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DIOGO ARTUR BIANCO NAVIA AS MELOPÉIAS PARA FLAUTA DE CÉSAR GUERRA-PEIXE: Um estudo interpretativo Belo Horizonte - MG Escola de Música da UFMG 2012 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de mestre. Linha de Pesquisa: Performance Orientadora: Prof.ª Dra. Ana Cláudia de Assis

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  • DIOGO ARTUR BIANCO NAVIA

    AS MELOPIAS PARA FLAUTA DE CSAR GUERRA-PEIXE: Um estudo interpretativo

    Belo Horizonte - MG

    Escola de Msica da UFMG 2012

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica da Escola de Msica da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de mestre. Linha de Pesquisa: Performance Orientadora: Prof. Dra. Ana Cludia de Assis

  • 1

    N325m Navia, Diogo Artur Bianco. As melopias para flauta de Csar Guerra-Peixe: um estudo interpretativo [manuscrito] / Diogo Artur Bianco Navia. 2012. 61 f., enc. Orientador: Ana Cludia de Assis. Linha de pesquisa: Performance musical. Dissertao (mestrado em Msica) Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Msica. Inclui bibliografia. Inclui anexos e CD-ROM. 1. Flauta. 2. Msica anlise. 3. Guerra-Peixe, Csar, 1914-1993. I. Assis, Ana Cludia de. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Msica. III. Ttulo. CDD: 788

  • 2

    Ao Vincius

  • 3

    Agradecimentos Gostaria de manifestar, aqui, os meus agradecimentos:

    Em primeiro lugar, agradeo imensamente Prof. Dra. Ana Cludia

    de Assis, pela sua orientao sempre generosa.

    Ao Prof. Dr. Maurcio Freire Garcia, pelos valiosos ensinamentos e

    pela dedicao.

    A todos os professores que contriburam para a minha formao

    durante o perodo do mestrado.

    Ao pessoal da secretaria, que esteve sempre disposto a ajudar no que

    fosse necessrio.

    Agradeo ainda aos meus pais e familiares, ao meu irmo Gabriel, por

    diversas colaboraes no trabalho, a Douglas Silva, aos colegas do

    mestrado, a Cidla Barbosa, aos msicos que participaram do recital e a

    todos que, de alguma forma, participaram de todo esse processo.

    Por fim, a minha gratido Capes que, atravs da bolsa, tornou

    possvel uma maior dedicao a este trabalho.

  • 4

    Resumo O principal objetivo deste trabalho discutir alguns aspectos composicionais e interpretativos das trs Melopias para flauta solo de Csar

    Guerra-Peixe. As Melopias foram escritas em momentos diferentes da

    trajetria do compositor, trazendo consigo caractersticas que revelam, em

    parte, convices e questionamentos dos perodos respectivos s

    composies. Apresentamos, assim, uma anlise, elaborada a partir do

    mtodo de composio do prprio Guerra-Peixe: Melos e Harmonia Acstica.

    Essa anlise busca, atravs da identificao dos elementos meldicos,

    propor algumas solues interpretativas.

    Palavras-chave: Guerra-Peixe, Melopia, performance.

    Abstract

    The main goal of this paper is discussing compositional and

    interpretive aspects of Csar Guerra-Peixes three Melopias for solo flute.

    The pieces were written in distinct moments, presenting features that reveal,

    in part, convictions and questions from three diferente compositional periods.

    Thus, we provide an analysis based on Guerra-Peixes own composition

    method: Melos e Harmonia Acstica. By identifying melodic elements, our

    analysis presents solutions for the interpretive problems posed by each

    Melopia.

    Keywords: Guerra-Peixe, Melopia, performance.

  • 5

    Lista de ilustraes Figura 1: Melos e Hamornia Acstica, p.11....................................................28

    Figura 2: Srie da Melopia n1. Carta enviada a Curt Lange em 15 de abril

    de 1947 ..........................................................................................................29

    Figura 3: srie da Melopia n1, Manuscrito 1................................................30

    Figura 4: Melopia n1, 1 movimento, comp.1 a 8. Manuscrito 1..................30

    Figura 5: Melopia n1, 1 movimento, comp.1..............................................31

    Figura 6: Melopia n1, 1 movimento, comp.10............................................31

    Figura 7: Melopia n1, 1 movimento, comp.3..............................................31

    Figura 8: Melopia n1, 1 movimento, comp.8..............................................31

    Figura 9: Melopia n1, 1 movimento, comp.29 e 30....................................31

    Figura 10: Melopia n1, 1movimento, comp.5. Manuscrito 1......................32

    Figura 11: Melopia n1, 1 movimento, comp.5 e 6......................................32

    Figura 12: Melopia n1, 1 movimento, comp.41 a 44..................................32

    Figura 13: Melopia n1, 1 movimento, comp.13 a 15..................................33

    Figura 14: Melopia n1, 1 movimento, comp.41 a 45..................................33

    Figura 15: Melopia n1, 1 movimento, comp.46 a 48..................................34

    Figura16: Melopia n1, 1 movimento, comp.52 a 55..................................34

    Figura 17: Melopia n1, 2 movimento, comp.1 a 6. Manuscrito 1................35

    Figura 18: Melopia n1, 2 movimento, comp.1 a 11....................................36

    Figura 19: Melopia n1, 2 movimento, comp.12 a 25..................................36

    Figura 20: Melopia n1, 2 movimento, comp.26 a 34..................................37

    Figura 21: Melopia n1, 2 movimento, comp.35 a 41..................................37

    Figura 22: Melopia n1, 3 movimento, comp.1. Manuscrito 1......................38

    Figura 23: Melopia n1, 3 movimento, comp.1 a 3......................................38

    Figura 24: Melopia n1, 3 movimento, comp.6 a 8......................................38

    Figura 25: srie da Melopia n2, Manuscrito 2..............................................40

    Figura 26: Melopia n2, 1 movimento, comp. 1 a 5. Manuscrito 2.............41

    Figura 27: Melopia n2, 1 movimento, comp.1 a 4......................................41

    Figura 28: Melopia n2, 1 movimento, comp.5 a 14....................................41

    Figura 29: Melopia n2, 1 movimento, comp.16 a 20..................................42

    Figura 30: Melopia n2, 1movimento, comp. 22 a 24..................................42

  • 6

    Figura 31: Melopia n2, 1 movimento, comp. 22 a 29.................................43

    Figura 32: Melopia n2, 2 Movimento, comp. 1...........................................44

    Figura 33: Melopia n2, 2 Movimento, comp. 15.........................................44

    Figura 34: Melopia n2, 1 Movimento, comp. 5...........................................44

    Figura 35: Melopia n2, 2 Movimento, comp. 1 a 4.....................................44

    Figura 36: Melopia n2, 2 Movimento, comp.15 a 18..................................45

    Figura 37: Melopia n2, 2 movimento, comp. 24 a 34.................................45

    Figura 38: Melopia n2, 3 Movimento, comp.1............................................46

    Figura 39: Melopia n2, 3 Movimento, comp.1 e 2......................................46

    Figura 40: Melopia n2, 3 Movimento, comp.1 a 7......................................46

    Figura 41: Melopia N2, 3 movimento, comp. 12 a 22 ...............................47

    Figura 42: Melopia n2, 3 movimento, comp. 30 a 36.................................47

    Figura 43: Melopia n3, 1 Movimento, comp.1 a 6. Manuscrito 1...............48

    Figura 44: Melopia n3, 1 movimento, comp. 1...........................................49

    Figura 45: Melopia n3, 1 movimento, comp. 13.........................................49

    Figura 46: Melopia n3, 1 movimento, comp. 3...........................................49

    Figura 47: Melopia n3, 1 movimento, comp. 18.........................................50

    Figura 48: Melopia n3, 1 movimento, comp. 7 e 8.....................................50

    Figura 49: Melopia n3, 1 movimento, comp. 4 a 6.....................................50

    Figura 50: Melopia n3, 1 movimento, comp. 13 a 23.................................51

    Figura 51: Melopia n3, 1 movimento, comp. 30 e 31.................................52

    Figura 52: Melopia n3, 2 movimento, comp. 1 e 2.....................................52

    Figura 53: Melopia n3, 2 movimento, comp. 1 a 5. Manuscrito 3..............52

    Figura 54: Melopia n3, 2 movimento, comp. 13 a 16.................................53

    Figura 55: Melopia n3, 2 movimento, comp. 3 a 7.....................................53

    Figura 56: Melopia n3, 2 Movimento, comp. 23 a 28.................................54

    Figura 57: Melopia n3, 3 Movimento, comp. 1 a 7. Manuscrito 3..............54

    Figura 58: Melopia n3, 3 Movimento, comp. 6 a 8.....................................55

    Figura 59: Melopia n3, 3 Movimento, comp. 16 a 20.................................55

    Figura 60: Melopia n3, 3 Movimento, comp. 19 a 26.................................56

    Figura 61: Melopia n3, 3 Movimento, comp. 30 a 38.................................56

    Figura 62: Melopia n3, 3 Movimento, comp. 46 a 48.................................57

  • 7

    Sumrio Introduo ........................................................................................................8

    Captulo 1: Guerra-Peixe e as Melopias ...................................................12

    Captulo 2: Entre Melos e Melopias ..........................................................23 As trs Melopias para flauta solo .................................................................26

    Melopia n1 ..................................................................................................29

    Melopia n2 ..................................................................................................39

    Melopia n3 ..................................................................................................48

    Consideraes finais ...................................................................................58 Referncias Bibliogrficas ..........................................................................60 Anexos ..........................................................................................................62

  • 8

    Introduo

    Lembro-me da primeira vez em que escutei o nome Guerra-Peixe.

    Ainda criana, escutava meu irmo mais velho estudar uma msica no violo.

    Por alguma razo ela me despertou certo interesse e, um dia, perguntei a ele

    que msica era aquela e quem era o compositor. E foi assim que vim a

    conhecer Guerra-Peixe, atravs do seu Preldio 5 para violo.

    Anos mais tarde, depois de muito ter ouvido a respeito desse

    compositor, fui a um festival de msica em Curitiba e um colega da turma de

    flauta executou, em aula, a Melopias n3. Assim como havia ocorrido com o

    Preldio 5, me interessei e decidi, ento, estudar essa obra. Soube que

    haviam mais duas Melopias para flauta solo e, para minha surpresa, um dia

    encontrei cpias dos manuscritos das Melopias 1 e 2 entre outras partituras

    de msica brasileira que eu j possua.

    As trs Melopias foram escritas entre os anos de 1947 e 1950 e

    esto inseridas em fases composicionais distintas: a Melopia n1 foi composta em fevereiro de 1947, a Melopia n2, em dezembro de 1948,

    ambas pertencentes Fase Dodecafnica do compositor (1944-1949), e a

    Melopia n3, de abril de 1950, Segunda Fase Nacionalista (1949-1993).

    Apesar de explorarem sonoridades to diferentes, notei certas semelhanas

    entre elas. Observei que as peas foram construdas a partir de ideias,

    motivos, que se repetem e se transformam no decorrer dos movimentos.

    Notei tambm que o compositor no utiliza a barra tradicional de compasso,

    mas uma barra que divide os grupos de notas de maneira irregular. Outras

    questes foram aparecendo e assim decidi realizar essa pesquisa.

    Porm, partindo do ponto de vista do intrprete, como a pesquisa

    poderia colaborar para a performance dessas obras? At que ponto o

    trabalho acadmico pode colaborar para a performance musical? No

    buscamos, necessariamente, respostas a essas perguntas, mas

    principalmente as tomamos como um guia para definir as escolhas

    metodolgicas. Dessa forma, optamos por apresentar essa dissertao em

    dois captulos, sendo, o primeiro, uma contextualizao histrica e, o

    segundo, um estudo interpretativo das trs Melopias.

  • 9

    No Primeiro Captulo, Guerra-Peixe, a flauta e as Melopias,

    buscamos contextualizar a composio dessas obras na trajetria de Guerra-

    Peixe, evidenciando a relao entre o compositor e as mudanas e

    questionamentos estticos pelos quais passou durante o perodo de

    composio das Melopias.

    Para tanto, procuramos realizar essa contextualizao levando em

    conta trabalhos que apresentam diferentes olhares sobre esse perodo.

    Pouca coisa foi dita a respeito da flauta na msica de Guerra-Peixe, sendo os

    dois trabalhos mais significativos as dissertaes de mestrado: A flauta na

    msica de cmara de Guerra-Peixe (MALAMUT, 1999); e A

    Comunicabilidade nas peas dodecafnicas para flauta e piano de Csar

    Guerra-Peixe (VIANA, 2006). Um outra dissertao ainda nos elucidou alguns

    recursos composicionais utilizados por Guerra-Peixe: A Fase Dodecafnica

    de Guerra-Peixe; luz das impresses do compositor (LIMA, 2002). Para a

    recomposio histrica nos apoiamos em, principalmente, cinco pilares:

    Msica Viva e H. J. Koellreutter (KATER, 2001), Msica contempornea

    brasileira (NEVES, Jos Maria); Os Doze Sons e a Cor Nacional:

    Conciliaes estticas e culturais na produo musical de Csar Guerra-

    Peixe (1944 - 1954) (ASSIS, 2006); O Debate no campo do nacionalismo

    musical no Brasil (Anos 40 e 50): o compositor Guerra Peixe (EGG, 2004); e

    um documento escrito por Guerra-Peixe, no qual constam informaes e

    reflexes valiosas sobre a sua prpria trajetria. Este documento est

    organizado em 9 captulos que constituem uma apostila, encontra-se

    localizado na Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais e, segundo

    o autor, este conjunto de notas abrange as atividades artsticas desde os

    estudos iniciais at maro de 19711.

    No Segundo Captulo, Entre Melos e Melopias, apresentamos uma

    anlise das obras, voltada para a performance. Para a realizao dessa

    anlise, partiremos do mtodo de composio Melos e Harmonia Acstica

    (1988), escrito pelo prprio Guerra-Peixe. Durante o meu curso de graduao

    na Universidade Estadual de Minas Gerais, na matria Estruturao 1 Cada captulo apresenta uma contagem particular de pginas, portanto, ao nos referirmos Apostila, mencionaremos o captulo em numerais romanos e logo em seguida o nmero da pgina.

  • 10

    Meldica, ministrada pelo Professor Nelson Salom, tive acesso aos

    conceitos do Melos e Harmonia Acstica e suas aplicabilidades. Trata-se de

    um mtodo de composio, que aborda aspectos da melodia, desde a

    simples organizao de alturas, depois combinando essas alturas com o

    ritmo e, por ltimo, criando relaes entre duas ou mais vozes. Para o

    trabalho final dessa matria, deveramos apresentar trechos de melodias nas

    quais pudssemos encontrar os elementos meldicos presentes no Melos.

    Ao lembrar desse trabalho que surgiu a idia de abordar as Melopias a

    partir das consideraes do prprio Guerra-Peixe sobre estruturao

    meldica. Consideramos que, conhecendo a estrutura da melodia, podemos

    compreend-la melhor e, assim, interpret-la com maior autonomia. As

    Melopias podem ser compreendidas como grandes melodias e, dessa

    forma, justifica-se uma anlise baseada na compreenso da estrutura

    meldica.

    O nosso objetivo , no s propor uma possvel leitura para as

    Melopias, mas tambm divulgar a obra de Guerra-Peixe, que ao nosso ver

    ainda pouco executada. Durante a pesquisa encontramos apenas duas

    gravaes da terceira Melopia, sendo que as duas primeiras no

    apresentam nenhum registro sonoro. Assim, faz-se importante nos

    debruarmos cada vez mais sobre a obra desse compositor.

  • 11

    Captulo 1

    Guerra-Peixe, a flauta e as Melopias

    Guerra-Peixe nos d uma pista de qual o significado de Melopia,

    dizendo que Melos a expresso que os gregos da Antiguidade usavam

    para indicar os estudos especficos do ponto de vista unicamente intervalar

    (GUERRA-PEIXE, 1988, Preldio). A palavra melopeia, em grego melopoia, seria, em seu uso

    clssico, o que traduziramos com algumas perdas como "o compor". uma palavra formada a partir de duas: a palavra mlos, cujo sentido primeiro de "membro", "parte" do corpo, e da algo como um pedao da msica, uma frase musical, uma melodia, e -poia, forma derivada do verbo poiw, o mesmo que nos dar, por exemplo, a palavra poesia, cujo significado mais genrico seria o de "feitura", "produo". Assim, temos o melopois, o compositor. A melopoia seria, ento, a atividade do compositor.

    E qual seria essa atividade? Lxicos modernos apresentam como primeira acepo (e, possivelmente, a mais conhecida, a que nos deu a palavra "melopeia" nas lnguas modernas) "melodia, msica" e como segunda "teoria musical". Parece-nos, portanto, que seu uso, diacronicamente, deu-se em relao tanto a um conhecimento prtico do ofcio de compor, que simplesmente fazer msica, criar melodias, quanto a uma "teoria musical", em contraposio execuo de instrumentos.2

    A escolha do nome Melopias pode, ento, revelar uma reflexo do

    compositor quanto ao seu fazer musical, fato que nos levou a querer

    compreender melhor o momento em que foram escritas essas peas e qual a

    relao que a histria guarda com a msica em si.

    Tendo em vista que as Melopias para flauta solo foram escritas em

    momentos diferentes da trajetria de Guerra-Peixe, faz-se necessrio uma

    reflexo sobre as duas fases onde essas obras se encontram: a fase

    dodecafnica, correspondente ao perodo de 1944 a 1949 e a segunda fase

    nacionalista, a partir de 1949.

    Antes, porm, importante relembrar que, alm dessas duas fases, a

    produo musical de Guerra-Peixe compreende um outro momento,

    conhecido como Fase Inicial ou Primeira Fase Nacionalista e que

    corresponde ao perodo entre 1939 e 1943. considerado um perodo de 2 Definio elaborada por Douglas Silva, mestrando em Letras/Grego na Universidade Federal de Minas Gerais, em colaborao para o presente trabalho; 15/09/2012.

  • 12

    formao, no qual o compositor esteve envolvido com a msica popular e

    com os estudos no Conservatrio Brasileiro de Msica, como veremos a

    seguir.

    Csar Guerra-Peixe nasceu em Petrpolis, Rio de Janeiro, a 18 de

    maro de 1914. Com o pai, ferrador de profisso e msico amador,

    aprendeu, aos seis anos de idade, um pouco de violo; a partir dos sete,

    passou a participar dos choros de Petrpolis e aprendeu, tambm,

    bandolim, violino e piano. (GUERRA-PEIXE, apud MALAMUT, 1999, p.13).

    Pode-se notar que a relao de Guerra-Peixe com a msica popular

    comea j durante a sua infncia.

    Em 1925, matriculou-se na Escola de Msica Santa Ceclia para

    estudar, por msica3, violino e piano. Aps trs meses de estudo, com

    onze anos de idade, comeou a se apresentar nos recitais da referida

    Escola, onde iniciou tambm seus estudos de Harmonia elementar.

    (GUERRA-PEIXE, apud MALAMUT, 1999, p.13).

    Em 1938, animado com as ideias de Mrio de Andrade no seu

    Ensaio sobre a Msica Brasileira, Guerra-Peixe elegeu Newton Pdua4

    como seu professor de Harmonia (GUERRA-PEIXE, 1971, I, p.2).

    Ingressou, em 1941, no Conservatrio Brasileiro de Msica, onde dedicou-

    se tambm ao estudo de Contraponto e Fuga, Instrumentao e

    Composio, sempre sob a orientao de Newton Pdua. Guerra-Peixe foi

    o primeiro aluno a se formar no curso de composio do Conservatrio

    Brasileiro de Msica do Rio de Janeiro, em 1943.

    3 Expresso utilizada por Guerra-Peixe em seu ltimo curriculum vitae, sem data, apresentado em Malamut (1999), p.13. 4 Newton de Menezes Pdua, professor e violoncelista, nasceu no Rio de Janeiro em 03 de novembro de 1894. Iniciou seus estudos musicais em 1905, no Instituto Nacional de Msica. () Em 1927, estudou contraponto, fuga e harmonia com Paulo Silva e, mais tarde, composio e orquestrao com Francisco Braga, histria da msica com Octvio Bevilacqua, regncia com Walter Burle Marx, msica sacra com frei Pedro Sinzig e harmonia com Agnello Frana. Foi nomeado, em 1934, professor interino de harmonia, anlise harmnica e construo musical na Escola Nacional de Msica e, em 1942, professor interino de harmonia Superior, cadeira na qual foi efetivado dois anos depois. Assumiu, posteriormente, a ctedra de composio na Escola Nacional de Msica e no Conservatrio Brasileiro de Msica. () fundador da cadeira n 34 da Academia Brasileira de Msica. (Currculo obtido no site da Academia Brasileira de Msica: http://www.abmusica.org.br/html/fundador/fundador34.html, acessado no dia 17 de julho de 2012).

  • 13

    Guerra-Peixe comps 21 obras entre 1939 e 1943 que, exceo de

    Fibra de Heri e Sute Infantil n.1, foram interditadas para execuo pelo

    prprio compositor, provavelmente durante a Fase Dodecafnica. Segundo

    ASSIS(2006), essa interdio est ligada ao carter tradicional presente

    nessas obras e considerado, pelo compositor, como anacrnico em relao

    ao estilo atual.

    Da Primeira Fase Nacionalista, constam uma Sinfonia e diversas

    obras para diferentes formaes de grupos de cmara, das quais, sete foram

    estreadas entre 1939 e 1943, duas delas no Programa Oficial Hora do

    Brasil (Guerra-Peixe, 1971, VI, p.20). possvel afirmar que a essa altura,

    Guerra-Peixe j possua certa experincia como compositor.

    Porm um passo decisivo e transformador ocorre em 1944, quando

    Guerra-Peixe decide estudar msica moderna com o msico alemo,

    residente no Brasil, Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005). Koellreutter

    realizou uma intensa atividade como msico na Europa, e esteve em contato

    com importantes nomes do cenrio musical da poca. Estudou flauta com

    Gustav Scheck e frequentou os cursos e conferncias sobre Composio

    Moderna, ministrados por Paul Hindemith, ambos em Berlim. Entre 1936 e

    1937, foi expulso da instituio onde estudava, a Staaliche Akademische

    Hochschule fr Musik, por estar envolvido em atividades antifascistas.

    Mudou-se para Genebra, a fim de concluir seu curso no Conservatrio de

    Msica da cidade, passando ento a estudar flauta com Marcel Moyse e a

    frequentar os cursos extracurriculares com o regente Hermann Scherchen

    (KATER, 2001).

    Em 16 de novembro de 1937, Koellreutter chegou ao Brasil, e j no

    ano seguinte comeou a movimentar a cena musical do Rio de Janeiro. Ao

    lado de nomes importantes como Luiz Heitor Corra de Azevedo, Braslio

    Itiber, Octvio Bevilcqua, Egydio de Castro e Silva, dentre outros, fundou,

    em 1938, o Grupo Msica Viva, cujas atividades mais significativas (audies

    e concertos) tiveram incio somente em 1939 e estenderam-se at 1950.

    KATER(2001) prope uma leitura que compreende a trajetria do Msica

    Viva em trs momentos diferentes: de 1938 a 1944; de 1944 a 1946; de 1946

    at o seu desmembramento, por volta de 1950.

  • 14

    O I Momento (1938-1944) foi marcado pela integrao e pela

    coexistncia de tendncias estticas e ideolgicas muito diferentes,

    agrupando personalidades j atuantes e conhecidas no ambiente musical

    como Heitor Villa-Lobos e Camargo Guarnieri a jovens compositores como

    Claudio Santoro.

    O II Momento (1944-1946) tem como marco inicial o Manifesto 1944

    documento assinado por antigos e novos integrantes do grupo: Aldo Parisot,

    Claudio Santoro, Guerra-Peixe, Egydio de Castro e Silva, Joo Breitinger,

    Mirella Vita, Oriano de Almeida e Koellreutter. Atravs do Manifesto 1944, o

    Msica Viva demarca sua posio esttica em defesa de uma nova msica,

    criada pelo ncleo de compositores que formado no mesmo ano e teve

    como seus principais representantes Claudio Santoro, Eunice Katunda, Edino

    Krieger e o prprio Guerra-Peixe, todos alunos de Koellreutter e interessados

    na composio de msica atonal-dodecafnica. Nesse momento ocorre uma

    reorganizao do grupo, que, com a sada de representantes da ala mais

    tradicional da msica brasileira como Guarnieri e Villa-Lobos, adquire uma

    maior coeso e passa a contar com a participao de compositores mais

    jovens. A partir de 1944 o grupo assume uma posio ofensiva,

    conquistando maior espao nos meios de comunicao (KATER, 2001, p.56).

    O III Momento (1946-1950) teve incio com a publicao do Manifesto

    1946, e , segundo KATER (2001), a fase que buscou estabelecer uma

    posio ideolgica autntica, uma consolidao da personalidade do

    movimento. Durante esse perodo, Claudio Santoro compareceu ao II

    Internacional de Compositores e Crticos Musicais Progressistas, ocorrido de

    20 a 29 de maio de 1948, em Praga. Nesse encontro foram propostas novas

    diretrizes para a msica em todo o mundo, que defendiam, basicamente: a

    adeso dos compositores cultura nacional de seus pases, defendendo-a

    de falsas tendncias cosmopolitas; o fazer de uma msica que expressasse

    os sentimentos e as altas ideias progressistas das massas populares;

    educao musical para as massas a fim de liquidar o analfabetismo musical;

    e dedicao msica vocal. Claudio Santoro foi o nico integrante do Msica

    Viva que compareceu ao Congresso, em Praga, e retornou com uma postura

    radical em relao msica dodecafnica, assumindo a defesa de um

    nacionalismo progressista. Esses acontecimentos causaram grande

  • 15

    impacto no Msica Viva, culminando com a evaso de importantes figuras,

    como o prprio Claudio Santoro, Eunice Katunda e Guerra-Peixe.

    Guerra-Peixe aderiu ao Msica Viva em 1944, quando comeou a

    frequentar as aulas de Koellreutter. Sobre esse assunto, o professor alemo

    relata, em entrevista concedida a Malamut (1999): Eu dei aula para Guerra-Peixe durante muito tempo. Ele estudou comigo composio, dodecafonia e toda a parte moderna. um dos poucos compositores brasileiros que conseguiu um estilo pessoal. Ele fundou comigo o Grupo Msica Viva e era um dos membros mais ativos do grupo, ao lado de Claudio Santoro, Edino Krieger e dessa turma que formou o grupo naquele tempo. (Koellreutter, H. J., apud MALAMUT, 1999, p.17)5

    Koellreutter foi a nica pessoa que chegou ao Brasil para transmitir

    informaes sobre a msica contempornea da poca, segundo Guerra-

    Peixe(GUERRA-PEIXE, 1971, V, p.1), que frequentou as suas turmas de

    Anlise, Histria e Esttica da Msica, Problemas de Msica para Microfone,

    Harmonia Acstica e Tcnica dos Doze Sons (GUERRA-PEIXE, 1971, I,

    p.2).

    A partir dos estudos com Koellreutter, teve incio a Fase Dodecafnica

    de Guerra-Peixe, que se estendeu at 1949 e tem dois momentos: o primeiro,

    refere-se ao aprendizado da tcnica dos 12 sons e suas possibilidades no

    plano da criao musical. Podemos dizer que nesse primeiro momento ele

    ainda estava preso ortodoxia da tcnica e, como aponta Mariz (1983,

    p.304), seu primeiro trabalho dodecafnico, a Sonatina, para flauta e

    clarineta, de 1944, foi intencionalmente antinacionalista. A partir do Trio de

    Cordas, de 1945, considerado o marco que divide a produo dodecafnica

    do compositor, comeou a introduzir elementos de prticas musicais

    populares com o intuito de tornar a sua obra dodecafnica mais acessvel ao

    pblico da sua poca. Segundo o prprio compositor, foram enxertados, no

    Andante do Trio de Cordas, de 1945, contornos meldicos que, conquanto

    ainda vagamente, sugerissem a modinha brasileira (GUERRA-PEIXE, 1971,

    V, p.2).

    5 Como pode-se observar, Koellreutter considera que Guerra-Peixe tambm foi fundador do Msica Viva, porm, como visto anteriormente, o grupo j havia sido formado anos antes. Considerando que o depoimento foi realizado mais de cinquenta anos aps a criao do grupo, pode ter havido uma confuso de datas.

  • 16

    No primeiro momento, Guerra-Peixe comps sete obras para flauta:

    Sonatina para flauta e clarineta (1944), Inveno para flauta e clarineta

    (1944), Sonata para flauta e clarineta (Ensaio) (1944), Msica para flauta e

    piano (1944), Noneto para flauta, clarineta, fagote, trompete, trombone,

    piano, violino, viola e violoncelo (1945), Quarteto Misto para flauta clarineta,

    violino e violoncelo (1945) e Allegretto com moto para flauta e piano (1945).

    Em 1971, Guerra-Peixe, ao se referir a esse momento, demonstra

    certa insatisfao com a sua produo, utilizando como exemplo uma das

    obras mais representativas desses dias, o Quarteto Misto, de 1945: Do exagerado conceito resultam problemas insuperveis, em especial no que tange ao ritmo pois torna-se evidente a impresso de falta de unidade formal. Uma das obras mais representativas desses dias o Quarteto Misto, de 1945, cujas dificuldades, quase sem apoio in tempo, impossibilitam a sua execuo tanto no Rio de Janeiro quanto em Buenos Aires. O Quarteto Misto algo como a pintura de Kandinsky. Seja como for, a tcnica dos doze sons se restringe to somente ao papel de garantir a atonalidade; jamais um real valor construtivo no seu total. (GUERRA-PEIXE, 1971)

    Essa insatisfao com algumas obras de 1945 o levou, em 1947, a

    uma reviso buscando alcanar maior aproximao com intrpretes e com o

    pblico. A preocupao de Guerra-Peixe era maior com o resultado musical

    de suas obras do que com as garantias atonais e antinacionalistas da

    msica atonal-dodecafnica.

    As obras anteriores ao Trio de Cordas de 1945 apresentavam, nas

    palavras do prprio compositor, problemas insuperveis. A partir desse Trio,

    Guerra-Peixe passou a demonstrar a inteno de conferir uma cor nacional6

    sua obra, bem como de aumentar a comunicabilidade7 de suas peas: (...) um novo caminho experimentado ao enxertar no Andante do Trio de Cordas, de 1945, contornos meldicos que, conquanto ainda vagamente, sugerissem a Modinha brasileira. A sugesto longnqua e isso leva o compositor a estreitar suas relaes com amigos desenhistas e pintores em busca de analogias e encontra indcios animadores a serem testados na composio. Tenta igualmente como facilitar a aceitao da msica, simplificando-a 6 Guerra-Peixe, entre 1946 e 1947, desenvolveu o projeto da cor nacional que consistia em

    fundir elementos de prticas musicais populares com princpios dodecafnicos. Mais detalhes, ASSIS (2006). 7 Esse termo utilizado por Guerra-Peixe na Apostila, e no apresenta definio, segundo VIANA(....), para Guerra-Peixe, o termo Comunicabilidade se refere a uma preocupao do compositor com a inteligibilidade de sua msica, que consistiria, principalmente, na apreenso da forma musical por parte do ouvinte, tornada possvel graas a uma certa familiaridade com o material utilizado na composio (melodia, harmonia e ritmo), sem cair, contudo, numa simples repetio de modelos pr-estabelecidos.

  • 17

    para o leigo em dodecafonia. Cria ento centros tonais nas melodias e escreve mesmo, acordes afins com a harmonia clssica. A partir da, surge em sua msica alguma influncia da pintura de Portinari (linhas) e Di Cavalcanti (cores). Algo longnquo, claro. (GUERRA-PEIXE, 1971)8

    Esse novo caminho experimentado por Guerra-Peixe o levou a outras

    tentativas de tornar suas obras mais acessveis ao pblico. No Captulo V

    Principais traos evolutivos da produo musical da Apostila de 1971,

    Guerra-Peixe relata: de 1947 o Duo para flauta e violino, de ritmo dinmico, como alguns quadros de Augusto Rodrigues, bastante unidade

    formal e, o que importante, certa comunicabilidade (GUERRA-PEIXE,

    1971, V, p.3). Esse documento ainda nos mostra como a Pea pra dois

    minutos foi construda a partir de clulas meldicas originadas de uma srie

    de dez sons. Podemos encontrar na Melopia n1 9 elementos que a

    aproximam dessas duas obras estilisticamente. Assim como o Duo, a

    Melopia n1 apresenta ritmo dinmico; unidade formal, obtida atravs da

    utilizao de motivos originados a partir de clulas meldicas, assim como

    realizado na pea pra dois minutos; e, como consequncia dessas duas

    caractersticas, certa comunicabilidade.

    Guerra-Peixe elaborou um documento, no qual ilustra outras

    experincias que realizou nesse sentido: Oitenta exemplos extrados de

    minhas obras demonstrando a evoluo esttica at abril de 1947. Os

    exemplos so apresentados em ordem cronolgica e no contam com

    nenhum comentrio ou explicao a respeito dos trechos utilizados. LIMA

    (2002) apresenta uma anlise desses exemplos evidenciando quais foram os

    traos que marcaram a transformao esttica do compositor. Durante esse

    perodo, Guerra-Peixe utilizou sries livres, simtricas, motivadoras 10 e

    harmonizadoras; explorou o ritmo, buscando, em alguns momentos, uma

    relao com a msica popular. Utilizando-se de sries harmonizadoras, como

    o caso da Melopia n2, chegou a criar um tipo de tonalidade. 8 Guerra-Peixe, em seu Curriculum Vitae, se refere a si mesmo em terceira pessoa, como pode ser observado neste excerto. 9 No catlogo do site Projeto Guerra-Peixe (www.guerrapeixe.com.br) a data de composio da Melopia n1 11 de maro de 1947, porm no Manuscrito 1, h uma anotao no alto da pgina, entre parnteses, que diz fevereiro. possvel que ele tenha feito as anotaes em fevereiro e concluiu a pea no ms seguinte. 10 Srie que d origem a motivos.

  • 18

    Guerra-Peixe, em carta enviada a Curt Lange no dia 15 de abril de

    1947, se refere Melopia, para flauta s11 e apresenta trechos de obras

    para exemplificar conceitos estticos ao amigo musiclogo. Da Melopia,

    Guerra-Peixe apresenta os cinco primeiros compassos do segundo

    movimento e faz tambm um comentrio a respeito da srie: Na MELOPIA

    a srie livre, mas com elementos formais, como na PEA PRA DOIS

    MINUTOS. Temos aqui, ento, um indcio de que a Melopia n1 foi

    composta com a utilizao de uma srie livre e motivadora.

    No mesmo ano que escreveu a primeira Melopia, 1947, Guerra-Peixe

    apresentou um grande nmero de composies e, ainda, revisou doze de

    suas obras, com o intuito de reformular alguns dos problemas que surgiram

    do exagerado conceito que norteou suas primeiras experincias

    dodecafnicas.

    Apesar das investidas em direo a uma cor nacional, o compositor

    ainda se encontrava insatisfeito com os resultados obtidos, como podemos

    conferir no relato abaixo: H cada vez mais insistncia na objetivao de contornos meldicos nacionalizados por meio, tambm, da criao de centros tonais. As obras ficam gradativamente mais acessveis, pelo menos em termos relativos. Prosseguem as discusses com Mozart de Arajo. Contudo, a insatisfao persiste. Sobrevm um perodo de crise na composio, que o autor aproveita para reformular algumas das obras, em especial as que acusam maior diluio rtmica. (GUERRA-PEIXE, 1971)

    No final de 1947, entretanto, nas obras Msica n.1 e Msica n.2 para

    violino solo, experimenta um novo tipo de srie, elaborada em acordes de

    trs sons, novamente sem inteno nacionalizante. Podemos notar que a

    trajetria rumo ao fazer de uma msica nacional no se deu de forma linear.

    Sobre essas obras para violino, Guerra-Peixe nos diz que: Procura um sentido meramente plstico para as melodias, como um desenho cubista em que as linhas so a nica coisa a levar em conta. H volta ao hermetismo evidentemente. (GUERRA-PEIXE, 1971)

    Em 1948, ano em que ocorreu o Segundo Congresso Internacional de

    Compositores e Crticos Musicais Progressistas em Praga, como j referido 11 Trata-se aqui da primeira das trs Melopias e no est numerada na carta pois era a nica escrita at ento.

  • 19

    anteriormente, Guerra-Peixe demonstrava certa insatisfao com sua

    produo dodecafnica, como relata em carta enviada a Curt Lange em 30

    de agosto de 1948: (...). Penso em abandon-la [a tcnica dodecafnica] para escrever mais compreensivelmente para a maioria, j que no querem executar nossas msicas assim... Basta de esperar pelas raras execues para animar. Pois, desse jeito nossas obras no podero ter realmente funo social, porque vivem somente na gaveta e nas conversas. No sei se estou pensando certo. Mas, se o pblico no recebe uma obra, ela no existe. (...). (Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange. Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1948).

    Vemos que, no s a comunicabilidade, mas tambm a funo social

    da msica se apresentam como uma questo para Guerra-Peixe, que,

    paralelamente ao papel de compositor de msica de concerto, mantinha uma

    intensa atividade junto msica popular, atuando como arranjador em rdio e

    como compositor de trilha sonora para filmes. Devemos lembrar que Mrio de

    Andrade, em 1928 no Ensaio sobre a Msica Brasileira, chamava a ateno

    dos compositores nacionalistas para levar em considerao o papel social

    que a msica deveria desempenhar na sociedade brasileira. Assim, Guerra-

    Peixe, ao suscitar essa preocupao com a funo social de sua msica,

    est, de certa forma, se aproximando do discurso nacionalista modernista.

    A insatisfao com sua produo na msica dos doze sons pode ter

    sido o que levou Guerra-Peixe a compor apenas seis obras entre 1948 e

    1949, trs em cada ano. A flauta est presente em duas das trs obras de

    1948, sendo elas: Trio n1 para flauta, clarineta e fagote, e Melopias n2

    para flauta solo. O Trio n1 foi encomendado por Curt Lange para o

    Suplemento Musical da Revista de Msica da Universidade de Cujo, em

    Mendonza, Argentina; a Melopias n2 foi estreada por Esteban Eitler na

    Argentina e, posteriormente, no Uruguai e no Chile (Guerra-Peixe, 1971, VI,

    p.8). Alm dessas duas obras, Guerra-Peixe comps a Miniaturas n.3, para

    piano solo.

    Pode-se afirmar que o interesse de Guerra-Peixe pela flauta, durante

    seu perodo dodecafnico, se deu pelo fato de Koellreutter ser flautista.

    Assim como outros compositores do Msica Viva, Guerra-Peixe escreveu

    para intrpretes prximos, com o objetivo de ver suas obras executadas.

  • 20

    Tambm flautista, Esteban Eitler foi responsvel pela divulgao de

    muitas obras de Guerra-Peixe e outros compositores latino-americanos

    (KATER, 2001). Em carta enviada a Curt Lange, em 09 de maio de 1947,

    Guerra-Peixe relata a impresso que teve do flautista quando o conheceu

    pessoalmente: muito brincalho e me parece um bom rapaz. Guerra-

    Peixe j o havia mencionado em outras cartas, pois o Eitler j tocava a sua

    msica.

    Para termos uma ideia geral da relevncia que a flauta obteve nesse

    perodo, revisamos o Catlogo de Obras Musicais da Apostila, a Relao

    Cronolgica de Composies desde 194412, e o Catlogo existente no site

    Projeto Guerra-Peixe13. Contabilizamos somente as obras para flauta em

    grupos de cmara, as peas para orquestra foram somadas apenas ao

    nmero total de obras. Na fase inicial podemos conferir apenas uma pea

    dedicada flauta dentro de um grupo de 21 obras, lembrando que a

    execuo de 19 delas foi interditada pelo compositor. Na fase dodecafnica,

    constam ao todo 49 obras, das quais 12 com flauta. Da Fase Nacionalista, no

    catlogo do site do projeto Guerra-Peixe, constam 145 registros, dos quais

    apenas 5 com flauta. Podemos perceber que, em comparao s suas outras

    fases, a flauta teve um papel significativo no perodo dodecafnico, cujo

    motivo j foi apresentado anteriormente e est relacionado possibilidade de

    execuo das obras.

    Em 1949 as intenes nacionalistas e o desejo de aumentar a

    comunicabilidade de suas obras continuaram a instigar Guerra-Peixe. O

    compositor recebeu, naquele ano, um convite de Hermann Scherchen para

    estudar regncia em Zurich e trabalhar na rdio local, porm, devido a fatores

    financeiros, a ida do compositor no se concretizou. Se, por um lado, o

    compositor se viu impedido de sair do pas, por outro, este fato possibilitou a

    ele uma outra nova experincia, a nosso ver, igualmente importante, quando

    teve a oportunidade de conhecer de perto a cultura recifense.

    Em 5 julho de 1949, Guerra-Peixe realizou sua primeira viagem a

    Recife, a fim de trabalhar nos programas de aniversrio da Rdio Jornal do 12 Adendo da Apostila, exemplar cedido por Nelson Salom (e que difere do original presente na Biblioteca da UFMG). 13 www.guerrapeixe.com.br

  • 21

    Comrcio. A viagem durou um ms e, nesse perodo, comps a Sute para

    Quarteto ou Orquestra de Cordas, inspirada num prego de cocada, com os

    movimentos Maracatu, Prego, Modinha e Frevo. Essa composio se d

    antes do rompimento efetivo com o Grupo Msica Viva e a msica

    dodecafnica, porm j se v a qual o caminho que o compositor iria tomar.

    Na verdade, o contato de Guerra-Peixe com emissoras de rdio

    iniciou-se em 1942, ainda no Rio de Janeiro, e se estendeu durante todo o

    perodo em que se dedicou composio de msica dodecafnica. Nas

    rdios, trabalhou como arranjador de msica popular e aproveitou o espao

    de alcance privilegiado do Rdio para infiltrar obras modernas, e at mesmo

    dodecafnicas, acreditando que, assim, poderia colaborar para vencer o

    atraso esttico desta gente (Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange. Rio de

    Janeiro, 21 de janeiro de 1947). As emissoras de rdio com a qual travou

    contrato no Rio de Janeiro foram: Tupi (1942-1946) , Globo (1946-1947) e

    Nacional (1948-1949).

    Aps um ms, retorna ao Rio e envia, no dia 9 de agosto de 1949,

    uma carta ao amigo Curt Lange relatando um convite de trabalho que

    recebera da referida Rdio: (...) A RDIO me convida para ir trabalhar no Recife. Isto pouco importante. O interessante que me parece um campo onde eu terei muitas possibilidades. L no tem ningum capaz de ensinar msica, de forma aproveitvel. Por outro lado (confidencialmente) desejam os msicos e pessoas influentes organizar uma sociedade musical contando com uma orquestra sinfnica. A antiga orquestra est para terminar, porque a Prefeitura se nega a fornecer verba. Mas, por sua vez, os prprios msicos no querem mais nada com o seu amigo Fittipaldi. Ora, com tanto apoio dessa gente creio que se poder ir avante. Estou pensando nisso, principalmente porque se poder formar uma mentalidade musical melhor, penso, dando outra orientao ao pessoal. Falei insistentemente, nas conversas preliminares, sobre a incluso de obras de compositores latino-americanos nos programas. Essa idia foi aceita, desde que eu no comece a espantar o pessoal com coisas muito avanadas... Confesso que esta a questo que mais me anima. Se eu for irei por trs anos no mnimo. Isto dar para verificar o resultado de um trabalho intenso num meio virgem. H outras coisas ainda, mas que por hora no precisam ser mencionadas. Ficaro para outra vez (...). (Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1949).

    Guerra-Peixe aceitou o convite e, em dezembro do mesmo ano,

    mudou-se para Recife. Foi nesse momento que rompeu definitivamente com

    o Msica Viva, Koellreutter e a msica dos doze sons. Pode-se dizer que trs

  • 22

    fatores corroboraram para essa deciso do compositor: a insatisfao com a

    sua produo dodecafnica durante esse perodo, Guerra-Peixe viveu um

    conflito entre a esttica que desenvolvia em suas msicas e o desejo de fazer

    uma msica nacional a seu modo , a influncia das ideias do Congresso de

    Praga (apresentadas no Brasil por Claudio Santoro) que incentivava a

    adeso dos compositores cultura nacional e o combate a falsas tendncias

    cosmopolitas , e a sua ida ao Recife a cultura popular local despertou em

    Guerra-Peixe grande interesse, instigando-o a uma intensa pesquisa de

    material folclrico.

    Em abril de 1950, logo aps essas grandes mudanas na vida do

    compositor, que Guerra-Peixe escreveu a Melopia n3, que j apresenta

    um carter nacionalista e no-serial (GUERRA-PEIXE, 1950, manuscrito).

    Apesar de no-serial, construda a partir de motivos, assim como as outras

    duas Melopias, fator que constitui uma unidade entre essas trs obras.

  • 23

    Captulo 2

    Entre o Melos e as Melopias

    A partir de 1950, Guerra-Peixe lecionou em importantes instituies de

    ensino, dentre elas a Pro-Arte Seminrios de Msica (RJ; 1963-1970); o

    Museu da Imagem e do Som (RJ; 1968-1972); o Centro de Estudos Musicais

    (RJ; 1972-1979); a Escola de Msica da UFMG (1980-1990); a Escola de

    Msica Villa-Lobos (curso livre) da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro

    (1981-1993), alm de aulas particulares em Recife (1950-1952) e em So

    Paulo (1954-1959) (GUERRA-PEIXE, 1988).

    Com esta vasta experincia enquanto professor, em 1988 Guerra-

    Peixe publicou um mtodo de composio desenvolvido a partir de exerccios

    j testados nos cursos que ministrava, intitulado Melos e Harmonia Acstica

    Princpios de Composio Musical. No Preldio14 o autor afirma que foi

    Koellreutter quem trouxe para o Brasil os estudos da Melodia e da Harmonia

    Acstica, baseados nas obras de ensino de Paul Hindemith e outros;

    porm, este material era apresentado sem uma metodologia sistematizada

    voltada ao aprendizado dos alunos (GUERRA-PEIXE, 1988, Preldio).

    Guerra-Peixe relata que foi a partir da prtica que ele elaborou o

    Melos e Harmonia Acstica: Transmitindo a meus alunos os estudos da melodia foi que aos poucos, a partir de 1969, comecei a estabelecer uma didtica, empregando meios aparentemente ingnuos mas cujos resultados tm sido, por vezes, at surpreendentes. (GUERRA-PEIXE, 1988, Preldio).

    Ainda segundo o autor, uma das preocupaes tem sido a de eliminar do estudante as idias que se limitam ao sistema tonal clssico, isto , fugir do D maior e do D menor. E o resto que fique por conta do estudante, tomando ele o caminho que preferir, o mais condizente com a sua sensibilidade. (GUERRA-PEIXE, 1988, Preldio).

    O objetivo de Guerra-Peixe com esses estudos era fornecer

    ferramentas aos alunos, mostrando as possibilidades da criao musical sob 14 O autor d o nome de Preldio ao Prefcio do mtodo.

  • 24

    o ponto de vista da melodia e da harmonia, ressaltando ainda a importncia

    da sensibilidade. Para ele, a espontaneidade mais valiosa do que o

    intelectualismo.

    Aos alunos-intrpretes deixa tambm uma recomendao: De outro lado, o instrumentista que for observador saber extrair proveito destes conhecimentos; em especial no que tange relao de segundas assunto aqui estudado na parte intitulada Melos bem como no que se refere aos pontos culminantes e clmax, tanto da melodia como da harmonia. (GUERRA-PEIXE, 1988, Preldio).

    Em nosso trabalho, acatamos o conselho do compositor e utilizamos

    os conceitos presentes no mtodo para elaborar uma anlise das Melopias,

    direcionada para os aspectos interpretativos. Alm da relao de segundas

    e dos pontos culminantes, utilizamos ainda as ideias de clula meldica,

    motivo, metro, entre outros. Ao final do Preldio, Guerra-Peixe diz no ter

    notcia de outro mtodo desta natureza e nos termos aqui tratados. Trata-se

    de tentar superar o ensino emprico da melodia e da harmonia moderna.

    (GUERRA-PEIXE, 1988, Preldio).

    De um lado temos um mtodo elaborado por Guerra-Peixe em 1988,

    aps um longo caminho enquanto professor e compositor dedicado msica

    brasileira; de outro lado, trs obras para flauta solo, explorando aspectos

    fundamentais da melodia, escritas num perodo aproximado de 40 anos antes

    da publicao deste mtodo. Essa distncia cronolgica, a princpio, gera

    uma questo metodolgica: utilizar como referencial terico um mtodo

    publicado posteriormente composio das obras pode resultar em algum

    tipo de anacronismo? Foi Koellreutter quem trouxe para o Brasil o estudo da

    Melodia e da Harmonia Acstica e que, apesar de terem sido, na opinio de

    Guerra-Peixe, transmitidos sem a devida ordem para o aprendizado

    (GUERRA-PEIXE, 1988, Preldio), grande parte do contedo presente no

    Melos est relacionado aos ensinamentos de Koellreutter, fato que diminui a

    distncia entre o referencial terico e as obras.

    No Melos, ao final da parte Estruturao Melorrtmica, proposto o

    seguinte exerccio: Estruturar uma pea (no mximo de duas pginas em papel de doze pautas) de dois movimentos contrastantes, um vagaroso e outro movido. Podero ser absolutamente independentes ou ligados pelos mesmos motivos. Ou se

  • 25

    quiser, uma s unidade, sem interrupo, o mesmo motivo usado no decorrer da obra inteira. No convm esquecer que no incio da pea deve estar estabelecido o metro, espcie de pulsao. (GUERRA-PEIXE, 1988, p.22)

    Tambm as Melopias so elaboradas a partir de motivos e

    apresentam movimentos contrastantes (rpido lento rpido). Essas

    semelhanas sugerem uma certa relao entre as peas e o mtodo, nos

    levando a considerar a possibilidade de haver uma ligao entre esse

    exerccio e os estudos com Koellreutter.

    Dessa maneira, nossa reflexo analtica voltada interpretao

    leva em considerao: o fato das Melopias terem sido escritas por volta de

    40 anos antes do Melos, o momento histrico em que foram compostas e os

    aspectos estticos sob os quais foram concebidas as obras. Buscamos,

    tambm, construir uma interpretao fundamentada na expressividade das

    obras, uma vez que, para Guerra-Peixe, esse era um fator relevante, como

    relata a Curt Lange em uma carta enviada em 12 de dezembro de 1947: No gostei do meu Quarteto [1947]. Perto da sinfonia ele uma droga. Creio estar muito carregado. Penso que perdi muito de expresso, por causa da mania de querer escrever de um modo mais fcil para o pblico entender, Neste sentido consegui alguma coisa, creio. Mas perdi em expresso. (Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange. Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1947).

    Esse concerto, no qual ocorreu a audio do Quarteto, se deu em

    novembro de 1947, momento em que, insatisfeito com os resultados obtidos,

    o compositor abandonou o seu projeto da cor nacional.

  • 26

    As trs Melopias para flauta solo

    Como exposto anteriormente, as trs Melopias foram escritas entre

    os anos de 1947 e 1950, sendo as duas primeiras sob a orientao atonal-

    dodecafnica e, a terceira, nacionalista. Nesse perodo, a escolha da

    instrumentao estava muito ligada possibilidade de execuo da obra, o

    que, nesse caso, se refere figura de Koellreutter. Porm uma outra

    referncia flautstica da poca para a msica de Guerra-Peixe foi Esteban

    Eitler.

    Nascido em Bozen na ustria em 1913, Eitler, assim como

    Koellreutter, radicou-se na Amrica Latina devido Segunda Guerra Mundial

    e faleceu na cidade de So Paulo, em 1960. Foi ele quem realizou a estreia

    das trs Melopias, e tambm do Allegretto con moto, de 1945 e da Suite,

    para flauta e clarinete, de 1949 (GUERRA-PEIXE, 1971, VI). Podemos

    conferir no Catlogo (Captulo VI) da Apostila que Eitler tambm executou as

    trs Melopias em outros trs pases da Amrica Latina: Argentina, Uruguai e

    Chile. Alm disso, as trs Melopias foram adotadas na classe de flauta da

    Pr-Arte Seminrio de Msica15 e foi tocada em diversos concertos pela

    flautista Odette Ernst Dias.

    Primeiramente, abordamos a ideia de Clulas meldicas, que, na

    definio de Guerra-Peixe a organizao de dois, trs ou mais sons

    constitudos em unidade formal. Cada clula deve ser reproduzida pelo

    menos uma vez para que tenha funo na estrutura (GUERRA-PEIXE,

    1988). O autor ainda diz que pode-se variar as clulas meldicas por

    mudana de direo ou pelo processo retrgrado, e que se pode transportar

    as clulas; sugere tambm a eliso entre diferentes clulas meldicas.

    importante, entretanto, ressaltar que, para Guerra-Peixe, h uma diferena

    entre clula meldica e motivo, termo utilizado somente a partir da

    Segunda Parte do mtodo: Estruturao Melorrtmica. O conceito utilizado

    no incio do Captulo VI Alguns Aspectos da Melodia: Os elementos 15 Os Seminrios de Msica Pr-Arte do Rio de Janeiro foram criados em 1957 por um grupo de msicos e professores, liderados por H. J. Koellreutter, que tinham como objetivo criar um tipo novo de Escola de Msica, que se opusesse ao padro, ento vigente, de ensino acadmico. Texto obtido no site www.proarte.org.br/index_teste.htm no dia 16 de julho de 2012. O nome de Odette Ernst Dias consta como professora de flauta no site da instituio.

  • 27

    conjuntivos e disjuntivos servem para caracterizar as clulas e motivos e dar forma melodia; bem como para contribuir para o estilo do compositor.

    (GUERRA-PEIXE, 1988, p.21). Mais a frente, o autor explica que

    Monorrtmica a melodia que mantm o mesmo ritmo, e que, no exemplo

    dado o Moto perpetuo de Paganini o ritmo permanece igual, enquanto a

    melodia se desenvolve de clulas diferentes. Na sequncia, diz que:

    Chama-se acfalo o motivo que tem incio depois do primeiro tempo do

    compasso (GUERRA-PEIXE, 1988, p.21). Estas passagens evidenciam a

    diferena entre motivo e clula meldica, para o compositor. Sendo clula

    meldica, apenas um agrupamento de alturas, enquanto o motivo conta com

    o ritmo como elemento estruturante.

    No Melos, a definio de Metro um pouco vaga: Metro no compasso e nem ritmo, mas um valor subjetivo que equivale, mais ou menos, s pulsaes. Quando o metro no est claro a melodia se torna ritmicamente frouxa. Cuide-se, portanto, da pulsao (GUERRA-PEIXE, 1988, p.21).

    Todos os movimentos das Melopias apresentam indicao

    metronmica e consideramos que ela esteja relacionada ao que o compositor

    denomina metro. Os compassos possuem quantidades diferentes de notas, nem sempre se enquadrando na figura rtmica apresentada como referncia

    de pulsao. Consideramos, portanto, que, para Guerra-Peixe, o metro, nas Melopias, est relacionado a um valor menor, uma pulsao (podendo ser a

    colcheia, ou a semnima), que se mantm constante durante todo o

    movimento, apesar das constantes mudanas dos apoios mtricos.

    Nas Melopias no existe frmula e nem barras de compasso

    tradicionais. O que ocorre so agrupamentos rtmicos irregulares separados

    por uma barra curta que corta a pauta da metade para baixo. Podemos

    considerar que essas divises esto diretamente relacionadas a gestos

    musicais; sendo, cada um desses gestos, um motivo ou grupo de passagem.

    A mtrica, ento, fica dependente dos gestos musicais e no de uma

    hierarquia pr-definida de tempos dentro de um compasso.

    Consideramos tambm os conceitos de ponto culminante e relao

    de segundas. No Melos, so apresentados quatro tipos de ponto culminante:

    parcial, superior, mximo e inferior. O ponto culminante parcial a nota

    mais elevada em um conjunto de outras notas; o superior o ponto mais

  • 28

    elevado de um fragmento maior; o mximo, tambm conhecido como

    clmax, a nota mais aguda da melodia e, segundo o autor, deve ocorrer

    apenas uma vez, de preferncia no terceiro tero da melodia; o inferior a

    nota mais grave.

    Guerra-Peixe d muita importncia relao de segundas neste

    mtodo. Primeiramente, apresenta o seguinte exemplo, que explicita as

    relaes de segunda superior e inferior:

    Figura 1: Melos e Harmonia Acstica, p.11

    J no final do mtodo, no captulo intitulado Adenda do Melos, o

    autor diz que: a relao de segundas talvez seja o que h de mais

    importante no que tange expresso meldica. E em seguida apresenta,

    como exemplos, trechos de obras de compositores de diferentes perodos,

    como Bach, Chopin, Debussy e Mozart.

    Vale ainda ressaltar que Guerra-Peixe considera tenso meldica, a

    direo ascendente do fragmento, realizada gradativamente; e

    afrouxamento meldico, o oposto da tenso meldica (GUERRA-PEIXE,

    1988, p.12)

    Atravs da dissertao de mestrado de Stael Viegas Malamut A flauta

    na msica de cmara de Guerra-Peixe, pudemos ter acesso a manuscritos

    do compositor, que trazem informaes importantes, como a srie geradora,

    no caso das Melopias 1 e 2, e o incio de cada um dos movimentos,

    ilustrando os motivos que os estruturam. interessante observar que no

    Manuscrito 1, a srie est marcada com as letras a, b e c, que se referem s clulas meldicas que do origem aos motivos. No Manuscrito 2, a srie

    apresenta nove sons e est organizada em trs acordes de trs sons. J o

    Manuscrito 3 no apresenta srie alguma, apenas os motivos que geraram

    cada movimento16. Vale ressaltar que tivemos acesso, ainda, s cpias do

    16 Quando nos referirmos a esses manuscritos utilizaremos a numerao correspondente Melopia. Ex.:Melopia n1 Manuscrito 1.

  • 29

    original do compositor17 e que, apesar da existncia de uma edio de 1983,

    da Irmos Vitale, optamos por utilizar as cpias do original, que, alm de

    revelarem a grafia de Guerra-Peixe, proporcionam uma aproximao histrica

    do objeto.

    Na nossa anlise, foram abordados principalmente dois aspectos: a

    diferenciao entre os motivos, colaborando assim para uma compreenso

    da estrutura da obra; e o direcionamento das frases, utilizando como

    referncia os prprios motivos, a ideia de metro e pulsao, relaes de

    segunda e pontos culminantes.

    Melopia n1

    A Melopia n1 foi escrita a partir de uma srie dodecafnica e divide-

    se em trs movimentos: Vivacissimo, Andantino e Moderato Maestoso. A

    srie pode ser conferida em dois documentos diferentes: o Manuscrito 1 e a

    carta enviada a Curt Lange em 15 de abril de 1947. Nesta carta, Guerra-

    Peixe revela ao amigo recursos composicionais que utilizou em algumas

    obras, e um dos exemplos a srie da Melopia para flauta s18, que

    apresentada da seguinte maneira:

    Figura 2: srie da Melopia n1. Carta enviada a Curt Lange em 15 de abril de 1947 Guerra-Peixe relata ao seu interlocutor que observando-se a forma

    retrgrada vamos encontrar muitas relaes entre os motivos A e B

    dependendo, apenas, do trabalho de procur-las. Podemos notar que h

    relaes intervalares semelhantes entre A e B, que contm intervalos de segunda maior, quinta e quarta justa. O intervalo de segunda, apesar de

    17 As partituras foram fotocopiadas na Biblioteca Nacional. 18 Guerra-Peixe se refere dessa maneira Melopia n1 devido ao fato de ser a nica Melopia escrita at ento.

  • 30

    dissonante, traz a ideia de linearidade, enquanto os intervalos de quarta e

    quinta justa remetem, de certa maneira, tradio tonal. No Manuscrito 1, o

    compositor demarca clulas meldicas diferentes das apresentadas na carta,

    porm as relaes citadas acima ainda so aparentes. A predominncia

    desses intervalos, aliada maneira com que esto dispostos nas clulas

    meldicas, revela uma inteno de comunicabilidade na obra, corroborada

    pela evaso das dissonncias. Abaixo podemos conferir as anotaes do

    compositor no Manuscrito 1, onde esto indicadas as clulas meldicas que

    do origem aos motivos:

    Figura 3: srie da Melopia n1, Manuscrito 1

    Esse movimento estruturado de maneira muito semelhante a um

    mosaico, onde vrias peas, aparentemente sem conexo, criam uma figura

    maior. Da mesma forma, os gestos musicais se conectam de maneira

    inesperada, ganhando um sentido na medida em que os motivos so

    repetidos e variados. No Manuscrito 1, o compositor explicita-os e os

    identifica atravs das letras a, b e c:

    Figura 4: Melopia n1, 1 movimento, comp.1 a 8. Manuscrito 1. O motivo b d incio ao movimento e formado por um arpejo de trs notas, sendo as duas primeiras em legato e a ltima em staccato, realizado

    duas vezes em sequncia. Para a interpretao desse motivo, sugerimos um

    apoio na primeira nota de cada ligadura, formando dois grupos de trs notas,

    mesmo quando a direo invertida, como podemos conferir nos exemplos a

    seguir:

  • 31

    Figura 5: Melopia n1, 1 movimento, comp.1. Figura 6: Melopia n1, 1 movimento, comp.10 Chamamos a ateno para o carter extremamente rtmico de b, que, em contraposio com os outros dois motivos, de carter mais meldico,

    articula o movimento, intercalando pequenas sees.

    O movimento segue com o motivo a, de carter mais lrico, em contraposio ao b, e formado por dois intervalos descendentes, uma segunda maior e uma quarta justa, em legato, sendo as duas primeiras notas

    colcheias e a terceira, uma semnima. Nos exemplos abaixo, podemos

    observar o motivo original e uma das variaes presentes no movimento,

    obtida por aumentao rtmica, pela inverso de direo dos intervalos e

    transposio:

    Figura 7: Melopia n1, 1 movimento, comp.3 Figura 8: Melopia n1, 1 movimento, comp.8 H momentos em que os motivos so desenvolvidos, e no apenas

    variados, como o caso do exemplo a seguir, onde podemos conferir o

    motivo a expandido:

    Figura 9: Melopia n1, 1 movimento, comp.29 e 30 Apesar de conter um maior nmero de notas e no apresentar a

    sequncia original nenhuma vez, reconhecemos o motivo a atravs do seu

  • 32

    carter lrico e das relaes intervalares, que, exceto um intervalo de

    segunda menor, so segundas maiores e quartas justas.

    Ainda no manuscrito, est assinalado o motivo c, formado por cinco colcheias, sendo quatro em legato e a ltima em staccato:

    Figura 10: Melopia n1, 1movimento, comp.5. Manuscrito 1

    Esse motivo tem um papel interessante, devido ao fato de sempre aparecer

    em forma de progresso. Guerra-Peixe aconselha que: a reproduo de uma

    clula no deve sugerir sequncia. Para se evitar isso escreve-se, entre o

    modelo e a reproduo, um conjunto de no mnimo duas notas livremente

    estabelecidas (GUERRA-PEIXE, 1988, p.13). Porm no isso o que

    observamos nesse movimento.

    Ex.1:

    Figura 11: Melopia n1, 1 movimento, comp.5 e 6

    Ex.2:

    Figura 12: Melopia n1, 1 movimento, comp.41 a 44

    necessrio, ao intrprete, imprimir no ouvinte uma identidade para

    cada motivo, caracterizando-os de maneira a evidenciar as suas diferenas.

    O motivo a traz algo de lrico, ento pode-se acentuar essa caracterstica

  • 33

    utilizando um legato e um vibrato muito expressivos, sem a preocupao de

    manter rigorosamente o tempo. Para o motivo b, um leve tenuto na primeira nota da ligadura e uma articulao bem clara colaboram para a sua

    caracterizao. Um pequeno acelerando evidencia a ideia de movimento do

    motivo c, juntamente a uma articulao mais leve, um som fluente e o apoio somente no incio de cada grupo motvico.

    Outros dois elementos meldicos so tambm de grande relevncia:

    relao de segundas e pontos culminantes. A relao de segundas tem um

    papel importante de direcionamento da melodia em, principalmente, dois

    momentos nesse movimento. Nos compassos 13 a 15, podemos notar a

    relao de segundas inferior, evidenciada pelos crculos vermelhos, que

    colabora para encaminhar a frase musical. Nesse sentido, faz-se necessrio

    evidenciar essas notas, atravs de um leve tenuto em cada uma delas. Pode-

    se notar tambm a existncia de outras relaes de segunda, geradas pelo

    fato de o segundo motivo estar transposto uma 2M acima do primeiro, um

    exemplo a relao evidenciada pelos crculos azuis:

    Figura 13: Melopia n1, 1 movimento, comp.13 a 15

    O motivo c tambm utilizado no trecho em que a melodia se encaminha para o ponto culminante. H uma sequncia que intercala duas

    variaes de c, sendo uma a inverso da outra. Essa organizao sugere um agrupamento a cada dois compassos, que pode ser realada, pelo intrprete,

    evidenciando-se a relao de segundas superior existente no trecho:

    Figura 14: Melopia n1, 1 movimento, comp.41 a 45

  • 34

    A progresso segue com duas ocorrncias de b, alcanando o ponto culminante do movimento com o motivo a. A mudana do motivo c para o b gera uma tenso rtmica relacionada ao carter do motivo b e pode ser evidenciada por um pequeno acelerando e meldica, uma vez que a

    melodia segue para a regio aguda do instrumento. A conexo entre as duas

    variaes de b pode ser feita mantendo-se os apoios mtricos na primeira nota de cada ligadura, o que gera um agrupamento de quatro colcheias entre

    os compassos 46 e 47:

    Figura 15: Melopia n1, 1 movimento, comp.46 a 48 Em seguida ocorre um relaxamento meldico com variaes de a e, logo aps, uma espcie de coda, onde utilizado o motivo b. A concluso do movimento atingida atravs de uma interessante relao de segundas. H

    uma insistncia nas notas R e D em todo esse trecho final, que se

    resolvem nas notas Mi e Si, respectivamente, criando uma relao de

    tenso (devido ao intervalo de stima menor) e relaxamento (intervalo de

    quinta justa):

    Figura 16: Melopia n1, 1 movimento, comp.52 a 55 Pode-se dizer que a resoluo esperada para o intervalo de stima

    seria a sexta maior R-Si, sugerindo um acorde de Sol maior, hiptese

    corroborada pela nota Sol presente no trecho. A resoluo Mi-Si, pode

    sugerir uma cadncia deceptiva no VI grau Mi menor. Essa possvel

    resoluo tonal est sugerida no Manuscrito 1, onde o compositor reitera um

    Mi primeira nota da srie aps as notas Si e Sol final da srie ,

    sugerindo um arpejo de Mi menor.

  • 35

    O segundo movimento um Andantino, com uma indicao que diz:

    quasi recit.. Portanto, o ritmo pode ser um pouco mais livre, porm sem

    perder a mtrica. So trs motivos que estruturam esse movimento e

    aparecem logo na primeira frase, onde o compositor apresenta a srie

    completa e na altura original:

    Figura 17: Melopia n1, 2 movimento, comp.1 a 6. Manuscrito 1 No manuscrito 1 h apenas a indicao dos motivos a e b, porm um terceiro motivo (que chamaremos de c) pode ser reconhecido na frase, caracterizado por trs notas em tenuto: as duas primeiras repetidas e a ltima

    uma 2M abaixo. Pode-se observar que, no exemplo acima, extrado do

    Manuscrito 1, h uma inscrio sob esse motivo, porm no foi possvel

    compreender a grafia.

    Podemos considerar que esse movimento construdo por trs sees

    e uma coda. A primeira seo vai do comp.1 ao comp.11; a segunda, do

    comp.12 ao comp.25; a terceira, do comp.26 ao comp.34; e a coda, do

    comp.35 ao comp.41. Consideramos importante para o intrprete a

    compreenso do movimento como um todo.

    O ponto culminante est situado na segunda seo, no compasso 18,

    diferente do que sugere Guerra-Peixe, no Melos e Hamornia Acstica, que o

    ponto culminante esteja no terceiro tero da melodia. Esse fato gera uma

    dificuldade interpretativa, pois faz-se importante manter a tenso musical at

    o final do movimento e, para isso, pode-se evidenciar os pontos culminantes

    parciais de cada seo.

    As indicaes de dinmica deixadas pelo compositor j nos sugerem

    um caminho meldico em direo aos pontos culminantes parciais, sendo a

    dinmica mais forte na primeira e na terceira sees um mezzoforte e na

    segunda, onde est localizado o clmax, um forte; na coda tambm h um

    crescendo em direo nota mais aguda, ainda que dentro de um piano.

    Consideramos de extrema importncia acatar essas recomendaes do

  • 36

    compositor, evidenciando-as com a utilizao de um vibrato mais intenso e

    um timbre mais brilhante na medida em que o crescendo seja realizado.

    Para dar movimento ao motivo a composto de duas semibreves, intercaladas por uma semnima optamos por um pequeno crescendo em

    direo segunda nota, seguido de um decrescendo, essa dinmica pode

    ser acompanhada de um aumento e diminuio do vibrato. Podemos conferir

    abaixo o ponto culminante parcial na nota r e a maneira como os motivos a, b e c foram utilizados na primeira seo:

    Figura 18: Melopia n1, 2 movimento, comp.1 a 11

    O ponto culminante da segunda seo o clmax do movimento e

    ocorre no comp.18, com a nota sol. Podemos notar um adensamento rtmico,

    obtido a partir de um maior nmero de colcheias em relao ao restante do

    movimento, e, tambm, um aumento da tenso meldica, com a melodia em

    direo regio aguda:

    Figura 19: Melopia n1, 2 movimento, comp.12 a 25

    O ponto culminante da terceira seo ocorre no comp.30. Optamos

    pela utilizao de um vibrato mais intenso neste trecho para ajudar a manter

    a tenso desejada at o final do movimento, uma vez que o relaxamento

    meldico relativamente grande.

  • 37

    Figura 20: Melopia n1, 2 movimento, comp.26 a 34

    Esta a nica seo que se encerra com o motivo c. Pode-se, portanto, enfatizar esse motivo, pronunciando claramente cada nota. Esta

    seo menor do que as duas primeiras e realizada em um registro mais

    grave, assim como a coda. Porm, o ponto culminante parcial da coda

    ainda mais grave do que o anterior, evidenciando, assim, a preocupao do

    compositor com o relaxamento meldico para se alcanar o final do

    movimento.

    Figura 21: Melopia n1, 2 movimento, comp.35 a 41

    No incio do terceiro movimento, Moderato Maestoso, a srie,

    transposta uma tera maior abaixo, apresentada integralmente. Esse

    movimento nos remete, com apenas uma voz, ideia de uma fuga, atravs

    da pseudopolifonia quando a movimentao de uma melodia sugere a

    existncia de fragmentos meldicos em dois nveis (GUERRA-PEIXE, 1988,

    p.22).

    O incio do movimento, assim como em toda fuga, se d com o sujeito,

    que formado pelos motivos a e b, como nos mostra o manuscrito 1. As entradas do sujeito so marcadas , pelo motivo a, caracterizado por um gesto anacrstico em direo a uma nota mais aguda e com acento19: 19 Optamos por utilizar o exemplo extrado do manuscrito 1, porm, aqui, o motivo aparece sem o acento, que est presente na partitura.

  • 38

    Figura 22: Melopia n1, 3 movimento, comp.1. Manuscrito 1.

    A segunda entrada do sujeito, transposto uma quarta aumentada

    acima, realizada no comp.6. A escolha do trtono, para a transposio,

    pode estar relacionada esttica dodecafnica, na qual se evitam as

    relaes tonais tradicionais.

    Primeira entrada:

    Figura 23: Melopia n1, 3 movimento, comp.1 a 3

    Segunda entrada:

    Figura 24: Melopia n1, 3 movimento, comp.6 a 8

    Ao realar as entradas do sujeito, evidenciamos a forma do

    movimento. Observamos que, na segunda entrada, no h o acento na

    segunda nota do sujeito, porm optamos por realizar essa acentuao em

    todas as entradas, que se do nos seguintes compassos: 1, 6, 12, 21, 33, 39

    e 43. Vale ressaltar que no comp.39 ocorre uma recapitulao, onde

    retomado o incio do movimento.

    Quanto questo do ponto culminante, a nota mais aguda ocorre

    antes da metade do movimento. Calculando-se a proporo sugerida por

    Guerra-Peixe, no local onde deveria ser o ponto culminante, h um trecho

    mais meldico na regio grave da flauta, com dinmica piano. Talvez, a ideia

  • 39

    seja criar um contraste nesse momento, que pode ser enfatizado pelo

    intrprete com um leve rubato. Considerando que o movimento todo muito

    enrgico e com dinmicas prximas do forte, um trecho mais meldico em

    piano poderia sugerir uma anttese ao ponto culminante.

    Neste movimento h a utilizao do frullato, recurso que passou a ser

    utilizado na msica do sculo XX, fato que reala o dilogo do compositor

    com as tcnicas modernas para flauta. O motivo b caracterizado por trs notas em tenuto, com grandes saltos e, para evidenci-lo, sugerimos

    enfatizar essa articulao, em contraposio aos legatos do motivo c, e dos staccatos e acentos do motivo a.

    Melopia n2

    A Melopia n2 para flauta solo foi concluda em 2 de fevereiro de

    1948, ano em que Guerra-Peixe comps apenas trs obras. Como visto no

    primeiro captulo, desse mesmo ano datam o Trio n1 para sopros (flauta,

    clarinete e fagote) e a Miniaturas n3 para piano solo. Sobre as obras desse

    perodo, Guerra-Peixe escreve a Curt Lange: (...) Dr. Lange. Ultimamente venho criando sries de doze sons desta forma, observando muito o complexo harmnico:

    Os sons so empregados indiferentemente, iniciando por qualquer um deles e seguindo por qualquer outro do mesmo grupo de sons. No sei se este processo j foi empregado, mas creio que vale alguma coisa pois deu-me excelente resultado nas Msicas n.1 e n.2 para violino, Provrbios n.2 e Trio de sopros. Penso continuar porque a melodia se torna mais malevel e bastante varivel. Pode-se chamar isso de TCNICA DOS DOZE SONS? (Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange. Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1948).

    Esse mesmo processo foi utilizado na srie da Melopia n2, que

    apresenta uma srie de apenas nove sons, organizados em trs acordes. A

    frase que antecede a pergunta de Guerra-Peixe revela uma deciso tomada

    pelo compositor de no se voltar para um dodecafonismo estrito, o que no

    significa dizer que ele havia retomado o seu projeto da cor nacional,

  • 40

    abandonado aps o concerto de novembro de 1947, onde foi executado o

    Quarteto, que, como visto anteriormente, o havia desagradado (ASSIS, 2006,

    p.219).

    O retorno ao hermetismo pode ser percebido ao confrontar as

    Melopias n1 e n2, pois, apesar de utilizar, nesta ltima, uma srie

    harmonizadora, o ritmo se torna mais complexo e a melodia mais

    fragmentada, devido aos grandes saltos e intervalos dissonantes. A srie

    encontra-se registrada da seguinte maneira no Manuscrito 2:

    Figura 25: srie da Melopia n2, Manuscrito 2 No constam na srie as notas D, F e Si, que, entretanto, so

    utilizadas na obra. A abordagem da srie se mostra mais rigorosa do que na

    Melopia n1, seguindo o princpio dodecafnico de s se repetir um som a

    partir do momento em que tenha sido utilizada toda a srie. Por outro lado,

    nesta obra, a srie no sofre transposies e, assim como relata em carta a

    Curt Lange, Guerra-Peixe utiliza as notas de cada acorde de maneira livre,

    tornando a melodia varivel.

    O primeiro movimento da Melopia n2 pode ser dividido da seguinte

    maneira: Introduo (comp. 1 a 4), 1 seo (comp. 5 a 14), 2 seo (comp.

    16 a 29) e coda (comp. 30 a 37).

    No Manuscrito 2, podemos notar que Guerra-Peixe utiliza a nota Sol,

    pertencente ao terceiro acorde da srie, no motivo a obtido com as notas do primeiro acorde. Com um crculo, o compositor evidencia esse

    deslocamento, que ocorre diversas vezes na obra. As notas D e Si, esto

    geralmente associadas ao primeiro acorde, enquanto a nota F, ao terceiro,

    como pode ser percebido j na primeira frase do movimento20:

    20 Ressaltamos que, na partitura, o Sol natural do quarto compasso substitudo pela nota F.

  • 41

    Figura 26: Melopia n2, 1 movimento, comp. 1 a 5. Manuscrito 2

    Nesse movimento fica clara a utilizao dos elementos conjuntivos

    (notas prolongadas; notas seguidas, sem interrupo dos sons, e notas

    ligadas) e disjuntivos (as pausas e as cesuras) (GUERRA-PEIXE, 1988,

    p.21). Dessa maneira, as notas em staccato, podem ser consideradas como

    elementos disjuntivos, por provocarem cesuras no som. Assim, temos um

    motivo representado por elementos conjuntivos (a) e outro por elementos disjuntivos (b). Portanto, cabe ao intrprete observar e enfatizar essas diferenas.

    Na primeira frase observamos tambm uma relao de segundas21:

    Figura 27: Melopia n2, 1 movimento, comp.1 a 4 A melodia atinge a nota mais aguda na metade da frase, retornando

    nota inicial. Desse modo, a dinmica proposta pelo compositor refora a ideia

    de tenso e relaxamento meldico. Em seguida, tem incio a primeira seo:

    Figura 28 Melopia n2, 1 movimento, comp.5 a 14 21 H uma diferena de compassos entre o Manuscrito 2 e a partitura. Na partitura no h barra aps o r natural.

  • 42

    Neste trecho tambm devem ser observadas a dinmica e a relao

    de segundas superior, pois, dessa maneira, alcana-se uma unidade para

    esta seo, dificultada pela fragmentao da melodia. Podemos perceber

    tambm a utilizao dos motivos a e b com algumas variaes, porm vale ressaltar a presena de um novo motivo, que d incio a essa seo e que

    chamaremos de c. Concebido a partir de uma eliso entre a e b, formado por quatro semicolcheias, duas em legato e duas em staccato.

    Na 2 seo, ocorrem alternncias entre subdivises simples e

    compostas, variando a pulsao e mantendo o metro. Temos, no exemplo

    abaixo, um trecho com subdiviso composta, reforada, tanto pela

    articulao, quanto pelo agrupamento das notas no compasso 16. Apesar de,

    nos compassos 18 e 19, a notao sugerir a subdiviso simples,

    consideramos que, mantendo a mesma pulsao at o incio do compasso

    20, a melodia se torna mais fluente.

    Figura 29: Melopia n2, 1 movimento, comp.16 a 20

    Em outros momentos possvel a alternncia entre subdiviso

    simples e composta, como pode ser observado no exemplo a seguir, onde os

    crculos vermelhos indicam o incio de cada tempo:

    Figura 30: Melopia n2, 1movimento, comp. 22 a 24

    O compasso 22 d incio a uma nova frase, que divide a 2 seo,

    portanto a pausa na cabea do compasso pode ser tomada como uma

    respirao e, no necessariamente, como um ritmo acfalo.

  • 43

    Como visto anteriormente, na 1 seo, a relao de segundas

    desenha uma linha ascendente do Solb ao D# e descendente

    retornando ao Solb. J na 2 seo, essa relao se estende at o clmax,

    que ocorre com um F, no registro agudo da flauta. Vale ressaltar que o

    ponto culminante, nesse movimento, no se d com a nota mais aguda, pois

    a posio do F e a sua durao lhe conferem muito mais importncia do que

    ao Lb que se segue:

    Figura 31: Melopia n2, 1 movimento, comp. 22 a 29

    A partir do compasso 26, sugerimos a subdiviso composta, que

    confere um certo movimento melodia nos compassos 27 e 28, e atenua o l

    bemol aps o clmax, no compasso 26. Alm disso, essa subdiviso

    proporciona um relaxamento rtmico que ocorre juntamente a um relaxamento

    meldico aps o ponto culminante.

    Na coda ocorre uma recapitulao, que reitera o motivo a e apresenta variaes dos motivos a e b. O ltimo gesto do movimento como uma lembrana do a, em ritmo alargado e finalizando-se na nota Sol, novamente infiltrada no primeiro acorde.

    O segundo movimento, Lento, apresenta duas particularidades: a

    ausncia de identificao de motivos no manuscrito e a regularidade da

    pulsao em compasso composto. Apesar de no estar explcito no

    manuscrito, podemos considerar a existncia de, pelo menos, um motivo:

  • 44

    Figura 32: Melopia n2, 2 Movimento, comp. 1

    H uma relao entre este e o motivo c do primeiro movimento, obtido a partir da eliso entre a e b. Abaixo, podemos conferir uma variao de cada um desses motivos, evidenciando a semelhana entre eles:

    Figura 33: Melopia n2, 2 Movimento, comp. 15 Figura 34: Melopia n2, 1 Movimento, comp. 5 Na primeira frase constatamos a presena desse motivo e, tambm, a

    de arpejos em colcheias e semnimas. O movimento construdo a partir

    desses dois elementos:

    Figura 35: Melopia n2, 2 Movimento, comp. 1 a 4

    Os arpejos elemento b so realizados sempre em legato, enquanto o motivo elemento a apresenta ligaduras a cada duas notas. Pode-se evidenciar essa articulao, acentuando-se levemente a primeira nota de

    cada ligadura do elemento a. Por outro lado, o carter mais cantabile do elemento b pode ser alcanado atravs da utilizao de um vibrato expressivo.

    O trecho que caminha para o ponto culminante tem incio com uma

    variao de a, seguida de um arpejo, em direo ao grave e em crescendo. Sobre cada uma das notas do arpejo, h um sinal de tenuto dentro de uma

    ligadura, que, na nossa leitura, sugere que essas notas sejam mais cantadas,

    com a utilizao de um vibrato mais expansivo e de um leve rallentando.

  • 45

    Esses recursos podem preparar a melodia para o ponto culminante, que

    alcanado no gesto seguinte, como podemos ver em seguida:

    Figura 36: Melopia n2, 2 Movimento, comp.15 a 18

    A partir do compasso 24 ocorre uma recapitulao, que reitera os quatro

    primeiros compassos do movimento. Em seguida, nos trs compassos que

    antecedem a coda, h uma insistncia na sequncia Sib-Solb-L, que,

    juntamente com o ritmo, seguram a melodia e a preparam para o final do

    movimento que, aps relembrar mais uma vez o motivo (elemento a), alcanado por uma relao de segundas que sugere um repouso da melodia,

    realizando o caminho D#-D-Si.

    Figura 37: Melopia n2, 2 movimento, comp. 24 a 34

    O terceiro movimento, Allegro Moderato, apresenta uma pulsao

    regular, em subdiviso simples, e estrutura-se sobre dois motivos: um em

  • 46

    staccato (a) e o outro em tenuto (b), de maneira que no h ligaduras nesse movimento. As articulaes indicadas pelo compositor evidenciam o carter

    rtmico de a e meldico de b, cabendo ao intrprete observar e realar essas diferenas.

    Motivo a:

    Figura 38: Melopia n2, 3 Movimento, comp.1

    Motivo b:

    Figura 39: Melopia n2, 3 Movimento, comp.1 e 2

    Assim como no primeiro movimento da Melopia n1, consideramos de

    extrema importncia a diferenciao entre os motivos e a caracterizao de

    suas variaes. A inteno conferida aos gestos que d sentido forma,

    uma vez que a melodia muito fragmentada. A primeira seo nos mostra de

    que maneira os motivos interagem no decorrer do movimento:

    Figura 40: Melopia n2, 3 Movimento, comp.1 a 7

    Guerra-Peixe define como anacrstica valores em rsis a pequena entrada que precede ao primeiro tempo do compasso (GUERRA-

    PEIXE, 1988, p.21). Desse modo, as barras de compasso, neste movimento,

  • 47

    podem indicar qual a intencionalidade dada aos gestos, de maneira que as

    anacruses movimentem a melodia.

    O ponto culminante alcanado por uma relao de segundas que se

    inicia no F# e vai ao Sib, no extremo agudo da flauta. Devido aos grandes

    saltos presentes na melodia, ao se enfatizar as notas que criam essa relao,

    o intrprete contribui para uma maior unidade no trecho:

    Figura 41: Melopia n2, 3 movimento, comp. 12 a 22

    Em seguida a melodia se encaminha para a regio grave da flauta,

    atingindo o ponto culminante inferior nove compassos aps o clmax. Na

    coda, o motivo a retomado uma oitava abaixo, recapitulando o incio do movimento. H tambm uma variao de a, obtida atravs de aumentao rtmica, como possvel observar abaixo:

    Figura 42: Melopia n2, 3 movimento, comp. 30 a 36 A questo rtmica, na Melopia n2, apresenta menos dificuldades ao

    intrprete, pois as barras de compasso esto diretamente relacionadas com o

  • 48

    fraseado, diferente do que ocorre na Melopia n1, principalmente no

    primeiro movimento. Outra caracterstica interessante o fato da srie estar

    organizada em acordes e no sofrer transposio, criando no ouvinte uma

    certa familiaridade com as relaes estabelecidas entre as notas. Por outro

    lado, a utilizao de intervalos dissonantes e a fragmentao da melodia

    dificultam a apreenso da obra.

    Melopia n3

    Em 1950, aps o rompimento com o Grupo Msica Viva e com a

    esttica dodecafnica, Guerra-Peixe, j estabelecido em Recife, comps a

    Melopia n3, no mais serial (GUERRA-PEIXE, Manuscrito 3). Apesar da

    mudana de orientao esttica, Guerra-Peixe ainda manteve o mesmo

    processo de composio das outras duas Melopias no que diz respeito

    utilizao de motivos para a elaborao dos movimentos que pode ser

    confirmada pelo Manuscrito 3, no qual conferimos a indicao desses

    motivos. Por outro lado, no local onde, nos outros manuscritos, o compositor

    apresenta a srie, neste, h uma inscrio que diz no serial. No se pode

    considerar que Guerra-Peixe, ao romper com o dodecafonismo, tenha

    retornado tradio tonal, porm possvel encontrar algumas relaes

    tonais nessa obra:

    Figura 43: Melopia n3, 1 Movimento, comp.1 a 6. Manuscrito 1

  • 49

    Assim como ocorre na Melopia n1, os compassos apresentam

    quantidades diferentes de tempos, porm, neste caso, essa irregularidade flui

    com a melodia, as mudanas de pulsao so realizadas de maneira mais

    orgnica, em contraposio s mudanas bruscas da primeira Melopia.

    O motivo a caracterizado por um arpejo ascendente em colcheias, seguido de uma segunda menor, com duas semnimas em movimento

    descendente, finalizado por uma colcheia em staccato:

    Figura 44: Melopia n3, 1 movimento, comp. 1 No compasso 13 ocorre uma progresso, obtida atravs de

    transposies de uma variao do motivo a, que gera, principalmente, uma relao de segundas inferior. Para evidenci-la, sugerimos um pequeno

    rubato em cada grupo, no qual a primeira colcheia teria o valor um pouco

    aumentado, seguido de um leve acelerando:

    Figura 45: Melopia n3, 1 movimento, comp. 13

    O motivo b formado por um arpejo ascendente e um movimento descendente em graus conjuntos. Sua estrutura semelhante ao a, porm a principal diferena est na presena da ligadura, que abrange todo o motivo.

    Figura 46: Melopia n3, 1 movimento, comp. 3

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    Podemos encontrar algumas variaes de b ao longo do movimento, nas quais o compositor insere alguns acentos dentro das ligaduras. No

    exemplo a seguir, pode-s