na medida do tempo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBAMESTRADO EM FILOSOFIA
A MEDIDA DO TEMPO: INTUIO E INTELIGNCIA EMBERGSON
Por Geovana da Paz Monteiro
Salvador/BA2008
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GEOVANA DA PAZ MONTEIRO
A MEDIDA DO TEMPO: INTUIO E INTELIGNCIA EMBERGSON
Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao em filosofia da UFBA, como requisito
parcial para obteno do ttulo de mestre, sob aorientao do professor Dr. Olival Freire Jnior eco-orientao do professor Dr. Joo Carlos SallesPires da Silva.
Salvador/BA2008
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Monteiro, Geovana da PazM775 A medida do tempo: intuio e inteligncia em Bergson / Geovana da PazMonteiro. Salvador, 2008.
110 f.
Orientador: Prof. Dr. Olival Freire Jnior
Co-orientador: Prof. Dr. Joo Carlos Salles Pires da SilvaDissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Filosofia e Cincias Humanas, 2008.
1. Filosofia Francesa. 2. Intuio. 3. Inteligncia. I. Bergson, Henri, 1859-1941.
II. Freire Jnior, Olival. III. Silva, Joo Carlos Salles Pires da. IV.Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. IV. Ttulo.
CDD 194_____________________________________________________________________________
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TERMO DE APROVAO
GEOVANA DA PAZ MONTEIRO
A MEDIDA DO TEMPO: INTUIO E INTELIGNCIA EM BERGSON
Dissertao defendida em ___/___/2008, como requisito parcial para obteno do grau
de Mestre em Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Tendo como membros da
banca examinadora:
____________________________________________________
Prof. Dr. Olival Freire Jnior (Orientador) - UFBA
___________________________________________________
Prof. Dr. Joo Carlos Salles Pires da Silva (Co-orientador) - UFBA
___________________________________________________
Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva - USP
___________________________________________________
Profa. Dra. Elyana Barbosa - UFBA
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AGRADECIMENTOS
Ao professor Joo Carlos Salles Pires da Silva, pela confiana e dedicao na
realizao deste trabalho, pela sensvel orientao, apoio irrestrito e, sobretudo, por ter-
me mostrado sempre a melhor direo na filosofia.
Ao professor Olival Freire Jnior, pela orientao rigorosa e amiga, pelo apoio e
respeito reflexo filosfica.
professora Elyana Barbosa, pelas crticas e sugestes apontadas em nosso
exame de qualificao.
Aos amigos do Grupo de Estudo e Pesquisa Empirismo, Fenomenologia e
Gramtica, pelo apoio e crticas estimulantes.
A minha famlia, pela confiana e apoio incondicionais.
Agradeo por fim FAPESB Fundao de amparo pesquisa do Estado da
Bahia, pela concesso da bolsa de estudos, sem a qual este trabalho no teria sido
possvel.
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A Walter,meu av contador de histrias.
Saudades.
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...E o que mais, vida eterna, meplanejas?
O que se desatou num smomento
no cabe no infinito, e fuga evento.
Carlos Drummond de Andrade
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RESUMO
Investigar a natureza do tempo real , de acordo com Henri Bergson, perscrutar um
objeto fugidio, uma vez que, ao tentarmos apreend-lo, j se escoou em seu fluxo
contnuo. Caberia conscincia compreend-lo na passagem que lhe prpria.
Doravante, uma dificuldade se mostra ao filsofo: tempo e espao, sendo
qualitativamente distintos, aparecem, quer para a filosofia, quer para a cincia, como
faces de uma mesma moeda. O pensamento bergsoniano percebe, ento, na
espacializao do tempo a fonte de todos os falsos problemas filosficos. Seu esforo
ser marcado por uma crtica s tradicionais concepes do tempo, bem como
expresso mais radical de sua espacializao, a teoria da relatividade. Em linhas gerais,
nossa investigao se debruou sobre a dicotomia intuio/inteligncia, tendo como
reflexo imediato a contraposio entre filosofia e cincia, tema diretamente ligado
incompreenso da natureza do tempo real, de acordo com Bergson. Acreditamos que, ao
se investigar o tempo nessa filosofia, seja imprescindvel evidenciar a intuio como o
mtodo adequado apreenso da durao em vias de realizar-se, uma vez que a
inteligncia, faculdade humana diretamente ligada matria, incapaz de atingir o
mago da realidade. Com efeito, neste trabalho investigamos a natureza do tempo
vivido em oposio aos tempos medidos da fsica einsteiniana, conforme visto em
Durao e simultaneidade (1922). Nesta obra, Bergson almeja mostrar que o tempo
imediatamente percebido no equivaleria ao das frmulas e equaes da fsica, que esse
tempo mensurvel no passaria de espao, e que essa compreenso, adequada s
questes fsicas, no refletiria o tempo enquanto durao pura. Para tanto, foi
fundamental a apresentao de algumas noes bergsonianas relativas compreenso
do tempo livre de determinaes espaciais noes tais como as de simultaneidade,
movimento e multiplicidade qualitativa. Sem a pretenso de realizar um estudo
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cientfico sobre a teoria da relatividade, procuramos compreender, atravs da exegese de
Durao e simultaneidade, a interpretao filosfica levada a termo por Bergson acerca
de tal teoria. Nosso objetivo ento, ao contrrio das crticas equivocadas ao ensaio de
1922, mostrar que Bergson no pretende invalidar a teoria einsteiniana, no incorre em
erros de ordem matemtica quanto relatividade restrita. Dessa forma, acreditamos
poder sugerir que essa obra,Durao e simultaneidade, no deveria estar relegada a um
papel secundrio na compreenso do percurso filosfico bergsoniano.
Palavras-chave: Henri Bergson, teoria da relatividade, durao, intuio, inteligncia.
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RSUM
Rechercher la nature du temps rel est, daccord avec Henri Bergson, poursuivre un
objet fuyant, de tel faon que quand on essaye de lui apprendre il a dej coul dans son
flux continu. Il resterait la conscience de lui comprendre dans sa propre passage.
Dsormais, une dificulte se dvoile au philosophe : temps et espace, en tant
qualitativement distincts, ils se prsentent, soit pour la philosophie, soit pour la science,
comme des faces dune mme pice. La pense bergsonienne verra, donc, dans
lespatialisation du temps la source de tous les faux problmes philosophiques. cette
manire, son effort sera marqu par une critique des conceptions traditionnelles du
temps, ainsi que lexpression la plus radicale de son espatialisation, la thorie de la
relativit. Notre recherche sest engage sur la dualit intuition/inteligence, en ayant
comme rflexe immdiat lopposition entre la philosophie et la science, un sujet
directement li lincomprhension de la nature du temps rel, daccord avec Bergson.
Nous croyons que pour tudier le temps dans cette philosophie, soit ncessaire mettre en
vidence que lintuition est la mthode approprie lapprhension de la dure en voie
de se raliser, alors que linteligence, en tant la facult humaine directement lie la
matire, est incapable de saisir le coeur de la realit mme. En effet, dans ce travail nous
avons tudi, chez Dure et simultanit (1922), la nature du temps vcu en oposition
aux temps mesurs de la physique eisteinienne. Dans cette uvre, Bergson veut montrerque le temps immdiatement peru ne correspond pas au temps des formules et des
quations physiques, que ce temps mesurable ne serait que despace, et que cette
comprhension, propre aux questions de la physique, n appartient pas au temps comme
dure pure. Donc, il a t fondamental la prsentation de quelques notions
bergsoniennes qui concernent la comprhension du temps libre des determinations de
lespace comme les notions de simultanait, mouvement et multiplicit qualitative.
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Sans la prtention de faire une tude scientifique de la thorie de la rlativit, nous
avons cherch plutt comprendre, par lxegse de Dure et simultanait,
linterprtation philosophique entreprise par Bergson sur celle thorie. Notre objectif est
donc, au contraire des critiques quivoques addresses au essai de 1922, montrer que
Bergson ne veut pas invalider la thorie einsteinienne, quil ne commet pas derreurs
dordre mathmatique dans ce qui concerne la relativit restrainte. cette manire,
nous croyons pouvoir suggrer que cette uvre, Dure et simultanait, ne devrait pas
tre confine un lieu secondaire dans la comprhension de litinraire philosophique
bergsonien.
Mots-cls : Henri Bergson, thorie de la relativit, dure, intuition, inteligence.
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SUMRIO
Introduo.......................................................................................................................13
I. FILOSOFIA E CINCIA..........................................................................................22
3. Tempo psicolgico x Tempo matemtico...........................................................27
4. Dois tipos de multiplicidade................................................................................31
5. O movimento e a simultaneidade........................................................................35
II. DURAO EESPAO-TEMPO...........................................................................43
1. A Teoria da relatividade restrita..........................................................................43
2. A interpretao bergsoniana................................................................................49
3. A Durao e os tempos mltiplos de Einstein.....................................................53
3.1 Retardamento do tempo e contrao de Lorentz........................................54
3.2 Quebra da simultaneidade..............................................................................64
4. O Espao-Tempo: miragem da durao real.......................................................69
III. INTUIO E INTELIGNCIA...........................................................................74
3. A experincia imediata e a coao da inteligncia..............................................76
4. A intuio do movimento e o mecanismo cinematogrfico do pensamento.......81
5. A intuio da Durao.........................................................................................91
Consideraes finais........................................................................................................97
Referncias Bibliogrficas............................................................................................106
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Introduo
Repetidas vezes, Henri Bergson (1859-1941) afirma em Durao e simultaneidade
(1922) que a teoria da relatividade restrita serve confirmao de um tempo nico e ele
parece estar de fato convicto desta posio. Ora, ponto inconteste entre os estudiosos
de sua filosofia a originalidade de sua concepo do tempo como contnua criao de
novidades, a idia segundo a qual a temporalidade constituiria o tecido prprio do real,
concepo do tempo como multiplicidade, mas somente na medida em que esta
equivalha a uma heterogeneidade de ordem qualitativa. Porm, quando o momento a
ser retomado no pensamento bergsoniano o confronto com a fsica de Albert Einstein,
a sempre com bastantes ressalvas que os comentadores costumam dar algum crdito
posio do filsofo.1
Afora o terceiro captulo do livro de 1922, A natureza do tempo real, cuja
exposio acerca dos temas centrais de doutrina, tais como as noes de durao e de
conscincia, revela-se mais segura do que nunca,2 bem como a distino entre o real e o
fictcio tida como uma das mais completas,3 todo o resto do livro poderia ser esquecido,
engavetado sob a rubrica de histria da cincia, como defendem A. Sokal e J.
Bricmont4 no exemplo mais agressivo de ataque a Durao e simultaneidade. Estes
autores ressaltam os equvocos bergsonianos quanto interpretao da teoria da
relatividade, superestimando-os. Tocam superficialmente em pontos importantes do
livro, a saber, que ele tenha um interesse histrico e outro filosfico. Mas confessam1 A maioria dos comentrios feitos a Durao e simultaneidade peca por dois motivos, conforme MilicCapek: ou a interpretao de Bergson entusistica e irrefletidamente aceita ou ela passionalmentenegada. (Cf. CAPEK, M. Bergson and Modern Physics, p. 239) Segundo F. Worms, h muitos estudossobre a filosofia de Bergson que enfatizam seus erros no tocante interpretao da teoria da relatividade,entre tais o comentador destaca os de HEIDSIECK, F.Henri Bergson et la notion despace e BARREAU,H. Bergson et Einstein. propos de Dure et simultanit. (Cf. SOULEZ, P. e WORMS, F. Bergson,nota 68, p. 363)2 Cf. SOULEZ, P. e WORMS, F.Bergson, p. 191.
3 Cf. JANKLVITCH, V.HenriBergson, p. 31.4 SOKAL, A e BRICMONT, J. Reflexes sobre a histria das relaes entre cincia e filosofia: Bergsone seus sucessores, in:Imposturas intelectuais, p. 183.
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que sua anlise permanece na superfcie, voltando sua pesquisa apenas para os
equvocos. Quanto ao essencial, a filosofia, nenhuma palavra. 5
Entretanto, pensamos que o interesse histrico deDurao e simultaneidade no
deveria restringir-se ao malogro da noo de um tempo nico. Afinal, muitos fsicos
eram partidrios de tal noo, ainda poca de Einstein.6Durao e simultaneidade
registra, ao contrrio, uma minuciosa exposio das origens e fundamentos da teoria da
relatividade restrita. Alm disto, e sobretudo, trata-se de uma interpretao particular
que demanda certo domnio do pensamento bergsoniano, sem o qual muito do que
sutilmente tratado no livro poderia escapar ao leitor, assim como a prpria durao que
se escoa em seu fluxo. A questo que Sokal e Bricmont declaram deixar em suspenso
como se tratassem de algo irrelevante perante a flagrante ignorncia do filsofo
acerca da fsica einsteiniana e suas implicaes , simplesmente a questo de toda
uma filosofia, a saber, a distino imprescindvel entre o tempo quantidade, cuja teoria
da relatividade e a fsica de um modo geral fazem meno, e o tempo qualidade, a
durao propriamente dita.
Como julgamos importante compreender a inquietao do filsofo ao deparar-se
com uma teoria que faz frente s suas idias, e tambm por percebermos a relevncia da
cincia em sua obra, resolvemos no nos abster do dilogo com a fsica e investigar
ento esse dito fracasso que foi Durao e simultaneidade. Mas, ao contrrio de uma
investigao cientfica, cujo objetivo consistiria em distinguir os aspectos vlidos dos
no-vlidos na interpretao de Bergson para a teoria da relatividade,7 nosso trabalho
5 Ns estamos de acordo quanto ao interesse histrico deDurao e simultaneidade, como exemplo, emtodo caso, da maneira como um filsofo clebre pode se equivocar a respeito da fsica, em virtude deseus preconceitos filosficos. Quanto filosofia, Durao e simultaneidade levanta uma questointeressante: em que medida a concepo de tempo que Bergson tinha pode se conciliar com arelatividade? Deixaremos esta questo em suspenso, contentando-nos em sublinhar que a tentativa deBergson malogrou completamente. (SOKAL, A e BRICMONT, J. Reflexes sobre a histria dasrelaes entre cincia e filosofia: Bergson e seus sucessores, in:Imposturas intelectuais, p 183)
6 H. Lorentz e H. Poincar, por exemplo. (Cf. PATY, M. La physique du XXe sicle, p. 12)7 Tal como a anlise empreendida por Milic Capek, que tenta a todo custo recuperar aspectos da filosofiabergsoniana supostamente compatveis com teorias fsicas posteriores teoria da relatividade e, antes,
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tem por diretriz as implicaes filosficas condensadas naquele texto, tais que, segundo
pensamos, encontram-se em conformidade com o conjunto da obra bergsoniana. A
leitura deste texto nos permitiu perceber a distino, presente j desde o Ensaio sobre
os dados imediatos da conscincia (1889), entre o tempo qualidade e o tempo
quantidade. Uma distino de tal ordem, primeira vista, nos conduzia a admitir a
existncia de duas realidades, uma contnua, ininterrupta e, portanto, sempre seguindo
contornos imprevisveis, e outra passvel de mensurao, previamente dada e
discernvel em suas menores partes. Mas Bergson se disps a revelar que tal ciso seria
decorrente de uma confuso entre duas ordens da experincia; portanto, um corte
meramente fictcio. Caber mostrar, ento, que o tempo medido corresponderia ao
espao, este sim passvel de medio. E ao tempo real, a durao, caber restituir-lhe a
realidade, uma vez que a durao seja a prpria realidade.
Na nota para a stima edio de Durao e simultaneidade encontramos o
seguinte comentrio de duard le Roy: eu poderia responder a Einstein que ele mesmo
no entende bem a posio de Bergson. Mas preciso conhecer esta ltima
plenamente.8Nosso percurso amparou-se por tal observao: conhecer plenamente as
idias de Bergson acerca da teoria da relatividade restrita. Optamos por interpretar o
livro de um ponto de vista filosfico, no como um artigo cientfico. Afinal, trata-se de
um filsofo versado em cincias, no o contrrio, muito embora no tenhamos
descartado a posio de seus crticos.
J no prefcio, Bergson deixa explcita sua inquietao e tambm seu objetivo
de compreender a teoria einsteiniana. Assim, ele nos confessa: era um projeto
exclusivamente pessoal. Queramos saber em que medida nossa concepo da durao
era compatvel com as vises de Einstein sobre o tempo.9 Sua revelao nos soou
com a prpria teoria de Einstein. (Cf. CAPEK, M.Bergson and Modern Physics, p. 238-256)8 Cf: BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. IX.9 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 01.
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como uma preocupao. Se no projeto bergsoniano filosofia e cincia no deveriam
necessariamente se excluir, mas de certa forma se completar, o objetivo do ensaio de
1922 seria ento conciliar a noo filosfica de um fluxo temporal universal aos novos
rumos que a fsica tomava.10 A idia da durao como fluxo qualitativamente mltiplo
embora quantitativamente nico, conformava-se com a noo clssica desse tempo
universal. Mas era justamente neste ponto que ela tocava a teoria da relatividade.
Segundo Einstein, o tempo no poderia ser universal, portanto, j no poderamos mais
falar no tempo, mas em tempos prprios a cada sistema de referncia. Para Bergson
esta multiplicidade quantitativa era inconcebvel. Sua noo de durao aquiescia mais
ao senso comum que cincia de Einstein, enquanto esta se constituiria como
totalmente contrria nossa experincia imediata. Porm, era preciso compreender a
significao filosfica da reflexo de Einstein; e, ao faz-lo, o filsofo chega
concluso de que as teses de Einstein poderiam confirmar a noo comum de um tempo
nico.11 O objetivo ltimo, portanto, deDurao e Simultaneidade era anunciado: [...]
esclarecer, aos olhos do flsofo, a teoria da relatividade.12Quem seria o filsofo seno
o prprio Bergson?
Eis ento que a 06 de abril de 1922, Albert Einstein se encontra frente aos
intelectuais franceses. Na platia, um admirador confesso de sua obra: Henri Bergson.
Em interveno feita a Einstein, o filsofo resume os argumentos que apresentaria mais
10 Isso fica evidente na seguinte passagem: Nossa admirao por esse fsico [Einstein], a convico deque ele nos trazia no s uma nova fsica, mas tambm certas maneiras novas de pensar, a idia de quecincia e filosofia so disciplinas diferentes mas feitas para se completar, tudo isso inspirava nosso desejoe impunha-nos at o dever de proceder a uma confrontao. (BERGSON, H.Durao e simultaneidade,
p. 01)11 No s as teses de Einstein no pareciam mais contradizer a crena natural dos homens num Temponico e universal, como a confirmavam e a acompanhavam de um comeo de prova. Seu aspecto
paradoxal devia-se simplesmente a um mal entendido. Parecia ter-se produzido uma confuso, certamenteno no prprio Einstein, nem entre os fsicos que faziam uso fsico de seu mtodo, mas entre algumas
pessoas que erigiam essa fsica em filosofia, sem nenhuma modificao. (BERGSON, H. Durao esimultaneidade, p. 02)12 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 02.
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tarde em seu estudo,13defendendo a compatibilidade entre a teoria fsica e a noo de
um tempo nico e real. Contudo, ao que parece, Bergson no foi bem compreendido por
Einstein.14 E os obstculos impostos comunicao entre o fsico e o filsofo no
ficaram restritos ao nvel lingstico, mas sobretudo ao nvel conceitual. Einstein no
compreendeu o contexto no qual se inseria a interpretao bergsoniana, ou talvez no o
houvesse aceitado, haja vista tratar-se de um pensamento com fortes pretenses
metafsicas. Esse entrave comunicativo se estabeleceu tambm com os outros
interlocutores.15 O dilogo entre as duas comunidades no se deu facilmente,
obviamente no por conta de incapacidade de compreenso da cincia fsica por parte
da comunidade filosfica. Afinal, os filsofos da poca, de um modo geral, possuam
tambm uma razovel formao cientfica. Bergson um exemplo disto.
necessrio compreender bem a posio do filsofo.16 O fato que sua
interpretao se apega ao percebido, isto , ao vivido, que seria negligenciado pela
teoria da relatividade. possvel que o debate com Einstein no tenha revelado um
simples choque cultural, e muito menos que filosofia e cincia sejam incomunicveis
entre si. O ambiente daquele encontro talvez tenha sido muito mais propcio rivalidade
dos sistemas e egos do que a um sincero desejo de intercmbio cientfico. Nenhum
desses filsofos quer ou pode admitir que uma teoria fsica provoque uma revoluo na
filosofia.17 Porm, no caso de Bergson isto se torna mais manifesto, pois, ainda que
aceitasse uma revoluo no conceito de tempo (e ele de fato o faz), no poderia admitir13 O debate teria acontecido alguns meses antes da publicao de Durao e simultaneidade. Cf.SOULEZ, P. e WORMS, F.Bergson, p. 188.14 Ele [Einstein] resume o problema nestes termos: o tempo do filsofo o mesmo do fsico? E concluique no h tempo do filsofo. Segundo Jean Langevin, filho de Paul, ele teria murmurado a P. Langevinque no havia compreendido nada do discurso de Bergson. E, de fato, no foi somente um problemalingstico; a interveno de Bergson foi longa e bastante condensada, supunha ento uma familiaridadecom o sentido bergsoniano de algumas noes. (BENSAUDE-VINCENT. B.Langevin, p. 75)15 Entre os interlocutores de Einstein, estavam Lon Brunschvicg e mile Meyerson, tendo sido este onico a deslanchar no dilogo com o fsico. (Cf. BENSAUDE-VINCENT. B.Langevin, p. 73)16 No mais, exagerou-se muito falando dos erros de Bergson sobre a teoria da relatividade. Bergson
jamais pretendeu critic-la e, ao que parece, ele havia compreendido as implicaes da relatividaderestrita. (BENSAUDE-VINCENT. B.Langevin, p. 76)17 BENSAUDE-VINCENT. B.Langevin, p. 77.
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que tal revoluo interferisse no prprio tempo, isto , na durao ela mesma. O
conceito no modificaria a realidade. Esta, por sua vez, coincidiria com a durao pura,
ainda que a cincia o negasse. Portanto, se interpretarmos o pensamento de Bergson
letra, veremos que para ele a revoluo da fsica clssica para a moderna nem to
grande assim. Bergson enxerga na teoria da relatividade muito mais uma generalizao,
ou melhor, uma radicalizao daquilo que o tempo sempre foi aos olhos da filosofia,
bem como da cincia, a saber, espao.18
Em um texto intitulado Einstein e a crise da razo,19 M. Merleau-Ponty
ressalta que o gnio de Einstein causara em sua poca uma espcie de furor incontido
que chegava mesmo a elev-lo ao posto de um deus. Sua obra gerava, paradoxalmente,
um desenvolvimento da desrazo. Seu encontro com Bergson teria sido indcio dessa
crise da razo contempornea. Bergson esperava, segundo Merleau-Ponty, reconciliar a
teoria da relatividade com os homens simplesmente homens; via nos tempos
mltiplos um paradoxo; afinal, o tempo fsico para ele sempre um s, embora nunca o
mesmo. Assim, o que estaria em jogo na fala de Bergson seria mais uma proposta de
distino entre verdade fsica e verdade pura e simples20 que uma negao da
expresso matemtica que marcaria o tempo, ou os tempos decorridos. Esta nada
poderia revelar acerca da durao vivida, da durao sentida.21
Mas a proposta de reconciliao entre os tempos do fsico e o do filsofo no
fora aceita por Einstein. E, ao invs de interpretar essa recusa como um problema de
comunicao, Merleau-Ponty afirma que Einstein havia escutado muito bem, como
provam suas primeiras palavras: A questo coloca-se ento assim: o tempo do filsofo
18 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 2-3 e O pensamento e o movente, p. 07.19 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, pp. 213-219.20 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 216.
21 Essa expresso matemtica designaria ainda o tempo se ns lhe atribussemos as propriedades de umoutro tempo [...] do qual temos experincia ou percepo antes de toda a fsica?. (MERLEAU-PONTY,M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 217)
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o mesmo que o do fsico?22 Acontece que, embora Einstein aceitasse uma
experincia psicolgica do tempo, no admitia que ela pudesse expandir-se
simultaneidade entre acontecimentos extremamente distantes (afinal, esta uma posio
contrria s implicaes do princpio da relatividade do movimento), concluindo assim
no haver tempo dos filsofos. Para Merleau-Ponty, essa atitude seria reflexo de uma
confiana desmedida na razo. E a resposta de Einstein poderia, segundo ele, ser
traduzida da seguinte maneira: apenas cincia que se deve perguntar a verdade
sobre o tempo, assim como sobre todo o resto. E a experincia do mundo percebido com
suas evidncias no passa de um balbucio antes da clara palavra da cincia.23
Conforme Merleau-Ponty, quando o cientista no admite outra possibilidade de juzo
alm do seu, d indcios de que a cincia foi erguida ao posto de Verdade Absoluta e
com isto caminha para transformar-se em uma metafsica no pior sentido do termo.
Enfim, para o filsofo, [...] o vigor da razo est ligado ao renascimento de um sentido
filosfico, que, certamente, justifica a expresso cientfica do mundo, porm em sua
ordem, em seu lugar no todo do mundo humano. 24
Cientes desse sentido filosfico percebido por Bergson na fsica einsteiniana,
nosso presente estudo visa salientar a qualidade desse texto Durao e simultaneidade
outrora esquecido. Texto geralmente incompreendido por fsicos25 e, talvez, desprezado
por filsofos, mas que agora, parece, comea a ressurgir como tema de pesquisas. Nossa
investigao guia-se pela tentativa de esclarecer a razo dessa incompreenso, que
acreditamos talvez se refira a interpretaes equivocadas do pensamento bergsoniano22 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 218.23 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 218.24 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 219.25 De acordo com Capek, os fsicos que imputaram a Bergson uma suposta incompreenso da teoria darelatividade restrita Andr Metz e Jean Becquerel, ambos citados em apndice de Durao esimultaneidade tambm poderiam ser acusados de incompreenso desta, uma vez que ao repreenderemBergson por sua interpretao do paradoxo dos gmeos, no teriam explicado corretamente o motivo detal incompreenso. Motivo este que se esclarece pela considerao da teoria da relatividade geral.
Segundo Capek, aqueles fsicos tambm esto extremamente ligados relatividade restrita. (Cf. CAPEK,M. Bergson and modern physics, p 246-248. Cf. tambm MERLEAU-PONTY, M. A natureza. p 177-181)
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como um todo. Almejamos que este trabalho possa contribuir para uma releitura
daquela obra, agora sob um novo olhar, luz da compreenso bergsoniana do que seja
filosofia por um lado e cincia por outro, isto , dos objetos que lhes caberiam
distintamente, filosofia o tempo e cincia o espao.
O primeiro captulo objetiva esclarecer que filosofia e cincia operam em
domnios distintos da experincia, mas no por isto devam ser incomunicveis. Ao
segundo captulo reservamos nossa defesa central preparada pelo primeiro, a saber, a
distino entre a durao e o amlgama espao-temporal levado ao extremo pela teoria
da relatividade, restando ao terceiro e ltimo captulo a exposio do que est na base
daquela distino: a contraposio entre a faculdade intelectual, arraigada aos limites da
linguagem e da atitude conceitual, e a capacidade intuitiva encoberta pelas
determinaes da inteligncia.
A disposio dos captulos segue uma coerncia para ns flagrante na obra
estudada, qual seja, por um lado a oposio entre filosofia e cincia, durao e espao-
tempo, intuio e inteligncia, e por outro a simetria presente em cada par de tais
contrrios. Ora, bem sabemos, possvel alinhar a filosofia durao e intuio, na
medida em que lhe caiba atravs do mtodo intuitivo atingir o real em absoluto. Ao
passo que esfera cientfica estaria reservada, atravs da inteligncia, a apreenso da
estabilidade constitutiva do espao, denominado ento pela teoria da relatividade
espao-tempo. O que pretendemos com essa articulao conceitual , enfim, mostrar
queDurao e Simultaneidade no um caso excepcional dentro da obra, no sentido de
esclarecer sua importncia e revelar suas contribuies compreenso da idia de
durao e do pensamento de Bergson como um todo este que por sinal est
inteiramente vinculado relao filosofia e cincia. Enfim, tambm pretendemos
mostrar que Bergson est ciente do papel de sua filosofia e de que precisa defend-la.
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CAPTULO I FILOSOFIA E CINCIA
Com suas aplicaes que visam apenas comodidade da existncia, a cincia nos promete obem-estar, no mximo o prazer. Mas a filosofia jnos poderia dar a alegria.
(Bergson, O pensamento e o movente, p. 148)
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No pensamento de Bergson, filosofia e cincia significam modos distintos de
compreenso da realidade. O primeiro deveria consistir em ser esforo de superao da
condio humana,26fortemente atrelada vida prtica, fabricao repetitiva de objetos
materiais ou tericos (os conceitos), enfim, um esforo para alm do mero instinto de
sobrevivncia. A cincia, por sua vez, ao contrrio da filosofia, voltar-se-ia satisfao
dessas necessidades prticas humanas.27 Todavia, frequentemente observamos a
filosofia enveredar pelos confins da cincia, utilizando no somente seu vocabulrio,
mas sobretudo seu mtodo, agindo conforme uma prtica que lhe deveria ser estranha,
porque de outra natureza.
A ligao entre a filosofia e a investigao cientfica remonta s origens do
pensamento ocidental. A filosofia que conhecemos nasce da especulao sobre dados
empricos, portanto, do mesmo mpeto que leva a cincia moderna a progredir.
Entretanto, tambm a cincia no raras vezes se utiliza de recursos especulativos
quando os dados empricos no do conta de explicar seus fundamentos. Mas, mesmo
quando especula, [a cincia] preocupa-se ainda em agir, o valor das teorias cientficas
sendo sempre medido pela solidez do poder que nos do sobre a realidade. 28 Neste
sentido, por denotarem, cada uma em sua singularidade, vises distintas do real,
filosofia e cincia marcam direes divergentes da atividade do pensamento,29muito
embora isto no signifique afirmar a superioridade de uma sobre a outra, ou, ainda, que
no haja entre elas uma espcie de reciprocidade.30 cincia caberia investigar uma
parte da realidade, a matria, mas que tal parte seja atingida em seu fundo. metafsica
por sua vez caberia uma outra parcela do real, o esprito, que por si s j
26 Cf. BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 225.27 Cf. BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 36-37.28 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 37.29 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 46.
30 O restabelecimento da relao autntica e fecunda entre a filosofia e a cincia implica a disjunoentre as duas formas de saber, para evitar o crculo vicioso e a aparncia da confirmao recproca. Mas adisjuno no significa separao absoluta. (PRADO JR, B.Presena e campo transcendental, p. 137)
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profundidade.31 Deste modo, cada uma atingiria o absoluto do objeto que lhes concerne,
juntas atingiriam a totalidade do real. Isto feito, metafsica e cincia [...] podem tornar-
se igualmente precisas e certas,32 guardadas as devidas diferenas metodolgicas e
mantida a igualdade de valor.
Mas, ainda que cincia e filosofia devam se diferenciar no tocante a objetos e
mtodos, identificar-se-iam no que concerne experincia por visarem a obter, a partir
desta, um conhecimento verdadeiro. Ora, a experincia da qual nos fala Bergson no
outra seno aquela obtida a partir da relao matria/esprito; pois, para ele no h
experincia possvel que extrapole tal vnculo. Logo, como o esprito e a matria se
tocam, metafsica e cincia podero, ao longo de toda a sua superfcie comum, pr-se
prova uma outra, esperando que o contato se torne fecundao.33 Assim, distingui-las
seria afirmar por um lado a identificao da cincia a um movimento de exteriorizao
da conscincia, porque dirige-se observao sensvel,34 e por outro reconhecer na
filosofia o movimento oposto. A filosofia ser, doravante, um movimento consciente de
interiorizao. Mas no se pretende com isto uma distncia intransponvel, uma
incomunicabilidade radical entre ambas.35
No que concerne cincia, seria razoavelmente aceitvel que a representao
conceitual viesse a sobrepor-se experincia imediata, haja vista o espao, enquanto
um seu objeto, seja o modelo segundo o qual a inteligncia se regula e os conceitos,
produtos desta faculdade.36 Entretanto, se a linguagem conceitual vem se casar quase
que perfeitamente cincia, ela s se conformaria metafsica arbitrariamente, pois a31 Cf. BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 46.32 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 46.33 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 4734 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 35.35 A metafsica ir exercer assim, por sua parte perifrica, uma influncia salutar sobre a cincia. Demodo inverso, a cincia ir comunicar metafsica hbitos de preciso que se propagaro, nesta ltima,da periferia para o centro. Quando mais no seja pelo fato de que suas extremidades precisaro superpor-
se exatamente s da cincia positiva, nossa metafsica ser a metafsica do mundo em que vivemos e node todos os mundos possveis. Ela cingir realidades. (BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 47)36 Cf. GILSON, B.Lindividualit dans la philosophie de Bergson, p. 50.
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experincia imediata, sendo por natureza inefvel, [...] no encontrar em parte
alguma linguagem estritamente apropriada.37 Contudo, a filosofia, que por sua vez
deveria se apartar da atitude mera e estritamente conceitual, aceita-a sem reservas,
subordinando-se exclusivamente linguagem com vistas resoluo de seus
problemas. Findaria assim por condenar-se repetio de respostas prontas de modo
que o antagonismo entre os sistemas, o palavrrio dialtico, as disputas infundadas e
infindveis a limitariam zona da pura abstrao.38 Obviamente, preciso ressaltar que
Bergson no desconsidera a importncia do discurso filosfico, isto , a necessidade da
linguagem em sua tarefa de conceitualizao. A linguagem em si mesma no poderia
ser considerada algo artificial, ela natural ao homem, mas sim as generalizaes
estabelecidas por seu intermdio sobre a realidade movente.39
A proposta bergsoniana que os sistemas filosficos, retornando percepo,
reconciliem-se na experincia. O que isto quer dizer? Reconciliar-se na experincia
primeiramente tomar a conscincia por ponto de partida. Tratar-se- em seguida de
aprofundar a percepo dilatada pela intuio,40 permitindo s demais filosofias
convergirem em uma s direo, tal como demandaria a preciso cientfica. Neste
sentido, o dilogo fecundo que Bergson mantm com a cincia de sua poca constitui
etapa crtica para a fundao da metafsica sobre novas bases, agora estritamente
filosficas, (recurso prprio ao mtodo).41 O almejado para essa nova filosofia um
ideal de preciso, visto que tal tenha sido o que mais lhe faltou. 42A inteno, contudo,
37 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 48. Cf. LEOPOLDO E SILVA, F. Bergson: intuio ediscurso filosfico, p. 9-27. Voltaremos a esse tema no terceiro captulo deste trabalho.38 Esses conceitos esto inclusos nas palavras. Foram, o mais das vezes, elaborados pelo organismosocial com vistas a um alvo que nada tem de metafsico. Para form-los, a sociedade recortou o realsegundo suas necessidades. Por que haveria a filosofia de aceitar uma diviso que tem todas as chances deno corresponder s articulaes do real?. (BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 54)39 Cf. GILSON, B.Lindividualit dans la philosophie de Bergson, p. 47.40 O terceiro captulo deste trabalho destina-se ao esclarecimento da noo de intuio e de seu papelfrente aos ditames da inteligncia fabricadora.
41 Cf. PINTO, D. M. Crtica da tradio, refundao da metafsica e descrio da experincia Bergsone Merleau-Ponty.42 Cf. BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 03.
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no reivindicar a rigidez da conceitualizao, cujo uso se v propagado, quer no
mbito cientifico, quer no filosfico. A comunho entre filosofia e cincia, dando-se na
experincia, implicar o afastamento daquilo que no passa de um [...] conhecimento
vago que est armazenado nos conceitos usuais e transmitido pelas palavras.43 Seria
necessrio ento afastar-se dos conceitos para ater-se s coisas.44
Bergson acredita que os grandes problemas metafsicos nasceram de uma
confuso entre a esfera da fabricao e a da criao. A primeira estaria relacionada
faculdade intelectual que se inscreve na capacidade inerente ao homem de agir sobre a
matria, modificando-a em seu benefcio faculdade cientfica. De acordo com o
filsofo, muito antes que tivesse havido uma filosofia e uma cincia, o papel da
inteligncia j era o de fabricar instrumentos e guiar a ao de nosso corpo sobre os
corpos circundantes,45 ou seja, se desde os primrdios o homem visa o domnio da
matria, a cincia s intensificou tal objetivo. Em contrapartida, a esfera da criao
consistiria em uma experincia aberta imprevisvel novidade que no se atm aos
conceitos ou s tcnicas de fabricao, experincia alargada do real no que ele
guardaria de mais profundo, seu devir. Ocorre que quando a filosofia se utiliza da
inteligncia, destinada a transformar a matria atravs de sua capacidade fabricadora,
pretendendo pensar o que metafsico, impe a tal faculdade uma tarefa que no lhe
cabe e na qual certamente no obter xito. a que se iniciam os pseudo-problemas. 46
43 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 47.44 Veremos adiante que essa recusa do conceito no radical; do contrrio, todo trabalho intelectual desugesto da intuio no seria possvel. Com isto, afirma J-L. Vieillard-Baron: os caracteres dainteligncia levaram Bergson a uma crtica do conceito que no tem nada a ver com uma afirmaoirracionalista, pois o conceito, como a linguagem de que ele produto, permanece necessrio quando ainteligncia vivificada pela intuio. (Compreender Bergson, p. 59)45 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 36.46 Bergson deixa explcito o que acabamos de afirmar na seguinte passagem do ensaio O possvel e oreal de 1930: estimo que os grandes problemas metafsicos so geralmente malpostos, que elesfreqentemente se resolvem por si mesmos quando lhes retificamos o enunciado, ou ainda que so
problemas formulados em termos de iluso, que se desvanecem assim que olhamos de perto os termos da
frmula. Nascem, com efeito, do fato de transpormos em fabricao aquilo que criao. (Opensamento e o movente, p. 109)
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O mau uso da cincia pelos filsofos e da filosofia pelos cientistas seria um reflexo
dessa confuso. assim que, por exemplo, no Ensaio sobre os dados imediatos da
conscincia (1889), Bergson denuncia o abuso por parte da psicologia dos conceitos da
fsica, tal como se reflete, segundo ele, na maneira equivocada de se tratar a
interioridade, como se lidam com objetos justapostos no espao. Enfim, o equvoco
consistiria em tratar multiplicidades qualitativas, os estados internos da pessoa, ao
modo das quantitativas, os objetos passveis de medida. Bergson, antes de qualquer
coisa, por uma exigncia do seu prprio mtodo, quer dissipar essa nvoa de problemas
inexistentes ou mal colocados pelos filsofos. Estando, portanto, cientes desse dito uso
indevido, a investigao sobre a natureza da durao psicolgica nos revelar a
divergncia no trato de um mesmo problema, o do tempo, a partir de pontos de vista
aparentemente discordantes, o filosfico de um lado e o cientfico de outro.
1. Tempo psicolgico x Tempo matemtico
A experincia temporal o tema de onde deveremos sempre partir e para o qual sempre
retornaremos ao estudarmos o pensamento bergsoniano. Contudo, o problema do tempo
poderia soar ultrapassado dada a aceitao da teoria da relatividade de Einstein. Bem,
para a cincia talvez seja mesmo um ponto resolvido, consolidado. Mas isto no nos
impede de questionar se teorias cientficas satisfazem indagaes essencialmente
filosficas. Quando um pensamento repousa inteiramente sobre a experincia de um
fato originrio, a saber, o da passagem do tempo, no de espantar que as respostas
cientficas universalmente aceitas apaream-lhe como insuficientes, que tais
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explicaes no esgotem o sentido primitivo dessa passagem e no expressem o que
seria por natureza inexprimvel.47
Se desde o primeiro livro o objetivo de Bergson apareceu claro, qual seja,
restituir ao tempo sua durao, vemo-nos diante de um conflito entre o que se referiria
aparentemente apenas esfera psicolgica (a saber, a temporalidade das conscincias) e
o tempo dos relgios, mensurvel e homogneo, representado pela varivel taplicada
com intimidade por fsicos em clculos relativsticos. Em Durao e simultaneidade,
essa importante distino ressaltada atravs da idia de que os tempos fsicos
engendrados pela teoria da relatividade restrita sejam apenas tempos concebidos,
embora um somente seja real, o Tempo do senso comum.48 Mas se oEnsaio limitava-
se a tratar a durao como experincia estritamente psicolgica, Durao e
simultaneidade no nos confirma essa posio inicial nem mesmo quando afirma no
haver dvida de que [...] o tempo, para ns, confunde-se inicialmente com a
continuidade de nossa vida interior.49
O percurso filosfico bergsoniano de 1889 a 1922 passa necessariamente pela
compreenso do que seja a durao psicolgica. Ela o ponto de partida de toda
investigao.50 Entretanto, j emA evoluo criadora (1907) Bergson comea a pensar
47 toda a sua filosofia, com efeito, que Bergson apresenta como decorrncia, no da questo dotempo, mas da simples constatao da passagem do tempo, do simples fato de que o tempo passa.(WORMS, F. A concepo bergsoniana do tempo, p. 129)48 BERGSON, H. Durao e simultaneidade, p. 150. Bergson faz uma ressalva fundamental acerca daexpresso tempo fsico em nota de rodap. Assim, ele nos diz: Ora, a diferena entre o psicolgico e omatemtico ntida; bem menos ntida entre o psicolgico e o fsico. A expresso Tempo fsico
poderia por vezes ter duplo sentido; com a de Tempo matemtico no pode haver equvoco. (p. 150)Cabe notar que a noo de um tempo puramente qualitativo, durao pura, para ele o que h de maisreal, ou melhor, a realidade ela mesma. Portanto, se expresso tempo fsico equivaler tempo real,no haver motivos para distinguir o tempo que dura do tempo fsico, visto que aquele seja o da
percepo imediata, da experincia vivida. Mas, como a cincia fsica costuma fazer equivaler o fsico aoconcebido, isto , representao matemtica do tempo e no percepo imediata dele, o que Bergson
poderia aqui denominar por fsico talvez causasse certo embarao para ambas as partes.49BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 51. Notemos: apenas inicialmente o tempo se identificaria experincia interna, a partir da investigaremos o seu progresso. A argumentao que se segue o
atestar.50A durao psicolgica, nas palavras de Vladmir Janklvitch: a instncia suprema e nica jurisdio dofilsofo a experincia interior. (JANKELEVITCH, V.Henri Bergson, p. 29)
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uma durao do universo que surge neste livro como uma espcie de durao expandida
da conscincia s coisas.51 Doravante, assim como a percepo ntima da prpria
durao revelaria ao ser consciente seu escoamento contnuo, uma transformao
ininterrupta de qualidades distintas que no poderiam ser confundidas com a
passagem de um estado a outro, porque passagem supe espao percorrido e estado
imobilidade da mesma forma seria o tempo das coisas, transio que no se
cristalizaria em pontos percorridos, muito menos em paradas imaginadas.
Conquanto a confuso entre tempo medido e tempo vivido impere na filosofia
desde os argumentos de Zeno, Bergson precisa distinguir a durao real da
representao fsica. Para ele, durao e tempo no sero equivalentes se por este
ltimo se entender uma grandeza matemtica.52 Conforme Andr Robinet, essa
constatao de que a fsica se atm a um tempo despojado de durao revelaria, aos
olhos de Bergson, uma espcie de ignorncia voluntria por parte da cincia do que
se passa nos intervalos. Mas tal ignorncia aparece-nos tambm como condio de
realizao da fsica enquanto cincia do concreto, uma vez que isto lhe permite prever,
por exemplo, eventos astronmicos. Se um astrnomo afirma uma conjuno de
estrelas a realizar-se no futuro, porque abstrai o intervalo que o separa daquele
acontecimento previsto. Para Bergson, este tipo de operao perfeitamente adequada
fsica, visto que esta deve simplesmente levar em conta as relaes entre os eventos.
Isto fazendo, qualquer que seja o intervalo, a mesma ligao subsistir no
desencadeamento do evento.53 Assim, na aplicao de uma lei fsica qualquer, o
cientista agiria legitimamente de modo a abolir de sua operao o intervalo, acelerando
51 Cf. BERGSON, H.A evoluo criadora, p. 12.52 O ponto de partida real de sua reflexo [de Bergson] reside em uma interrogao acerca da noocientfica do tempo, tal que a histria das matemticas ou os argumentos de Zeno podem dar-lhe a idia.
esta idia que ele trata de ultrapassar, porque geral, inaplicvel individuao do real. (ROBINET, A.Bergson, p. 15)53 ROBINET, A.Bergson, p. 16.
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o tempo e negligenciando a durao. Mas isso no vlido apenas para o cientista. Ns
tambm, enquanto nutrimos o hbito de estabelecer projees, nos valemos
cotidianamente desse mecanismo de acelerao do tempo. Qualquer planejamento que
faamos se basear numa espcie de encurtamento do tempo por vir, isto , numa
aproximao do futuro. Se assim no fosse, nenhum projeto chegaria a termo, dada a
falta de planejamento qual estariam todos submetidos. Em verdade, ao denunciar a
negligncia dos intervalos do tempo, Bergson pensa em defender a grande parcela de
indeterminao que ele percebe como sendo o tecido prprio da temporalidade.54
No ensaio de 1889,55 Bergson j defendia que toda previso se fundamenta no
espao de modo a possibilitar ao cientista antecipar eventos fsicos no universo
material. Contudo, no que diz respeito conscincia, ao tempo psicolgico, as
previses se tornariam mais confusas, afinal neste caso est em jogo a ao livre.
Obviamente, o cientista teria o direito de acelerar o tempo ao modo de um gnio
maligno cartesiano, uma vez que a cincia carea da medida do tempo. Porm, a
durao propriamente dita, ao contrrio, no chegaria a se colar aos clculos do tempo
porque percebida somente por uma conscincia que a vive em vez de apenas observ-
la. A durao vivida estaria nos intervalos negligenciados pelo astrnomo em
detrimento das extremidades cristalizadas. E o objeto de uma previso no poderia ser
tido como real porque imaginado, isto , representado.56
Filosofia e cincia se chocam ento mais uma vez: Como o conhecimento
usual, a cincia retm das coisas apenas o aspecto repetio. Se o todo original,54 justamente este sentido do tempo bergsoniano que Ilya Prigogine retoma. Ao ser perguntado sobre a
polmica entre Bergson e Einstein, responder: Devemos considerar o tempo como aquilo que conduzao homem e no o homem como criador do tempo [...] Portanto, necessrio pensar no universo comonuma evoluo irreversvel; a reversibilidade e a simplicidade clssicas tornam-se, ento, casos
particulares. (PRIGOGINE, I. O nascimento do tempo, p. 21-22)55 Cf. BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, captulo III.56 Bergson dir que, em boa verdade, se este [o astrnomo] prev um fenmeno futuro, na condio defazer dele, at certo ponto, um fenmeno presente ou, pelo menos, de reduzir enormemente o intervalo
que dele nos separa. Em resumo, o tempo de que se fala em astronomia um nmero, e a natureza dasunidades deste nmero no pode especificar-se nos clculos. (Ensaio sobre os dados imediatos daconscincia, p. 135)
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arranja-se de modo a analis-lo em elementos ou em aspectos que sejam
aproximadamente a reproduo do passado.57 A filosofia, ao contrrio, buscando a
originalidade intuitiva, o real em seu devir, faria violncia ao esprito58 ao recusar um
testemunho antecipado calcado no uso instrumental da inteligncia. Portanto, tomando-
se por presente um acontecimento futuro, no se chegaria de fato a uma previso, dado
o fluxo imprevisvel da durao, e toda previso seria em verdade repetio. Desse
modo, Durao e simultaneidade parece querer nos mostrar que a suposta oposio
entre o tempo matemtico e o tempo das conscincias no se sustentaria seno por um
apelo a abstraes filosficas que no fundo seriam todas vazias de contedo.
Embora Bergson tenha proferido duras crticas matematizao da realidade (e
realidade para ele equivale a durao), no sair em defesa de um tempo meramente
psicolgico. A vida psquica estaria estreitamente ligada ao tempo do mundo,
multiplicidade sem divisibilidade e sucesso sem separao,59 pois a cada momento
de nossa vida interior corresponde assim um momento de nosso corpo e de toda a
matria circundante, que lhe seria simultnea: essa matria parece ento participar de
nossa durao consciente.60 Assim, a sucesso dos estados de conscincia
simultaneamente sucesso dos eventos materiais imporia uma forte tendncia
conscincia de estender a compreenso de sua prpria durao a uma suposta durao
do universo, o que equivaleria aqui ao tempo fsico. A conscincia estenderia o fluxo
contnuo de sua durao psicolgica particular at a matria em geral, acreditando
haver nesta a mesma continuidade conscientemente experimentada. Nasce, desse
modo a idia de uma durao do universo, isto , de uma conscincia impessoal que
seria o trao-de-unio [trait dunion] entre todas as conscincias individuais, assim
57 BERGSON, H.A evoluo criadora, p. 32 [grifos do autor].
58 BERGSON, H.A evoluo criadora, p. 32.59BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 52.60BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 52.
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como entre essas conscincias e o resto da natureza.61 Mas a investigao sobre essa
durao expandida ser mais tarde retomada. Caber-nos- doravante perscrutar o
estatuto das multiplicidades distintas fundamental compreenso do tempo real.
1. Dois tipos de multiplicidade
A anlise das noes de tempo e espao no Ensaio concluiu que ambos formariam
multiplicidades opostas.62 O tempo real enquanto novidade contnua estaria sempre em
via de realizar virtualidades; j o espao, por sua vez, sempre atual, sem virtualidade
alguma a realizar. Visto deste modo, o tempo comportaria uma multiplicidade
heterognea, qualitativa, ao passo que o espao enceraria a homogeneidade passvel de
quantificao. Assim, a possibilidade de coexistncia entre ritmos diversos, ou seja,
tempos ou duraes distintas correspondentes diversidade de conscincias e de coisas
do mundo, aparece-nos em Durao e simultaneidade como caracterstica disto que
Bergson entende por multiplicidade qualitativa. Deste modo, ritmos diversos s o
seriam no que diz respeito ao contedo qualitativo de cada um. Tal contedo se
confundiria com a durao quando decantada das intervenes de ordem espacial e em
nada se assemelharia multiplicidade numrica.63
A multiplicidade qualitativa definida como quantitativamente invarivel,64
porm o hbito comum de expressar todas as coisas na linguagem nos levaria a
identific-las ao nmero e, a partir da, exteriorizar em termos quantitativos o que
somente um ato do esprito estaria apto a captar.65 Mas a multiplicidade quantitativa no
61 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, pp. 52-53.62 Cf. BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, captulo 2.63 [...] a multiplicidade dos estados de conscincia, considerada na sua pureza original, no apresentaqualquer semelhana com a multiplicidade distinta que forma o nmero. (BERGSON, H. Ensaio sobreos dados imediatos da conscincia, p. 85)
64 Cf. BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 85.65 Sobre isto, afirma Andr Robinet: Porque a durao uma sucesso de instantes que desaparecem semesperana de retorno, o nmero s pode subsistir sob a forma de espao. (Bergson, p. 20)
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aos olhos de Bergson um mero arbtrio da inteligncia. Ao contrrio, ela reflete um
dos aspectos da vida consciente, o que poderamos denominar uma conscincia
superficial da experincia. Haveria, ento, dois nveis nos quais a interioridade se
duplicaria. No mais superficial deles, estaria um eu refratado, extremamente apegado
linguagem e sociabilidade. Este no percepciona a realidade seno atravs do
smbolo,66 sendo como a sombra de um eu profundo projetada no espao homogneo.
O retorno a tal profundidade dar-se-ia doravante voltando-se a ateno aos dados
imediatos, percepo pura, isto , percepo livre do amlgama das convenes
enraizadas no hbito lingstico de transpor para o espao o que durao to-somente.
Portanto, [...] nossa experincia diria dever ensinar-nos a distinguir entre a durao-
qualidade, a que a nossa conscincia atinge imediatamente [...], e o tempo, por assim
dizer, materializado, o tempo tornado quantidade por um desenvolvimento no
espao.67 Se for assim, para aquele que indagar sobre a natureza das coisas, tornar-se-
irrelevante sua medida porque esta lhes ser inteiramente oposta, repousando sobre a
esfera da quantidade enquanto o real imediatamente percebido a no se encontrar.
O que est em jogo, portanto, no apenas a defesa de um tempo fsico nico. A
investigao acerca da natureza do tempo aparece-nos como mais importante do que a
legitimao de uma durao universal. Bergson enftico ao defender que a qualidade
diz mais sobre a coisa que a quantidade. Portanto, o problema relativo unidade do
tempo perderia todo significado se tivssemos em conta a irrelevncia do carter
quantitativo frente ao qualitativo. Isto , para o filsofo, o tempo, seja ele uno ou
mltiplo, sempre ser experincia renovada. Sendo assim, somente de maneira
generalizada poderemos falar em durao nica, pois esta unidade dever conservar em
si mesma um mundo de qualidades indiscernveis umas das outras, porque interligadas
66 BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 90.67 BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 89.
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pelo mesmo fluxo, sempre em alterao. Tarefa difcil aquela que exigir do filsofo
uma explicao acerca da permanncia da unidade na multiplicidade. Em verdade,
acreditamos nesta permanncia como a de um continuum, jamais a de um estado.68
Se o tempo bergsoniano implica continuidade e esta, por sua vez, sucesso de
um antes em um depois, durao implica conscincia; e pomos conscincia no fundo
das coisas pelo prprio fato de lhes atribuirmos um tempo que dura. 69 Segundo
Bergson, convencionou-se um tempo universal e homogneo o que a cincia retm
dessa continuidade vivida, a saber, seu rastro deixado no espao. Porm, a continuidade
propriamente dita [...] exclui toda idia de justaposio, de exterioridade recproca e
de extenso.70 Tal como o movimento de um elstico esticando-se progressivamente, a
durao no poderia ser medida atravs do espao ocupado pelo elstico em
movimento, ela ser ao contrrio o prprio ato, a mobilidade se realizando. A linha
traada no espao pelo elstico seria indefinidamente dividida, mas no a ao de seu
movimento, esta consistiria somente em durar.71 Portanto, esse tempo mensurvel,
recorrente nas frmulas fsicas, no passaria de uma miragem da durao retida no
espao.72 E durao no se confunde com tempo homogneo, isto , tempo
quantificvel, porque sem qualidade. Mas que se confirmasse a possibilidade de uma
durao universal, outrora denominada pela fsica newtoniana tempo absoluto, ela
ainda seria incomensurvel aos olhos do filsofo. Tal qual a psicologia relativamente
durao psicolgica, a fsica dividiria do tempo somente o passado, isto , operaria
repetitivamente a partir dos rastros traados no espao e equacionados a qualquer68 Um exemplo dessa continuidade qualitativa, alm do famoso exemplo da continuidade meldica (Cf.BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 75-79), seriam para Bergson as cores.Em suma, enquanto falamos de uma continuidade qualificada e qualitativamente modificada, tal como aextenso colorida e mudando de cor, exprimimos imediatamente, sem conveno humana interposta, oque percebemos: no temos nenhum motivo para supor que no estejamos aqui em presena da prpriarealidade. (BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 43)69 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 57.70 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 190.
71 Quanto ao exemplo do elstico conferir: BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 191.72 Conforme Bergson, [...] quer o deixssemos em ns ou o pusssemos fora de ns, o tempo que durano mensurvel. (Durao e simultaneidade, p. 57)
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tempo, visto ter-se excludo da durao real seu componente de diferenciao, a
multiplicidade qualitativa. Passaria assim da durao em via de fazer-se para o tempo
desenrolado.
Entretanto, medir o tempo algo do qual no podemos nos furtar
cotidianamente.73 Quando Bergson critica as teorias cientficas que, segundo ele, o
eliminam da experincia vivida, parece no faz-lo ao modo daqueles fsicos que,
apegados concepo newtoniana de mundo, recusavam-se a aceitar a evidncia da
relatividade do tempo. Como defende Worms,74 ao contrrio destes, antes de querer
salvar a universalidade do tempo fsico, Bergson deseja salvar a unidade da experincia
vivida: no se trata a de opor um tempo fsico a um tempo psicolgico, mas bem
antes de mostrar que nenhum dos dois jamais se d puro em nossa experincia, ou ainda
que nossa experincia situa-se sempre na interseco dos dois, atravs dapercepo.75
Observamos, enfim, que a passagem do tempo psicolgico ao tempo matemtico no se
realizaria seno por intermdio da noo de movimento. Iniciaremos ento a anlise do
movimento e da simultaneidade para, no prximo captulo, prosseguirmos essa
investigao a partir das conseqncias provenientes da teoria da relatividade restrita.
3. O Movimento e a simultaneidade 76
No mundo fsico, a mudana essencial. Se pudermos julgar algo constante, ser o fato
de que as coisas se transformam. Embora estejamos, de um modo geral, de acordo
quanto a este fato originrio, o de que nada permanece igual, Bergson dir que, em
73 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, pp 63-64.74 WORMS, F. A concepo Bergsoniana do tempo, p. 146.75 WORMS, F. A concepo Bergsoniana do tempo, p. 145.76 A anlise do movimento e da simultaneidade ser retomada no captulo seguinte ao investigarmos a
interpretao bergsoniana para a reciprocidade do movimento e a quebra da simultaneidade na teoria darelatividade restrita. Por ora, nos caber introduzir o tema de um ponto de vista mais geral, qual seja, darelao filosofia e cincia, objeto deste captulo.
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verdade, no percebemos a mudana: Dizemos que a mudana existe, que tudo muda,
que a mudana a prpria lei das coisas: sim, dizemo-lo e repetimo-lo; mas temos a
apenas palavras, e raciocinamos e filosofamos como se a mudana no existisse.77 Isto
ocorreria porque nossa percepo do movente se realizaria, na maioria das vezes, a
partir do misto espao-temporal, juntando-se a isto que a faculdade intelectual
encarrega-se sempre de racionalizar o que poderia ser intudo.
O movimento tem sido representado espacialmente desde os argumentos de
Zeno de Elia (cerca de 504/1 -? a.C.) em favor da imobilidade.78 Para o pr-socrtico
um movimento poderia ser indefinidamente dividido. De fato, ao representarmos o
trajeto de um mvel que saia do ponto A em direo ao ponto B, poderemos sem
dificuldades imaginar a diviso do espao percorrido em qualquer nmero de partes,
alm de tambm podermos identificar os pontos percorridos pelo mvel a etapas do seu
movimento. Haveria nisto algum obstculo verdadeira mudana? Contrariando a
defesa de Zeno, Bergson nos prope: representar-nos-emos toda mudana, todo
movimento, como absolutamente indivisvel.79 Sua proposta faz-se perfeitamente
compreensvel se entendermos que toda associao do movimento ao espao ser
arbitrria, que o movente jamais coincidir com o imvel. Tampouco o objeto que se
move poder ser associado ao trajeto por ele percorrido uma vez que o objeto esteja em
movimento e o trajeto esttico. Um movimento a se fazer permaneceria
indecomponvel, e se Zeno lanou um problema quanto a sua possibilidade foi porque
teria esquecido de perguntar a Aquiles se este ultrapassou a tartaruga. Ora,
demonstramos a possibilidade do movimento movimentando-nos, logo, no poderamos
representar uma sucesso temporal de posio em posio, teramos assim apenas uma
77 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 150.78 Zeno reduziu o movimento trajetria, a trajetria a uma linha, a linha a pontos, os pontos a
indivisveis. Ele nega o intervalo, a transio, e esquiva a mobilidade refugiando-se nas dicotomiasperseguidas ao infinito. (ROBINET, A.Bergson, p. 22)79 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 164.
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justaposio espacial, restando o tempo que corre incapaz de ser imobilizado porque
no espera.
Bergson no nega a possvel divisibilidade infinita do espao percorrido, o que
ele no admite a divisibilidade do ato, uma vez que este seja a prpria mudana.80
Ocorre que, embora no seja insensato admitir a ocupao do espao pelo mvel, o ato
que o transpe de uma posio outra no ele prprio espacial. Em suma, o ato (isto
, o movimento percebido independentemente do espao) seria concebido apenas
qualitativamente; portanto, no poderia se associar ao espao meio homogneo onde
se desenrola o movimento.81 Contudo, para que a fsica represente matematicamente um
movimento a fim de medir determinado intervalo de tempo, precisa espacializ-lo. Mas
assim a cincia s incide no tempo e no movimento com a condio de eliminar, antes
de mais, o elemento essencial e qualitativo do tempo a durao, e do movimento a
mobilidade.82Deste modo, a fsica, estaria limitada a medir simultaneidades, sendo o
movimento por elas permeado.83
Consoante ao tratamento dado mobilidade pela cincia o tratamento prestado
simultaneidade. Neste ponto a reflexo bergsoniana apela, como sempre, percepo.
Embora levando ao extremo a idia de que ser ser percebido,84 Bergson garante s
coisas uma existncia prpria. Ou seja, se conforme Berkeley os objetos s existiriam
para uma conscincia capaz de perceb-los, para Bergson eles possuem existncia em
80 No lidamos aqui com uma coisa, mas com um progresso: o movimento, enquanto passagem de umponto a outro, uma sntese mental, um processo psquico e, por conseguinte, inextenso. No espao emque se considere o mvel, obter-se- somente uma posio. Se a conscincia percepciona outra coisa almde posies porque se lembra das posies sucessivas e as sintetiza. (BERGSON, H. Ensaio sobre osdados imediatos da conscincia, p. 79)81 Quase sempre se diz que um movimento acontece no espao, e quando se classifica o movimentohomogneo e divisvel no espao percorrido que se pensa, como se se pudesse confundir com o prpriomovimento. (BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 79) Cf. O pensamentoe o movente, A percepo da mudana.82 BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 81.83 Mediremos o espao percorrido, a nica coisa que, de fato, mensurvel. Portanto, no se trata aqui
de durao, mas apenas do espao e de simultaneidades. (BERGSON, H. Ensaio sobre os dadosimediatos da conscincia, p. 82)84 Cf. BERKELEY, G. Tratado sobre os princpios do conhecimento humano. 3.
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si; todavia, sem uma conscincia, estariam condenados eternidade, isto , as coisas
no durariam. Tendo em vista essa concepo epistemolgica, a filosofia bergsoniana
no poder defender uma simultaneidade relativa a objetos em si mesmos, visto que
eles no comportem qualquer trao de percepo consciente, isto , de temporalidade.
A percepo ocupa um lugar importante nessa filosofia sendo, pois, a base de todo
processo cognitivo, condio para o conhecimento do mundo. Conquanto a percepo
no possua alcance ilimitado, o raciocnio vem preencher as lacunas deixadas por ela,85
derivandode tal insuficincia o nascimento de uma pretensa especulao filosfica. Ou
seja, quando os fatos percebidos no bastam para explicar a realidade, a cincia e a
filosofia recorrem a justificativas que extrapolam a esfera da percepo imediata para
assentar-se em argumentos rigorosamente abstratos, e muitas vezes fantasmticos.
Este seria o caso dos paradoxos da teoria da relatividade restrita. Segundo Bergson,
todos [aqueles paradoxos] apelam, da insuficincia de nossos sentidos e de nossa
conscincia, a faculdades do esprito que j no so mais perceptivas, quero dizer, s
funes de abstrao, de generalizao e de raciocnio. 86 Desta forma, a polmica em
torno da quebra da simultaneidade87 soaria artificial, um mero efeito de perspectiva a
denunciar as restries da percepo.
No Ensaio, a simultaneidade aparecia como a relao entre um momento da
vida consciente e um ponto do espao a determin-la, representada em nmero marcado
pelo relgio. Tratava-se, ento, de uma interseo entre o tempo real e o espao que o
cristalizava.88 Assim, as oscilaes do pndulo do relgio estariam sempre limitadas
85 Se os sentidos e a conscincia tivessem um alcance ilimitado, se na dupla direo da matria e doesprito, a faculdade de perceber fosse indefinida, no precisaramos conceber nem tampouco raciocinar.Conceber um paliativo quando no dado perceber, e o raciocnio feito para colmatar os vazios da
percepo ou para estender seu alcance. (BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 151)86 BERGSON, H. O pensamento e o movente, pp. 152-153.87 O efeito da quebra da simultaneidade ser devidamente analisado no prximo captulo.
88 O trao de unio entre os dois termos, espao e durao, a simultaneidade, que se poderia definircomo a interseo do tempo com o espao. (BERGSON, H. Ensaio sobre os dados imediatos daconscincia, p. 78)
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contagem de simultaneidades. EmDurao e simultaneidade essa noo adquire novos
contornos, embora continue a ser pensada como a relao ou o contato entre uma
durao e uma outra realidade.89 O livro de 1922 traa a gnese do conceito,
ressaltando que sua origem psicolgica, a simultaneidade entre fluxos, no sequer
mencionada pelos tericos da relatividade,90cuja ateno estaria voltada inteiramente
simultaneidade entre instantes, por definio artificial. a partir da noo psicolgica
dos fluxos simultneos que se construir a idia de uma experincia temporal comum,
de um tempo fsico nico, embora no homogneo. A imagem bergsoniana dos trs
fluxos bem ilustra o significado da multiplicidade peculiar constitutiva do tempo real e
de sua relao com a simultaneidade:
Quando estamos sentados na margem de um rio, o correr da gua, odeslizar de um barco ou o vo de um pssaro, o murmrio ininterrupto denossa vida profunda so para ns trs coisas diferentes ou uma s, comoquisermos. Podemos interiorizar o todo, lidar com uma percepo nicaque carrega, confundidos, os trs fluxos em seu curso; ou podemos manterexteriores os dois primeiros e repartir ento nossa ateno entre o dentro eo fora; ou, melhor ainda, podemos fazer as duas coisas concomitantemente,
nossa ateno ligando e no entanto separando os trs escoamentos, graasao singular privilgio que ela possui de ser uma e vrias.91
Em suma, fica resguardada percepo consciente a determinao de eventos
simultneos. Como visto na passagem supracitada, apenas a durao psicolgica
percebe a simultaneidade entre os fluxos do rio e o vo do pssaro, portanto, no haver
simultaneidade sem conscincia.92 Sendo assim, a verdadeira durao s ser percebida
por uma conscincia, fora da qual haver simultaneidades no espao, e fluxos
contemporneos sero aqueles cuja conscincia perceber externos a si mesma. Afinal,
89 WORMS, F.Le vocabulaire de Bergson, p. 60. De acordo com este autor, a noo de simultaneidadetem uma tarefa tcnica tanto no Ensaio de 1889 quanto em Durao e simultaneidade, de 1922, para
pensar a passagem da durao sua medida, ou ainda da durao ao tempo homogneo [...] No livro de1922, onde ela completa a noo de durao mesma, a distino de duas simultaneidades permiteresponder a uma certa interpretao filosfica da doutrina de Einstein, e completar a doutrina de Bergsonsobre um ponto essencial, a saber, a relao entre as duraes. (pp. 60-61)90 Os tericos da relatividade jamais falam de outra coisa seno da simultaneidade de dois instantes.Antes desta, contudo, h uma outra, cuja idia mais natural: a simultaneidade de dois fluxos.
(BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61)91 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61.92 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61.
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o fluxo do rio e o vo do pssaro compartilhariam aqui o mesmo presente. 93 A
simultaneidade, por sua vez, sendo definida como a relao percebida entre dois ou
mais fluxos, ser assim compreendida graas presena da conscincia, isto , da
temporalidade psicolgica.
Entendendo-se a simultaneidade como fundamentalmente psicolgica, o que
equivale a percebida, vivida, no haveria razo em separar-se um tempo do filsofo e
um tempo do fsico, como o queria Einstein. Mas, ao que parece, essa simultaneidade
psicolgica no interessa mesmo aos fsicos e cientistas de um modo geral. A cincia
investigaria apenas a simultaneidade entre instantes. Todavia, para Bergson, o instante
sempre uma virtualidade,94 ou seja, uma miragem retrospectiva utilizada para medir a
durao e o tempo real no tem instantes;95 portanto, no passvel de medida. Deste
modo, se o instante espao e se a simultaneidade entre instantes fictcia na falta de
um trao de unio, isto , de um ser consciente, findaro os fsicos por medir o espao.
Embora a simultaneidade de fluxos percebida pela conscincia seja distinta da
simultaneidade de instantes referente medida do tempo, ambas aparentemente se
completam quando a durao real e o tempo espacializado parecem tambm equivaler-
se.96 E quando no se faz distino entre o real e o concebido, a equivalncia faz nascer
a idia de um tempo impessoal, ou seja, um tempo fsico excedente durao
psicolgica particular. Assim, a simultaneidade dos instantes permitiria contar o tempo
fsico de modo a equacionar fenmenos fsicos quaisquer a momentos marcados pelo
93 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61.94 Cf. BERGSON, H. Durao e simultaneidade, p.62. A idia bergsoniana de que o instante umartifcio da inteligncia veementemente contestada por G. Bachelard em seu ensaio Lintuition delinstant, no qual, ao retomar o pensamento de Roupnel, afirma: o tempo s tem uma realidade, a doinstante. (p. 15) Bachelard defende uma concepo temporal completamente oposta a de Bergson. Parao primeiro, o tempo uma experincia descontnua, de modo que noo de durao como continuidadeele contrape a seguinte: a durao feita de instantes sem durao, como a reta feita de pontos semdimenso. (p. 20) Dando assentimento teoria da relatividade de Einstein, Bachelard completa: noslembramos de termos sido, no nos lembramos de termos durado. O distanciamento no tempo deforma a
perspectiva do comprimento, pois a durao depende sempre de um ponto de vista. (p. 34)95 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 62.96 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 63.
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relgio, bem como relacion-los aos momentos da vida consciente. Entretanto, sem tal
demarcao quantitativa o tempo vivido seria percebido como continuidade pura,
qualidade pura, durao pura.
Como ficou claro anteriormente, a imagem dos trs fluxos mostrou a
continuidade da vida profunda rica em alteraes qualitativas indiscernveis, j que
no se encontrariam justapostos no espao homogneo, mas interpenetrando-se
perenemente , o fluxo de um rio e o vo de um pssaro formando um s fluxo ou trs
distintos, caso a ateno o determinasse. Porm, mesmo compreendidos distintamente,
no deixariam de pertencer mesma durao, porque ligados pela conscincia que
assim os perceberia.97 Isto foi muito bem expresso por M. Merleau-Ponty quando
escreveu que [o filsofo] no precisa de sair de si para atingir as prprias coisas:
solicitado ou perseguido interiormente por elas. Pois um eu que durao no pode
captar outro ser seno sob a forma de outra durao.98 E ainda que a ateno estivesse
totalmente absorta pela inteligncia fabricadora, o tempo se imporia conscincia. Para
Bergson, no havendo conscincia seramos, incapazes de perceber o tempo, embora
quase nunca de fato o percebamos.
No entanto, uma dificuldade se apresenta: a cincia no poderia se servir da
noo intuitiva de simultaneidade, uma vez que esta s seria de fato percebida quando
relacionada a fluxos prximos, porque no dado conscincia perceber, por exemplo,
a simultaneidade entre o vo de um pssaro acontecendo diante de si e a corrente de um
rio localizada a alguns quilmetros dali. por conta de tal dificuldade que o fsico
parece querer estender sua percepo atravs da imaginao a qualquer distncia,
97 O vo do pssaro e minha prpria durao so simultneos somente porque minha prpria durao sedesdobra e se reflete em uma outra que a contm, ao mesmo tempo que ela mesma contm o vo do
pssaro: h, portanto, uma triplicidade fundamental dos fluxos. nesse sentido que minha durao tem
essencialmente o poder de revelar outras duraes, de englobar as outras e de englobar-se a si mesma aoinfinito. (DELEUZE, G.Bergsonismo, p. 64) Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61-62.98 MERLEAU-PONTY, M.Elogio da filosofia, p. 23.
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bastando para tanto suprimir conceitos como pouco afastado ou muito afastado.99
Se tal operao for legtima, a simultaneidade percebida diante dos nossos olhos, em
tese, no ser em nada distinta da que se estabelece artificialmente entre dois relgios
afastados por uma distncia como a que separa a Terra do Sol. Logo, se as dimenses
puderem ser intercambiadas, guardadas as devidas propores, ento no haver o que
alterar no conceito de simultaneidade quando as distncias extrapolarem os limites das
medidas com as quais estamos acostumados a lidar.100Acontece que a simultaneidade
distante no imediatamente percebida, ou seja, no intuitiva, trata-se de um artifcio
cientfico. E, no entanto, o que est em jogo distinguir o real do artificial. Em suma, a
simultaneidade artificial esquematizada no espao permitiria contar um intervalo de
tempo, e j que cada extremidade deste intervalo se cristaliza em um ponto, isto , em
um instante, uma unidade de tempo ser aquilo que medeia um instante e outro, isto , o
intervalo.101 Porm, deste modo, o que realmente se medir sero as extremidades, no
os intervalos cuja disposio seja a de durar.102
Com efeito, ao que parece, o menos relevante para a cincia ser a percepo.
Mas no s para a cincia. H muito a filosofia teria se afastado da percepo para
aproximar-se das Idias. Segundo Bergson, os Eleatas abriram caminho a este
afastamento a partir de suas crticas percepo do devir, ou seja, ao conhecimento
sensvel de um modo geral como sendo uma experincia enganadora.103 Os Eleatas
teriam condenado a filosofia procura de um mundo inteligvel capaz de explicar o
mundo fsico. Admitindo para os fenmenos um carter superficial, teriam posto a
inteligncia e seus conceitos em primeiro plano, esquecendo-se, portanto, de olhar para
99 Como garante Bergson, no h fsica, no h astronomia, no h cincia possvel, se no for dado aocientista o direito de afigurar esquematicamente numa folha de papel a totalidade do universo.(BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 65-66)100 Cf: BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 67.101
BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 67.102 Cf. BERGSON, H. Durao e simultaneidade, pp. 67-68.103 Cf. BERGSON, H. A evoluo criadora, p. 333.
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os fenmenos imediata e profundamente percebidos104. A teoria da relatividade restrita
aparece a Bergson como um caso exemplar dessa extrapolao da experincia, tanto por
parte da cincia, quanto por parte daqueles que a erigiram em nvel metafsico,
estabelecendo entre o real e o concebido, o fictcio, uma identidade que, aos olhos do
filsofo, no se sustenta face ao apelo essencial da intuio. Este ser o tema do nosso
prximo captulo.
CAPTULO II DURAO E ESPAO-TEMPO
O universo dura. Quanto mais aprofundarmosa natureza do tempo, melhor compreenderemosque durao significa inveno, criao deformas, elaborao contnua do absolutamentenovo.
(Bergson,A evoluo criadora, p. 12)
1. A teoria da relatividade restrita
A mecnica clssica amparou-se inteiramente no princpio da relatividade do
movimento estabelecido por Galileu no sculo XVII, segundo o qual todos os sistemas
104 Quanto s crticas de Bergson aos filsofos gregos, conferirA evoluo criadora, captulo IV e Apercepo da mudana, in: O pensamento e o movente.
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inerciais105 so equivalentes no que concerne descrio do movimento; ou seja, as leis
da mecnica devem ser as mesmas em qualquer sistema de referncia inercial. Havia,
para Newton (1642-1727), uma clara distino entre tempo, espao e movimento.106 Sua
fsica descrevia o movimento baseando-se num conceito de tempo absoluto. Portanto,
em qualquer referencial inercial a medida do tempo deveria ser sempre a mesma. Deste
modo, na descrio do movimento de determinado sistema relativamente a outro
suposto em repouso, era utilizado um conjunto de transformaes107 capazes de
compatibilizar as coordenadas espaciais de um sistema a outro. Porm, para o tempo,
estas transformaes eram idnticas em ambos os sistemas. O principio da relatividade
do movimento era sempre constatado para fenmenos mecnicos. Entretanto,
fenmenos ligados ptica e ao eletromagnetismo pareciam no obedecer quele
princpio.
Assim como a mecnica newtoniana no sculo XVII se fundamentava na
relatividade do movimento, no sculo XIX, a cincia da eletricidade e do magnetismo
trazia como princpio universal a constncia da velocidade da luz. As duas teorias
pareciam, ento, incompatveis. Inmeras tentativas foram feitas a fim de reconcili-las.
O desenvolvimento das pesquisas de Hendryk Lorentz (1853-1928) e Henri Poincar
(1854-1912)108 sobre o eletromagnetismo109 deu-se paralelamente s pesquisas de
Einstein.110 So de Lorentz as frmulas de transformao das coordenadas de espao e
105 Sistemas inerciais ou galileanos so aqueles cujo movimento retilneo uniforme sempre determinadoem relao a outro sistema suposto em repouso com relao ao primeiro. Em tais sistemas, portanto, asleis da mecnica so igualmente aplicadas. Deste modo, a determinao da velocidade de um objetoqualquer em movimento retilneo uniforme s tem sentido se feita relativamente a um sistema dereferncia. (Cf. LANDAU e RUMER, O que a teoria da relatividade, p. 25-37)106 Cf. STACHEL, J. The theory of relativity, p. 443.107 As transformaes galileanas: x = x + vt / y = y / z = z (Cf. BERGSON, H. Durao esimultaneidade, p. 28)108 Hendryk Antoon Lorentz, fsico holands e Henri Poincar, matemtico e fsico francs.109 A teoria eletromagntica foi desenvolvida no sculo XIX por J. C. Maxwell (1831-1879) e condensamagnetismo, eletricidade e ptica. Juntamente com a mecnica e a termodinmica, o eletromagnetismo
um dos pilares da fsica clssica. (Cf. ROCHA, J. F. M. Origem e evoluo do eletromagnetismo, in:Origens e evoluo das idias da fsica, p. 187)110 Cf. PAIS, A. Sutil o senhor... A cincia e a vida de Albert Einstein, p. 190.
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de tempo, adequadas dinmica eletromagntica, que culminaram na teoria da
relatividade restrita uma vez que os experimentos de Albert Michelson (1852-1931)
e Edward Morley (1838-1923), em 1887, vieram a comprometer as concepes
clssicas de espao, tempo e luz. Mas, embora Lorentz e Poincar tenham enfrentado os
mesmos problemas e alcanado resultados importantes para o desenvolvimento daquela
teoria, ambos foram levados a caminhos diversos de Einstein. Quem, por sua vez, foi
capaz de extrapolar os conceitos da fsica clssica.
Tudo comeou com a tragdia da luz.111 Cinco sculos antes de Cristo, os
pensadores gregos j manifestavam interesse pelo tema. Desde ento, as primeiras
discordncias tambm j eram verificadas.112 A partir do sculo XVII, a especulao
filosfica d lugar a experimentos cientficos. Na primeira metade deste sculo, muitos
tericos e cientistas estavam de acordo quanto natureza corpuscular da luz.113 Porm,
a descoberta de outros fenmenos pticos (difrao, interferncia e polarizao), alm
dos j conhecidos e explicados pela teoria corpuscular (reflexo e refrao), pe em
cheque essa concepo da luz como feixe de partculas. Contudo, a velha teoria no era
capaz de explicar aqueles novos fenmenos nos quais a luz se comportava segundo
caractersticas ondulatrias. Em seu livro ptica (1704), Newton comenta os
fenmenos recm-descobertos, isto , o aspecto ondulatrio apresentado pela luz em
determinadas circunstncias. Todavia, ali Newton parece defender uma preponderncia
111 Cf. LANDAU, L. e RUMER, Y. O que a teoria da relatividade, p. 39-54.112 Entre os pr-socrticos, Demcrito (460 - 370 a.C.) acreditava no carter corpuscular da luz, ao passoque Aristteles (384-322 a.C.) atribua-lhe carter vibratrio. Suas idias, ento, estavam mais prximasda concepo ondulatria. (Cf. ROCHA, J. F. M. Origem e evoluo do eletromagnetismo, in: Origens
e evoluo das idias da fsica, p. 212-213)113 Entre eles podemos citar Descartes, Fermat, Newton e Huygens. (Cf. ROCHA, J. F. M. Origem eevoluo do eletromagnetismo, in: Origens e evoluo das idias da fsica)
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do carter corpuscular sobre o ondulatrio.114 Em contrapartida, muitos cientistas
passaram a defender a teoria ondulatria.115
Dando, ento, um salto brusco na histria da cincia, concedamos, por ora, que
a hiptese ondulatria, ao ser reformulada por Christiaan Huygens, em 1678, traz de
volta ao cenrio cientfico a noo de um meio ou substncia velha conhecida entre os
antigos pensadores gregos. Estes acreditavam na existncia de uma substncia invisvel,
permeando todo o cosmos, denominada ter palavra que em latim (aether) quer
dizer ar sutil. Ora, se a luz possui carter ondulatrio, tal como o som, a onda
luminosa necessitaria de um meio para a sua propagao. Ao menos, era assim que
pensavam os cientistas do sculo XVII, profundamente influenciados pela mecnica
newtoniana. Mas, o som no se propaga no vcuo, e a luz sim. Portanto, esse meio no
poderia ser o ar, deveria se tratar de uma substncia mais sutil, capaz de penetrar todo o
espao sem interferir no movimento dos planetas. Tal meio fora batizado por C.
Huygens de ter luminfero.116
No incio do sculo XIX, o conceito do ter ganha novos contornos.117 Por volta
de 1861, J. C. Maxwell demonstra que a onda de luz possui carter eletromagntico e
no mecnico, como se pensava anteriormente. A partir de ento, o conceito de ter
sofre novas alteraes, j que seria capaz de propagar eletricidade e magnetismo. Em
suma, a noo do ter como meio propagador da luz foi se reformulando a cada nova
114 A questo bastante delicada e no pretendemos aqui aprofundar a polmica acerca da dualidadeonda-partcula.115 Entre eles C. Huygens (1629-1695), contemporneo de Newton e, um sculo mais tarde, T. Young(1773-1829) e A. Fresnell (1788-1827). Cf. ROCHA, J. F. M. Origem e evoluo do eletromagnetismo,in: Origens