de Souza Coutinho – permite sondar matrizes

    africanas na especialização dos muxiluanda no trabalho marítimo.15

     Melosabia que, no século XVII, a gente dessa etnia havia sido punida pelosportugueses por seu apoio à invasão holandesa em Angola – política quenão foi exclusiva da colonização lusa na África, se nos lembrarmos da be-licosidade punitiva contra os indígenas no sertão do Nordeste da Américaportuguesa no mesmo período, também acusados de secundar os holan-deses.16 O castigo dos muxiluandas não se fez pela forma de genocídio ouescravização mercantil, mas consistia em obrigá-los ao trabalho, tal comofizeram anteriormente os soberanos do Congo, ao se utilizar das habilida-des desse povo como pescadores.

    Os muxiluandas vendiam peixes frescos e secos nos mercados de

    Luanda. Foi assim, em barcos de pequeno porte, que eles aprenderam aslidas no mar e desenvolveram técnicas de processamento do alimento. Apiscosidade das ilhas onde eles viviam levou à desvalorização do produto e,em vez de receberem os 1.200 réis mensais pagos em média pelo pescadovendido, muitos se empregaram como marinheiros em troca de salários de30 mil réis, fora a ração diária. Os salários não se diferenciavam dos queeram pagos aos marujos dos navios negreiros até as primeiras décadas doséculo XIX, ou seja, algo entre 20 mil e 35 mil réis.17

    Nas palavras de Melo, o resultado do engajamento desses homenscomo marinheiros “tem sido despovoarem os muxiluandas as ilhas, aban-donarem as pescarias, serem elas hoje tão escassas que muitas vezes nãohá peixe”. O governador acreditava que, com algum incentivo da Coroa,os africanos abandonariam a navegação de longa distância e voltariamà pesca tradicional.18 Ele não atentou para a experiência no mar comoum atributo valorizado pelos capitães portugueses ao empregarem essesmarujos. As habilidades marítimas tornavam esses homens gente cobiçadapara manejar navios e guiar oficiais europeus pelas águas africanas, comofez o capitão de artilharia Antonio Máximo de Souza e Magalhães, queem Luanda “tomou um preto prático daquela costa” para guiá-lo em umaexpedição de reconhecimento em Quitungo, Ambriz, foz do Zaire, Cabinda,Molembo e Loango.19 Talvez o mesmo ocorresse com os habitantes do en-

    torno de Mossâmedes, onde os portugueses estabeleceram uma agricultura

    Instituto de Investigaciones Interdisciplinariasde la Universidad de Puerto Rico en Cayey , n.4,p.5 e p.38-39, 2010; SCOTT III, Julius Sherrard.The Common Wind : Currents of Afro-AmericanCommunication in the Era of the HaitianRevolution. Ann Arbor: Duke University, 1986.p.60-63.

    11REDIKER, Marcus. O navio negreiro : uma história

    humana. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p. 237.

    12RODRIGUES, Jaime. De costa a costa... Op. Cit.,

    p.188; PÉLISSIER, René. História das campanhasde Angola : resistência e revoltas (1845-1941).

     Vol.1. Lisboa: Imprensa Universitária; Estampa,1986. p.54.

    13SIMÕES, Landerset. Babel Negra : etnografia, arte

    e cultura dos indígenas da Guiné. Porto: Of. Graf.d’O Comércio do Porto, c .1935. p.146.

    14CANDIDO, Mariana Pinho. Different Slave

    Journeys: Enslaved African Seamen on Boardof Portuguese Ships, c. 1760-1820s. Slavery & 

    Abolition, Londres, v.31, n.3, p.399, 2010; ArquivoHistórico Ultramarino (a partir daqui AHU),Angola, Códice 1630, fl.76-77, 14 de fevereirode 1794.

    15AHU, Angola, caixa 88, doc.68, 26 de abril de

    1798.

    16PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros : povos

    indígenas e a colonização do sertão nordeste doBrasil (1650-1720). São Paulo: Hucitec; FAPESP;Edusp, 2002. p.57 e ss.

    17RODRIGUES, Jaime. De costa a costa... Op. Cit.,

    p.166 e ss.

    18AHU, Angola, caixa 88, doc. 68.

    19AHU, Angola, caixa 62 (1779), doc.72 (junho

    de 1779); caixa 62, doc.73 e livro 6º de Angola,

    fls.26 e ss.

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    comercial a partir de meados do século XIX e usaram a mão de obra localna pesca, com homens tripulando barcos e mulheres no trato dos peixes.20

    Outros indivíduos e grupos também detinham habilidades navegado-ras. Um desses homens cujo nome ficou registrado é João Garrido, escravoda Guiné que, em meados do século XV, foi levado para Portugal e voltou àÁfrica várias vezes a bordo de navios portugueses na qualidade de intérpre-te, acabando alforriado. Já entre os grupos, podem ser citados os cabo-ver-dianos que, desde o século XVI, dedicavam-se ao comércio na Guiné e eram

    chamados de lançados  ou tangomaus  pelos portugueses, utilizados comopontas de lança no aprendizado das línguas e na criação de oportunidadesde comunicação na África Ocidental e sendo mencionados nas OrdenaçõesFilipinas, ao se tratar dos direitos de seus herdeiros quando falecessemno continente africano.21 Em Cabo Verde e Gâmbia, entre os lançados, osingleses também conseguiam pilotos para manobrar seus navios no comér-cio africano. Já os vili  de Loango eram reconhecidos como homens hábeisna fabricação e no manejo de barcos pesqueiros e de transporte na costa,tendo criado uma rede comercial que antecedia o domínio europeu no sé-culo XVI.22 Muitos nativos da África Central, de acordo com John Thornton,utilizavam embarcações que, se não iam em mar aberto, eram apropriadaspara a navegação nas águas costeiras e estuários da região onde os portu-gueses, com seus navios de maior porte, não se aventuravam sem grandesriscos em meados do século XV:

    Os nativos não tardaram a demonstrar que até eram capazes de derrotar osportugueses na água, e ainda mais em terra. Por vezes, conseguiram sair vitoriososnos próprios navios e, com uma série de vitórias militares e navais, entre 1445 e1452, obrigaram os portugueses a repensar a sua aproximação à África. Assim, em1456, a coroa incumbiu Diogo Gomes, um nobre da casa real, de negociar um acordode paz com as várias potências da costa africana e garantir o desenvolvimento deum comércio seguro e pacífico.23

    Além dos efeitos sobre o comércio, a língua, a arte, a produção edistribuição de alimentos e a cultura em geral, a criação de tais redescomerciais pressupunha o saber fazer de homens habilidosos no manejode embarcações. Para cumprir suas funções, eles tinham que conhecera profundidade das águas, o sistema de ventos, marés, chuvas e outrosfatores climáticos que interferiam na navegação de cabotagem – aindaque lhes escapassem as adversidades da travessia da linha do equador,velha conhecida dos navegadores ibéricos em trânsito entre a penínsulae o além mar. As lidas marítimas, mesmo que não fossem de longo cursoou em grandes navios, faziam parte da experiência de diferentes povos do

    continente africano, em meio a um processo que sofreu transformações aolongo do tempo. Na diáspora, essa experiência teria continuidade, uma vezque inúmeros africanos foram engajados no trabalho marítimo, valeram-sedo mar para fugir, encararam o tráfico interprovincial ou foram levados porseus senhores em direção às novas frentes de expansão colonial na Amé-rica. Trânsito e coexistência, não necessariamente amigáveis, marcarama experiência dos povos que viviam às margens do Atlântico, em deslo-camentos marítimos e terrestres. A legislação portuguesa sobre o tráficoe a escravidão no Reino no século XVIII introduziria novos parâmetros epossibilidades a essa experiência.

    20Cf. LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma

    história de suas transformações. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2002. p.342.

    21CURTO, Diogo Ramada. A cultura imperial e

    colonial portuguesa. In: BETHENCOURT, Francisco;CURTO, Diogo R. (dir.). A expansão marítimaportuguesa, 1400-1800 . Lisboa: Ed. 70, 2010.p.329 e p.331; LAW, Robin & MANN, Kristin.West Africa in the Atlantic Community: TheCase of the Slave Coast. The William and MaryQuarterly , Williamsburg, v.56, n.2, abr.1999,

    p.334; Ordenações Filipinas, Livro I, título XVI: Do juiz dos feitos da Misericórdia e Hospital de Todosos Santos de Lisboa, apud LARA, Silvia Hunold.Legislação sobre escravos africanos na AméricaPortuguesa. Madrid: Tavera/Digibis, 2000. p.85(CD-Rom).

    22LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de

    muitas cabeças : marinheiros, plebeus e a históriaoculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Cia.das Letras, 2008. p.141-143; SILVA, Luiz Geraldo.A faina, a festa e o rito : uma etnografia históricasobre as gentes do mar (sécs. XVII ao XIX).Campinas: Papirus, 2001. p.61-65; THORNTON,

    John. A África e os africanos na formação domundo atlântico, 1400-1800 . Rio de Janeiro:Campus, 2004. p.259.

    23THORNTON, John K. Os portugueses em África.

    In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo R. Op.Cit., p.148.

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    Historiografia, legislação portuguesa e mobilidade dos cativosO engajamento de escravos como marinheiros dialogava com tradiçõesafricanas de pesca, comércio, divisão sexual de tarefas e circulação es-pacial. Forjadores e integrantes das práticas atlânticas, africanos e seusdescendentes vivenciaram as transformações nessas mesmas práticas ebuscaram formas de conseguir autonomia ou liberdade, particularmentequando eram escravos, para as quais a mobilidade espacial era um dadorelevante. Leis editadas em Portugal a partir da segunda metade do século

    XVIII interferiram nesse processo.Refiro-me, sobretudo, a três textos legais: o Alvará com força de Lei de

    19 de setembro de 1761, que restringiu o tráfico de escravos para Portugal;a Lei de 16 de janeiro de 1773, referente à libertação dos cativos no Reino,e o Aviso de 22 de fevereiro de 1776, que permitiu o ingresso de escravosno Reino como marinheiros, desde que oficialmente matriculados. Nenhumadelas questionou a escravidão dos africanos no Brasil ou na África. 24

    Essa legislação mereceu algumas análises por historiadores foca-dos no período pombalino.25 A interpretação mais comum, calcada talvezem relatos de viajantes setecentistas em Portugal, é a que diz que as leispombalinas destinavam-se a “garantir a fixação de mão de obra escrava noalém-mar, onde era necessária”, tendo “repercussões bem mais positivaspois contribuiu para frear práticas esclavagistas, pondo termo à importaçãode negros” no Reino e mantendo ali os “costumes de outras Cortes poli-das”, numa referência ao alvará de 1761. O objetivo da lei era manter osescravos africanos trabalhando nas lavouras e minas do ultramar, onde eleseram efetivamente necessários, e não permitir que viessem a servir comodomésticos nas cidades e quintas portuguesas, tirando “os lugares dosmoços de servir”26.

    Russel-Wood não viu razões humanitárias a estimular tal legislação,cujo objetivo era deter o fluxo constante de escravos e criados negros

    para Portugal e mantê-los no ultramar, notando ainda que o alvará não seaplicava aos cativos que estivessem em Portugal naquela data, emancipa-dos de modo gradual apenas a partir de 1773. Inspirada por essa análise,Silvia Lara atentou para a diferenciação entre os termos “negro” e preto”,observando que o alvará utilizou “preto” como sinônimo de escravo, o queem geral passa sem menção nas análises da lei.27 Em função de pressões einterpretações convenientes aos senhores, a cor precisou ser melhor defini-da. Muitos senhores burlavam o alvará de 1761, advogando que a liberda-de estava prevista para pretos e pretas, mas não se proibia o ingresso demestiços, mulatos e mulatas como escravos no Reino. Assim, em 1767, ossenhores ficaram cientes de que, independentemente da cor, a lei referia-se

    a todo e qualquer cativo.28Na análise de Silva e Grinberg, a carreira diplomática de Pombal em

    diferentes cortes europeias e o conhecimento daí obtido acerca de legis-lações semelhantes faz crer que o ministro de D. José I tinha consciênciade que a ideia de “solo livre” perpassava o continente, embora não neces-sariamente ele a advogasse. De acordo com as autoras, o decreto não sedestinava a garantir a liberdade dos escravos desembarcados no reino nemdos que já viviam ali. A intenção, ao invés de atrair cativos para um “sololivre”, era impedir que eles pisassem nesse solo:

    O que se pretendia era a ameaçar os proprietários e traficantes de escravos,dissuadindo-os de trazer novos escravos para o reino, para seu próprio uso ou

    24Os textos das leis estão reproduzidos em LARA,

    Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanosna América Portuguesa... Op. Cit., p.345-346,p.359-360 e p.361-362, respectivamente. “Noque diz respeito à escravidão dos africanos eseus descendentes no Brasil e ao tráfico comas regiões da África Ocidental e Central nãochegou a haver questionamento algum por parteda Coroa”, cf. LARA, Silvia Hunold. O direito eas leis escravistas na América portuguesa. In:

    ____. Legislação sobre escravos africanos naAmérica Portuguesa... Op. Cit., p.32. Ver tambémNOVAIS, Fernando A.; FALCON, Francisco C. Aextinção da escravatura africana em Portugalno quadro da política pombalina. In: NOVAIS,Fernando A. Aproximações:  estudos de história ehistoriografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005 (1ªed. do artigo: 1973).

    25Referindo-se às obras de Francisco Falcon e

    Kenneth Maxwell, Thomaz E. Barnezi afirma

    que ambos entenderam a questão do trabalhoescravo como marginal frente às outras medidaspombalinas. Ver Projetos, leis e letrados : umareflexão sobre as reformas no regime daescravidão no Império colonial português nasegunda metade do século XVIII. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2000. p.9 (Rel. de Iniciação Científica).

    26RAMOS, Luís A. de Oliveira. Pombal e o

    esclavagismo. História : Revista da Faculdadede Letras da Universidade do Porto, 1ª série,

    v.2, p.169-178, 1971, p.170-171. Na opinião doviajante sueco Carl Israel Rudgers, de passagempor Lisboa em 1798, o objetivo dessa lei erafazer com que os escravos negros não saíssem doBrasil, cf. SANTOS, Piedade Braga; RODRIGUES,Teresa; NOGUEIRA, Margarida Sá. Lisboasetecentista vista por estrangeiros. Lisboa: LivrosHorizonte, 1992. p.47.

    27RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos

    no Brasil colonial . Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2005. p.74; LARA, Silvia Hunold.Fragmentos setecentistas : escravidão, cultura epoder na América portuguesa. São Paulo: Cia. dasLetras, 2007. p.135 e p.284.

    28SILVA, Luiz Geraldo. Esperança de liberdade:

    interpretações populares da abolição ilustrada(1773-1774). Revista de História , São Paulo,v.144, p.109, 2001.

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    para vendê-los. Se eles fizessem isso, esses escravos seriam livres. Por esta razão,o decreto do rei explicitamente não alterou a condição legal dos escravos já quelá residiam e não servia como pretexto para outros escravos virem e buscarem aliberdade no reino (...).29

    Para proprietários e criados lusos, os resultados podem ter sido afixação dos escravos no além mar e a garantia de uma reserva de mercadode trabalho aos reinóis (e galegos) livres. Mas há quem tenha encontra-

    do razões mais fortes, de Estado, para a edição das medidas pombalinascontrárias à escravidão em Portugal e sua concentração em certas partesdo ultramar. Kenneth Maxwell é um dos autores que, ao analisar a épocade Pombal sob a ótica da “corporificação do Iluminismo”, inseriu a aboliçãoda escravatura no Reino, em 1773, no incremento da atividade legislativa,

     junto de medidas como o financiamento do sistema educacional, a refor-ma da Universidade de Coimbra, a restrição dos poderes do Santo Ofícioe a modernização do Exército. Nuno Monteiro soma-se a esta visão, aoconstatar que o ministério pombalino elaborou leis em uma profusão semprecedentes, para “mudar as coisas em conformidade com o que se fazianas cortes da Europa (...)”30.

    Ao que parece, a consciência política da época entre as elites portu-guesas era a da enorme defasagem de seu país em relação aos centros eu-ropeus que se encontravam na “vanguarda do desenvolvimento econômi-co”31. As leis de 1761 e 1773, ao iniciarem um processo de abolição gradualna metrópole, teriam sido “determinadas quer pelo ambiente internacionaladverso a esse modelo de relações de exploração, (...) quer por objetivospráticos de sua [do rei e do ministro] política”32.

    No tocante à questão econômica, Francisco Falcon avaliou asmedidas pombalinas sobre a escravidão em Portugal de um modo amplo,cabível também para outros centros imperiais, decerto tendo em mente aclássica questão da incompatibilidade entre escravidão e desenvolvimen-

    to capitalista:

    os escravos contribuem para o desestímulo às atividades manufatureiras, pois nãoconsomem e ao mesmo tempo, mantêm reduzida a oferta de empregos e assimcontribuem para a existência de maior número de desempregados, ociosos quetambém não possuem poder aquisitivo.33

    O primeiro ato, em 1761, proibiu o transporte de “pretos e pretas”escravos para Portugal. Aqueles que queriam manter ali a introdução deescravos passaram a burlar a lei: como a proibição se referia, primeira emais enfaticamente, à cor e não à condição social, começaram a trazer

    escravos mestiços, mulatos e mulatas, até que houve a alteração em 1767.A legislação escravista prosseguiu e, inserida no “conjunto da políticaindustrialista do mercantilismo pombalino, a libertação da escravaturafoi levada a efeito em Portugal de forma gradual, mas persistente”. Em1773, encaminhou-se a “extinção total da escravatura, naturalmente coma costumeira moderação”: como não entravam mais cativos, os senhorespassaram a reproduzi-los, sendo esse alvará “uma espécie de ‘lei do VentreLivre”34. Se o alvará de 1761 dificultou a navegação entre o Brasil e Por-tugal, a resolução veio por meio de outros textos legais: o Aviso de 22 defevereiro de 1776, o de 10 de Março de 1800 e o Alvará de 10 de março de1802, que autorizaram a vinda de escravos negros apenas quando devida-mente matriculados nos navios.35

    29SILVA, Cristina Nogueira da; GRINBERG,

    Keila. Soil Free from Slaves: Slave Law in LateEighteenth- and Early Nineteenth-CenturyPortugal. Slavery & Abolition, Londres, v.32, n.3,p.431 e p.432, setembro de 2011.

    30

    MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal,paradoxo do Iluminismo . 2 ª ed. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1996. p.18-19; MONTEIRO, NunoGonçalo. D. José na sombra de Portugal . Caisde Mem Martins: Círculo de Leitores, Centrode Estudos dos Povos e Culturas de ExpressãoPortuguesa, 2008. p.210. Monteiro destacou,como pontos centrais dessa profusão legisladora,o comércio, as finanças, o fomento das artesfabris e providências diversas nos domínioscoloniais. Cf. p.210-226.

    31NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na

    crise do antigo sistema colonial (1777-1808) . 3ªed. São Paulo: Hucitec, 1985. p.133.

    32FONSECA, Jorge. As leis pombalinas sobre a

    escravidão e as suas repercussões em Portugal.Africana Studia , Porto, n.14, p.29 e p.35, 2010.

    33FALCON, Francisco José Calazans. A época

    pombalina : política econômica e monarquiailustrada. São Paulo: Ática, 1982. p.399.

    34NOVAIS, Fernando A.; FALCON, Francisco. A

    extinção da escravatura africana em Portugal...,Op. Cit., p.94-99.

    35

    Ibidem, p.102; SILVA, Luiz Geraldo. Esperança deliberdade... Op. Cit., p.109-110.

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    Na linha das razões de Estado, Monteiro viu na lógica de funciona-mento das companhias monopolistas do comércio colonial o entendimentodas restrições ao tráfico para Portugal, culminando no alvará de 1773, peloqual foram declarados livres os filhos de escravas nascidos no país a partirde então, só permanecendo no cativeiro aqueles cujas mães e avós tives-sem sido escravas.36

    Ao se debruçarem sobre estas questões, via de regra, os historiado-res tomaram como fundamento o artigo pioneiro de Novais e Falcon. Luiz

    Geraldo Silva também teve nele um ponto de partida, ao buscar os sentidosmais gerais da legislação portuguesa sobre a escravidão, mostrando que oalvará de 1761 não pretendia promover a deserção de escravos dos domí-nios ultramarinos ou estimular neles o desejo de liberdade:

    antes, determinou-se, com certo grau de liberalidade, que ‘os Pretos, e Pretas livres,que vierem para estes Reinos viver, negociar, ou servir, usando da plena liberdade,que para isso lhes compete, tragam indispensavelmente Guias das respectivasCâmaras dos lugares donde saíram.37

    Ao fazer um balanço da recente historiografia portuguesa, José Ten-

    garrinha notou que a época moderna foi aquela menos beneficiada pelascondições políticas e culturais pós-Revolução dos Cravos. A principal razãoseria o privilégio dado a estudos sobre esse período durante o Estado Novo,quando se pretendia destacar “o papel de Portugal na História mundial elegitimar sua política colonial pela ação civilizadora e proselitista”38. Essaobservação, se correta, ajuda a entender o debate relativamente limitadosobre a época pombalina nos meios acadêmicos lusos, ainda mais restritono que se refere à escravidão nas conquistas durante esse período – comotambém notaram João Pedro Marques e Valentim Alexandre, historiadoresque polemizaram, em meados da década de 1990, acerca do fim tráficoportuguês oitocentista.39

    Para a visão dos senhores e as ações dos homens de Estado nosassuntos escravistas, temos interpretações abalizadas e que dão ênfaseà inspiração ilustrada. Luiz Geraldo Silva propõe uma leitura que, semdesfazer-se disso, procura superar a ideia de Iluminismo como conceito oumodelo explicativo fechado e amplia o leque o problema, “marcado peladifusão do processo civilizador , pela dinâmica do status de insider e out-sider na Europa dos séculos XVI ao XVIII, bem como pela disseminação danoção de pacto social no mundo atlântico” na segunda metade do séculoXVIII, sob o influxo das obras de Norbert Elias.40

    Tendo em vista as implicações das leis setecentistas e as mutantes

    conjunturas políticas do início do século XIX no mundo atlântico, creio serpreciso sondar o desempenho dos escravos do Reino e da América portu-guesa nesse processo. A legislação apresentava ambiguidades conceituaisque levavam anos para serem solucionadas, modificando-se conforme os

     jogos de pressões sobre a Coroa. Os escravos não ficaram indiferentes àsambiguidades nem estiveram ausentes dos jogos políticos. O que os dife-renciava dos demais grupos sociais era o conhecimento do conteúdo dasleis, a ação conectada a redes envolvendo outros agentes e o entendimentoparticular das “razões de Estado” quando se tratava de agir em benefícioda própria liberdade.

    Uma vez engajados em embarcações que faziam escala ou termi-

    navam o percurso em Portugal, escravos dos domínios coloniais pisavam

    36MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. Cit, p.226; Ver

    também FONSECA, Jorge. Op. Cit., p.29 e NOVAIS,Fernando A.; FALCON, Francisco. A extinção da

    escravatura africana em Portugal..., Op. Cit.,p.399.

    37SILVA, Luiz Geraldo. Esperança de liberdade... Op.

    Cit., p.109.

    38TENGARRINHA, José. La historiografía

    portuguesa en los últimos veinte años. Ayer , Valência, n.26, 1997, p.21-25. Ver tambémXAVIER, Ângela Barreto. Tendências nahistoriografia da expansão portuguesa: reflexõessobre os destinos da história social. Penélope ,Lisboa, v.22, p.141, 2000.

    39

    Ambos notaram a pequena quantidade detrabalhos sobre o tema e o legado negativodo Estado Novo português para os estudos deHistória Moderna. Ver MARQUES, João Pedro.Uma revisão crítica das teorias sobre a aboliçãodo tráfico de escravos português e ALEXANDRE,

     Valentim. Projecto colonial e abolicionismo.Penélope , Lisboa, v.14, p.95 e p.119, 1994.O debate prosseguiu em MARQUES, JoãoPedro. Avaliar as provas: resposta a ValentimAlexandre e ALEXANDRE, Valentim. Crimes andmisunderstandings: réplica a João Pedro Marques.Penélope , Lisboa, v.15, p.143-155 e p.157-170,respectivamente, 1995.

    40SILVA, Luiz Geraldo. Esperança de liberdade... Op.Cit., p.115-116.

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    em uma terra onde a escravidão sofria embaraços legais. Embora a lei de1761 proibisse carregar escravos negros vindos da América, África e Ásiapara os portos do reino, ela não proibia explicitamente o engajamento demarinheiros escravos em navios mercantes que ali tivessem de passar pornecessidade ou escala prevista. A situação tornou-se ainda mais confusapara os senhores e mais promissora para os escravos do ultramar a partirdo momento em que a escravidão foi parcialmente abolida em Portugal em1773. Houve outros textos legais, como a permissão datada de 1776 para

    que escravos de oficiais da marinha ou de comerciantes pudessem perma-necer no reino mediante a posse de um “diploma” especial. Essa legislaçãogarantia aos senhores o usufruto dos serviços de marinheiros escravosengajados nas equipagens de longo curso – demonstrando ser esta umaprática relativamente comum.

    Temos evidências de que os escravos marinheiros efetivamentepleiteavam suas liberdades a partir do conhecimento e da interpretação doconteúdo dessas leis.41 A seguir, persigo os vestígios das atividades delesnessa direção.

    Cativos marinheiros por vontade do senhorExercendo funções de marinheiros, alguns africanos escravizados en-contraram no mar oportunidades inusitadas de liberdade ainda antesdos Oitocentos e da longa discussão acerca da “questão servil” no Brasil.Como vimos, africanos ou negros de diversas origens não eram neófitos nanavegação. Mas isso não explica os possíveis sentidos do engajamento dehomens escravizados em navios mercantes transoceânicos.

    Primeiramente, é preciso distinguir algumas categorias, pelas possi-bilidades de análise que elas oferecem. Havia os que eram engajados porseus senhores (ausentes das embarcações) para viverem a experiência doganho sendo marinheiros, em uma sociedade em que o aluguel de escravos

    era comum. Também se encontravam os que eram escravos de senhoresvindos a bordo. Por fim, e mais difíceis de serem rastreados, havia aquelesengajados voluntariamente e em processo de fuga sob diversas alegações.Evidentemente, os que se inserem nos primeiros casos também poderiamconstruir a possibilidade da fuga, por deserção em algum porto ou vivendoo resto de suas vidas como marinheiros em diferentes embarcações.

    As matrículas de equipagens oferecem pistas sobre a presença dossenhores nos navios. Na amostragem de 102 marinheiros cativos, 24 sãonomeados simplesmente como tal – cativos ou escravos. Outros 38 fo-ram registrados como pertencentes a pessoas que não iam a bordo, sen-do escravos de ganho ou de aluguel postos a serviço de outrem por seus

    senhores. Como bem observou Russell-Wood, “não havia ocupação quenão contasse com seus negros de ganho, de navegadores e marinheiros acocheiros, pajens e uma variedade infinita de especializações e semiespe-cializações”. Mas a questão é que, no mar, sob vigilância, em isolamentoe espaço limitado, o pecúlio que os marinheiros escravos pudessem juntarera mais facilmente apropriado pelo senhor. Os escravos de ganho marí-timos enfrentavam outras dificuldades, como obter acesso ao mercado detrabalho com relativa autonomia para barganhar o valor de seus serviços.Isso pelo menos em algumas das profissões, como tanoeiro e calafate, quetinham “menos oportunidade de trabalho que especialidades mais procura-

    das, como as de sapateiro, carpinteiro, pedreiro ou ferreiro”42

    . Havia ainda ofato de que os pagamentos em geral não eram feitos ao próprio trabalha-

    41NOVAIS, Fernando A.; FALCON, Francisco. Op.

    Cit., p.100-102, foram dos primeiros a chamar aatenção para isso. Mais recentemente, ver SILVA,Cristina Nogueira da; GRINBERG, Keila. Op. Cit.,p.431-446.

    42RUSSELL-WOOD, A. J. R. Op. Cit., p.63-64. Sobre

    os escravos de ganho nas barcaças e embarcaçõesde cabotagem a partir do porto do Recife, verMILFONT, Magna Lícia Barros. Caminhos daságuas : o transporte fluvial no Recife, 1835-1860. (Dissertação de Mestrado em Urbanismo).

    Universidade Federal de Pernambuco, Recife,2003, texto sem numeração de páginas.

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    dor, confinado no navio e dependente das solidariedades que construísseali para juntar um pecúlio longe das vistas senhoriais.

    Alguns homens da amostra eram cativos dos donos do navio ouapenas citados como “escravos do navio”. Nestes casos não eram negrosde ganho, e totalizam oito homens. Os 40 restantes pertenciam a algummembro da tripulação, mas não sabemos se lhes cabia salário ou soldadapelos serviços prestados aos donos do navio (em outras palavras, se eramalugados) ou se serviam apenas aos seus senhores no mar. A presença deles

    pode ser entendida como fruto da vontade dos senhores, mas isso nãoquer dizer que a opção desagradasse aos próprios cativos. Vejamos o que épossível saber deles, traçando breves perfis.

    Escravos marinheiros e seus senhores: perfis e trajetóriasQue tipo de senhor trazia escravos consigo? Ao longo da série que tra-balhei, os capitães eram os oficiais que, na maioria das vezes, tinham oprivilégio de embarcar cativos, que os serviam pessoalmente ou auxiliavamnas fainas coletivas. Dos 40 escravos pertencentes a membros das tripu-lações, 31 o eram de capitães. Contramestre, piloto, sota-piloto, cirurgião,capelão e mestre carpinteiro eram as outras categorias de oficiais comrenda ou privilégios que os tornavam capazes de manter cativos a bordo.Até a promulgação das leis pombalinas sobre o tráfico e a escravidão noReino, os funcionários coloniais, os capitães de navios e oficiais podiamreceber parte de seus salários em escravos, muitos dos quais teriam sidolevados a Portugal e ali vendidos. O padre Joaquim José Pinto, da galeraN. S. do Rosário Paquete Feliz , tinha com o capitão um acordo desse tipo:podia levar seis escravos e o que mais quisesse em seu camarote na viagematé Benguela. Sabemos do acordo devido ao desentendimento que ambostiveram, o que valeu ao capelão ser despedido e levar “muitos murros norosto e com tanta violência que lhe fez sair pela boca e narizes grande

    quantidade de sangue e isso sem contar as injurias e palavras infames”43

    .Riscos inerentes à condição de padre-traficante.A experiência de ser escravo marítimo de senhor a bordo incluía uma

    vigilância constante. Pertencer aos homens mais bem postos na hierarquiaprofissional marítima indica algumas possibilidades, nem todas facilita-doras da vida a bordo. Os oficiais costumavam ser os alvos prediletos doescárnio dos marinheiros comuns, e pertencer a algum dos homens maisgraduados podia tornar o escravo o elo mais fraco na corrente das vin-ganças que os marujos cometessem. Exemplo disso aparece no relato deSamuel Greene Arnold sobre o tratamento dispensado a um “negrinhopassageiro de proa” quando seu navio atravessou a linha do equador em

    1847. O negrinho foi metido dentro d’água “com bastante crueldade (...),brincadeira que ele não compreendeu e que não lhe cabia, pois que já ha-via cruzado a linha ao ir à Europa”44. Como a experiência anterior não lhevaleu para se safar da agressão, podemos estar diante de um caso em queos demais marinheiros, não podendo atingir o capitão, usaram de violênciacontra um escravo e/ou subordinado do capitão sob a forma de uma vilaniacotidiana endossada pela cultura marítima.

    Brigas corporais envolvendo marinheiros sempre foram comuns, tan-to entre eles como quando estavam ancorados e se metiam com a gente daterra. Mas aquelas envolvendo marinheiros escravos e livres, se deixavam

    os primeiros em desvantagem, por vezes podiam tomar outras proporções eter outros desfechos. Não sabemos o motivo pelo qual houve “um levanta-

    43ANTT, Feitos Findos – Juízo da Índia e Mina, letra Y, Maço 47, nº 3, Caixa 47. Todas as indicações aprocessos desse fundo citados aqui me chegarampor intermédio de Mariana Candido, a quemagradeço. LAHON, Didier. O negro no coraçãodo Império : uma memória a resgatar. Lisboa:Casa do Brasil / Ministério da Educação, 1999.p.36, menciona o pagamento em escravos comouma possibilidade também para marinheiros.Nas listas de matrículas de equipagens, nãoencontrei nenhum caso de escravo pertencente amarinheiros comuns.

    44ARNOLD, Samuel Greene. Viaje por América del

    Sur 1847-1848. Buenos Aires: Emecé, 1951. p.56;RODRIGUES, Jaime. De costa a costa... Op. Cit.,p.188.

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    mento feito pelos pretos marinheiros e mais escravos da tripulação contrao contramestre da mesma e um marinheiro branco, únicos que se acha-vam a bordo” da galera Feliz Eugênia  em Benguela no dia 15 de abril de1812. Atacados, feridos e amarrados, os marinheiros brancos não puderamimpedir que seus colegas negros e escravos fugissem em um bote, levandoconsigo “vários pretos e pretas novos” até uma praia ao norte da cidade.Os escravos do porão acabaram recuperados pela ação dos moradores, masnão se achou nem pista dos marinheiros fugitivos.45

    Em outras situações, o senhor dos escravos se intrometia ou erachamado a intervir. Senhores que não vinham a bordo e não compartilha-vam dessa cultura de violência, sobretudo quando ela se voltava contra umapropriedade sua, podiam retaliar os marinheiros livres que a praticavam: foio que fez o desembargador Manoel Moreira de Azevedo, ao invadir o Arma-zém do Lazareto dos africanos novos no Rio de Janeiro em 1816 para surrarum marinheiro que dera um bofetão em um seu escravo durante a travessiado Atlântico. A história foi contado pelo Provedor Mor da Saúde e embora anarrativa seja confusa, deixa entrever que o escravo esbofeteado era ladinoe marinheiro alugado por seu senhor, pois, mesmo embriagado na ocasião, ohomem foi capaz de se lembrar do entrevero e “foi ele mesmo contar a seusenhor o sucedido com a cor que lhe pareceu”46. Quando não era o senhor,era a polícia: certa feita, o intendente da polícia do Rio de Janeiro, PauloFernandes Viana, mandou o juiz do crime da freguesia de Santa Rita abrirdevassa “pela morte feita no preto Domingos a bordo do bergantim Vulca-no , vindo de Cabinda”. O réu era o marinheiro Manuel, tripulante de outrobergantim também vindo de Angola, que acabou preso no Rio.47

    Tendo cativos a bordo, a vigilância dos oficiais era dupla. Senhorial,quando exercida sobre seu escravo, e atenta à propriedade escrava diantedo tratamento que os marinheiros livres dispensassem ao cativo. Ter comoproprietário um homem graduado da equipagem poderia trazer o benefício

    de mais e melhor comida, água e horas de descanso, a depender da índoledo senhor. Mas isso também tornava o escravo alvo da ira ou da chacotade marinheiros livres desejosos de atingir um capitão ou um contramestreexcessivamente rigoroso no trato com seus comandados.

     Vir sem senhor a bordo era uma situação que também encerrava am-biguidades. A vigilância senhorial direta, eventualmente compensada commelhor tratamento alimentar e na atribuição de tarefas, era substituídapelo olhar controlador dos oficiais responsáveis pela manutenção da dis-ciplina e eficácia do trabalho. Esses oficiais poderiam ser mais duros comtrabalhadores escravos que, afinal, não lhes pertenciam e pelos quais ti-nham uma responsabilidade limitada. Pagando pelo trabalho deles a outros

    senhores, os oficiais ou donos dos navios extraíam o máximo de trabalhodos cativos embarcados. Mas o caminho para a construção de solidarieda-des a bordo ou para a deserção talvez fosse melhor pavimentado quandoesse escravo estivesse longe das vistas de seu senhor e sob a vigilância desenhores provisórios e sempre ocupados com seus afazeres cotidianos.

    Seguramente, alguns dos cativos sem senhor a bordo eram escravosde ganho ou alugados, pois pertenciam a mulheres e estas nunca andavamembarcadas, a não ser como passageiras. O lisboeta Eugenio Antonio eraum desses, pertencente a Bernarda Maria, provavelmente uma senhorade algumas posses que teve seu nome inscrito na matrícula juntamente

    ao de seu falecido marido, Álvaro Pereira. Também com sinal distintivo,de “dona”, aparece Luiza Gercy, a senhora do moçambicano Salvador dos

    45

    AHU, Angola, Caixa 125, doc.5. Ofício de AntonioRabelo de Andrade Vasconcelos a José de OliveiraBarbosa, governador de Angola. São Felipe deBenguela, 17 de abril de 1812. O documento foianalisado também por CANDIDO, Mariana Pinho.Different Slave Journeys... Op. Cit., p.398.

    46Arquivo Nacional [Rio de Janeiro] (a partir daqui

    AN), IS 4 1 – Ministério do Reino e Império.Provedoria de Saúde. Ofícios e DocumentosDiversos (1809-1817), ofício de Manuel Vieira daSilva ao marquês de Aguiar. Rio de Janeiro, 9 demarço de 1816.

    47AN, Códice 323 – Correspondência da Polícia da

    Corte com várias autoridades, v.2 (1810), fl.6-6v,3 de dezembro de 1810.

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    Santos.48 Referidas apenas pelos nomes aparecem Rosa Clara Angélica, AnaMaria (moradora de Lisboa) e Anna Marinha, proprietárias do marinheirode primeira viagem João Manoel (sem naturalidade definida) e dos ango-lanos Pedro e Pedro José, respectivamente.49 A julgar por seus nomes, quenão incluem nenhum sobrenome de família, não seria estranho se essasmulheres, agora senhoras, tivessem sido escravas e tenham passado agozar da condição de forras.

    Pouco se sabe acerca das atividades dos senhores, exceto pelo caso

    de José dos Santos, pertencente a Manoel Pinto, soldado que mantinha seucativo no ganho a bordo de embarcações que zarpavam de Lisboa (nestecaso com destino a Pernambuco), enquanto o próprio senhor trabalhava emterra firme na guarda de Sua Majestade.50 Mais afamado e rico era EliasAntonio Lopes, traficante que cedeu uma propriedade para a instalaçãodo palácio real quando da vinda dos Bragança ao Rio de Janeiro em 1808.Ao falecer, em outubro de 1815, ele deixou entre seus bens vários navios ealguns escravos ligados a eles. Suas avaliações informam algo sobre o valordesses homens: os sete escravos marinheiros do Paquete Infante  foramavaliados em 759$200 – o equivalente a 832 sacos de farinhas ou 169barris de carne seca, itens também incluídos entre os pertences do navio.Lopes possuía ainda sete escravos marinheiros no Diligente , avaliados em836$000 e representando 12% do valor total desse bergantim, e outroscinco que valiam o correspondente a 9% do valor do São João Americano .51 Ponderando as avaliações, e sem sabermos nada sobre a idade, experiênciaou as habilidades desses homens, temos que cada escravo marinheiro valia,na época, algo em torno de 111$578. A conta pode variar, e as estimativasde valor de escravos marinheiros em comparação com outras especializa-ções requerem estudos mais aprofundados. Situações como a dos escravosmarinheiros apreendidos quando eram tripulantes de navios negreirostrazem outros dados, embora potencialmente inflacionados por seus donos

    ao requererem indenizações. Exemplo disso aparece no pedido de indeni-zação feito por Antonio Esteves dos Santos, proprietário da sumaca Flor doPorto  que, tendo perdido onze cativos marinheiros libertados pelos inglesesquando da apreensão do navio na costa africana em 1812, avaliou cadaum em 200$000. A Junta do Comércio acatou e aumentou ligeiramentea avaliação, ao pagar 2.263$725 aos proprietários dos marinheiros es-cravos – um preço aparentemente baixo se comparado aos 140$000 queele dizia valer cada um dos africanos embarcados em Onim no porão domesmo navio e igualmente perdidos na apreensão. Valor idêntico recebe-ram os donos do Feliz Americano , apresado em janeiro de 1812 em PortoNovo pelos ingleses com 12 tripulantes escravos a bordo.52 Luiz Geraldo

    Silva mencionou que os jornais recifenses de 1846 ofereciam escravo “semvício nem achaques, e robusto” por 200$000, ao passo que os senhores dosescravos marinheiros Manoel e José, fugidos em abril daquele ano, ofere-ciam 150$000 de recompensa a quem os capturasse: “isso parece indicarque eram muito importantes para a tripulação de seu navio”53.

    Mathias, um escravo de origem benguela e que aparentava 12 anos,embarcou pela primeira vez em 1776. Provavelmente fora traficado parao Rio de Janeiro e seus conhecimentos da língua portuguesa ainda eramincipientes, sobretudo quando sabemos que ele era marinheiro de primeiraviagem na rota Rio de Janeiro-Lisboa, sendo o único cativo em meio a uma

    tripulação de 22 homens. Seu senhor Antonio José Marques era o dono donavio em que ele vinha engajado e o barco era ativo havia alguns anos, já

    48“Relação dos oficiais e mais pessoas da

    equipagem da galera denominada N. S. daConceição Diamante qualificada na Secretariada Junta do Comércio destes reinos e seusdomínios declarando fazer viagem para o portodessa cidade [Lisboa]”. Relações de equipagensde navios e passageiros (São Luís, 19 de julho de1773). ANTT/Fundo Junta do Comércio (doravanteJC), Maço 1, Caixa 6; “1767 – Matrículas dasEquipagens dos Navios”, navio N. S. da Luz e São

    José. (Lisboa, 3 de julho de 1767). ANTT/JC, livro2, fls.70-84, respectivamente.

    49“Relação da equipagem do navio N. S. da Madre

    de Deus e Santo Antonio que segue viagem paraLisboa e veio do Porto.” Relações de equipagensde navios e passageiros (Porto, 15 de abril de1776). ANTT/JC, Maço 1, Caixa 7; “Relação daspessoas de que se compõem a equipagem donavio N. S. do Carmo e Senhor da Cana Verdeque vai para a cidade de Lisboa.” Relações deequipagens de navios e passageiros (Rio deJaneiro, 24 de novembro de 1767). ANTT/JC,Maço 1, Caixa 1; “Relação da equipagem donavio São José Princeza Real que segue viagempara Lisboa.” Relações de equipagens de navios epassageiros (Rio de Janeiro, 12 de junho de 1769).ANTT/JC, Maço 1, Caixa 1.

    50“Matrículas das Equipagens dos Navios”, navio

    N. S. da Glória, Santa Clara e Santo Antonio(Lisboa, 5 de julho de 1767. ANTT/JC, livro 2, fl.42.

    51AN, Códice 789 – Inventário dos bens da casa

    do finado Conselheiro Elias Antonio Lopes, fl.33,68v e 71.

    52

    AN, Junta do Comércio, Caixa 445, Pacote 2 –Navios aprisionados pelos ingleses: pedidos deindenização.

    53SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito...,

    Op. Cit., p.189.

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    que temos notícia de sua ancoragem no porto de Lisboa em 25 de maio de1772, regressando da Bahia.54

    A condição de escravo, quase sempre reservada aos africanos, teveem José do Rosário uma exceção notável, que a matrícula não explica.Este homem de 20 anos nascera na Índia, o que talvez explique a ausênciado registro da cor no campo cabível. Ele era também o único escravo deMiguel Rodrigues Colaço, o dono do navio, na viagem feita em janeiro de1771 entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Os oito anos de experiência marítima

    que Rosário acumulava nessa altura tinham sido integralmente cumpridossob cativeiro.55

    Carlos Silva Jr. levantou outros dados sobre escravos que trabalha-vam junto com seus senhores em embarcações, como o mina Antonio,pertencente ao capitão Jacinto Gomes – senhor que tinha ao menos maisum cativo, Martinho, que ia como “marinheiro na sumaca do defunto Joséda Silva” em troca de uma soldada de 70 mil réis. Minas também eramFrancisco e Joaquim, pertencentes ao capitão José Pereira da Cruz e mari-nheiros embarcados em uma galera na rota Salvador-Costa da Mina:

    Francisco, aliás, protagonizaria um caso de fuga atlântica, quando resolveu evadir-

    se assim que a galera Nossa Senhora do Rosário e Santo Antônio aportou em SãoTomé. Infelizmente, a liberdade durou pouco, pelo menos dessa vez: Francisco foiencontrado e trazido para a Bahia pelo capitão Manoel Antônio Matheus, em 1751.56

    Histórias curtas como essas são tudo o que os registros de matrícu-las de tripulações permitem deslindar. Todavia, há casos em que as fontesinformam algo mais sobre as vidas de marinheiros negros e escravos e suasrelações com homens de outra condição, incluídos aí os senhores.

    Trabalho e cativeiro, autonomia e liberdadeAs ações impetradas por escravos ou seus representantes legais com vistas

    à obtenção da liberdade tinham encaminhamentos diversos, conforme asbases que sustentassem a causa e os tribunais que sobre elas tinham ju-risdição. Quanto se alegava os termos das leis de 1761 e de 1776, as açõeseram apreciadas pelo soberano, que pedia o parecer da Junta do Comércio,de autoridades da Auditoria da Marinha ou encaminhava o processo à jus-tiça comum. Conseguir seus intentos era a expectativa dos escravos, mas éclaro que ela não se cumpria sempre, sem um grande esforço argumentati-vo e contando com uma rede de relações influentes.

    A justiça foi um lugar privilegiado para o debate em torno da li-berdade dos cativos. Entre o último quartel do século XVIII e as primeiras

    décadas do século XIX, correram diversas ações de liberdade nos tribunaissediados em Lisboa, iniciadas com base na legislação pombalina. Discutoalgumas delas a seguir.

    José Antonio Pereira, capitão da corveta N. S. dos Prazeres , chegaraa Lisboa em 1777 vindo de Angola, com escala em Pernambuco e trazendodez escravos na equipagem: o pardo carpinteiro Miguel e “os mais pretos”divididos entre calafates, carpinteiros e serventes, todos eles propriedadesde Antonio de Sousa Portela, dono da corveta e que, na ocasião, estava emAngola. Assim que chegaram à Corte, “cuidaram logo em demandar o supli-cante pelo Juízo da Correição do Cível (...), pedindo a liberdade com o fun-damento da Lei do ano de 1761, que proíbe transportar escravos do Brasil

    para este Reino para comércio”. Na verdade, Pereira queixou-se de que “um

    54“Relação dos oficiais e mais pessoas da

    equipagem da corveta N. S. da Piedade e SãoBoaventura que se destina a seguir viagempara Lisboa.” Relações de equipagens de naviose passageiros (19 de outubro de 1776). ANTT/JC, Maço 1, Caixa 8; Catálogo de documentosmanuscritos avulsos referentes à visita do ouroexistentes no Arquivo Histórico Ultramarino deLisboa. Lisboa, AHU, s/d, p.5, doc.8.

    55“Lista dos oficiais e mais pessoas da equipagem

    do navio Santíssimo Sacramento e Nosso Senhordo Paraíso, que se acha próximo a seguir viagempara a cidade de Lisboa” (Rio de Janeiro, 28 de

     janeiro de 1771). Relações de equipagens denavios e passageiros, ANTT/JC, Maço 1, Caixa 3.Sobre a escravização de canarins nos domíniosportugueses, ver VENANCIO, Renato Pinto. Op.Cit., p.25-26.

    56SILVA JR., Carlos Francisco da. Identidades

    afro-atlânticas : Salvador, século XVIII(1700-1750). (Dissertação de Mestrado emHistória). Universidade Federal da Bahia, Salvador,2011. p.85 e p.87.

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    lhe fugiu de bordo e intentou em nome de todos causa de liberdade”, sinalde que o conhecimento sobre as leis vinha desde antes da chegada a Lisboae que a articulação do desejo de liberdade forjou-se coletivamente, duran-te a travessia do Atlântico.

    Se os escravos conheciam os termos legais, com os senhores não eradiferentes: Pereira invocou o aviso de 1776 e conseguiu que o desembarga-dor José Joaquim de Magalhães e Lenções mandasse os escravos conserva-rem-se “no cativeiro e serviço da corveta” e expedisse mandado de prisão

    contra um dos escravos que, sem paciência com os trâmites da justiça,havia fugido. Os outros nove escravos mantinham-se a bordo, mas “nãoquerem seguir viagem, e teme o suplicante que se amotinem, não haven-do ordem superior que os faça obedientes”. Insatisfeitos, os cativos aindarecorreram à Intendência da Polícia, que indeferiu seu pedido ao saber dadecisão judicial. Impressiona, neste caso, que mesmo depois do julgamentoem primeira instância no Cível, os escravos mantivessem sua mobilidadepor Lisboa, indo ter com o Intendente e confirmando a percepção do capi-tão de que eles não eram, de fato, obedientes. Ocorre que um recurso caiunas mãos de outro juiz, o desembargador Alexandre José Ferreira Castelo,que emitiu sentença favorável aos escravos, “julgando-os livres e isentosdo cativeiro com a única razão do favor da liberdade e não se mostraremas idades dos ditos na certidão da sua matrícula que o suplicante apre-sentou”. A situação criou um impasse nos negócios da corveta, pois elaencontrava-se pronta para seguir viagem a Angola, mas não podia ir sem“sem a dita gente da sua equipagem que são os escravos”. Os conselheirosdo rei foram acionados para apreciar o caso, diante da vigência recente doAviso de 1776. O último juiz a se pronunciar cumprira à risca este últimoaviso: ele garantia a manutenção do cativeiro de escravos marinheirosdevidamente matriculados, e o fato é que a matrícula do grupo de Miguelnão cumprira a regra de declarar as idades dos cativos e quem era(m)

    seu(s) senhor(es). Na sentença do desembargador Castelo, eles “estavamnos termos de gozarem a liberdade na forma da dita lei”. Os conselheirosdiscordavam, por considerar que o senhor não podia arcar com o ônus dasomissões na matrícula, pois ele não era o responsável pela escritura doregistro. Entenderam ainda que a decisão final cabia ao rei.57

    O conhecimento do direito era um pressuposto, e o grupo de escravosmarinheiros vindos de Angola e de Pernambuco para Lisboa tentou se valerdas leis para se livrarem de seu senhor. Não sabemos se eles tiveram acessoao conteúdo das leis no porto africano de embarque ou na escala america-na. Pelo requerimento do capitão e pela sentença final, podemos conheceralgo mais sobre eles: os escravos haviam sido “tomados” para o serviço da

    corveta, embora ambos – escravos e corveta – pertencessem ao mesmodono. Em seguida, o fato de que o grupo, formado por “Miguel Pinto, Gas-par Mendes e outros homens pretos”, não obteve a liberdade, já que a vin-da deles ao Reino foi considerada conforme a lei, ou seja, eles haviam sidomatriculados em 1778 como “ajudantes da mareação”. O grupo tambémnão apresentou outros documentos exigidos pelos conselheiros da Junta doComércio, como a certidão do desembarque assinada pelo oficial da alfân-dega de onde partiu, exigência contida no alvará de 1761 para se pleiteara liberdade. Também era preciso dar ao senhor dos escravos o direito dese expressar no processo. Mas essa ausência de expressão não impediu a

    iniciativa dos escravos que, conhecedores dos detalhes da lei, sabiam quea inexistência do nome de seu senhor na matrícula era uma irregularidade

    57AHU, Angola, Caixa 61 (1776-1778), doc.1,

    contendo requerimento de José AntonioPereira a D. Maria I, 1778; ofício a Martinho deMello e Castro, 1778 e parecer assinado pelosconselheiros Marcelino Xavier da Fonseca Pinto,Manoel Nicolau Esteves Negrão e José LuizFrança, 30 de abril de 1778.

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    que podia lhes valer a chance de entrar na justiça, embora esse não fosseum detalhe definidor dos rumos da ação. No caso, os conselheiros optarampor preservar o direito senhorial e alegaram que a irregularidade não erade tal monta que devesse ser punida com a perda da propriedade escrava.Afinal, tanto o capitão Pereira como os próprios cativos declinaram o nomedo senhor no decorrer do processo: o grupo pertencia a Antonio de SouzaPortela, morador em Angola, pessoa a quem os escravos viam raras vezespor viverem embarcados. Além de serem mantidos no cativeiro, Miguel e

    seus companheiros tiveram de arcar com os custos do processo.58Quatro escravos serventes impetraram uma ação assim que aporta-

    ram em Lisboa, no início de agosto de 1780. Eles vinham da Bahia a bordodo Santíssimo Sacramento e N. S. da Arrábida , capitaneado por IgnácioXavier Lisboa. Diferentemente do que ocorria quando do registro da ma-trícula dos tripulantes forros ou escravos, no processo foram inscritos ossinais físicos desses quatro marujos escravos – o que reforça a hipóteseda lógica senhorial presidindo o preenchimento desse documento. Quan-do se tratava de matriculá-los, era mais adequado omitir os sinais físicos,possibilitando a troca de um escravo por outro ao arrepio da lei. Quandoos senhores eram acionados na justiça, a lógica era invertida: era precisosaber com certeza quem eram os escravos demandantes e inviabilizar queoutros usufruíssem da liberdade, caso ela fosse conseguida, por meio deuma confusão das fisionomias. Neste caso, os escravos eram Antonio doEspírito Santo, soteropolitano de cerca de 28 anos, “alto, cara comprida,nariz chato, olhos grandes, beiços grossos, com bastante barba”; PedroGoncalvez, natural da Costa da Mina, “que mostrou ter 46 anos, corpomediano (...), nariz chato, olhos grandes, beiços de algodão, com ambas asorelhas furadas, salpicado de sinais pela cara [talvez marcas de varíola],e com carimbo com a marca do rei no peito”; Amaro Gonçalvez, tambémda Mina, cerca de 38 anos, “corpo alto, cara comprida, nariz chato, olhos

    grandes, beiços grossos e salpicado de sinais nas fontes e com carimbo nopeito direito com marca do rei; e Sebastião Gonçalvez, da Mina, por voltade 36 anos, “corpo alto, cara comprida, nariz chato, beiços grossos e carim-bo do rei”. Seu senhor, Teodosio Gonçalvez, tentava impedir a reivindicaçãode liberdade feita com base no alvará de 1761, contrapondo-lhe o aviso de1776. A rainha pediu o exame do caso na Junta do Comércio “a respeito deserem os ditos pretos conservados na escravidão ou reputados livres” 59.

    O provedor e os deputados da Junta do Comércio receberam os de-poimentos por escrito de alguns passageiros do navio, alegando que o capi-tão trazia a bordo os quatro homens e “uma preta que o está servindo daporta adentro”. Na Bahia, de acordo com os depoentes, Amaro e Sebastião

    carregavam seu senhor em cadeirinhas e ajudavam no serviço doméstico,Antonio servia como lacaio e alfaiate, enquanto Pedro já fizera uma viagemà Costa da Mina. Exceto Pedro, os demais serviam apenas seu senhor nonavio e “puxavam por algum cabo do mesmo convés do navio, mas que nãoserviam para atrapar, ferrar, largar ou cozer pano e menos iam ao leme”60.

    Todos, portanto, tinham pouca ou nenhuma experiência na na-vegação e parece claro que este senhor, ao se estabelecer em Lisboa,queria levar consigo os escravos dos quais estava acostumado a se servirna colônia. Com isso, burlava as leis que, naquela altura, só permitiamo ingresso de escravos mareantes em trânsito. Teodózio, é claro, negava

    que fosse assim e dizia que sua intenção era manter os escravos comoserventes e que em breve voltariam todos no mesmo navio para a Bahia.

    58LIMA, Priscila de. Documento. Outros Tempos ,

    São Luís, v.8, n.11, p.319, 2011. A autoratranscreveu e comentou o documento intitulado‘Certidão (cópia) declarando a sentença da açãode proclamação da liberdade de alguns homenspretos que chegaram a Portugal, embarcadosno porto de Pernambuco muitos anos depois dalei de 1761 e do aviso de 1776. Lisboa, 11 deabril de 1778. Arquivo Histórico Ultramarino –Pernambuco. Caixa 129, documento 9.759’,disponível em http://www.outrostempos.uema.br/site/images/vol_8_num_11_2011_NEW/certidao_declarando_2.pdf.

    59Termo de manifesto assinado por Francisco

    Ferreira do Vale, escrivão da provedoria daAlfândega Grande, 16 de novembro de 1780;ofício de Martinho de Melo e Castro a JoãoHenrique de Souza, 2 de dezembro de 1780.ANTT/JC, Avisos, Decretos e requerimentos sobreo comércio de escravos, maço 62, caixa 204.Agradeço a Mariana Candido por me oferecersuas anotações sobre este processo.

    60Instrumentos de Justificação de Francisco Jose

    Lopes ao provedor e deputados da Junta doComércio, Lisboa, 9 de dezembro de 1780.ANTT/JC, Avisos, Decretos e requerimentos sobreo comércio de escravos, maço 62, caixa 204.

    http://www.outrostempos.uema.br/site/images/vol_8_num_11_2011_NEW/certidao_declarando_2.pdfhttp://www.outrostempos.uema.br/site/images/vol_8_num_11_2011_NEW/certidao_declarando_2.pdfhttp://www.outrostempos.uema.br/site/images/vol_8_num_11_2011_NEW/certidao_declarando_2.pdfhttp://www.outrostempos.uema.br/site/images/vol_8_num_11_2011_NEW/certidao_declarando_2.pdfhttp://www.outrostempos.uema.br/site/images/vol_8_num_11_2011_NEW/certidao_declarando_2.pdfhttp://www.outrostempos.uema.br/site/images/vol_8_num_11_2011_NEW/certidao_declarando_2.pdf

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    O cirurgião, o capitão e o contramestre do navio confirmaram a intençãodo senhor.61

    Mais de três décadas depois, a procura pela liberdade na justiçaportuguesa permanecia, embora as conjunturas legal e política viessemse transformando ao longo do tempo. O baiano Zeferino José de Freitaschegou a Lisboa em dezembro de 1816 trazendo consigo Feliz de Freitas,“que tem sido apresentado por livre e forro”. Ao que tudo indica, Zeferinotinha ajudado Feliz a entrar em Portugal, talvez fugido, e a única forma

    de fazê-lo era trazendo o homem como marinheiro em uma embarcação.Como este último adoecera e tinha uma conta a pagar no Hospital Realde São José, o baiano pleiteava que “se lhe passe sua carta ou sentença deliberdade a fim de ficar (...) desonerado de toda e qualquer responsabilida-de que lhe possa sobrevir a respeito ao mesmo preto”. Feliz tinha 36 anos,era solteiro, nascido e batizado em Salvador, sabia os nomes de seus pais(Pedro Jose e de Josefa Maria da Conceição, nessa altura já falecidos), diziaser forro e de profissão marítima, embora alegasse ter vindo de Havanacomo passageiro no bergantim Patrocínio  trajando apenas “japona de bei-tão [baetão] escuro e calças azuis tudo velho”62. Se era forro como alegava,ele não tinha documento que comprovasse sua condição, daí o pedido deemissão de uma carta de liberdade que lhe permitisse ficar no Reino ou irpara onde quisesse, e que também livrasse Zeferino da acusação de rouboou de acobertar sua fuga.

    Alguns senhores pareciam desavisados acerca do conteúdo dasleis portuguesas ou então contavam com sua ascendência, boa sorte eboas relações para ingressar no Reino com escravos quando isso já nãoera mais permitido havia décadas. Só isso explica a intenção de TeodoroAntonio Gomes ao trazer do Rio de Janeiro, “a titulo de um escravo”, o“homem preto” mineiro de Sabará Anselmo José da Cruz a bordo do navioSão Thiago Maior , sem matrícula de marinheiro. O escrivão da Alfândega

    Grande do Açúcar de Lisboa, diante das alegações, simplesmente emi-tiu certidão de liberdade a Anselmo, de 20 anos de idade “pouco maisou menos, de estatura ordinária, muito sóbrio, cumprido beiços grossos,nariz chato”. E Anselmo não foi o único: Antonio Jorge, que fora escravode Miguel Ignácio Machado no Rio de Janeiro, chegara a Lisboa com seusenhor e conhecia a conformidade da lei, pedindo “vocalmente sem que lheentregassem o tácito consentimento da sua liberdade”. Diante da recusa deMiguel, o escravo abandonou a oralidade e pediu formalmente sua carta dealforria “para livremente poder transitar por onde bem lhe parecer”, em 7de agosto de 1822.63 

    Além de justiça, a polícia de Lisboa era outra instituição onde podiam

    começar intentos de liberdade. Manoel e José eram dois escravos que seencontravam em Lisboa em 1781. Vieram servindo em um navio zarpado daAmérica e, no mesmo ano, se tornaram propriedades de João de Azevedoe Motta, que teve a ideia de matriculá-los como marinheiros na mesmaembarcação onde eles haviam chegado à capital portuguesa, que seguiriadali rumo ao Grão-Pará. As ações subsequentes tiveram a participaçãodecisiva de Diogo Ignácio de Pina Manique, controverso intendente dapolícia lisboeta setecentista. Rudgers expressou uma opinião severa sobre ointendente, “o qual (...) considera que o seu cargo consiste primordialmenteem prender gente, com ou sem culpa formada. Assim, a sua consciência

    fica tranquila, porque, entre tantos, um ou outro ladrão sempre foi punido”.O intendente também ganhou fama por acreditar que todo francês era ja-

    61Autos de Justificação para qualificar navios do

    comercio de escravos. ANTT/JC, Avisos, Decretose requerimentos sobre o comércio de escravos,maço 62, caixa 204.

    62Autos cíveis de petição e despacho para carta de

    alforria em que é autor Zeferino José de Freitas,natural da Baía (Brasil), 1817. ANTT, Feitos Findos –Juízo da Índia e Mina, maço 4, n.5, caixa 128.

    63Requerimento e certidão de liberdade de

    Anselmo Jose da Cruz, 13 de novembro de 1818.Autos cíveis de requerimento e despacho para julgar por sentença a liberdade de Anselmo Joséda Cruz. ANTT, Feitos Findos – Juízo da Índiae Mina, maço 8, n.5, caixa 132; Ação Civil deembargo a primeira a Antonio Jorge, homempreto, e réu Miguel Inacio Machado. ANTT, FeitosFindos – Juízo da Índia e Mina, maço 18, n.12,caixa 142.

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    cobino, o que torna mais compreensível um informe assinado por ele dandoconta de que a tripulação de um navio francês embargado em Lisboa em1792 andava pelas ruas de Belém cantando canções de “viva a liberdade emorram os aristocratas”, um deles tocando uma suspeitíssima gaita.64

    Pina Manique tornou o caso de Manoel e José algo duplamenterevelador: de um lado, da postura policial de desconfiança generalizada emrelação os súditos do rei; de outro, da habilidade escrava em se valer dapolícia para conseguir benefícios, inclusive a liberdade. Por vezes, o intento

    era possível. Outra questão, que não dependia da ação policial, era a per-cepção dos cativos de que os momentos de troca de senhor eram cruciaispara o desmilinguir da condição escrava, posto que os dois cativos em cenapertenciam a Motta havia apenas seis meses.

    O intendente suspendeu a matrícula após ser informado que osescravos não eram batizados nem “instruídos nos mistérios da Nossa SantaFé”. Os informantes, para que não reste dúvida, eram os próprios Manoel eJosé, que denunciaram seu senhor à polícia, decerto conhecedores do teordas leis portuguesas e da crença do intendente da polícia de que a escravi-dão só era legítima se, em troca, os escravos fossem instruídos no cato-licismo. Para Manique, o senhor estava sujeito à perda do domínio sobreseus cativos por tentar burlar essa norma, ao planejar enviá-los para forado Reino e, ainda por cima, na condição de pagãos – o que, aliás, AzevedoMotta já fizera com outros escravos. O texto legal de 1776 foi lançadocontra Motta, acusado de

    iludir a lei que em benefício da navegação permitiu os escravos que viessem natripulação dos navios, pois que assinando termos de conservas aos suplicantes [osescravos] no mesmo navio em cuja mareação tinham vindo, vendeu a este e tratavade os vender também a eles (...). Pelo que me pareceu que os suplicantes estão nostermos de se lhe permitir a liberdade que imploram por terem a seu favor as Leisdeste Reino que os protegem (...).65

    Manoel e José não foram os únicos cativos pelos quais Manique sebateu em nome da fé católica. Houve ainda o caso de oito pretos vindosde Macau e de outro escravo vindo da Bahia. Comecemos por este último,também de nome José e que possivelmente conhecia a fama de carola dointendente e o caso de seu xará, ocorrido em 1781.

    José enviou um requerimento à polícia em 1784, “em o qual pretendea liberdade, alegando para isso o estar ainda pagão”. Manique deu créditoà versão do suplicante, que servia havia cerca de dois anos em um naviocapitaneado por Eugenio Pedro entre a Bahia e o Reino. Mesmo sabendoque o rei cedera aos interesses da navegação, vetando as pretensões deliberdade e permitindo o embarque de marinheiros escravos desde 1776,o intendente conferiu carta de liberdade a José. Em seguida, o mandouao Real Colégio dos Catecúmenos “a fim de se instruir nos mistérios denossa santa fé, para depois ser batizado”. Criado em 1579, no Bairro Alto,o Colégio66 fora reconstruído após o terremoto de 1755. Ao mesmo tempoem que catequizava, a escola também ensinava aos seus estudantes a artede calafetar navios, o que deixa entrever que o escravo não fora enviadopara lá aleatoriamente. O intendente julgava poder interferir na relaçãode domínio escravista e também aperfeiçoar as habilidades de um homemque, afinal, não era neófito nas lidas do mar.

    Todavia, o Colégio não quis receber o catecúmeno em potencial. Piorpara seu senhor, já que Manique o obrigou a pagar “um destes mestres

    64SANTOS, Piedade Braga; RODRIGUES, Teresa;

    NOGUEIRA, Margarida Sá. Op. Cit., p.50; ofíciode 25 de setembro de 1781, do Intendentede Polícia a Marquês Mordomo Mor. ANTT/Fundo Intendência Geral de Polícia [de Lisboa](doravante IGP), livro 3, Contas para as

    Secretarias, desde o 1º de outubro de 1787 até15 de janeiro de 1793, 9 de novembro de 1792,fl.281. Na busca de evidências nos livros daIntendência da Polícia, vali-me das preciosasindicações contida em FONSECA, Jorge. Op. Cit.,p.30-35. Para uma auto avaliação dos serviços deManique à Corte, ver a carta enviada por ele aoMordomo Mor em junho de 1799, reproduzida emRAMOS, Luís de Oliveira. D. Maria I. Cais de MemMartins: Círculo de Leitores; Centro de Estudosdos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa,2010. p. 293-198.

    65Ofício de 25 de setembro de 1781, do Intendente

    de Polícia a Martinho de Mello e Castro. ANTT/IGP, livro 1 – Contas para a Secretaria, desde15 de junho de 1780 até 11 de agosto de 1783,fls.191-191v.

    66A Casa ou Colégio dos Catecúmenos “fora

    fundada como corolário de uma situação solene:a decisão de conversão ao catolicismo de umconjunto de muçulmanos marroquinos que setinham acolhido em Portugal (...)”, cf. TAVIM,José Alberto Rodrigues da Silva. Diásporaspara o Reino e Império. Judeus conversos esua mobilidade: aproximações a um tema. In:DORÉ, Andréa e SANTOS, Antonio C. de Almeida.Temas setecentistas : governos e populações no

    império português. Curitiba: UFPR/SCHLA; Fund.Araucária, 2009. p.372.

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    das escolas públicas para ensinar ao suplicante os primeiros elementos danossa religião e suprir assim o que havia aprender”, ao custo de 480 réispor mês. Todavia, o marinheiro José não parecia muito interessado em seinteirar nos mistérios da fé: fugiu antes do batismo e sem o papel que ga-rantiria sua liberdade formal. Disfarçando seu fracasso, o intendente da po-lícia comunicou o caso à rainha em tom de denúncia contra o Colégio, quesistematicamente recusava abrigar os pagãos chegados a Lisboa, alegandoque a maioria deles não conhecia a língua portuguesa.67

    Quanto aos oito marinheiros escravos vindos desde Macau, conhe-cemos apenas o nome de um deles – Lourenço da Silva – e o da embarca-ção – Santa Cruz . O então secretário de Negócios Estrangeiros e da Guerra,Ayres de Sá e Melo, pedia informações sobre o andamento do caso desseshomens, que haviam requerido suas liberdades utilizando-se da lei de 19de setembro de 1761 e “por lhe assistir também outra resolução de S. M.que favorece aqueles que se acham pagãos, estado em que os suplicantesse acham, segundo dizem”. A queixa de Lourenço e seus companheirosdevia-se ao fato de que eles haviam sido vendidos.

    O intendente respondeu remetendo ao aviso de 22 de fevereiro de1776, que restringiu a lei supra citada, e afirmou:

    entrei na dúvida que pudesse a minha decisão ser conforme por depender deindagações do foro e recorri ao meio de mandar requerer na Casa da Índia, visto onavio ter vindo da Ásia, e por este princípio dado entrada naquela casa, aonde ossuplicantes logo foram com os seus requerimentos.68

    O provedor daquele órgão indeferiu os requerimentos e “os mandouusar dos meios ordinários que o negócio dependia de maior indagação no

     juízo contencioso”. O intendente não estava em condição de deliberar acer-ca desta matéria, “em que se trata da liberdade de uns miseráveis, e dosinteresses em que pode ficar leso o senhor dos mesmos escravos”69. No en-

    tendimento de Pina Manique, o caso deveria seguir à apreciação da rainha.O intendente tinha seus limites e suas artimanhas, e em várias ocasiões eleos utilizou em favor dos cativos. Estes, por sua vez, também se valiam deartimanhas – no caso, o recurso à polícia que, por vezes, impunha limitesao mando senhorial.

    Mas nem sempre o desfecho era assim. Alguns negros manobraramo navio de Antonio Ferreira de Mesquita, que corria a costa portuguesa em1783 e teve toda sua tripulação branca morta na altura de Lisboa devidoà ocorrência de uma epidemia a bordo. No dizer do intendente da policia,tratava-se de negros (provavelmente escravos) “ignorantes destas costas

    e barra deste rio”, ignorância que demandou a vinda de trinta marinheirosbuscados em terra para trazerem o navio rio adentro.70 É preciso notar quea ignorância alegada por Pina Manique não era sinônimo de desconheci-mento no manejo do navio, aparentemente de grande porte, já que reque-ria tantos homens para manobrá-lo. Pode-se observar que a questão nãoera de falta de habilidade profissional: afinal, os negros operaram a embar-cação até ali, e creio mesmo que estavam aptos a trazê-la em segurançadesde a foz do Tejo ao porto de Lisboa ou a levá-la para onde quisessem,e que o medo do intendente era justamente devido a esta última possibi-lidade. Daí que um contingente de 30 marujos levados da terra a bordo donavio não era exatamente uma necessidade operacional, mas sim policial

    e senhorial. Tantos homens assim indicam um contingente preparado in-

    67

    Ofício de 29 de abril de 1784, do Intendente dePolícia ao [4º] Conde de Vila Verde, Pedro José deNoronha Camões de Albuquerque Moniz e Sousa,à época responsável pelo Real Erário. ANTT/IGP,livro 2 – Contas para as Secretarias, desde 13de agosto de 1783 até 29 de setembro de 1787,fls.63-64.

    68Ofício de 22 de fevereiro de 1786, do Intendente

    de Polícia a Ayres de Sá e Mello. ANTT/IGP, livro2, fl.222.

    69

    Ibidem, fl.222v.

    70Ofício de 8 de agosto de 1783, do Intendente de

    Polícia a Martinho de Mello e Castro. ANTT/IGP,livro 1, fl.687.

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    clusive para tomar o navio à força, caso os “negros ignorantes” quisessemexecutar algum plano de fuga.

    A polícia lisboeta também podia estar atenta à escravização ilegalde homens negros, sobretudo estrangeiros. Um navio francês naufragadono Tejo em 1791 teve dois de seus marinheiros negros furtados, depoisque eles foram a uma mercearia em São Roque e ali se embriagaram aoponto de perderem os sentidos. Seus nomes eram Anastácio Marçal eJoão Batista, ambos naturais da Ilha do Príncipe. Depois da bebedeira na

    mercearia, os dois foram, de noite e “surreticiamente”, embarcados em umnavio de propriedade de Pedro Nolasco, acordando já em alto mar rumoa Belém do Pará, onde seriam vendidos como escravos. O roubo foi reco-nhecido como uma violência contra os “miseráveis” e ambos ficaram sob aproteção de Domingos José Frazão71, no Pará. Manique mandou prender odono da mercearia e revelou a intenção de não soltá-lo, aplicando a ele umcastigo exemplar “para que outros não pratiquem esta casta de violências”.Pedia, outrossim, que o governador do Grão-Pará mandasse os marinheirosnegros de volta à Corte, pois tinha o propósito de “indenizá-los dos jornais(...) desde o dia em que os meteram a bordo neste porto até o dia em quechegaram a ele, e arbitrar-lhes mais a título de ajuda de custo, coisa comque os mesmos escravos possam ser satisfeitos da injustiça e dano quelhes causaram (...)”72. Fernando Novais e Francisco Falcon, dos primeiroshistoriadores a repararem no caso, informam que, “com relativa preste-za, juntando cópia do ofício, dirigiu-se o ministro ao governador do Pará,determinando aquelas providências. Didier Lahon, que também comentoua questão dos dois marinheiros da Ilha do Príncipe, afirma que Nolasco, umdos envolvidos neste crime, era sócio na galera S. Macário e Minerva