patricia teixeira tavano
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE EDUCAO
PATRICIA TEIXEIRA TAVANO
Onde a morte se compraz em auxiliar a vida: A trajetria da disciplina de Anatomia Humana no currculo mdico da
primeira Faculdade oficial de Medicina de So Paulo o perodo de Renato Locchi (1937-1955)
So Paulo
2011
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTU SENSU NVEL MESTRADO
REA DE CONCENTRAO: DIDTICA, TEORIAS DE ENSINO E PRTICAS ESCOLARES
PATRICIA TEIXEIRA TAVANO
Onde a morte se compraz em auxiliar a vida: A trajetria da disciplina de Anatomia Humana no currculo mdico da
primeira Faculdade oficial de Medicina de So Paulo o perodo de Renato Locchi (1937-1955)
Dissertao de Mestrado apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo como requisito obteno do ttulo de Mestre em Educao. Linha de Pesquisa: Didtica, Teorias de Ensino e Prticas Escolares. Orientadora: Profa. Dra. Maria Isabel de Almeida
So Paulo
2011
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo
375.297(81.61) Tavano, Patricia Teixeira
T231o Onde a morte se compraz em auxiliar a vida: a trajetria da disciplina de anatomia humana no currculo mdico da primeira faculdade oficial de medicina de So Paulo o perodo de Renato Locchi (1937-1955) / Patricia Teixeira Tavano; orientao Maria Isabel de Almeida. So Paulo: s.n., 2011.
220 p.: il. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em
Educao. rea de Concentrao: Didtica, Teorias de Ensino e Prticas Escolares) - - Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.
1. Locchi, Renato, 1896-1978 2. Medicina Estudo e ensino 3.
Anatomia Histria - Ensino 4. Currculo de ensino superior I. Almeida, Maria Isabel, orient.
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FOLHA DE APROVAO
TAVANO, Patricia Teixeira
Onde a morte se compraz em auxiliar a vida: a trajetria da disciplina de anatomia humana no currculo mdico da primeira faculdade oficial de medicina de So Paulo o perodo de Renato Locchi (1937-1955)
Dissertao de Mestrado apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo como requisito obteno do ttulo de Mestre em Educao. Linha de Pesquisa: Didtica, Teorias de Ensino e Prticas Escolares. Orientadora: Profa. Dra. Maria Isabel de Almeida
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. _____________________________________________________________________
Instituio: _______________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. _____________________________________________________________________
Instituio: _______________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. _____________________________________________________________________
Instituio: _______________________________ Assinatura: ______________________
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Esta pesquisa dedicada a todos aqueles que fizeram e
fazem a Anatomia bela, profunda, contundente,
histrica e perene: os cadveres humanos. Doados
pesquisa, voluntariamente ou por fora da lei, sua a
contribuio mais vital e inexaurvel que os milnios
cobram da disciplina.
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Agradecimentos
Agradecimentos so sempre injustos, pois por mais que nos esforcemos em assinalar a todos os que
contriburam com nosso percurso, sempre nos escapar algum, por isso, neste momento, vejo-me
limitada a um agradecimento geral e irrestrito a todos que conviveram de alguma forma, com este
estudo. Entretanto, h aqueles que extrapolam a palavra de incentivo, a indicao bibliogrfica, e a
eles, meus agradecimentos especiais:
amiga-irm Monica Candido de Oliveira de todas as horas, todas as faltas, todas as empreitadas.
Aos companheiros do GEPEFE pela possibilidade de conviver e compartilhar o espao-tempo de profissionais absolutamente primorosos, conduzindo reconfigurao desta pesquisa, de seu tema,
sua abordagem, transformando no apenas pesquisa, mas a pesquisadora.
Aos professores Renato Paulo Chopard e Esem Pereira Cerqueira, que abriram as portas do Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero, do ICB/USP permitindo meu livre trnsito no acervo, e aos monitores e funcionrios do Museu, amigos que lutam, diariamente, pela manuteno da
importncia da Anatomia, em especial ao pessoal que eu atrapalhei por muitos meses para a
coleta dos dados: Cristina, Nilson, Albert, Mrio, Natlia. Esta pesquisa no se concretizaria sem
seu valioso auxlio.
Graa e ao Kleverson, do Museu Histrico Carlos da Silva Lacaz da FMUSP, que disponibilizaram seu tempo, seu conhecimento e sua amizade para a realizao desta pesquisa.
s funcionrias da Assistncia Tcnica Acadmica da FMUSP, que me receberam com muita gentileza e prestatividade, pausando suas atividades em nome da Anatomia.
professora Circe Maria Fernandes Bittencourt, pelos apontamentos, sugestes e dimensionamentos que redirecionaram e consolidaram aspectos deste estudo, dando-lhe parte da
conformao final.
Ao professor Edson Aparecido Liberti, que em um evento comemorativo dos 200 anos de Anatomia Humana no Brasil, no ano de 2008, proferiu uma palestra inspiradora sobre a temtica, e
depois me recebeu com muita disposio em seu gabinete no ICB/USP para uma longa conversa
sobre a Anatomia no Brasil.
professora Maurilane de Souza Bicas, que me recebeu com muita amabilidade e animao em sua sala para uma esclarecedora conversa sobre mtodos, e que mostra que a docncia do ensino
superior mais ampla e comprometida.
Ao CNPq pela bolsa concedida no momento preciso.
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Contudo, no posso me furtar em destacar trs agradecimentos, a pessoas sem as quais o trajeto
no teria sido possvel, tampouco suportvel:
Aos meus familiares, Avani, Olga, Cleber, Sinzio e lvaro, que me suportaram, verbo e substantivo, sem os quais nada seria possvel, e para quem o agradecimento dirio ainda
insuficiente pelo tudo que fazem.
querida professora Maria Isabel de Almeida, que exemplifica a amplitude do conceito de currculo com sua postura tica, profissional e acolhedora de orientao, que extrapola em muito a
auto-propalada leitora crtica. Com liberdade de crescimento e busca de conhecimento, mediada
pela segurana e gentileza, com apoio a todas as empreitadas - frutferas ou no , com a certeza de
contar com uma interveno precisa e libertria nos momentos angustiantes, me permitiu
experimentar diversas abordagens, resolvendo por uma extremamente prazerosa e produtiva de tal
forma que no se encerra neste momento.
Ao querido professor Andr Mota, que, em muito extrapola as atribuies de seu cargo como coordenador do Museu Histrico, e acolheu pesquisa e pesquisadora com animao e disposio
mpar para recorrentes consultas ao acervo do museu, mas tambm para longas conversas sobre a
Anatomia, a Medicina, seus personagens, suas histrias. Muito alm de ajudar tcnica e
teoricamente, incentivou e animou nos momentos difceis, angustiantes e crticos esta pesquisa,
dimensionando, criticando, avaliando, direcionando e indicando espaos e caminhos a seguir,
mostrando o quo digno pode e deve ser o trato com o passado que tanto tem a nos dizer, pois
ainda presente, e exemplificando o real sentido da docncia universitria que se multiplica nos seus
sujeitos-estudante.
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Orao ao cadver desconhecido
Ao curvar-te com a lmina rija de teu bisturi sobre o
cadver desconhecido, lembra-te que este corpo
nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado
pela f e esperana daquela que em seu seio o
agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos
das crianas e dos jovens; por certo amou e
foi amado e sentiu saudades dos outros que
partiram, acalentou um amanh feliz e agora jaz
na fria lousa, sem que por ele tivesse derramado
uma lgrima sequer, sem que tivesse uma s
prece. Seu nome s Deus o sabe; mas o destino
inexorvel deu-lhe o poder e a
grandeza de servir a
humanidade que por ele
passou indiferente.
Karl Rokitansky, 1876
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Resumo
TAVANO, Patricia Teixeira. Onde a morte se compraz em auxiliar a vida: a trajetria da disciplina de
anatomia humana no currculo mdico da primeira faculdade oficial de medicina de So Paulo o
perodo de Renato Locchi (1937-1955). 2011. 220f. Dissertao (Mestrado em Educao) Faculdade de
Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.
Esta dissertao visa caracterizao da Anatomia Humana enquanto disciplina no contexto da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (FMUSP) no perodo de ctedra de Renato Locchi (1937-1955). Considerada ponto de convergncia entre uma medicina mais mstica e uma medicina mais objetiva, a Anatomia e a dissecao traam trajetria scio-histrica de proximidade com a profisso mdica, constituindo-se em parte da racionalidade profissional, o que acaba por justificar sua constncia nos currculos mdicos embasado na imprescindibilidade do conhecimento do corpo-mquina humano para a plena execuo das atividades deste profissional. Prope-se aqui distinguir as caractersticas iniciais da constituio da Anatomia Humana enquanto disciplina nesta Instituio; determinar seu espao de legitimidade curricular; estabelecer seus elementos constitutivos diante da documentao analisada; e discutir possveis permanncias e rupturas da disciplina no perodo de Renato Locchi. Para tanto, o estudo baseou-se nas teorias da construo scio-histrica das disciplinas escolares, notadamente as discusses de Andr Chervel e Ivor Goodson, donde se elenca os elementos constitutivos de uma disciplina, a saber: as finalidades ou objetivos que direcionam as selees disciplinares; os contedos de ensino; os mtodos para a impregnao dos contedos e disciplina nos sujeitos-estudante; os exerccios e avaliaes que fixam e verificam se a disciplina sensibilizou seus sujeitos; a comunidade representativa desta disciplina, que a defende e sustenta; e as tradies, que trazem para a disciplina novos integrantes e os mantm por se identificarem com elas. Estes elementos formam sua cultura disciplinar, cultura esta que apresenta uma face de unicidade sociedade geral, porm, internamente formada por diversas subculturas amalgamadas que disputam espaos e privilgios. Estas categorias foram utilizadas como referncia para a anlise da documentao resgatada nos acervos do Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero do ICB/USP e do Museu Histrico Carlos da Silva Lacaz da FMUSP, bem como os documentos da Assessoria Tcnica Acadmica dessa mesma Faculdade. Tendo como base a anlise documental privilegiando fontes primrias, traou-se o percurso de uma disciplina sustentada em uma forte retrica legitimadora empreendida por Renato Locchi, que distingue o espao-tempo da cadeira em duas vertentes a Anatomia como campo de pesquisa e a Anatomia escolar, sendo esta composta por selees histricas mediadas pela primeira. Com a organizao da comunidade disciplinar, o redirecionamento das finalidades disciplinares, a reviso e ampliao dos contedos e o fortalecimento do mtodo prtico-dissecatrio, Renato Locchi constri a disciplina de Anatomia na FMUSP na acepo estrita do conceito.
Palavras-chave: histria das disciplinas escolares; currculo mdico; anatomia humana;
Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo; Renato Locchi.
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Abstract
TAVANO, Patricia Teixeira. Where death delights to help the life: the history of the discipline of
human anatomy in the medical curriculum of the first official medicine school of So Paulo - the period
of Renato Locchi (1937-1955). This paper characterizes the Human Anatomy as a discipline within the Medicine School of University of So Paulo (MSUSP) during the tenure of Renato Locchi (1937-1955). Human Anatomy and dissection are considered a convergence point between objective medicine and a mystical one, in socio-historical proximity with the medical profession, becoming the rational part of the profession, which justifies its constancy in medical curricula, bounded by the need to know about how the machine/human body works for the entire fulfillment of these professional activities. It is proposed to distinguish the initial formation of Anatomy as a discipline in this institution, to determine their place of legitimacy in curriculum, to establish their components before the researched documentation, and to discuss possible continuities and ruptures during the Renato Locchi period. To reach this goal, the study was based on theories of socio-historical school subjects, from proposes from Andre Chervel and Ivor Goodson, where they listed the elements of a discipline, which are: purpose or goals that guide disciplinary teams; the teaching contents; the methods for pervasion of discipline content in students; the exercises and assessments who fix and verify the aware of the discipline in its subjects; the community that defends and supports the discipline; and the tradition who brings new members to the discipline and keeps them by identification. These elements give form to disciplinary culture, appearing to society as an unity at large but are internally comprised with a number of subcultures struggling for space and privileges. These categories were used as a reference for the analysis of retrieved documents available at the ICB / USP Museum of Human Anatomy "Alfonso Bovero" and the Museum of History "Carlos da Silva Lacaz" at MSUSP, as well as documents from "Technical Academic Council" at the same University. Based on the analysis of primary sources, we could trace a discipline legitimized by a strong rhetoric from Renato Locchi, who distinguishes the Human Anatomy on two main pieces: as a research field and as an anatomy school, composed by historical selections by the former. Renato Locchi builds the discipline of Anatomy at MSUSP with the organization of the disciplinary community, redirecting the disciplinary purposes, revising and expanding the content and strengthening the dissectory practical method.
keywords: history of school subjects; medical curriculum; human anatomy; Medicine School of University of So Paulo; Renato Locchi.
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Lista de Ilustraes
Imagens extradas de publicaes anatmicas originalmente editadas entre os sculos XVI e XVIII, digitalizadas e disponibilizadas em Historical Anatomies on the web, site da National Library of Medicine, que promove a divulgao de publicaes raras e de significativa relevncia construo dos conhecimentos morfolgicos. O acesso pblico e gratuito atravs do link http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies.
De acordo com a National Library of Medicine, os direitos autorais das imagens so de domnio pblico, e a indicao de sua origem est em conformidade com as diretivas de uso justo definidas no site da detentora dos direitos, disponvel atravs do link http://www.nlm.nih.gov/copyright.html.
Figura I - Extrada de Nouveau receuil d'ostologie et de myologie dessin aprs nature
pour l'utilit des sciences et des arts, Jacques Gamelin, 1779. Capa
Figura II - Extrada de Nouveau receuil d'ostologie et de myologie dessin aprs nature
pour l'utilit des sciences et des arts, Jacques Gamelin, 1779. 8
Figura III - Extrada de Ontleding des menschelyken lichaams, Govard Bidloo, 1690... 15
Figura IV - Extrada de Ontleding des menschelyken lichaams, Govard Bidloo, 1690... 36
Figura V - Extrada de Tabulae Anatomicae; Giulio Casserio, 1627. 65
Figura VI - Extrada de De Humani Corporis Fabrica, Andreas Vesalius, 1543 108
Figura VII - Extrada de Ontleding des menschelyken lichaams, Govard Bidloo, 1690... 156
Figura VIII - Extrada de De Humani Corporis Fabrica, Andreas Vesalius, 1543 194
Figura IX - Extrada de Nouveau receuil d'ostologie et de myologie dessin aprs nature
pour l'utilit des sciences et des arts, Jacques Gamelin, 1779 206
Figura X - Extrada de A sett of anatomical tables, with explanations, and an abridgment,
of the practice of midwifery, with a view to illustrate a Treatise on that subject,
and Collection of cases., William Smellie, 1754 219
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Lista de Abreviaes
BAB: Bibliografia Anatmica Brasileira
EPM: Escola Paulista de Medicina
FMCSP: Faculdade de Medicina e Cirurgia de So Paulo
FMSP: Faculdade de Medicina de So Paulo
FMUSP: Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo
ICB: Instituto de Cincias Biomdicas da Universidade de So Paulo
MAH: Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero do Instituto de Cincias Biomdicas da Universidade de So Paulo
MH: Museu Histrico da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo
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Sumrio
Introduo _________________________________________________________________ 16
1. Da proposta de estudo _____________________________________________________ 18
2. Do Percurso Metodolgico _________________________________________________ 28 2.1. Apresentao dos acervos consultados ____________________________________________ 28 2.2. Anlise dos dados e organizao do estudo _________________________________________ 33
Captulo I. A caracterizao de uma disciplina frente a sua histria: a Anatomia Humana 37
Introduo _______________________________________________________________ 37
1. Disciplinas como constructos scio-histricos ___________________________________ 39
2. A Anatomia Moderna diante do seu processo de construo disciplinar ________________ 45
3. A determinao do currculo no processo de construo disciplinar: a Anatomia nos cursos mdicos __________________________________________________________________ 50
4. As finalidades da disciplina de Anatomia na Faculdade de Medicina de So Paulo ________ 60
Consideraes ao final deste captulo a centenria construo________________________ 63
Captulo II - A instalao do ensino da Anatomia em So Paulo _____________________ 66
Introduo _______________________________________________________________ 66
1. O status anatmico _______________________________________________________ 68
2. Caractersticas disciplinares _________________________________________________ 75 2.1. A estabilidade das primeiras dcadas ______________________________________________ 77 2.2. A desestabilizao na incorporao da Anatomia Topogrfica ___________________________ 84 2.3. Exerccios e avaliaes como impregnaes _________________________________________ 92
3. A organizao do grupo disciplinar ___________________________________________ 97 3.1. A singularidade de Renato Locchi _______________________________________________ 101
Consideraes ao final deste captulo a construo em co-responsabilidade ____________ 105
Captulo III. O espao-tempo de Renato Locchi _________________________________ 109
Introduo ______________________________________________________________ 109
1. Uma Escola Anatmica principia uma tradio _______________________________ 111
2. A (re)conquista da voz e do status anatmico ___________________________________ 116
3. A Anatomia escolar e a disciplinarizao dos sujeitos-estudante _____________________ 128
4. A organizao nacional da comunidade disciplinar _______________________________ 139 4. 1. A organizao do conhecimento anatmico: a Bibliografia Anatmica Brasileira ____________ 140 4. 2. A institucionalizao da comunidade disciplinar: a Sociedade Brasileira de Anatomia ________ 145
Consideraes ao final deste captulo o gigante em capacidade _______________________ 154
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Captulo IV. A institucionalizao das subculturas disciplinares a disciplina por Renato Locchi ___________________________________________________________________ 157
Introduo ______________________________________________________________ 157
1. Amlgama de subculturas: o olhar tripartido ___________________________________ 159
2. Permanncias e rupturas na disciplina de Anatomia Humana _______________________ 163 2.1. A histria refletida na Anatomia Sistmico-descritiva _________________________________ 165 2.2. Incorporaes e releituras da clnica na Anatomia Topogrfica _________________________ 170 2.3. Macro e micro olhar da especialidade na Neuroanatomia ______________________________ 177 2.4. Atividades e processo de avaliao da disciplina de Anatomia Humana ___________________ 185
Consideraes ao final deste captulo convergncias e divergncias de um monlito mitificado ______________________________________________________________ 191
Consideraes Finais: a edificao locchiana ___________________________________ 195
Bibliografia _______________________________________________________________ 207
Obras Consultadas ________________________________________________________ 207
Fontes __________________________________________________________________ 214 Documentos __________________________________________________________________ 215
Acervo do Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero do Instituto de Cincias Biomdicas da Universidade de So Paulo ______________________________________________________ 215 Acervo do Museu Histrico Carlos da Silva Lacaz da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo __________________________________________________________________ 216 Acervo da Assessoria Tcnica Acadmica da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo __________________________________________________________________________ 216
Legislao ____________________________________________________________________ 216
Anexo Seriao das disciplinas da Faculdade de Medicina de So Paulo ___________ 220
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Intro
du
o
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INTRODUO A histria o campo onde se exercem
as escolhas Margarida Felgueiras, 2009
Tradio talvez seja o conceito que mais ouvimos na prtica do ensino da
Anatomia Humana. No espao-tempo da Anatomia, a tradio tem nome, forma e ao:
o corpo humano cadavrico submetido ao processo de transformao em objeto de
estudos. No mbito da disciplina, alm de objeto de estudos, o corpo humano ganha
dimenso de material didtico.
Mais comumente obtido atravs do processo de dissecao, o material
didtico anatmico, chamado pea anatmica, apresenta-se no apenas atravs desta
tcnica, mas tambm atravs da corroso, diafanizao, macerao, plastinao, todas as
tcnicas para preparao do material de estudo e pesquisa.
A apropriao do corpo humano como material didtico parte do saber-
fazer anatmico moderno, contudo, no mbito da sala de aula, outras convenes se
firmam: a diviso dos estudos em parte prtica, de manipulao do material didtico, e
parte terica, que, mesmo resgatando o material didtico cadavrico, mostra-se bastante
expositivo-descritiva; a fragmentao do corpo para o estudo; e a fraca interconexo
entre as disciplinas, de tal forma que a Anatomia ao final do curso submerge em um
intrincado mar de especialidades e aplicabilidades clnicas, reduzindo sua razo
curricular.
Contando com alguma experincia no ensino desta disciplina, sempre vi
com estranhamento que uma disciplina emprica em sua origem - e mantm esta origem
atravs da utilizao das peas anatmicas e da exigncia aos estudantes que interajam
com estas peas a partir do prprio processo de constituio delas - se aparte da
possibilidade de anlise integrada de seu objeto de estudos, estabelecendo espaos e
tempos distintos para a discusso, proporcionando fracas bases de insero de seus
contedos no cotidiano do profissional que forma, afinal, Anatomia o estudo do corpo
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humano objetificado, e est inserida em currculos formadores de profissionais que
lidam com este corpo em suas prticas cotidianas.
Tal situao disciplinar no se comunica com as novas aspiraes
educacionais que pretendem um currculo integrado, onde as disciplinas conversem em
um processo de superao dos limites fixos de seus espaos e confluam no sentido da
formao de um estudante capaz de abordar as problemticas propostas pelo cotidiano
de sua atuao profissional e aprenda, acima de tudo, a autonomia para
desenvolvimento de seu saber.
A tradio fala alto, e, sem realizar qualquer juzo de valor, por vezes se
sobrepe a iniciativas de integrao curricular e incorporao das novas tecnologias e
metodologias de ensino. E esta tradio aspecto essencial na modificao da proposta
original desta dissertao. Ao longo de alguns anos como docente em Anatomia
Humana, vi diversas iniciativas de modificao do mtodo de ensino malograr por no
contemplarem o que se esperava da disciplina, seja por parte dos alunos, seja por parte
dos outros professores da disciplina, seja por parte da direo das instituies de ensino,
e mesmo dos professores de outras disciplinas.
Tendo empreendido minha docncia sob a gide da sociedade do
conhecimento, a compreenso e utilizao das novas tecnologias de ensino me muito
cara, levando-me a questionar a tradio e a apresentar o projeto inicial desta
dissertao. Contudo, no processo de pesquisa, assim como no de ensino-aprendizagem,
aprende-se mais do que se explicita em palavras e textos, e a reformulao da proposta
se fez necessria na exata medida da compreenso da disciplina como um constructo
scio-histrico e no como algo estanque e imvel envolto em tradies e
determinismos. Tal as peas dissecadas, que guardam tantas histrias, a disciplina de
Anatomia tambm as guarda.
Em perodos crticos, tendemos a voltar nossos olhos e atenes para
momentos que nos parecem mais tranqilos e felizes. E a atualidade da disciplina de
Anatomia nos currculos mdicos parece-nos de baixo status curricular, por isso, voltei-
me para um perodo que sempre me foi relatado como o ureo da Anatomia, no por
suas realizaes, mas pelo personagem, o mito Alfonso Bovero. Durante meu perodo
de estudante, e todo o tempo de docente, sempre ouvi exaltaes ao nome do anatomista
italiano que construiu uma escola anatmica em So Paulo. Bovero acabou se
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mostrando mais uma tradio anatmica, desta vez inventada e legitimada pela sua
comunidade. Porm, no processo de buscar explicaes, e na tentativa de compreender
como Alfonso Bovero sobreviveu passagem das dcadas, emergiu com muita
intensidade o nome, a ao, o anatomista, o gigante em capacidade Renato Locchi,
que solidifica as tradies.
Em uma disciplina de tradies, Renato Locchi se torna o nome a ser
procurado e compreendido. No como nome, a exemplo de Bovero, mas como realiza-
ao para a construo scio-histrica da Anatomia em So Paulo, e em uma
homenagem, o ttulo desta dissertao remete sua fala nas aulas inaugurais do curso de
Anatomia. Todos os anos, ao iniciar uma turma, Renato Locchi exigia o respeito e
deferncia dos estudantes aos cadveres anatomizados, e citava uma frase em latim cuja
origem se perdeu no correr dos sculos, ao dizer que o laboratrio de Anatomia era o
local onde a Morte se compraz em auxiliar a Vida, ou hic locus est ubi Mors gaudet
succurrere Vitae.
Este estudo fruto desta busca. Busca por compreender parte de minha
prpria prtica como docente, de meu prprio processo de formao profissional, e por
elucidar parte da bela edificao da Anatomia Humana, cuja histria talvez fale mais
que o saber que a disciplina advoga.
1. DA PROPOSTA DE ESTUDO Nos currculos convencionais, a Anatomia Humana posiciona-se no rol das
disciplinas do ciclo bsico, sendo uma constante deste, podendo inclusive comparecer
no apenas como um campo de saberes central, mas tambm associada ou aplicada a
outros campos do saber mdico (DRAKE, 1998; TURNEY, 2007), pois parte do
processo de construo da racionalidade da profisso.
Considerada o ponto de convergncia entre uma medicina mais mstica para
uma medicina mais objetiva, a Anatomia e seu mtodo, a observao emprica de
cadveres humanos que tm suas estruturas e rgos expostos para estudo e anlise,
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comumente chamado de dissecao (LUZ, 1988), justifica sua presena nos currculos
em suas origens.
Contudo, desde a dcada de 1990 intensificaram-se as propostas em relao
reformulao dos currculos mdicos (INZUNZA, VARGAS & BRAVO, 2007) nas
instituies dos Estados Unidos, Canad, Europa e Amrica Latina, refletindo em
modificaes de seriao, carga horria, procedimento metodolgico, e mesmo de
nomeao e discusso do contedo das disciplinas curriculares, alteraes que se
impem Anatomia Humana, assim como a outras disciplinas. A exemplo do que nos
apresenta Drake (2007), estas modificaes manifestam tentativas de alinhar estes
currculos s iniciativas didtico-pedaggicas que buscam o desenvolvimento de um
ensino mais prximo realidade clnica do futuro mdico, dando-lhe subsdios desde o
incio do curso para a reflexo acerca de sua interveno teraputica.
Neste mbito, o movimento curricular que vem se desenvolvendo em
algumas universidades mostra as tentativas de superao do modelo americano de
hierarquizao das disciplinas convencionalmente divididas em ciclo bsico e ciclo
clnico, de forte presena a partir da segunda metade do sculo XX (EDLER & FRES
DA FONSECA, 2005; PAGLIOSA & Da ROS, 2008), por propostas mais dinmicas e
integradas, muitas delas baseadas nas teorias da Aprendizagem Baseada em Problemas
(PBL na sigla em ingls) (KOIFMAN, 2001; FARIA et al, 2008; GOMES et al, 2009).
Por muito tempo considerado pedra angular da educao mdica
(PAALMAN, 2000; TURNEY, 2007), o rol de saberes anatmico tem importncia
instvel e variante, de acordo com a situao poltica, religiosa, social, econmica, ou
acadmica de cada perodo pelo qual passou, sofrendo e refletindo estas influncias na
construo de sua densidade disciplinar. Carlson & Markwald (1998) afirmam que a
Anatomia Humana, ao longo de sua histria enquanto disciplina, apresenta ciclos
marcados por oscilaes de sua importncia na formao do saber mdico, onde sua
prpria pertinncia colocada em discusso, havendo momentos em que chegou mesmo
a ser considerada moribunda, recuperando-se por vezes custa da perda de alguns de
seus contedos e pesquisadores.
Ao concordarmos com a idia de que a organizao e proposio de um
currculo de formao no nunca apenas o resultado de propsitos puros de
conhecimento e a expresso dos conhecimentos neste currculo atravs das disciplinas
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no se do atravs de conhecimento vlidos, mas de conhecimentos considerados
socialmente vlidos (SILVA, 2005, p. 8, grifo do autor), reconhecemos nestes ciclos
uma possvel manifestao da importncia atribuda Anatomia em cada poca,
remetendo-nos questo da lenta consolidao de um saber enquanto disciplina em um
currculo, como aponta Chervel (1990), para quem o processo de constituio e
evoluo de uma disciplina est sujeito a presses sociais que modificam lentamente
seus objetivos, assim como as expectativas do estudante e da sociedade em relao a
ela, pressionando para que ocorram reconfiguraes no institudo, firmando a disciplina
atravs do sucesso na formao dos alunos e na manuteno e consolidao dos seus
objetivos, mtodos, regras, procedimentos, manuais que se lhe tornam prprios.
E na dcada de 1990 concretizam-se modificaes curriculares oriundas das
transformaes sociais das dcadas precedentes. As dcadas de 1970 e 1980 viram a
Gentica e a Biologia Molecular florescerem e imporem suas abordagens nos currculos
mdicos. Passou a existir uma maior quantidade de conhecimentos pressionando para
serem discutidos nas academias, gerando reconfiguraes nas grades curriculares, com o
incremento de novas disciplinas (INZUNZA, VARGAS & BRAVO, 2007). Porm, no
se pode expandir indefinidamente o tempo de formao final do profissional mdico,
pois h a presso do mercado de trabalho. A soluo deu-se na reduo das cargas
horrias das disciplinas tradicionalmente categorizadas como bsicas, como a Anatomia
Humana, a Fisiologia, entre outras, o que permitiu redirecionar este tempo para as
disciplinas emergentes e com importncia clnica patente.
O redimensionamento das cargas horrias das disciplinas tradicionais
colocando-se como soluo pode estar comprometendo a qualidade da formao
possvel. Segundo Aziz et al (2002), a carga horria de Anatomia pode ter sido reduzida
metade do que era na dcada de 1980, e com alguns cursos mdicos deixando de
realizar as dissecaes de cadveres humanos, dissecao esta que alavanca
historicamente o conhecimento anatmico, permitindo disciplina ser integrada como
parte essencial do saber mdico (NUTTON, 2001).
Carlson & Markwald (1998) refletem sobre a crise da dcada de 1990 sobre
o campo da Anatomia, e concluem que a tenso gerada pela variedade de reas de
atuao e pesquisa que se descortinaram, obrigaram o campo a responder altura das
solicitaes para no perecer. Com as possibilidades da tecnologia e da Biologia
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Molecular, a forma de conduo das pesquisas se alterou, e os anatomistas abraaram
o novo - por vezes, mesmo custa de deixar passar mais do velho do que poderia ter
sido desejvel. Aqueles que no o fizeram freqentemente lutam pela sobrevivncia
(CARLSON & MARKWALD, 1998, p. 1) 1, indicando um estranhamento entre as
possibilidades de pesquisa e a realidade de ensino.
Paalman (2000) traz relatos de docentes vinculados a universidades norte-
americanas que do conta de uma disciplina esvaziada de importncia, com sinais de
degradao no ensino da Anatomia Macroscpica em seu papel de formadora bsica do
profissional mdico, que sofre, alm da reduo da carga horria, com a integrao com
outras disciplinas, como a Fisiologia, ainda custa da abertura de espao na grade de
horrio, e acrescenta que a eroso da disciplina de Anatomia Macroscpica tal que ela
declina de pedra angular no primeiro ano do currculo para 4 - ou 5 - semanas de
aulas com testes de mltipla escolha, e pouco tempo com o cadver (se houver)
(PAALMAN, 2000, p. 1).
Inzunza, Vargas & Bravo (2007) expem a peculiaridade da situao, em
vistas dos avanos tecnolgicos, principalmente na rea do diagnstico por imagem,
incorporados rea mdica na dcada de 1990, indicando que
Ironicamente, neste momento, que os conhecimentos da Anatomia esto sendo intensamente abordados, [ela est] em uma situao desagradvel, caracterizada por: a) reduo das horas dedicadas s aulas, b) reduo dos pesquisadores das cincias morfolgicas, c) reduzido acesso ao material cadavrico e, d) um aumento do nmero de alunos em relao ao nmero de professores por curso (INZUNZA, VARGAS & BRAVO, 2007, p. 825-6).
Esta condio atual da Anatomia Humana nos currculos mdicos pode ser
compreendida frente ao seu processo de construo como disciplina, que pode elucidar
a real condio curricular da disciplina e trazer luz elementos que expliquem se esta
reduo de importncia sintomtica, ou se parte do prprio processo de construo-
reconstruo que as disciplinas atravessam ao longo de sua histria, visto existirem uma
srie de aspectos que interferem na incorporao, estabilidade e reformulao de uma
disciplina curricular.
1 Todas as citaes utilizadas ao longo do texto, cujos originais esto em ingls ou espanhol, foram traduzidas pela pesquisadora.
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Dentre os aspectos que contribuem para a constituio de uma disciplina,
Goodson (2001) indica a importncia da expresso e disputa dos interesses e tradies
de grupos e subgrupos da sociedade, que marcam o compromisso desta disciplina com
estes grupos. Uma disciplina no se desloca da sociedade onde foi originada, mas,
emerge dela, tendo seus mtodos, procedimentos, regras e contedos continuamente
influenciados pelos fatores sociais que a constituram.
Esta emergncia impressa nos currculos de formao, que tem que ser
compreendidos
(...) no apenas como a expresso ou a representao ou o reflexo de interesses sociais determinados, mas tambm como produzindo identidades e subjetividades sociais determinadas. (...) preciso reconhecer que a incluso ou excluso no currculo tem conexes com a incluso ou excluso na sociedade (SILVA, 2005, p. 10, grifos do autor).
Emergindo de seu constructo scio-histrico, uma disciplina incorpora e
reflete as aspiraes de determinada parcela da sociedade, dominante enquanto
selecionadora de saberes, e pode ser compreendida como co-partcipe na disseminao
do paradigma vigente, a exemplo da relao entre o verbo disciplinar e a terminologia
educacional associada aos contedos curriculares explicitada por Chervel (1990).
Se concordarmos com o entendimento de currculo sintetizado por Pedra
(1997, p. 50), onde o currculo poderia ser considerado (...) a materializao de
seleo de contedos, podemos observar a importncia da institucionalizao de
saberes sob a gide de uma disciplina. Nos currculos mdicos, a Anatomia Humana se
configura como co-fundante da profisso, medida que permeia a formao profissional
desde sua origem, e integra, junto Fisiologia, Patologia, Qumica, s Teraputicas,
um ncleo duro representativo das prticas e dos saberes da profisso mdica (LUZ,
1988; TESSER & LUZ, 2008).
Em um breve levantamento de sua histria, podemos detectar pocas ureas
para a Anatomia Humana, como na antiga Alexandria, onde Herfilo e Erasstrato
causaram polmicas com suas dissecaes e/ou vivisseces humanas, que deram incio
ao estudo sistemtico do corpo humano (SINGER, 1996; NUTTON, 2001). Ou na
Renascena, com o brilhantismo de Andreas Vesalius, que estabelece a Anatomia em
seu fundamental papel de base da formao mdica (GUERRA, 1989; SAUNDERS &
OMALLEY, 2002). Ou ainda nos anos 1800, com sua abordagem anatomoclnica da
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Medicina, que mostra e comprova o quo importantes so os conhecimentos anatmicos
na boa e precisa anlise dos dados e fatos apresentados pelos pacientes e suas
patologias, e sua profissionalizao enquanto campo de pesquisa, derivada da influncia
alem (EDLER, 1992; KEMP & EDLER, 2004).
Mas h tambm perodos crticos para a Anatomia e seu objeto de estudos, o
corpo cadavrico, como o utilitarismo do incio da era crist, tornando descartvel a
busca minuciosa nos corpos cadavricos, pois demanda grande tempo de dedicao
(SINGER, 1996). Ou na Idade Mdia, quando a influncia religiosa tende a inibir as
investigaes nos cadveres humanos (MACKINNEY, 1962). E h ainda as
modificaes curriculares e dos campos de pesquisa que evidenciaram a efervescncia
da Gentica e da Biologia Molecular em fins do sculo XX (AZIZ et al, 2002;
INZUNZA, VARGAS & BRAVO, 2007).
No Brasil, a Anatomia Humana um campo relativamente jovem, j que se
inicia, de forma oficial em 1808, quando chega ao Brasil a Famlia Real, em fuga diante
da iminente invaso dos exrcitos napolenicos do territrio portugus (SANTOS
FILHO, 1991).
Atrelada aos currculos mdicos, em um percurso de mais de 200 anos no
Brasil, a Anatomia brasileira sofre, alm das interferncias sociais, econmicas,
polticas e religiosas, influncias de distintas origens: as portuguesas, em seu incio,
caracterizando-se como uma disciplina antiquada (FELICIELLO, 2002); as francesas,
quando atinge o ponto ureo da impregnao de seus conhecimentos nos currculos
mdicos, gerando novas disciplinas que utilizam seus saberes para incrementar a
discusso clnica (FELICIELLO, 2002; EDLER & FRES DA FONSECA, 2005); as
alems, profissionalizando seus laboratrios e pesquisas (EDLER, 1992; CHARLE &
VERGER, 1996) e a consolidao com a influncia norte-americana, que favorece sua
estabilizao como disciplina bsica na formao profissional (EDLER & FRES DA
FONSECA, 2005; PAGLIOSA & Da ROS, 2008).
Esta histria pode ser delineada traando-se os parmetros de criao e
instalao dos cursos mdicos no Brasil, analisando-se seus currculos e suas aspiraes,
levando-nos a observar que a Anatomia Humana fixa-se como um campo de ensino,
vinculada alcunha de disciplina dos currculos mdicos. Entretanto, como campo de
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pesquisa, ela se firma apenas no sculo XX, e um dos grandes plos o ensino mdico
em So Paulo.
Quinta Faculdade de Medicina oficial do pas2, regulamentada em 1912,
com incio das atividades em 1913 (CUNHA, 2007), a Faculdade de Medicina e
Cirurgia de So Paulo, atual Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo
(FMUSP), traz um histrico distinto das outras instituies contemporneas de ensino
mdico do pas.
A instituio foi criada por decreto em 1891, porm a mudana do regime
poltico com a Proclamao da Repblica pouco depois e a deposio do governador do
Estado, levaram ao adiamento do incio efetivo de suas atividades por mais de vinte
anos (SALLES, 1971). O curso de Medicina paulista s ganhou vida quando da
Reforma Rivadvia Corra, em 1911, que concedia autonomia didtica e administrativa
s Faculdades, que no mais teriam que seguir o exemplo do Rio de Janeiro e Salvador
em seus planos de curso e iniciativas didtico-pedaggicas (EDLER & FRES DA
FONSECA, 2005).
Com uma proposta curricular diferenciada, a Faculdade de Medicina e
Cirurgia de So Paulo (FMCSP) tem sua organizao tcnico-administrativa e didtico-
pedaggica inicial focada no ensino laboratorial concreto, com possibilidades de
desenvolvimento de pesquisa nestes espaos, estruturando-se logo em seus anos iniciais
segundo os parmetros norte-americanos, que incluam a figura do professor-
pesquisador em dedicao exclusiva instituio de ensino, a construo de um
hospital-escola, e um currculo dividido entre disciplinas bsicas e clnicas, que aliava
aulas tericas e aulas prticas laboratoriais na tentativa de oferecer uma formao no
apenas exclusivamente clnica, mas tambm voltada para a pesquisa (MARINHO, 2003;
EDLER & FRES DA FONSECA, 2005). Essa organizao foi possvel graas a uma
parceria com a Fundao Rockefeller.
Estes elementos tornam, por si s, a recm nascida Faculdade de Medicina e
Cirurgia de So Paulo, atual Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo, 2 A primeira instituio de ensino mdico oficial criada em 1808 por D. Joo VI na cidade de Salvador, Bahia, logo que sua comitiva aporta na cidade. Poucos meses depois, j instalados no Rio de Janeiro, cria ali o segundo curso mdico do pas, que expressa importncia mpar na histria, j que instalado na capital poltica e social do pas (SANTOS FILHO, 1992). Em 1889, fundada a Faculdade de Medicina e Farmcia de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a terceira em nosso pas; e em 1911 a Faculdade de Medicina de Minas Gerais (CUNHA, 2007).
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diferente de suas congneres, que se vinculavam aos hospitais em sua criao e focavam
a formao de seus alunos no ensino (EDLER, 1992; FELICIELLO, 2002). Alm destes
aspectos, esta instituio recebeu, em seu incio, seis professores estrangeiros, docentes-
pesquisadores renomados em suas reas, para implementar o projeto de ensino e
pesquisa na instituio (SILVA, 2003).
Em uma proposta curricular distinta, a ctedra de Anatomia Descritiva
uma das que recebe um professor estrangeiro. Alfonso Bovero traz para sua prtica de
ensino o rigor cientfico, instalando uma metodologia de pesquisa em Anatomia
Humana (SOUZA CAMPOS, 1940; LACAZ, 1989), marcando a organizao deste
campo, no apenas como disciplina curricular, mas tambm como rea de pesquisa
acadmica. Bovero, anatomista italiano de renome, que contava com cerca de 20 anos
de experincia no ensino e na pesquisa anatmica em instituies europias, chega a
So Paulo em 1914 e aqui, por mais de 20 anos instala e concretiza o ensino-pesquisa
anatmico.
Entretanto, no processo de busca e anlise da documentao e construo do
espao-tempo curricular da disciplina, o nome de Renato Locchi, discpulo e sucessor
de Bovero, que emerge com muita fora como construtor efetivo e consolidador da
disciplina de Anatomia na Faculdade de Medicina de So Paulo.
Locchi essencialmente estabelece como meta a cumprir a consolidao da
Anatomia de seu mestre como uma escola nacional, estabelecendo uma forte retrica
legitimadora junto a seus pares na Faculdade de Medicina e em outros laboratrios e
centros de estudo anatmico, nacionais e mundiais, congregando os representantes
individuais a compor uma comunidade disciplinar; torna-se a voz da Anatomia na
Faculdade e ganha espao junto aos alunos conquistando posies importantes dentro da
estrutura organizacional institucional, sendo um diretor muito aclamado pelos alunos,
liderando uma reforma curricular que contempla de forma explcita a especialidade
mdica. este catedrtico que impregna o currculo com a Anatomia dividindo-a nos
trs primeiros anos, estabelecendo maior tempo de influncia e disciplinarizao dos
estudantes nos elementos anatmicos, incorporando a tendncia especialista atravs da
oficializao das subculturas disciplinares.
Assim, a realizao de Renato Locchi nos parece de tal forma contundente
que acabamos por direcionar nossos esforos com mais determinao para este
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catedrtico. Alm deste fator que nos parece preponderante, somamos mais dois
motivos para direcionar nosso olhar para o segundo catedrtico da Instituio:
privilegiar a anlise de fontes primrias e compreenso indireta que se constituiria do
perodo de Bovero.
Este estudo baseia-se mais concentradamente na anlise de documentos
localizados no acervo do Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero do Instituto
de Cincias Biomdicas da USP (MAH), material este considerado em banca de
qualificao3 desta dissertao como inditos, visto no terem sido localizados estudo
algum que os apresentasse, tampouco analisasse. Tais documentos percorrem o perodo
das ctedras da Anatomia nesta instituio, perfazendo o espao-tempo de 1914 at
meados da dcada de 1960. Entretanto, a preservao destes documentos no regular,
apresentando hiatos temporais significativos, com maior concentrao documental entre
os anos de 1935 e 1954, perodo este que praticamente corresponde administrao da
ctedra por Renato Locchi (1937-1955).
Ao buscar privilegiar o uso de fontes primrias em nossa anlise, vimo-nos
na obrigao de delimitar o perodo de forma a contemplar esta documentao indita
preservada no MAH. Entretanto, fato singular nos chamou a ateno. Quando da anlise
desta documentao, observamos que a figura de Alfonso Bovero emerge atravs da
fala de Renato Locchi, a comear pelo discurso que Locchi profere ao assumir a ctedra
aps a morte de Bovero, onde exalta e reafirma a fora criadora de Bovero na cadeira
que agora assume como sucessor e no como substituto, o que nunca lhe seria possvel
(LOCCHI, 1937, apud DI DIO, 1986). Esta exaltao constante, o que pode causar
confuses sobre as realizaes concretas de Alfonso Bovero, j que pouca
documentao do perodo boveriano foi por ns localizada.
Somando-se estes fatores, delimitamos nossa anlise mais detidamente ao
espao-tempo de Renato Locchi (1937-1955). No obstante, certo que a compreenso
da disciplina de Anatomia no perodo de Renato Locchi no pode ser isolada e
despregada da construo scio-histrica que Alfonso Bovero inicia, j que este se
3 Banca de Qualificao desta dissertao foi composta pelo prof. Dr. Andr Mota, coordenador do Museu Histrico da Faculdade de Medicina da USP; Profa Dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt, docente da Faculdade de Educao da USP; Prof. Dr. Edson Aparecido Liberti, docente do Instituto de Cincias Biomdicas da USP; e Profa. Dra. Maria Isabel de Almeida, docente da Faculdade de Educao da USP, realizada no dia 07 de maio de 2010, na Faculdade de Educao da USP.
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coloca como sucessor. Portanto, de alguma forma h continuidade de aes e
iniciativas.
por estes motivos que nossa investigao centra-se nesta instituio
paulista, que possui caractersticas distintas desde sua fundao e foras para imprimir
disciplina de Anatomia Humana no Brasil um percurso constitutivo diferenciado, e
concentradamente no segundo catedrtico da disciplina, Renato Locchi.
Acreditamos que a Anatomia Humana est alm: da pea cadavrica fixada
por formol, que ser utilizada como objeto de estudo e prtica de ensino nos cursos de
formao mdica; da memorizao insalubre e estril de nomes e correlaes; da rida
terminologia anatmica, que mesmo traduzida do latim para o vernculo mantm seu
alto grau de dificuldade; do esvaziamento de interesse gerado pelo redirecionamento
dos olhares dos pesquisadores; da simples questo mtrica de cargas horrias e
incorporaes e expropriaes de contedos. Acreditamos ainda que ela congregue em
suas prticas, mtodos e tcnicas toda a influncia da construo histrica da seleo de
saberes considerados vlidos e que culminaram no que hoje designado por Anatomia
Macroscpica nos currculos mdicos em modificao dadas as tenses que incidem
sobre eles. Disto emerge o objetivo geral do nosso trabalho, que centra-se na
caracterizao da Anatomia Humana enquanto disciplina no contexto da Faculdade de
Medicina da Universidade de So Paulo no perodo de ctedra de Renato Locchi, do que
propomos como objetivos especficos:
Distinguir as caractersticas iniciais da constituio da Anatomia Humana
enquanto disciplina na Faculdade de Medicina de So Paulo; Determinar o espao de legitimidade curricular da disciplina; Estabelecer os elementos constitutivos da disciplina diante da documentao
resgatada; Discutir possveis permanncias e rupturas na disciplina de Renato Locchi.
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2. DO PERCURSO METODOLGICO Dada a caracterstica bibliogrfica da temtica proposta, este estudo baseia-
se na recuperao histrica da Anatomia Humana enquanto campo de ensino na
Faculdade de Medicina de So Paulo. Para tanto nos basearemos na anlise documental
disponvel em duas frentes: as teorias de construo scio-histricas de uma disciplina e
a histria resgatada da Anatomia Humana e da Faculdade de Medicina de So Paulo,
que se conjugam para compor nosso objeto.
Atravs do estudo e anlise bibliogrfica, buscamos referncias para a
compreenso de nosso objeto nas teorias scio-histricas sobre a organizao e
consolidao das disciplinas escolares. Fato a ser assinalado o foco que os autores
referncia utilizam para suas discusses. Todos os autores consultados falam da
construo da disciplina situada nos currculos dos ensinos bsicos, fundamental e
mdio, o que leva necessidade de adequaes.
Ambientamo-nos de forma a compreender os elementos essenciais deste
processo para que se possa dizer da existncia de uma disciplina, e traar aproximaes
possveis entre estas teorias e nosso prprio objeto, situado no ensino superior, processo
donde elencamos as categorias a serem buscadas, designadas de elementos constitutivos
de uma disciplina, nas quais nos baseamos para a anlise dos documentos.
O levantamento destas referncias manteve o foco nos autores que dizem da
construo das disciplinas como constructos espao-temporais culturais mediados por
processos de seleo e negociao entre os grupos que as representam, excluindo de
certa forma a viso de disciplinas enquanto vulgarizao dos conhecimentos cientficos
acadmicos que as referenciariam, isto porque, ao discutir a Anatomia Humana
vinculada a um currculo mdico estaramos falando da prpria cincia de referncia,
em diversos aspectos.
2.1. APRESENTAO DOS ACERVOS CONSULTADOS A reconstruo da histria da Anatomia em So Paulo contar, alm dos
recursos bibliogrficos, com a anlise direta de documentao preservada nos acervos
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do Museu de Anatomia Humana Alfonso Bovero do Instituto de Cincias Biomdicas
da USP (MAH), do Museu Histrico Carlos da Silva Lacaz da Faculdade de Medicina
da USP (MH) e da Assessoria Tcnica Acadmica da Faculdade de Medicina da USP.
O Museu de Anatomia Humana (MAH) contm em seu acervo peas
anatmicas humanas preparadas desde Alfonso Bovero, que as organizou para um
museu didtico, e de documentos que apresentam o cotidiano do ensino de Anatomia
at a dcada de 1960, com diversas perdas temporais. Este museu volta-se basicamente
para a exposio das peas preparadas e no possui funcionrios especficos ou
especializados na recuperao, preservao e catalogao documental, dividindo,
inadequadamente, a sala de administrao com este acervo.
A documentao do MAH est armazenada em um acervo no catalogado
sem acesso ao pblico externo, em graus diferentes de preservao, algumas delas quase
ilegveis e com pontos de destruio por insetos, umidade, fungos e pela m
conservao ao longo dos anos, outras em quase perfeito estado. Aqui estivemos entre
os meses de setembro e dezembro de 2009, onde encontramos espao completamente
disponvel para a pesquisa, com acesso irrestrito e direto ao acervo.
Como forma de facilitar nossa abordagem, dividimos o vasto acervo
encontrado, excluindo-se as peas de exposio, em dois grupos: acervo bibliogrfico,
composto de livros, peridicos, separatas, compndios, e outros; e acervo documental,
composto por cartas, ofcios, livros de registros de aulas e de atividades prticas,
programas da disciplina, circulares regimentais, entre outros.
Os livros que compem o acervo bibliogrfico datam do final do sculo
XIX at meados da dcada de 1970, no apenas de Anatomia, mas tambm de reas
afins, como biotipologia, dermatologia, ginecologia, zoologia, cirurgia, clnica mdica,
patologia, fisiologia, antropologia, embriologia, histologia, alm de ndex mdico,
dicionrios de idiomas e nominas anatmicas.
Apenas como forma de fidelizar o objeto focando no ensino, estaremos
considerando aqui apenas os livros especficos designados como Anatomia Humana,
Anatomia Topogrfica, Anatomia Descritiva, Anatomia Sistmica (ou Sistemtica)
descartando as derivaes, tais como Anatomia Antropolgica, Anatomia e Fisiologia,
Anatomia Patolgica.
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Encontramos ainda dezenas de encadernaes designadas Miscelnia
organizadas por Alfonso Bovero. Estas se compem de artigos e textos de
expressividade anatmica, encadernados em capa dura, do perodo de final do sculo
XIX at incios do sculo XX. Tambm se dispem, dividindo espao nas prateleiras
com as outras publicaes, colees de peridicos especficos da Anatomia ou com
expressividade para a Anatomia. Dada a pouca organizao da disposio que dificulta
a rpida e eficiente anlise, e por estes peridicos e miscelnias no serem foco direto
de nosso estudo em seus contedos especficos e sim em suas linhas editoriais, no nos
ativemos verificao sistemtica de cada volume. Entretanto, pudemos observar que
as colees encontram-se encadernadas em capa dura e referem-se a perodo semelhante
aos livros, do final do sculo XIX dcada de 1970.
No acervo bibliogrfico encontram-se tambm milhares de separatas de
artigos trocadas entre os catedrticos e diversos centros de pesquisa internacionais,
acomodados em caixas plsticas tipo arquivo-morto, sem indicaes nas lombadas.
A coleo de coletneas das publicaes dos professores e pesquisadores da
cadeira compe ainda este acervo bibliogrfico. Encadernaes realizadas desde o incio
das atividades da cadeira de Anatomia constando de artigos, memoriais, produes dos
docentes vinculados disciplina de Anatomia. Os volumes, seqenciais a partir de I, do
ano de 1914 a 1920, esto disponveis at 1984. Inicialmente organizados com
intervalos temporais grandes, a partir do final da dcada de 1930 expressam um binio
de publicaes.
No que estamos chamando de acervo documental, encontramos centenas de
documentos, sejam do cotidiano administrativo, sejam do cotidiano didtico, sejam de
expressividade cientfica e comunicaes pessoais, dispostos em pastas de papelo
estilo grampo-trilho, que parecem ser uma tentativa de organizao deste acervo, pois
em suas capas e lombadas podemos distinguir a identificao do ano correspondente aos
documentos em seu interior, o tipo de documentao ali encontrada (se
correspondncias, ensino, ficha de aluno) e em algumas encontramos, colado no interior
de sua capa, uma lista dos documentos que ali se achariam. Entretanto, apesar de os
documentos estarem furados e portanto presos s suas pastas, no necessariamente a
lista corresponde ao achado de fato, alm disso, h uma srie de documentos com datas
divergentes entre o ano anotado na capa da pasta e o registrado no documento.
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As pastas iniciam sua datao em 1914, pasta esta completamente vazia,
mas h um hiato, e a prxima de 1939, para ento seguir quase anualmente, com
ausncias. Alm das pastas, um volume relativamente grande de documentos foi
encontrado solto, disperso entre as pastas e entre o restante do acervo. Ao analisarmos
estes documentos, percebemos que compem os anos de 1935, 1936, 1937 e 1942.
Este acervo documental disposto em pasta compe-se, essencialmente, de:
programas da disciplina; listas de pontos para avaliao; circulares regimentais; ofcios
administrativos; ofcios entre os catedrticos e direo da instituio e de outras
instituies de contedos diversos; convites de participao de eventos cientficos;
propostas de participao em eventos cientficos; cartas de comunicao entre centros
de pesquisa e ensino tratando de assuntos afins para a construo de uma comunidade
disciplinar mais coesa e unificada; formas de avaliao e realizao destas avaliaes;
originais de pesquisas docentes; entre outros documentos nicos que no podem ser
agrupados nestas grandes definies, como cartas comunicando o falecimento de
Alfonso Bovero e ofcios de doao de animais silvestres mortos para estudos.
Alm destas pastas, encontramos tambm como parte do que designamos
acervo documental, 7 livros de registros. Dois deles apresentam os registros dirios das
aulas. Em suas capas o primeiro indica Registro das aulas de Anatomia professadas
na Faculdade de Medicina e Cirurgia de So Paulo, e o segundo Faculdade de
Medicina e Cirurgia de So Paulo Registro de Aulas de Anatomia Descriptiva (1
e 2 parte), e tratam de apresentar, diariamente, os registros de contedos
desenvolvidos em cada aula, ano a ano, desde 1914 at 05 de maio de 1939, o que
indica que haveriam ao menos mais um destes livros que no foi por ns localizado.
Apresentam, tambm, a assinatura do professor responsvel pela aula e ainda se houve
alguma intercorrncia naquele dia.
Os outros cinco livros so intitulados Registro dos trabalhos prticos
anatmicos e trazem, entre 1914 at 1963, os trabalhos prticos dissectrios realizados
pelos alunos, listando pea dissecada, conceito atribudo para a pea e para a argio
referente, nota atribuda avaliao prtica e para a terica e mdia obtida, porem, as
informaes no so constantes.
De forma a facilitar o acesso a estas informaes a qualquer momento que
se torne necessrio durante o processo de anlise e produo de nossa pesquisa, optamos
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pelo registro fotogrfico do material que nos pareceu, por ora, pertinente. Com
autorizao dos responsveis, registramos fotograficamente o acervo documental,
excetuando-se os livros de registro de trabalhos prticos que o foram apenas em parte,
por tratar-se de mais de 2000 pginas; o acervo bibliogrfico de livros e compndios de
publicaes do departamento, estes apenas as capas, folhas de rostro e sumrios,
algumas apresentaes e prefcios que pudessem nos indicar modificaes e novas
tendncias, para caracterizar os contedos mais especificamente.
Dada a incompatibilidade de datas encontradas nos registros das pastas e
seus documentos correspondentes, utilizamos em nossa anlise as datas impressas nos
documentos. Em caso de ausncia de data, tentamos identificar o ano de sua produo
baseado em dados componentes do prprio documento, tais como nome do professor
comparando com o perodo de sua atuao. Apenas nos casos de total ausncia de
comprovao, a data registrada na capa das pastas foi considerada.
O Museu Histrico da FMUSP (MH) foca sua abordagem na preservao da
histria da Medicina, contando com acervo composto de objetos desde a fundao da
instituio, tais como mveis do gabinete de Alfonso Bovero, instrumentos antigos
utilizados para ensino e pesquisa, como microscpios, seringas; alguns livros didticos;
um grande acervo iconogrfico e documental, onde constam, entretanto, poucos
documentos especficos da Anatomia, j que em sua maioria estes se acham no acervo
do MAH.
Realizamos nosso levantamento de dados nos meses de janeiro e agosto de
2010, onde encontramos alguns documentos de nosso interesse em seu acervo,
organizado em pastas tipo arquivo suspenso etiquetadas, donde selecionamos para
averiguao as pastas de Alfonso Bovero (em nmero de duas), Renato Locchi (uma),
Odorico Machado de Sousa (uma), FMUSP (duas) e Faculdade de Medicina de So
Paulo (uma) onde pudemos ter acesso aos antigos regulamentos e leis de criao da
Faculdade no perodo anterior sua incorporao Universidade.
Alm destas pastas, consultamos os volumes de Atas da Congregao da
Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo, correspondendo a 5 volumes
perfazendo os anos de 1913 a 1956.
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A Assessoria Tcnica Acadmica rgo assessor para as questes
acadmicas da Instituio, e preserva documentao oficial, aprovada pela Congregao
da FMUSP, quanto ao desenvolvimento do curso mdico.
Realizamos nosso levantamento no ms de julho de 2010 e tivemos acesso
aos Programas de Curso aprovados pela Congregao dos anos de 1938-1939, 1948,
1950-1968. Estes programas compem-se dos programas individuais de cada disciplina
para os 6 anos componentes do curso mdico.
2.2. ANLISE DOS DADOS E ORGANIZAO DO ESTUDO Aps a catalogao pessoal da documentao obtida nos trs acervos
consultados, procedemos anlise e discusso destes dados, levando em considerao a
histria institucional e a teoria de construo disciplinar.
Elencamos, baseado na bibliografia especfica consultada, alguns elementos
constitutivos de caracterizao da construo disciplinar, a saber: as tradies que
sustentam a disciplina e captam novos integrantes que se vem por elas atrados; a
comunidade disciplinar, seus grupos e subculturas; as finalidades de incluso e
manuteno da disciplina no currculo; os contedos listados e consolidados como parte
de seus saberes; os mtodos empregados para propagao no apenas dos contedos
mas tambm da cultura e tradies disciplinares; os exerccios e avaliaes, que
permitem ao sujeito-estudante fixar os ensinamentos da disciplina e verificam se esta
funcionou em seu processo de disciplinarizao.
A partir destes elementos, buscamos documentao que indicasse e
demonstrasse a existncia destes elementos, caracterizando a Anatomia como uma
disciplina, e bases para a anlise do movimento que estes descrevem na disciplina.
Concentramos nossos esforos nos perodo de 1937 a 1955, porm,
verificamos que o processo de construo disciplinar bastante dinmico, com diversas
permanncias, mas tambm com diversas rupturas com o perodo inicial do curso
mdico em So Paulo. Assim, organizamos os dados de forma no estanque e
segmentada nos elementos, mas sim a partir da fluidez com que se foram apresentando,
levando composio da dissertao em quatro captulos e as consideraes finais.
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No captulo I trazemos as bases para anlise dos dados, elencando a teoria
de construo scio-histrica das disciplinas, com a ressalva de lidarmos com uma
disciplina do mbito do ensino superior e os autores discutirem, concentradamente,
disciplinas do mbito da educao bsica. Ao compreendermos os elementos
constitutivos e sua dinmica, buscamos na histria geral da anatomia a identificao dos
primrdios e do movimento destes elementos, quando possvel. Como disciplinas no se
descolam do currculo ao qual se propem integrar, trazemos as influncias externas
disciplina que incidem sobre elas atravs das determinantes curriculares, apresentando
as indicaes francesas, alems e norte americanas, que nos ajudam a compreender a
consolidao da anatomia nos currculos mdicos. Encerramos o captulo apresentando
as finalidades que a disciplina de Anatomia apresenta no currculo mdico da Faculdade
de Medicina de So Paulo, cujos argumentos se mostraro na discusso que se segue
nos prximos captulos.
No captulo II trazemos o incio da construo da disciplina na Faculdade de
Medicina de So Paulo a partir de trs determinantes: Alfonso Bovero, seu primeiro
catedrtico, Arnaldo Vieira de Carvalho, primeiro diretor da Instituio, e Fundao
Rockefeller, agncia que fomentou diversas iniciativas na Faculdade. Esta viso
tripartida intenta indicar a construo da legitimidade curricular da Anatomia nestes
anos iniciais e prepara para a compreenso da ruptura que se d nesta aparente
estabilidade disciplinar que se processar na dcada de 1930.
Os captulos III e IV discutem o perodo de Renato Locchi catedrtico e a
construo-reconstruo disciplinar.
No captulo III trazemos o espao de legitimidade e insero
(re)conquistado pelo contnuo e incessante trabalho de Renato Locchi, em um intrincado
processo de construo multifatoriais da licitude disciplinar. Mostramos a conquista da
voz e expressividade da disciplina junto ao colegiado, as aes curriculares
empreendidas e a chegada direo da Faculdade. Neste captulo discutimos uma
grande ruptura com a insero e ao do conceito de Anatomia escolar, e a oficializao
da comunidade disciplinar, representada por uma Sociedade e por sua produo
cientfica.
No captulo IV apresentamos a cultura disciplinar e sua multifacetagem de
apresentao, trazendo a face visvel que nica aos olhares externos, mas constituda
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por vrios subgrupos. Mostramos como as subculturas disciplinares ganham espao,
tempo e voz sob a orientao de Renato Locchi catedrtico, ao mesmo tempo em que a
subcultura por ele representada se mantm dominante. Encerramos o captulo
apresentando a multiplicidade de objetivos que este catedrtico alcana com a disciplina
e a forma como eles se consolidam sob seu comando.
Nas consideraes finais trazemos uma rpida retomada do percurso desta
dissertao, e apresentamos nossos achados, embasados em nossa conceituao terica e
em nossos objetivos, traando o panorama da entidade disciplinar Anatomia no
currculo mdico da Faculdade de Medicina de So Paulo, de forma a contemplar seus
elementos constitutivos e a dimensionar a amplitude do conceito disciplina. Trazemos
tambm alguns aspectos que no puderam ser esclarecidos a contento e demandam
novas pesquisas.
Os documentos aqui reproduzidos no foram submetidos atualizao da
norma ortogrfica, mantendo-se a grafia tal qual neles impressa.
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ana
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CAPTULO I. A CARACTERIZAO DE UMA DISCIPLINA FRENTE A SUA HISTRIA: A ANATOMIA HUMANA A nossa conscincia histrica passa
pelo reconhecimento de que o passado
parte do nosso discurso de todos os
dias, estruturando o que pode ser dito e
as possibilidades de desafios do tempo presente. Antonio Nvoa, 1997
INTRODUO Disciplinas so constructos scio-histricos que apresentam uma srie de
elementos constitutivos que as caracterizam enquanto tal. So fruto de um processo de
construo e no entidades estanques de uma lista de nomes de matrias em uma grade
de horrio no quadro de avisos.
Ao compreendermos as disciplinas como um processo em construo,
devemos entender que a construo scio-histrica, assim como a reconstruo. O
processo dinmico e mediado por fatores extrnsecos a ela, como o currculo qual ela
se vincula, a poltica, a economia, a religio, as tendncias e modismos educacionais;
mas tambm mediado por fatores intrnsecos, que so seus prprios elementos
constitutivos, pois, disciplinas no so apenas os contedos e mtodos, como
habitualmente se descreve, mas tambm as pessoas que as professam, suas formas de
organizao e as tradies que se constituem no mbito da manuteno desta disciplina.
A Anatomia Humana, disciplina que pretendemos caracterizar, um grupo
de conhecimento considerado como ponto de ciso de uma medicina pouco precisa e
algo mstica, para uma medicina objetiva que busca a compreenso dos processos
patolgicos a partir da realidade constitucional e funcional do corpo humano, sede da
doena que se busca combater, levando-a a ocupar lugar de destaque na construo da
racionalidade da profisso mdica:
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O deslocamento epistemolgico e clnico da medicina moderna, de uma arte de curar indivduos doentes para uma disciplina das doenas (...) se inicia no Renascimento (...) Mais exatamente, a nova racionalidade tem na Anatomia (...) um momento inaugural, de ruptura com as velhas concepes do organismo humano. (...) a moderna Anatomia, uma das pedras angulares da medicina moderna, e o corpo humano ganha, no desenho preciso e na descrio detalhista, a objetividade do olhar que viu, na dissecao oculta dos cadveres, a forma verdadeira dos rgos e das veias (LUZ, 1988, p. 83)
Este processo de construo da racionalidade da profisso mdica se reflete
na fala dos profissionais mdicos que se propem a contar a histria de sua profisso.
Os mdicos historiadores traam as origens da medicina a partir das condies de
compreenso do corpo humano que se propem em cada poca, demonstrando grande
similaridade entre os avanos da teraputica mdica e os avanos no conhecimento
anatmico1. Nesta relao, j centenria entre a Anatomia e a Medicina, buscamos os
elementos que fizeram a Anatomia uma disciplina curricular permanente dos cursos de
formao mdica at nossos dias.
Este captulo resgata esta histria de construo conjugada que donde
emerge a disciplina que se configurar na Faculdade de Medicina de So Paulo, nosso
foco de pesquisa. Em trs partes interligadas, discutimos a construo scio-histrica
das disciplinas, de forma terica, que nos d base para a discusso do processo de
construo que a Anatomia descreve junto profisso mdica, j distinguindo, quando
possvel, os elementos constitutivos de uma disciplina, e inserimos a Anatomia mais
propriamente na construo do currculo mdico, apontando-o como uma influncia
extrnseca importante que ser decisiva na organizao da Anatomia em So Paulo.
Encerramos o captulo apresentando as finalidades da disciplina no currculo da
Faculdade de Medicina de So Paulo, de forma a iniciar a discusso da trajetria que a
disciplina descreve nesta Instituio.
Cabe-nos assinalar que os estudos sobre histria das disciplinas, onde nos
sustentamos teoricamente para tecer nossas argumentaes, destinam seus esforos em
disciplinas posicionadas em currculos do ensino fundamental e mdio, utilizando o
termo disciplina escolar para referirem-se s disciplinas em anlise. Contudo, estamos
aqui nos propondo a focar em uma disciplina vinculada a currculos de formao
profissional, dos cursos de medicina. Esta especificidade nos inibe em usar o termo 1 Citamos, como exemplo: OLIVEIRA, 1981; GUERRA, 1989; SINGER, 1996; LYONS & PETRUCELLI, 1997; NUTTON, 2001; POTER, 2001; VAN DE GRAAFF, 2003.
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escolar, pois este muito comumente vinculado ao ensino fundamental e mdio.
Assim, para fins deste estudo, utilizaremos apenas o termo disciplina para designar a
Anatomia, ou outras disciplinas curriculares do curso mdico, substituindo o termo
escolar por acadmico ou universitrio quando couber; porm, como forma de manter a
fidelidade das citaes, o termo disciplina escolar e escolar mantido apenas nos
casos que a citao literal for empregada.
1. DISCIPLINAS COMO CONSTRUCTOS SCIO-HISTRICOS O termo disciplina vincula-se em sua origem ao verbo disciplinar que
indicava os padres de conduta e organizao da escola e do escolar. Contudo, ele
comea a ser utilizado com o sentido de grupo de contedos de um currculo e sua
organizao ao final do sculo XIX, no obstante mantenha em disponibilidade o
possvel resgate a este carter disciplinador, regrador e normativo do verbo. Isto
dimensiona a disciplina no mbito educacional levando-a a extrapolar a rubrica
curricular compreenso desta como um modo de disciplinar o esprito, (...) lhe dar os
mtodos e as regras para abordar os diferentes domnios do pensamento, do
conhecimento, da arte (CHERVEL, 1990, p. 180).
Enquanto rubricas em um currculo, as disciplinas devem ser compreendidas
como parte de um todo e no como entidades isoladas, singulares e alheias s
influncias extrnsecas e intrnsecas ao seu processo de surgimento, consolidao e
modificao (CHERVEL, 1990; FORQUIN, 1992), por isso, os currculos donde elas
emergem e nos quais se sustentam e firmam tem crucial importncia, assim como seus
elementos constitutivos. Portanto, a compreenso de uma disciplina parte de seus
elementos constitutivos, representados por sua comunidade disciplinar, suas tradies,
seus objetivos, contedos, mtodos, exerccios e avaliaes, mas vinculados ao
currculo e intervenincias externas, pois sua construo trata-se de um processo scio-
histrico.
Entretanto, na busca pelo resgate de uma disciplina, podemos ser
confundidos por alguns dados histricos, pois a presena de uma disciplina em uma
poca atrelada a um currculo especfico, no necessariamente indica a mesma
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disciplina que possa ser identificada em poca distinta ou na atualidade, ou seja,
necessrio que se tenha o cuidado de atentar ao todo relacionado rubrica que se
procura, j que apenas pela nomeao da disciplina no se pode afirmar que a antiga a
mesma que a atual. Alm disso, no se pode incorrer no erro de atribuir a disciplinas
distantes temporalmente, funcionamentos idnticos apenas porque estas so nomeadas
de forma idntica. Assim, acreditar que os contedos, mtodos e finalidades de
disciplinas de mesmo nome sejam os mesmos negar as influncias histricas que se
tenta reconstruir (JULI, 2002) e que constroem, efetivamente, os elementos buscados.
Tendo-se estes cuidados, ainda necessrio que lembremos que os
processos de instaurao e funcionamento de uma disciplina se caracterizam por sua
precauo, por sua lentido e por sua segurana (CHERVEL, 1990, p 198). Nenhuma
disciplina surge simplesmente, ela fruto de um processo dinmico de construo e
reconstruo ao longo de experincias pedaggicas nas quais o sucesso na formao dos
estudantes e o cumprimento de seus objetivos patente.
Neste processo, a histria de xito revelar uma passagem consistente de
uma marginalidade de baixo status, dentro do currculo (...) definio da disciplina
como um corpo rgido e rigoroso de conhecimento (GOODSON, 2001, p. 101), no
qual a
Fidelidade aos objetivos, mtodos experimentados, progresses sem choques, manuais adequados e renomados, professores tanto mais experimentados quanto mais reproduzem com seus alunos a didtica que os formou em seus anos de juventude, e sobretudo consenso da escola e da sociedade dos professores e dos alunos: igualmente fatores de solidez e perenidade (...) (CHERVEL, 1990, p. 198).
Assim, a reconstruo da origem e insero da disciplina, e sua
permanncia, em um currculo, tendem a mostrar estas etapas, no com enfoque
evolutivo, mas processual. Esta instabilidade inerente ao processo de construo e
consolidao da disciplina cclica e mediada pelos fatores scio-culturais onde est
imersa esta disciplina que tem necessariamente que considerar os sujeitos e os objetivos
desta.
O nascimento e a instaurao de uma nova disciplina levaram alguns decnios (...) segue-se o apogeu, mais ou menos durvel segundo as circunstncias (...). Vem depois o declnio, se se quer, a mudana. Pois a disciplina, ainda que parea imune por todos os lados no uma massa amorfa e inerte. V-se de repente florescerem novos mtodos que do testemunho de uma insatisfao, e dos quais o sucesso
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tambm o questionamento, ao menos parcial, da tradio. (CHERVEL, 1990, p. 198).
Portanto, o processo de consolidao da disciplina inclui a reviso e
reordenao de seus elementos constitutivos, de forma a manter a imprescindibilidade
desta no currculo ao qual se atrela, caso contrrio, a disciplina pode perecer, o que d
aos elementos um carter dinmico e em constante necessidade de reviso.
Um de seus elementos constitutivos de uma disciplina so os indivduos ou
grupamentos representativos, ou seja, sua comunidade disciplinar.
Esta comunidade no composta por grupos homogneos, de indivduos,
idias, propostas e valores todos convergentes, e sim por uma gama varivel de
misses ou tradies distintas representadas por indivduos, grupos, segmentos ou
faces (GOODSON, 1997, p. 44) que possuem caractersticas prprias, as subculturas
disciplinares, e encetam verdadeiras batalhas pelo espao de domnio de sua subcultura
sobre as outras. Contudo, h um grupo de tradies principais, que permeiam todas
discusses, e que constituem um ncleo duro da comunidade disciplinar, que articula e
capta integrantes para esta comunidade e os mantm coesos, dando-lhe condies de
defesa de sua comunidade, ainda que convivam com as tradies e elementos
constitutivos prprios de cada subcultura (GOODSON, 2001).
As disciplinas esto, ento, relacionadas e atribudas a grupos de
profissionais que, ao se identificam como pertencentes a uma comunidade disciplinar
que tem tradies que os ajuntou ao redor de sua especialidade disciplinar, ergue
barreiras impedindo o livre fluxo com outros profissionais de outras comunidades. Ao
serem identificados como pertencentes a uma outra disciplina, com especialidade,
contedo e tradies especficas, o outro profissional caracterizado como no
pertencente quela comunidade, e, portanto, passvel de excluso.
Apesar das comunidades se reconhecerem como partcipes de uma tradio
disciplinar so representantes de interesses e valores distintos, formando grupos, o que
leva a disciplina a se dispor sobre frouxas coeses historicamente pontuais, j que cada
um dos grupos persegue seus prprios objetivos de formas diferentes.
Nesta perspectiva, as disciplinas so influenciadas no apenas por fatores
scio-polticos externos, mas tambm por fatores intrnsecos a ela, atravs dos embates
das subculturas que a compem e dos grupos representativos que a professam. Estes
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grupos associados sob a gide de uma disciplina mantm-se em conflitos de interesses,
onde a cada momento histrico poderia se observar um deles emergindo e dominando a
disciplina, de forma que identificaramos estas variaes ao longo do tempo de
existncia de uma disciplina. Esta competio pode ser por idias e espao, mas pode
ser tambm por financiamentos. De todas as formas, o prestgio social sempre est em
jogo, e
(...) necessrio considerar a competio dos grupos disciplinares pelos recursos e influncias, como uma parte de um conjunto muito mais vasto de influncias culturais.(GOODSON, 1997, p. 44-45).
(...) os interesses materiais e pessoais dos professores esto associados ao estatuto da sua disciplina (IDEM, p. 46).
No obstante, qualquer que seja o grupo disciplinar dominante a cada
tempo, a poltica vigente e as transformaes scio-culturais na qual estiver imersa, a
comunidade disciplinar tem como misso conservar a disciplina em padres tais que a
captao de recursos e o apoio ideolgico para a permanncia do status scio-curricular
estejam garantidos. E isto somente ser possvel atravs de retricas legitimadoras da
comunidade que mostrem que a disciplina, apesar das disputas e embates internos, um
todo integrado, pois as disciplinas bem sucedidas tm sua face visvel com a aparncia
de um monlito mitificado que existe independentemente da sua realizao especfica
como prtica estruturada ou institucionalizada (GOODSON, 1997, p. 51).
Mas aqui, no se deve perder de foco que apesar de as disciplinas deverem
parecer como monlitos, elas de fatos so constitudas de muita discusso e lutas
internas. Assim, por trs da aparente estabilidade e solidez de uma disciplina, da
identificao de seus membros atravs das comunidades de especialistas disciplinares,
esto seus grupos disciplinares em constante conflito para fazerem valer seus prprios
preceitos, aliado s presses externas que podem levar este conglomerado slido a
ruir e se metamorfosear ou mesmo deixar de existir enquanto entidade nica e isolada,
desaparecendo ou sendo integrada a novos aglomerados, conforme o prprio processo
constitucional destas, pois, as disciplinas no so entidades monolticas mas, antes,
amlgamas flutuantes de subgrupos e de tradies que, atravs da contestao e do
compromisso, influenciam o rumo das mudanas (GOODSON, 2001, p. 101).
A comunidade disciplinar e suas tradies so elementos cruciais na
definio e manuteno de uma disciplina nos indivduos que a professam, porm estes
se aliam aos contedos, s finalidades ou objetivos da presena de uma disciplina em
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um currculo, aos seus mtodos, aos exerccios e s avaliaes, dando-nos assim um
panorama mais completo do que uma disciplina e de seu processo de construo
scio-histrico.
Cada disciplina tem suas prprias finalidades, ou objetivos, que so o que as
mantm em sua posio curricular, pois, como se articulam com os objetivos
institucionais mais especficos e os objetivos educacionais mais gerais
(BITTENCOURT, 2004, p. 41) expressam, em seus prprios objetivos, as influncias
sociais, econmicas, polticas, histricas, culturais de seu entorno. A identificao
destes objetivos ou finalidades passa pelos textos oficiais, como leis, decretos,
programas oficiais, mas a simples observao destes no se basta para a identificao
dos objetivos reais, pois nem todas as finalidades podem estar explicitadas nos textos
oficiais, j que novos ensinos s vezes se introduzem nas classes sem serem
explicitamente formulados. Alm disso, pode-se perguntar se todas as finalidades
inscritas nos textos so de fato finalidades reais (CHERVEL, 1990, p. 189). Assim, ao
se buscar as finalidades ou objetivos de uma disciplina, necessrio que se observe no
apenas as fontes oficiais que explicitam esses objetivos, mas tambm completar a
informao com os dados do cotidiano real da sala de aula.
Alm da explicitao das finalidades, para a compreenso das origens e
trajetrias de uma disciplina, necessrio que se compreenda como estas influenciam
na seleo dos contedos, mtodos, exerccios e avaliaes, pois todos os elementos so
retroalimentados e derivam, em circulao, das escolhas e modificaes que se fazem.
Oriundo, primariamente, das finalidades da disciplina, os contedos acabam
expressando a seleo da subcultura dominante e mostram-se como os principais fatores
no controle sobre as populaes escolares. As relaes de poder implcitas nas selees
do contedo so patentes, observadas pela incluso de um contedo em detrimento de
outro nos currculos.
Segundo Goodson (2001), os contedos tendem a se afastar, ao longo da
histria da disciplina, de uma proposta mais prxima das necessidades e interesses do
aluno para representar os interesses profissionais da carreira docente, promovendo
ligaes institucionais com as organizaes burocrticas cuja hegemonia na definio
do conhecimento culturalmente vlido difcil de contrariar (GOODSON, 2001, p.
106) e, mesmo quando h resistncia por parte dos profissionais a esta hegemonia do
conhecimento, estabelecem-se dicotomias entre as prerrogativas profissionais e os
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interesses dos alunos, sempre com o devido cuidado para que no se perca a
credibilidade por ciso drstica de idias e contedos.
Martins (1988, p. 70) chama a ateno que os contedos devem ser
selecionados baseados em critrios de validade, significao, possibilidade de
elaborao pessoal e utilidade do contedo, assim, a seleo no apenas um ato
pedaggico, mas tambm um ato poltico, e indica o que se pretende com a disciplina.
A anlise histrica da seleo dos contedos pode apresentar uma
continuidade atravs das pocas, com similaridades importantes onde
(...) todos os manuais, ou quase todos, dizem ento a mesma coisa, ou quase isso. Os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a coleo de rubricas e captulos, a organizao do corpus de conhecimento, mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exerccios praticados so idnticos, com variaes aproximadas (CHERVEL, 1990, p 203).
Estes contedos no podem ser entendidos de forma isolada da seleo dos
seus mtodos, dos exerccios de fixao ou comprobatrios e das formas de avaliao
propostas, j que eles formam um ncleo quase nico. Ao longo da construo scio-
histrica de uma disciplina, os mtodos convencionais so confrontados com os novos e
com as inovaes que a cultura educacional possa assinalar, levando assim a adaptaes
e reprogramaes dos conted