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https://doi.org/10.14195/1984-249X_28_3 [1] AS ORIGENS DO PENSAMENTO OCIDENTAL THE ORIGINS OF WESTERN THOUGHT ARTIGO I ARTICLE O passo 62b do Fédon: a proibição do suicídio e o enigma da phrourá Phaedo 62b: the prohibition of suicide and the enigma of the phrourá Vitor de Simoni Milione i https://orcid.org/0000-0003-3511-8087 [email protected] i Université de Montréal – Montréal – Québec – Canadá MILIONE, V. S. (2020). O passo 62b do Fédon: a proibição do suicídio e o enigma da phrourá. Archai 28, e02803. brought to you by CORE View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk provided by Universidade de Brasília: Portal de Periódicos da UnB

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https://doi.org/10.14195/1984-249X_28_3 [1]

AS ORIGENS DO PENSAMENTO OCIDENTAL

THE ORIGINS OF WESTERN THOUGHT

ARTIGO I ARTICLE

O passo 62b do Fédon: a proibição do

suicídio e o enigma da phrourá

Phaedo 62b: the prohibition of suicide and the enigma of the

phrourá

Vitor de Simoni Milione i https://orcid.org/0000-0003-3511-8087

[email protected]

i Université de Montréal – Montréal – Québec – Canadá

MILIONE, V. S. (2020). O passo 62b do Fédon: a proibição do suicídio e o

enigma da phrourá. Archai 28, e02803.

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provided by Universidade de Brasília: Portal de Periódicos da UnB

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2 Rev. Archai, n. 28, Brasília, 2020, e02803.

Resumo: No final do prólogo do Fédon (61b-63b), há uma tensão

entre desejo de morte e proibição do suicídio entendida por Cebes

como um contrassenso manifesto. Contudo, o que se mostra um

disparate é na realidade o recurso platônico para introduzir grandes

temas que serão trabalhados ao longo do diálogo. Delinear-se-á,

numa curiosa trama de mythos e lógos, um ponto crucial que

reverbera no restante do diálogo e que possui, com efeito, grande

envergadura para o pensamento filosófico e religioso posterior: trata-

se do passo 62b, no qual se diz que “nós homens estamos numa certa

de phrourá”. Como entender essa afirmação, cuja obscuridade é

reconhecida pelo próprio Sócrates? Parece-nos que a compreensão

desse passo depende da interpretação e, por conseguinte, da tradução

que se dá para o termo phrourá. Afinal, trata-se de prisão, cárcere,

custódia, posto, ou serviço de guarda? Devido às muitas

controvérsias que esse vocábulo tem causado desde a Antiguidade, e

na confiança de que essa discussão ainda está longe de encontrar seu

termo, este artigo tem como objetivo não só analisar a semântica

desse vocábulo grego, mas também articulá-la com o passo no qual

está inserida. E o pano de fundo: uma visão religiosa particular que

afirma o divino ser o que cuida dos homens. Em suma, espera-se que

esse debate proporcione recursos para novas pesquisas e reflexões

férteis sobre a filosofia platônica.

Palavras-chave: Religião, filosofia, suicídio, ética, semântica da

guerra.

Abstract: At the end of the Phaedo’s prologue (61b-63b), there is a

tension between the desire for death and the prohibition against

suicide understood by Kebes as an absolute nonsense. However, what

is shown as an absurdity is, in fact, the platonic tool used to introduce

some of the grand themes that will be approached in the dialogue. It

will be outlined, in a curious thread of mythos and logos, a crucial

point that echoes throughout the rest of the dialogue and has

enormous effect on the later religious and philosophical thought: it is

precisely the passage 62b, in which is said that “we men are in a kind

of phrourá”. How can we understand this sentence, whose obscurity

is attested by Socrates himself? It seems that the comprehension of

this passage depends on the interpretation and thus the translation of

the word ‘phrourá’. What does it mean afterall, prison, jail, custody,

garrison or guard duty? Due to the many controversies that this word

has been raising since the Antiquity, and believing that this debate is

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O PASSO 62B DO FÉDON 3

far from ending, this article has the objective of not only analyzing

the semantics of this word, but also articulating it with the passage in

which it is found. And the background: a particular religious

viewpoint that defends the divine as man’s caretaker. Finally, we

hope that this debate will stimulate new researches and fruitful

reflections on the platonic philosophy.

Keywords: Religion, philosophy, suicide, ethics, semantics of war.

O presente artigo tem por objeto a parte final do prólogo do

Fédon, sobretudo o passo 62b. Neste momento aparece, de fato, um

ponto nevrálgico do diálogo: mostrar não só porque não se deve

temer a morte (e Sócrates se esforçará ao máximo para purgar esse

temor), mas, sobretudo, os motivos para desejá-la. Assim como uma

locomotiva que puxa consigo o restante dos vagões, esse tema traz

consigo as demais questões do diálogo; por exemplo, a imortalidade

e o cuidado com a alma, a teoria das Ideias, a catarse e as relações

alma-corpo; não no sentido de que ele tenha preponderância em

relação aos demais temas, mas apenas pelo fato de ele ser o

disparador que vai encadear o restante do debate. Na certeza da

magnitude dessa temática, é preciso adotar uma posição que, a um só

tempo, privilegie o pensamento de Platão no Fédon e procure evitar

ao máximo certos preconceitos e lugares-comuns.

Cebes se surpreende com a afirmação de Sócrates de que, por um

lado, aqueles que se dedicam verdadeiramente à filosofia desejam

morrer, mas, por outro lado, é proibido cometer suicídio (Phd. 61c).

E então, como se não bastasse a obscuridade dessas duas afirmações,

Sócrates expõe uma fórmula religiosa, cuja difícil compreensão é

explicitamente declarada:

E, com efeito [...], pode parecer dessa maneira

irracional (álogon); no entanto, tem possivelmente

alguma razão (lógon). Pois, então, o que se diz nos

Mistérios em relação a eles há uma razão: que nós

humanos estamos numa certa phrourá, e não é lícito

liberar-se a si mesmo nem escapar; <isso> me parece

algo grande e não fácil de alcançar; no entanto, ó

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4 Rev. Archai, n. 28, Brasília, 2020, e02803.

Cebes, isto me parece bem dito: os deuses são os que

cuidam de nós (hemôn toùs epimelouménous) e nós

humanos somos um de seus pertences (ktemáton); não

te parece assim? (Phd. 62b1-9. Tradução minha).

A compreensão do tema do suicídio depende sobremaneira do

modo como articulamos o argumento que defende sua proibição com

uma palavra em especial: phrourá. Não seria um exagero afirmar –

como se pretende tornar claro ao longo deste texto – que sua

interpretação não apenas tem ressonância no restante do Fédon, como

também é capaz de alterar o modo como se enxerga o diálogo. Com

efeito, “se trata de um ponto de grande importância não apenas para

a visão de mundo que Sócrates está para expor, mas também, e

sobretudo, para a história do platonismo europeu” (Di Giuseppe,

1993, p. 2). Por outras palavras, o modo de compreensão dessa visão

de mundo depende muito de como se interpreta a interdição ao

suicídio em conjunto com a tradução e a exegese da palavra phrourá.

É muito comum que estudos e análises acerca dessa passagem (e

dessa palavra em especial) desdobrem-se imediatamente na temática

do corpo como cárcere (ou prisão) da alma. Ora, carregando conosco

mais de vinte e cinco séculos de tradição filosófica e dois milênios de

tradição cristã – que contribuiu em grande medida para a

consolidação dessa vertente hermenêutica –, parece estar “na

medula” de nós ocidentais a associação e referência quase automática

da phrourá a essa célebre discussão. Courcelle (1974) fez uma

detalhada pesquisa e demonstrou a existência de uma verdadeira

tradição ligada ao tema do corpo-prisão1. Num outro artigo, chamado

Tradition platonicienne et tradition chrétienne du corps-prison

(Courcelle, 1965), ele faz uma síntese extraordinária de autores

cristãos que se ocuparam dessa metáfora. A fim de não parecer que

se está colocando todo o cristianismo no mesmo balaio, é preciso

citar uma pequena passagem deste texto:

1 Cf. sobretudo o capítulo XIII, seção 2, intitulada prison de l’âme (Phédon 62b,

Cratyle 400c), p. 345-80.

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O PASSO 62B DO FÉDON 5

Uma nova tradição cristã se elaborou, hostil à doutrina

do corpo-prisão. Epifânio de Chipre e Teófilo de

Alexandria no Oriente, Jerônimo e Agostinho no

Ocidente, negam que o corpo seja uma prisão atribuída

à alma como punição de um pecado anterior à sua

encarnação. Pois a geração não é nem um castigo nem

uma falta, já que o Deus do Gênese abençoa a

procriação. O pecado de Adão não teve como efeito

fazer a alma cair no corpo (Courcelle, 1965, p. 342,

grifo nosso)2.

Ressalva feita, não se pode negar a enorme influência que o

cristianismo exerceu sobre este assunto; fato perceptível quando se

constata a relutância de muitos estudiosos em aceitar leituras mais

heterodoxas, seja porque adotam o cristianismo como religião, seja

porque são influenciados pela tradição cristã a tal ponto que nem

percebem essa influência (há também casos em que intérpretes

baseiam sua interpretação no argumentum autoritatis de outros

autores). Com efeito, a discussão acerca desse vocábulo é sempre

mencionada e até mesmo considerada; todavia, ela é rapidamente

posta de lado – e com pouca cerimônia – uma vez evocado o peso da

tradição.

Nessa perspectiva, alguns dos comentadores consultados adotam

uma das seguintes posturas, ambas igualmente problemáticas: ou

desvalorizam o prólogo como um todo3, ou quando se propõem a

analisá-lo, não se debruçam sobre este ponto nevrálgico. Na melhor

das hipóteses analisam-no en passant, ignorando a possibilidade de

ele ter uma enorme reverberação no restante do diálogo. À guisa de

exemplo, esse parece ser o caso de Hackforth (1993, p. 38) e Robin

(1949, p. 8-9). O primeiro traduz a phrourá como prisão, usando

como justificativa a comparação com o famoso passo 400c do

Crátilo. O segundo, ainda que não siga a ortodoxia ao traduzir por

‘garderie’, exclui outras possibilidades de tradução pelo fato de “não

se encaixar no contexto”. Curiosamente, ambos autores têm em

2 Todas as traduções de fontes secundárias são minhas, exceto onde indicado. 3 Bostock (2002), por exemplo, dedica-lhe uma ínfima parte de seu comentário,

concentrando-se especialmente nos argumentos da imortalidade da alma.

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comum o fato de acrescentarem às suas breves justificativas o famoso

argumento do “ambiente órfico-pitagórico do Fédon”. Ora, que o

contexto do Fédon seja órfico-pitagórico é evidente, e seria absurdo

negá-lo. Porém, seria muito precipitado pensar que Platão reproduz

ipsis litteris o pensamento de seus antecessores, sobretudo quando o

próprio texto afirma o caráter estranho, profundo, difícil e até mesmo

irracional desse tema; logo, é provável que tenhamos de entender isso

como um alerta de Platão contra o perigo da univocidade. Burnet

comenta numa breve passagem a influência (e não uma apropriação)

do pensamento pitagórico:

Como nós podemos ver a partir do Fédon e do

Górgias, Platão era íntimo desses homens (scil.

pitagóricos) e ficou profundamente impressionado

pelo pensamento religioso deles, embora esteja

igualmente claro que ele não o adotou como sua

própria crença. (Burnet, 1892, p. 321)

Antes de prosseguirmos, é necessário fazer uma breve

consideração acerca de como a phrourá aparece no dicionário e, em

seguida, posicionarmo-nos de pronto no que concerne nossa opção

de tradução-exegese da palavra. Com isso, esperamos situar

adequadamente o leitor nesta problemática e prepará-lo para a

discussão que se seguirá. Seguindo o verbete de Liddell-Scott, as

traduções mais comuns do termo phrourá são: guarda, vigia e

guarnição. Há também sentidos, digamos, mais específicos como

‘posto de fronteira’, ‘posto de observação’ e ‘corpo de homens

destinados ao serviço’ (uso do vocábulo em Esparta). Há, finalmente,

uma entrada um tanto lacônica que indica o sentido de ‘prisão’,

referindo-se a Platão. É interessante notar o quanto a palavra “prisão”

destoa dos demais sentidos; nota-se ademais que em nenhuma das

palavras derivadas de phrourá a semântica da prisão aparece; o que

predomina é a semântica militar. Encontra-se, com efeito, a voz

passiva do verbo phrouréo, comumente vertido por ‘ser observado’

ou ‘ser guardado’. Burnet (1911, p. 23), na sua edição do Fédon,

acrescenta que a phrourá é a palavra usada no Peloponeso para

strateía que, por sua vez, possui as acepções de expedição,

campanha, ou serviço militar. Por isso, ele concorda com a tradução

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O PASSO 62B DO FÉDON 7

de Archer-Hind (“in Ward”) visto que ela preserva a ambiguidade

que caracteriza essa palavra.

Contudo, parece-nos – e tentaremos mostrar isso ao longo deste

artigo – que há uma diferença importante entre prisão e guarda/vigia.

Esperamos também fundamentar paulatinamente dois pontos

complementares: (1) a razão pela qual privilegiamos a semântica da

guerra e (2) o fato de a passagem 62b do Fédon não se referir ao tema

do corpo-prisão, mas à condição do homem no mundo. Enfim,

acreditamos alcançar com essa análise uma perspectiva que nos

proporcione maior clareza e definição do quadro geral do diálogo.

Poderíamos dividir didaticamente as múltiplas interpretações em

dois grandes blocos: o primeiro, composto por aqueles que defendem

a exegese tradicional, e entendem a phrourá como prisão ou cárcere

em conexão com o tema do corpo-prisão. Um segundo bloco é

representado por aqueles que rejeitam a leitura tradicional em favor

de hipóteses alternativas. Uns interpretam a palavra de modo

eminentemente ativo, optando por “serviço de guarnição”; outros

veem-na de modo ambíguo, traduzindo por “custódia” ou “posto de

guarda” na tentativa de trazer à luz a ideia de que se desenvolve uma

atividade de custódia ao mesmo tempo em que se reside

passivamente num lugar estabelecido; há, enfim, aqueles que optam

pelo sentido unicamente passivo, optando por “cercado”, “recinto”

ou “jaula”.

No primeiro bloco, por exemplo, temos – além de Hackforth –

Dorter (1991), Gallop (2009), Guthrie (1975), Bernabé (2011),

Bostock (2002), Grube (2002), Nunes (2011) e Schiappa de Azevedo

(1988). Todos eles contribuem, em maior ou menor grau, para a

formação de uma verdadeira vulgata da phrourá. O segundo bloco,

sendo radicalmente menos unívoco que o primeiro, apresenta

traduções mais variadas. Além de Robin, há também Archer-Hind

(1973) que, visando manter a ambiguidade considerada inerente à

palavra, traduz por “in Ward”, e é seguido por Burnet (1911) e Taylor

(2013). Courcelle (1965) adota a mesma tradução de Boyancé, qual

seja, “résidence surveillé” (residência vigiada), e afirma ainda:

“Platão, por sua vez, não menciona a phourá a título de castigo cruel

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[...]”. Finalmente, Dixsaut (1991) segue a mesma tradução de

Courcelle e Boyancé.

Outros autores defendem que tanto ‘prisão’ quanto ‘serviço de

guarda’ são viáveis. Burger, por exemplo, tece um comentário que

resume sua postura neutra:

o lógos secreto que Sócrates acha ‘grande e não fácil

de alcançar’ diz ou que a vida é uma prisão sem revelar

a culpa pela qual estamos encarcerados, ou que nós

mesmos somos guardiões, sem revelar aquilo pelo

qual nós somos responsáveis, nem porque somos

compelidos a manter essa posição. (Burger, 1984, p.

32)

Di Giuseppe (1993, p. 4) menciona três traduções que enfatizam

o aspecto ativo da palavra. Wartturm, que significa torre de guarda

(Dirlmeier); Wachtposten, posto de guarda (Kassner); e Warte,

guarda (Friedlander).

Diante dessa miríade de exegeses que compõem o segundo bloco

em comparação com a unanimidade e univocidade do primeiro, seria

lícito refletir sobre o que está em jogo quando se propõe uma visão

do corpo (e talvez, por extensão, do mundo) tão negativa e pessimista

figurada na metáfora do corpo-prisão; e a partir daí ponderar também

sobre a sua reverberação na história do Ocidente e seus efeitos ainda

presentes no imaginário do homem contemporâneo. Ora, se Platão

pretendeu de fato veicular a semântica do cárcere é algo que ainda

precisa ser demonstrado.

Além disso, é muito provável que ao identificar a tradução

‘cárcere/prisão’ com o tema “cárcere do corpo” estejamos adotando

uma solução muito rápida e precipitada; porém, também não seria

correto contestar essa identificação só porque isso significaria aceitar

a interpretação tradicional; trocando em miúdos, como se a reflexão

filosófica só tivesse valor na medida em que se refuta a tradição.

Nessa medida, sem uma análise cuidadosa e livre de preconcepções,

corremos o risco de, sem nos darmos conta, já termos resolvido a

priori que o passo 62b refere-se ao tema do corpo-prisão. Com efeito,

ainda que o passo se refira a esse famoso binômio,

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o problema não é decidir a priori que se trata dessa

questão; o problema é também decidir

antecipadamente que tipo de relação corpo e alma

estabelecem; dessa maneira, corre-se o risco da

petição de princípio, comprometendo a interpretação

do passo; ademais, essa petição de princípio

influenciará, sem dúvida alguma, a tradução da

phrourá. E, por conseguinte, se continuássemos

nossas indagações sobre a base dessas premissas, seria

irrelevante e não nos auxiliaria em nada encontrar

outros empregos da phrourá correspondentes aos

requisitos desejados; isso faria somente com que se

confirmasse a petitio principii inicial, isto é, seja a

obscuridade da palavra, seja a clareza do contexto

interpretativo tacitamente pressuposto (Di Giuseppe,

1993, p. 5).

Atentos aos perigos da preconcepção e da univocidade, quando

nos debruçamos sobre este problema, algumas perguntas circulam

insistentemente em nossas mentes: o que pretendia Platão com a

fórmula “nós homens estamos numa certa phrourá”? O que significa

essa palavra literalmente? Qual sua relação com a proibição do

suicídio? E, afinal, por onde começar essa investigação?

Nas primeiras páginas deste artigo, iniciamos um debate sobre a

questão da phrourá por meio da enumeração dos seus sentidos num

famoso léxico de grego e com uma exposição panorâmica dos dois

principais blocos hermenêuticos e alguns dos seus defensores. Agora,

para que tenhamos algum êxito em desvendar esse enigma, devemos

tentar rastrear o que significa comumente essa palavra na língua

grega. Sendo assim, é necessário buscar o significado literal da

palavra – sem excluir, é claro, a hipótese da ‘prisão’ – e, em seguida,

delinearmos seu campo semântico.

Segundo Chantraine (1968, p. 1229), no seu Dictionnaire

étymologique de la langue grecque, essa palavra é formada a partir

da preposição pró (‘antes’, ‘à frente’, ‘de antemão’, etc.) e o verbo

horáo (‘eu vejo’). Trata-se, portanto, de um substantivo situado

etimologicamente no âmbito do “ver antes”, do “ver primeiro”,

enfim, do “vigiar”. Sobre as ocorrências literárias mais antigas que

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mencionam essa palavra e confirmam essa interpretação, observa Di

Giuseppe (1993, p. 9):

phrourá se revela como um terminus technicus da

linguagem militar, usado principalmente: a) como

nomen actionis, com o valor geral de ‘guarda’, no

sentido de ‘serviço’ ou ‘turno’ de guarda; b) por meio

de metonímia, como nomen agentis, e significa

‘guarda’ no sentido da pessoa ou do grupo de pessoas

a serviço de guarda.

Para sustentar melhor essa hipótese devemos apresentar alguns

trechos de obras nas quais o termo aparece com esses significados.

Vejamos o verso que abre a tragédia Agamêmnon: “Aos deuses

suplico a libertação das labutas, da guarda (phrourá) anual

duradoura” (A. Ag. 1-2; tradução nossa).4

Nesse verso de Ésquilo, a palavra é claramente usada no sentido

ativo de ‘serviço de guarda’. Além disso, a cena inicial e seu contexto

são reveladores: Clitemnestra ordena que se monte uma guarda no

alto do palácio de Argos até que seu marido regresse de Troia. Ora, a

guerra durou dez anos, sugerindo que o guarda presta esse serviço há

muito tempo. Depreende-se ainda o fato de essa longa vigilância ser

fatigante e laboriosa para quem é submetido a ela; por esse motivo,

pede-se a liberação do serviço. Essa mesma acepção é encontrada em

Heródoto (2.30): “Esses egípcios, tendo prestado serviço de guarda

(phrourésantas) por três anos sem que viessem dispensá-los do

serviço (tês phrourês) [...]”.5 Como se vê, o aspecto desagradável do

serviço de guarda também é representado nessa passagem de

Heródoto. Não é fortuito que na frase seguinte, Heródoto conte que

os egípcios desertaram (apósantes) e passaram para o lado inimigo.

Como observou com precisão Di Giuseppe (1993, p. 10), nessa

passagem há um paralelo ainda mais impressionante com o Fédon: a

correspondência entre a expressão de Heródoto, “toùs Aigyptíous

apélue tês phrourês”, e a usada por Platão no Fédon (62b4-5):

4 Os trechos das tragédias de Ésquilo citadas neste artigo foram retirados de

http://www.perseus.tufts.edu. 5 Tradução M. da Gama Kury ligeiramente modificada.

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O PASSO 62B DO FÉDON 11

“heautòn ek tês phrourás lýein”. Pode-se deduzir que essa é uma

expressão idiomática, usada para indicar que alguém se subtraiu de

seu dever e abandonou seu posto.

No que concerne ao segundo significado, isto é, nome de agente,

o Agamêmnon também nos fornece ótimas referências. Clitemnestra

diz: “E a luz longínqua a guarda não ignorou” (A. Ag. 300-301;

tradução nossa). Como se vê, nos usos mais antigos do termo, a

phrourá conserva, em consonância com sua própria etimologia, o

campo semântico da guerra e, mais especificamente, da ‘guarda’ e da

‘vigia’.6 Ésquilo – desta vez no Prometeu Agrilhoado - oferece-nos

outro verso em que as nuances já mencionadas da palavra aparecem

sintetizadas. “Nos cimos mais altos, a guarda não invejável

suportarei” (A. Pr. 142-143: tradução nossa). Considerando o

contexto da tragédia, talvez essa seja a frase – das que foram

mencionadas até agora – que mais aproxima as semânticas da

phrourá e do desmotérion (de fato, essa passagem do Prometeu

remete-nos a Phd, 67d1-2). Contudo, seguindo a premissa de que as

diferenças, uma vez encontradas, devem ser bem marcadas,

precisamos tecer uma palavra sobre esse trecho.

A fala de Prometeu ao coro indica-nos como serão as condições

de sua vida; ele deve suportar sua guarda sem esperanças de que essa

tarefa chegue a um termo. Nota-se que a guarda é, assim como no

Agamêmnon, algo cansativo, desprazeroso e de longa duração. Além

disso, é importante observar que Prometeu não está preso (ou

encarcerado) no sentido que hoje concebemos. Ele está no alto de

uma montanha, num local completamente aberto e propício para o

seu trabalho de vigia; portanto, o grilhão denota a ideia de

imobilidade e não de confinamento. Logo, parece-nos que Prometeu

6 Nas Traquínias (225-256), Sófocles fala em hómmatos phrourán, ‘a vigia dos

olhos’, ou ainda, segundo a tradução de Trajano Vieira, ‘a atenção da vista’. Vale

sublinhar também um verso de Aristófanes (Nu. 721-722): “E ainda, além desses

males, com as vigílias (phrourâs) já cantadas, eu mesmo estou quase partindo”

(tradução minha; trecho retirado de http://www.perseus.tufts.edu).

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12 Rev. Archai, n. 28, Brasília, 2020, e02803.

é constrangido a correntes não para evitar a fuga de uma prisão, mas

para que não abandone seu posto e sua tarefa.

A propósito, é interessante notar o paralelo entre a tarefa de

Prometeu e a própria etimologia do seu nome, Prometheús: ele é

composto da preposição pró e o verbo mantháno, que pode significar

tanto ‘aprender’, ‘conhecer’ e ‘compreender’, quanto ‘notar’, ‘ver’,

ou ainda, ‘apreender pelos sentidos’; “significa exatamente o que o

latim denomina prudens, de prouidens, o prudente, o “previdente”, o

que percebe de antemão” (Brandão, 2010, p. 175). O paralelo

estende-se não só ao parentesco morfológico e semântico com a

phrourá, mas, sobretudo, ao fato de o herói cumprir na tragédia a sina

imposta, antes de mais nada, pelo seu próprio nome: a vigilância. Até

este ponto, como se pode perceber, não se falou ainda de ‘cárcere’.

Nos exemplos mencionados acima, retirados da literatura anterior a

Platão, phrourá tem sempre o significado usual de ‘guarda’.

E no que diz respeito ao contexto filosófico? Seria o Fédon o

primeiro texto em que aparece esse termo? Com efeito, há um

belíssimo fragmento de Antifonte, o orador, advogado e filósofo

coetâneo de Sócrates, em que a phrourá aparece na semântica que

estamos traçando:

O viver se parece com uma vigília efêmera e a

longitude da vida com um dia, no qual, por assim

dizer, lançando os olhos na direção da luz, entregamos

o posto [phrourán] aos outros que nos sucedem.

(DK87 B50, trad. Ribeiro, 2008)

O fragmento de Antifonte confirma de modo cristalino que até

mesmo num contexto considerado filosófico, o significado originário

de ‘guarda’ se mantém.

No que concerne à obra de Platão, a palavra também é usada

dentro da semântica militar, seja como nome de ação, seja como

nome de agente. Vejamos primeiro o Crítias: “Aos soldados mais

confiáveis era atribuída a vigia (phrourá) da torre mais estreita e

próxima à Acrópole” (Criti. 117d1-3). Aqui, a palavra aparece no

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O PASSO 62B DO FÉDON 13

sentido de ‘serviço’. Nas duas passagens seguintes das Leis, ela

aparece no sentido de ‘turno’ e ‘posto’ de guarda respectivamente.

Por dois anos o comando e a guarda (tèn phrourán)

pertencem aos guardas (phrouroîs) e também aos

comandantes da guarda” (Lg. 6.760c5-6; trad. nossa).

[...] e expõem por escrito na ágora que abandonou o

posto (tèn phrourán). (Lg. 6.762c5; trad. nossa).7

No mesmo diálogo, a phrourá aparece com todas as nuances de

‘guarda’ já mencionadas.

Nada, tanto quanto possível, fica sem vigilância

(aphrouréton). No que concerne à cidade, as guardas

(hai phrouraí) ficam sob os cuidados dos generais,

taxiarcas, hiparcas, filarcas, pritâneos, e também dos

administradores da cidade e da ágora (Lg. 6.760a6-

b1).8

Nesse passo, cada um dos cargos públicos assinalados é

responsável por cuidar de uma guarda. Nos passos seguintes fica

claro que esses magistrados devem preocupar-se com tudo o que

concerne suas respectivas guardas: os tipos de pessoas que vão

prestar o serviço, as durações dos turnos, os postos a serem ocupados

e as regiões onde o serviço de guarda será prestado; além disso, serão

escolhidos cinco phrourárchoi (capitães da guarda) para auxiliar os

magistrados e servir de mediadores entre eles e os distritos da cidade.

O aspecto etimológico, o uso na literatura, na história e na própria

filosofia de Platão indicam claramente o campo semântico militar da

palavra phrourá.9 Ela denota, com efeito, uma atividade; atividade, é

7 É interessante observar que na passagem seguinte, é dito que esse desertor deve

ser punido por ter falhado com seu dever público. Analogamente, no Fédon (62c1-

4) Sócrates informa que deus ficaria irritado e, se possível, puniria, aqueles que não

cumprissem com a obrigação imposta por thémis. 8 Vertido para o português a partir de Di Giuseppe, 1993 (ligeiramente

modificado). 9 É préciso ressaltar que encontramos 47 ocorrências do termo phrourá s no corpus

de Xenofonte, filósofo e historiador contemporâneo a Platão. Em cada caso, a

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14 Rev. Archai, n. 28, Brasília, 2020, e02803.

importante lembrar, da ordem da ambivalência, porque ela é penosa,

difícil, sofrida, e muitas vezes desprazerosa (como no Prometeu e no

Agamêmnon); sendo assim, Platão tem o hábito de utilizar esse termo

dentro semântica da guerra.

Todavia, para justificar o tema do corpo-prisão, é comum que

alguns estudiosos lancem mão de uma passagem do Crátilo em que

se apresenta o binômio sôma-sêma (corpo-tumba):

A meu ver, é passível de várias interpretações se o

modificarmos um tantinho. Uns afirmam que o corpo

é sepultura (sêma), da alma por estar a alma em vida

sepultada no corpo, ou então, por ser pelo intermédio

do corpo que a alma dá expressão ao que quer

significar (semaínein), é muito apropriado esse mesmo

nome com o significado de sinal (sêma), que lhe foi

dado. Porém o que me parece mais provável é que

foram os órficos que assim o denominaram, por

acreditarem que a alma sofre castigo pelas faltas

cometidas, sendo o corpo uma espécie de receptáculo

ou cárcere (desmoteríou), onde ela se preserva

[sôizetai: se mantém a salvo, se protege] até que pague

aquilo que lhe é devido; por isso, esse “corpo” seria ao

pé da letra “proteção” da alma até que pague aquilo

que deve; nessa hipótese não será preciso alterar uma

letra (Cra. 400c; trad. Nunes, 2001, ligeiramente

modificada).

Como se pode perceber, nesse passo Sócrates procura traçar

a etimologia da palavra corpo (sôma) e o faz basicamente de três

maneiras: (1) alguns afirmam que o corpo é a tumba (sêma) da alma,

aproveitando a grande semelhança entre as duas palavras (doutrina

cuja paternidade é geralmente conferida aos órficos; o pronome

‘tines’ (alguns) parece ser justamente uma alusão que Sócrates

tornará explícita logo em seguida). (2) Acrescenta ao binômio sôma-

sêma a correspondência entre sêma - semaínein; concebe-se, pois, a

ideia de que o corpo não é o sêma da alma na perspectiva em que

normalmente se pensa, isto é, tumba; ele é lugar de significação, o

tradução gira em torno do aspecto militar do vocábulo, o que indica, parece-nos,

que ele não perdeu seu sentido original.

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O PASSO 62B DO FÉDON 15

instrumento de que a alma se utiliza para se manifestar e dar sentido

ao mundo. De fato, o primeiro sentido de ‘sêma’ é precisamente

‘sinal funerário’, ou seja, a marca colocada na terra para conservar a

memória do morto; daí a ambivalência semântica da palavra. Bernabé

(2011), aponta que o deslizamento de ‘tumba’ para ‘sinal’ teria feito

parte de uma leitura alegórica por parte de autores não órficos (e

provavelmente pitagóricos) na tentativa de suavizar a crueza da

fórmula órfica. (3) A última proposta etimológica – seguindo a leitura

de Bernabé – deve ser atribuída não a Orfeu e seus seguidores, mas

ao próprio Sócrates.

Para justificar sua interpretação, o Bernabé baseia-se em duas

expressões do texto: o verbo “parece-me” (dokoûsi ... moi), indicando

que o que se seguirá é a visão de Sócrates sobre o assunto; e a frase

“nessa hipótese não será preciso alterar uma letra”, que mostra a

enorme satisfação de Sócrates em ter encontrado uma etimologia que

ele considera mais adequada que a dos órficos. Segundo a etimologia

socrática, o corpo é um lugar de proteção (sôizetai) da alma; isto é,

um recinto do qual a alma não pensa em fugir porque lá ela está

preservada, protegida, mantida a salvo. Ora, na perspectiva da

terceira etimologia, já se observa que o Crátilo se situa num contexto

diferente do Fédon, em que, sempre de acordo com a interpretação

tradicional, a alma deseja fugir da prisão do corpo por não suportar

os perigos (i.e., dores, sofrimentos, prazeres, etc.) que ele

constantemente a submete.

Fizemos um recorte da longa análise de Bernabé para captarmos

com mais objetividade o que Platão tentou fazer nesse passo do

Crátilo.

Em outras palavras: Sócrates diz que aceita que o

sôma se chame assim porque pode-se considerar um

sêma (em seu duplo sentido), mas, sobretudo, porque

soidzei [sic.] à alma [...]. O que Sócrates toma dos

órficos são determinadas doutrinas sobre a alma

que favorecem a nova interpretação que agora

oferece ele mesmo [...]. Platão, através da nova

etimologia que propõe que sôma é um nome de

resultado de sôidzo, reinterpreta o papel do corpo em

um sentido mais positivo, como proteção da alma,

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16 Rev. Archai, n. 28, Brasília, 2020, e02803.

utilizando como intermédio a ideia de prisão [...]. O

ponto de vista de Platão está centrado no aspecto

político e na moral; o mito é um preventivo para a

correta atuação do homem como cidadão; esta vida

tem valor e a alma está ‘sob custódia’ do corpo, mas

viva e atuante [...]. Platão, pela boca de Sócrates,

analisa a etimologia de sôma e reivindica uma nova

interpretação a partir de soidzein [sic.] “salvar”,

que explica para ele a condição do corpo melhor do

que o faz a identificação com sêma [...]. A melhora

etimológica é, por um lado, linguística, porque não

obriga a mudar nenhuma letra [isto é, o por e], mas por

outro, afeta a questões mais profundas (Bernabé,

2011, p. 207, 210, 218, 222, 227; grifo nosso)

Platão aceita a fórmula órfica na medida em que ela serve de base

para a elaboração de sua própria visão; em contrapartida, Platão

declara explicitamente a preferência pela sua etimologia: afinal, não

é necessário alterar nenhuma letra. O que se vê nessa passagem do

Crátilo é um movimento tipicamente filosófico: aceita-se a tradição

para em seguida confrontá-la e, quando necessário, refutá-la. Platão

realiza uma mudança substancial na interpretação do papel do corpo,

sem dúvida, menos pessimista que a fórmula órfica. Estamos

convencidos, junto a Bernabé (2011, p. 228),10 de que é precisamente

com o intento de alterar essa visão que Platão corrige a etimologia de

sôma e, com isso, negar a interpretação do corpo-tumba. Contudo,

parece-nos que a mudança mais substancial, diríamos ainda, radical,

que Platão realiza, está no próprio valor do termo tò desmotérion

(nota-se, aliás, que Platão não usa a phrourá para exprimir a ideia de

cárcere): mesmo usando o termo clássico para ‘prisão’, a ideia

evocada é a da ‘custódia’, um recinto no qual a alma mantém-se sã e

salva.

Em suma, esse trecho do Crátilo parece não ser adequado para

dar suporte à interpretação tradicional da phrourá, pois o corpo é

10 A única crítica que poder-se-ia fazer à leitura de Bernabé é a identificação, um

tanto apressada (como o fazem também boa parte dos estudiosos), da phrourá ao

tema do corpo-prisão (p. 221), e a redução semântica dessa palavra com o

desmotérion.

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O PASSO 62B DO FÉDON 17

visto como conditio sine qua non no que diz respeito às atividades da

alma, ou ainda, à sua manifestação no mundo. E, além de figurar-se

como instrumento de significação e uma espécie de refúgio, em

nenhum momento uma relação negativa entre corpo e alma é

mencionada.

Costuma-se lançar mão também do passo 525a7 do Górgias;

quanto a isso, basta citar uma importante observação de Burnet

(1911, p. 23): “A phrourá em Górgias 525a7 é a prisão do mundo e

não do corpo”. Ora, a mesma observação de Burnet valeria para o

passo 114c do Fédon (muito usado também como justificativa da

interpretação do corpo-cárcere) em que Platão refere-se a uma prisão.

Contudo, nessa passagem, Platão está se referindo à prisão da Terra,

ou melhor, àquilo que os homens pensam ser a verdadeira Terra; e

para isso ele utiliza o termo desmotérion e não phrourá. Agora é

possível compreender melhor como uma palavra podia significar

tanto ‘serviço/posto de guarda’ quanto ‘custódia’, ‘cárcere’,

‘residência vigiada’ e até mesmo ‘jaula para animais’. Nessa

perspectiva, Di Giuseppe (1993, p. 14) conclui:

É notável [...] o uso da palavra num contexto filosófico

com o desaparecimento da referência militar. Como a

residência numa solitária, o estar em custódia refere-

se ainda menos diretamente ao serviço de guarda,

restando o sentido de lugares guardados. Com o

desaparecimento progressivo do contexto militar,

também o significado ativo da palavra aparece menos,

a favor do êxito da noção passiva de ‘guarda’, que se

afirma pouco a pouco.

Uma vez recolhido e avaliado todo esse material – passando

pelos comentadores contemporâneos, além das etimologias e usos

literários e filosóficos – como nos posicionar diante disso tudo, e

oferecer uma tradução e interpretação que nos pareça razoável e mais

consonante com o passo 62b do Fédon?

Para facilitar uma visão geral da questão da phrourá e desnudar

a palavra de uma vez por todas, propõe-se a tabela abaixo, em que

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decompomos e sintetizamos todos os aspectos semânticos

identificados nos tópicos anteriores.11

Tabela 1: <Significados particulares do termo phrourá>

(1) como nome de ação: Serviço de guarda

(2) como nome de agente: Guarda

(3) como nome de lugar:

(3.1) com significado ativo (lugar

que se guarda)

(3.1) Posto de guarda

(3.2) com significado passivo

(lugar guardado)

(3.2.1) em sentido positivo ou

neutro (proteção ou circunscrição)

(3.2.1) Custódia

(3.2.2) em sentido negativo

(detenção)

(3.2.2) Cárcere/Prisão

Uma vez destrinchada toda a semântica da palavra, podemos

considerar, dentre as suas múltiplas acepções, a que melhor se

encaixa no passo 62b. A expressão “ek tês phrourâs lýein” sugere-

nos que as acepções (1) e (2) não são adequadas porque, apesar de

denotarem o aspecto da ação, nenhuma delas implica a ideia de lugar.

Avançando um pouco no texto, em 62d4 há uma referência explícita

a um ‘serviço prestado aos deuses’ (therapeías); exclui-se, portanto,

as acepções passivas de custódia e cárcere, restando-nos apenas a

acepção (3.1).

Também podemos reforçar essa escolha se compararmos a

atitude dos deuses no Fédon que – da mesma forma que os

magistrados das Leis (760a7-8: strategôn epimelouménon) – cuidam

de nós (62b7: hemôn toùs epimelouménous). Confirmado o contexto

ativo do serviço militar, vê-se que ele é totalmente compatível com o

significado (3.1). Sendo assim, seguimos a sugestão de Di Giuseppe

11 Modificamos ligeiramente o quadro proposto por Di Giuseppe (1993, p. 15), cuja

essência, contudo, procuramos manter.

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O PASSO 62B DO FÉDON 19

e traduzimos por “corpo de guarda”, já que se diz que todos os

homens estão neste posto12. A princípio, pode parecer problemático

o uso da palavra ‘corpo’ quando se considera o contexto do Fédon

(em que o termo ‘corpo’ (sôma) aparece várias vezes) e o fato de

estarmos muito acostumados a associar esse vocábulo ao seu aspecto

fisiológico. Contudo, pensemos no termo ‘corporação’, muito

presente no léxico militar contemporâneo (daí dizermos, p.ex., ‘corpo

de bombeiros’); consideremos ainda que a palavra latina custodia

possui como uma de suas acepções primeiras o sentido de ‘corps de

guarde’ (segundo o léxico latim-francês de Félix Gaffiot);

imaginemos, enfim, uma guarda completa de uma fortaleza, sendo a

fortaleza a própria Terra, e sua guarnição a humanidade inteira.

Observação feita, vejamos novamente Fédon 62b com a tradução

proposta:

E, com efeito [...], pode parecer dessa maneira

irracional; no entanto, tem possivelmente alguma

razão. Pois, então, o que se diz nos Mistérios em

relação a eles há uma razão: que nós humanos estamos

num certo corpo de guarda, e não é lícito liberar-se a

si mesmo nem desertar; <isso> me parece algo grande

e não fácil de alcançar, entretanto, ó Cebes, isto me

parece bem enunciado: os deuses são os que cuidam

de nós e nós humanos somos um de seus pertences;

não te parece assim?

Sob essa perspectiva, conseguimos enxergar através da trama de

mythos e lógos de Sócrates e compreender a sua fala. Se os homens

vivem num ‘corpo de guarda’, os deuses tomam conta deles e os

supervisionam, da mesma forma que um comandante supervisiona e

se (pre)ocupa com a sua própria guarda; entende-se também porque

os homens são pertences (ktémata; 62b8) dos deuses; não porque

estejam circunscritos num recinto, como um rebanho que está

12 Roux & Roux (1961, p. 207-210) são vozes (quase) solitárias no século XX na

defesa da interpretação não hegemônica da phrourá. Os comentadores optam pela

metáfora militar e traduzem service de garnison seguindo, aliás, a sugestão de

Cícero nas obras De Senectute e Somnium Scipionis onde phrourá é traduzida por

praesidium ou statio (posto de guarda).

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limitado pela cerca; mas porque na condição de ‘servidores’ ou, se

quisermos, de ‘guerreiros’, realizam para os deuses certo érgon.

Além disso, sendo nossos mestres (despótoi) e superiores, é preciso

esperar que eles autorizem nossa retirada, i.e., nossa morte13. Não se

deve levar ao pé da letra a passagem em que se diz que os deuses

ficariam furiosos e nos puniriam. O fato de a divindade ser boa e

cuidar dos homens, e Sócrates enxergar o mundo como um cosmo

moralmente organizado, torna paradoxal o fato de essa mesma

divindade aprisionar, sem motivo, aqueles por quem ela vela.

Precavidos contra a possibilidade de abordar o texto com

concepções e opiniões formadas de antemão – e também contra a

possibilidade de que estivéssemos recusando a interpretação

tradicional por uma rebelde “aversão à ortodoxia” – aceitamos em

nossa análise a hipótese da ‘prisão’ e verificamos paulatinamente que

ela não se confirma como uma tradução adequada. Refletindo um

pouco mais acerca dessa metáfora, conclui-se que ela não se encaixa

bem ao passo 62b Fédon.

Supostamente, o prisioneiro não tem motivo algum para suportar

a dura pena; ele poderia simplesmente encurtar seu período de

encarceramento e se autoproclamar livre mediante o suicídio. Como

aponta Gertz (2011, p. 37) com acuidade: “Se eu fui escravizado e

preso por um inimigo, não deveria eu aguardar o momento adequado

para escapar?”. Além disso, não se identifica nenhum vínculo entre

ele e seu carcereiro; o prisioneiro é puramente passivo em sua

condição de penitente, ou seja, não presta serviço a ninguém, ao

passo que o guarda está vinculado a um compromisso (i.e., a

therapeía) com a divindade. Na imagem do corpo de guarda, o que

mantém (ou deveria manter) o homem atrelado à vida não é um lugar

no qual ele está detido, e sim, esse vínculo estabelecido pelo serviço

13 Nesse sentido, vale citar in extenso um comentário de Roux & Roux (1961, p.

208): “À notre avis, les mots phrourá et ktêma ne développent pas une seule et

même image […]; Platon recourt à deux images différentes, successives, la seconde

exprimant la même idée que la première, mais avec beaucoup plus de force : à

savoir que l’homme n’a pas le droit de déterminer lui-même, par un acte de son

libre-arbitre, la durée du temps qu’il doit passer sur la terre.”

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O PASSO 62B DO FÉDON 21

assumido perante os deuses. Podemos encontrar evidências desse

vínculo no próprio Fédon. Sócrates diz explicitamente – na célebre

passagem sobre os cisnes (84e-85a) – que ele e essas aves são

servidores (therápontes) de Apolo. Dentro da metáfora do corpo de

guarda, ao cometer suicídio, o homem priva os deuses de “soldados”

ao seu serviço. Perguntemos, ademais, aos defensores da

interpretação tradicional o porquê de Platão utilizar na frase que abre

o Fédon (57a2) o vocábulo tò desmotérion para referir-se à prisão

onde estava Sócrates, e em 62b, onde supostamente ele também se

refere à prisão, ele não repetir o mesmo vocábulo.

Parece-nos igualmente errôneo ligar a phrourá ao tema do corpo-

cárcere. Primeiro, em nenhum lugar do Fédon se diz que estamos no

corpo pagando a pena de um crime pretérito ou de uma culpa

originária.14 Além disso, Sócrates diz que essa fórmula não é clara de

se compreender. Segundo Dixsaut – esse não seria o caso se a

phrourá tivesse o sentido unívoco de prisão; univocidade, aliás, que

não faz parte da ambiguidade semântica que, conforme mostramos,

lhe é inerente (ignora-se seu aspecto ativo). Segundo, basta

compreender que o suicídio per se – e pensado como libertação – está

disponível a todos; o que o impede não é um espaço fechado (o corpo)

em que se está detido, mas o imperativo da thémis divina; ademais,

não faria sentido proibir algo que não fosse possível de ser levado a

cabo. Ora, nessa perspectiva, poderíamos questionar a fragilidade

desse suposto cárcere que, na realidade, não prende ninguém já que

bastaria se suicidar para se libertar e fugir dele. Dito de outro modo,

uma vez aceita a possibilidade do suicídio e o cárcere sendo, por

definição, um lugar que impossibilita ao cativo qualquer chance de

fuga, as duas coisas não se encaixam; vê-se, pois, que não há uma

14 Assim como não há referência alguma ao mito de Dioniso no Fédon. Essa foi,

p.ex., a solução de Xenócrates em sua tentativa de solucionar o enigma da phrourá

e que deu origem a uma vasta tradição hermenêutica que perdurou até Damascio.

Fundamental lembrar que Damascio (2009), ao discutir este ponto, faz um juízo

sobre a vida e a condição humana na Terra; com efeito, na visão desse

neoplatônico, os homens reencarnam e são colocados numa na phrourá com fins

de ‘aprendizado’ e não por castigo.

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correspondência entre corpo-prisão, e libertação pelo suicídio

(entendido como fuga da prisão).

Todavia, há aqueles que – mesmo diante de tais evidências -

preferem manter a tradução por “cárcere” ligando-a ao tema do

corpo-prisão, mas ao mesmo tempo fornecendo inúmeras explicações

e justificativas de que não estão entendendo a palavra (e, por

extensão, nem o corpo) em sentido negativo. Ora, pode-se evitar não

só todos esses circunlóquios, mas também evitar que o leitor, desde

o prólogo, cristalize uma certa imagem do Fédon e de seu conteúdo:

basta alterar a tradução de uma palavra e o tom da fala de Sócrates já

sofre grandes mudanças. Perguntemos, pois, o motivo de perseverar

no uso de uma palavra cuja semântica sofreu tamanho desgaste e que

induz o leitor a uma univocidade que não é o que se pretende veicular

no texto. Ora, que o corpo ou a vida de modo geral sejam prisões, é

uma coisa que apenas narrativas religiosas podem dar-nos suporte;

por outro lado, que a vida seja uma batalha constante, qualquer um

pode com facilidade verificar e experimentar cotidianamente. Em

última instância, se a phrourá é uma prisão ou um corpo de guarda,

qualquer que seja o caminho que decidamos tomar, ele está

diretamente relacionado ao modo pelo qual desejamos (cientes ou

não) interpretar a visão socrática da vida: como um castigo, uma

penalidade, ou como uma prova, uma missão, ou um serviço a ser

cumprido.

Evidentemente, isso não significa dizer que – uma vez excluído

o tema do corpo-prisão – exclui-se de maneira absoluta o caráter

passivo e até mesmo negativo da palavra, visto que também no corpo

de guarda, o indivíduo é constrangido a uma résidence surveillé

(residência vigiada). Nessa medida, entende-se não apenas a

obrigação do serviço e do lugar em que se reside para a sua

realização, mas também seu aspecto fatigante e desagradável (como

nos mostrou Heródoto e Ésquilo, sobretudo no Prometeu

Acorrentado). Em contrapartida, a tradução “cárcere/prisão” acentua

de tal maneira o aspecto negativo da palavra que ela termina por

anular seu outro aspecto que é o da responsabilidade no cumprimento

do serviço.

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O PASSO 62B DO FÉDON 23

Nessa perspectiva, é preciso fazer mais um pequeno comentário

sobre a letra platônica. Segundo o passo 62b, “nós homens estamos

numa certa phrourá”, e não a alma ela mesma, como deveria ser caso

se tratasse do cárcere do corpo. Evidentemente, não é lícito dizer que

“nós homens estamos no cárcere do corpo”, porque ‘homem’ já é o

nome dessa combinação de alma e corpo, como nos diz Sócrates de

modo cristalino no passo 79b1-2: “Ora vê, no homem há duas coisas

distintas a considerar: por um lado, o corpo, por outro, a alma?” (Ver

também Phd. 80b3 e 80c2-4). Então, se a frase em 62b4 for

interpretada à luz da metáfora do corpo-cárcere ela ficaria com um

sentido deveras absurdo: significaria que alma e corpo estão na prisão

do corpo. Para que a metáfora do corpo-prisão funcione, seria

necessário identificar ánthropos e psyché, o que o texto do Fédon não

nos autoriza a fazer (seria preciso lidar, é verdade, com os passos

130b-e do Alcibíades I e 365e do Axíoco).

Na imagem do corpo de guarda, contudo, e talvez a diferença

mais relevante esteja neste ponto – o filósofo figura-se como uma

espécie de hoplita e de acordo com essa imagem, pode-se dizer

seguramente que a areté “filosófico-guerreira” cumpre-se em uma

morte enfrentada com intrepidez. Segundo Di Giuseppe, é

exatamente isso que Sócrates faz:

A morte de Sócrates como realização de sua areté. Isso

significa que para Platão, só com a morte se atinge a

virtude buscada em vida; ele encontra a excelência

humana na provação da morte corajosamente

enfrentada. (Di Giuseppe, 1993, p. 94)

Essa virtude é, sem dúvida, o traço mais marcante do Sócrates do

Fédon; é precisamente sua postura austera que serve de inspiração e

encorajamento para seus companheiros. Que essa virtude, aliás, seja

também a maior virtude guerreira, prova-nos a Ilíada: Aquiles não é

o melhor dos Aqueus (áriston Achaiôn; 1.244) porque ele é o mais

forte (esse é Ájax), ou o mais sagaz (esse é Odisseu); ele é o melhor

dentre os melhores precisamente porque ele é o único dentre todos os

aqueus que não teme a morte e marcha em direção a ela sem hesitação

(não é fortuito, aliás, a menção a Aquiles em Pl. Ap. 28c-d). Ora, não

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24 Rev. Archai, n. 28, Brasília, 2020, e02803.

nos esqueçamos que Sócrates foi realmente um soldado a serviço de

Atenas que realizou grandes proezas militares. Não podemos nos

esquecer, por exemplo, da descrição das habilidades guerreiras de

Sócrates em Diógenes Laércio (2.22) e no Banquete de Platão (219e-

220d).

Torna-se patente, então, que ao combinar a proibição do suicídio

com o enigma da phrourá, Sócrates está convidando seus

interlocutores a refletir sobre a relação entre vida e morte e deuses e

homens. E a metáfora do ‘corpo de guarda’ nos mostra, justamente,

um juízo sobre a vida e a situação dos homens na Terra. Como aponta

Di Giuseppe (1993, p. 37),

a vida é vista por Sócrates como uma obrigação na

qual o homem empenha a própria responsabilidade,

isto é, como um serviço a cumprir até o fim. Não

nos é dado o porquê desse serviço, mas para isso

também há uma explicação; porque a interdição ao

suicídio é apresentada como um imperativo e não

como um raciocínio persuasivo (grifo nosso).

Com efeito, poder-se-ia afirmar que a maioria dos homens,

desconhecendo essa curiosa relação com o divino - não é fortuito que

Sócrates fale de um lógos secreto, ou seja, inacessível às massas -,

desconhece também esse serviço que deve ser prestado aos deuses.

Nesse sentido, Sócrates seria um privilegiado, já que mantém com os

deuses uma relação muito próxima e consciente; ou seja, a despeito

da acusação de impiedade, Sócrates reconhece o divino como

ninguém, mediante daímones, sonhos, ou quaisquer outros sinais;

tudo isso o levou a descobrir o seu próprio serviço.

Ademais, assim como no Crítias e nas Leis, no passo 62b do

Fédon, o aspecto ambivalente da phrourá pode ser resumido na

expressão de Dixsaut (1991) – aliás, muito pertinente – Surveillance-

Surveillé, isto é, Vigilância-Vigiada. E é justamente a divindade que

faz a vigilância do homem. Suicidar-se não significa, portanto, fugir

da prisão; significa abster-se da missão divina, desertar do posto e,

consequentemente, a liberação de um compromisso assumido, sem

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O PASSO 62B DO FÉDON 25

que esse compromisso tenha de fato chegado ao fim.15 É preciso,

como diz o próprio Sócrates, esperar que deus envie um sinal claro

de que o homem está liberado do serviço. A esse propósito, há duas

belíssimas passagens nos Discursos de Epiteto que nos remetem ao

Fédon e nos ajudam a fundamentar nossa posição:

E de minha parte eu diria: amigos, esperem por Deus:

quando ele der o sinal (seménei) e liberá-los (apolýsei)

de seu serviço (hyperesías), então vão até ele; mas por

enquanto suportem a morada nesse lugar onde ele vos

colocou; curto, de fato, é o tempo de vossa morada

aqui, e fácil de suportar para aqueles assim dispostos.

[...] Esperem então, não partam sem um motivo.

Só não podemos fazê-lo [o suicídio]

inconsideradamente, nem fracamente, nem por

qualquer outro motivo; pois, por outro lado, Deus não

quer que isso seja feito, e ele tem necessidade de tal

mundo e de tais habitantes vivendo nele. Mas se ele

der o sinal para a retirada (héos àn ho theòs

seménei tò anakletikón), como ele fez com Sócrates,

nós precisamos obedecer aquele que deu o sinal,

como se ele fosse um general (strategôi). (Epict.

Ench. 1.9, 29;16 grifo nosso)17

Em primeiro lugar, é preciso sublinhar a presença do vocabulário

militar em ambos os trechos. Isso mostra-nos que Epiteto captou com

maestria a relação deus-general/homem-soldado que procuramos

trazer à luz ao longo deste artigo18. Segundo, conquanto Epiteto não

utilize o mesmo termo de Platão, ele fala de um ‘lugar’ em que os

homens foram colocados. Ora, é interessante notar que a phrourá

também possui essa acepção (3.1); e foi precisamente esse aspecto

15 Da mesma forma, o suicídio segundo a leitura de Damascio (Comm. Phd., 1, 10),

seria a comprovação de que a alma ainda precisa ligar-se novamente a um corpo

para continuar o aprendizado que ela própria interrrompeu. 16 Vertido para o português a partir da tradução de Long obtida em

http://www.perseus.tufts.edu. 17 Note-se que no parágrafo anterior, Epiteto refere-se à ‘prisão’ com o clássico

vocábulo tò desmotérion. 18 Sobre a articulação entre o sentido militar da phrourá e a fórmula dos estoicos

héos àn ho theòs seménei tò anakletikón, cf. Roux & Roux, 1961, p. 209.

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que verificamos ser o mais adequado para o passo 62b. Assim como

os deuses fizeram com Prometeu, os homens foram colocados em

uma morada difícil de lidar, com percalços a serem suportados; na

perspectiva de Epiteto, a morte é o “bater em retirada” em resposta

ao comando da divindade. E esse comando é dado por um ‘sinal’,

como o próprio Epiteto faz questão de frisar, remetendo o leitor à

importância de se reconhecer o divino tal como fez Sócrates.

Portanto, a visão estoica acerca do suicídio – pelo menos em Epiteto

– parece sofrer grande influência do passo 62b do Fédon.

Mas não é apenas no prólogo que metáforas guerreiras estão

presentes. Com efeito, elas permeiam o diálogo como um todo.

Dixsaut (1991, p. 122) observa com acuidade que essas metáforas são

amplamente utilizadas por Fédon no interlúdio (88c-89c). Chama

nossa atenção sobretudo o seguinte passo:

Foi como se, derrotados (hetteménous) e postos em

fuga (pepheugótas), a sua voz nos exortasse de novo a

regressar às fileiras (anekalésato kaì proútrepsen), a

fim de prosseguirmos em conjunto com o exame do

argumento (89a5-7).

Logo em seguida, Sócrates diz que ele e Fédon deverão cortar os

cabelos se ele não retornar à peleja e derrotar o discurso de Símias e

também o de Cebes (prín àn nikéso anamachómenos tòn Simmíou te

kaì Kébetos lógon – Phd., 89c2-5). Ora, que a semântica da guerra

permeia todo o diálogo, mostra-nos também os passos 103d8 e

104b11, nos quais Sócrates diz que, num embate entre contrários

(p.ex., neve e fogo), um deles terá que bater em retirada

(hypechorésein) ou perecer (apoleîsthai).

Em suma, Sócrates parece ver na decisão dos atenienses a

vontade dos deuses, ou melhor, um sinal claro de liberação do

serviço. Além disso, a pena de morte imposta pelo tribunal ateniense

é vista por Sócrates como a ocasião de cumprir seu desejo de morrer.

Sócrates, portanto, não sustenta a teoria de uma interdição absoluta

ao suicídio. Nesse sentido, talvez ele não queira condenar simpliciter

o suicídio, mas tentar explicar por que o desejo de morte do filósofo

não pode justificar o ato de encurtar a existência ao morrer pelas

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próprias mãos. Ora, se lembrarmos da Apologia, entre ser privado da

atividade filosófica e da própria vida, Sócrates prefere morrer, porque

“uma vida sem investigação não vale a pena ser vivida”. É justamente

nessa encruzilhada imposta pelos atenienses que Sócrates enxerga o

sinal divino anunciando sua morte e o fim da sua missão: fazer

filosofia.

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Submetido em 23/05/2018 e aprovado para publicação em 10/01/2019

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