ana rodrigues

Upload: rodrigo-vaz

Post on 03-Mar-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    1/87

    SSuubbjjeettiivviiddaaddeesseeEEssppaaooss::

    NNaarrrraattiivvaassIInnccoommpplleettaass

    Coin Rue Vallete-Pantheon (Atget, 1925)

    Ana Cabral Rodrigues

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    2/87

    11

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSECENTRO DE ESTUDOS GERAIS

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIADEPARTAMENTO DE PSICOLOGIAMESTRADO EM PSICOLOGIA

    Ana Cabral Rodrigues

    SSuubbjjeettiivviiddaaddeesseeEEssppaaooss::NNaarrrraattiivvaassIInnccoommpplleettaass

    Niteri2006

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    3/87

    12

    Ana Cabral Rodrigues

    SSuubbjjeettiivviiddaaddeesseeEEssppaaooss::NNaarrrraattiivvaassIInnccoommpplleettaass

    Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Psicologia do Institutode Cincias Humanas e Filosofia, daUniversidade Federal Fluminense, comorequisito parcial para obteno do grau deMestre em Psicologia, na rea deconcentrao Subjetividade, Poltica eExcluso Social.

    Orientador: Prof. Dr. Luis Antnio dosSantos Baptista

    Niteri2006

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    4/87

    13

    Ana Cabral Rodrigues

    SUBJETIVIDADES E ESPAOS: NARRATIVAS INCOMPLETAS

    Aprovada em 18 de Agosto de 2006

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________________

    Prof. Dr. Luis Antnio dos Santos Baptista - Orientador

    Universidade Federal Fluminense

    ___________________________________________________

    Prof. Dra. Ceclia Maria Bouas Coimbra

    Universidade Federal Fluminense

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Robert Moses Pechman

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    5/87

    14

    A Marcos, presena indispensvel em minha vida

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    6/87

    15

    AGRADECIMENTOS

    Ao querido orientador e amigo Luis Antnio por toda confiana e partilha. Quantashistrias mais podemos narrar?

    A amiga Beth, que soube fazer cada encontro, cada leitura, ter gosto de pimenta rosa.

    Aos meus avs, pais e irmos pela presena em cada passo de meus percursos.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    7/87

    16

    RESUMO

    Pretendemos, neste trabalho, tecer algumas articulaes entre os estudos dos

    espaos e os estudos da subjetividade atravs do conceito benjaminiano de Narrativa.

    Problematizando, desta forma, o entendimento de ambos, seja como dados, seja comocategorias regidas por um ideal transcendental, e afirmando-os atravs de uma

    perspectiva poltica, de modo que possamos analisar as possveis ligaes entre o

    modelo racional de espao e a constituio da subjetividade individualizada como uma

    produo da modernidade.

    Palavras chave: Subjetividade, Espao, Narrativa

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    8/87

    17

    ABSTRACT

    In this work, we intend to establish some connections between the studies of the spaces

    and the studies of subjectivity through Walter Benjamins concept of narrative. Taking

    neither of them as given, objective, natural, or ruled by an transcendental ideal, we

    intend to analyze them from a political viewpoint, in order to analyze the possible

    relations between space rational model and the constitution of individualized

    subjectivity as products of modernity.

    Keywords: Subjectivity, space, narrative.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    9/87

    18

    SUMRIO

    INTRODUO --------------------------------------------------------------------------- 10

    CAPTULO I: Completudes Ordem e Progresso ----------------------------------- 15

    CAPTULO II: Mquina Espao e Poder (ou, o desmanchar dos deuses) ------ 31

    CAPTULO III: Incompletude Espaos, Percursos e Outras Histrias --------- 38

    CAPTULO IV: Narrativas Aberturas ---------------------------------------------- 50

    CAPTULO V: Imagens e Porosidade Afirmaes e Enfrentamentos --------- 67

    CONCLUSO: Para ficar atento ao que ficou incabado

    espao, memria e salvao ---------------------------------------- 80

    BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------- 85

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    10/87

    19

    II NN TT RR OO DD UU OO

    Ela apaziguara to bem a vida, cuidara tanto para que esta no

    explodisse. Mantinha tudo em serena compreenso, separava uma

    pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem

    usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite tudo feito

    de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando

    goma despedaava tudo isso.

    Clarice Lispector1

    A modernidade, esta experincia de tempo e espao, de si e do outro que marca

    o ocidente desde o sculo XVI, e que tomou ao longo da histria contornos distintos, emblematicamente definida como uma poca na qual tudo o que slido se desmancha

    no ar. Esta afirmao de Karl Marx enunciada no Manifesto Comunista aponta

    precisamente para a crise das certezas e ancoragens outrora vigentes, assentadas na

    solidez das instituies e tradies medievais. A efemeridade caracterstica da

    modernidade encontra-se entrelaada a uma rede infinita de possibilidades e vivncias

    prometidas pela efervescncia das grandes cidades, pelas inovaes tecnolgicas e

    cientficas, pela mobilidade e velocidade dos meios de transporte, pelas miscigenaesculturais, pela fluidez do mercado e facilidade de acesso s mercadorias, entre tantas

    outras novidades na histria ocidental.

    Todas estas invenes da modernidade orbitam em torno de uma instituio,

    tambm moderna, e que por este carter axial exige um destaque especial: o indivduo.

    No temos em mente aqui o indivduo como sujeito emprico da palavra; pensamos,

    antes disso, como uma posio a partir da qual se interpreta, se l o mundo e, portanto, a

    partir de onde se age sobre o mundo. Desta maneira, a subjetividade individuada se1LISPECTOR, C. Amor. In:Laos de Famlia. Rio de Janeiro: Rocco, s/d.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    11/87

    20

    apresenta como suporte da existncia, posio de enunciao do discurso, e para a qual

    o discurso dirigido.

    Estando referida a este suporte, a modernidade se constri eminentemente como

    uma experincia da interioridade. Mais ainda, a modernidade uma experincia de

    delimitao entre a interioridade e a exterioridade, a partir da qual se estabelecem

    dualidades como as entre individual e coletivo, sujeito e sociedade, interno e externo,

    privado e pblico, subjetivo e objetivo. A delimitao precisa desta interioridade, tanto

    mais precisa quanto mais radicalmente se puder realizar tais cises, garantir a pureza

    necessria para que se possa falar de uma essncia individual. Esta essncia pode ou

    melhor, deve ser conhecida, a fim de que a existncia adquira seu pleno sentido, sua

    positividade, sua autenticidade, em suma, para que as atribulaes decorrentes deste

    esfacelamento tpico da modernidade sejam redimidas nos plcidos recnditos da

    interioridade do indivduo. certo que nem sempre estes recnditos aparentaro tal

    placidez a literatura nos d testemunho de arrebatadoras paixes, tenses,

    embriaguezes, fragmentaes, que por vezes conduzem o indivduo a um niilismo

    paralisante, at mesmo angustiante. Todavia, esta turbulncia permanece referida ao

    plano da interioridade; trata-se de uma turbulncia encapsulada, blindada, que em seus

    movimentos promove uma contnua ratificao de si e que, portanto, no deixa de ser

    plcida, uma vez que constitui to somente a verdade turbulenta do indivduo. Esta

    turbulncia, portanto, no atravessa nem interroga a verdade que o indivduo porta em

    si.

    A personagem trazida pelo conto Amor de Clarice Lispector, protagonista da

    breve narrativa que encima esta introduo, experiencia tal turbulncia, ou

    despedaamento (conforme as palavras da autora) em seu trajeto de bonde entre o

    mercado e sua casa. Clarice evoca uma imagem que s poderia ser narrada na

    modernidade, precisamente por este carter de efemeridade, de falta de lastro, defragmentao de si frente ao mundo. Entretanto, a imagem de um estranho, um cego

    parado na rua a mascar chicletes no chegou aos olhos da personagem como um

    aturdimento que lhe exigisse uma nova restaurao de si, nem novas ancoragens que lhe

    salvassem deste despedaamento nauseante. Esta imagem no foi simplesmente

    registrada, somada s vivncias da personagem: o que o cego desencadeara caberia nos

    seus dias?, indaga-se a narradora. Ao dissolver esta bem marcada delimitao entre

    interioridade e exterioridade, o cego mascando chiclete, esta imagem to banal, pdeatravess-la, pde ser a matria prima de seu corpo, sua sensibilidade, seus sonhos e

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    12/87

    21

    percepes e do modo como podia experienciar este mundo.

    Em nosso trabalho, pretendemos estar atentos a como este modo de tomar a

    fragmentao moderna, acenada pelo conto de Clarice, pode agir nos discursos e

    prticas sobre a subjetividade. Assim tambm, buscaremos analisar como outras

    estratgias apresentadas frente efemeridade moderna agem precisamente no

    delineamento dos contornos bem marcados do indivduo constitudo modelo de

    existncia por excelncia.

    Para tal, lanaremos mo de uma das imagens mais emblemticas da

    modernidade, evocada pelas letras tanto de Charles Baudelaire, Edgar Alan Poe e

    Walter Benjamin, quanto por Lima Barreto, Machado de Assis, Rubens Fonseca e, por

    que no, pela prpria Clarice Lispector: os espaos urbanos.Afinal, estes autores no

    nos permitem esquecer que so nas grandes avenidas, nas multides, nos interiores dos

    lares, nas praas, ao volante do carro, nos becos e botecos que a sensibilidade moderna

    est sendo tecida. A cidade constituda objeto de anlise e discurso, ou melhor,

    constituda urbe , igualmente, uma novidade na histria ocidental e se apresentar

    como uma das estratgias de apaziguamento, controle e deciframento tanto do espao

    quanto do indivduo que o habita, compreendendo-os como duas substncias distintas.

    Assim, nossa proposta de trabalho consiste em aproximar subjetividade e espao

    analisando-os a partir das articulaes entre a individualizao da existncia e a

    racionalizao do espao sob o signo da ordem urbana. Para realizarmos tal

    aproximao de modo que estes dois conceitos possam ser trabalhados a partir de um

    campo poltico e no como dados ou verdades atemporais traremos o conceito de

    narrativa cunhado por Walter Benjamin.

    Buscaremos, desta forma, apresentar subjetividades e espaos como narrativas

    narrativas incompletas. Isto , trabalhados a partir da matria prima das narrativas

    tradicionais: a experincia como passagem; ou no alemo de Benjamin,Erfahrung.Estaexperincia que no se encerra, tampouco se equivale aos contornos do indivduo,

    indica o movimento prprio da narrativa. Pois esta, tecida na passagem, no

    entrelaamento dos fragmentos de histrias de muitas vidas, no se mostra passvel de

    completar-se, fechar-se ou de esgotar-se. Tampouco, pretende erigir nova ordem, novos

    monumentos. A narrativa incita montagem, incita ao recolhimento destes fragmentos

    que saltaro da voz do narrador, permitindo-se desdobrar em muitas outras histrias e

    recontar-se inmeras vezes, sem, no entanto, repetir-se.A incompletude marca nossa aposta poltica neste trabalho, na medida em que

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    13/87

    22

    ela pode enfrentar as promessas restauradoras, as promessas de totalidade, de felicidade

    e salvao oferecidas instantaneamente seja pelos interiores aconchegantes das casas

    burguesas, seja pelas vitrines iluminadas, pelos bingos e templos, pelos vidros-fum, ou

    ainda pelo esquadrinhamento dos espaos urbanos (cada coisa em seu lugar!).

    Em nosso percurso, teremos a literatura como parceira de trabalho. Pois

    acreditamos que ela possa nos oferecer, no uma exemplificao, ilustrao do

    pensamento, mas uma interlocuo. De tal sorte que nos auxiliar a fazer de nosso

    trabalho, ele tambm uma narrativa. Ou seja, astuta em um terreno movedio que no

    permite a acomodao das palavras em verdade opacas. Que elas provoquem nosso

    olhar, nosso olfato e escuta.

    Nosso trajeto consistir em:

    No primeiro captulo introduziremos nossa temtica apresentando as formas

    pelas quais os conceitos de indivduo e de espao tm sido articulados

    contemporaneamente. Pretendemos evidenciar como o estabelecimento desta

    articulao tributrio do entendimento de ambos como duas realidades ontolgicas

    distintas que so, no entanto, passveis de se influenciar mutuamente. A partir disto,

    construiremos os fundamentos necessrios para desenvolvermos uma anlise que, ao

    incidir sobre o encontro harmnico entre os dois plos desta relao proposto na

    modernidade, destacar a aposta em uma completude subjacente naturalizao deste

    encontro. Lanando um olhar crtico a esta compreenso, enunciamos nossa proposta de

    trabalho trazendo a categoria indivduo como uma produo da modernidade, que se

    estabeleceu como o modo de existncia por excelncia. Destacamos, assim, o advento

    da centralidade do indivduo nos modos de compreenso da realidade, o que, no tema

    em questo, se manifesta particularmente na constituio de um espao ordenado.

    Inversamente, porm obedecendo ao mesmo mecanismo, apontaremos os modos atravs

    dos quais as elaboraes modernas concernentes ao espao moldam a experincia dainterioridade, prpria subjetividade individualizada.

    No segundo captulo, desenvolveremos, a partir do estudo de Michel Foucault,

    as peculiaridades que marcam o liame que articula subjetividade e espao na

    modernidade, enfocando primordialmente as relaes de poder. Por esta perspectiva,

    nem o espao nem o indivduo so pensados como dados sobre o qual o poder se abate,

    mas como produtos de suas relaes e prticas. Em especial ateno maneira pela qualo espao, enquanto construo poltica, engendra a experincia de interioridade,

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    14/87

    23

    tencionamos apresent-lo como mquina produtora de sentidos atravs da imagem da

    espacialidade panptica criada por Jeremy Bentham. Tal anlise nos permite

    compreender a fora dessa maquinaria sobre os corpos, mas nos permite falar tambm

    dos rudos, do acaso, dos escapes, na medida em que o que est em jogo so as relaes

    de fora, e no de sentidos inscritos em uma histria unssona e linear.

    No terceiro captulo apresentaremos o conceito de narrativa como aposta

    metodolgica, e como ferramenta de trabalho para a insero das categorias de espao e

    subjetividade em um campo poltico. Traremos, em um primeiro momento de

    apresentao deste conceito cunhado por Walter Benjamin, uma de suas principais

    caractersticas: a incompletude. Para tal, lanaremos mo de algumas imagens presentes

    nos trabalhos de talo Calvino, Franz Kafka e Eugne Atget, nos quais a incompletude

    se delineia a partir de um certo modo de se pensar a invisibilidade e o infinito de um

    percurso.

    No quarto captulo, trabalharemos cuidadosamente o conceito de narrativa a

    partir da experincia como passagem (Erfahrung) e atravs da figura do narrador

    tradicional, cuja tarefa Benjamin aproxima do historiador materialista. Paralelamente,

    analisaremos a crise desta mesma experincia e do modo de contar histrias, frente

    emergncia de uma outra forma de experincia, esta caracterstica da modernidade: a

    vivncia psicolgica (Erlebnis). Com isso, outros modos de contar histrias so

    forjados, outro modo de contar a Histria criado. Histria(s) que almeja(m) a

    proximidade com a verdade dos fatos, dos sentidos incipientes, dos nexos causais na

    linearidade de sua narrativa. Por outro lado, a construo de uma outra narrativa

    constituda das runas, dos fragmentos da tradio, marca uma recusa a um tom

    nostlgico muitas vezes creditado ao pensamento de Benjamin, e assinala sua propostatico-poltica de abertura da histria.

    No quinto e ltimo captulo, trabalharemos o entrelaamento de subjetividade e

    espao atravs das cidades de Veneza e de Npoles. Sob o entendimento dessas imagens

    no como matria a ser decifrada, mas como fora possvel de produzir sentido e

    estranhamento. Das cidades invisveis de talo Calvino, porosidade de Npoles

    descrita por Walter Benjamin, buscaremos analisar algumas possveis respostas para aseguinte questo: o que estas cidades/imagens afirmam e o que elas enfrentam?

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    15/87

    24

    II :: CC OO MM PP LL EE TT UU DD EE SS OO RR DD EE MM EE PP RR OO GG RR EE SS SS OO

    De maneira majorante, os modos de pensar a subjetividade na

    contemporaneidade so tributrios da inveno moderna chamada indivduo. A partir

    da, toda a existncia sentires, fazeres, pensares ser compreendida atravs deste

    molde, que no haver de simplesmente se justapor a outros recortes que orientam

    nossos modos de compreender o mundo - a vida, o tempo, a sade, a cultura, o espao.

    Pelo contrrio; incidir direta e contundentemente sobre todos esses e muitos outros.

    Tambm, certo, no estar alheio a eles. Sobre tais articulaes incidiro muitos

    saberes que enxergaro nelas uma progresso dialtica, ou seja, entendero que o

    estabelecimento da subjetividade individualizada viria a clarificar e corrigir

    determinados enganos e engodos dos quais outras concepes haviam cado presas;

    assim tambm tais saberes proporo a lapidao de certas arestas ainda em suspenso da

    inveno moderna.

    Tomemos como exemplo um campo do conhecimento que elege como seu

    objeto de estudo as inter-relaes entre indivduo e ambiente: a Psicologia Ambiental.

    Esta, uma rea em franco crescimento no Brasil cujos fundamentos prtico-terico-

    metodolgicos estabelecem-se a partir da Psicologia Social Norte-americana, mas

    congregando tambm outras linhas tericas, como a Cognitivo-comportamental e aGestalt. A Psicologia Ambiental realiza ainda um trabalho eminentemente inter ou

    multidisciplinar, segundo o entendimento de que, por esta interlocuo entre saberes, os

    objetos de estudo podem ser analisados em seus mais profundos detalhes de modo a

    atingir resultados mais completos. Seu surgimento na dcada de 70 no cenrio mundial

    atribudo a um aumento de problemas ambientais e incapacidade percebida da

    psicologia tradicional em lidar com os mesmos (GNTER, 1991:2). Assim, ela ir se

    apresentar como o campo da psicologia voltado a investigao e a propor estratgiasacerca do espao (natural ou construdo) a fim de proporcionar qualidade de vida

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    16/87

    25

    atravs da criao de fundamentos e mtodos projetuais capazes de gerar arquiteturas e

    cidades mais adequadas s aes humanas e mais coerentes com os sentimentos e os

    valores dos cidados (DEL RIO, 2002:11). Em outros termos: proporcionar um estado

    de maior congruncia2entre espao e indivduo.

    De maneira sinttica podemos marcar que a especificidade da Psicologia

    Ambiental a de analisar como o indivduo avalia e percebe o ambiente e, ao mesmo

    tempo, como ele est sendo influenciado por esse mesmo ambiente (MOSER,

    1998:122). Deste modo, investigar somente os aspectos fsicos do espao ou mesmo,

    por outro lado, analisar somente o indivduo, suas percepes, afetos e comportamentos,

    segundo esta rea da psicologia, no responderia s demandas atuais no que se refere

    aos inmeros impasses apresentados pelas grandes cidades ou pela chamada crise

    ambiental. A soluo oferecida pela Psicologia Ambiental, e respaldada pela noo de

    campo proposta por Kurt Lewin, seria no mais se ater aos plos de uma relao

    analisando-os de maneira esttica, mas propor o entendimento das aes individuais a

    partir da estrutura que se estabelece entre o indivduo e seu meio ambiente. Isto ,

    compreender que entre os elementos de uma relao se estabelece um campo dinmico,

    composto por valncias diferenciadas de atrao ou repulso atravs das quais se define

    a posio objetos/sujeitos, e que tende a um estado de equilbrio (BENEVIDES,

    2000:71). Este campo, portanto, seria tomado como objeto de estudo, ou melhor, as

    inter-relaes humano-ambientais (e no mais o ambiente ou o indivduo), seriam o

    foco do problema e o terreno de busca das possveis solues.

    Assim, o entendimento por parte da Psicologia Ambiental da relao entre

    indivduo e espao aposta na mtua interferncia das duas categorias, compreendendo-

    as apesar de costuradas pela noo de campo dinmico distintas por natureza. Isto ,

    cada qual possuindo caractersticas intrnsecas que as definem, que as distinguem e que,

    sob a tica em questo, se completam. Completam-se na medida em que h um ponto deequilbrio a se alcanar, h um estado almejado em que homem e espao podem

    funcionar de maneira harmnica.

    Podemos, de fato, assinalar que se trata de uma proposta legtima, na medida em

    que esta consonante com o modo pelo qual se entende a existncia, e o modo como a

    2

    O termo congruncia pode ser entendido, segundo Gabriel Moser (2003), como qualidade de vida e bemestar, isto , uma combinao entre baixos ndices de estmulos ambientais nocivos ao indivduocombinados a baixos nveis de insatisfao do mesmo.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    17/87

    26

    sociedade estruturou suas formas e sentidos modernamente. Porm, h de se dizer, este

    modo de se compreender as articulaes entre subjetividade e espao no necessrio.

    Ao trazermos esta ressalva no tencionamos delatar uma falha, tampouco nos

    valer de um relativismo, de um perspectivismo em outras palavras, no nos interessa

    aqui evidenciar um erro de julgamento de qualquer campo do conhecimento, nem

    tampouco listar perspectivas sejam essas complementares, suplementares, ou

    acumulativas que possam discorrer sobre um dado objeto. No menos por outro

    motivo de que o objeto no dado. Apontamos para uma questo que, decerto, no

    incide exclusivamente sobre a Psicologia Ambiental trazida aqui apenas como um

    recorte para nossas anlises iniciais, para a apresentao de nosso problema. Trata-se do

    questionamento a respeito da assepsia com que indivduo e espao so apresentados.

    Isto , indivduo e espao so tratados como se possussem realidades ontolgicas

    distintas, como se houvesse um corte limpo entre os campos articulados. Contudo, at

    os cortes limpos produzem tecido de cicatrizao. Em outras palavras: a produo de

    conceitos, quaisquer que sejam, produz efeitos ainda que, no mais das vezes, sejam

    sub-reptcios e, porque no, dissimulados. De tal sorte que, ora, ora, foi algo produzido

    aqui? Acaso no estaria a desde sempre? A compreenso de conceitos, prticas,

    saberes, como dados, elide, portanto, a conexo entre sua produo e seus efeitos,

    tomando ambos como sempiternos. Isto torna impossvel qualquer considerao sobre

    as conseqncias de ambos, uma vez que no se negocia com o que . Pelo simples

    motivo de que o que , . Como dissemos, anteriormente, todavia, estes conceitos,

    apesar de serem considerados autnomos e independentes um do outro, no so

    pensados como se situando em isolamento um em relao ao outro. Estas sero as

    nicas conseqncias a serem levadas em conta: a mtua influncia.

    Desta forma, nossa proposta de trabalho consiste fundamentalmente em trazer os

    conceitos de subjetividade e de espao para um campo poltico, a fim de analisarmos asrelaes existentes entre a inveno da subjetividade individualizada e a produo do

    espao racionalizado na modernidade, isto , o espao como ordenao.

    Cabe ressaltar que a modernidade marcada pelo estabelecimento da

    equivalncia entre subjetividade e individualidade; isto , a existncia, a experincia,

    passaram a ser atributos eminentemente individuais, passaram a ser privatizadas,

    encerradas aos domnios do sujeito individuado. Instaura-se, assim, uma ciso, uma

    dicotomia entre aquilo que da ordem interna sentimentos, pensamentos, afetos daquilo que externo o mundo, a sociedade, o grupo, a cidade. De modo que o

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    18/87

    27

    indivduo se torna o elemento primordial de entendimento da realidade, o lugar da

    enunciao do conhecimento; o indivduo passa a ser a medida da vida.

    Trata-se, de fato, de um acontecimento indito na histria do ocidente; e tudo

    que indito precedido por um tempo no qual no existia, e, portanto, tem data de

    edio data esta no to precisa, entretanto, quanto a encontrada na ficha catalogrfica

    dos livros. A inveno do indivduo como modelo de subjetividade tem suas bases no

    pensamento de Ren Descartes (1596-1650) no sculo XVII.

    Das runas da Idade Mdia, do esfacelamento das certezas fundamentais em um

    Rei-Deus soberano, a partir do qual emanavam os sentidos e verdades da existncia, e

    contra os movimentos ceticistas e s imprecisas humanidades, surge o racionalismo

    cartesiano. De seu pensamento ancorado na lgica matemtica, funda-se o sujeito

    epistmico, o sujeito do conhecimento. Este, por sua vez, erigido a partir da ciso entre

    um sujeito enquanto fonte de variao, de opinies, paixes, tendncias, desejos,

    movimentos passionais e instintivos, e em ltima anlise, isolado e privatizado, de um

    outro sujeito, confivel, regular, idntico a si mesmo e indicador da existncia de uma

    marca comum e constante no humano: a racionalidade (FIGUEIREDO, 1994: 90).

    Deste modo, o pensamento, mas mais precisamente, o mtodo de Descartes, busca

    garantir que, desta bem marcada ciso, seja possvel construir um conhecimento

    confivel. Pois h uma co-naturalidade entre a razo inerente ao sujeito do

    conhecimento e a realidade, que dever ser compreendida e revelada a fim de que seus

    atributos sejam verificveis e teis. Sendo assim, toda a confiana moderna nas crenas

    cientfica, falta de um vnculo com as tradies e de uma obedincia s autoridades,

    viria, desde ento, repousar na autonomia deste sujeito epistmico (:91). E que, por

    este mesmo motivo, tomar a posio de grande intrprete do mundo.

    A construo do indivduo, e, principalmente, o entendimento de si como

    indivduo dotado de racionalidade e paixes ter sua emergncia, portanto, no sculoXVII. E no sero escassas as estratgias socioculturais de modelamento deste

    indivduo. Tomemos como exemplo as mudanas nos cdigos de comportamento

    vividas na sociedade europia da poca, amplamente descritas por Norbert Elias, que

    construiro uma outra sensibilidade, um outro modo de lidar com a existncia, de lidar

    com o outro.

    Uma hierarquia social mais rgida comea a se firmar [...] deelementos de origens sociais diversas forma-se uma nova classe

    superior, uma nova aristocracia. Exatamente por esta razo, aquesto de bom comportamento uniforme torna-se cada vez mais

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    19/87

    28

    candente, especialmente porque a estrutura alterada da nova classealta expe cada indivduo de seus membros, em uma extenso semprecedentes, s presses dos demais e do controle social. [...] Nestemomento, com a transformao estrutural da sociedade, com o novomodelo de relaes humanas, ocorre, devagar, uma mudana:aumenta a compulso em policiar o prprio comportamento (ELIAS,1990: 91).

    O auto-domnio, a conteno dos impulsos, a auto-observao e a observao

    dos outros sero os motes de toda a ritualizao desde a alimentao mesa, no

    comportamento no quarto at os hbitos pessoais de higiene. Elias nos apresenta a

    seguinte imagem, entre outras, retirada de manuais de bons costumes do sculo XVII:

    muito indelicado tocar qualquer coisa gordurosa, molho ou xarope,etc., com os dedos, parte o fato que o obriga a cometer mais doisou trs atos indelicados. Um deles seria frequentemente limpar amo no guardanapo e suj-lo como se fosse um trapo de cozinha, demodo que as pessoas que o vissem enxugar a boca com eles se

    sentissem nauseadas. Outro seria limpar os dedos no po, o que maisuma vez sumamente grosseiro. O terceiro seria lamb-los, o queconstitui o auge da indecncia (COURTIN, 1672, apud ELIAS,1994: 103 grifo nosso).

    Assim, os maiores pecados sociais seriam a perda do auto-controle e a

    revelao da carne por debaixo da mscara (FIGUEIREDO: 1994: 95), bem como ono reconhecimento de sua posio e do outro em uma hierarquia social e de civilidade.

    Isto geraria uma invaso humilhante da privacidade, da particularidade, da

    espontaneidade do indivduo.

    Ocorre ainda, neste mesmo sculo, um maior prestgio conferido figura do

    pregador, frente, inclusive, prtica da confisso. Enquanto esta ltima se oferece

    atravs do espao privado do confessionrio no qual o que se fala, sussurra, suplica

    aquilo que no se pode falar em pblico, e que roga pela absolvio da culpa, apregao realizada em pblico, e o que se fala aquilo que deve ser dito em pblico

    para que:

    cada fiel, em tese, sinta nessa fala aluses oblquas sua intimidade.O sermo deve dirigir o olhar de cada um para dentro a partir domundo das representaes. Nas palavras do padre Vieira [...] Quecousa a converso de uma alma, seno entrar um homem dentro desi, e ver-se a si mesmo? Para esta vista so necessrios olhos, necessria luz, e necessrio espelho. O pregador concorre com oespelho (:96 grifo do autor).

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    20/87

    29

    Assim sendo, a pregao visa permitir que os homens caiam em si a partir dos

    olhos do outro, do reflexo que encontram no outro. De tal sorte que no sintam culpa,

    mas sim vergonha.

    Ser, entretanto, apenas no final do sculo XVIII, a partir da Revoluo

    Francesa, que os contornos e caractersticas do indivduo se delinearo mais

    precisamente constituindo-se como uma realidade, um objeto do saber e interveno.

    Sendo, inclusive, apenas no sculo XIX que a Psicologia como cincia do indivduo

    enquanto sujeito da conscincia, encontrou condies para sua formao. Luis Cludio

    Figueiredo localiza a formao deste espao psicolgico, de produo do indivduo

    como uma realidade, nos encontros e desencontros entre trs plos de idias e prticas

    de organizao da vida em sociedade: o Liberalismo, o Romantismo, e o Regime

    Disciplinar.

    Na proposta do Liberalismo, os direitos naturais de cada indivduo entre os

    quais se destacam o direito liberdade e propriedade devem ser assegurados e

    consagrados por um Estado nascido de um contrato livremente firmado entre indivduos

    autnomos (FIGUEIREDO, 1994: 132). Neste sentido, no caberia ao Estado intervir

    ou administrar a vida particular dos indivduos, mas apenas regular suas relaes para a

    garantia desses interesses. H, sem dvida, uma clara separao entre aquilo que da

    ordem do pblico e aquilo que da ordem do privado. E este ltimo, ocupar um lugar

    de destaque, seno de domnio, na lgica liberalista. Pois, o indivduo apresentado

    como a base de clculo para se compreender a sociedade: intil falar do interesse da

    comunidade se no se compreender qual o interesse do indivduo (BENTHAN

    [1789] 1989, apud FIGUEIREDO, 1994)3. Assim tambm podemos observar, nos

    desdobramentos que se seguem origem do Liberalismo idealizado por John Locke

    (1632-1704), a proposta de minimizao do Estado para uma confiana absoluta na

    iniciativa e na racionalidade individual dos agentes e na funo auto-regulativa domercado (:132).Desta forma, os domnios da vida passam a estar cada vez mais nas

    mos do indivduo, cabe a ele, e somente a ele, gerir seu futuro, sua vida pessoal; assim

    como ser de sua inteira responsabilidade o sucesso ou o fracasso de sua vida.

    3 Apesar de Jeremy Bentham ser mais conhecido pelo projeto da arquitetura panptica figurarepresentativa do regime disciplinar sobre a qual Michel Foucault trabalha amplamente Benthamtambm comungava de diversos princpios do Liberalismo. E sobre estas articulaes, ora conflituosas,

    ora harmoniosas, que Figueiredo se debrua para apresentar a criao do espao psicolgico no sculoXIX. Quanto a maiores detalhes sobre a espacialidade panptica e sobre a Disciplina, trabalharemos nocaptulo seguinte.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    21/87

    30

    No que se refere aoRomantismo, a liberdade do indivduo deve ser garantida

    para que seja possvel formular um plano de vida que esteja de acordo como o carter

    do indivduo (MILL, [1859] 1963, apud FIGUEIREDO, 1994: 137). Esta noo de

    carter individual se refere crena nas diferenas qualitativas entre os indivduos; e

    desta crena aflora o iderio romntico: a nfase na diversidade, na singularidade, na

    espontaneidade e na interioridade dos indivduos (:137). O que est em questo a

    prpria crena nas potencialidades individuais, ou seja, na essncia individual, no dom

    que cada um traz em si. Deste modo, entende-se que:

    a natureza humana no uma mquina que se possa construirconforme um modelo qualquer, regulando-se para executarexatamente a tarefa que se lhe prescreve, mas uma rvore, que

    precisa crescer e desenvolver-se de todos os lados, de acordo comas tendncias de foras interiores que o fazem um ser vivo (MILL,[1859] 1963, apud FIGUEIREDO, 1994: 138 grifo nosso).

    Assim nascero os gnios e os idiotas, ambos carregando o fardo de sua sina

    serem o que so, e no podero isso recusar. A vida social , ento, colocada como o

    palco onde estas foras interiores podem se desenvolver de forma mais ou menos

    favorvel.

    Nesta mesma linha de pensamento compreendemos um outro trao marcante doRomantismo, que o seu projeto de restaurao: restaurao do autntico, dos

    verdadeiros modos de ser humano, de se relacionar, de sentir, de se expressar. E sobre

    este ltimo aspecto a expressividade que incidiro muitas das atenes. Pois, se por

    um lado a profundidade do interior do indivduo romntico algo misterioso e que

    deveria ser preservada para manter sua autenticidade, ou mesmo para se conter impulsos

    violentos, por outro, ela deveria se fazer aflorar, mostrar-se e a arte ser apresentada

    como modo de expresso dos mais aclamados.

    Cabe ainda ressaltarmos que, se em um determinado momento ou

    proposta do liberalismo havia uma clara cesura entre o pblico e privado, o liberalismo

    romantizado, embora se proponha tambm a sublinhar a inviolabilidade do privado,

    conduz a uma perspectiva de inverso: so os valores e procedimentos da privacidade

    que passam a se elevar como organizadores e juzes da vida pblica (:146 grifo

    nosso).

    E, por fim, Disciplina pertencem as novas tecnologias de poder, que se

    apresentam modulando o Liberalismo em um utilitarismo pelo controle dos indivduos

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    22/87

    31

    em prol de um plano de felicidade coletivo, advindo da soma das satisfaes pessoais, e

    ainda, agindo sobre os corpos, conferindo-lhes ampla capacidade produtiva, porm

    desprovidos de fora poltica.

    No centro deste tringulo formado por estes trs plos de idias e prticas est o

    indivduo entendido no apenas como unidade, como sujeito emprico, mas como um

    sujeito racional, moral, autnomo, independente e dotado de uma realidade interna.

    importante observarmos, conforme sugere Alexis de Tocqueville (1805-1859) um

    pioneiro nos estudos sobre o individualismo , que a individualizao da existncia

    no consiste apenas na separao e autonomizao dosindivduos, no seu virtual isolamento das coletividades e dastradies, no investimento macio de cada um em si mesmo e naprpria independncia. O individualismo simultaneamenteconstitui, valoriza e enfraqueceo indivduo, d-lhe mais status eresponsabilidades e lhe traz mais ameaas e desamparo (:139 grifo nosso).

    A despeito das transformaes ocorridas como os novos encaminhamentos do

    poder disciplinar que se apresenta sob a insgnia do controle das massas e das mincias

    da vida, ou como as mudanas das esferas pblicas e privadas, na qual se v a

    privatizao do pblico e a publicizao do privado podemos afirmar que estas trs

    linhas esto ainda presentes e agem nos processos de subjetivao contemporneos.

    Assim entendemos que a inveno da subjetividade individualizada no se

    encerra em sua emergncia ela tecida cotidianamente nas micro e macro polticas,

    sendo, hoje, o indivduo o modelo hegemnico de subjetividade; o que nos remete para

    uma das funes da psicologia, seja na clnica ou na interveno sobre os espaos:

    delimitar as normalidades e excluir os desvios, ou seja, exercer um poder

    ortopedizador a fim de reafirmar os conceitos que a autorizam. Assim, se por um lado

    possvel enxergar a psicologia como aquela que decifra ou revela o indivduo em sua

    condio essencial e contingencial, bem como suas articulaes com o ambiente que o

    cerca, por outro lado podemos, criticamente, entend-la como produto e produtora de

    tais realidades.

    A ortopedia traz a idia de que a vida pode ser vivida de forma cada vez mais

    adequada e por que no mais completa? atravs dos modos corretos, sentidos e

    motivos de ser indivduo/humano que devero ser investigados, revelados e seguidos.

    Assim tambm como os espaos sero planejados ou re-arranjados a partir no s de

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    23/87

    32

    averiguaes empricas dos comportamentos individuais e de grupos, como tambm a

    partir daquilo que constituiria a natureza do indivduo e do que dele se espera. H, por

    certo, uma aposta na completude que adviria deste encontro bem enganchado entre um

    determinado modo de existncia e um determinado modelo de espao.

    Assim, sob a tarefa de conhecer o indivduo e o espao que o cerca, no intento

    de intervir positivamente nas inter-relaes de ambos, a psicologia se exime de qualquer

    implicao4naquilo que profere, naquilo que manipula, como se fosse apenas executora

    de determinadas normas necessrias a um bem estar individual e coletivo amplamente

    apresentados atravs dos termos: qualidade de vida, sustentabilidadeou equilbrio. O

    produto de seu trabalho se apresentaria, por fim, como necessrio (ainda que talvez

    modulvel por certas contingncias histricas e culturais), pois melhor responderia a

    algumas questes fundamentais existncia, como se estas questes tivessem sempre

    sido as mesmas, abstraindo-se assim da dimenso poltica atravs da naturalizao de

    seus objetos de estudo, sejam eles o indivduo, o espao, ou suas relaes.

    H, de fato, o imperativo de uma certa ordem, ou melhor, da ordem certaque

    deve ser enunciada pelo prprio indivduo e por tudo aquilo que o rodeia. A verdade una

    e total do indivduo dever transpirar pelos interiores das casas, pelos vidros e grades de

    ao, pelo asfalto, assim como transpirar pelos bancos das praas e latas de lixo.

    Em um conto chamado O diabo do Campanrio5, Edgar Alan Poe escreve sobre

    Vondervotteimittiss, um burgo bastante peculiar. Tudo neste burgo era organizado e

    fazia sentido a partir de uma torre na qual ficava um grande relgio, bem no centro da

    cidade. Cada casa ficava milimetricamente posicionada a seu redor, a uma distncia e

    posio precisas uma em relao outra. Os habitantes do burgo possuam um mesmo e

    nico padro em suas roupas, em seus gestos, hbitos dirios e fisionomias que,

    curiosamente, harmonizavam-se com a arquitetura das casas em seus menores detalhes e

    funes. Cada coisa tinha o seu lugar, seu sentido; cada coisa que havia por fazer epensar tinha sua hora, tinha seu modo, enfim, tudo era regulado, tudo existia em total

    sintonia a partir da torre do relgio.

    Mas se tudo corria assim, um dia, uma estranhssima criatura, que com nada se

    parecia, surgiu de trs das colinas e dela desceu ligeira e atrevidamente. At ento,

    4 A implicao a que se pretende a partir do mtodo de pesquisa-ao, utilizado pela PsicologiaAmbiental, apesar de no considerar nula ou neutra a participao do pesquisador, no d conta desta

    questo. Pois considera a pesquisa como promovedora ou facilitadora de processos de modificao darealidade, e no como produtora da mesma.5POE, E. A. The devil in the belfry. In: Tales of Edgar Alan Poe. New York: Random House, 1944.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    24/87

    33

    aquelas colinas eram os limites do burgo com o nada pois nada que pudesse ser

    pensvel, nada que fosse real poderia haver por detrs delas. Assim que essa criatura

    apareceu, todos se espantaram e acompanharam seus passos danantes e espalhafatosos

    que rumavam para o centro do burgo. Eis que ento, este diabinho se enfurnou sub-

    repticiamente no campanrio e arrastou os ponteiros do grande relgio. Completamente

    perdidos, os burgueses com seus inmeros reloginhos tentavam acompanhar e

    esperavam atentamente as importantes badaladas do meio dia no qual muitas tarefas e

    sensaes estavam por acontecer. Mas, o relgio central no mais seguia seu ciclo

    contnuo e correto aquele estranhssimo ser (e como no seria estranhssimo qualquer

    um que entrasse neste burgo?) havia provocado uma grande desordem!

    E nesta incerteza do que fazer e do que ser o conto se encerra. Talvez, os

    burgueses tenham ficado perdidos para sempre, esperando que o relgio retomasse os

    rumos e que a grande torre central erguesse de novo a ordem; ou talvez a ausncia de

    certezas tenha instigado os burgueses a inventar o que seria daquele dia, e o que seriam

    dos outros dias que viriam.

    Se no conto de Poe o grande relgio que rege a ordem do burgo, nas cidades

    modernas o indivduoque se encontra no cerne de sua ordem. O que no quer dizer,

    no entanto, que as cidades modernas sejam construdas ou geridas a partir de projetos

    humanistas, necessariamente. Ou, em outras palavras, que as cidades so construdas

    visando primordialmente prover cuidados e boas condies s pessoas, segundo os

    ideais humanistas. Mas que existe sim um determinado modo de operao da existncia

    que se faz ver nos contornos e funcionamento dos espaos urbanos, isto , h uma

    consubstancialidade com o indivduo que se expressa nos contornos urbanos. E esta a

    imagem que queremos fixar a partir do conto em questo: a consubstancialidade entre o

    princpio de ordenao e o espao criado.

    Camboinhas, um bairro de classe mdia-alta da regio ocenica da cidade deNiteri, traz uma interessante imagem para trabalharmos esta questo. Caminhar pelas

    caladas do bairro , de fato, um desafio. Quase todas elas so tomadas por jardins,

    decoraes, rvores e correntes colocadas pelos moradores das casas, o que

    praticamente impede que se passe pelas caadas. certo que compem um conjunto

    quase buclico, de graa e beleza. mais certo ainda, contudo, que esta apropriao das

    vias pblicas indica sutilmente ou talvez nem tanto ao caminhante que por ali se

    aventure que ele no exatamente bem-vindo. Camboinhas um bairro no qual se deveandar de carro, e apenas de carro pois os nibus so impedidos de entrar, a fim de que

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    25/87

    34

    o bairro permanea tranqilo e que a praia semi-privativa continue nesta condio. A

    imagem das ruas desertas, a escassez de espaos pblicos efetivos de convivncia, e o

    prolongamento das casas sobre as caladas sinalizam que no h nada mais importante,

    ou h pouco a mais o que fazer do que cuidar de si, de seus problemas, de sua famlia,

    daquilo que lhe cabe seja trancado-se nos redutos das casas e condomnios, seja

    passando velozmente de carro. Ou seja, se a emergncia da subjetividade individuada se

    caracteriza pela privatizao da existncia, a privatizao do espao pblico o seu

    duplo. Os contornos de Camboinhas afirmam que o indivduo um valor fundamental,

    que ele a matriz desse espao.

    A maneira como se constroem as caladas de Camboinhas expressam uma forma

    de subjetivao, mas no somente isso; elas tambm constroem formas de socializao,

    e indicam modos de uso deste espao. Ou seja, suas caladas privatizadas no so

    apenas o efeito de um modo de subjetivao, so tambm constitutivas deste modo de

    subjetividade em questo.

    Edgar Alan Poe nos descreve como cada detalhe do burgo a arquitetura das

    casas, o desenho das ruas, as decoraes, vestimentas, fisionomias e afazeres pareciam

    um prolongamento da torre do relgio. Notemos, pois, que em sua descrio minuciosa,

    em momento algum temos a impresso de que a vida no burgo se encontrava

    constrangida por uma fora, uma imposio que se abatia sobre os burgueses. O relgio

    no era um corpo estranho, ele no ditava como os seus habitantes deveriam agir, vestir-

    se, construir suas casas, etc. Isto , no se trata de uma ordem que parte do relgio e que

    ser colocada em ao; a ordem se apresenta como uma malha que se estende por

    diversos aspectos. O relgio da torre tecia estes corpos, estas experincias, ele dava

    materialidade e fazia o burgo funcionar.

    O entendimento da consubstancialidade entre indivduo e espao indica que no

    h duas realidades pr-existentes que exercem influncia uma sobre a outra conformepropem a psicologia ambiental e tantos outros saberes contemporneos. Esta

    consubstancialidade aponta para a questo de que a inveno da subjetividade

    individualizada engendra a criao de um espao ordenado, e de que este espao

    ordenado age nos processos de privatizao da existncia. E esta nossa aposta aposta

    poltica, sobretudo, porque busca lanar um olhar sobre os modos e efeitos de

    determinadas realidades, buscando nelas no a verdade que se esconde sob suas

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    26/87

    35

    aparncias, no o sentido oculto nelas impresso, mas as prticas que as produzem, que

    as constituem cotidianamente. 6

    Ao trazermos o espao como ordenaoestaramos afirmando que a existncia

    de ordem no espao um produto especfico da modernidade? Decerto este no nosso

    ponto! Basta que se diga sinse nos, aquilo que se pode e o que no se pode, que se

    estabeleam interdies, para que algo do alcance de uma ordem esteja constituda.

    Como o caso, por exemplo, das igrejas e imponentes catedrais medievais localizadas

    sempre em posio destacada no cenrio da cidade, de modo que os habitantes

    vivenciassem a soberania da Igreja e buscassem a salvao em seu espao sagrado.

    Espao este que no poderia ser adentrado de qualquer modo: haveria de se usar

    vestimentas adequadas, alm de serem necessrios rituais como o de genuflexo, e o

    reconhecimento de locais nos quais no se podia pisar, como o altar. H ainda inmeros

    outros exemplos que vo desde as cidades gregas com suas praas pblicas e templos

    at mesmo territrios indgenas nos quais h uma clara organizao das ocas e

    delimitao de seu uso, seja por gnero ou por idade.

    Ento, qual seria o propsito de apresentarmos neste trabalho uma anlise sobre

    o espao como ordenao? Por que este destaque dado ordenao?

    O espao como alvo de umplano de ordenao e como enunciadordesta ordem

    na modernidade uma questo das mais significativas. Pois na modernidade, ou mais

    precisamente, no incio do sculo XIX que surge uma cincia da cidade, o urbanismo

    constituindo assim um objeto de saber especfico, passvel de compreenso e

    manipulao por uma perspectiva que se constituir em sintonia com as propostas da

    medicina higienista, da estatstica sanitria, e da criminologia ambientalista, presentes

    desde a segunda metade do sculo XVIII. Ou seja, este novo olhar sobre a cidade ser

    pautado e orientado pelos ideais vigentes do cientificismo e da racionalidade.

    No entanto, apesar de possurem uma proposta em comum que a realizao deuma reforma social, o urbanismo estabelece um corte radical e preciso na histria, no

    modo de olhar a cidade, ou melhor, inaugura um modo de observao da cidade, um

    olhar perscrutador, pois almeja decifrar o funcionamento e as leis que regem este novo

    objeto do conhecimento: o urbano.

    6

    No pretendemos esgotar aqui esta questo, apenas indicar que a viso proposta no se apresenta comosuperior, como mais esclarecida que aquelas propostas por estes outros campos do conhecimento.Voltaremos, no entanto, a abordar esta questo com mais detalhamento nos prximos captulos.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    27/87

    36

    Se num primeiro momento esta reforma social foi caracterizada por aes

    pontuais de interveno, moralizao e disciplinarizao dos corpos no espao, sob uma

    perspectiva de que a aglomerao e estrutura das cidades so causadoras de epidemias,

    vcios e degenerescncias sociais, em um segundo momento, como o advento do

    urbanismo, esta reforma deve proceder atravs de um planejamento global e

    permanente. Pois a cidade constituda objeto passa a ser enxergada como um

    organismo, um sistema integrado no qual cada uma de suas partes tm de ser tratadas

    em consonncia com o todo. Mais ainda, o urbanismo buscar, pelo deciframento da

    ordem, da natureza que subjaz os espaos urbanos, a construo da cidade modelo isto

    , de um formato preciso e descolado de qualquer contingncia; um formato urbano que

    funcione em qualquer tempo e parte do mundo. Mais ainda, retiram da ordem do social,

    das sociabilidades e ralaes, as questes da cidade, e as insere, como problemas, em

    um campo pretensamente neutro e necessrio.

    Sendo assim, mediante a instaurao de uma cidade modelo, de uma cidade

    ideal, elege-se o que faz de uma cidade bela e funcional, estabelecem-se sonhos,

    promessas de felicidade, promessas de completude. E sob uma proposta de

    neutralidade que se vai construindo uma espcie de corolrio da concepo de beleza,

    assim como a importncia de banir, de exterminar tudo que contribua para manch-la. O

    ideal que instaura o que o belo, instaura tambm o que o desviado, o crime, a

    desordem como mal em si. Assim, se por um lado imperam os padres estticos de

    harmonia, limpeza e organizao das cidades, por outro lado, tornam-se necessrias

    prticas de excluso7que garantem esse mundo assptico. E em defesa da vida que a

    sociedade se volta contra seus detratores, numa metfora sempre repetida da sociedade

    como um organismo que se defende de bactrias e vrus (RAUTER, 2002: 195).

    Podemos afirmar, enfim, que o que marca a especificidade da ordenao dos

    espaos modernos o fato de que a ordemse apresenta como um fim em si mesmo, isto: ela o mote e a meta a garantia do funcionamento do organismo, e o modo ideal

    de seu funcionamento. estabelecida uma estreita ligao entre a ordem espacial e o

    progresso social e econmico a cidade positivada e o seu domnio como objeto

    passvel de deciframento e gesto racional resulta neste progresso. A cidade, assim, no

    pode ser enxergada apenas como mero abrigo, espao fsico de circulao e habitao

    7

    O termo excluso, nesta acepo, no indica apenas o movimento de expurgao eliminao porafastamento ou destruio ele deve contemplar, sobretudo, o carter de negao da diferena, seja porquais meios forem.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    28/87

    37

    humana, ela se apresenta como o destino inexorvel da humanidade, sua sina, na medida

    em que se estabelece uma estreita ligao entre a cidade e o processo civilizatrio, o

    modo como se torna indivduo-cidado.

    Sobre este carter civilizatrio, Norbert Elias, nos oferece uma importante

    indicao. Pois o conceito de civilizao apesar de difcil definio em poucas

    palavras ou de maneira unssona j que diferentes culturas ocidentais o encaram de

    diferentes modos resume tudo em que a sociedade ocidental dos ltimos dois ou trs

    sculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporneas

    mais primitivas (ELIAS, 1990:23). Isto , nesta estrita ligao entre o urbano e o

    processo civilizador que a cidade se mostra como um meio descoberto e aprimorado ao

    longo dos sculos para se alcanar o pregresso. Ou melhor, a cidade apresentada como

    filha do progresso e favorecedora deste. como se pudssemos visualizar uma linha

    nica contnua que une, atravs dos tempos, desde as primeiras habitaes humanas nas

    cavernas, passando pelas cidades gregas, medievais, renascentistas, at os dias atuais

    com as megalpoles globalizadas. Uma linha que marca o rumo da Histria, de uma

    histria de vitrias e avanos absolutos, pois construdos a partir da evoluo do

    pensamento humano e a partir das descobertas cientficas. Nesta linearidade da histria

    est o indivduo que se mostra, juntamente, como o modo mais evoludo de existncia,

    seno o nico possvel.

    Mas seria a histria uma linha reta e contnua? Estaramos em uma viagem com

    sentidos e finalidades inscritas em seu trajeto? Vejamos o que Michel de Certeau pode

    nos auxiliar nestas questes

    Um viajante isolado na cabina. Imvel, no vago, vendo deslizar coisas

    imveis. Que acontece? Nada se mexe nem dentro nem fora do trem (CERTEAU,

    1994:193). Separados por uma camada isolante de vidro, de um lado, o viajante

    encarcerado em seus prprios sentimentos de observador, do outro, uma paisagemmonumental, solenes silhuetas que parecem nada ter a dizer ao viajante: existe apenas

    uma efmera e tranqila estranheza.

    Este o incio da viagem de trem narrada por Certeau em Naval e Carcerrio

    na qual reinam o repouso e o sonho, o silncio e a ordem . O silncio a marca da

    unicidade de um modo certo de funcionamento da existncia; e a ordem, o sistema

    organizacional, quietude de uma razo, que para o vago [...] condio de sua

    circulao (:194). Sem esta ordem no h trajeto a ser percorrido, no h como garantira realizaodesta viagem.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    29/87

    38

    Estetexto de Certeau coloca em cena a efetivao da utopia racional ao trazer a

    imagem de um viajante alojado em um compartimento numerado, em uma insularidade

    fechada e autnoma um espao esquadrinhado e milimetricamente controlado. O

    viajante atravessa imvel, paisagens imveis. Entre estas duas imobilidades introduz-se

    um qiproqu, fina lmina que inverte estas duas estabilidades (CERTEAU:194).

    As coisas, no entanto, no mudam de lugar, apenas a vista faz e desfaz

    continuamente as relaes que entre si mantm estes dois fixos (:194). Assim, no h

    movimento a no ser aquele provocado entre suas massas pelas modificaes de

    perspectiva, momento aps momento; mutaes que do a impresso de realidade

    (CERTEAU:194). , portanto, do interior do vago que se vislumbra e que se narra esta

    viagem, o viajante o grande intrprete da obra.

    Assim, para que nasam estas paisagens mudas e as histrias interiores preciso

    que haja este corte, esta separao, em um jogo entre a vidraa e os trilhos:

    [...] a ferrovia, numa linha reta, corta o espao e transforma emvelocidade de sua fuga as serenas identidades do terreno. A vidraa

    permite ver, e os trilhos permitem atravessar(o terreno). So doismodos complementares de separao. Um modo cria a distncia doespectador: no tocars. Quanto mais vs, menos agarras despojamento da mo para ampliar o percurso da vista. O outro

    traa, indefinidamente, a injuno de passar: como ordem escrita,de uma s linha, mas sem fim: vai, segue em frente, este no oteu pas, nem aquele tampouco [...] (CERTEAU, 1994: 194 grifodo autor).

    No seria outra coisa este trilho seno o movimento guloso do progresso que,

    alm de afirmar a existncia de um banquete a espera mais a frente, indica a necessidade

    do desapego ao percurso atravessado para que seja possvel o alcance de um todo. Os

    trilhos que ficam para trs precisam ser esquecidos em instantes para que o pensamento

    do viajante esteja em sintonia com a velocidade necessria ao trajeto.

    Na posio de espectador do mundo, o viajante este intrprete que tudo v, que

    sobre tudo atribui sentido e que acumula conhecimentos, sensaes, vivncias em um

    movimento de incansveis ratificaes de si, seja num infinito profundo, seja em um

    mundo de paisagens e promessas de salvao, de realizao.

    No entanto, nada o pode atravessar: nada desaloja seu olhar. O olho que v, e o

    mundo que visto parecem dois estranhos, desconhecidos que se cruzam e que no sequestionam. A vidraa permite ver, porm impede o contato o desapego pela

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    30/87

    39

    inafetabilidade. O crcere a experincia, que parece ser a nica possvel, de estar

    fixado em si mesmo. O naval, esta cesura transparente entre os sentimentos flutuantes e

    uma realidade ocenica.

    A viagem narrada por Certeau poderia parecer infinitamente a mesma, no fosse

    por alguns rudos que comeam a surgir.

    Esses rudos assinalam [...] como seus efeitos, o Princpio queassume a ao arrebatada ao mesmo tempo aos viajantes e natureza: a mquina. Invisvel como toda maquinaria teatral, alocomotiva organiza de longe todos os ecos de seu trabalho [...]. Amquina, primeiro motor, o deus solitrio de onde sai toda a ao(CERTEAU, 1994:195).

    H algo, portanto que parece perturbar a ordem, e talvez sinalizar para algumasnovas possibilidades.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    31/87

    40

    II II :: AA MM QQ UU II NN AA EE SS PP AA OO EE PP OO DD EE RR (( OO UU ,, OO

    DD EE SS MM AA NN CC HH AA RR DD OO SS DD EE UU SS EE SS )) ..

    No mundo mvel da estao, a mquina, agora parada, parece de

    repente monumental, quase incongruente por sua inrcia de dolomudo. Deus desmanchado.

    Michel de Certeau

    O que ento a verdade? Uma multido movente de metforas, de

    metonmias, de antropomorfismos,[...] um conjunto de relaes

    humanas poeticamente e retoricamente erguidas, transpostas,

    enfeitadas, e que depois de um longo uso, parecem a um povo firmes,

    canoniais, e constrangedoras: as verdades so iluses que

    esquecemos que o so.

    Friedrich Nietzsche8

    Da intromisso de um certo diabinho no campanrio aos primeiros sinais

    de rudos da maquinaria que interrompe seu trajeto silencioso e contnuo h um

    encontro bem marcado: o desmanche da intocabilidade da ordem, seu estatuto de

    verdade. As manifestaes fenomnicas em cada um dos exemplos so bastante diversas a ruidosa e espetacular interveno do diabo, por um lado, e os sutis rudos da

    mquina, por outro mas expressam questes que no so nada estranhas entre si: o que

    est em jogo ali o escape, a alteridade, o diverso. A forma das manifestaes, contudo,

    decidem de como se pode v-las: como um grande estorvo, que desnorteia a ordem e

    impe a questo: deve-se tentar restaurar a ordem anterior? Ou ser que se deve

    estabelecer uma nova ordem? ou como o rangido de uma dobradia onde falta leo, e

    8NIETZSCHE, F. Introduo teortica sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. In: O livro dofilsofo. Porto: Ed. Res, 1990.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    32/87

    41

    que bem azeitada no mais nos perturbar. O rudo da mquina, portanto, pode ser e

    ser compreendido como aquilo que no vai bem na mquina, mas que pode e deve

    ser objeto de reparos. Do mesmo modo, a incidncia, na ordem, de algo que escapa a

    seu funcionamento, conforme ele previsto e desejado, pode ser encarado como algo

    que desvia da ordem, mas que a ela deve ser reintegrado ou, em casos extremos, que

    se mude a ordem, mas nada de escapes.

    No entanto, estes rudos poderiam ser pensados de uma forma radicalmente

    diferente. Eles poderiam indicar no uma desordem avesso indesejado da ordem mas

    o movimento das engrenagens que delatam que h algo que faz funcionar a ordem

    vigente. Isto , todo um funcionamento que se operava parece no agir por si s. O que

    em um momento era apresentado como fora motriz da circulao, condio da prpria

    existncia, parece dissolver-se em sua qualidade de absoluta de nica narradora da

    Histria que h para ser contada. Pois, mesmo discreto, indireto, a orquestra [da

    locomotiva] indica o que faz a histria, e garante, maneira de um boato, que existe

    ainda uma histria (CERTEAU, 1994:195).

    O boato, este modo de ecoar as engrenagens diferentemente do silncio

    introspectivo e contemplativo que permitia s imagens chegarem ao olhar do viajante

    como verdades monumentais promove a fragmentao e a falncia do ideal de

    completude. Pois faz desta Histria que est sendo narrada no mais alheia ao

    funcionamento da maquinaria. De tal sorte que se torna inevitvel compreendermos a

    experincia de isolamento, o prprio indivduo, como correlatos a estas engrenagens

    sujas de leos, irregulares, imprevisveis e passveis de interromper seus movimentos na

    gare.

    Neste sentindo, aliaremo-nos ao pensamento de Michel Foucault, na inteno de

    vislumbramos a possibilidade de no insistirmos em uma anlise feita pelo interior de

    um discurso que traga o indivduo, ou qualquer outra categoria, como contornonecessrio desta experincia, ou como princpio de ordenao.

    A anlise que seguiremos dever se deslocar para o questionamento do modo de

    posicionar a verdade transcendendo a histria, ao modo como se instaura o indivduo

    como uma realidade inquestionvel. Foucault nos ensina a desconfiar das continuidades

    histricas e do rumo teleolgico, e assim compreendermos que o homem uma

    inveno recente a partir da qual discursos foram adotados e postos em funcionamento

    como verdadeiros.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    33/87

    42

    preciso se livrar do sujeito constituinte, livrar-se do prpriosujeito, isto , chegar a uma anlise que possa dar conta daconstituio do sujeito na trama histrica. isto que eu chamaria degenealogia, isto , uma forma de histria que d conta da constituiodos saberes, dos discursos, dos domnios de objeto, etc., sem ter quese referir a um sujeito, seja ele transcendente com relao ao campode acontecimentos, seja perseguindo sua identidade ao longo dahistria (FOUCAULT, 1979: 7).

    O trabalho genealgico empreendido por Foucault consiste em debruar-se sobre

    a constituio dos modos de subjetivao, sobre os detalhes da construo das verdades

    que moldam a existncia, para reintroduzir o descontnuo no prprio ser, e assim, no

    assumir o sujeito como um elemento imaculado, anterior e exterior s relaes de poder.

    Pois nos fundamental o entendimento de que atrs das coisas h algo inteiramente

    diferente: no seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas so sem

    essncia, ou que sua essncia foi construda pea por pea a partir de figuras que lhe

    eram estranhas (FOUCAULT, 2002:18). Deste modo, a escuta da maquinaria no a

    escuta da verdade mais verdadeira que at ento se velava, mas a escuta destes

    fragmentos, de suas montagens e heterogeneidades; estas peas que produzem sentido;

    produzem a materialidade da existncia.

    Vemos que, ao recusar a existncia de uma verdade oculta a ser desvelada, de

    um sentido intrnseco e necessrio histria, Foucault no est afirmando o caos. Ele

    no quer dizer que [a histria] seja absurda ou incoerente. Ao contrrio, inteligvel e

    deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das

    lutas, das estratgias, das tticas (: 5).

    Foucault se apresenta, portanto, como um filsofo jornalista, ou seja, um

    filsofo que est interessado no que acontece, est interessado na atualidade como

    terreno aonde os modos e sentidos da existncia so forjados. Trata-se de um interesse

    (central) no que se refere produo de ser. Produo esta que indica a no existnciade um fundamento, uma origem, mas sim uma fundao, a emergncia do novo. A

    explicao do aparecimento de um determinado saber e fundamental marcar a

    circunscrio de suas pesquisas9 no deve ser entendida por uma busca ao primordial

    do mesmo. Ser em Nietzsche que Foucault construir suas bases e firmar a pesquisa

    da provenincia (Herkunft) que se ope radicalmente da origem (Ursprung). Pois,

    pesquisar a origem :

    9Foucault no estabelece um mtodo universal no estudo dos poderes e saberes. Suas concluses devemestar limitadas s especificidades de cada tema estudado.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    34/87

    43

    tentar reencontrar o que era imediatamente, o aquilo mesmo deuma imagem exatamente adequada a si; tomar por acidental todasas peripcias que puderam ter acontecido, todas as astcias, todosos disfarces; querer tirar todas as mscaras para desvelar enfim

    uma identidade primeira (FOUCAULT, 1979: 17).

    A utilizao deste conceito de origem vai pressupor, portanto, a existncia da

    coisa em si de uma verdade pura e sem conseqncias da qual as coisas do mundo

    advm. Permite, ainda, colocar o homem como medida de todas as coisas, acreditando,

    desta forma, que todas elas existiriam como puros objetos diante dele (NIETZSCHE,

    1873/1990: 92).

    Segundo esta perspectiva, podemos ainda compreender que o cotidiano

    desprovido de fora poltica, de possibilidade de transformao, pois ganha um carter

    acidental; seus movimentos esto subordinados a uma aproximao ou distanciamento

    destes princpios originais, destas razes supra-histricas. Torna-se, portanto,

    impossvel de se pensar que nele e por ele se escreve a histria. Este cotidiano dspar,

    que range, de mltiplas trilhas inventadas, seria apenas encobridor, criador de mscaras,

    rota desviante daquilo que realmente seria essencial para os rumos da Histria, da

    civilizao, do progresso, enfim, de tantos termos que denominam a linha nica e

    necessria a se alcanar o brilho do original, da verdade primeira e absoluta.

    Assim, se em um nvel de anlise poderamos atribuir aos rumos da histria um

    carter progressivo de descobertas e superaes neste momento fazemos uma leitura

    sobre elas atravs das formaes de verdade que so gestadas em um devir histrico, e

    que assim, no possuem um ritmo ou um andamento linear, no correspondem a

    nenhum esquema, ou sentido, a priori. Desta forma no se trata mais de contar a

    histria a partir das relaes de sentido, a anlise aqui feita se d em termos das relaes

    de fora, das relaes de poder.

    Devemos salientar ainda que o poder, segundo Foucault, no deve ser entendido

    apenas a partir de privaes, e negaes, mas de sua fora produtiva, pois ele produz

    real, produz domnios de objetos e rituais de verdade. Assim, pode-se compreender que

    opoder no existe, mas sim prticas e relaes de poder, o que significa que ele algo

    que se exerce, que efetua, que funciona (MACHADO, 2002: XIV). Seu funcionamento

    como uma maquinaria, uma rede de dispositivos ou mecanismos que no tem limite

    ou fronteira, tampouco se limita ao Estado ou dele necessariamente provm; seu

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    35/87

    44

    exerccio se d em nveis variados e em pontos diferentes da rede social. Nada estaria

    fora, alheio a estes enfrentamentos. Conseqentemente, o suporte da existncia

    tambm no poderia estar. Assim, a hiptese de Foucault a de que o indivduo no

    o dado sobre o qual se exerce e se abate o poder. O indivduo com suas caractersticas,

    sua identidade, fixado a si mesmo, produto de uma relao de poder que se exerce

    sobre os corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, foras (FOUCAULT, 2002:

    161). Ou seja, o indivduo no um outro do poder; produto dele.

    Pensemos ento na articulao entre subjetividade e espao feita por Foucault

    atravs dos estudos da espacialidade-panptica de Jeremy Bentham. O panptico

    consiste em um modelo arquitetnico no qual o espao se organiza da seguinte forma:

    na periferia uma construo em anel; no centro, uma torre; esta vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna doanel; a construo perifrica dividida em celas, cada umaatravessando toda a espessura da construo; elas tm duas

    janelas, uma para o interior, correspondendo s janelas da torre;outra, que d para o exterior, permite que a luz atravesse a celalado a lado. Basta ento colocar um vigia na torre central, e emcada cela trancar um louco, um doente, um condenado, umoperrio ou um escolar. [...] Tantas jaulas, tantos pequenosteatros, em que cada ator est sozinho, perfeitamente

    individualizado e constantemente visvel (FOUCAULT, 2000:166).

    A partir da tecnologia panptica, o sujeito isolado encontra-se constantemente

    vigiado, sem saber, ao certo, se h algum que o est vigiando. Pois, o projeto de

    Bentham impede que, da cela, seja visvel o interior da torre. Desta forma, o essencial

    de seu projeto fazer com que o detento se saiba vigiado. Fazendo de si seu prprio

    vigia.

    Foucault nos traz a imagem de um mecanismo que est no mago da formaoda sociedade disciplinar, que faz com que o exerccio do poder no se acrescente de

    fora, como uma limitao rgida, um peso, sobre as funes que investe (conforme no

    regime de soberania10), mas que esteja nelas presente sutilmente para aumentar-lhes a

    eficcia aumentando ele mesmo seus prprios pontos de apoio (FOUCAULT,

    2000:171). Assim, o panoptismo se apresenta como um instrumento de vigilncia

    10A modalidade disciplinar no substitui todas as outras, mas pode-se afirmar que ela se infiltrou no

    meio das outras, desqualificando-as, s vezes, mas servido-lhes de intermediria, ligando-as entre si,prolongando-as, e principalmente permitindo conduzir os efeitos de poder at os elementos mais tnues emais longnquos. Ela assegura uma relao infinitesimal das relaes de poder (:178).

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    36/87

    45

    permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visvel, mas a si mesma,

    invisvel. Para Foucault, a arquitetura panptica via de anlise da inverso no processo

    de individualizao, pois se em um momento da histria ocidental, a individualizao

    era mxima do lado em que a soberania se exercia, pois quanto mais o homem

    detentor de poder ou privilgio, tanto mais marcado como indivduo, por rituais,

    discursos (...) (:160), num regime disciplinar, a individualizao no sentido oposto,

    pois o poder se torna disperso, infiltrado, mais autnomo e funcional. E ainda: O

    momento em que passamos de mecanismos histrico-rituais de formao da

    individualidade a mecanismos cientfico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar

    do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do

    homem memorvel pela do homem calculvel, esse momento em que as cincias do

    homem se tornam possveis11, aquele em que foram postas em funcionamento uma

    nova tecnologia do poder e uma outra anatomia poltica do corpo (:161). Sero os

    corpos dceis, inflados em suas capacidades produtivas de um determinado sistema, e

    esvaziados em poder poltico, de transformao desprovidos, enfim, de voz.

    Foucault nos apresenta, assim, o espao como produtor de sentidos de

    existncia, como mquina; entrelaa-o s subjetividades atravs dos jogos de poder. E

    acrescenta ainda que a histria dos espaos deve ser a histria dos poderes, devendo

    ser estudada desde as grandes estratgias da geopoltica at as pequenas tticas do

    habitat (:212).

    O espao como mquina a prpria imagem que viemos desdobrando este

    espao que no correlato a uma natureza apresentado como mero local a ser habitado,

    ou apenas representao, ou mesmo fator influenciador, produtor de mudanas e alvo de

    mudanas, mas sim, o espao como construo poltica: tear de experincias, de

    sensibilidades, tear das subjetividades.

    No entanto, devemos ainda compreender que aquilo que somos, ou melhor,aquilo que acontece no se encerra na coero que o poder promove, pois haver

    sempre formas de escapar s malhas da rede (: 224), haver sempre rudos. Se no

    houvesse possibilidade de escape, no haveria histrias, tudo seria capturado por um

    poder uno, por uma Histria absoluta. Contemplar o escape pensar que muitas outras

    11

    s pode haver cincia humana (...) no momento em que o aparecimento, no sculo XIX, de cinciasempricas (...) e das filosofias modernas, que tm como marco inicial o pensamento de Kant, tematizaramo homem como objeto e como sujeito de conhecimento (MACHADO, 2002: IX).

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    37/87

    46

    histrias esto sendo contadas mesmo que cochichadas ou abafadas por entre as

    malhas de um poder unificador.

    E a partir desta possibilidade de escuta de outras histrias que inserimos nossa

    proposta de trabalho: apresentar subjetividade e espaos como narrativas

    incompletas. Pois a partir da possibilidade de que esta Histria seja interrompida

    como no estacionar da locomotiva na gare, este real que desaloja e faz respirar que

    ser possvel fazer soar outras intensidades e abrir espao para aquilo que parecia

    insignificante.

    Para isso, trabalharemos cuidadosamente o entendimento de narrativa e sua

    compreenso junto incompletude.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    38/87

    47

    II II II :: II NN CC OO MM PP LL EE TT UU DD EE EE SS PP AA OO SS ,, PP EE RR CC UU RR SS OO SS

    EE OO UU TT RR AA SS HH II SS TT RR II AA SS ..

    A narrativa um cavalo: um meio de transporte cujo tipo de

    andadura, trote ou galope, depende do percurso a ser executado [...].

    talo Calvino12

    As palavras de Calvino abrem duas vias para apresentarmos a narrativa em

    nossas reflexes sobre as articulaes entre os estudos das subjetividades e dos espaos.

    A primeira dessas vias diz respeito a nosso direcionamento metodolgico.

    Frente problemtica que, nos captulos anteriores, trouxemos em torno do

    entendimento da subjetividade como atributo eminentemente individual paralelamente

    ao estabelecimento de espao ordenado, nossa metodologia no consistir na utilizaoda narrativa como uma via de resoluo ou fechamento de tal problema. Ela servir, por

    outro lado, como um cavalo, como um meio de travessia que nos permita desdobrar

    ou abrir novos caminhos reflexivos. Esta abertura consiste em um olhar crtico sobre o

    objeto de nosso problema, isto : a despolitizao dos conceitos de subjetividade e

    espao, o que os constitui como realidades puras e distintas, e passveis apenas de

    interao.

    Por crtica compreendemos um trabalho de destruio de compactos, dasessncias que postulam que os caminhos no podem ser outros, seno aqueles que

    levam a determinados fins sejam eles a vitria ou o fracasso, a completude ou

    precariedade. Nosso mtodo no se apresentar como um processo de entendimento-

    controle-superao por isso no sntese, no fechamento. Em outras palavras,

    utilizar-se da narrativa como uma trajetria de trabalho no implica em apostar na

    possibilidade de maior amplitude ou profundidade na compreenso de nosso objeto de

    12CALVINO. I. Seis Propostas para o prximo milnio. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    39/87

    48

    pesquisa, como se este constitusse uma unidade a ser recomposta; se assim o

    fizssemos, s nos restaria apresentar uma outra forma de entendimento do espao e da

    subjetividade como a mais correta ou real.Radicalmente oposto a isto, o entendimento

    de crtica que aqui estamos propondo visa no construo de novos slidos, de novos

    modelos, mas tenciona conferir leveza pela fragmentao, pela interpelao destas

    certezas; assim, nossa crtica se ope totalidade de sentido, opacidade e sacralidade

    dos monumentos que indicam as histrias que devem ser lembradas, assim como

    aquelas que devem ser apagadas e decretam, enfim, a sina de um futuro a ser cumprido.

    A presena da narrativa em nossa proposta de trabalho e como aposta

    metodolgica sugere uma compreenso muito especfica do que venha a ser uma

    travessia, pois a narrativa em Walter Benjamin nos fala de possveis incompletos, de

    sentidos que no se furtam criao por no serem totais. Assim, no poderemos

    acomodar nossas palavras elas tero de ser astutas a fim de que o nosso trabalho

    seja, ele tambm, uma narrativa.

    Para que isso seja possvel seguiremos atravs da outra via aberta pela indicao

    de Calvino que diz respeito prpria definio do conceito de narrativa e seus

    desdobramentos tico-polticos. Partiremos de um elemento central na epgrafe em

    questo: o percurso.

    Em um pequeno conto intitulado A prxima aldeia, Franz Kafka13nos traz as

    palavras do narrador que relembra uma histria contada por seu av.

    Meu av costumava dizer: A vida espantosamente curta. Para mim ela agora

    se contrai tanto na lembrana que eu por exemplo quase no compreendo como

    um jovem pode resolver ir a cavalo prxima aldeia sem temer que

    totalmente descontados os incidentes desditosos at o tempo de uma vida

    comum que transcorre feliz no seja nem de longe suficiente para umacavalgada como essa.

    O ancio personagem deste conto parece nos falar de uma distncia

    intransponvel to grande que mesmo uma vida inteira seria incapaz de percorr-la.

    Ocorre, todavia, que ele se refere no a um local mtico e inalcanvel, nem a algum

    13

    KAFKA, F. A prxima aldeia In: Um mdico Rural: pequenas narrativas. So Paulo: Companhia dasLetras, 1999.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    40/87

    49

    lugar cuja distncia geogrfica fosse impeditiva; ele fala de algo muito mais prosaico

    simplesmente, a aldeia vizinha. A que distncia encontrar-se-ia, possivelmente, a dita

    prxima aldeia? Dez, quinze, vinte quilmetros? Ora, certamente nada que levasse mais

    que um par de horas para ser transposto; qual poderia ser, ento, o motivo do espanto do

    av do narrador frente audcia dos jovens?

    Esta questo nos defronta com a prpria noo do que seja um caminho.

    Seguramente, esta uma noo deveras intuitiva, e que mesmo em suas concepes

    mais usuais no est afastada das palavras do av; pois o caminho a ser percorrido leva

    de uma aldeia a outra. Contudo, diversos outros parmetros podem ser incutidos na

    noo de caminho; que ele seja curto ou, ao menos, o mais curto possvel o que

    estabelece que o caminho simplesmente uma via que leva de um lugar a outro.

    Propomos uma anlise desta compreenso.

    Pensemos nos bulevares da Paris do Baro de Haussmann e Napoleo III, onde a

    amplitude, a retido, a iluminao e a limpeza compem a imagem de trnsito

    incessante das multides. Este mega-projeto de reconstruo da capital francesa fez das

    ruas, antes tortuosas e bifurcadas14, runas; Haussmann reduziu a p quarteires

    inteiros, populosos habitados por gente de toda espcie [...] (JOSEPHSON, 1997: 146).

    Sobre as runas ergueram-se ruas imensamente amplas construdas a partir dos

    princpios lineares usados pelos romanos.

    Este novo traado da cidade, que fora conclamado como verdadeiro modelo do

    urbanismo15, aliado s novas tecnologias do transporte, traziam a velocidade como uma

    das principais questes da poca. Conforme Robert Pechman16nos permite relembrar: a

    derrubada das cidades medievais j desde o sculo XVIII, inaugura algo de

    absolutamente novo: pela primeira vez a cidade se torna foco de observao, anlise e

    14 Ao redigirmos esta afirmativa, um questionamento sobre o carter negativo atribudo ao termotortuoso no que se refere ao traado urbano veio tona. Perguntamo-nos: No seria pertinentepensarmos que esta tortuosidade das ruelas de um traado ainda medieval de Paris apenas colocadacomo um problema urbano neste momento em que a circulao fluida inspirado no corpo humano trazida como modelo de cidade ideal? Queremos, com esta questo, indicar que a necessidade detransformar o traado urbano no se instaura a partir da tortuosidade como um problema que finalmentepde ser resolvido atravs das tcnicas e conhecimentos modernos, mas que, de acordo com o surgimentode novas concepes de cidade, novas necessidades e problemas so criados.15O Rio de Janeiro tambm passou pelo mesmo tipo de experincia no incio do sculo XX. O prefeitoPereira Passos, mdico sanitarista, que presenciou a remodelao proposta por Haussmann, tomou Pariscomo modelo e props uma srie de melhoramentos, com a abertura de ruas e avenidas, das quais a maisfamosa foi a Avenida Rio Branco, que deveria ser margeada de ambos os lados por prdios elegantes e

    artsticos, segundo um padro definido de construo (JOSEPHSON, 1997:146).16PECHMAN, R. Pedra e discurso: cidade, histria e literatura. In:Revista Semear, n3. Departamento deLetras. Rio de Janeiro: PUC.

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    41/87

    50

    discurso (PECHMAN, 1997:2). E com isso h de se estar atento um novo modo de

    lidar com a existncia forjado.

    Observemos a seguinte indicao de Richard Sennett: O cenrio do boulevard

    de Sbastopol um espao exemplar do sculo XIX destinava-se a um tipo de

    locomoo direcionada com tanta rapidez e sob to forte presso, que no permitia a

    ningum dar-se conta do burburinho da vida. Dividindo politicamente a multido, fez

    com que os indivduos mergulhassem, em carruagens ou a p, numa excitao quase

    frentica (SENNETT, 1994: 271). Espaos esquematizados e demarcados pelas

    grandes avenidas e bulevares foram apresentados no sentido de resolverem a mistura de

    uma populao hbrida e crescente. A heterogeneidade das ruas, a confuso reinante no

    espao pblico foi solucionada pela excluso das massas populares e pelo isolamento da

    burguesia em bairros homogneos (JOSEPHSON, 1997: 146).

    Esta diviso nos chama a ateno de que no parece ser interessante

    compreender a reconstruo de Paris como um mero remodelamento urbanstico

    orientado por cnones estticos que brotaram das almas de homens de boa vontade. No

    , porm o caso de recusar a importncia de um referencial esttico no trabalho

    realizado; todavia os ideais estticos so indissociveis do poltico. A concepo

    iluminista da cidade como veias e artrias, como um organismo que deveria funcionar

    bem em cada uma de suas unidades e em sua totalidade, ficar a servio dos novos usos

    atribudos no sculo XIX. Decerto, os bulevares cumpriam uma dupla funo: dar

    vazo aos fluxos mais intensos de trfego atravs da cidade e servir de principais ruas

    de comrcio e negcios (BERMAN, 1982: 180). Observemos ainda:

    Napoleo e Haussmann conceberam as novas vias e artriascomo um sistema circulatrio urbano [...], que permitiam aotrfego fluir pelo centro da cidade e mover-se em linha reta, de

    um extremo ao outro [...]. Alm disso, eles eliminariam ashabitaes miserveis e abririam espaos livres em meio acamadas de escurido e apertado congestionamento.Estimulariam uma tremenda expanso de negcios locais, emtodos os nveis, e ajudariam a custear imensas demoliesmunicipais, indenizaes e novas construes. Pacificariam asmassas, empregando dezenas de milhares de trabalhadores [...]em obras pblicas de longo prazo[...]. Por fim, criariam longose largos corredores atravs dos quais as tropas de artilharia

    poderiam mover-se eficazmente contra futuras barricadas einsurreies populares (BERMAN, 1982: 171 - grifo nosso).

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    42/87

    51

    Assim compreendemos que o novo desenho urbano tanto ensejou a circulao

    das massas de maneira ordenada, quanto se apresentou como entrave aos grupos

    ameaadores desta ordem, surgidos na Revoluo Francesa. Este modelo de circulao

    incessante que, em um momento permitiu a experincia do indivduo na multido

    agitada. promete agora atravs do esquadrinhamento dos espaos, da retido e da

    retirada daquilo que pudesse sujar a nova paisagem a proteo do indivduo. Mas

    que proteo seria esta? E, em que isto pode nos auxiliar na anlise de uma determinada

    compreenso do que venha a ser um caminho?

    O movimento e o traado das ruas, os pubs e cafs, as novas arquiteturas, os

    meios de transporte e as casas burguesas falavam ao indivduo que ele estava protegido

    por espaos que lhe ofereciam tudo aquilo que ele poderia querer, tudo o que lhe seria

    necessrio nos novos tempos. E isto era possvel porque propiciavam a experincia da

    interioridade. Sennett, ao analisar o individualismo urbano nas cenas da reconstruo de

    Paris e de Londres, apresenta o conforto oferecido pela facilidade e rapidez de

    locomoo nas ruas das cidades modernas, seja pelos seus novos traados, ou pelos

    meios de transporte como o trem e o metr. Mas ele ainda nos chama a ateno de que

    esta facilidade de movimento transformou-se aos poucos em uma experincia de

    descanso e passividade. O corpo em movimento, desfrutando de cada vez mais

    comodidade, viaja sozinho e em silncio [...] (SENNETT, 194: 273). Com a alterao

    das tcnicas de estofamento que se aliavam a uma preocupao com a necessidade de

    relaxamento do trabalhador fatigado, as poltronas das casas e escritrios propiciaram

    uma outra postura. Os transportes que levavam vrios passageiros, como o vago

    ferrovirio ou os grandes coches puxados a cavalo, provocavam embarao s pessoas,

    pois com o surgimento dos transportes de massa os viajantes eram obrigados a sentarem

    juntos durante longo tempo; com a disposio dos assentos um de frente para os outros,

    encaravam-se em silncio. No entanto, a comodidade dos novos assentos permitia queos passageiros desfrutassem da leitura e nela se refugiassem; o silncio passou a

    resguardar a privacidade. Mesmo nas ruas os transeuntes tornaram-se ciosos do direito

    de no sofrer a interpelao de estranhos; a conversa de um desconhecido foi encarada

    como uma violao (: 277). Assim um outro modelo de vago sem cabinas foi adotado,

    cujas poltronas voltavam-se em nico sentido. As paisagens, a leitura e as costas dos

    outros passageiros eram escudos para uma viagem sem maiores perturbaes.

    Atravessando distncias imensas pelos padres europeus e no obstante ainexistncia de barreiras fsicas, os visitantes do Velho Mundo sentiam-se intrigados

  • 7/26/2019 Ana Rodrigues

    43/87

    52

    com o fato de que se pudesse cruzar um continente inteiro sem dirigir palavras a quem

    quer que fosse (: 277).

    E o que mais o indivduo burgus que estava sendo gestado como um sujeito

    impermevel, ou seja, autnomo, dotado de racionalidade e sensibilidade privatizadas,

    iria necessitar? Dentro de si havia um infinito de possibilidades, uma profundidade ao

    mesmo tempo lrica e perigosa. Isto poderia parecer uma contradio no que se refere

    proteo e bem-estar prometidos ao indivduo, no fosse pelo fato de que exatamente

    pela introspeco, pela experincia do isolamento ou por um olhar estratgico de

    observador que se torna possvel conhecer-se, e conhecer a natureza humana. Assim,

    distanciar significava proteger-se do mistrio oculto dos outros, do estranho, ou da

    estranheza do desmanchar dos slidos sejam eles os muros, as certezas de uma poca

    implodida pela fora do progresso, ou mesmo a efemeridade do novo. Mais ainda, era a

    resposta dada ao medo da despersonalizao, um perigo s potencialidades individuais.

    O que ento poderia acontecer nos caminhos desenhados pela utopia racional?

    De casa fbrica, do mercado ao parque, de uma estao outra, de um caf ao teatro

    travessias lineares, espaos as serem ultrapassados compostos por opacas imagens. A

    opacidade nos fala que os possveis de um percurso se encerram naquilo que pode ser

    percebido em sua funcionalidade e contornos milime