sobre a analítica de poder de focauld

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    MAIA, Antnio C. Sobre a analtica do poder de Foucault.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,7(1-2): 83-103,outubro de 1995.

    F O U C A U L TUM PENSAMENTODESCONCERTANTE

    Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 83-103, outubro de 1995.

    Sobre a analtica dopoder de Foucault

    ANTNIO C. MAIA

    RESUMO : Compreender a forma pela qual se estruturam as relaes soci-ais, em especial as relaes desiguais de obedincia e dominao que jus-tificam a autoridade e a natureza das obrigaes polticas, tem sido umatarefa constante do pensamento humano. Neste texto sustentamos que Mi-chel Foucault deu uma contribuio inegvel a uma compreenso melhordesta ordem de fenmenos. Na primeira parte examinamos algumas dascaractersticas do seu conceito de poder. Na segunda, privilegiamos um

    outro eixo de anlise, acompanhando as transformaes que este conceitosofreu ao longo dos anos 70 em sua obra.

    UNITERMOS:

    Foucault,conceito de poder,bio-poder,governamentalidade.

    Introduo

    oucos autores do cenrio contemporneo trilharam tantas reas dosaber como Foucault: da epistemologia das cincias humanas ti-ca, da literatura sexualidade, da loucura punio. Mas, o estudodo poder foi o causador da maior repercusso. As suas investiga-

    es, ao longo dos anos 70, em torno da problemtica do poder, com suascaractersticas, tticas e estratgias o projetaram como o filsofo francs - aolado de Jacques Derrida - de maior presena no cenrio cultural alemo eanglo-saxo. Entretanto, esta parte de seu trabalho no foi objeto de uma or-

    Louvre de Foucault se r-encheine avec lesgrandes ouvres qui ont chang por nous ces

    que signifie penser(Deleuze, 1986, p. 128)

    PProfessor da Faculdadede Direito da UERJ e doDepartamento de Direi-to e do curso de espe-cializao em Filosofiada PUC-RJ

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    ganizao de suas premissas, nem de uma sistematizao de seus resultados.Algumas causas podem ser apontadas para justificar esta situao.

    Em primeiro lugar, a prpria caractersticas das investigaes deFoucault, cujas pesquisas avanaram impulsionadas por uma infatigvel von-tade de saber, onde a curiosidade o levava constantemente a novos assuntos ediferentes domnios, deixando, em geral, de lado as reflexes de carter maistipicamente metodolgico. Um estilo de trabalho que demarcava certos dom-nios por exemplo, medicina, prticas punitivas, emergncia das cinciashumanas nos sculos XVIII e XIX, submetendo-os a um minudente exame, luz de uma erudio excepcional, privilegiando sempre os dados empricosobtidos em suas pesquisas de natureza histrico-filosficas. Este privilgiodo material positivo pesquisado, as concluses parciais medida dos desdo-bramentos dos estudos, os instrumentos conceituais forjados a partir da anli-se do material examinado, davam o tom de um trabalho mais preocupado emsacudir as evidncias e perturbar as nossas familiaridades do que em estrutu-rar uma obra sistematicamente integrada. Aliado a isto, uma desconfiana emrelao s generalizaes e grandes snteses contriburam para uma situaona qual certos assuntos se encontram expostos de forma no muito articulada.Em relao problemtica do poder, estas caractersticas at aqui destacadasdo projeto de Foucault ensejaram uma reflexo que embora original e pro-funda no foi merecedora de nenhum grande trabalho de exposio e siste-matizao1. O que se observa so inmeras e esparsas referncias, espalhadaspelos mais diversos textos: livros, cursos, conferncias e entrevistas.

    Este breve trabalho procura alinhavar consideraes a respeito daanlise foucaultiana do poder. Tal problemtica ser enfocada a partir de doiseixos. Primeiramente, destacar-se- certos traos de seu trabalho acerca destaquesto; em segundo lugar, sero acompanhadas algumas modificaes e di-ferenciaes expostas e explicitadas ao longo de suas investigaes: poderdisciplinar, o bio-poder e a governamentalidade.

    Antes ainda de iniciar a descrio de certos traos do conceito depoder, cabe destacar que Foucault no tem uma teoria geral do poder, a - his-trica, podendo ser aplicada a todas as relaes de poder existentes em socie-dade, em qualquer contexto. Ao contrrio, ele no pretende fundar uma teoriageral e globalizante, e sim trabalhar uma analtica de poder capaz de dar contado seu funcionamento local, em campos e discursos especficos e em pocasdeterminadas. Como ele destaca: O que est em jogo nas investigaes queviro a seguir dirigirmos menos para uma teoria do poder que para umaanaltica do poder: para uma definio do domnio especfico formado pelasrelaes de poder e determinao dos instrumentos que permitam analis-lo(Foucault, 1979b, p. 80). O ponto de vista adotado pela analtica do poder

    assume uma reflexo com mbito mais limitado a respeito desta problemti-ca, evitando determinadas questes como, por exemplo, a respeito da ori-gem do poder e adotando uma perspectiva eminentemente descritiva, pro-curando identificar e explicitar os diferentes mecanismos, tticas e estratgias

    1 A nica exposiosistematizada deFoucault a respeitodas suas reflexes so-bre poder se encontrano textoSujeito e po-der (1982).

    Agradeo a MrciaBernardes a ajuda queme deu na preparaodo texto para a publi-cao

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    empregadas, bem como a forma de funcionamento, das relaes de poder emsociedade. Como salienta o autor deVigiar e punir :

    (...) o problema no de constituir uma teoria do poder que teria como funo refazer o que um Boulainvilliers ou Rousseau queriam fazer. Todos osdois partem de um estgio originrio em que todosos homens so iguais, e depois o que acontece? In-vaso histrica para um, acontecimento mtico paraoutro, mas sempre aparece a idia de que, a partir de um momento, as pessoas no tiveram mais direi-tos e surgiu o poder. Se o objetivo for construir umateoria do poder, haver sempre a necessidade deconsider-lo como algo que surgiu em um determi-nado momento, de que se deveria fazer a gnese edepois a deduo. Mas se o poder na realidade um

    feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem d-vida mal coordenado) de relaes, ento o nico pro-blema munir-se de princpios de anlise que per-mitam uma analtica do poder (grifo meu) (Foucault,1979a, p. 154).

    importante observar com clareza as ambies de Foucault no to-cante s anlises formuladas pela genealogia do poder. Em geral as dimensese objetivos de sua empreitada no so corretamente apreciados por seus leito-res. Crticas aos resultados das investigaes realizadas por Foucault a res-peito da problemtica do poder, por vezes no esto atentas aos limites - porele reconhecidos de suas pesquisas. Quem destaca com preciso a forma detrabalho e o mbito da reflexo de Foucault acerca do poder Roberto Ma-chado:

    Mas preciso ser menos geral e englobante. Por-que a anlise de Foucault sobre a questo do poder o resultado de investigaes delimitadas, circuns-

    critas, com objetivos bem demarcados. Por isso, em-bora as vezes suas afirmaes tenham uma ambioenglobante, inclusive pelo tom muitas vezes pro-vocativo e polmico que as caracteriza, importan-te no perder de vista que se trata de anlises parti-cularizadas, que no podem e no devem ser aplica-das indistintamente sobre novos objetos, fazendo-lheassim, assumir uma postura metodolgica que lhesdaria universalidade (Machado, 1979, p. XII).

    A partir destas consideraes e delimitado o escopo do projetofoucaultiano a respeito do poder, o primeiro trao que interessa destacar nestaanaltica o abandono de uma viso tradicional do poder onde sua atuao sebasearia fundamentalmente em seu aspectos negativos: proibindo, censuran-

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    do, interditando, reprimindo, coagindo, etc. Como ele afirma: J repeti cemvezes que a histria dos ltimos sculos da sociedade ocidental no mostravaa atuao de um poder essencialmente repressivo (Foucault, 1979b, p. 79).Talvez esteja a um dos aspectos mais ricos de sua anlise. difcil avaliar sefoi ele que inaugurou esta viso da problemtica do poder, porm com certezapoucos enfatizaram to tenazmente est idia. Ora, chega a causar estranhezae se imaginarmos que as relaes de poder se fundam exclusivamente em umcarter negativo: como explicar o sucesso das inmeras redes de dominaoexistentes em sociedade? Como explicar a relativa tranqilidade do poderburgus em uma sociedade injusta e desigual, onde uma inqua diviso debens e poder vem se perpetuando com certa facilidade? Talvez seja modifi-cando nossa percepo do fenmeno do poder que possamos entender melhoresta dinmica. Assim, parece fazer mais sentido sustentar a seguinte posio:o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito simplesmente queele no pesa s como a fora que diz no, mas que de fato ele permeia, produzcoisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (Foucault, 1979a, p. 8).

    Por conseguinte, ao enfatizar o aspecto produtor do poder, Fou-cault se insurge contra uma viso do poder que o encara predominantementecomo uma expresso de uma operao que teria a forma de enunciao da leie do discurso da proibio, com toda uma srie de efeitos negativos: excluso,rejeio, ocultao, obstruo, etc. Com efeito, a partir desta perspectiva alei da interdio e da censura que atravessa todo o corpo social - do Estado famlia, do prncipe ao pai; dos tribunais toda a parafernlia da puniesquotidianas - como forma por excelncia de exerccio do poder. Para ele im-pe-se uma mudana neste enfoque, encarando o exerccio do poder menosem termos jurdicos e de proibio e mais como tcnicas e estratgias comefeitos produtivos. Como ele afirma, Temos que deixar de descrever sempreos efeitos do poder em termos negativos: ele exclui, reprime, recalca,censura, abstrai, mascara, esconde. Na verdade o poder produz realida-de, produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivduo e o conhecimen-to que dele se pode ter se originam nessa produo (Foucault, 1977, p. 172).

    Dentro desta perspectiva, Foucault prope uma analtica do poderonde abandonado o modelo legal: preciso construir uma analtica dopoder que no tome o Direito como modelo (Foucault, 1979b, p. 87). Destaforma, procura-se fugir de uma tradio onde se utiliza o modelo formal ecentralizador do Direito como parmetro compreenso das relaes de po-der, modelo este que tem se revelado insuficiente para dar conta da incessante,fluida e matizada movimentao das relaes polticas e de poder. Ademais,esta concepo jurdica do poder ainda guarda influncia bem maior que acorrentemente admitida da representao de poder estruturada quando da

    consolidao dos Estados Nacionais na Europa, sob o regime monrquico.Como salienta Foucault: No fundo, apesar das diferenas de poca e de obje-tivos, a representao do poder permaneceu marcada pela monarquia. No pen-samento e na anlise poltica ainda no cortaram a cabea do rei (Foucault,

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    1979b, p. 86).Ao afastar-se do modelo legal - afinal o poder no algo de que se

    tenha propriedade, que se troque ou venda Foucault aponta para umanova percepo deste fenmeno. Assim, o poder no deve ser conhecido comoalgo detido por uma classe (os dominantes) que o teria conquistado, alijandodefinitivamente a participao e a atuao dos dominados2; ao contrrio, asrelaes de poder presumem um enfrentamento perptuo. Desta maneira, ofuncionamento do poder melhor compreendido atravs da idia de que seexerce por meio de estratgias e que seus efeitos no so imputveis a umaapropriao mas a manobras tticas e tcnicas. Como ele explica uma dasmais esclarecedoras passagens deVigiar e Punir sobre a dinmica do poder:

    Ora, o estudo desta microfsica supe que o poder nela exercido no seja concebido como uma propri-edade, mas como uma estratgia, que seus efeitos dedominao no sejam atribudos a uma apropria-o, mas a disposies, a manobras, a tticas, a tc-nicas, a funcionamentos; que se desvende nele antesuma rede de relaes sempre tensas, sempre em ati-vidade, que um privilgio que se pudesse deter; quelhe seja dado como modelo antes a batalha perptuaque o contrato que faz uma cesso ou uma conquistaque se apodera de um domnio. Temos, em suma, queadmitir que esse poder se exerce mais do que se pos-sui, que no privilgio adquirido ou conservadoda classe dominante, mas o efeito conjunto de suas

    posies estratgicas - efeito manifestado e s vezesreconduzido pela posio dos que so dominados(Foucault, 1977, p. 29).

    A perspectiva aberta pela analtica do poder vai impor, tambm,um deslocamento sensvel, em relao s anlises tradicionais sobre esta no-o, no que concerne ao papel do Estado. Ora, para Foucault, uma sociedadesem relaes de poder somente pode ser uma abstrao (Foucault, 1982, p.222), isto implica que qualquer agrupamento humano vai estar semprepermeado por relaes de poder, posto que a existncia deste tipo de relao coexistente vida social. Desta perspectiva, o Estado parece perder um certoprivilgio que a anlise poltica lhe tem garantido. Isto se d na medida emque a instituio estatal, via de regra percebida como o foco originador dasrelaes de poder, na analtica do poder vai ter seu papel redimensionado. OEstado no detm a prerrogativa de ser o centro constituidor das relaes depoder. O fenmeno da dominao, com as inmeras relaes de poder que pres-

    supe, preexiste ao Estado. O que se observa que a partir da consolidao doEstado Nacional, como forma por excelncia de organizao poltica, paulati-namente com o alargamento das funes, h uma captura de focos de poder peloaparelho do Estado. Como assevera: certo que nas sociedades contempor-

    2 Refutando a perspec-tiva que veria numaoposio dominantesX dominados, o eixocentral da articulaodas relaes de poderFoucault prope o se-guinte: que o podervem de baixo; isto ,no h, no princpiodas relaes de poder,e como matriz geral,uma oposio binriae global entre os do-minadores e os domi-nados, dualidade querepercute de alto abaixo e sobre gruposcada vez mais restri-tos at as profundezasdo corpo social. Deve-

    se, ao contrrio, suporque as correlaes deforas mltiplas quese formam e atuamnos aparelhos de pro-duo, nas famlias,nos grupos restritos einstituies, servemde suporte a amplosefeitos de clivagemque atravessam o con- junto do corpo social.Estes formam, ento,uma linha de forageral que atravessa osafrontamentos locaise os liga entre si; evi-dentemente, em troca,procedem as redistri-buies, alinhamen-tos, homogeneizaes,arranjos de srie, con-vergncias, dessesafrontamentos locais.As grandes domina-es so efeitos he-gemnicos continua-mente sustentadospela intensidade des-tes afrontamentos(Foucault, 1979b, p. 90).

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    neas o Estado no simplesmente uma das formas especificas de exerccio dopoder - mesmo se for a mais importante - mas, de um certo modo, todas asformas de relaes de poder devem a ele se referir. Todavia isto no se dporque elas se derivam do Estado; mas porque as relaes de poder vem sen-do paulatinamente colocadas sob o controle do Estado (Foucault, 1982, p. 224).

    A pesquisa de Foucault impe um deslocamento em relao ao Es-tado ao identificar a existncia de uma srie de relaes de poder na sociedadeatual que se colocam fora do Estado e que no podem de maneira alguma seranalisadas em termos de soberania, de proibio ou de imposio de uma lei.Eis que: entre cada ponto do corpo social, entre homem e mulher, entre mem-bros de uma famlia, (...) entre cada um que sabe e cada um que no sabe,existem relaes de poder (Foucault, 1980a, p. 187). Tais relaes, obvia-mente, no podem ser percebidas como projees do poder do Estado. Darconta destas relaes uma das preocupaes desta analtica, pois sem entend-las dificilmente se poder alterar efetivamente o jogo do poder na sociedade.Mas no se negligencia o papel do Estado, apenas este papel deslocado emrelao s anlises tradicionais. Como esclarece:

    Situar o problema em termos de Estado significacontinuar situando-o em termos de soberano e sobe-rania, o que quer dizer, em termos do Direito. Des-crever todos esses fenmenos do poder como depen-dentes do aparato estatal significa compreend-loscomo essencialmente repressivos: o exrcito como

    poder de morte, polcia e justia como instncias punitivas, etc. Eu no quero dizer que o Estado no importante; o que quero dizer que as relaes depoder, e, conseqentemente, sua anlise se estendemalm dos limites do Estado. Em dois sentidos: em pri-meiro lugar porque o Estado, com toda a onipotn-cia do seu aparato, est longe de ser capaz de ocu-

    par todo o campo de reais relaes de poder, e prin-

    cipalmente porque o Estado apenas pode operar combase em outras relaes de poder j existentes. O

    Estado a superestrutura em relao a toda umasrie de redes de poder que investem o corpo, sexua-lidade, famlia, parentesco, conhecimento, tecnolo-gia e etc. (grifo meu) (Foucault, 1980a, p. 122).

    Um segundo aspecto, ainda em relao ao Estado, reside no fato doabandono de qualquer modelo centralizador. Ou seja, o poder no deve serpensado como fundamentalmente emanado de um ponto (em geral, identifica-

    do com o Estado). Deve-se ter, pois, em mente, na procura de uma compreen-so da dinmica das relaes de poder, a idia de uma rede. Rede esta quepermeia todo o corpo social, articulando e integrando os diferentes focos depoder (Estado, escola, priso, hospital, asilo, famlia, fbrica, vila operria

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    etc.) que se apiam uns nos outros.Ao lado deste deslocamento da anlise tradicional, estabelecido

    tambm um dos princpios da analtica do poder: o poder um feixe de rela-es mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado (Foucault,1979a, p. 248). Com efeito, esta assertiva conduz a uma forma diferente deperceber o poder, pois atravs deste modelo relacional abre-se a possibilidadede compreender com mais acuidade a dinmica, fragmentada, mvel e, s ve-zes contraditria, do poder em funcionamento na sociedade. Ora, dentro destaperspectiva o poder s pode ser concebido como algo que existe em relao,envolvendo foras que se chocam e se contrape. Deve-se frisar esta caracte-rstica pois ela absolutamente essencial compreenso foucaultiana de po-der. Afinal, o poder uma relao de foras ou antes, toda relao de fora uma relao de poder (Deleuze, 1986, p. 77). A partir desta idia temos umdos princpios da analtica do poder: deve se ter sempre em mente o reconhe-cimento de uma pluralidade de correlaes de foras3- constitutivas das rela-es de poder - que atravessam todo o corpo social. Assim, este aspecto rela-cional informa toda a perspectiva foucaultiana, como ele explica:

    O que caracteriza o poder que estamos analisando que traz ao relaes entre indivduos (ou entregrupos). Para no nos deixar enganar; s podemos

    falar de estruturas ou de mecanismo de poder namedida em que supomos que certas pessoas exercem

    poder sobre outras. O termo poder designa relaci-onamentos entre parceiros (e com isto no mencionoum jogo de soma zero, mas simplesmente, e por orame referindo em termos mais gerais, a um conjuntode aes que induzem a outras aes, seguindo-seuma s outras) (Foucault, 1982, p. 217).

    dentro dessa natureza relacional, inerente ao funcionamento dopoder, que as relaes se encontram menos envolvidas em confronto face - -face, que possivelmente paralisaria ambos os lados imersos em um antagonis-mo constante. H nas relaes de poder um enfrentamento constante e perp-tuo. Como corolrio desta idia teremos que estas relaes no se do ondeno haja liberdade. Na definio de Focault a existncia de liberdade, garan-tindo a possibilidade de reao por parte daqueles sobre os quais o poder exercido, apresenta-se como fundamental. No h poder sem liberdade e sempotencial de revolta. As relaes de poder no so relaes de constrangimen-to fsico absoluto (logo a escravido ou relao com um homem acorrentadono caracteriza uma relao de poder). Como ele explicita:

    O poder exercido somente sobre sujeitos livres e

    apenas enquanto so livres. Por isto, ns nos referi-mos a sujeitos individuais ou coletivos que so en-carados sob um leque de possibilidades no qual in-meros modos de agir, inmeras reaes e comporta-

    3 Como destaca Foucaultem uma das pginasmais esclare-cedoras

    sobre este assunto:Parece-me que sedeve compreender opoder, primeiro comouma multiplicidadede correlaes de for-a imanentes ao do-mnio onde se exer-cem e constitutivas desua organizao; o jogo que, atravs delutas e afrontamentosincessantes as trans-forma, refora, inver-te; os apoios que taiscorrelaes de foraencontram uma nasoutras, formando ca-deias ou sistemas ou,ao contrrio, as defa-sagens e contradiesque as isolam entre si;enfim, as estratgiasem que se originam ecujo esboo geral oucristalizao instituci-onal toma corpo nosaparelhos estatais, naformulao da lei, nashegemonias sociais(1979b, p. 88).

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    mentos observados podem ser obtidos. Onde os fato-res determinantes saturam o todo no h relao de

    poder; escravido no uma relao de poder poiso homem est acorrentado (Neste caso fala-se de umarelao de constrangimento fsico). Conseqentemen-te, no h confrontao face a face entre poder e li-berdade, que so mutuamente excludentes (a liber-dade desapareceria sempre que o poder fosse exer-cido), mas uma interao muito mais complicada.

    Nessa relao, a liberdade pode aparecer como con-dio para exerccio do poder (simultaneamente sua

    pr-condio, j que a liberdade precisa existir parao poder ser exercido e, tambm, seu apoio uma vezque sem a possibilidade de resistncia, o poder seriaequivalente determinao fsica) (Foucault, 1982,p. 221).

    Um outro aspecto interessante reside no papel desempenhado pelaviolncia nesta concepo de poder. Sem descartar a importncia da utiliza-o do recurso violncia por aqueles que exercem o poder no esquecen-do que o que se oferece anlise so asrelaes de poder Foucault vaiafirmar que a violncia pode ser um instrumento utilizado nas relaes depoder mas no um princpio bsico da sua natureza4. A atuao do poder se dde formas muito mais sutis, no se exercendo basicamente em aspectos nega-tivos o poder reprime, obstaculiza, etc., ou atravs da violncia fsica. Di-ferentemente, o poder tem um aspecto produtivo fundamental. Deste modo, oexerccio do poder deve ser compreendido como uma maneira pela qual certasaes podem estruturar o campo de outras possveis aes. Como afirma:

    Em si mesmo o poder no violncia nem consenti-mento o que, implicitamente, renovvel. Ele umaestrutura de aes; ele induz, incita, seduz, facilitaou dificulta; ao extremo, ele constrange ou, entre-

    tanto, sempre um modo de agir ou ser capaz deaes. Um conjunto de aes sobre outras aes(Foucault, 1982, p. 220).

    Assim, as relaes de poder se do em um campo aberto de possibi-lidades onde, embora constate-se o fato de encontrar-se todo o tecido socialimerso em uma ampla rede de relaes de poder, no temos como corolrio aexistncia de um poder onipresente, esquadrinhando todos os recantos da vidaem sociedade levando a uma situao na qual no haveria espao a resistnci-as e alternativas de transformao. A capacidade de recalcitrar, de se insurgir,

    de se rebelar e resistir so elementos constitutivos da prpria definio depoder. Desta forma, digo simplesmente: a partir do momento em que h umarelao de poder, h uma possibilidade de resistncia. Jamais somos aprisio-nados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominao em condies

    4 Este aspecto do con-ceito de poder deFoucault se encontraexplicitado emThesubject and power

    (1982, p. 220), textofundamental com-preenso desta noo.Como esclareceFoucault: Quer istodizer que se deve pro-curar o carter prpriopara as relaes depoder na violncia,que deve ter sido suaforma primitiva, seusegredo permanente eseu ltimo recurso,que em sua anlise fi-nal, aparece como suanatureza real quandoela forada a tirarsua mscara e mos-trar-se como realmen-te ? De fato, o quedefine uma relao depoder que ela ummodo de agir que noatua direta e imedia-tamente sobre os ou-tros. Ao invs, eleatua sobre suas aes:uma ao sobre outraao, sobre aesexistentes ou sobreaquelas que podemsurgir no presente e nofuturo. Uma relaode violncia age sobreum corpo ou sobrecoisas; ela fora, do-bra, destri ou fechaa porta a todas as pos-

    sibilidades. O seuplo oposto pode serapenas a passividadee, ao se deparar comqualquer resistncia,sua nica opo ten-tar minimiz-la. Poroutro lado, uma rela-o de poder somentepode ser articuladacom base em dois ele-mentos que so indis-pensveis tratando-se

    realmente de uma re-lao de poder: que ooutro (aquele sobrequem o poder vai serexercido) seja plena-

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    determinadas e segundo uma estratgia precisa (Foucault, 1979a, p. 241).Novamente nos deparamos com um ponto fundamental da analtica do poder.Importa observar o seguinte: a possibilidade de resistncia se apresenta emmltiplos focos (da mesma maneira que o poder funciona a partir de umamultiplicidade de pontos no tecido social). Como afirma:

    que l onde h poder h resistncia e, no entanto(ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontraem posio de exterioridade (...) No existe, com res-

    peito ao poder, umlugar da grande recusa - alma darevolta, foco de todas as rebelies, lei pura do revo-lucionrio. Mas sim, resistncias no plural, que socasos nicos: possveis, necessrias, improvveis,espontneas, selvagens, solitrias, planejadas, ar-rastadas, violentas, irreconciliveis, prontas ao com-

    promisso, interessadas ou fadadas ao sacrifcio; por definio no podem existir a no ser no campo es-tratgicos das relaes de poder. (...) Elas no so ooutro termo nas relaes de poder; inscrevem-se nes-tas relaes como interlocutor irredutvel ( Foucault1979b, p. 91).

    Um outro aspecto capital da analtica do poder a adoo do mode-lo da guerra inteligibilidade das relaes de poder. Assim, o poder guerra,guerra prolongada por outros meios (Foucault, 1979a, p. 176). em termosde confronto e de combate com suas tticas e estratgias, onde se tem porprincpio cumular vantagens e multiplicar benefcios (Foucault, 1980, p. 37),que melhor podemos compreender o modo pelo qual se desdobra e articula aextensa rede de poder que atravessa o corpo social. A base das relaes depoder seria o confronto belicoso das foras sociais em antagonismo constan-te, j que tais relaes implicam pelos prprios princpios tericos desta no-o (como j brevemente descrito nos pargrafos anteriores) uma rebeldia einsurgncia constantes por parte daqueles que esto submetidos s relaesde poder.

    Foucault ao utilizar-se do paradigma da guerra tenta escapar dasinsuficincias da anlise tradicional do poder, onde em geral, a reflexo se dem termos de Direito e soberania5, como j destacado anteriormente, os quais,via de regra, caam numa perspectiva onde o poder se exerceria basicamenteatravs de aspectos negativos - probe, obstaculiza, constrange, etc. - e sob aforma da lei. A utilizao deste modelo se inscreve na preocupao de Fou-cault de desenvolver o instrumental terico necessrio uma nova anlise dopoder. Ele constata e afirma a inexistncia de ferramentas conceituais aptas a

    compreender a dinmica das relaes de poder6. Esclarea-se, entretanto, queFoucault no se coloca na posio de descobridor do modelo da guerra comoforma de inteligibilidade das relaes sociais e de poder e, ainda mais, ele nodeixa de mencionar a sua constante utilizao talvez a hiptese mais fre-

    mente reconhecido emantido at o fimcomo uma pessoa queage; e que, em face deuma relao de poder,todo um campo derespostas, reaes, re-sultados, e possveisinvenes seja aberto.

    5 Como indica FoucaultPara levar a cabo aanlise concreta dasrelaes de poder,deve-se abandonar omodelo jurdico da so-berania. Com efeito,este modelo pressu-pe o indivduo comosujeito de direitos na-turais ou poderes pri-mitivos; ele se colocacomo objetivo de darconta da gnese idealdo Estado; enfim, elefaz da lei a manifes-tao fundamental do

    poder (1974-82, cur-so 75/76, p. 361).6 Em passagem escla-

    recedora Foucault co-menta este ponto:(...) parece-me que ahistria e teoria eco-nmica forneceram(um bom) instrumen-to para as relaes deproduo; que a lin-gustica e a semiticaofereceram instru-mentos para o estudodas relaes de signi-ficao;mas para asrelaes de poder noh instrumentos paraestudar . Ns temosrecorrido somente amaneiras sobre o po-der baseadas em mo-delos legais, isto : Oque legitima o poder?Ou ento recorremosao modo de pensar ba-seados nos modelosinstitucionais, isto :O que Estado? (gri-fos meus) (Foucault,1982. p. 209).

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    qente quando se procurou evitar o modelo legal , todavia, ele critica a mutilizao deste modelo, apontando para a necessidade de um desenvolvimen-to deste tipo de anlise. Neste sentido:

    O que me parece certo que, para analisar as rela-es de poder, s dispomos de dois modelos: o que o

    Direito nos prope (poder como lei, proibio, insti-tuio) e o modelo guerreiro ou estratgico em ter-mos de relaes de foras. O primeiro foi muito utili-

    zado e mostrou, acho eu, ser inadequado: sabemosque o Direito no descreve o poder. O outro sei bemque tambm muito usado. Mas fica nas palavras:utilizam-se noes pr-fabricadas ou metforas(guerra de todos contra todos, luta pela vida) ouainda esquemas formais (as estratgias esto emmoda entre alguns socilogos e economistas, sobre-tudo americanos). Penso que seria necessrio tentar aprimorar esta anlise das relaes de fora(Foucault, 1979a, p. 241).

    Enfim, nesta primeira parte, foram destacadas algumas das carac-tersticas da concepo de Foucault a respeito do poder. Certamente um as-sunto como este poderia ser tratado de forma mais detalhada e exaustiva. Aquifoi merecedor apenas de uma primeira abordagem. Na segunda parte desteartigo o enfoque ser distinto, procurando descrever algumas modificaesobservadas ao longo dos anos 70 nas investigaes de Foucault.

    O deslocamento da noo de poder em Michel Foucault

    Nesta segunda parte a anlise se dar em outro eixo, privilegiandoa dimenso temporal. Ao discutirmos alguns outros aspectos da noo de po-der de Foucault, ficar patente que certas preocupaes estaro mais presen-tes em um ou outro momento da pesquisa genealgica. Assim, nossas consi-deraes referir-se-o a certas caractersticas desta discusso relacionadas aosperodos onde se encontram mais enfatizadas. Por exemplo, segundo a nossaanlise, a questo do poder disciplinar se apresentar como absolutamentecentral de 1973 a 1975, j a discusso sobre a governabilidade ser destacadaa partir de 1978 e, quanto ao bio-poder, sua problematizao recair no pero-do de 76/77. Ao acompanhar a trajetria da temtica do poder ao longo dosanos 70, observando a maneira como certos aspectos sero ressaltados em umperodo, para posteriormente cederem lugar a uma discusso um pouco distin-ta, nos parece que podemos afirmar a existncia de um deslocamento na no-o de poder de Foucault.

    Ora, antes mesmo de iniciarmos a anlise desta segunda parte, ondeprocuraremos detalhar este deslocamento da noo de poder em especial apassagem para a questo da governamentalidade poderamos afirmar quetalvez este deslocamento seja quase um corolrio da forma de Foucault traba-

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    lhar. Durante toda a sua carreira ficou claro um estilo onde as pesquisas, comos conseqentes desdobramos tericos, avanam ao sabor do material empricotrabalhado, animadas por uma infatigvel curiosidade. Esta marca do mtodode Foucault explica o carter, em certo sentido, deslizante de seu trabalho.Ademais, as sucessivas transformaes na sua obra ficam justificadas a partirde um dos cuidados principais de todo o seu trajeto filosfico, sintetizado emuma das suas ltimas entrevistas: So as coisas gerais que surgem em ltimolugar. o preo e a recompensa de todo o trabalho em que as peas tericas seelaboram a partir de um certo domnio emprico (Foucault, 1977, p. 76).

    Por outro lado, este deslocamento/modificao no percurso de Fou-cault no tocante questo de poder pode ser encarado como um progressivoaperfeioamento do arsenal terico a partir dos domnios empricos trabalha-dos. Ou melhor, na medida em que Foucault ia se aprofundando nas pesquisasem torno das formas pelas quais, na Civilizao Ocidental, se estruturam asdiversas prticas (e as instituies que lhe eram e so correlatas) que veiculame fazem funcionar as relaes de poder, foi paulatinamente desenvolvendodiferentes categorias, para dar conta do material analisado. Como destacadono pargrafo anterior, no trabalho de Foucault no h uma intuio primeiraque o analista procura comprovar atravs dos exemplo oriundos de sua inter-pretao histrica. Para Foucault, o dado emprico impe a sua positividade,obrigando a uma posterior conceitualizao que acompanhe sempre os avan-os da pesquisa. Neste sentido, ao mapearmos os desdobramentos de seu tra-balho ao longo dos anos 70, destacaremos as diversas categorias utilizadaspara identificar e entender a dinmica do funcionamento do poder. Assim,poder disciplinar, bio-poder, governamentalidade, etc., so diferentes tecnolo-gias de poder postas em funcionamento - s vezes com hegemonia de uma,mas em geral coexistindo em complexos arranjos na sociedade ocidental apartir do sculo XVI.

    O bio-poder (poder disciplinar e bio-poltica)

    A preocupao com a identificao e anlise do processo pelo qual

    se d a tomada do poder sobre os corpos, na sociedade ocidental, ocupar ocentro das pesquisas de Foucault a partir de 1972/73. A sua analtica procura-r retraar a trajetria das diversas tecnologias de poder que se desenvolve-ram no Ocidente a partir do final do sculo XVI at constiturem a sofisticadaestrutura de poder que envolve o homem contemporneo. Estes diversos pro-cessos que acarretaram uma progressiva organizao da vida social, atravsde meticulosos rituais de poder que tem como objetivo o corpo, se deramatravs do que Foucault caracterizou como bio-poder. O estudo desta proble-mtica se encontrar privilegiado nos dois livros de Foucault dos anos 70,

    Vigiar e punir e aVontade de saber cumprindo um dos projetos avanados notexto programtico desta fase do seu trabalho: Nietzsche, a genealogia e ahistria . Desta forma, A genealogia (...) est portanto no ponto de articula-o do corpo com a histria. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado,

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    e a histria arruinando o corpo (Foucault, 1979a, p. 22).Como Foucault afirma no incio deVigiar e punir : (...) o corpo

    tambm est diretamente mergulhado num campo poltico; as relaes de po-der tm alcance imediato sobre eles; elas o investem, o marcam, o dirigem, osupliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimnias, exigem-lhe si-nais (Foucault, 1977, p. 28). Por conseguinte, devemos ter em mente que agenealogia do poder ter o corpo como um objeto privilegiado de anlise epreocupao. Quem destaca esta questo Franois Ewald, no texto que apre-senta a discusso mais profunda sobreVigiar e punir , Anatomie et corps

    politique :A genealogia fsica e microfsica do poder. Se eladescobre os corpos de poder, ela os v sempre apli-cados sobre outros corpos. Sobre o que um corpo

    poderia agir seno sobre um outro corpo? Agenealogia adota o ponto de vista dos corpos, aque-le do supliciado, adestrado, marcado, mutilado, de-composto, obrigado, constrangido; aquele dos cor-

    pos que se repartem, que se separam e que se re-nem. A lei de exerccio do poder aquela do corpo acorpo, de corpos que se aplicam sobre outros corpos

    para educ-los, fabric-los; de corpos que resistema esta aplicao. A genealogia descreveu os efeitos:

    produo de almas, produo de idias, de saber, demoral, ou seja, produo de poder que se reconduzsobre outras formas. O poder ao mesmo tempo cau-sa e efeito (Ewald, 1975, p. 1237).

    A atuao do poder sobre os corpos que Foucault chamara de bio-poder tem que ser percebida nas suas especificidades. Vale dizer, sob estadenominao, Foucault designar principalmente dois nveis de exerccio dopoder: de um lado, as tcnicas que tm como objetivo um treinamento orto-pdico dos corpos, as disciplinas e o poder disciplinar; de outro lado, o corpoentendido como pertencente a uma espcie (a populao) com suas leis e re-gularidades. O primeiro nvel de anlise se encontra tratado predominante-mente emVigiar e punir , quanto ao outro, naVontade de saber, veremosesboados os princpios desta anlise, que posteriormente sero retomadosnos Cursos doCollge de France de 77/78. Estes dois planos trabalhados naanaltica do poder so destacados por Pasquale Pasquino e Alexandre Fontananuma questo endereada a Foucault na entrevistaVerdade e poder :

    Ter-se-ia, por um lado, uma espcie de corpo glo-bal, molar, o corpo da populao, junto com toda

    uma srie de discursos que lhe concernem e, ento, por outro lado e abaixo, os pequenos corpos, dceis,corpos individuais, os micro corpos da disciplina.

    Mesmo que se esteja no incio de pesquisas neste

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    se e estruturou-se toda uma nova tecnologia de aproveitamento/utilizao dafora dos corpos. Tal tecnologia se organizar basicamente em torno da disci-plina, isto , o processo tcnico unitrio pelo qual a fora do corpo com omnimo de nus reduzida como fora poltica, e maximizada como fora til(Foucault, 1977, p. 194). Ligada aos imperativos econmicos e polticos deuma nova ordem que se impunha8, as disciplinas - tcnicas j conhecidas nacivilizao ocidental9, como por exemplo nos conventos, nas oficinas e naslegies romanas - passam a ser utilizadas maciamente. Fbricas, escolas,hospitais, hospcios, prises, etc., instituies fundamentais ao funcionamen-to da sociedade industrial capitalista, se estruturaram e tem como lgica defuncionamento as tcnicas e tticas oriundas deste processo de disci-plinarizao. Por conseguinte, fica claro que nesta conjuntura se articula umanova relao entre o poder e os corpos, como ele explica:

    O momento histrico das disciplinas o momentoem que nasce uma arte do corpo humano, que visano unicamente ao aumento de suas habilidades, nemtampouco aprofundar sua sujeio, mas a formaode uma relao que no mesmo mecanismo o tornatanto mais obediente quanto mais til, e inversamen-te. Formam-se ento uma poltica das coeres queso um trabalho sobre o corpo, uma manipulaocalculada de seus elementos, de seus gestos, de seuscomportamentos. O corpo humano entra numa ma-quinaria de poder que o esquadrinha, o desarticulae o recompe. Uma anatomia-poltica: que tam-bm igualmente uma mecnica do poder, est nas-cendo (...) A disciplina fabrica assim corpos submis-sos, exercitados, corpos dceis (Foucault, 1977,p. 127).

    Neste momento de sua obra, h o privilgio da anlise das tcnicasde poder que se centram no corpo; como que tratando-o como mquina, ades-trando-o, amplificando a sua utilizao, aperfeioando a extrao do traba-lho, integrando-o ao novo circuito da produo instaurado a partir do sculoXVIII. Neste sentido as anlises deVigiar e punir , em especial ao destacar aquesto do panoptismo, isto : o princpio geral de uma nova anatomia-poltica, cujo objeto e fim no so as relaes de soberania mas as relaesde disciplina (Foucault, 1977, p. 183) marcam a emergncia de uma novaforma de atuao do poder sobre os corpos: o poder disciplinar. O panpticorepresenta o modelo por excelncia - utilizado nas prises, fbricas, escolas,hospitais, etc. - desta tecnologia de poder que se impe ao longo do sculo

    XIX, que tem por pura funo impor uma tarefa ou uma conduta qualquer auma multiplicidade de indivduos, desde que ela seja pouco numerosa e oespao limitado, pouco extenso (Deleuze, 1986, p. 79).

    A atuao do poder disciplinar apresenta aspectos distintos da ma-

    8 Em relao a esta novarealidade poltico-econmica que de-mandava a utilizaodas tecnologia disci-plinar. EsclareceFoucault: Esse triploobjetivo da disciplinaresponde a uma con- juntura histrica bemconhecida. por umlado a grande explo-so demogrfica dosculo XVIII: aumen-to da populao flutu-ante, (fixar um dosprimeiros objetivos dadisciplina; um pro-cesso de antinoma-dismo); mudana daescala quantitativados grupos que impor-ta controlar ou mani-pular (...). O outro as-pecto da conjuntura o crescimento do apa-relho de produo,cada vez mais exten-so e complexo, cadavez mais custoso tam-

    bm e cuja rentabili-dade urge fazer cres-cer. O desenvolvimen-to dos modos discipli-nares de proceder res-ponde a esses doisprocessos ou antessem dvida necessi-dade de ajustar suacorreo (Foucault,1977).

    9 Como destaca Foucault,em esclarecedora pas-sagem: A disciplina uma tcnica de exer-ccio de poder que foi,no inteiramente in-ventada, mas elabora-da em seus princpiosfundamentais duranteo sculo XVIII. Histo-ricamente as discipli-nas existiam a muitotempo, na Idade M-dia e mesmo na anti-gidade. Os mosteirosso um exemplo de re-gio, domnio no inte-rior do qual reinava osistema disciplinar. Aescravido e as gran-

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    neira pela qual se articulava o poder poltico na Idade Mdia, onde o poderfuncionava essencialmente por meio de smbolos e taxas. Sinais de lealdadeao senhor feudal, ritos e cerimonias entre outros, e taxas, na forma de impos-tos, pilhagens, guerras e etc (Foucault, 1980a, p. 125). Diferentemente, napoca clssica comeou a se estruturar uma tecnologia de poder - que s esta-r plenamente desenvolvida no final do sculo XVIII - que repousou em ou-tras bases. A tecnologia que funcionou em torno do poder disciplinar se sus-tentar mais em uma ao sobre os corpos e seus atos do que sobre os produ-tos retirados da terra. O fundamental colocar em operao mecanismos quepossibilitem uma extrao de tempo e trabalho dos corpos, relegando a umsegundo plano as velhas formas de atuao que tinham na extrao imediatade bens e riquezas seu objetivo primordial. Este novo tipo de poder se exercesupondo mais um sistema minucioso de coeres materiais do que a figura deum prncipe soberano.

    Por fim, para que se possa perceber melhor as caractersticas dadisciplina, cabe destacar que ela (...) nem um aparelho, nem uma institui-o: ela funciona como uma rede que os atravessa sem se limitar a suas fron-teiras; uma tcnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de po-der (Machado, 1982, p. 194). Assim, a disciplina se exerce em uma srie deespaos do corpo social, tendo como princpios bsicos os seguintes aspectosela uma arte de distribuio espacial dos indivduos; a disciplina exerce seucontrole no sobre o resultado de uma ao, mas sobre seu desenvolvimento;ela uma tcnica de poder que implica uma vigilncia perptua e constantedos indivduos e ela tambm um controle do tempo.

    Eis que, se esta discusso sobre a relao do poder sobre os corpose a caracterizao do poder disciplinar esto nitidamente presentes no perodode 74/75, com o lanamento daVontade de saber , em 76, pode-se falar deuma mudana. Foucault no abandonar a idia do poder disciplinar, mas aarticular com uma outra tecnologia, que ser destacada nas anlises dos anossubseqentes, o bio-poder, que se distinguir do poder disciplinar em algunsaspectos, entre eles o fato de que esta nova forma de poder considerar umaoutra funo (...) gerar e controlar a vida dentro de uma multiplicidade desdeque ela seja numerosa (populao), e o espao estendido ou aberto (Deleuze,1986, p. 79).

    Embora o objetivo das anlises ainda seja o corpo, agora o corpo-molar da populao, que ser ressaltado. Assim, dentro da nossa anlise,destacaramos a nfase dada por Foucault no seu trabalho, dos anos 76 a 78,na anlise desta tecnologia prpria s sociedades ocidentais: o bio-poder. Comoele afirma, no final daVontade de saber (distinguindo o poder disciplinar dobio-poder):

    O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do sculo XVIII, centrou-se nocorpo-espcie, no corpo transpassado pela mecni-ca do ser vivo e como suporte dos processos biolgi-

    des empresas escra-vistas existentes nascolnias espanholas,inglesas, francesas eholandesas, etc., erammodelos de mecanis-mos disciplinares.Pode-se recuar at aLegio Romana e ltambm encontrar umexemplo de discipli-na. Os mecanismos dedisciplina so, portan-to, antigos, mas exis-tiam em estado isola-do, fragmentado, at osculo XVII e XVIII,quando o poder disci-plinar foi aperfeioa-do como uma nova

    tcnica de gesto doshomens. Fala-se, fre-qentemente, das in-venes tcnicas dosculo XVIII - as tec-nologias qumicas,metalrgica, etc. - maserroneamente, nada sediz da inveno tcni-ca dessa nova manei-ra de gerir os homens,controlar suas multi-plicidades, utiliz-lasao mximo e majoraro efeito til de seu tra-balho e sua atividade,graas a um sistema depoder suscetvel decontrol-los. Nas gran-des oficinas que come-am a se formar, noexrcito, na escola,quando se observa naEuropa um grandeprocesso de alfabeti-zao, aparecem essasnovas tcnicas de po-der, que so uma gran-de inveno do scu-lo XVIII (Foucault,1979a, p. 105).

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    cos; a proliferao, os nascimentos e a mortalidade,o nvel de sade, a durao da vida, a longevidade,com todas as condies que podem faz-los variar;tais processos so assumidos mediante toda uma s-rie de intervenes e controles reguladores: uma bio-poltica da populao(...) A velha potncia da morteem que se simbolizava o poder soberano agora,cuidadosamente, recoberta pela administrao doscorpos e pela gesto calculista da vida (Foucault,1979b, p. 131).

    Desta forma, a partir da articulao da existncia de um novo obje-to atuao do poder - a populao, com suas regularidades: taxa de natalida-de, mortalidade, longevidade, etc.10- estrutura-se toda uma nova tecnologiado poder. Esclarea-se, contudo, que esta nova tecnologia no implica o aban-dono da idia e utilizao do poder-disciplinar; pelo contrrio, as duas - po-der-disciplinar e bio-poder - se integram para um controle/gesto mais efetivodos corpos. Apenas uma nova rea e forma de atuao do poder nas socieda-des ocidentais posto a nu pela anlise de Foucault com a noo de bio-poder.A preocupao da anlise desta realidade marcante nos anos de 76 a 78. Setemos somente uma breve descrio do bio-poder no captulo quinto daVon-tade de saber , os cursos doCollge de France neste perodo fornecem indi-caes sobre esta problemtica.

    Entretanto, pode-se observar que a questo do bio-poder parece tersido a menos trabalhada por Foucault: exceo dos textos j mencionados, escassa a referncia a esta discusso11. Contudo, ainda poderamos afirmar aexistncia de uma mudana de nfase no trabalho de Foucault, posto que onvel de atuao do poder focalizado - diferentemente do poder disciplinar - seapresenta em outro plano. Neste momento o objeto de anlise a forma depoder que se situa e exerce ao nvel da vida, da espcie, da raa e dos fen-menos macios de populao (Foucault, 1979b, p. 129).

    Cabe precisar, entretanto, o seguinte: Foucault no afirma que foino sculo XVIII que pela primeira vez, a populao surgiu como objeto deatuao do poder12. J na antiguidade clssica, em Roma, observou-se a exis-tncias de polticas pblicas visando regulamentao da dinmica da popu-lacional, atravs de leis estimulando casamento, iseno de impostos parafamlias numerosas, etc. Porm, no sculo das luzes, a populao comea aser estudada, analisada e esquadrinhada por uma srie de polticas que temcomo suporte as cincias do homem que se constituem neste sculo, como ademografia e a medicina social. Tais polticas procuram estabelecer um con-trole e gesto mais efetivo dos membros de uma populao, diferenciando-se

    das polticas que at ento tinham como escopo ating-la, as quais, em geral,caracterizavam-se por uma atuao dispersa, sem continuidade e deixandovrios recantos deste conjunto intocados. Precisando as origens e caractersti-cas desta tomada de corpo-molar da populao como objeto de poder,

    10 Este novo processo deatuao do poder sedar, como dizFoucault, com a en-trada dos fenmenosprprios vida da es-pcie humana na or-dem do saber e dopoder no campo dastcnicas polticas(Foucault, 1979b,p.133). Como ele afir-ma em outra passa-gem, a populao vaipassar a ser, na se-gunda metade do s-culo XVIII, um objetoprivilegiado de atua-o do poder: Ostraos biolgicos deuma populao tor-nam-se fatores rele-vantes para a admi-nistrao econmica etorna-se necessrioorganizar ao seu redorum aparato que vaiafirmar no apenas asua sujeio mas tam-bm o crescimento

    constante de sua uti-lidade (Foucault,1980b, p. 172).

    11 Como j afirmado, al-guns traos do bio-po-der so expostos nofinal daVontade desaber . No tocante aoscursos doCollge deFrance , as refernci-as no so muito nu-merosas tambm. OCurso 75/76 tratou,resumidamente, daquesto da utilizaodo modelo guerreirocomo possibilidade deinteligibilidade dasrelaes de poder. Em76/77 no houve cur-so. no curso de 78/ 79 que basicamentetemos algumas infor-maes j que, no cur-so de 78/79, Foucaultprivilegiou a anliseem termos da Gover-namentalidade e noestudo da racionalida-de liberal. Assim, nocurso de 77/78, h

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    Foucault afirma:Qual a base para esta transformao? Generica-mente, pode-se dizer que ela se relaciona com a pre-servao e conservao da fora de trabalho. Mas,indubitavelmente, o problema mais amplo. Ele in-discutivelmente se refere aos efeitos poltico-econ-micos da acumulao de homens. O grande cresci-mento demogrfico do sculo XVIII na Europa Oci-dental, a necessidade de coordenao e de integra-o ao aparato de produo e a urgncia de control-lo, com mecanismos de poder mais sofisticados eadequados, possibilitaram a emergncia da popu-lao, (com suas variedades numricas de espao ecronologia, longevidade e sade), emergisse no scomo problema, mas como um objeto de observao,anlise, interveno, modificao, etc. Um projetode tecnologia da populao comea a ser desenha-do: estimativas demogrficas, o clculo de pirmi-des etrias, diferentes expectativas de vida e nveisde mortalidade, estudos das recprocas relaes en-tre crescimento da populao e crescimento da ri-queza, medidas de incentivo ao casamento e procri-ao, desenvolvimento de formas de educao e trei-namento profissional (Foucault, 1980b, p. 171).

    Possivelmente esta discusso do bio-poder seja melhor percebidase encarada como uma espcie de transio entre as pesquisas deVigiar e

    punir e uma temtica que marcar os seus ltimos anos de trabalho: a questodo governo. Esta perspectiva se abre a partir do que Foucault afirma no inciodo Curso doCollge de France , de 77/78:

    o curso tratou da gnese de um saber poltico quecolocou, no centro de suas preocupaes, a noo

    de populao e os mecanismos suscetveis de asse-gurar a sua regulao. Passagem de um Estadoterritorial a um Estado de populao. Sem dvidano se trata de uma substituio mas de uma mu-dana de acentuao, e da apario de novo proble-ma e de novas tcnicas. Para seguir esta gnese, foiassumido como fio condutor a noo de governo(Foucault, 1974-82, p. 445).

    Neste instante fica ntida aquela que parece ser a modificao mais

    radical dentro da genealogia do poder. Como j destacamos anteriormente, clara a passagem, nesta data da discusso sobre o poder para outros termos,analisados at o final da obra de Foucault a partir da questo do governo.Esclarea-se, antes mesmo de nos determos com um pouco mais de ateno

    uma esclarecedorapassagem acerca des-ta questo da popula-o, objeto do bio-po-der: Assim, comeaaparecer (...) o proble-ma da populao. Estano concebida comoum conjunto de sujei-tos de direito, nemcomo um grupo debraos destinados aotrabalho; ela anali-sada como um conjun-to de elementos quede um lado se aproxi-ma do regime geraldos seres vivos (a po-pulao depende en-to da espcie huma-na: noo nova po-ca, distinta da noode gnero humano)e de outro, pode darlugar s intervenesconcentradas (por in-termdio das leis, mastambm das mudan-as de atitude, da ma-neira de fazer e de vi-

    ver que podem serobtidas pelas campa-nhas) (Foucault,1974-82, curso 77/78,p. 447-448).

    12 Como explica Fou-cault: Certamente oproblema da popula-o sob a forma: se-remos ns muito nu-merosos, no suficien-temente numerosos? ,h muito tempo colo-cado, h muito tempoque se d a ele solu-es legislativas di-versas: impostos so-bre os celibatrios,iseno de impostospara as famlias nu-merosas, etc. Mas, nosculo XVIII, o que interessante, em pri-meiro lugar, umageneralizao destesproblemas: todos osaspectos do proble-mas populao come-am a ser levados emconta (epidemias, con-dies dehabitat , de

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    MAIA, Antnio C. Sobre a analtica do poder de Foucault.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,7(1-2): 83-103,outubro de 1995.

    sobre este tema, que governo no deve ser entendido da maneira usual comouma burocracia ou grupo de pessoas frente da gesto da coisa pblica, ou aatividade exercida por aqueles que conduzem a mquina estatal (entre outrossignificados), mas sim no seguinte sentido:

    Esta palavra (Governo) deve ser compreendida nosentido mais amplo que tinha no sculo XVI. Gover-no no se referia apenas a estruturas polticas ou aadministrao dos Estados; antes, designava o modo

    pelo qual a conduo de indivduos ou grupos deve-ria ser orientada: o governo das crianas, das al-mas, dos bens, das famlias, dos doentes. Ele cobriano apenas as formas legitimamente constitudas desujeio poltica ou econmica mas tambm manei-ras de agir destinadas a atuar sobre as possibilida-des de ao das outras pessoas. Governar, neste sen-tido, seria estruturar o possvel campo de aes dosoutros (Foucault, 1982, p. 221).

    A governamentalidade

    Talvez no seu texto mais importante de 1978, o debate com os his-toriadores acerca deVigiar e punir , publicado no livro Limpossible prison ,Foucault marca a significao da questo do governo na sua obra. Assim,

    para dizer as coisas claramente: meu problema saber como os homens segovernam (eles mesmos e os outros) (Foucault, 1980a). Por conseguinte, opoder passa a ser trabalhado em uma outra perspectiva; o governo de si e ogoverno dos outros - que obviamente pressupem e esto inscritos nas rela-es de poder - que constituir o cerne do trabalho de Foucault at a suamorte.

    Um texto central nesta perspectiva a Governamentalidade, de1978. Esta aula noCollge de France lana os princpios deste tipo de anli-se que lida com o problema de como ser governado, por quem, at que ponto,

    com qual objetivo, com que mtodo, etc. (Foucault, 1979a, p. 278). Comefeito, Foucault faz o inventrio do surgimento, a partir do sculo XVI, detoda a literatura - estreitamente vinculada ao prncipe de Maquiavel, quer poroposio, quer por recusa - que trata da arte de governo. Esta teoria no seresumiu a mero exerccio acadmico, pois a teoria da arte de governar esteveligada desde o sculo XVI ao desenvolvimento do aparelho administrativo damonarquia territorial: aparecimento dos aparelhos de governo (Foucault,1979a, p. 285). Por outro lado, a arte do governo rompe com a tradio dateoria jurdica da soberania - fundamentada no governo do territrio, e afir-

    mando que o governo uma correta disposio das coisas (Foucault, 1979a,p. 282).Entretanto, nos parece importante frisar que a arte de governar se

    articula em torno de um tema importante anlise poltica: a Razo de Esta-

    higiene, etc.) e a se in-tegrar no interior deum problema central.Em segundo lugar, v-se a este problemanovos tipos de saber:aparecimento da de-mografia, observa-es sobre a reparti-o das epidemias,inquritos sobre asamas de leite e as con-dies de aleitamen-to. Em terceiro lugar,o estabelecimento deaparelhos de poderque permitiam no so-mente a observao,mas a interveno di-reta e manipulao detudo isto. Eu diria queneste momento come-a algo que se podechamar de poder so-bre a vida, enquantoantes s havia vagas in-citaes descontnuaspara modificar uma si-tuao que no se co-nhecia bem (Foucault,1979a, p. 234-275).

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    MAIA, Antnio C. Sobre a analtica do poder de Foucault.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,7(1-2): 83-103,outubro de 1995.

    do, e a, no no sentido moderno do termo, mas naquele relacionado raciona-lidade da atuao estatal. Assim este tema, pesquisado por Foucault no finaldos anos 70, no deve ser confundido com a idia de razo de Estado, comoaquilo que justifica o desrespeito das regras formais do jogo poltico em nomede um interesse superior, onde est, em geral, presente o arbtrio e a violncia.O sentido dado por Foucault se articula com uma noo de arte de governo,tematizada freqentemente ao longo do sculo XVII e incio do XVIII. Comoele explica esta distino:

    Esquematicamente se poderia dizer que a arte degovernar encontra, no final do sculo XVI e no in-cio do sculo XVII, uma primeira forma de cris-talinizao, ao se organizar em torno do tema de umarazo de Estado. Razo de Estado hoje entendida nono sentido pejorativo e negativo que lhe dado (li-gado infrao dos princpios do Direito, daeqidade, ou da humanidade por interesses exclusi-vos dos Estados), mas no sentido positivo e pleno: o

    Estado se governa segundo as regras racionais quelhe so prprias, que no se deduzem nem das leisnaturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoriaou da prudncia: o Estado, como a natureza, tem suaracionalidade prpria, ainda que de outro tipo. Por sua vez, a arte de governo em vez de fundar-se emregras transcendentais ou em um ideal filosfico-moral, dever encontrar sua racionalidade naquiloque constitui a sua racionalidade prpria (Foucault,1979a, p. 286).

    Esta discusso de Foucault a respeito da Governamentalidade ocorreno momento em que se d a mudana mais drstica no projeto genealgico. Sedurante os anos 70 as preocupaes estiveram concentradas em reflexes decarter eminentemente poltico, de 78 at a sua morte em 84 a tica ocupar,basicamente, a sua ateno. Neste sentido as pesquisas sobre a gover-namentalidade marcam uma transio: do governo dos outros - e aqui inclu-das todas as investigaes sobre o poder - para o governo de si. Assim, ocontinente da tica, o tema dos dois ltimos livros de Foucault,O uso dos

    prazeres eO cuidado de si . Com efeito, o estudo da Antigidade no privile-giar os mecanismos de constrangimento, nem as insidiosas tcnicas utiliza-das submisso dos corpos e almas. As pesquisas acerca da maneira como nosculo IV a.C., na Grcia, e no sculo I e II d.C., em Roma, as condutas sexu-ais eram objeto de ponderaes de natureza tica, se encontram em um cen-

    rio bem diferente das problematizaes anteriores de Foucault. H a passa-gem de um exame das prticas empregadas no governo de si. No se estudammais os efeito do poder no processo de subjetivao dos sujeitos, mas sim astcnicas usadas no governo de si. Talvez esta passagem para um universo to

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    MAIA, Antnio C. Sobre a analtica do poder de Foucault.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,7(1-2): 83-103,outubro de 1995.