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FUVEST 2006  99 ANGLO VESTIBULARES GUIMARÃES ROSA CONSIDERAÇÕES GERAIS Guimarães Rosa situa-se na 3 ª fase do Moder- nismo brasileiro, chamada Neomodernismo ou geração de 45. Ao lado de Clarice Lispector (  Perto do coração selvagem, 194 4), e le rompeu com os esquemas narrativos dos anos 30 e instaurou um novo processo ficcional, baseado na estilização in-  vent iva de dado s regi onai s e na cons tant e pesq uisa do instrumento que lhe serve de base, a linguagem. Por essas razões, Guimarães Rosa pode ser consi- derado um  inst rume ntali sta . Da mesma geração, o seu correspondente formal e temático na poesia é João Cabral de Melo Neto (  Pedr a do Sono , 1942). Tendo estreado em 1946, com os contos de Sa- garana, João Gu imarães Rosa to rnou-se o escritor de maior importância e prestígio da literatura bra- sileira no século XX. Escreveu contos, novelas e um romance. Costuma ser tratado como regionalis- ta, pois quase todo seu trabalho nasce da observa- ção de tipos, costumes e geografia do interior mi- neiro. Mas ao imenso material observado, ele so- brepõe uma forte camada de matéria pensante e problematizado ra. Esse segundo componente é de-  vido nã o só à su a imag inação, co mo tam bém à su a compreensão, através da cultura, de questões con- ceituais que envolvem a noção de homem univer- sal. Suas narrativas, carregadas de mistério e reve- lação, possuem uma estrutura mítica ou alegórica, isto é, apresentam sempre uma interpretação pessoal e poética da existência e de seus grandes problemas. Investiga m sobre Deus, o bem, o mal, o medo, a felicidade, as relações do homem com a natureza. Principalmente, há em sua obra uma constante indagação sobre a morte e os momentos gloriosos da vida terrena, tais como o amor e o triunfo guerreiro, particularmente em Grande Ser- tão: Veredas (1956). Nessa perspectiva, as estórias de Guimarães Rosa expressam uma visão metafísica da existên- cia, porque todas, de alguma forma, comportam a crença num bem verdadeiro e superior. Com efei- to, no pensamento geral das estórias de Sagarana há uma constante investigação filosófica, a qual, não raro, se converte em contemplação mística do universo, como acontece em “O Burrinho Pedrês” , abertura de Sagarana: a sabed ori a ext ra ordinária desse animal humanizado decorre de seu perma- nente exercício de contemplação. A atitude dele perante a vida aproxima-se da ataraxia, que é a cal- ma contemplativa dos filósofos estóicos. Além de Platão e dos Estóicos, encontram-se na base do pensamento filosófico de Guimarães Rosa autores como Plotino e o místico flamengo Ruysbroek, cha- mado o Admirável. Esses e outros pensadores apa-

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FUVEST 2006 99 ANGLO VESTIBULARES

GUIMARÃES ROSA

CONSIDERAÇÕES GERAISGuimarães Rosa situa-se na 3ª fase do Moder-

nismo brasileiro, chamada Neomodernismo ougeração de 45. Ao lado de Clarice Lispector ( Perto

do coração selvagem, 1944), ele rompeu com osesquemas narrativos dos anos 30 e instaurou umnovo processo ficcional, baseado na estilização in-

 ventiva de dados regionais e na constante pesquisado instrumento que lhe serve de base, a linguagem.Por essas razões, Guimarães Rosa pode ser consi-derado um instrumentalista. Da mesma geração, oseu correspondente formal e temático na poesia éJoão Cabral de Melo Neto ( Pedra do Sono, 1942).

Tendo estreado em 1946, com os contos de Sa-

garana, João Guimarães Rosa tornou-se o escritorde maior importância e prestígio da literatura bra-sileira no século XX. Escreveu contos, novelas eum romance. Costuma ser tratado como regionalis-ta, pois quase todo seu trabalho nasce da observa-ção de tipos, costumes e geografia do interior mi-neiro. Mas ao imenso material observado, ele so-brepõe uma forte camada de matéria pensante eproblematizadora. Esse segundo componente é de-

 vido não só à sua imaginação, como também à suacompreensão, através da cultura, de questões con-ceituais que envolvem a noção de homem univer-sal. Suas narrativas, carregadas de mistério e reve-lação, possuem uma estrutura mítica ou alegórica,isto é, apresentam sempre uma interpretaçãopessoal e poética da existência e de seus grandesproblemas. Investigam sobre Deus, o bem, o mal, omedo, a felicidade, as relações do homem com anatureza. Principalmente, há em sua obra umaconstante indagação sobre a morte e os momentosgloriosos da vida terrena, tais como o amor e otriunfo guerreiro, particularmente em Grande Ser-

tão: Veredas (1956).Nessa perspectiva, as estórias de Guimarães

Rosa expressam uma visão metafísica da existên-cia, porque todas, de alguma forma, comportam acrença num bem verdadeiro e superior. Com efei-to, no pensamento geral das estórias de Sagaranahá uma constante investigação filosófica, a qual,não raro, se converte em contemplação mística douniverso, como acontece em “O Burrinho Pedrês” ,abertura de Sagarana: a sabedoria extraordináriadesse animal humanizado decorre de seu perma-nente exercício de contemplação. A atitude deleperante a vida aproxima-se da ataraxia, que é a cal-ma contemplativa dos filósofos estóicos. Além dePlatão e dos Estóicos, encontram-se na base dopensamento filosófico de Guimarães Rosa autorescomo Plotino e o místico flamengo Ruysbroek, cha-

mado o Admirável. Esses e outros pensadores apa-

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recem citados nas epígrafes dos textos de Guima-rães Rosa. Aliás, convém destacar desde já que to-dos os contos de Sagarana são precedidos por epí-grafes, cujo sentido necessariamente deve ser in-tegrado ao do texto que precedem.

REGIONALISMO UNIVERSALIZANTEEm virtude de sua capacidade de refletir sobre

tópicas consagradas pela tradição da literaturamundial a partir do pitoresco regional, GuimarãesRosa costuma ser estudado como representante do

 regionalismo universalizante. Tal ampliação do sig-nificado literário do regionalismo brasileiro foi an-tecedida por experiências de grande valor, como(Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e  Fogo

 Morto (1943), de José Lins do Rego. Nesse sentido,talvez o mais bem acabado produto de todos os an-tecessores de Guimarães Rosa seja São Bernardo

(1934), de Graciliano Ramos.Sagarana é um livro absolutamente novo com re-

lação ao passado literário brasileiro e uma obrameio envelhecida com relação aos livros subse-qüentes de Guimarães Rosa. Por ocasião de suapublicação, Álvaro Lins chamou a atenção para aorganicidade com que o documentário regional sefundia com a ficção do livro. Observe-se este tre-cho de “O burrinho pedrês”, como exemplo de re-gistro de uma particularidade regional tomada co-mo fonte de construção literária:

Vinha-lhe de padrinho jogador de truquea última intitulação, de baralho, de manilha;

mas, vida a fora, por amos e anos, outras tive-ra, sempre involuntariamente: Brinquinho,primeiro, ao ser brinquedo de meninos; Role-te, em seguida, pois fora gordo,na adolescên-cia; mais tarde, Chico-Chato, porque o sétimodono, que tinha essa alcunha, se esquecera, aonegociá-lo, de ensinar ao novo comprador onome do animal e, na região, em tais casos,assim sucedia...

A enumeração dos vários nomes da persona-gem constitui um dos recursos típicos do estilo

roseano. Note-se a perífrase adverbial por amos eanos, logo no começo do trecho. Trata-se de umaespécie de trocadilho baseado numa falsa rima,que contribui para a eufonia do texto. Como se sa-be, Rosa reescreveu os contos de Sagarana diver-sas vezes, tanto que resultou um trabalho com ca-racterísticas invulgares na literatura brasileira. Mi-núcias dessa natureza são comuníssimas nos textosdo livro, e sua percepção completa a boa leitura desuas páginas. Tais requintes formais caracterizamo virtuosismo estilístico de João Guimarães Rosa, quese tornam mais freqüentes e mais agudos em Gran-

de Sertão: Veredas e em Primeiras Estórias.

De modo geral, tais virtuosismos formais de-correm da estilização da linguagem oral, que, às

 vezes, gera enunciados dificilmente admissíveis pe-la lógica gramatical, mas que se entendem perfeita-mente como vivacidades da expressão oral. Sirva de

exemplo desse tipo de virtuosismo a seguinte frasede “O burrinho pedrês”:

Agora, para sempre aposentado, sim, queele não estava, não.

Trata-se de uma estilização do falar regional, que,tornado enunciado estético, caminha para a gene-ralidade do conceito. Observe-se, nesse exemplo, o

 jogo entre sim / não, que resulta numa afirmativagenialmente sinuosa. Diga-se o mesmo para o con-traste agora / sempre.

A percepção desse tipo de artesanato frasalajuda imensamente o entendimento de Sagarana.Sem ela, a leitura do livro resultaria incompleta, se-não totalmente incorreta.

INVENÇÃO LINGÜÍSTICAA importância de Guimarães Rosa na literatura

brasileira advém principalmente de sua invençãolingüística. Desde o início, notou-se em sua ficçãouma radical contestação da linguagem convencio-nal e o propósito de revolucionar a expressão lite-

rária no Brasil. Sua invenção e revolução abran-gem o nível semântico (significado), o sintático(combinação) e o fonológico (som). Quer dizer: criapalavras, descobre associações imprevistas entreelas e reproduz ruídos da natureza ainda não regis-trados antes dele. E isso tudo se deve ao fato deque a matéria de sua ficção é falada pelos jagunçosou vaqueiros do sertão mineiro. Rosa escreve. Masquem fala são eles, os narradores. Por isso seustextos se acham carregados de modismos e singu-laridades de um falar que soa ao homem urbanocomo poesia em prosa ou prosa poética. Surge por

outro lado, a dificuldade de adaptação com seme-

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Capa e página de rosto da 1ª edição

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lhante universo moral e lingüístico. Note-se maisum trecho de “O burrinho pedrês”:

Mas o Calundú cada vez ia ficando maisenjerizado e mais maludo, ensaiando para fi-car doido, chamando a onça para o largo e

 xingando todo nome feio que tem. Aquilo, eufui bobeando de espiar tanto para ele, comoque nunca eu não tinha visto o zebu tão gran-dalhão assim! A corcunda ia até lá embaixo,no lombo, e, na volta, passava do lugar seudela e vinha pôr chapéu na testa do bichão.Cruz! E até a lua começou a alumiar o Calundúmais do que as outras coisas, por respeito...

Trata-se de excelente exemplo da oralidade emSagarana. Trechos como esses demonstram perfei-ta incorporação artística da fala sertaneja, o queocorre não só nos diálogos praticados entre as per-sonagens, mas também na elocução dos narrado-res, quase sempre fundidos com o universo ficcio-nal das narrativas. Para produzir o efeito de espon-taneidade da fala sertaneja, Rosa freqüentementeprefere as formas mais trabalhosas de elaboraçãotextual. Ele é do tipo de escritor para quem a prosaé uma questão de poesia. Isto é, ele toma a prosapela prosa, no sentido de trabalhá-la com a perfei-ção própria de um poeta. Por tal motivo, os textosde Sagarana requerem leitura atenta e minuciosa.

CHAVE DO ENTENDIMENTOA linguagem poética de Guimarães Rosa incor-

pora recursos de toda a espécie, sendo que um de

seus aspectos mais salientes é a invenção de pala- vras, isto é, o apelo ao neologismo. Numa passa-gem do conto “São Marcos”, de Sagarana, o narra-dor faz uma digressão para explicar sua teoriasobre o efeito e a necessidade do vocábulo inventa-do para intensificar o calor da experiência vivida:

E eu, que vinha vivendo o visto mas vivan-do estrelas, e tinha um lápis na algibeira, es-crevi também, logo abaixo:

SargonAssarhaddon

AssurbanipalTeglattphalasar, SalmanassarNabonid, Nabopalassar, NabucodonosorBelsazarSenakherib.

E era para mim um poema esse rol de reisleoninos, agora despojados da vontade sa-nhuda e só representados na poesia.

Não pelos cilindros de ouro e pedras, pos-tos sobre as reais comas riçadas, nem pelasalargadas barbas, entremeadas de fino ouro.

Só, só por causa dos nomes.

Sim, que, à parte o sentido prisco, valia oileso gume do vocábulo pouco visto e menosainda ouvido, raramente usado, melhor fora se

 jamais usado. Porque, diante de um gravatá,selva moldada em jarro jônico, dizer-se ape-nas drimirim ou amormeuzinho é justo, e, aodescobrir, no meio da mata, um angelim queatira para cima cinqüenta metros de tronco efronde, quem não terá ímpeto de criar um vo-cativo absurdo e bradá-lo — Ó colossalidade!— na direção da altura?

E não é sem assim que as palavras têmcanto e plumagem.

E que o capiauzinho analfabeto MatutinoSolferino Roberto da Silva existe, e, quandochega na bitácula, impõe: — “Me dá dez ‘tõesde biscoito de talxóts!” — porque deseja mer-cadoria fina e pensa que “caixote” pelo jeitãoplebeu deve ser termo deturpado. E que agíria pede sempre roupa nova e escova. E queo meu parceiro José Cornetas conseguiu am-pliar um tanto os limites mentais de um sujei-to só bidimensional, por meio de ensinar-lheestes nomes: intimismo, paralaxe, palimpses-to, sinclinal, palingenesia, prosopopese,amnemosínia, subliminal. E que a populaçãodo Calango-Frito não se edifica com os ser-mões do novel pároco Padre Geraldo (“Ara,todo o mundo entende...”) e clama saudadesdas lengas arengas do defunto Padre Jerôni-mo. “que tinham muito mais latim”... e que afrase “Sub lege libertas!”, proferida em comí-cio de cidade grande, pôde abafar um motimpotente, iminente, E que o menino Francisqui-nho levou susto e chorou, um dia, com medoda toada “patranha” — que ele repetira, alto,quinze ou doze vezes, por brincadeira boba, e,pois, se desusara por esse uso e voltara a serselvagem, E que o comando “Abre-te Sésamoetc,” fazia com que se escancarasse a porta dagruta-cofre...

Esse trecho contém a primeira teorização explí-cita na obra de Guimarães Rosa, ainda que enqua-drada nos limites da própria ficção. Em seus livrosmaduros, ele sempre fará digressões sobre a natu-reza da narrativa e do conceito de arte, principal-mente em Grande Sertão: Veredas. Os quatroprefácios de Tutaméia expõem de modo amplo eanedótico o seu conceito sobre literatura. No queconcerne a “São Marcos”, não só o trecho citado,mas todo o conto pode ser tomado como uma poé-tica, isto é, um texto cujo propósito central é expore investigar o conceito de literatura, fundado naexploração dos efeitos encantatórios da poesia e daprosa. O assunto aparente de “São Marcos” é abruxaria, pois a estória se passa no Calango-Frito,centro ativo e intenso de feitiçaria. Além da ação

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central do conto, todos os casos referidos envol- vem o poder de práticas ocultistas ou vocábulosmágicos. Há nessa estória várias pistas para a idéiade que a literatura vincula-se a forças ocultas nemsempre controláveis pelo artista, noção defendidatambém num dos prefácios de Tutaméia.

Consideremos especificamente o trecho acimacitado. A personagem-narradora, Izé, costumavapassear todos os domingos no mato que circunda-

 va o lugarejo do Calango-Frito, com a única finali-dade de admirar a paisagem e observar os movi-mentos e cores dos animais, dos graúdos aos ínfi-mos. Um dia, ele descobriu uma quadrinha escritano gomo de um bambu e, como réplica poética,gravou no mesmo bambu aqueles nomes de reisassírios. A personagem considera a simples justa-posição desses nomes antigos um verdadeiro poe-ma. Adverte, então, que o efeito artístico da com-posição resulta tanto do “ileso gume” dos vocábu-los (parte cortante, intocada), quanto do seu “sen-tido prisco” (significado antigo). Em outros termos,a personagem — projeção das idéias do Autor —põe em destaque o aspecto material, concreto dacomposição literária. Para ele, vale mais a dimen-são visual e sonora dos vocábulos do que o seu con-teúdo abstrato. Vale dizer, a literatura é entendidacomo o jogo dos significantes inusitados e não designificados convencionais. Nasce daí a necessida-de de se inventarem vocábulos novos (“melhor forase jamais usado”) para a expressão de sensaçõesinéditas. O Autor exemplifica tal convicção comtrês neologismos: drimirim ou amormeuzinho, paraexprimir a ternura provocada por uma flor domés-tica de vaso; e colossalidade, para traduzir o espan-to diante de uma enorme árvore selvagem.

A leitura desse trecho de “São Marcos” indicaque a chave do entendimento da obra de Guima-rães Rosa não consiste apenas na tradução de seu

 vocabulário difícil e regional, mas também na deci-fração de sua poética, isto é, na assimilação doprincípio literário que presidiu à redação dos tex-tos. Esse princípio prevê, conforme se depreende,a utilização do vocábulo obscuro por natureza, semtradução definitiva ou imediata, como os nomesdaqueles reis assírios. Esse princípio baseia-se noapelo intensivo à conotação radical da linguagem e

na pressuposição de um leitor sensível a concre-tude das palavras. Em rigor, todo leitor de Guima-rães Rosa deveria ser como a personagem desseconto, que decorou a “reza brava” de São Marcossem entender o seu significado, só por achá-la en-graçada e poética. Em outros termos, é precisoadmitir que “as palavras têm canto e plumagem”Por outro lado, o “canto e plumagem” das palavraspossuem o poder de alargar a experiência existen-cial do indivíduo. O uso estético ou desinteressadoda linguagem tem poder utilitário. Essa idéia estáimplícita no desfecho de “São Marcos”. Estandoembrenhado na floresta, o protagonista do contoperde subitamente a visão, por força de um feitiçode João Mangolô, do Calango-Frito. Depois de al-gum tempo de escuridão, Izé, por instinto e semsaber exatamente o que fazia, põe-se a proferir a“reza brava” de São Marcos, que o liberta da ce-gueira arranjada. Concebido como micro-ilustra-ções da idéia central do conto, o último parágrafodo trecho citado enumera, em tom anedótico, ca-sos pitorescos em que o uso sensorial das palavrasproduz outros tantos efeitos mágicos na vida prática.

Ressalte-se, por fim, nessa unidade consagradaàs invenções lingüísticas de Guimarães Rosa, que onome Sagarana é criação do Autor: provém de sa-

ga (lenda em escandinavo) e rana (espécie de ou àmaneira de em tupi).

PAISAGENS E DESCRIÇÕESResumindo e ampliando o que vimos anotando

para facilitar o primeiro contato com a estréia deGuimarães Rosa, conclui-se que os contos de Saga-

 rana oferecem basicamente duas grandes dificul-dades de leitura: primeiro, o espaço geográfico ex-plorado, que são as grandes e isoladas fazendas degado de Minas Gerais; depois, a linguagem adota-da pelo Autor, que imita estilizadamente o falar doshabitantes daquelas longínquas paragens.

Para as pessoas da cidade, é difícil, em primei-ro contato, admitir que um autor possa dar tama-nha importância aos pormenores da paisagem, co-mo a nomeação das plantas e a descrição dos ani-mais. Mas, conforme se viu acima, isso acontece comfreqüência nos contos de Sagarana. A paisagemassume aí uma importância decisiva, porque oautor vê o mundo dos homens como uma espéciede extensão do universo natural. Tome-se mais umexemplo expressivo do primeiro conto do livro, “OBurrinho Pedrês”. Esse conto narra a tragédiaocorrida com um grupo de vaqueiros que conduziauma boiada para o embarque no arraial. À noite,os vaqueiros retornam embriagados. O tempo estáescuro e chuvoso, depois de ter ocorrido uma tor-menta nas cabeceiras do riacho por onde deverãopassar. Nas proximidades da água, os cavalos,pressentindo a enchente, empacam. De repente,

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um pássaro noturno canta: “João, corta pau! João,corta pau!” Esse canto funde-se com as falas dos

 vaqueiros, com o negrume e o frio da noite, assu-mindo tonalidades de aviso ou mau presságio. Os

 vaqueiros percebem a necessidade de interpretartal anúncio da paisagem, mas erram na decifraçãodo sinal. Por isso, tendo insistido em que os cavalosnadassem, morrem quase todos afogados, levadospela enchente.

Essa passagem exemplifica a forte presençados animais e suas vozes nos contos de Sagarana.De modo geral, os bichos exercem grande impor-tância nas estórias desse livro. Por essa razão, nãose deve desprezar nenhuma das inúmeras referên-cias feitas a eles, mesmo quando se trata de refe-rências secretas e enigmáticas como a citada acima.

Outro exemplo de presença misteriosa dos ani-mais no livro é a de uma irara no conto “Conversade bois”, o penúltimo de Sagarana. Esse cachorri-nho do mato é, aliás, uma espécie de narrador doconto, pois ele presenciou os eventos da estória,contou-os a um tal Manuel Timborna, o qual os re-latou ao verdadeiro narrador do texto. Nesse sen-tido, convém destacar com clareza que tais contos,“O Burrinho Pedrês” e “Conversa de Bois”, sãodois trabalhos de invenção da psicologia dos ani-mais. Mas nesse caso, os animais não pertencem àpaisagem. Transformam-se na essência dos textos.

Volte-se à consideração dos animais como ele-mento da paisagem. No início de “O burrinho pe-drês”, existem, por exemplo, longas descrições debois, cavalos e vacas, depois da minuciosa apresen-tação física e psicológica do muar que dá título aoconto. À primeira vista, tais descrições podem pa-recer desnecessárias. Nada mais errôneo. Sãoessenciais. É preciso ter paciência e observá-lascom atenção, pois delas dependem a ambiênciadesse conto em particular e de Sagarana em geral.Para exercício de percepção da força descritiva deGuimarães Rosa, observe-se um trecho em que seapresentam os vários tipos de chifres das vacas docurral da Fazenda da Tampa, do Major Saulo, de“O Burrinho Pedrês”:

E pululam, entrechocados, emaranhados,os cornos longos, curtos, rombos, achatados,pontuados como estiletes, arqueados, pen-dentes, pandos, com uma duas três curvatu-ras, formando ângulos de todos os graus comos eixos das frontes, mesmo retorcidos paratrás que nem chavelhos, mesmo espetadospara diante como presas de elefante, mas, nomais, erguidos: em meia-lua, em esgalhos decacto, em barras de cruz, em braços de ânco-ra, puãs de caranguejo, em ornatos de sata-nás, em liras sem cordas — tudo estralejandoque nem um fim de queimada, quando há moi-tas de taboca finas fazendo ilhas no capinzal.

Há uma infinidade de passagens como essa emSagarana. A função delas é sempre a mesma: im-pressionar sensorialmente o leitor, isto é, saturá-lode informação, fornecendo-lhe tantos pormenoresquantos forem necessários para causar a ilusão datridimensionalidade do mundo. Tais descrições in-

 variavelmente se fazem acompanhar de movimentoe energia. Baseia-se no processo da enumeraçãoexaustiva, às vezes tão longas e reiterativas que pa-recem esgotar todos os ângulos da realidade inven-tada. Também no início de “O Burrinho Pedrês”, háum outro exemplo notável de descrição reiterativa,cuja particularidade consiste na pintura doscavaleiros como extensão dos cavalos e vice-versa.

Com o domínio desses dados, podem-se lercom mais facilidade os contos de Sagarana. Todosterão a sua introdução descritiva a partir de cujaatmosfera se desenrolam os acontecimentos da es-tória, sempre visceralmente dependentes do cená-rio. Esse é o papel estrutural da paisagem em Saga-

 rana.Igualmente a “O Burrinho Pedrês”, “Conversa

de Bois” apresenta uma viagem como fio condutorda intriga. Naquele, os vaqueiros conduzem a boia-da do Major Saulo da Fazenda da Tampa para otrem no arraial; neste, Agenor Soronho e Tiãozi-nho guiam um carro de bois com rapaduras e umdefunto, do casebre deles até o cemitério de um ou-tro arraial.

Já foi dito que ambos os contos investigam apsicologia dos animais. Ambos possuem tambémestrutura de fábula, porque os protagonistas, sen-do bichos, comportam-se como gente. Do ponto de

 vista da narrativa, convém destacar que esses con-tos possuem estórias intercaladas ao fio central daação, isto é, à medida que prossegue a viagem, aspersonagens vão contando casos que assumem au-tonomia estrutural e interesse isolado relativamen-te ao todo em que se encaixam. Tal propriedadeconfere dimensão épica aos contos de Sagarana,conforme será visto mais adiante.

Mas, tornando à idéia da funcionalidade dasdescrições roseanas, tome-se, para mais um exem-

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plo, a abertura de “Conversa de Bois”. Trata-se deuma apresentação magistral, embora meio difícilpor causa do excesso de informes sobre o carro debois, veículo regional e antigo que muitas pessoasda cidade nunca viram e talvez jamais venham a

 ver. Esse instrumento terá importância decisiva natragédia final do conto. Sua descrição acha-seorganicamente vinculada aos bois que o fazemmover:

Vinha triste, mas batia ligeiro as alpercati-nhas, porque, a dois palmos da sua cabeça,avançavam os belfos babosos dos bois daguia — Buscapé, bi-amarelo, desdescendo en-tre mãos a grossa barbeia plissada, e Namo-rado, caracú sapiranga, castanho vinagre to-cado a vermelho — que, a cada momento, ar-mavam modo de querer chifrar e pisar.

Segue-seguindo, a ativa junta do pé-da-guia: Capitão, salmilhado, mais em brancoque em amarelo, dando a direita a Brabagato,mirim-malhado de branco e de preto: meiochitado, meio chumbado, assim cardim. Ambosmaiores do que os da junta da guia.

Passo após, a junta, mestra, do pé-do-coi-ce: Dansador, todo branco, zebuno cambraia,fazendo o cavalheiro; e, servindo-lhe de dama,Brilhante, de pelagem braúna, retinto, liso, con-color. Ainda maiores do que os seus diantei-ros da contra-guia.

E, atrás — ladeando o cabeçalho — con-formes, enormes, tão tamanhões o quantobois podem ser, os sisudos sócios da junta docoice: Realejo, laranjo-botineiro, com polainasde lã brancas, e Canindé, bochechudo, de chi-fres semilunares, e, na cor, jaguanês.

Como se vê, o Autor destacou principalmente aposição das juntas em relação ao carro e as coresdos mesmos bois. O processo adotado foi nova-mente o da cumulação enumerativa, em que as co-res são indicadas com muitas nuanças e variações.É muito comum nas páginas de Sagarana encon-trarmos imensas listas de cores, nuanças, variantese gradações de tons, ao que se ajuntam a disposi-ção e o movimento. Conforme ficou dito, o propó-sito de tais descrições é fornecer a ilusão da tridi-mensionalidade da paisagem e dos seres. Vejamosa tradução de alguns vocábulos pouco comuns, pa-ra auxiliar a percepção multicolorida dos animais:

 belfo: beiço inferior dos bois; barbela: pele penden-te do pescoço do boi; sapiranga: diz-se dos olhosinflamados ou sem pestanas dos bois; samilhado:salpicado de branco e amarelo; chitado: diz-se dogado de pêlo branco; zebuno: relativo a zebu, gadocom grande corcova; zebuno cambraia: boi zebu in-teiramente branco;  braúna: boi bem preto; conco-

 lor : neologismo de Guimarães Rosa, no caso indica

a impregnação radical da cor preta; laranjo-boti-

 neiro: refere-se ao pé alaranjado do boi Realejo,cuja canela era branca;  jaguanês: diz-se do gadoque tem o fio do lombo e a barriga brancos e as la-terais vermelhas ou pretas.

AS PERSONAGENS DE SAGARANAQuanto ao universo moral, as personagens de

Guimarães Rosa estão sempre em situações limites.

São pessoas iluminadas ou dominadas pelas som-bras. Estão sempre para além do normal: Riobaldo(Grande Sertão: Veredas), que esteve com Deus e odiabo, com o amor e o ódio — que vendeu a almaao demônio; Diadorim (idem), que era homem emulher; Gorgulho (“O Recado do Morro”), que re-cebeu um recado de morte do morro da Garça;Grivo (“Cara-de-Bronze”), que foi buscar o quemdas coisas; o pai calado, que saiu de canoa em bus-ca da “Terceira Margem do Rio” ( Primeiras Estó-

 rias); a menininha que fazia milagres e dizia: “altu-ras de urubir, alturas de urubu não ir” (idem); o bu-

gre solitário (“Meu Tio o Iauaretê”), amante de on-ças que acabou se transformando numa delas.

As personagens de Sagarana são também seresexcepcionais. Gozam de um estatuto especial, poisfazem parte de um mundo que fica entre o real e ofabuloso. Como o próprio Autor esclareceu um dia,os textos de Sagarana são “Histórias adultas da Ca-rochinha”. Com efeito, todas elas podem ser inter-pretadas como parábolas, isto é, possuem um sig-nificado transcendente ou alegórico, as quais for-mam, no conjunto, uma concepção de mundo a quese poderia grosseiramente chamar de existencialis-

mo panteísta.Examinem-se a trama e as personagens de “Con-

 versa de bois” para esclarecer esse conceito filosó-fico. Tiãozinho é ajudante do condutor de carros deboi Agenor Soronho, o qual mora na mesma casaem que ele, como amante de sua mãe, em flagrantedesrespeito à figura do pai, que, apesar de inválidoe cego, é vivo e coabita o mesmo teto. O pai deTiãozinho morre. Agenor e o auxiliar vão conduzi-lo ao cemitério do arraial. Durante a viagem, o car-reiro maltrata e humilha o menino. Os bois, perso-nagens importantes no conto, vão percebendo os

maus tratos e revoltam-se contra o homem grande.Esperam o momento oportuno e esmagam-no, soba roda da “bárbara viatura”. Veja-se o trecho emque os bois dão o veredicto contra o homem mau:

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Poty

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— Que foi? Que há, boi Buscapé?— É o boi Capitão! É o boi Capitão! Que é

que está dizendo o boi Capitão?— Mhú! Hmoung!... Boi... Bezerro-de-ho-

mem... Mas, eu sou o boi Capitão! Moung!...Não há nenhum boi Capitão... Mas, todos osbois... Não há bezerro-de-homem!... Todos...Tudo... Tudo é enorme... Eu sou enorme!...Sou grande e forte... Mais do que seu AgenorSoronho!... Posso vingar meu pai... Meu paiera bom. Ele está morto dentro do carro... SeuAgenor Soronho é o diabo grande... Bate emtodos os meninos do mundo... Mas eu souenorme... Hmou! Hung!... Mas, não há Tiãozi-nho! Sou aquele-que-tem-um-anel-branco-ao-redor-das-ventas!... Não, não, sou o bezerro-de-homem! Sou maior do que todos os bois ehomens juntos.

— Mû-ûh... Mû-ûh!... Sim, sou forte... So-mos fortes... Não há bois... Tudo... Todos... Anoite é enorme... Não há bois-de-carro... Nãohá mais nenhum boi Namorado...

— Boi Brabagato, boi Brabagato! Escuta oque os outros bois estão falando. Estão doi-dos?!...

— Bhuh!... Não me chamem, não soumais... Não existe boi Brabagato! Tudo é forte.Grande e forte... Escuro, enorme e brilhante...Escuro-brilhante... Posso mais do que seuAgenor Soronho!...

A fala dos bois deixa claro que, naquele mo-mento, eles são expressão de uma força maior, que

os une a um todo indivizível e justo. Essa unidadecósmica, que integra homens e bichos, não podeser maculada sem que haja uma repreensão delibe-rada por seus próprios elementos. Por essa razão,os bois vingam a humilhação imposta ao menino.Falou-se, acima, em existencialismo panteísta, por-que Guimarães Rosa reflete sobre os problemas daexistência enquanto luta dramática pela harmoniado todo. Etimologicamente,  panteísmo quer dizer

 Deus em tudo. Mas Rosa, embora seja otimista,acredita em forças perturbadoras da ordem divina.

Nesse sentido é que se pode entender a perso-

nagem Augusto Matraga, ora possuído pelas for-ças do Mal, ora possuído pelas forças do Bem. Maschega um momento em que não se sabe com clare-za de que lado ele atua, pois passa a procurar oBem pela prática do Mal. O conto intitulado “Due-lo” pode também ser integrado nessa visão de con-

 junto, em que as personagens são concebidas co-mo expressão de problemas existenciais: TuríbioTodo sai vencedor de uma caçada humana por terestado do lado da razão no começo; mas, ao mor-rer, o agressor Cassiano Gomes atinge a graça epassa a Timpim Vinte-e-Um o poder e a incumbên-

cia de vingá-lo. Assim, as personagens de Sagarana

devem ser entendidas como símbolos do conjuntoalegórico dos contos. São símbolos psicológicos eexistenciais. Precisam ser interpretadas, para quese nos revelem o sentido oculto de suas ações.

RESUMOS DOS CONTOSTem-se insistido em que todas as estórias de

Sagarana possuem feição alegórica, isto é, contêmum segundo sentido para além do simples desen-

rolar dos fatos. No fim dos enredos que seguem,sugere-se uma possível interpretação desses senti-dos. Evidentemente, a leitura dos resumos pressu-põe o conhecimento da parte anterior do presentetrabalho. A crítica tem consagrado como melhoresde Sagarana os contos: “O burrinho pedrês”, “Ahora e vez de Augusto Matraga”, “Duelo” e “Con-

 versa de bois”. No volume, as narrativas apresen-tam a seguinte ordem, aqui acompanhadas das fa-mosas ilustrações do Poty:

O Burrinho Pedrês

Narrativa da viagem do Major Saulo, de seu se-cretário Francolim e de dez vaqueiros, tocandouma boiada da Fazenda da Tampa até o arraial on-de dois trens especiais esperavam. Por causa da fu-ga das melhores montarias na noite anterior, o Ma-

 jor Saulo determina que se utilize o Sete-de-Ouros:burrinho velho, cansado e que jamais servira paratocar boiada. João Manico, por ser mais leve, su-portaria a humilhação de montá-lo. Após a entregado gado, todos partem de volta sob chuva e na es-curidão da noite, menos o Major Saulo, que ficou

no arraial com a família. Badu, que bebera maisque os outros, foi trapaceado e teve de voltar noSete-de-Ouros. Todos os cavalos preferidos e seuscavaleiros foram tragicamente tragados pela en-chente do ribeirão. Badu salvou-se abraçado, numsono pesado, ao pescoço do burrinho, cuja experi-ência e calma, frutos da idade, não permitiram quese desorientasse na confusão da travessia. Franco-lim também se salvou porque conseguiu agarrar-seà cauda do cauteloso animal. Badu foi entregue,dormindo ainda, à porta de casa. Entre outros sen-tidos, é evidente a alegoria da prudência e da sabe-

doria.

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Traços Biográficos de Lalino Salãthielou a volta do Marido Pródigo

Aventuras de um mulatinho irresponsável, sim-pático e trapaceiro. Querido de muitos e odiado dealguns. Abandona os serviços de construção da es-trada entre Belo Horizonte e São Paulo para conhe-cer mulheres de folhinha e gozar a vida na Capital.Por isso, vende, de modo reticente, sua bela esposaMaria Rita ao espanhol Ramiro. Seis meses depois,acabado o dinheiro da venda, ei-lo que retorna acasa. O espanhol o afugenta. Estando em época deeleições, Eulálio de Sousa Salãthiel consegue em-prego de cabo eleitoral com o Major Anacleto.Graças às suas artimanhas, o Major liquida o ad-

 versário e expulsa, por arrumação do mesmo cabo,a colônia espanhola do lugar. Assim, Lalino recon-quista Maria Rita, que nunca o deixara de amar.Trata-se de uma ironia bem humorada das oscila-ções interesseiras das convicções políticas do inte-rior. A narrativa aproxima-se da novela picaresca,isto é, sua trama decorre das andanças e da volubi-lidade de um malandro simpático.

Sarapalha

Conto sobre os efeitos morais da maleita: doiscaboclos, Primo Ribeiro e Primo Argemiro, passamos dias sentados junto a um cocho emborcado, es-perando os momentos de tremedeira e desvario. Afazenda está deserta: além dos dois solitários, so-brou apenas a negra Ceição e um cachorro magrochamado Jiló. Luísa, a esposa do Primo Ribeiro, fu-giu com um vaqueiro que aparecia de tempos emtempos. Como alívio para a tragédia passada, nãocessa de pedir ao primo que reconte a história dodiabo, o qual, sob forma de moço bonito, fugiucom uma moça rio-abaixo. Em meio às conversas,Argemiro acaba por confessar que viera morarcom o primo por amor de sua esposa, apesar dorespeito que afirma ter mantido. Primo Ribeiro ex-pulsa-o de sua companhia. A sezão ataca Argemirono momento em que está deixando o companheirode desgraça. A linguagem do conto treme com aspersonagens. Invenção lingüística das profundezasdo universo psicológico de pessoas vencidas peladesolação.

Duelo

Turíbio Todo, ex-seleiro de profissão, foi pes-car e avisou a mulher, Dona Silivana, que pernoita-ria na casa do primo Lucrécio, no Dêcámão, paratentar o pesqueiro das Quatorze Cruzes. Teve másorte e mudou de idéia: voltou no mesmo dia, de-parando com a esposa em amores com o ex-militarCassiano Gomes, de grande pontaria e notável ha-bilidade com as armas. Fingiu então que não volta-ra. Retomou na manhã seguinte, preparou uma

 viagem, e, no outro dia, foi espreitar a casa de Cas-siano Gomes. Meteu-lhe, pelas costas, um balaço

bem na nuca. Soube depois que o alvejado era Le- vindo Gomes, irmão do agressor e muito parecidocom ele. Sua viagem programada tornou-se fuga,porque Cassiano Gomes, logo após o enterro do ir-mão inocente, pôs-se em busca de vingança. Apóscinco meses e meio de fuga cansativa, Turíbio Todoatravessa o Paraopeba e vai para São Paulo. Cas-siano Gomes não atravessa o rio e retoma para aVista Alegre, onde se reencontra com a mulher doperseguido. Descansa, consulta um boticário, dequem sabe da precariedade do coração, e apressao recomeço da caçada. Faz, porém, repouso invo-

luntário no Mosquito, um povoado perdido e longe

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de toda parte. Na beira da morte, auxilia o capiau-zinho Timpim Vinte-e-Um, que, por agradecimen-to, jura cumprir sua vingança. Dona Silivana enviaa Turíbio Todo a notícia da morte do ex-amante.Quando ele volta, dono da vitória e com planos delevar a esposa para a cidade, Timpim Vinte-e-Um oliquida, contra a própria vontade, com uma garru-cha de dois canos. Alegoria do destino: enquantoos dois se perdem na busca de um fim, algo supe-rior a ambos dispõe o contrário.

Minha gente

O narrador conta liricamente sua viagem e es-tada na fazenda Saco-do-Sumidouro, do tio Emílio.Ao desembarcar do trem, encontra com Santana,inspetor de ensino e amante do xadrez. José Mal-

 vino é o guia que fala dos costumes mineiros e in-terpreta a natureza. Ao fim da tarde, Santana tocapara os Tucanos, e o narrador vai ter com o tio e aprima Maria Irma, sua namorada de infância. Re-nasce a paixão. Maria Irma mantém-se reticente,misteriosa. Bento Porfírio, empregado da fazenda,desgraça-se pelo vício da pesca: deixou de conhe-cer a de-Lourdes, filha do Agripino do Pau Preto,por causa de uma pescaria no Touno Tombo. A de-Lourdes casa-se com Alexandre, de alcunha Xan-drão Cabaça. Porfírio, que ressentiu a perda damoça, desposa Bilica, de raiva e sem amor. Man-tém encontros fortuitos com a de-Lourdes. En-quanto isso, tio Emílio empenha-se na política; e onarrador, na conquista da prima. Numa pescaria,quando Bento Porfírio fala ao narrador da bobeirado marido da amante, eis que surge o mencionadoque, dominado pelo ódio, assassina o amante daesposa com uma foice. O moleque Nicanor, tam-bém da fazenda, tem oito anos e sabe pegar, emcampo aberto, qualquer montaria, sem cabrestosnem milho, só com a esperteza natural. O narrador

 visita tio Ludovico, nas Três Barras, para esquecera prima. Realizam-se as eleições: vitória do tioEmílio (partido João-de-Barros). Retorno ao Saco-de-Sumidouro. Maria Irma apresenta-lhe Arman-da, por quem se apaixona e com quem se casa. Ma-ria Irma está noiva e desposará Ramiro Gouvêia,“dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom”. Paródia (entre sentimental e irônica)das estórias de amor com final feliz (para os da ca-sa grande), como pretexto para a documentaçãodos infortúnios da roça.

São Marcos

Calango-Frito é o povoado das maiores bruxa-rias: Nhá Tolentina enriquece com trabalhos e des-pachos: a cafua de João Mangolô vive repleta declientes. Até o menino Deolindinho obteve feitiçocontra os cóques do professor. Dona Cesária atua-

 va em calungas de cera. Mas o narrador José (Izé),embora supersticioso, não acredita em feitiçaria.Em suas visitas domingueiras ao mato das TrêsÁguas, passa rente à cafua de João Mangolô ezomba sempre de sua arte e de condição. Uma vez,a caminho do passeio habitual, cujo fim era apenasobservar os miúdos movimentos e as cores da na-tureza, topou com o Alísio Manquitola, que, espan-tado com o fato de o saber conhecedor da oraçãomágica de São Marcos, narra-lhe casos sobre osterríveis efeitos e poderes da reza.

Finda a longa prosa — que envolveu o Gestalda Gaita, o Compadre Silivério, o Tião Tranjão, oCypriano, o Filipe Turco e outros —, o narradorembrenha-se no mato e absorve-se na contempla-ção da natureza. Vai recordando o desafio poéticoque vinha travando com um desconhecido a quechamou “Quem-Será”: os versos eram escritos,sem que os autores se defrontassem, nos gomos debelíssimos bambus. Embora curioso, deixou para a

 volta a surpresa dos últimos versos do anônimoadversário, envolvendo-se cada vez mais com apoesia de lagoa, das flores, das árvores, dos pássa-ros, das aranhas. De repente, ficou cego, semnenhum sintoma de doença. Desespera-se. Mas osruídos e os cheiros do mato, as vibrações dos ven-tos e os animais orientam-no. Irritado com a demo-ra da luz, profere, com raiva, a reza de São Marcos.O seu ânimo se transfigura, e ele avança obstinadonuma só e precisa direção. Os ruídos tornam-sepouco a pouco mais familiares. Súbito, arrebentafurioso dentro da casa do feiticeiro Mangolô e, aoesganá-lo em cega fúria, torna a enxergar. O negro

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 velho havia amarrado, por brincadeira vingativa,uma tira nos olhos do retrato do passante zomba-dor. A essência do conto não é a bruxaria ou o fei-tiço propriamente, a não ser aquele das palavras.Trata-se, em rigor, de um poema de homenagemao conhecimento estético (sensual/sensível) do uni-

 verso. A cegueira do narrador é pretexto de que se vale o autor para pôr em uso outros sentidos alémda visão.

Corpo Fechado

Enquanto bebem cerveja, o médico de Laginhadiverte-se com os casos de Manuel Fulô, que tinhaem casa um rato enjaulado para o adestrar na ami-zade com um gato de rajas. O lugar sempre foi de

gente brava: José Boi, Desidério, Miligido, Dêjo(Adejalma). Mas um por vez. Agora quem manda éo Targino, cuja insolência o levou a reunir seu ban-do de jagunços para comer carne com cachaça emfrente da igreja em plena sexta-feira da Paixão.Manuel Fulô contava ao doutor como aprendera,com os ciganos, a arte de trapacear no comércio decavalos e o modo com que aplicou o ofício àquelesde quem o aprendeu, quando entra no bar o valen-tão Targino para avisá-lo que, no dia seguinte ia seencontrar com a noiva dele.

Depois de um pânico atormentador, Manuel

Fulô obtém um feitiço de Antonico das Pedras-Águas em troca de sua mula Beija-Flor, orgulho epaixão do proprietário. De corpo fechado, ManuelFulô enfrenta o bandido: para espanto de todos, re-talha-o com a faquinha do tamanho de um canive-te. Casa-se com a das Dor e, de vez em quando, to-ma emprestada a mulinha para ostentar o novoposto de valentão.

Conversa de bois

A irara Risolêta presenciara a tragédia e con-tou-a, em troca da liberdade, a Manuel Timborna,que a relata, pelo prazer de uma boa prosa, ao nar-rador da novela, que, em nome da poesia, no-laapresenta com espanto e minúcia. O carro-de-boisde Agenor Soronho transporta, mal acondicionadoe sacolejando sobre uma carga de rapaduras, ocorpo do pai de Tiãozinho, o guia dos bois de So-ronho. O menino chora. Sofre também pelo clima,pelo cansaço e pelos maus tratos do carreiro Age-nor, que mantinha relações misteriosas com suamãe durante a doença do pai. As quatro parelhasde bois conversam enquanto puxam: Buscapé eNamorado; Capitão e Brabagato; Dansador eBrilhante; Realejo e Canindé. O boi Brilhante vaicontando aos demais a estória do boi Rodapião,cuja morte se deveu à assimilação dos processosmentais dos homens. Tiãozinho, sonolento e vaga-roso, recorda a morte do pai e a de Didico, que aosdez anos caíra diante do carro, e os bois limitaram-se a comer apenas as roupas do corpo dele.

Ao entardecer, na ladeira do Morro-do-Sabão,Agenor Soronho deparou com o carro da Estiva,carreado por João Bala, espatifado pela queda nasubida da ladeira. Agenor consola o companheiro,mas apenas o deixa, galga rapidamente a subidapara demonstrar ao Tiãozinho que era um carreirode verdade. Vitorioso da subida, Soronho coloca-se na dianteira do carro, junto aos bois, e dorme.Os bois percebem que o homem-do-pau-compri-do-com-o-marimbondo-na-ponta corre perigo, ecombinam derrubá-lo. Tumultuam-se voluntaria-mente. Agenor Soronho cai. A roda do carro passasobre seu pescoço e o leitor fica sem saber se mor-reu dormindo ou se acordou para saber que iamorrer. Fábula sobre a justiça e a harmonia docosmos.

A Hora e vez de Augusto Matraga

Augusto Estêves, filho do Coronel AfonsãoEstêves, das Pindaíbas e do Saco-de-Embira - cha-mado No Augusto — é um bandoleiro das maioresperversidades. Maltrata a todos e faz sofrer a es-posa, Dona Dionóra. Ignora a filha Mimita. Andaem descrédito político e em declínio econômico.Dona Dionóra foge com Ovídio Moura, levando afilhinha. Ao preparar a perseguição, Nhô Augustosabe, através de Quim Recadeiro, que todos osseus capangas passaram para o comando do Major

Consilva. Matraga resolve ir ter com eles antes de

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matar Dionóra e Ovídio. Mas é espancado e marca-do com ferro de gado.

No exato momento do homicídio completo, re-cobra as forças e atira-se no despenhadeiro dorancho do Barranco. Tomam-no por morto. Toda-

 via, no outro lado do mundo, quer dizer, lá no fun-do do despenhadeiro, é socorrido por um casal denegros velhos: a mãe Quitéria e o pai Serapião. Sa-rado, porém com seqüelas deformantes, leva osprotetores para o povoado do Tombador. Muda de

 vida e de alma: trabalha o dia todo, reza com gran-de devoção, ajuda a quantos pode, na espera deobter o céu. Mais de seis anos se passaram, quan-do surge o Tio da Thereza, que o informa da sorteda ex-família: a esposa vive feliz com Ovídio Mourae preparam o casamento; a filha fora enganada porum cometa (mascate) e caiu na perdição. Quim Re-cadeiro, capanga tido como covarde, morreu na de-fesa da honra do ex-patrão.

Matraga resigna-se e sofre saudades. Por essaépoca, aparece Joãozinho Bem-Bem, jagunço delarga fama. Matraga admira suas as armas e seubando (Flosino Capeta, Tim- Tatu-tá-te-vendo, Ze-ferino, Juruminho, Epifânio), mas recusa acompa-nhá-los ou receber favor deles. Pouco depois, partesem destino num jumento. No arraial do Rala-Cô-co, encontra Joãozinho Bem-Bem prestes a dizimaruma família, em cumprimento de vingança, Matra-ga intervém em nome da justiça. Liquida diversoscapangas e morre em duelo singular com o famoso

 jagunço Joãozinho Bem-Bem,que tomba um poucoantes.

IMPORTÂNCIA DE MATRAGANa ocasião do lançamento, dois críticos mani-

festaram-se de forma definitiva sobre o livro: Álva-ro Lins e Antonio Candido. Embora houvesse umapequena divergência entre eles, ambos concorda-ram em que “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, odesfecho do volume, era a narrativa mais bem rea-lizada do volume. Apesar disso, Álvaro Lins de-clarou preferir “Conversa de Bois”, o conto deabertura da obra. Antonio Candido demonstroupreferência absoluta pela estória de Matraga, in-cluindo-a entre os dez ou doze melhores contos dalíngua portuguesa.

Desde então “A Hora e Vez de Augusto Matra-ga” tem recebido atenção especial dos leitores edos críticos. Sua estória foi filmada com sucessopor Roberto Santos, em 1965, com Leonardo Villarno papel central. Em 1986, foi adaptada para oteatro por Antunes Filho. No conjunto da obra deGuimarães Rosa, “Matraga” desempenha papelfundamental, tanto por razões temáticas quantopor questões formais. Do ponto de vista temático,atribui dimensões metafísicas ao motivo da bandi-dagem, através do qual se investiga o conceito do

bem e do mal, de Deus e do diabo, da guerra e dapaz, do amor e do ódio. Essas preocupações se-riam retomadas, ampliadas e aprofundadas maistarde em Grande Sertão: Veredas (1956), a obra ca-pital do autor. Formalmente, “Matraga” representao primeiro exercício realmente genial do autor comos dispositivos clássicos da narrativa tradicional,com princípio, meio e fim. O conto, assim como “OBurrinho Pedrês” e “Duelo”, também de Sagarana,restaura a efabulação romanesca e um certo for-malismo lingüístico abandonados pelos modernis-tas da primeira e da segunda fase. Além do sus-pense bem organizado, o enredo apresenta finalsurpreendente e compatível com a psicologia daspersonagens. A linguagem do narrador aproxima-se do universo moral do protagonista, criando per-feita harmonia entre os discursos de um e de outro.

Enfim, a estória decorre muito naturalmente dotemperamento de Matraga, o qual se vincula deforma poderosa com a paisagem e suas transfor-mações. Nesse sentido, convém destacar a conso-nância entre o desenvolvimento das paixões doprotagonista e o ritmo das estações do ano: foramas maitacas que lhe comunicaram a chegada de suahora e de sua vez, as quais só chegaram com o fimdas águas. Com efeito, depois da migração dasmaitacas, Matraga abandona seu refúgio de ascetano povoado do Tombador e parte para o duelo fi-nal. O próprio Guimarães Rosa preferia este textoaos demais de Sagarana. Num depoimento sobretodos os contos do volume, escreveu o seguinteacerca de “Matraga”:

História mais séria, de certo modo síntesee chave de todas as outras, não falarei sobre oseu conteúdo. Quanto à forma, representapara mim vitória íntima, pois, desde o começodo livro, o seu estilo era o que procuravadescobrir.

AmbigüidadesEm linhas gerais, “A Hora e Vez de Augusto

Matraga” é a estória de um homem mau que, de-pois de mutilado para a prática da maldade, resol-

 veu se tornar bom. Na busca do bem, revela a mes-ma obstinação que aplicava no exercício do mal,pois costumava exclamar: “P’ra o céu eu vou, nemque seja a porrete!” Na verdade, Matraga é um ho-mem dominado pelo instinto guerreiro e não pelomisticismo. Sua essência é de guerreiro, num pe-ríodo em que a guerra não se justifica mais comoprática corrente entre os homens, como ocorrianos tempos heróicos da Ilíada ou de algumas fasesda Idade Média. Não obstante, há reminiscênciasdesse mundo no sertão mineiro, representadaspelos cavaleiros itinerantes do bando de JoãozinhoBem-Bem, com os quais Matraga se identifica mes-

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mo estando no apogeu de sua ascese em busca daquietude, da bondade, da contemplação e de Deus.

A guerra e a ação atraíam Matraga de formaincontrolável. Por isso, entrega-se a elas, sob o pre-texto de que, ao liquidar um bando inteiro, estavapraticando o bem. Nunca se sentira atraído pormulheres, mesmo quando esteve casado com DonaDionóra e se entregava a desordens com mulheresda vida. Preferia sempre a multidão dos homens,em que pudesse demonstrar sua superioridade mas-culina. Por isso, sentiu-se irresistivelmente atraídopelo jagunço Joãozinho Bem-Bem. Perto dele, esta-ria sempre ao lado da força bruta, do poder essen-cialmente masculino, que se sobrepunha a todas asoutras formas de poder. Matraga era, enfim, o tipodo valentão que apalpava os braços fortes de umguerreiro e admirava a envergadura das costas deoutro.

Joãozinho Bem-bem, esse então, é muito maisambíguo que Matraga: pois, sendo o mais temidodos valentões, usava lenço azul no chapéu de cou-ro; tinha sorriso bonito e mansinho de moça. Quan-do se tratou de confiscar umas mulheres, fez ques-tão de declarar que não as queria para si (“mulhernão me enfraquece”), mas sim para os seus ho-mens. Não obstante, tinha sempre um capanga pre-ferido (Flosino Capeta) ao seu lado. Ao morrer, fezquestão de fazer as pazes com o seu matador, Au-gusto Matraga, pois vira nele um homem superiora si. A um homem assim não hesitava em entregara própria vida. Matraga sentia da mesma forma:matou o outro, mas sentiria o mesmo prazer em mor-rer em suas mãos.

Todavia, a estória de Matraga tem sido inter-pretada também como a trajetória de um encontrocom Deus através da guerra. Segundo essa pers-pectiva, o protagonista, no final, encontra o queprocurara durante todo o período de ascese místi-ca no arraial do Tombador. Assim, Joãozinho Bem-Bem seria uma espécie de instrumento para Matra-ga obter o céu.

Os nomes das personagens devem ser obser- vados com cautela neste conto. O nome do chefedo bando, Joãozinho Bem-Bem, com quem Matra-ga duela, poderia indicar o seu propósito de impor

 justiça no sertão, pois ele julgava que só matava emnome da paz. Por outro lado, ele não se separavade um bandido chamado Flosino Capeta. Isso podesignificar que, além do bem, trazia consigo o mal.Quanto a Matraga, convém observar que o prota-gonista recebe esse nome somente no final, aomorrer. Em vida, ou seja, em todo o conto, ele só échamado de Nhô Augusto, que quer dizer o maior,o primeiro entre todos, ou Nhô Augusto Esteves. Oapelido Matraga, que ocorre também no título, nãoconsta de seu nome próprio. Trata-se de um epíte-to que surge com a lenda, depois de sua morte.

Estrutura narrativa“A Hora e Vez de Augusto Matraga” é um

conto longo, por isso pode ser considerado umanovela. A crítica oscila entre essas duas designa-ções, usando-as indiferentemente. Talvez seja con-

 veniente aplicar ao texto a designação de estória,termo consagrado por Guimarães Rosa para des-crever qualquer narrativa em prosa. Há quatrograndes seqüências narrativas na fábula dessa es-

tória:1. Apresentação de Matraga, numa festa de

igreja. A estrutura dessa seqüência aproxima-sedo teatro, pois é dominada pelo diálogo. O seu nú-cleo é a crueldade de Matraga contra a prostitutaSariema (Tomásia). Possui, basicamente, a funçãode caracterizar o protagonista, ressaltando seu de-sapego afetivo pelas mulheres e seu prazer em de-monstrar força e poder perante os homens. Sarie-ma, ao lado do namorado, era cobiçada por umapequena multidão. Ele a conquista sob o pretexto

de que a deseja como mulher; depois a abandonasem a possuir.

2. Nó ou intriga. O protagonista é posto à pro- va por duas provocações paralelas e equivalentes:sua esposa, Dona Dionóra, foge com Ovídio Mou-ra; Major Consilva suborna seus capangas. Matra-ga pretende punir os dois infratores: primeiro vaiacertar as contas com Major Consilva, seu rivalimediato; depois, mataria a esposa e o amante dela.Todavia, é derrotado no primeiro obstáculo queenfrenta, sendo surrado e jogado num precipício.

3. Regeneração do protagonista. Dado pormorto, Matraga muda de vida e entrega-se à salva-ção da alma. Transfere-se do Córrego do Muricipara o arraial do Tombador, onde encarna outraalma. Lá, ninguém conhecia sua verdadeira identi-dade. Todavia, trata-se de uma pseudo-regenera-ção. Impossibilitado de agredir o próximo, o pro-tagonista agride a si mesmo, numa busca afronta-da de Deus. O contato com os bandidos de Joãozi-nho Bem-Bem lhe desperta o antigo impulso. Quan-do recupera a plena força física, sai em busca de

aventura, esquecendo-se de que a guerra maior eraconsigo mesmo, no sentido de domar o próprio gê-nio, conforme lhe sugerira o padre.

4.  Viagem e duelo final. Deixando-se guiarpor um jumento, animal associado à vida de Jesus,Matraga é conduzido pelo acaso ao encontro deJoãozinho Bem-Bem, que estava prestes a dizimaruma família no arraial do Rala-Coco. Sob o pretex-to de proteger os indefesos, Matraga intervém na

 justiça do jagunço, lutando sozinho contra o seubando. Depois de matar dois e afugentar os demais,

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duela com o chefe, numa luta alegórica que seaproxima de um bailado ou de um ritual sagrado.Primeiro morre seu Joãozinho Bem-Bem; depois,Augusto Esteves Matraga.

Tonalidade épica“Matraga” é, essencialmente, um texto épico,

no sentido de explorar o universo guerreiro do ser-tão, ao lado de uma vertente mística, também pró-pria desse espaço cultural. Como em todo textoépico, há nesse conto descrições fortes da paisa-gem, com a participação dos bichos, dos pássarose das plantas. Vindo de cima, o ponto de vista oufoco narrativo é em terceira pessoa, onisciente,absoluto, pois domina todos os detalhes da estória.A viagem de Matraga do Córrego do Murici para oarraial do Tombador é exemplar nesse sentido:

Foram norte a fora, na derrota dos crimi-nosos fugidos, dormindo de dia e viajando denoite, como cativos amocambados, de qui-lombo a quilombo. Para além do Bacupari, doBoqueirão, da Broa, da Vaca e da Vacaria, doPeixe-Bravo, dos Tachos, do Tamanduá, daSerra-Fria, e de todos os muitos arrais jazen-tes na reta das léguas, ao pé dos verdes mor-ros e dos morros de cristais brilhantes, entreas varjarias e os cordões-de-mato. E deixa-

 vam de lado moendas e fazendas, e as estra-das com cancelas, e roçarias e sítios de mon-

 jolos, e os currais do Fonseca, e a pedra qua-drada dos irmãos Trancoso; e mesmo asgrandes casas velhas, sem gente mais moran-do, vazias como o seus currais. E dormiamnas brenhas, ou sob as árvores de sombra dascaatingas, ou em ranchos de que todos sãodonos, à beira das lagoas com patos e daslagoas cobertas de mato. Atravessaram o Riodas Rãs e do Rio do Sapo. E vieram, por pi-cadas penhascosas e sendas de pedregulho,contra as serras azuis e as serras amarelas,sempre. Depois, por baixadas, com outeiros,terras mansas. E em paragens ripuárias, masevitando a linha dos vaus, sob o vôo das gar-ças, — os caminhos por onde as boiadas vêm,beirando os rios.

Outro componente emblemático das epopéias éo desfile dos guerreiros, presente em todas asgrandes realizações do gênero épico, desde a Ilíadaaté Os Lusíadas. A chegada do bando de JoãozinhoBem-Bem no arraial do Tombador organiza-sedentro dos padrões das paradas heróicas, sendotalvez a passagem mais empolgante do conto:

O bando desfilou em formação espaçada,o chefe no meio. E o chefe — o mais forte emais alto de todos, com um lenço azul enrola-do no chapéu de couro, com dentes brancoslimados em acume, de olhar dominador e tos-se rosnada, mas sorriso bonito e mansinho demoça — era o homem mais afamado dos doissertões do rio: célebre do Jequitinhonha aSerra das Araras, da beira do Jequitaí à barrado Verde Grande, do Rio Gavião até nosMontes Claros, de Carinhanha até Paracatu;maior do que Antônio Dó ou Indalécio; oarranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, opega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, oparte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arra-sa: Seu Joãozinho Bem-Bem.

Oralidade estilizadaComo todos os textos de Guimarães Rosa, “A

Hora e Vez de Augusto Matraga” pode ser enten-dido como expressão do regionalismo modernista,desde que se entenda essa denominação numsentido especial e aberto. Não há dúvida de que oconto focaliza aspectos específicos do interior mi-neiro: fala, fauna, flora, geografia, tradições e ma-trizes culturais, como o banditismo e o misticismo.Mas a narrativa supera o pitoresco local desses as-pectos e apresenta uma situação de caráter univer-sal, capaz de interessar e comover qualquer pessoade qualquer país. Esse tipo de literatura, viu-se, échamado regionalismo universalizante.

Um dos traços mais ricos do regionalismo deGuimarães Rosa consiste na invenção lingüísticade seus textos, propriedade muito viva em “Matra-ga”. Rosa é um verdadeiro poeta da prosa, no sen-tido de explorar a sensorialidade plurissignificativados vocábulos, ampliando ao máximo sua cargaemotiva e seu poder de sugestão. Isso pode serobservado na incorporação da fala sertaneja aotexto literário, depois de devidamente estilizadapela imaginação do escritor. Veja como exemplo deoralidade sertaneja estilizada, a abertura de “AHora e Vez de Augusto Matraga”:

Matraga não é Matraga, não é nada. Ma-traga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Co-ronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e doSaco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o ho-mem — nessa noitinha de novena, num leilão

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de atrás de igreja, no arraial da Virgem NossaSenhora das Dores do Córrego do Murici.

Este texto é poético por várias razões. Pri-meiro, porque explora a materialidade dos signos,isto é, privilegia o aspecto significante dos vocá-bulos, como a sonoridade, a sugestão cromática e opoder de estranhamento. Segundo, porque não setrata de um texto apenas informativo, mas tambémlúdico, programado para envolver sensorialmenteo leitor, estimulando a imaginação do leitor. O pe-ríodo inicial, por exemplo, não se explica pela ra-zão; trata-se de um paradoxo, de uma frase absur-da, cuja função é instaurar o mundo mágico da es-tória que se inicia. As palavras seguintes, estranhasaos ouvidos do homem citadino, reforçam essafunção, contribuindo para a criação da atmosferadesejada. Trata-se de um texto essencialmenteenumerativo, cumulativo, cujo objetivo é saturar oleitor com dados sobre a personagem, processoque acaba por obscurecer um pouco a abertura,produzindo mais uma impressão sensorial do queum entendimento racional. Esse procedimento,próprio da linguagem poética, domina a constru-ção da estória de Matraga.

Metalinguagem, oralidade e humorDe modo geral, a literatura romântica é fanta-

sista, apresenta ações inverossímeis, como, porexemplo, aquela em que Peri arranca uma palmeirado solo apenas com a força dos braços. Evidente-mente, trata-se de uma tarefa impossível, mas onarrador de O Guarani esforça-se por convencer o

leitor de veracidade do fato, dando explicaçõespara que o leitor admita a monumentalidade daação. Ao contrário dos romances de aventura deAlencar, “A Hora e Vez de Augusto Matraga” éuma narrativa que se apresenta como absoluta-mente verossímil, cheia de conexões com a reali-dade, apesar de ser também meio fantástica e do-minada por uma forte atmosfera simbólica. Mesmoadmitindo os símbolos e alegorias do texto, a im-pressão que permanece é a da vida como ela é. Nãoobstante, há lances metalingüística em que o nar-rador procura desmistificar a impressão de verda-

de, fazendo questão de ressaltar a ficcionalidade dotexto, como se observa na seguinte passagem:

E assim se passaram pelo menos seis ouseis anos e meio, direitinho deste jeito, sem ti-rar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porqueesta aqui é uma estória inventada, e não é umcaso acontecido, não senhor.

Esta declaração em favor da ficção num textode tamanho poder realista acaba produzindo efeitohumorístico, traço importante no estilo de “A Hora

e Vez de Augusto Matraga”. Há diversas passagens

humorísticas na novela e todas decorrem da imita-ção da linguagem falada, isto é, da oralidade ex-pressiva, como se observa também neste período:“E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já queassim foi.”

LEITURA E EXERCÍCIOS

Leia o texto seguinte, para responder às questões 1 e2, extraídas da prova da PUC-92.

Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhãem que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceuo mundo: um sol talqualzinho a bola de enxofre do fundodo pote, marinhava céu acima, num azul de água sempraias, com luz jogada de um para o outro lado, e umdesperdício de verdes cá embaixo — a manhã mais bo-nita que ele já pudera ver.

Estava capinando, na beira do rego.

De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bandode maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, es-

tralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, maisbaixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhan-tes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de umcoro.

Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gri-tos e em fileiras mais juntas. `

— Uai! Até as maracanãs!

E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas.E não se acabavam mais. Quase sem folga: era uma re-

 voada estrilando bem por cima da gente, e outra bro-tando ao norte, como pontozinho preto, e outra — grãode verdura — se sumindo no sul.

— Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tan-tos!

E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchostimpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra... Emesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um ca-sal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa:os únicos que interromperam, por momentos, a viagem,foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabeci-nhas amarelas, que não levam nada a sério, e que cho-

 veram nos pés do mamão e fizeram recreio, aos pares,sem sustar o alarido — rrrl-rrril! rrrl-rrrril!...

Mas o que não se interrompia era o trânsito das gár-rulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para oque ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E ogrito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, queavançava lá atrás.

— Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que játem milho nas roças... Mas, também, como é que podiahaver um de-manhã mesmo bonito, sem as maitacas?!

O sol ia subindo, por cima do vôo verde das aves iti-nerantes. Do outro lado da cerca, passou uma rapariga.Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo docéu devia de ser mulher.

“A Hora e Vez de Augusto Matraga”, em Sagarana

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1. Sagarana, coletânea de contos, escrita por Guima-rães Rosa, enfoca o ambiente rural brasileiro e apon-ta novos rumos para a literatura modernista. Assim,a) considerando que o espaço geográfico onde se

desenrolam as narrativas de Guimarães Rosa é odo norte de Minas Gerais e o do sul da Bahia, quenovo conceito se pode ter de regionalismo naobra desse autor?

b) que características de linguagem podem ser per-cebidos nas narrativas que constituem Sagarana?

2. O trecho em questão, de Guimarães Rosa, valoriza osaspectos sensoriais, particularmente os ligados à vi-são e à audição. O escritor provoca o efeito poético,

 valendo-se de figuras de linguagem. Assim sendo,transcreva do texto, as seguintes figuras:a) Metáfora;b) Aliteração;c) prosopopéia;d) onomatopéia.

3. (UEL-PR/2004) O trabalho com a linguagem por meioda recriação de palavras e a descrição minuciosa da

natureza, em especial da fauna e da flora, são umaconstante na obra de João Guimarães Rosa. Esseselementos são recursos estéticos importantes quecontribuem para integrar as personagens aos am-bientes onde vivem, estabelecendo relações entrenatureza e cultura. Em “Sarapalha”, conto inseridono livro Sagarana, de 1946, referências do mundonatural são usadas para representar o estado febrilde Primo Argemiro.Com base nessa afirmação, assinale a alternativa emque a descrição da natureza mostra o efeito damaleita sobre a personagem Argemiro.a) “É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma

fazenda, denegrida e desmantelada; uma cerca depedra seca, do tempo de escravos; um rego mur-cho, um moinho parado; um cedro alto, na frenteda casa; e, lá dentro uma negra, já velha, que ca-pina e cozinha o feijão.”

b) “Olha o rio, vendo a cerração se desmanchar. Docolmado dos juncos, se estira o vôo de uma garça,em direção à mata. Também, não pode olhar mui-to: ficam-lhe muitas garças pulando, diante dosolhos, que doem e choram, por si sós, longo tem-po.”

c) “É de-tardinha, quando as mutucas convidam asmuriçocas de volta para casa, e quando o carapa-na mais o mossorongo cinzento se recolhem, queele aparece, o pernilongo pampa, de pés de pratae asas de xadrez.”

d) “Estava olhando assim esquecido, para os olhos...olhos grandes escuros e meio de-quina, como osde uma suaçuapara... para a boquinha vermelha,como flor de suinã....”

e) “O cachorro está desatinado. Pára. Vai, volta, olha,desolha... Não entende. Mas sabe que está acon-tecendo alguma coisa. Latindo, choramingando,chorando, quase uivando.”

4. (FUVEST/2004) No conto “A hora e vez de AugustoMatraga”, de Guimarães Rosa, o protagonista é um

homem rude e cruel, que sofre violenta surra de ca-pangas inimigos e é abandonado como morto, numbrejo.Recolhido por um casal de matutos, Matraga passapor um lento e doloroso processo de recuperação,em meio ao qual recebe a visita de um padre, comquem estabelece o seguinte diálogo:

— Mas, será que Deus vai ter pena de mim, comtanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tantopecado mortal?

— Tem, meu filho. Deus mede a espora pela ré-dea, e não tira o estribo do pé de arrependido ne-nhum... (...) Sua vida foi entortada no verde, mas nãofique triste, de modo nenhum, porque a tristeza éaboio de chamar demônio, e o Reino do Céu, que é oque vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que

 você esteja com a graça de Deus, que ele não rega-teia a nenhum coração contrito.a) A linguagem figurada amplamente empregada

pelo padre é adequada ao seu interlocutor? Justi-fique sua resposta.

b) Transcreva uma frase do texto que tenha sentidoequivalente ao da frase não regateia a nenhum co-

 ração contrito.

5. (U. E. Pará/2004) Observe o trecho extraído de “Burri-nho Pedrês”, de Guimarães Rosa:

— Você é meu camarada de confiança, Franco-lim. Tem mais responsabilidade de ajudar, também...

— Isto, sim, dou meu pescoço! Em serviço dosenhor, carrego pedras, seu Major. Só peço é ordempara o João Manico me dar de novo meu cavalinho,na entrada do arraial, para não ficar feio eu, comoajudante do senhor, o povo me ver amontado nesteburro esmoralizado... sem querer com isso ofender,por ser criação de que o senhor gosta...

Considerando o seu conteúdo e o conjunto da narra-tiva da qual foi retirada, é correto dizer que:a) no momento em que se trava esse diálogo, o epi-

sódio do afogamento de alguns vaqueiros no cór-rego já havia acontecido.

b) a solicitação de Francolim para destrocar a mon-taria não será acatada pelo Major Saulo.

c) o diálogo evidencia o comportamento de inde-pendência dos vaqueiros em relação ao dono dafazenda.

d) o comentário de Francolim sobre Sete de Ouros,que se assemelha ao dos outros vaqueiros, irá re-

 velar-se injusto, ao final, quando o burrico, além

de salvar Badu, irá salvá-lo, também.e) o personagem João Manico, referido por Franco-lim, é o único vaqueiro a salvar-se na travessia docórrego, por ter isso e vindo montado em Sete deOuros.

(FUVEST/2005) Texto para as questões 6 e 7

Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gumedo vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, rara-mente usado, melhor fora se jamais usado. Porque,diante de um gravatá, selva moldada em jarro jônico,dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo;e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que

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atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde,quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdoe bradá-lo — Ó colossalidade! — na direção da altu-ra?

(João Guimarães Rosa, “São Marcos”, in Sagarana)

prisco = antigo, relativo a tempos remotos.gravatá = planta da família das bromeliáceas.

6. Neste excerto, o narrador do conto “São Marcos” ex-põe alguns traços de estilo que correspondem a ca-racterísticas mais gerais dos textos do próprio autor,Guimarães Rosa. Entre tais características só NÃOse encontraa) o gosto pela palavra rara.b) o emprego de neologismos.c) a conjugação de referências eruditas e populares.d) a liberdade na exploração das potencialidades da

língua portuguesa.e) a busca da concisão e da previsibilidade da lingua-

gem.

7. Comparando-se as concepções relativas à naturezapresentes no excerto de Guimarães Rosa com as quese manifestam nos poemas de Alberto Caeiro, veri-

fica-se que, em Rosa, ..........., ao passo que, em Caei-ro, ............. .Mantida a seqüência, os espaços pontilhados podemser preenchidos corretamente pelo que está em:a) a observação da natureza provoca um desejo de

nomeação e até de invenção lingüística / o idealseria o de que os elementos da natureza valessempor si mesmos, sem nome nenhum.

b) a natureza é pura exterioridade, desprovida de al-ma/ela é um ente animado, dotado de interiorida-de e personalidade.

c) a natureza vale por seus aspectos estéticos e sim-bólicos/ela tem valor prático e utilitário, ou seja, é

 valorizada na medida em que, transformada pelatécnica, serve para suprir as necessidades huma-nas.

d) a relação com a natureza é pessoal e até íntima/ anatureza apresenta caráter hostil e, mesmo, amea-çador.

e) a natureza é misteriosa e indecifrável/ ela é porta-dora de uma mensagem mística que o homem de-

 ve decifrar servindo-se dos instrumentos da Ra-zão.

8. (FUVEST/2005) Considere os seguintes versos, quefazem parte de um poema em que Carlos Drummond

de Andrade fala de Guimarães Rosa e de sua obra:(…) ou ele mesmo [Guimarães Rosa] eraa parte de genteservindo de ponteentre o sub e o sobre

que se arcabuzeiamde antes do princípio,que se entrelaçampara melhor guerra,para maior festa?

(arcabuzeiam = lutam com arcabuzes, espingardas)

a) A luta entre Augusto Matraga e Joãozinho Bem-Bem (do conto “A hora e vez de Augusto Matraga”)apresenta, conjugados, os aspectos de guerra e defesta referidos nos versos de Drummond. Você con-corda com esta afirmação? Justifique sucintamente.

b) O conflito entre Turíbio Todo e Cassiano Gomes(do conto “Duelo”) apresenta essa mesma junção deaspectos de guerra e de festa? Justifique sucinta-mente.

RESPOSTAS1. a) Guimarães Rosa amplia os limites do regiona-lismo tradicional por duas razões principais: pelarecriação inventiva e estilizada do falar sertanejo,levando às últimas conseqüências o experimenta-lismo com a linguagem; e pela dimensão proble-matizante e metafísica que introduz em seus tex-tos, atribuindo inquietações de alto nível filosóficoa seus enredos e personagens. Dá-se o nome deregionalismo universalizante ao processo instau-rado por Rosa na literatura brasileira.

b) A renovação lingüística é uma das principais cons-tantes da literatura de Guimarães Rosa. Entre os

principais procedimentos observados em suaobra, podem-se destacar os seguintes no presentetexto:• oralidade sertaneja: “Estava capinando, na bei-

ra do rego.”;• desvios sintáticos: “...devia de ser...”;• humanização dos animais: “Um bando (...) gra-

zinava (...): — Me espera! Me espera!”;• emprego de neologismos: “talqualzinho”;• permutação de classes gramaticais: “um de-

manhã” (substantivação de uma locução ad- verbial);

• associação de som e sentido, mediante alitera-

ções e assonâncias: “grulhantes, gralhantes”;• ênfase através da repetição de palavras: “E ou-tro. Mais outro. E ainda outro...”.

2. a) Metáfora: “azul de águas sem praias” (compara-ção implícita entre o mar e o céu); “uma esquadri-lha sobrevoando a outra” (comparação implícitaentre o vôo dos pássaros e o de aviões); “chove-ram nos pés de mamão” (comparação implícitaentre a quantidade de pássaros com a quantidadede pingos da chuva).

b) Aliteração: “tinindo guizos, partindo vidros, es-tralejando de rir” (repetição intensiva das con-soantes t e r).

c) Prosopopéia: “a manhã gargalhou” (atribuição depropriedade humana a entidade não humana).

d) Onomatopéia: “grulhantes, gralhantes” (a alitera-ção imita o som emitido pelas maitacas).

3. B

Comentário:A natureza meio embaralhada, a cerração se des-

manchando, uma garça partindo... os olhos doentes as-sumindo o ambiente externo enevoando-se, ardendo, la-crimejando. A vida também se desmanchando e se esva-indo, como o rio.

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4. a) Sim, porque, como penitente, Matraga se achavadócil ao estilo sapiencial do sacerdote, marcadopela mescla de erudição e regionalismo. Por outrolado, o registro metafórico e alusivo do sacerdoteé verossímil com a função de orientador e conse-lheiro de fiéis em dificuldades. Estes, geralmente,apreciam e acatam a linguagem solene e miste-riosa da religião, o que se demonstra pelo fato de,até algumas décadas atrás, as missas serem cele-bradas em latim. Assim, o tom metafórico do pa-dre, sem se distanciar do interlocutor — pois in-corpora vocabulário oriundo de sua profissão, ade fazendeiro — marca uma distância que devehaver entre o sagrado e o profano.

b) Há mais de uma frase cujo sentido se aproximado fragmento em destaque, dentre as quais secontam as seguintes: “não tira o estribo do pé dearrependido nenhum” e “o Reino do Céu, que é oque mais vale, ninguém tira de sua algibeira”.

5. D

6. E

Com exceção da e, todas as alternativas resumempremissas do texto, que deve ser entendido como umapoética, isto é, um escrito que enumera princípios técni-cos e temas a serem adotados por um artista. A passa-gem é exclusivamente auto-referencial ou metalingüística.Nela, propõe-se a idéia de que a literatura deve se basear:

a) em vocábulos de baixa freqüência (“pouco visto emenos ainda ouvido, raramente usado”);

b) na invenção de neologismos (“drimirim”, “amor-meuzinho”, “colossalidade”);

c) na fusão do erudito com o popular (referência aplantas por seu nome corrente: “gravatá”, “an-gelim”);

d) no uso expressivo da língua (exploração da di-mensão conotativa das palavras, como em “atirapara cima cinqüenta metros de tronco e fronde”).

7.  A 

No fragmento de Guimarães Rosa, assim como naobra poética de Alberto Caeiro, verifica-se uma forte pre-sença da tópica literária da natureza. Esta, no entanto,apresenta-se de modo diferente em cada um dos autores.Segundo o texto de Rosa, o impacto causado pela obser-

 vação das formas naturais provoca no observador umimpulso incontido de “nomeação e até de invenção lin-güística”: “ao descobrir, no meio da mata, um Ange-lim(…) quem não terá ímpeto de criar um vocativo absur-

do e bradá-lo (…)”.A poesia de Alberto Caeiro, por sua vez, tem como

motivo recorrente a consideração de que o verdadeiroconhecimento das coisas se dá por meio do contato sen-sorial e não das operações da inteligência. A linguagem

 verbal seria um mecanismo que falseia a relaçnao entreaquele que sente e cada coisa que se lhe oferece aos senti-dos. Assim, “o ideal seria o de que os elementos da natu-reza valessem por si mesmos, sem nome nenhum”.

8. a) A afirmação é correta. A componente bélica estáimplícita na própria circunstância do confrontoentre Augusto Matraga e Joãozinho Bem-Bem,

caracterizado pelo desejo mútuo de extermínio. Oaspecto celebrativo decorre da configuração ale-górica dos movimentos das personagens, que su-gerem uma dança dramática. Some-se a isso a no-ção de que a luta entre ambos é marcada tanto pela

discórdia quanto pela concórdia.

b) No caso do conto “Duelo”, não ocorre confluênciaentre a idéia de guerra e de festa. A perseguição em

si já funciona como indicação exclusiva de guerra.Não há a celebração festiva, porque a relação en-tre Turíbio Todo e Cassiano Gomes é de puro ódioe discórdia, sem abrir espaço para a identidade decontrários que está presente na luta final de João-zinho e Augusto, em “A hora e vez de AugustoMatraga”.

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