10. geertz, clifford. nova luz sobre a antropologia

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, . 1. _: .A-( U::t\::Jf':" 5: "1'::. 1'"', ,'] _ '<}('::'1: ", -:< .. Clifford Geertz I\"\.l <>S' ILHAS DE H ISTORiA Marshall Sahlins AUTORIDADE & AFETO Lins de Banos dire-ror: Gilberta \'dho ·0 RISO E 0 RISfvEL Verena Alberri ANTROPOLOGIA SOCIAL MOVIMEl\TO PUNK NA CIDADE Janice Caiafa I I 1 ·0 ESpfRITO MrUTAR Os MIUTARES E A REPOBLICA Celso Castro VELHOS MILITANTES Angela Castro Gomes, Dora FJaksman. Eduardo StolZ • DA VIDA NERVOSA Luiz Fernando Duarte • GAROTAS DE PROGRAMA Maria Dulce Gaspar NOVA Luz SOBRE A ANTROPOLOGIA Clifford Geertz Os MANDARINS MILAGROSOS Elizabeth Tcavassos ·ANTROPOLOGIA L'RBANA ·.OESYIO E OIVERG£NCIA E CULTURA ·PROJ£TO E METAMORFOSE • SUBJETIVIDAOE E SOCIEDADE ·A UTOPIA URBANA G;'berto Velho ·0 MUNDO FUNK CARIOCA ·0 MIST£RlO DO SAMBA Hc:rmano Vianna NovaLuz sobre a Antropologia VERA RIBEIRO R.evisao tknic:a: MARIA ClAUDIA PEREIRA COElHO. [),pI' '" CihKUu s.a";,, UERf ·0 COTIDIANO DA POlmCA Karina Kuschnir BEZERRA DA SilVA: PRODUTO DO MORRO Leticia Vianna CUlTURA: UM CONCEITO ANTROPOL(}GICO Roque de Barros Laraia ·CARISMA Charles Lindholm '-0 MUNDO DA ASTROLOGIA Luis Rodolfo Vilhena .ARAWET£: OS OEUSES CANIBAlS Eduardo VIVeiros de Castro , Jorge lahar Editor Rio de Janeiro

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Page 1: 10. Geertz, Clifford. Nova Luz Sobre a Antropologia

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Clifford Geertz

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I\"\.l~ <>S'• ILHAS DE H ISTORiA

Marshall Sahlins

• AUTORIDADE & AFETO

~;iyriam Lins de Banos

dire-ror: Gilberta \'dho

·0 RISO E 0 RISfvEL

Verena Alberri

Cole~o

ANTROPOLOGIA SOCIAL

• MOVIMEl\TO PUNK NA CIDADE

Janice Caiafa

II1

·0 ESpfRITO MrUTAR

• Os MIUTARES E A REPOBLICA

Celso Castro

• VELHOS MILITANTES

Angela Castro Gomes,Dora FJaksman. Eduardo StolZ

• DA VIDA NERVOSA

Luiz Fernando Duarte

• GAROTAS DE PROGRAMA

Maria Dulce Gaspar

• NOVA Luz SOBRE A ANTROPOLOGIA

Clifford Geertz

• Os MANDARINS MILAGROSOS

Elizabeth Tcavassos

·ANTROPOLOGIA L'RBANA

·.OESYIO E OIVERG£NCIA

• I~D1VIDUALJSMO E CULTURA

·PROJ£TO E METAMORFOSE

• SUBJETIVIDAOE E SOCIEDADE

·A UTOPIA URBANA

G;'berto Velho

·0 MUNDO FUNK CARIOCA

·0 MIST£RlO DO SAMBA

Hc:rmano Vianna

NovaLuzsobre a Antropologia

Tcadu~o:

VERA RIBEIRO

R.evisao tknic:a:MARIA ClAUDIA PEREIRA COElHO.

[),pI' '" CihKUu s.a";,, UERf

·0 COTIDIANO DA POlmCA

Karina Kuschnir•BEZERRA DA SilVA:

PRODUTO DO MORRO

Leticia Vianna

• CUlTURA: UM CONCEITO

ANTROPOL(}GICO

Roque de Barros Laraia

·CARISMA

Charles Lindholm

'-0 MUNDO DA ASTROLOGIA

Luis Rodolfo Vilhena

.ARAWET£: OS OEUSES CANIBAlS

Eduardo VIVeiros de Castro

,Jorge lahar Editor

Rio de Janeiro

Page 2: 10. Geertz, Clifford. Nova Luz Sobre a Antropologia

A motte de Thomas Kuhn - "Tom", para rodos os que 0 couheciam, e que(considetando sua tecusa, por ptincipio, a desempenhar 0 pape! de grande ce­lebridade intelectual que ele indisClltiveimente era) somavam urn numero ex­

rraordinirio de pessoas - parece est~!' a caminho de ser vista, tal como sua

,'ida profissi~nal em geral nestes tempes de p6s-modemistas e guerras cultu­rais, como apenas mais urn apendice. nora de rodape ou adendo a 5'.13. Estruturadas r""el/lfOts cienrificas, obra escrita nos anos cinqiienta e publicada em 1962.'Apesar de ele haver produzido virios outros livros importantes - inclusive Arensao essmcial (I 977), pelo menos tilo original quanto 0 primeiro e bern maiscuidadoso, e A «Ona do bUr/zeD negro <a tkscontinuidade quRntiat, 1834-1312(I978),' meticulosamente pesquisado, e euja recepc;'o morna peIa comunida­de da flsica, sempre enciumada de seus mitos de origem, foi-Ihe muito doloro­sa -, foi A estrutura, como 0 pr6prio Tom sempre se refetia aD rexro, que 0

definiu aos olhos do mundo e, reativarnente, aseus proprios othos. Angustiadoe passional, ele vi\'eu asombta do livro por quase uinta e cinco anos. Seus obi­tuarios, que foram numerosos. concentraram-se quase exclusivamente nessettabalho, inclusive urn necrol6gio singularmente desagradivd, obtuso e insin­cero, publicado no peri6dico londeino The Economist, que tenninou com umapiada de mau gosto sobre a ideia de que Kuhn estava passando por Ulna mu­danS2 de paradigma- E ja que, nos dias finais de sua batalha contla 0 clncer depulmao, de enfim levou ptaticamente a tetmo, pata sec publicado, seu tiio eo­perado e tilo previsto segundo exame do assunro - como se modificam asci~cias-, sua reputac;'o sed alimentada por esse Iivro por muirns anos.

Assim, surge uma pergunra: porque a Estrutura teve esse impaao imenso?Por que codo 0 mundo, desde especialisw,em flsica das partfcuIas e fil6s0fosat~ soci6logos, historiadores, criticos Iiter:irios e cientistas poUtials, pan niio

falar nos publiciWios, nos divulgadores adtunis enos ignorantes da contla-

Ii

. j, :;'!

Na verdade, a resistencia de Taylor ai:1tromissao do "modele cia ciencia

natural" nas ciencias humanas parece aceirar a yisao de seus adversarios de que

exist~ tal modelo, unid.rio, bern definido e hisloricamente im6vel, regeodo as

investiga:rces cc~temporaneas sabre as coisas e as mar.c:ria!idades; 0 problema

estaria meramente em confini-lo a sua esfera propria - estrelas. pedras, rins eoodas - e em manre-Ie bern longe das questoes em que "ter importancia" eimportaore.

24Essa divisao do campo, que muito nos faz lembrar a maneira

como alguns te610gos do seculo XIX (e alguns fisicos devotos) tentaram "solu­cionar" a questao cia religiao Vo-SllS ciencia - •...·oces podem ficar com as meca­nismos, nos ficaremos com as significados" -, garante, supostamentc, que asideias nao invadam a seara alheia.O que ela garante, na verdade, ea presuneraosimetrica e 0 esvaziamento daS quest6es.

Como praticamente todos se apercebem, ao menos vagamente, hi gran­des transforma¢es em andamento,nos escudos que se convencionou agrupar

sob a categoria bastante frouxa de ciencias naturais (sera que a matemitica fazparte delas? e a psicofarmacologia?), tr';'sfotma~oes estas que sao a urn temposociais. tecnicas e epistemol6gicas, e que 'tornam canhestra, paIida e inexata

nao apenas a imagem seiscent:ista delas. mas tambem as imagens do fim do se­culo XIX e inkio do seculo xx. 0 pte<;o de mantet as ciencias humanas radical­mente separadas desses escudos vern mantendo tais escudos radicalmente

~c:paradosdas ciencias humanas - deixadas amerce de seus pr6prios recursos.

Esses recursos nao basr"",. 0 resultado desse estranhamento artificial e des­necessirio e, ao mesmo tempo, a perperuas:ao, nas diversas ciencias naturais, deautoconcep¢es uluapassadas, de hist6tias giobais que falseiam sua princa efeti­va, de imita~Oes"estereis", "mal acabadas" e "implauslveis", induzidas por essasconcep¢es fOta de moda e por essas hist6rias falsas nos cienrisras humanos quedesconhecem no que consistem, de fato, a flsica, a qwmica, a fisiologia e coisassimilares como a~o significari\'a, e ainda, 0 que talvez seja pior do que tudo, aprodu~o de vanos tipos de imlcionalismos da Nova Eta - a flsica zen, a cos­mologia dos maharishis, a parapsicologia-, que suposrarnente unificam tudo etodos em algum nlvd mais alto, mais profundo ou mais amplo."

Combater a ·naturaliza~o· das ciencias humanas euma iniciaciva neces­s:lria, para a qual Taylor conuibuiu de maneita vigorosa; e devanos sec-thegratos pdo desremor de seus esfo~s nesse aspecto, e por sua precisiio. Toma­dr, de mesmo, por algumas formulas empoeitadas, Taylor, para prejulzo derodos n6s, nao conuibuiu da mesma forma para a iniciativa niio menos neces­s:lria de religar as ci~cias naturais a suas ra!= humanas e, desse modo, com­bater a naruralizac?o tiJ4s. ~ uma grande listima que algunsdoskn6menos demaior peso na adtura conremporinea estejam ocorrendo fota CIa atenc?o deum dos mais profundos estudiosos dessa culrura.

7 o legado de Thomas Kuhn:o texto certo na hora certa

~(rv---'

r de ..

Page 3: 10. Geertz, Clifford. Nova Luz Sobre a Antropologia

o lrgado tit Thomas Kuhn i45

7tJ$Wi";'" ?# #'j-'.

Foi essa linha aparentemente inquestionavel e supostamente intransponf­vel, que separa a o:iencia como forma de atividade imeleetual. como modo de sa­b~~, da (;~nCl3. como fen6meno social, como I"'"'odo de agir, que Kuhnquestionou pda primeira vez. na Estrutura, e em seguida transp6s. Eclaro que eleniio foi 0 unico a faze-Io. Figuras muito diversas, como Norwood RusseU Han­son, Michael Polanyi, Paul Feyerabend, Mary Hesse, Imre Lakaros e, mais tarde,Michel Foucault e Ian Hacking, algumas delas criticas de eenas teses especilicasde Kuhn. outras rivais, outras simplesmente em trajet6rias pr6prias, rambemcruzaram a linh" a paror dos anos cinqiienta. Mais do que qualquer urna delas,no entanto, Kuhn e a ErirntUraprepararam 0 terreno e, como nem sernpre e pru­dente ou cOmodo estar na Iinh. de fIente de um pelorao de araque. attalram 0

canhoneio dos Antigos FiCis. Urn. vez que 0 livro. origina1mente concebidocomo um verbete independente da Internatiflna/Encyclopdia ofUnifUdScima,de Neurath, Catnap e Morris, de inspiralj20 positivista, era muito esquematico.abrangente, confiante e intransigente, pot si s6 de estabdeceu os termos do de­bate. T ornou-se a imagern mesma do estudo cia ciauia como iniciauv:a. munda­na; tornou-se, p3l'a cunharmos wna expressao, sell paracligma dominante,pronto para ser imirado. arnpIiado, desdenhado ou derrubado.

Edesnecessirio - e imposslvel, de qualquer maneira - rever aqui as cen­tenas de argumentos pr6 e contra as teses proposras na Ertrutura: a de que •mudan~ cientifica e descontinua, altemando-se entrelongos petiodos de esra­bilidade "normal" e pequenos suttos de convulsiio "revolucioniria"; ade que.pesquisa cientffica "normal" e regida POt modelos esrabelecidos - os famososparadigmas -, que constituem modelos de soluc;ao de quebra-cabeyas para'

I( •.~ comunidade peninente; a de que esses paradigmas sao "incomensur.lveis" e de(.~J,. que os cientislas que rrabalham com paradigmas diferentes s6 apreendem par-

1\ \ / cialmente as ideias uns dos ourros. na melhot das hip6teses; • de que. "escolhaIt" da'" . d __..I: "ad dam~_ teona ,0 mOVlmento e wn l"OQ......gma para ourro, Ie ffiaJS equa ente

descrira como uma quesrao de "convers30" inteleerual pormudan~da Gestaltdo que como urn confIonto gradativo, ponto. ponto, entre.visiio abandona­da e a aceira; e a de que 0 grau em que os paradigmas se cristalizam nwna aen­cia euma medida de sua maturidade, de sua "exatidiio" ou "inexatidiio", e desua disrancia e diferen~ das iniciativasnio cientific= Algumas dessas fonnu­Ia¢es foram moc:lificadas pelo proprio Kuhn, numa sene de apCndices, td'or-m~ rcspostas e "reconsi~:. Muiw de julgou serem distoreidas emal inteIpretadas, ou mesrno malnrilizad.s, tanto por scuscrlticosquanlO par,scus defensores. Algumas, em especial a afirmac;iiode que.mudan~ciendfica

",,~;~L nio consiste numa apr<>ximalj2o resoluladc umaverdadc que esr.\aespezade) . ser descoberta, mas nos caImarias e tormeDW das Comunidades disciplinua, .

._~ ele def~deu de todos os araques, vindos de todos os lados. . . ....;.i. _"';--r"

""--.. {iJ.}L, '.\&\..U. ),J.r-J\

cultura, encontrou ode alguma coisa a colocar animadamente a serviero de seuspr6prio5 inrcresses, ou aqual reagir: com igual anim<lC~:1.0~ ~~30 pode ser apenas

porquc 0 li\'ro e ousado, inovaaor. incisivo e 01Jf,1\'ilhosamclHc bcm cscrito.[Ie e mdo 1550. alcm de erudito e de profund3 sensibilid;;,dc. ~b.s ha curros li-\'ros, oa hisr6ria cia ciencia e fora dda, com essas yirrudes. A excelencia e a im­porraneja, por mais reais que seiam, nao garanrem a fama nem a repercussao_ afinal. quaoras pessoas presraram atens:ao a Feeling and Form, de SuzanneLanger? De algum modo misrerioso e ind~finido, misrerioso e indefinido ate

para 0 proprio Kuhn, que nunca deixou de ficar surpreso, intrigado e seria­mente preocupado com a recep~o dada a seu livro. a Estnttura foi 0 texto certo

na hora certa. '\"'J

Desde aproximadarnenre Os anos 20 (e sobrerudo depois de publi~do ,;Vf-Ilkologit Imd Uropit, de K.rl Mannheim, em 1929), 0 que ficou conhecldo \,como "sociologia do conhecimento'" foi aplicado a urn campo ap6s outro da '7-

atividade intdectuaI. A rdigt°ao, a hist6ria, a filosofia, a econornia, a arte, a lite-#ratura, 0 direito, 0 pensamento politico' e ate a pr6pria sociologia foram sub- J'i

rnetidos a urna forma de analise que procurava expor as liga<;:6:::s qu'e as uniam ~ \..1../

ao comexto social em que des existiam, e que as via como constru~6eshuma-m U-' toenas, historicamente desenvolvidas, culturalmente localizadas e coletivamente C \...produzidaso Parte dessa analise [oi tosca e determinisra: urn reducionismo mar- .... \-.

xista ou urn historicismo hegelianoo Pane foi sutil e hesitante: urn levantamen-to pormenorizado de avan9Js locais, uma 'sugesuo pertinente de rda~6es

espedficas. Mas, tosca au sutil, impetuosa ou rdurante, ela nao foi aplicada,salvo algumas exc~esque se manriverarn como tais. ao que ja se havia torna-do a iIlais prestigiosa, mais amea(j4dora e, em meados do seculo. mais impor-tanre atividade intdeetu2l de todas - as ciencias naturaiso

Separadas num mundo de pensamenro auropropulsado, a fisica, a qu{mi-ca, as ciencias da Terra e ate a biologia niio foram conspurcadas pela sociologia,ou, pelo menos, pela sociologia do conhecimento. A hist6ria que havia era so­bretudo uma hist6ria de praticantes, exageradarnente monumental eantiqua­cia: uma narrativa de realiza~que haviam constituido marcos, conduzindo,uma ap6s outIa, averdade, aexplicalj20 e a~ituac;ao arual. Asociologia que ha- l rvia, Fosse a de Max Weber ou. de Roben Menon, continuav. ptedominante-mente "extemalista-, interessada nos deitos sociais cia cien~ nas normas (, jA~instirucionais que. regem, ou In origem social dos cientistas. As\chamadasquesl6es inrernalistas - como e por que as tcarias e pr.\ticas dos cientistas as­sumem as formas que assumem. desperram os interesses que despertam e de­senvolvem a inBu61aa que desenvolvem - ficaV2lll fora de seu alcance, sendoexpliclveis. se tanto, pelas energias da razao, pelos misrerios da genia1idade, oupela simples natureza das coisas a se imprimir na mente capaciwla.

l!!, !~ I. ;

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o kgath tk Thom.z.< A·ulm

......

,

Dc faro, fei esta ultima e mais)nfluenre de suas proposier6es que tornall ,{;\""'-',,,\,~\ '- em dia -, radas as quais foram rcpetidameme gritadas contra a EstruNira (e

rt'w'dllcionaria a propria Estrurura - uma cOl1yocayao as armas, para os que j' contra "Kuhn", que foi acusado, por pessoas de quem Se espcl:Hia urn nivel deqaffi a Clcncia como 0 ultimo baluarte do privilegio eplstemico, ou urn atenta- argumemasio bern mais elevado, de descrer cia existencia de urn mundo exter-do aratio, para os que a viam como a estrada por excelencia para 0 realmente no), a propos;:;;. do livro, seja qual for 0 destino de suas afirma~oes panicuiares,real. Quer as descontinuidades teoricas sejam ou nao tao destaca(i·;p: ~m outros veia para ticar. A submissao das ciencias aaten~o - cominuada ou superfici-campos quanto supostameme sao na fisica;quer as mudan~ de Gestalt e a in- al, esclarecida ou ignorante - de historiadores, soci6logos, anuop6:ogos, eco-comensurabilidade sejam ou nao a norma na mudanc;a tcorica, ou em algum nomistas e ate a~tores ciemificos e professores de ingles que 'laO se dispoem amomento sejam completasi e quer a teoria e a afirmayao gcneraiizada, os es- parar nas fromeuas da auroridade disciplinar, ou a se Curyar asolenidade dosquemas conceituais e as vis6es de mundo sejam eu nao realmente 0 xis da ques- agraciados com 0 Premio Nobel, cresce a passos largos. Uma Yez. fora cia garra-tao, para cornec;:o de conversa, tudo isso pode esperar para ser debatido no \ \~). fa, ~se genio, em particular, nao pode sec noyamente enfiado Ii dentro, pocpr6prio ripo de estudo que a btrutura exemplifica e convoca. 0 que testa do ." mats assustadot ou mal componado que seja - ou para quem 0 seja.legado de Kuhn, 0 que enfutece seus adversarios mais intransigentes e confun- "C b Esta bastante claro que, ao publicar a btrutura, Kuhn nao tinha plen.de seus seguidores lllaiS acriticos, esua insistencia apaixonada em que a hist6ria f';\-J\ . J" consciencia de quao indisciplinado 0 genio viria a sec. A grande explosao de es-cia ciencia e a hist6ria dckrescimento e cia substitui~o de comunidades cienti- jf' ,\;;. tl.1doss6cio-historicos da ciencia- Edimbucgo, Paris, Bielefeld, Boston, Jeru-ficas auto-rectutadot~ notmativamente. definidas, ditigidas de maneiras vari- ,',./~' salem, San Diego etc. -, assim como. grande explosao de jeremiadas COntraadas e, muitas vezes, dacamenle comperitivas. Ou, para finalmente citar aJ des, foram predominantemente posteriores ao que 0 pr6prio Kuhn caracteri-Estrutura, em vez de apenas aludir a da: <I.A ~iencia normal e as revolu1jOes sao ZOU, nas piginas iniciais do livro, como urn ensaio de reflexao sabre algumas... atividades baseadas na comunidadc:. Para dcscobri-Ias e analisa-Ias, primeiro coisas que 0 incomodavarn desde sellS tempos c:rrantes de estudantc: dee pteciso desenredar a esttutura comuniclria mutavel das ciencias.o lor-go do p6s-gradua,ao e de membto da Harvard Society ofFdlows. As causas de todatempo. Urn paradigma nao rc:gc: ... urn assunto, mas urn gropo de praticantes. es:a c~iricae contracrftica, que nao ~dariama se estender tambem aos camposQualquet estudo das pesquisas notteadas pot paradigmas ou destruidoras de nao clentfficos (ou ptetensamente C1entfficos), sao diversas, mal entendidas eparadigmas devecom~ pela localiza,ao do gtupo ou gtupos respons:\veis."' muito discutidas. 0 lugar muclvd das ciencias (e dos cientiscas) na cultura

Com esse firme posicionamento"das ciencias" no mundo em que se de- contempotmea, as inquieta¢es morais advindas de suas aplica¢es militates esenvolvem ptogramas de trabalho e se fazem cartdtas, em que se formam seu ctescente distanciamento da intdigibilidade getal, todos foram ptOpoStosa1ian~ ese desenvolvem teorias, no mundo dos esfoe,os gtupais, dos choques como candidatos a causas. T amb.!m 0 foram 0 ceticismo crescente quanto 1lentre grupos e dos comptomissos de gtupos - em suma, no mundo em que possibilidade de existitem pesquisas isentas de julzos de valot, a ambivalenciatodos vivemos -, a Estrutura escaneatOU as porras, tanto quanto era posslvd, cada vez mais ptofunda ante a mudan~ tecnol6gica acelerada e as explos6espara a ittup,ao da sociologia do conhecimento no estudo dessas ciencias. univecsicltias do fim dos anos sessenta. Para outros, 0 culpado e 0 fim da mo-Como a pt6pria sociologi. do conhecimento, no caso, era replet. de debates, _ ... detnidade, 0 misticismo da Nova Era, 0 feminismo, a desconsttu,ao, 0 decll-dissidencias e uma multiplicidadede visOes (bem como, em alguns de seus pra- , :'" nio da hegemonia ocidental, a polltica de financiamento das pesquisas, outieantes mais exuberantes, de um tom oposicionista que era • conta certa para '. a1guma combina,ao ddes. .fazet a otdem estabe1ecida ranger os dentes), seu embate com as cencias £oi e / Embora ~vesse conhecimentoda maiotiadessas quest6es, 0 proprio Kuhncontinua a ser maisf~ do que 0 foi com a Iiteratura, a hist6ri. ou 0 pensa- estava menos In.teressado ndas do que em compreender como a ciencia baviamento politico, fazendo lembrac, na verdade, suas rixas prolongadas eveneno- passado de Arist6teles a Newton, de Newton a Maxwell e de Maxwell a £in-sas com a rdigiao. Entretanto, uma V<:L disparada essaapli~ das cacegorias, \ stein, e, consideradas as contingincias do mundo, quais teriam~ as nzllesraciodnios, m~os e objetivos caraetedsticos das ciencias humanas as pr:\ti- ',,, de seu sucesso improv:l.vd ao~Deixandode Iadoodebau:sobre"a bom-casdas ciencias tendenciosamente chamadas de "reais", agora nao se pode mais ': ba", para 0 qual, ao que ell saiba, dejamais 50 voltou publicamenre, tais nzlles

ceverte-la, nem mesmo peIas conrramedidas mais desespetadas. Apesar das nao~.a serproeminen~ JI1uito ~enos ceJ1trais, no mundo apreensi_acusa¢es de "subjetivismo", "irracionalismo", "psicologia da tuIba" e, ~ claro, vo mas amda C1rcunspecto do fim cf9s~cinqiientae inlcioclc>ssessentL EIas"tdativismo" - ex~ ptedileta dos que se plantam nas trincheiras, hoje ganharam esse destaque independentemente, depois do~entoda £str,..

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NOVI1 luz sobu I1l1nfTopologia

tura, e foram entao polemicamente associadas ao livro por seu publico imenso,inesperado e nao pretendido - em t~rmos positivos, como uma desmisrifica­yao cia autoriciade cit:odfica e co.....,o sua reinclusao no tempo e oa sociedade; e,em (eernos negativos, como uma reyolta contra ela, urn repudio da objetivida­de, do desprendimento, de !ogica e da verdade. Kuhn havia semeado vento, ecolheu uma tempestade.

Qualquer que Fosse sua atitude perante os livros, metalivros e metametali­vras que se acumularam em tarno da Estrutura depois do fim dos aoos sesseota- e, decididamente, era uma atitude ambivalente-, Kuhn yiu;...se na situac;:aode ter que afirrnar repetidamente suas ideias, sob virias formas e em varios ti­pos de foros. Nao e que essas ideias fossem obscuras ou menos do que clireus efrancas em sua expressio inicial. Se tanto, talvez fossem urn pouco claras de­mais. Porem teriam que abrir caminho num meio intdectual rowto diferentedaqude em que se haviam formado originalmente. Havendo comes;ado comourn nsico "normal" e se tornado um historiador"normal" (sua historiografia(entrada em casosJ aparentemente aprendida com James Bryant ConantJ eratao convencional quanto rorarn hererodoxas as suas teses), Kuhn estava longede se sentir 11 vontade com doutrinas que questionassem a possibilidade do sa­ber autentico ou a realidade dos verdadeiros avan~s obtidos nde. E, apesar detoda a sua enfase nas considera¢es sociologicas p.ra se chegar a uma compre­ensao cia mudan~ das teorias, de nunca fez menos do que desdenhar da ideiade que tais considera¢es aferassem 0 valor de verdadedas teorias da propaga­

""0 da luz ou do movimento dos planeus.Kuhn nao foi a primeira pessoa, logo em infcio de carreira, a fazer a1guma

coisa que atrapalhou os pianos de muita gente, eater que se haver com suasvastas implica¢es, algumas mais do que intragaveis, quando da se transfor­mou, por sua vez, nurn saber comurn. Deceno foi esse 0 caso de Gode1, que cli­damos ter desejado que sua prova tivesse dado 0 resultado inverso, e quepassou boa parte do resto de sua ,ida tentando estabelecer por outras meios aintegridade da razao. E cleve ter sido tambem 0 caso de Einstein, perturhadocom a brecha introduzida na teoria Ilsica porsua concep.,ao quintica da Iuz, edesde entlio procurando voltar a fecha-Ia, de algum modo. Viver os efeitos pos­teriores ao abaIo, nurn terremoto em cuja causa.,ao se desempenhou urn papdimportante, pod< ser tao diflcil e tao cheio de rep:o:cuss<ies quanto produzir 0

tremor original Haque se ter uma convie.,ao serena e uma ironia imperturba­vd a respeito de si mesmo para conseguir esse feit<>. A revolu.,ao desencadeadapor Kuhn (que pendurara em casaurn lerna bordado comosdizeres -Deus SaI­ve est< Paradigrnaj ainda perturbara por muito tempo as nossas certezas,como perturbou as dde.

o belisciio do destino:8 A religiiio como experiencia,

sentido, identidade epoder

Quando, no ultimo capitulo de As variedatks da <Xf'<Ti2ncia r</igiosa-aque1ea que deu 0 nome, Com certo collstrangimento, de "Conclas6es"J anexando­Ihe imediatamente urn p6s-escrito corretivo, que nao perdeu tempo em rene­gar-,William James voltou os olhos p"a t,as e observou 0 que fizera em qua­se quinhentas paginas densamente cobertas de texto, de :;e contessou meiosurpreso com 0 semimentalismo daquilo tu4o. "Ao reler meu manuscrito,quase me estarrece 0 tanto de em~o que encontro !tde.... Estivemos lite~

ralmente banhados em sentimentos."' Fora tudo uma questlio de "individuali­dades secreus", disse de, e de "documentos palpitantes" - autobiografiasfragmentadas, relato deste ou claqude epis6dio interno, perturbador e evanes­cente. "Nao sei quanto tempo durou esse estado nem quando foi que adorme­ci", disse:ra urn desses relatos. "mas, ao acordar de manha., nl atava bmz...l"Nao importa 0 que fizesse e onde quer que fosse", dissera ourro, "eu continua­va numa tempestade."' "[A]quilo pareda apoderar-se de mim em ondas", dis­sera urn terceiro, "abanar-me almo asas imensas.",c E assim por diante, empagina apos pagina de confiss6es. A rdigiao, disse James, com a proverbialconcisao que usou para se salvar da copiosa riqueza de sua pr6pria prosa, era "0

belisclo individual do destino", tal como 0 inclivlduo 0 sentia. "[Os] recbndi­tos dos sennmentos, as ca.madas mais obseuras e rom cegas do carater-, cscre­veu de, "sao os Unicos lugates do mundo em qu<: podemos ftagrar a produ<jliode urn f.tto real ... perceber diretamente como se dao os acontecimentos •.•como e feito 0 trabalho."s 0 resto erano~estava paraareali~ da coisacomo 0 cardapio esd para a tefei.,ao, como 0 quadro de urna loc:omotiva emdisparada esd para sua energia e sua velocidade, ~u talvez, embo", de nio te­nha conseguido propriamentechegara dizb:lo, comoesda ciCnciaparaa vida.

Essa maneira de caracterizar a -rdigiio. e '0 religioso· - 0 indiYiduaIis­mo radical ("Se urn Emerson fosse obrigado a ser urn Wesley, au urn Moody

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4 Os usos da diiJersidade

A. antropologia, minha frohlich. WlSScnschaft, tern se envolvido fatalmente, nocutSO de toda sua hist6ria (uma longa hist6ria, se partirmos de Her6doto, oumuita curta. se particmos de Taylor), com a enorme variedade de maneirascom que os homens e mulheres tentam viver suas vidas. Em certos mOl~ento~,ela ptocurou lidar com essa variedade captando-a em alguma rede te6r1ca urn­versalizante: est:lgios evolutivos, ideias ou pciticas pan-humanas, ou formastranscendentais (estruturas, arqu~tipos, gramaticas subrerd.neas). Em oUtros,insistiu ila particularidade, na idiossincrasia, na incomensurabilidade~~epo­!hos e reis. Mas, reeentemente, ela se viu diante de algo novo: a posstbthdadede que a variedade esreja rapidamente se suavizando num espectro mais p:li.idoe roais estreico. Podemos ver-nos confronrados com urn Mundo no qual Slm­

plesmente ja nao ex.istarn mais capdores de abf?5, estruturas mat(il~neare$ou pessoas que fazem a previsao do tempo pelas visceras do POtco. As dlfeten­9lS sem dtivida continuarao a existir - os franceses jamais comedo manteigacom sal. Mas os bons e velbos tempos de lan~viuvas na fogueira e do caniba­

lismo nao voltarn mais.Em si mesmo, como quesrao profissional, esse processo de suavizas;ao do

contraste cultural (supondo-se que seja real) talvez nao seja rao perrurbador.Os antrop6logos simplesmente teran que aprender a cOmpreender diferen~rnais sutis, e sew textos talvez se toment roais sag3USJ ainda que menos espeta­culares. Mas de levanta uma quesrao mais ampla, an mesmo tempo de ordemmoral, estmcae cognitiva, que ~ muito mais perrurbadora e que escl no centrode va:r';' discuss6es aruais sobre como justificar os valores: 0 que chamarei,apenas para ter urn nome que fique gravado na mente, de 0 Fururo do Etna­centrismo.

Retomarei mais adiante algumas dessas discussOes mais gerais, pois ~ paraelas que se volta 0 meu interesse global; mas, como forma de abordar 0 proble-

rna. quero comt'~..1r 3.presentando uma rese, a meu '·er incornur.: e urn bocadodesconcert:lr:rc. c.u(' ('I :lntrop6logo frances Claude Levi-Straus; ":c5'::m·olve no

iniclO Ja ~U3. rl...:.. .;:;~rc' colccanea de ensaios, provocaccrarncw:- .':-:riwlada (pro­\'ocadQranlCrHt' <1.(1 mcnos para urn antrop6logo) 0 {)/har dis!,;·:_·:...do. 1

A tese de Levi-Strauss surgiu, antes de mais nada, em resposra a :J.m convire ciaUneKo para que proferisse a conferencia de aberrura do Ano lr.:ernacional deCornbate ao Racisrno e aDiscrimina~o Racial, que. caso voces renham esque­cido, foi 1971. "Fui escolhido", disse de,

porque "ime anos antes tinha cscrito [um panflero intitulado] "R.aya e hist6ria"para a Unesco.lnoqual] afirmaraalgumasverdadesfundamenra:s.... [Em] 1971,logo percebi que a Unesco esperava que eu [simplesmente].as repttissc. Mas, vin­te anos antes, para arender as institui~ internacionais. que e:.:. iulgava ter queapoiar mais do que creio hoje. eu havia exagerado urn pauco mir.has conclusOe'sem "Ra~a e hisr6ria". Talvez porminh~ idade e certamente gra~ a reflcx6es ins­piradas Fda sirua~o arual do munde. nao gostei dessa solicitude e me convencide que. para s::r uril aUnesco e cumprir com honesridade 0 me;,; compromisso.dcycria falar com absoluta franqueza.2

Como de habito, isso nao se revdou propriamente uma boa ideia, provo­cando uma especie de farsa. Algumas membros da diretoria da t:nesco ficaramconsternados por "eu haver questionado urn c.::atecismo [cujaaceita~] lhes per­miura ascender de empregos modesros nos pafses em desenvolvimento para res­peit3.\'eis posi<r6es de executives numa institui~ intemacional".' 0 entiadiretor-geral da Unesco, outro frances decidido, pediu inesperadamente a pala­vra a fim de reduzir a tempo de Levi-Strauss e assim for¢-lo a fazer os cortes de"aperfeic;oamenro" que Ihe h3'1= sugerido. Levi-Strauss, im:orrigIvcI, leu a In­tegra de seu texro, aparentemenre em alta velocidade, no tempo que Ihetestava.

Mora isso, que equivalia a urn dia normal na O:-lU, 0 problema da conf<­rencia de Levi-Strauss foi que, nela, ali ele se "rebelou contra 0 abuso delingua­gem pelo qual as pessoas tendem cada vez mais a confundir 0 racismo_ comatirudes normais e at~ legltimas e. de qualquer modo, ineviraveis" - ou seja,com 0 etnocentrismo~ embora de nao 0 chamasse por esse nome.4

o ernocentrismo, argumentou Levi-Strauss em "Ra"" e cultura", e demodo urn pouco mais t&nico em ·0 antrop6l0g0 e a condi9io hwnana", es­criro cerca de umad~depois, nan apenas nan ~ ruim em si, como ~m Ulna

coisa boa, pelo menos desde que nan fuja an controle. A fiddidade a um cerroeonjunto de valores faz com que, inevitavelmente, as pessoas liquan "parcialau [oralmente insensi'veis a Qunos valores"' aos quais outras pessoas, igualmen-

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te pro"!ncianas, sao igualmeme tieis.' "Nao 113. nada de ofensiyo em se colocar

a proprio estilo de vida au 0 proprio· modo 2-: r.::ns3.r KinD d05 cunos.ou. en::senrir pouca atra<;ao por ounos \'alores.·· E553. '"incomuniobdllhde relatlvaflaO autoriza ninguem a reprimir ou des[ruir 05 ',alores rqcil:3.dos ou aquelcsque as possuern. Aexce<;ao disso. parem. ··da :;30 tern nada de repugnante":

Talvez seja ate 0 preljo a pagar para que os sistc::::as de \'alores de eada familia espi­ritual ou de cada comunidade sejam preser,acos e enconrrem em si mesmos osrecursos necess<irios para sua renO\·alj3.o. Se ... as sociedades humanas exibe~ urngrau 6timo de diversidade para alem do qual nao podem avan)=3r, mas ab~1Xo doqual nao podem descer sem riscos, temos de reconheeer que, em larga medlda, es­sa diversidade resulta do desejo de cada cultura de resistir as culturas que a cer­cam. de se distinguir delas - em suma, de ser ela rnesrna. As culturas naodesconhecem umas as outras e. de vez em quando, ate rornarn emprestimos entresi; mas, para nao pececerem, elas devem. sob outcos aspectos, permanecer urntanto impermeaveis.'

Porranto. nao apenas euma ilusao que ahumanidade possa se livrar intei­

ramente do etnocentrismo, "au sequer interessar-se em faze-Io", como nao se­ria born se 0 fizesse. Tal "liberdaoe" conduziria a urn mundo "cujas culturas,

toclas apaixonadas umas pelas,outcas, aspirariam apenas a celebral-se mutua­

mente, numa tal conlUsao que cad. urn. petderi. qualquet .tt.tivo que pudes­se ter para as demais e perderia sua pr6pria ratio de ser.,,7 .

A distancia cria, se nao encanro, pelo menos indiferen~e, assim, integn­

dade. No pass.do, quando as cham.das culturas primitivas envolvi.m-se .pe­nas muito marginalmente umas com a.s outras - referindo-se a si mesmascomo"As Verdadeiras", "As Boas" ou simplesmente "as Homens", e despre­

zando as que se simavam do outro lado do rio ou da serra como " macaco~" ou"ovos de piolho", i!.to e, nao humanas ou nao plenamente humanas-, a mte­

gridade cultural era ptontamente mantid•. A "profunda indiferen,? para comoutras culturas era... urn. garanti. de que elas podiam existir asua pr6pri. m.­neira e segundo os seus proprios termos."· Agor., quando e claro que essa situ­~o ja n50 prevalece quando todos, cada vez mais .pertados num pequenoplaneta, estlio profundamente interessados em todos os demais e nos assuntosque Ihes dizem respeito. assoJ!1a • possibilidade de perda dessa integridade emfuns;ao da perda dessa indiferen~ T a1vez " emocentrismo nunca desapar.....por completo. sendo •da~ciamesma da nossa espc!cie". mas pode romar-seperigosamente fraco. deixando-nos amerce de urn. espc!cie de entropi. moral:

Scm dUvida nos i1udimos com urn sonho.o supor que a1gum cIi•• iguaIdade e •fratemidade reinario entre os homens sem comprometer nossa diversidade. No

C::::.1:'.W. se a humanidade roao esta tesignada a se tomar urn .::onsumidor esterill:!".'S \'.:.!ures que:" conseguiu c:;ar no passado... , capaz apenas de c.1.~ it luz obras bas-

,,~, .:~\"l'·rlc'::'c's g.rosseir:i~ ~ pueris, [en tao] reri que aprenc;:~ ::1ais uma vez que;l",:., :~:.l;';:'() \"I.'.,hdeira ilT.F'::ca uma (I?rta surdez ao apelo de e,:..:::,os nlores, che­>'::,;'::":d .He;1, rejeit:i-los, se n.iu negi-Ios por completo. Pois naD rvde:mos desfrutar;,:;:::.irneme do Vu.uo, ider.::£icarmo-nos com eIe: e, ao mesmo :empo, conrinuardi:·~~~nr¢s" Quando se aka::? a comunicaljao integral com 0 o:::ro, rnaiscedo oun::i:~ :.ude ela signifiea a des:ruilj3.o da criatividade de ambos..~ gr.1ndcs eras cri­at:'".iS roram aq~elas em qu~ a cornunicalj3.o se tomara suficier.:e para a cstirnula­):ao mutua de pareeiros distantes. mas nao era rao frequente r:ern [3,0 veloz quepusesse em perigo os obsdculos indispensaveis entre os incfuiduos e os gropos,ou que os reduzisse ao ponto em que trocas excessivamente f.keis pudessem igua­lar e anular sua diversidade.~

o qu~ quer que se rense de rudo isso ou por mais surpreso que se fique aoouvi-Io d. boca de urn .ntropOlogo, decerto 50 trata de a1go que tern urn toquecontemporaneo. Os atrativos da "surdez ao apdo de oUuos ,-alores" e de uma

ahordagem do ripe "relaxe e gaze" a respeito do aprisionamento pessoal napropria rr.Jis:ao cultural sao cad.vamais eelebrados no pensamento social re­cente. Incapazes de abraljar 0 relativismo ou 0 absolutismo - 0 primeiro porinvi.bilizar 0 julg.mento. 0 segundo por retira-Io da hist6ri.-, nossos fil6so­fos. hisroriadores e cientisras sociais voltam-se para a impumiabi/iti que Le­vi-Strauss recomenda, do tipo "nos somas nos, des sao des". Quer se encare

isso como legitima~o.como a justifica~o do preconceito ou como a esplendi­d. honesrid.de da frase de Flannery O·Connor. "quando em Roma, fac;amcomo fizeram em Milledgeville", dita em tom de "eis-me aqui", e claro que ea1go que coloc•• questao do Fur",o do Etnoce!lmsmo - e da diversidade cuI­tu--;"l- sob urn. noV. 1m. 0 recuo, 0 distanciamento. 0 Olhar Distanciadoserilo realmente • maneira de oscaparadesesperada tolerinci. do cosmopolitis­rno da Unesco? sera 0 narcisismo moral a alternativa aentropia moral?

Sao multiplas as for"" responsaveis por urn. visao mais interessante do auto­eentramento cultural nos U1timos 25 ou 30 anos. Existem as quest6es relatiVllsa"situ.s:ao do mimdo' • que Uvi-Strauss a1ude, mais especiaImenteo incapa­cidade de • maiori. dos poises do Terceiro Mundo de .tender as r6seas crpec­tativas que cram correntes pouco antes e Pouco depois de suas IUl:IS deindependenci•. Os extremisw Amin, Bokassa, Pol Pot e Khomeini. ou, commenos extravagincia, Marcos, Mobuto. Sukamo e Indira Gandhi es&iaramurn pouco • idei. de que ha mundos em ourros lugares em~ :oos quaisurn. comp.r.s:ao nos e claramente desfavor:ivd. Existe 0 sucessivo desm.scara-

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memo das utopias marxistas - a Cniao SoYieticJ.. 3. China, Cuba. 0 Vietna. Ehi Llmbem uma redw;ao do pessimismo expre550 i13. idel3 de Dedinio d<? Oci­

den(t, induzida pda II Guerra i\lund.ial, peb J.cr'CSS3.0 .globJ.l e t~da derr0ta do:mperialismo. Mas hi tambem, e crelO que r120 rne!"!os l!11Foru.me. 0 aumentocia consciencia de que 0 consenso uniyersal - uansnacionaL uanscultural eate de rodas as classes - sob!~ assumos normati\·os nao esra \·is!yel num futuropr6ximo. Nem todos - os sikhs, as socialistas. os positivistas, as irlandeses­chegarao a uma opiniao comum sobre 0 que e decente e 0 que nao C, 0 que ejusto e 0 que nao e, 0 que ebelo e 0 que nao e, 0 que e razoase! eo que nao e,pelo menos nao tao cede, ou talvei nunca.

Quando abandonam'" (e, e claro, nem todos abandonatam, talvez sequeta maioria) a ide:ia de que 0 mundo caminha para urn acordo essencial sobrequest6es fundamentais, ou r;nl".smo, como U"i-Srrauss, de que deveria faze-lotnaturalmente cresce 0 apelo do etnocentrismo do eipo "relaxe e goze". Se nos­SO~ valores nao podem serdesvinculados de nossa.hist6ria e nossas instituiCJoes,como nao podem se-Io os valores de ninguem em relaerao a SU3.S. institui­c;:6es e sua hist6ria, parece nao haver outra coisa a fazer senao seguir 0 exemp~o

de Emerson e andar com nossas pr6prias pl:rnas, falando com nossa pr6pr13VOl- "Espero indicar", escreveu Richard Rorry num texto recente (maravil.ho­samente intitulado "Liberalismo burgues pOs-moderno"), "como nos [os hbe­rais burgueses pOs-modernosl podemos conveneer nossa sociedade de que afidelidade a ela mesma e 0 suficiente..., de que ela sO pteeisa ser tesponsavel porsuas pr6prias tradi~es.""Aquilo a que ehega 0 anttop6!ogo em busea das "leisconsistentes que subjazem a diversidade obsemivel das eten~ e institui­~es"n, partindo do racionali'mo e da alta aencia, e atingido a partit do prag­matismo e da ptudeneia etiea pelo 616sofo persuadido de que "nao hi 'b~e'

para [nossas] lealdades e convie~es, exceto pelo faro de que as etenc;as, deseJose emos5es que as sustentam superp6em-se as de inumeros outros membros dogrupo com que nos identificamos para fins de delibeta~o moral e polltiea "."

Asemelhan~eainda maior, apesar dos pontOS muito divetsos de que par­tern esses dois s:ibios (o kantismo sem 0 sujeitO transcendental, 0 hegelianismosem 0 esplrito absoluto) e dos fins ainda mais diversos para os quais eles ten­dem (urn mundo bern arrwnado de formas ttatlsponlveis, urn mundo desarru­mado de discursos coincidenres), porque tarnbem Rorty encara as distin~odiosas entre os grupos nao apenas como naturais. mas como essenciais 300

pensamento moral:

(0) analog<> hegeliano eb "dignidade humana inttlnseca" [kantiana) natutaliza­do, ea dignid'de comparativa do grupo com que a pessoa se identifiea. As na9XSou igrejas ou movimentos. nos tennos dessa visao. 510 ex:emplos hist6ricos bri-

Ihames, nao porque reflitarn raios proveniefites de uma fonte superior, mas porcausa dos efeiros de comrasre - da comparac?0 com comunidades piores. Aspessoas tern dignidade nao como uma luminescencia inu'rna, mas por compani­Iharem esses efeiros de contraste. Urn corolario dessa visac eque a jus(ifica~o

moral das institui¢es e pniticas,do grope a que se pertence - por ex:emplo, aburguesia contemporinea - esohrerudo uma quesrao de narrativas hist6ricas(que incluem hip6teses sobre 0 que tende a acontecer em algumas comingenciasfururas), e nao de meranarrativas: fil0s6ficas. 0 respaldo principal da hisroriogra­fia nao e a filosofia" mas a arte, que serve para desenvolver e modificar a au­ro-imagem do grupo - por ex:emplo. fucndo a apoteose de sew- her6is.diabolizando seus inimigos. montando diilogos entre seus membros e mudandoo foro de sua aren~.l)

Ora, sendo eu mesmo integtante dessas tradi¢es intdectuais - do estu­do eientlfico da diversidade cultural, por profissao, e do liberaIismo burguespOs-moderno, por convi~ geral-, minha visao pessoal, para abord:i-lasneste momento, e que a rendi9io f:ieil ao comodismo de sennos apenas n6smesmos, cultivando a surdez. e maximizando a gratidao por nao term<J:s nasci­do vandalos ou Ik, secl faral para ambas. Uma antropologia muiro temerosa dedestruir a integridade e a criatividade culturais, nossas e de todos os OUtros, porse aproximar de outras pessoas, conversar com das e procurarapreende-Ias emseu eotidiano e sua diferen~ est:i &dada a mOnel de uma inani9io que naopode ser compensada por qualquer manipula~ode conjuntos de dados objeri­vados. Qualquer fllosofia moral temerosa de se enredar num relativismo desa­juizado ou num dogmatismo transcendental, a ponro de nao conseguir pensarem nada melhor a set feito com as outras maneiras de viver do que faze-Ias pa­recerem piores do que a nossa, est:i destinada (como disse alguem sobre os ta­

tosde V.S. Naipaul, ralveznosso principaladeptodaconstru9iodesses "efeitosde contraste") a fazer com que 0 mundo se tome seguro para a condescenden­cia. Tentar salvar duas disciplinas ddas mesmas, an mesmo tempo, taIvez pare­~ arrogancia. Mas, quando se tem dupla cidadania, tem-se obri~dobtadas.

A despeito de suas conduf2S cliferenres e de suas diferentespreocup~ (e eume, confesso muito mais pr6ximo do populismo desleixado de Rorty que doditismo meIindroso de Uvi-Saauss- 0 que taIvezseja apeD2S llID.plcx:ouc:d­ro cultural meu), essas duas Ym6es do "ada urn tern sua pnSprlalDOft1" ap6i­arn-se, pdo menos em parte,nUJDavisio comum cia diversic:bdeaa1ti.n1. qualseja, a de que suagrande impOidnda reside~ d:anos for¥e,p'~".war UJDaf6rmula de BemardWdliarns:altemativas an6s, emcontrasrecomaltanativas

.."::: . t''''C'·1(-'' if· tria . 7 $

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para nos. Outras crenyas, valores e est}los de conduta sao vistas como crenc;asque adot:ufamos, vaiores que dcfenderiamo5 e esti!os de conduta que seguirfa­mos. se houvessemos nas .... ido num lugar ou epoca diferenres daqueles em queestamos.

Eo fariamos mesmo. M?<s: T::> l visao parece ao meSmo tempo"superestimar esubestimar bern mais do que de\'eria a realidade da diversidade cultural. Supe­restima-Ia por sugerir que ter uma "ida direreme da que se tern euma opc;aopriti.:a sobre a qU<ii, de a1gum modo, 0 sujeito tern que decidir (sed. que eu de­veria ter sido Bororo? Nao euma s.one eu nao ter nascido hitita?); e subesti­ma-la por obscurecer 0 poder que rem essa cliversidade, quando pessoalmentedirigida a n6s, de transformar nossa ideia do que <. para urn ser humano - Bo­roro, hirita, estruturalista ou burgues liberal pOs-moderno~, acredirar, valo­rizar au conduzir-se: do que e, como observou Arthur Danto, &zendo eco afamosa pergunra de Thomas N"f,-el sobre 0 morcego. uachar que 0 mundo eplano, que fico irresistivel com meu vestido de Poiret, que 0 reverendo Jim Jo­nes m~ teria salvo par seu amor, que os animais nao tern sentimentos ouque.asflor:::s as tern - ou que 0 quente e opunk".I:' 0 problema do emoeentrismonao esta em de nos comprometer com nossos compromissos. Temos, por defi­nic;ao, esse compromisso, assim como estamos comprometidos com nossas do­res de cabe~. 0 problema do etnocentrismo eque ele nos im!",de de descobrirem que tipo de angulo, como 0 CavafY de Forster, nos situamos em rdas:ao aomundo; que tipo de morcegos somos, de fato.

Essa visao - de que os enigmas suscirados pela realidade da diversidadecuilUraltem mais a ver com nossa cap~cidade de sondar as apalpadelas as sensi­bilidades alheias, os modos de !"'nsamento que nao temos nem tendemos a ter(rockpunke vestidos de Poirer), do que com podermos ou nao fugir de preferirnossas preferencias - tern diversas impliea,Oes, que silo urn mau press:igiopara a abordagem das coisas culturais em [eemos de "n6s somos n65"" e "des saodes". A primeira delas, e, possivelmente, a mais importante, e que esses enig­mas nao surgem meramente nas fronteiras de nossa sociedade, ODde, segundoessa abordagem, esperar{amos encontri.-los, mas surgem, por assim dizer, noslimites de n6s mesmos. A estra!,heza nliocom~ nos limites da agua, mas nosda pele. Aqude tipo de id~iaque tende aser cultivada !",los antrop610g0s desdeMalinowski e pelos fil6s0fos desde Wittgenstein - a de que osxiiw, digamos,por serem OUtros. constituern urn problema, mas os t'l,cedores de futebol. porexemplo, por serem pane de nt». nio 0 constimem) ou, pdo menos, Rio si.ourn problema do mesmo tipo - ~ simplesmenre errada. 0 mundo social naose divide. em suasarti~, entre urn n6s persplcuo, com 0 qwil podemosrer empatia, por mais que sejamos diferentes mtrt n6s, e urn des emgmatico,con, 0 qual nao podemos ser empaticos, por mais que defendamos ab! a morte

Os was tid. diz'midud..

seu direito de serem diferenres de nos. A gentalha comec;:a rnuito ames do Canalda Mancha.

.Tanto a anrropologia recenre, do tipo Do POnto de Vistd do 1\"am·o \quepranco). quanta a filosofia recenre, do ripo das Formas dt \ "id;} (cia qua! souadepto), foram levadas a conspirar) ou parecem conspirar. para obscur~ceressefaro, .a(~av6: de uma a.pli~a,?ocronicamente errada de sua ideia mais poderosae malS Importante: a Idela de que 0 semido esocialmenre construiclo.

. A percep~o de que 0 senriclo, sob a forma de sinais interprer:iveis - sons,Imagens, sennmentos, artefams, gestos -, s6 passa a existir dentro dos ;oO"osde linguagem, das comunidades discursivas. dos sistemas de referencia in~r.subjetivos e das maneiras de construir 0 mundo; de que ele SUi"ge no contextode uma interas:ao social concrera, em que-uma coisa euma coisa para urn '\"oce eu~ e~, e nao em alguma gruta secreta na cabet;:.t; e de que de erigorosamentehbt6n.co, ~old.adono Huxo dos.acontecimentos, essa percePs:30 einterpretadacomo Imphcando que as comumdad""S humanas sao ou devem sec monadas se­manticas, quase sem janelas (0 que, a meu ver, nem Malinowski nem Witt­

~ns~ein - e, a ri~rJ ae.m Kuhn nem Foucault - p:etenderam queImpltcasse). Somos, diz Levi-Strauss, passageiros desses "ens que sao nossasc~turas, cadaqual m~ven.do-se em seus trilhos pr6prios, COm sua pr6pria vdo­adade e em sua pr6pna dire>iio. Os !lens que correm lado a lado, indo em di­r~6es similares e com ve10cidades nao muito diferentes da nossa, sao-nos aomenos razoave1mente visiveis, quando os olhamos de nossos comparrimentos.Mas os rrens que estiio em trilhos obliques ou paralelos, indo em dire>iio opos­~ nao 0 silo. "[Plercebemos a1"'nas urna imagem vaga, fugu e quase nao iden­tlficlve1, em geral apenas :Jma Mancha momenranea em nosso campo visual.que ?aO traz nenhuma inf~rmayaosabre si mesma e meramente nos irrita, por­que Interrom!'" nossa plaCIda contempla~o da paisagem que serve de pano defund" Par:' nossos devaneios."" Rorty e mais cautdoso e mooos poetico, e sin­to que se mteressa menos petos trens das outras pessoas, tao preocupado estaem saber para. onde e5ra indo 0 sell, mas fala de uma "superposi~o"mais oumenos acidental de sistemas de cren9l, entre comunidades Ieamericanas ricas ~

burguesas- e outras ·com as quais precisamos £alar-, como sendo 0 que permi­t~ que "alguma conversa entre asna~ ainda seja possivd"." 0 faro de 0 sen­~ento.o~entoeojulzoseal~emnurnafonnadevida_queeo

umco lugar: alw,la;"to a meu ver quanto na opiniiio de Rorty. emque des po­dem se apolar- ~ rido como significando que os limires de meu mundo saoosIimites cia .minha Iinguagem, 0 que nlio ~ exatamente 0 que 0 homem disse.

o que dedisse, e claro. foi que os limires cia minha Iinguagemsilo os Iimi­res do men m~do, !> que nao implica que-<> alcance de nossa menre, daquiloque podemos dizer,jtensar. apreciar e julgar, esteja aprisionado nas fionteiras

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76 NOIJIZ l.u.z sohr( a anrropo/.Qgia OS /lIOS do dit'asid.uit

I

II,

de nossa sociedade, nosso pais, nossa c1asse ou nos~3. epoca, mas que 0 alcancede nossa mente, a gama de sinais que de algurn modo conseguimos interp~etar,

e aquila que define 0 espac;:o inrelectual, afetivo e moral em que vivernos.Quante maior ele e, maior podemos torni-!o. renrando compreender 0 quevern a ser os adeptos da Terra plana, ou 0 reverendo Jim Jones (ou os lk ou osvandalos), 0 que significa sec como des, e mais c1aros nos rornamos tambempara n6s mesmos, tanto ern termos do que vemos de aparentemente remoto ede aparentemente familiar nos outros, de atraente e de repulsivo, de sensato ede inteirarnente louco; oposi¢es essas que nilo se a1inham de maneira simplis­ta, pais ha algumas coisas muito atraentes nos morcegos e outras muito repug­

nantes nos em6grafos.Como <liz Danta no mesmo artigo que cicci hi pouco, sao "as lacunas en­

tre mim e os que pensam diferentemente de mim. - 0 que equivale a dizer to­dos as outros, e nao apenas os segregados per diferen~ de gera¢es, sexo,nacionalidade. seita e ate ra~ - [que] definem. as verdadeiras fronteiras doself".17 Como ele tambem <liz, au quase, sio as assimetrias - entre aquilo ~mque cremos ou que sentimos e aquilo que OS'ounos fazem - que nos permi­tern situai onde estamos agora no mundo, como eestar nesse lugar e para ondegostarlamos ou nilo de ir. Obscureeer essas lacunas e assimetrias. rdegando-asao campo da diferen~passive! de $Or reprimida ou ignorada, da mera desseme­llian~. que e 0 que 0 etnocentrismo faz e escl destinado a fazer (0 universaJis­mo da Unesco as obscureee - Levi-Strauss tern tcda raz20 nisso-. negandopor completo sua realidade). equivale a nos isolar desse conhecimenro e dessapossibilidade: da possibilidade, em termos literais e rigorosos. de mudarmos deideia.

A hist6ria de qualquer povo em separado e a de todos os povos em conjunto,como tambem. a rigor, a hist6ria de cada pessoa tomada individualmente, ternsido a hist6ria dessamudan~ de ideias, em geral devagar. isvezes mais depressa;ou, caso 0 tom idealista desta afinna9i<> perturbe 0 leitor (niio deveria, porqueniio e idealista nem nega as press6es naturais da realidade ou os limites materiaisda wntade), tern sido a hist6ria da mudan~dos sistemas de sinais, clas formassimb6licas e das tradi¢es cultwais. Essas mudan~ niio se deram n=ria­mente.,va melhor, talvez nem mesmo emcaclter normal. Tampouco Ievaram auma";nv~cia das opini6es, mas a uma misrura debs. 0 que reaJmente foi,em algum momenro. a1go ao menos parecidocom 0 mundo das sociedades inte­gtais em comuni~ distante de Levi-Saauss, Iiem sell~ neoUtico,aansformou-5C em aIgo hem mais parecido com 0 mundo p6HnocIano de sen­sibilidades em choque nurn contatD inescapavd de que nos faIa Danto. Tal

como a nostalgia, a diversidade ja nao ecomo amigameme; t .:. ~rancafiamento

das vidas em \'agoes ferroviarios separados, para produzir ;,j ,~=-_ :0-:.'.:;5.0 cultural,QU seu espas:amemo com efeiros de contraste. par... liberar ~ :-.:::':;L15 morais, saoso..hcs rominticos que nao deixam de ser perigosos.

A tendencia geral de a espectro cultural cornar-se mais -:~o e mais conti­nuo, serr. se torr.;lf menos discriminado (alias, eproV3.vel que e::eja £lcando maisdiscriminado, amedida que as foemas simb61icas se dividem t ?:oliferam), ten­dencia esta a que me referi no inkio, altera nac 56 <i. rei,;.;.io dele com aargumenra,ao moral, mas tambem 0 caclter dessa pr6pria arF:nenra,ao. Acos­rumamo-nos aideia de que os conceitos cientificos modifica..-:;.-se com as mu­dan~ dos tipos de interesse para os quais 50 volram os cienrisus - a ideia deque nilo 50 precisa do cilcuIo infinitesimal para dererrninar aydocidade de urna.:barrete, nem da energia quiintica para explicar a oscila9i<> de urn pendulo. Mastemos bern menos consciencia de que 0 mesmo se apliea aos insrruIT'~tos espe~

cuIativos do raciocinio moral. As ideias que bastaram para as nagnificas diferen­~ de U;-Strauss nilo silo suficientes para as perturbador.... assimeL.w deDanto; e ecom estas Ultimas que nos confronwnos cada va mais.

Em termos mais concretos, as quest6~ morais provenientes da diversida­de cultural (que, e claro. estilo longe de $Or rodas :is questoes morais que exis­tern), as ql!ais, se eque chegavam a surgir, surgiam sobretucto entre sociedades- aquele ripo de coisa dos "costumes contclrios arazao e amoral" de que sea1imentou 0 imperialismo -, surgem agora, cada vez mais, dentto debs. Asfronteiras sociais e culturais tern uma cobcidencia ada va Menor - hi japo­neses no Brasil. turcos is margens do Main e nativos das Indias Ocidentais eOrientais enconrrando-se nas luas de Birmingham-, num processo de bara­Ihamento que ja vern aconteeendo hi urn born tempo. e claro (na Belgica, noCanada, no L'bano, na Africa do Sul. e nem aRoma dos Cisares era Ia muitohomogenea), mas que, em nossos dias, aproxima-se de propor~extfemas equase universais. Ja vai longe 0 tempo em que a cidade none-americana era 0

principal moddo de fragment"9io cultural e desordem etnica; a Paris de nosanc2tr<s ks gaulois esta ficando ti~ poliglota c poliaoma quanro Manhattan, ee posslvel que ainda venha a ter urn prefeito da Africa serenrrional (ou, pdomenos, assim temem muitos dos gauloifJ antes que Nova York tenha urn pre­feito hispanico..

Nocorpo de umasociedade. dentro das Cronteiras de urn "n6s",esseSlUgi­mento de questlies morais angusriantes, cenaadas na diversidade cultur.d, as­sim como as implica¢es que ele tern para nosso problema geral do "futuro doetnocenrrismo", talvez se~ de maneira hem mais \ivida amfts deurn exemplo - niio de urn exemplo inventado de~ cientifica, referenre a:lgua em antimundos, ou a pessoas cuias Iembrol9'S 50 intercambiam enquan-

e ...1tnt r'

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II

to elas dormem (como os exemplos que paSS:H3.m 3. agradar demais aos fi1650­fos ultimamente, em minha Opiili3.0).- :ll:1.S Jt" um exemplo real, ou, pelomenos, apresenrado a mim como real pdo ::mrropologo que 0 narrou: 0 Casodo fndio Bebedo e cia tvHquina de HemodiiLsc.

o caso esimples, por mais inuiganre que renha sido seu desfecho. Anosarras, a extrema escassez de ffiaquinas Lie hemodiilise, ern \"irrude de se'...l enor­me custo, levoll, como era natural, acrias:ao de urn processo de formayao defila para que os pacientes necessitados de diilise ri\'essem acesso a elas, nurnprograma meclico de governo do sudoesre dos Escados Unidos. dirigido. ram­hem roweo naturalmente, por jovens medicos idealistas, proveniences de gran­des faculdades de med.icina, em sua maioria siruadas no leste. ,Pata que essetratamento seja eficaz, ao menos par urn period..... prolongado, enecessaria umadisciplina rigorosa quanto adiera e outras questO~s por pane dos parientes.Como iniciativa governamental regida par C6dlgOS contcirios adiscriminac?0e, de qualquer modo, moralmente motivada, como afirmei, a organiza~o dafila foi feira niio em rermos da capacidade de pagamenro. mas da simples gravi­dade dos casos e da ordem de chegada dos pedidos. polirica esea que. com asdisror¢es habiruais da 16gica pririca. levou ao problem. do indio bebedo.

Esse indio, depois de conseguir acesso ao equiparnento escasso, recu­sou-se. para grande consterna~odos medicos. a parar de beber. ou sequer acontrolar sua ingescio de ilcool. que era prodigiosa. Sua postura. seguindo urntipo de princlpio semelhante ao de Flannery O'Connor, que mencionei anreri­ormente - 0 de 0 sujeito continuar a ser quem e, independentemente dequem os outros quiserem que seja-, era a seguinte: sou mesmo urn indio be­bedo. ji faz urn born rempo que sou assim. e prerendo conrinuar a se-Io en­quanto voces conseguirem me ma..'1ter vivo. arnarrando-me a essa sua malditamiquina. as medicos, cujos valores eram bern diferenres. achavam que 0 indioesrava impedindo 0 acesso ao aparelho por parre de ourras pessoas da fila em si­tuac?0 nao menos desesperada. as quais. na ,isaoddes. poderiam aproveitarmelhor seus beneflcios - 0 tipo jovem de dasse media. digamos. bern pareci­do com eles. destinado auniversidade e. quem sabe. afaculdade de medicina.Como 0 Indio ji esrava utiliz=do a miquina de hemodiilise quando 0 proble­ma se evidcnciou, des niio conseguirarn decidir-se (nem creio que isso lhes ti­vesse sido permitido) a retiri-Io de Ii; mas ficaram profundamcnte aborrecidos- pelo menos tanto quanto 0 Indio se mosrrava dererminado, sendo suficien­temente disciplinado para compareeer com ponrualidade a rodas as suas ses­sOes -. e sem duvida reriam concebido urna razao qualquer, aparentemenremedica, para retir.i-lo de suaposi~na fila. se houvcssem percebido it ternpo 0

que estava por vir. 0 Indio conrinuou a usar 0 aparelho e des continuaram in­comodados durante v:lrios anos. ate que - orgulhoso. imagino, agradecido

(niio aos medicos) por rer obrido urn prolongamemo da vida em que continuar3. beber. e sem nenr.um arrependimenro - de morreu.

20is benl, 0 obieti\·o desta pequena fabula em tempo real nao emostrar((J1l10 os medicos podcrn ser inscnsl\"c::is (des nao eram insenslveis, e tinham Iasuas razoes) ou qll~ro desoriemados·rornaram-se os indios (esse nao estava des~

norteado, sabia exarameme onde se sicuar), nem tampouco sugerir que os valo~resdos medicos (isro e, aproximadamente as nossos), os do indio (isto e,aproximadameme os nao nossos), ou algum julgamenro externo as panes. reti­rado da filosofia ou da anrropologia e proferido por urn dos juizes hercUleos deRonald Dworkin. d,,·esse rer prevalecido. Era urn caso diflcil. que reve urn fi­nal penoso, mas nao '"ejo como urn etnocentrismo, urn rdativismo au umaneurralidade maiores plldessem rer melhorado as coisas (emoo", urn poucomais de imaginas:ao ralvel 0 fizesse). a objerivo da fibula (nao tenho propria­menteceneza de qt.:e haja nda urna mo"..!) e mosrrar que e esse tipo de coisa, enao a tribo distante, dobrada sabre si mesma numa diferenl? COCIente ­

como os Azande ou os Ik. cujo fascfnio sobre os fil6sofos e apenas ligeiramentemenor que 0 das famasias de fics:ao cienrlfica. ralvez porque \hes seja posslvdrransforma-Ios em marcianos sublunares e enxerga-Ios em consonincia com is­so -, que representa. ainda que de maneira meio mdodramatica, a fonna ge­ral assumida hoje em dia pdos confliros de valores surgidos da diversidadecultural. .

as anragonims dessa hisr6ria. se e que se pode ve-los desse modo. naoeram representantes de rotalidades sociais ensimesmadas. que se encontrasseInpor acoso nas froneeiras de suas crenc;as. Os Indios que afasram 0 desrino atra­yes do consumo de :ilcool sao pane riio inregrante daAmerica oontempoclneaquanro os medicos que 0 corrigem atraves do uso de miquinas. (Sevodquisersaber como. pdo menos no que concerne aos indios - presumo que conhC9los medicos -. leia 0 inquieranre romance de James Welch, Winter in tb,Blood, onde os efeiros de contraste ressalram de urn modo bastanre peculiar.)Se houve a1guma falha nesse epis6dio - e. a bern da justi~ e diflcil dizer. adisrancia, exaramenee qual foi sua dimensao-. trarou-se da incapaeidade, porparte de ambos os lados, de apreender 0 que significava esrar DO ouao. e por- .ranro. 0 que significavo. esrar no seu. Pdo mcnos ao que par=. Dingu6naprendeu muira coisa sobre si mesmo ousobre qualquer outra pessoancsseepi­s6dio, e absoluramenre rw:Ia sobre 0 car.lt"f do cnCODtro oconido awe des,exceto pelas banalidades da repugnincia e da amargura. Nao ~ a iDcapriladede as pessoas envolvidas abandonarem suas pr6prias convic¢ese.~asideias de outros que faz essa historieu pa=erdo profundameid!depriaieDte..T ampouco 0 e sUa falta de uma regn moral'desencamada a qucieci iiiCf::OBern Maior ou a Princlpio da Djfercn~ (os quais, a1i~ parcariamproCfiiZir ....

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80Os wos dtL dilJasititub 81

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resultados diferentes aqui). 0 que ftspOilde por esse sentimento depressivo eaimpossibilidade de as pt'ssoas ~t:~L.lll l::-..,S:JUfem. em meio ao misrerio cia riife­ren<;3., como seria passivd contorn;,r ~ir:1J. :lssimctria mora; perfeic2.mente au­

(enrica. T udo aconteceu 110 CS(Uiv.

o que [code a acontecer no escuro - as LLnicas coisas que se cliria serem permi­tidas por uma concepc,rao cia dignidade humana. pamada em "uma certa surdezao apelo de OUrIOS valores" ou uma "comparac?o com comunidades piores" ­eo usa cIa forc;a, pCi.ra garantir a conformidade aos valores des detentores ciaforera. all uma toleranc:a vazia, que, DaO compromerendo nada, nao modificao?da, au ainda, como oeste case, no qual a for<ra nao esta disponivel e a tole­

rancia edesnecessiria) urn escoamento para urn firn ambiguo.Sem dlivida, sucede haver sirua<;6es em que de faro ex.isrem as alrernarivas

praricas. Nao parece haver muito que fazer com 0 reyerendo Jones, depois queele esra em perseguic;ao cerrada, senao dere~!o fisicamente, antes que ele distri­bua 0 venenoso Keel-Aid Quando as pesso', acham que 0 quente eo rockpunk, bern, pelo menos desd.e que nao 0 toquem nQ metro, trata-se dos ouvi­dos e do funeral ddas. E e diffeil m(Smo (alguns morcegos sao mais intrinseca­mente morcegos de que outros) saber exatamente como proceder com alguemque afirrna que as flares tern senrimenros e os ani~ais nao. 0 patemalismo, aindiferent;il e at~ a sabetba nem sempre sao atitudes inuteis a adotar diante dediferen9'S de valor, mesmo diferen9'S de maior peso do que essas. a problemae saber quando des sao uteis e podemos deixar a diversidade entregue em segu­ran~ a sellS espeeialistas. e quando, como penso ocorrer com mais freqiiencia.e uma freqiiencia cada va maior, eles nao sao uteis e eia oao pode ser entreguedessa maneira, havendo necessidade de algo mais: uma incursao imaginariva

numa mentalidade alheia (e uma aceitac;ao dda).Em nossa sociedade, 0 conhecedor por excdencia das mentalidades alhei­

as tem sido 0 eto6grafo (0 historiador tambem. em ct':rta medida, e 0 lomancis­u, de urn modo diferente, mas quero voltar a minha pr6pria seam). quedramatiza a estranheza, enaltece a diversidade e.transpira l:ugueza de visao. Se­jam quais forem as diferen9'S de merodo ou leoria que nos separam, lemossido semelhanles nislo: prolissionalmenle obcecados com mundos situadosnoutros lugares e com 0 torna-Ios compreens(veis, primeiro para n6s mesmose, depois, anaves de recursos conceituais nao muilo diferenles dos usados pdoshistoriadores e de recursos liter:l.rios nao mwto diferenles dos usados pdos ro­mancistas, para nossos leilores. E. enquanto esses mundos estiveram realmenlenoutros lugares. la onde Malinowski os encontrou e onde Uvi-Snauss os re­cordou. isso foi. apesar de baslante dillcil como tare&. pratica, rdativamente

nao problematico como tarefa analiti::a. Podiamos pensar nos "primitivos"("selvagens", "nativos" etc.) como pensavamos nos marcianos- como modospossfveis de sentir. raciocinar, julgar, conduzir~se e viver q:le eram descontfnu­os dos nossos, alternativos a n6s. Agora que esses mundos e essas mentalidadesalheios, em sua maioria, nao estao realmente noutro lugar, mas sao alternativaspara n6s, situadas bern perto, "lacunas [instantaneas] entre mim e os que pen­samdiferentemente de mim", parece haver necessidade de urn cerro reajuste denossos habiros ret6ricos e nosso sentimento de missao.

as usos da diversidade cultural, de seu esrudo, sua descric;1io. sua an:l.lise esua c;:ompreensao, tern menos 0 sentido de nos separannos dos outtos e sepa­rarmos os outros de n6s. a lim de defender a inlegridade grupal e manrer a leal­dade do grupo, do que 0 sentido de definir 0 campo que a raz1io precisaatravessar, para que suas mooestas recompensas sejam alcan~e se concren­zem. a lerreno e irregular. cheio de f.olhas subitas e passagens perigosas, ondeos acidentes podem acontecer e de fato acontecem, e arravesd.-lo ou tentar.uavess:l.-Io conlribui pouco ou nada para lransforma-lo numa plan/cie nivda­da, segura e homogenea, apenas lomando vislveis suas fendas e COntomos.Para que nossos medicos perempt6rios e nosso Indio intransigent< (ou 0(5)

"rico(s) americano(s)" e "[aqudes com quem] precisamos falar". na Iinguagemde Rorty) se confronlem de maneira menos desrrutiva (e estamos longe de lercerreza de que possam realmenle faze-Io. pois as fendas sao reais). des p=isamexplorar 0 carater do espa~ que os sep;;.ra.

Em Ultima insdncia, sao des mesmos que tem de fazer isso; nesse caso,nao h:I. substitulo para 0 conhecimento local, nem tampouco para a corogem.Mas os mapas e gr:l.ficos ainda podem ser uleis. assim como as talx:Ias, os rela­105, as fOlografias, as descri~ e ale as roorias, se alentarem para 0 real asusos da etnografia sao sobretudo auxiliares. mas~ ainda assim, 00 reUs; como acompilac;ao de dicion:l.rios ou 0 polimenlo de lenles. essa e ou pode ser urnadisciplina faciliudora. Eo que eIa faciliu, quando 0 faz, e urn contalo operaci­onal com urna subjetividadevarianle. Ela coloca ~n6s" particulares entre 'des"particulares. e coloca 'des" entre 'n6s" onde, como venho dizendo, todos janos encontramos. ainda que poueo avontade. EIa e a grande inirnigado elno­

centrism". do confinamenro das pessoas em planeras culturais em que as 6ni­cas ideias que das precisam evocar sao 'as daqui-, n1io por prawnir que IOdasas pessoas sao iguais, mas por saber quio profundamente n1io 0 sao, ." apesardisso. quio incapazes sao de deiDr de Ievar em conta umas h outr:IS. 0 quequer que leMasido poss!vd urn dia, e seja porque for queseanseieagon, a so­berania do conhecido empobrece a todos; !lamedi~em que datenhafimuo,o nosso ser:I. lenebroso. Nao se ttata de que lbamos amar UDSaOS 0lIt10S OIl

morrer (se assim for- negros e africlnderes.:I.rabes e judeus;dmeisecingale-

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Nov,; be. /obr~ a olltropoiogio

ses -, crelO que es[aremos condena~os). Trata-se de que devemos conhecerun~ Jn~ (llHro.' (' \"i\,t! com esse conhecimento, ou rerminar isolados num mun­do b.::-.;:r;ctrl:1I1', de soliloquios em choque.

o u;.<balho cia ernografia, au pelo menos urn deles, ercalmeme proporcio­nar. como a aHe e ~ hist6ria, narrari\'as e enredos para redirecionar nossa aten­c;ao. mas nao do ripo que nos tome aceir3veis a n.6s mesmos, represenrando osounos como reunidos em mundos a que nao queremos nem podemos chegar,mas nallativas e enredos que nos romero visiveis para nos mesmos, represen­rando-nos e a todos os outros como. jogados no rneio de urn mundo repleto deesrranhezas irremovlveis, que nao temos.como evitar.

Ate epoca bern recente (agora a situacrao esta mudando, em parte, pdomenos, par causa do impacto cia etnografia, mas sobretudo porque 0 mundoest:' mudando), a etnografia estava bastante soz.inha nisso, pais a hist6ria, naverdade, passava boa pa.rte do tempo a estimular nossa auto-esrima, a respaldarnosso sentimento de que estavamos chegando a algum lugar, ao fazer a apoteo­se d~ nossos her6is e diabolizar nossos inimigos, ou a lamentar a grandeza per­dida; 0 comentario social dos romancistas, em sua maior parte, era interno ­com as partes da consciencia ocidental segurando, umas pa~as o~tras, urn es­pelho plano como 0 de Trollope ou curvo como 0 de Dos~o,,!vski;. e ate os es­critos de viagem, que ao menos atentavam para superficIes ex6ncas (selvas,camelos, bazares, templos), empregavam~nassobretudo para demonstrar agrande capacidade de recupera~o das virtudes aptendidas, em m~io a circuns­tancias penosas - 0 ingles que se mantinha calmo, 0 frances, raclOnal, 0 nor­te-americano, inocente. Agora que e1a ja nao escl tao sozinha e que asestranhezas com que rem de Iidat ..ao-se tornando mais obHquas e matizadas,",enos faceis de descartar como anomaIias desvairadas - homens que se jul­gam descendentes de urn tipo de canguru ou estao convencidos de que podemser assassinados por urn olhar de esguelha-, sua tarefa de locaIizar essas estra­nhezas e descrever suas formas pode set mais dificil, sob cerros aspectos, masnao e menos necessaria. Imaginar a diferens:a (0 que nao significa, eclaro, in­venta-la, mas rorna-Ia evidente) continua a ser urna ciencia da quai todos preci­samos.

Nao emeu objetivo aqui, enueranto, defenrec as prerrogativas de uma Wzssm­schltftfeita em=, cuja patente sobre 0 esrudo da diversidadeadtural, see queeIa aIgum dia a teve, expirou hi muito tempo. Men prop6sito e sugerir quechegamos a urn ponto, na hist6ria moral do mundo (uma hist6ria que, em simesma, e claro, etudo menos moral), em que somos obtigados a pensar nessa .diversidade de modo bern diferente do que costumavamos &zer. Sede fato esci

ocorrendo que, em vez de se separarem em unidades emolduradas. em espas:ossociais com limite" def;njebs, :15 3.bordagens seriamenre distinus "':.1. \'j(b ('st:w

se misrurando em espayos mal definidos, espas:os sociais cuj05 jir:1;[cS 1130 rem

fixidez, sao irregubres e diffceis de Jocalizar, a queStao de como iiear com as

enigmas de julgamenro a que tais disparidades dao margem aSSilme urn aspecrabem diferente. Fitar paisagens e namrezas-mortas Clima coisa: obseryar pano­ramas e colagens e Outra muito diferente.

Que ecom esras ultimas que nos deparamos hoje em dia, que vivemoscada vez mais em meio a uma enorme colagem, parece evidenciar-se por radaparte. Nao e apenas no noticiario noturno que os assassinaros na fndia, osbombardeios no Libano, as golpes de Estado na .Africa e os tiroteios na Ameri­ca Central se imiscuem entre desasrres locais que nao chegam a ser mais inteli­giveis, seguidos por sisudas discussOes sobre 0 estilo empresarial japones, asformas de paixao persas Oil os estilos de negocia~o dos ,,,.be,. H. tambemwna irnensa explosao de tradu~6es,boas, ruins e indiferentes, de e para linguas- timil, indonesio. hebraico e urdu - antes consideradas marginais e obsc~­ras; ha urna migra~o da culinaria, do vestu:lrio, dos acessor:os e da decora<;5o(cafet'" em Sao Francisco, Colonel Sanders em ]ogjacarta e banquetas de barem Quioto), e tambem 0 surgimenro de temas do gamdao no jail de vanguar­da, de mitos indigenas nos romances latinos e de imagens de ce\istas na pintura

africana. Acima de tudo, porem, trara-se de que a pessoa que encomramos naloja de hortalis:as e frutas tern tanta ou quase tanta probabilidade de vir da Co­ccia quanto do Iowa; a pessoa do correio, tanra de vir daArgeIia quanto de Au­vecgne, e a do banco, tanta de vir de Bombaim quanto de Liverpool. Nemmesmo os meios rurais, onde a similitude tende a s~c mais hraigada, ficamimunes: hi fazendeiros mexicanos no sudoestedos Estados Unido" pescadoresvietnarnitas no IitoraI do golfo do Mexico e medicos iranianos no meio-oeste.

Nao preciso continuar a multiplicar os ex:emplos. Todos voces sao capazesde pensar nos seus, extraJdos de seus passeios pelas redondezas. Nem toda essadiversidade e igualmente impottante (a cuIinan. de ]ogjacarta sobrevivecl aoprazer de chupar os dedos), igualmente imediata (voce nao precisa compreen­deras cren<;as religiosas do homem que Ihe vendeseIos), nem prov.m, toda da,de urn contraste adtural claro. Mas parece f1agrantemente claro que 0 mundo,em cada urn de seus pontos Iocais, escl. comes:ando a se parecer mais com urnbazar do Kuwait do que com urn clube de cavaIheiros ingIeses (para exemplifi­car 0 que, ralvez por eu nunca ter estado em nenhurn dos dois, parecem-me seros casos mais diametraImente opostos). 0 ernocenuismo dos apos ovo de pio­Iho ou "isso 56 exine gra<;as aadtura" pode ou nao coincidir com a esp6:ie hu­mana, mas agora e muito diflcil, para a maioria de n6s, saberexatarnenre onde

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84 Nov" Iuz. Jobrc a 4nrropologia

centra-Io, na imensa montagem das diferenc;as justaposras. as milieux cstaotodos mutes. Ja nao se fazem mais Umwaucomo antigameme.

Nossa resposta a essa realidadf" que me parece imperiosa e. ao que td.mbciT'me pareee, urn dos maiores desafios marais que enfrentamos 3malmenrc, comourn ingrediente de praticamente rodos os outcos que enfrentamos, desde 0 desar­mamento nuclear ate a d.istribui~o eqilitativa des recursos mundiais; e, para eo­frenti-lo. as recomendac;:oes de rolerincia indiscriminada. que de qualquermodo nao sao sinceras, e (0 que constitui meu alva aqui) os conselhos~ rendi­<;3.0 aos prazeres cia comparayao odiosa., sejaelaorgulhosa. animada., defensiva OU

resignada, sao-nos igualmente inuteis, embora estes Ultimos talvez sejam os mais

perigosos, por serem os que mais tendem a ser seguidos. A imagem de urn mun­do repleto de pessoas tao apaixonadamente encantadas com a cultura umas dasoutcas, que aspirem unicamente a cdebrar umas as outrasJ nao me parece consti­cuir urn perigo claro e atual; a imagem de urn mundo repleto de pesscas que glo­rifiquem alegcemente seus her6is e diabolizem seus inimigos, sim, infelizmenteparece constituf-lo. Niio e preciso escollier - alias, e preciso niio escollier - en­tre urn cosmopo~itismosem conte1ido e urn provincianismo sern l:igrimas. Ne­nhurn dos dois tern serventia para se viver nurna colagem.

Para viver Duma colagem, epreCise, em primeiro lugar. que a pessoa setome capaz de di..<cemitseus elementos, determinando quais sao (0 que impli­ca, em geral. dererminar de onde vieram e 0 que eram quando estavam la) ecomo se relacionam uns com os outros na pdtiea, ao mesmo tempo scm em­bow a ideia que ela tem de sua pr6pria localiza?o e de sua identidade dentrodesta. .Em teernos menos figurados, ·comprec:nder". no sentido da compre­ensao, da percep?o e do disce.!nimento, piecisa ser distinguido de "compr"en­dec" no sentido da concordancia de opini6es. da uniao de sentimentos ou dacomunhiio de compromissos; hi que distinguir 0 je vous ai compns que DeGaulle proferiu do je vous ai compns que os pietis noi" ouviram.· Devemosaprender a apreender 0 que nao podemos abra~.

A dificuldade dissoe imensa, como sempre foi. Compreender aquilo que,de urna dada maneira ou forma, nos eestranho e tende a continuar a .c-Io, semaparar suas arestas com Vagos murmUrios sob~e a humanidade comum. semdesarma-lo com 0 indiferentismo do "a cadaca~ sua senten~',e scm des­cana-lo como encantador. adocivel ate, mas sem imporclncia, euma habilida­de que temos de aprender duramente e, depois de havb-la aprendido, semprede maneica muito imperfeita, temos de traba1har continuamente para manter

··Eu os compreendo·;pids ..i..cIaigna os ugdinos. (N.T.)

viva; nao sel1at3 d.c uma capacidade inata, como a percep<;ao de profundidadeou 0 ~en.so de eq:lIlibrio. em que possamos confiar plenameme.

E nlssa. nc'. i().~Llic('iTl(·"~O dJ capacidarl.-:- de no~q imac-inara-o pd' - ~)" ara apre-en ~r 0 ~ue CS[3 l1uiHl' de jl05. que residem os usos cia d,'\'ersidade e do eSi:u.doda d.l\'ersldade. Se remos (c~mo admico que teoho) mais do que uma simparia

sentlmenra~ p,~r aquele obsrma?o indio norte-americano, nao e-por comparri­)harmo:,~ Idelas ~ele. 0 alcoohsmo e realmente nocivo. e colocar aparelhos dehemodlahse a sern<;o de suas \'irimas efazer urn mau uso deles No . .. . ssa slmpanadenva de sa~ermosa que pre<;o ele conquistou 0 direito a suas opinioes e, por­tanto. 0 sentlmenro de arnargura que exisre nelas; deriva de oossa compreensaocia es[ra~a rerrivel q~e ele reve de percorrer para chegar a elas, e daquilo _ 0 e[­

oocentnsmo e os cnm~s que ele Iegitima - que a [ornou rao rerrfvel. Se qui­ser~os sec capazes de Julgar com largueza. como e6bvio que devemos fazer.preclsarnos mrnar-nos capazes de enxecgar com largueza. E par " .L. .. a sso. 0 que Jei~~os - 0 mtenor d: nossos \'~6~ ferroviarios e os brilhames exemplos his­[oncos de n~ssas n~<;o~5, nossas IgceJas e nosses movimentos, por mais absor­v.eore que sep 0 pnmeuo e por !TIais deslumbranres que sejam os Ultimos _slmplt:smenre nao basta.