escrita de eros e tanatos no teatro de antonio patricio

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ESCRITA DE EROS E TÂNATOS NO TEATRO DE ANTÓNIO PATRÍCIO Roberto Nunes Bittencourt Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientadora: Profª. Doutora Luci Ruas Pereira Rio de Janeiro Outubro de 2011

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Page 1: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

ESCRITA DE EROS E TÂNATOS NO TEATRO DE ANTÓNIO PATRÍCIO

Roberto Nunes Bittencourt

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientadora: Profª. Doutora Luci Ruas Pereira

Rio de Janeiro

Outubro de 2011

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Escrita de Eros e Tânatos no teatro de António Patrício

Roberto Nunes Bittencourt Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas. Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Luci Ruas Pereira – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira – UFRJ _________________________________________________ Profa. Doutora Mônica Genelhu Fagundes – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Jorge Vicente Valentim – UFSCar _________________________________________________ Prof. Doutor Ronaldo Menegaz –PUC-Rio, ABL _________________________________________________ Profa. Doutora Mônica Figueiredo – UFRJ – Suplente _________________________________________________ Prof. Doutor Sílvio Renato Jorge – UFF – Suplente

Rio de Janeiro Outubro de 2011

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Bittencourt, Roberto Nunes. Escrita de Eros e Tânatos no teatro de António Patrício/ Roberto Nunes Bittencourt. – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2011. viii, 190 f. il.; 31 cm. Orientadora: Luci Ruas Pereira Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2011. Referências Bibliográficas: f. 173-185. 1. Literatura Portuguesa. 2. Simbolismo. 3. António Patrício. I. Pereira, Luci Ruas. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. Titulo.

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Aos meus alunos e ex-alunos: do Colégio Gama Filho, em 2006; do Colégio Maria José Imperial, desde 2006; do Instituto Braga Carneiro-Tijuca, desde 2010; do Colégio Maria Imaculada, em 2009; da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO, entre 2008 e 2010; do Colégio Pedro II – Realengo, em 2011. Ofereço. À minha avó, Gilma de Menezes Nunes; e à memória de meu avô, José Nunes Filho. Dedico. Ao meu irmão, Renato Nunes Bittencourt; à minha mãe, Sandra Maria Nunes Bittencourt; ao meu pai, Paulo Roberto Bittencourt. Consagro.

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AGRADECIMENTOS À Faculdade de Letras da UFRJ, pelo fundamental apoio neste curso de pós-graduação. Aos professores Jorge Fernandes da Silveira, Mônica Genelhu Fagundes, Jorge Vicente Valentim, Ronaldo Menegaz, Mônica Figueiredo e Sílvio Renato Jorge, por aceitarem o convite de integrar a banca que examinará este trabalho. Aos amigos e professores do Departamento de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II – Jorge José Veríssimo da Costa, Mariana Thiengo, Raquel Cristina de Souza e Souza, Heloisa Torres, Ednize Monteiro, Rafael Martins, Marcos Ponciano, Edson Carvalho, Aline Fagundes de Oliveira, Bianca Corado – pelo companheirismo nos momentos de angústia e pelas palavras de apoio e confiança. Aos amigos e professores do Instituto Braga Carneiro de Ensino – Magdalena Nicotera de Castro, Annye Siqueira, Gabriela Serpa, Gilberto Félix, Andreia Beatriz e Jheniffer Damázzio – e do Colégio Maria José Imperial – Anita dos Santos Ferreira, Maria Cristina Rosa, André Gustavo Oliveira, Rose Mary Lomba, Daniele Santos e Márcia Denise Guedes – por todo o incentivo. Aos amigos e professores da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO, que tão calorosamente me acolheram entre os anos de 2008 a 2010. Aos meus coorientandos da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO – Angélica Ribeiro, Juliana Fontes dos Santos Souza, Lorena de Oliveira Cristiano, Márcio Miquelino, Nathalia Caliman Ferreira da Silva, Rogério Ades e Shirleide Santos –, pela confiança. À Raquel Cristina dos Santos Pereira, que esteve presente em todos os momentos, numa generosa cumplicidade. À Priscilla Costa Figueiredo, amiga com quem partilhei dúvidas, vitórias e sonhos. À Ana Paula Castello Branco, Marina Schulz Mora, Renata Fernanda, Thaís Cristina Golstorff, razões de muitos dos meus sorrisos, por todo o carinho. Aos amigos de longa data – João Felipe Rito Cardoso, Célia Cohen, Diógenes Ivo Fernandes de Sousa Silva, Flávio Henrique Barboza da Silva, Magna Costa, Antônio Marcos Vieira de Oliveira, Fernanda Franco – porque, perto ou longe, sempre estão comigo. À Luciana Silva e ao Otávio Rios: amizades construídas durante a pós-graduação e mantidas para além dela. À Luci Ruas Pereira, orientadora e amiga, pela incansável orientação em todo esse percurso que foi o Doutorado – e por acreditar que eu seria capaz de concluí-lo. Ao meu irmão, Renato Nunes Bittencourt; à minha mãe, Sandra Maria Nunes Bittencourt; ao meu pai, Paulo Roberto Bittencourt, meus baluartes.

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RESUMO

ESCRITA DE EROS E TÂNATOS NO TEATRO DE ANTÓNIO PATRÍCIO

Roberto Nunes Bittencourt

Orientadora: Profª Drª Luci Ruas Pereira

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).

Este trabalho faz uma leitura de três textos dramáticos de António Patrício:

Pedro, o Cru (1918), Dinis e Isabel (1919) e D. João e a Máscara (1924). Nas três

obras, é analisado e discutido o processo de escrita do autor, sendo a relação tensa e

densa entre morte e vida o fio condutor da leitura. O que se escreve no teatro de António

Patrício é o tema da morte, numa confluência erótica com a própria vida, sendo aquela,

sobretudo, uma afirmação desta. A escolha deste fio condutor deve-se ao fato de que nas

três obras em análise se condensa uma problemática que ecoa no conjunto da obra do

autor.

Adota-se a metodologia mitocrítica como princípio de leitura dos textos

dramáticos de António Patrício, observando como determinadas metáforas obsessivas

(grupos de imagens que se repetem) convergem para a ideia de que a tensão entre a vida

e a morte surge como unidade entre o sensual e o espiritual. Desta maneira, António

Patrício registra a experiência de criar uma escrita capaz de abarcar de modo pleno a dor

e a morte, interpretando a vida como um exercício existencial de criação contínua, na

valorização de todas as circunstâncias vitais.

Palavras-chave: António Patrício; Simbolismo; Erotismo; Morte; Mito

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ABSTRACT

ESCRITA DE EROS E TÂNATOS NO TEATRO DE ANTÓNIO PATRÍCIO

Roberto Nunes Bittencourt

Orientadora: Profª Drª Luci Ruas Pereira

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). This work makes a Recital of three António Patricio's dramatic texts: Pedro, o

Cru (1918), Dinis e Isabel (1919) and D. João e a Máscara (1924). In this three lirerary

compositions, it's analyzed and discussed the author's writing process, being a tense

relation and dense between life and death, the conducor wire of the reading. The Death

it's the dramatic reading of António Patricio, in a erotic confluence with the life itself,

being that's, after all, an affirmation of this. The Choice of this conductor wire it's based

on the fact that in the three literary in analisys condenses itself in a problematic that

echoes in the context of the literary.

The crithical methodology adopted like principle of recital of the dramatic texts

of António Patricio, watching like certain obssessives metafores (Group of images that

repeat itselves) converge to an idea that the tension between the life and death arises

like unit betwen sexy and spiritual. Thus, António Patricio records the experience of

criate a writing capable of cover in a way plenty of pain and death, interpreating the

Life like an existential exercises of continuos criation, in valorization of all vitals

circumstances.

Keywords: António Patrício; Simbolism; Erotism; Death; Myth

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SUMÁRIO Introdução 1 1. Mitos, traumas e utopias: dinamismos da história portuguesa e recepção no universo literário

11

1.1. Imaginário português: ateliê de mitos 16 1.2. Cultura portuguesa e crise finissecular: reflorescer de mitos 37

2. António Patrício: escrita e experiência literária 57

2.1. A estética Simbolista em texto e contexto 62 2.2. Beleza apolínea, júbilo dionisíaco: a escrita mítica de Eros e Tânatos

92

3. Dos mitos e suas máscaras: escritas do Amor e da Morte 113

3.1. O canto de Orfeu, a voz da Saudade: Pedro, o Cru 116 3.2. Mística erótica em Dinis e Isabel 137 3.3. D. João e a Máscara: a predestinação da morte 149

Conclusão 169 Referências 173 Anexos 186

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1

Introdução

– Morte! És pra mim o sal da vida... O teu silêncio grita: – andem depressa! Deita mais lenha na ambição, ambicioso; decifrador de enigmas, parte a esfinge; corpo a corpo, amorosos, sonho em sonho; e tu, maníaco de teorias, bom filósofo, cose depressa o teu sistema – anda depressa!... O teu silêncio excita como uma dança de baiaderas: dá vertigem... Pra exasperar em nós a sagrada loucura de viver, para que os homens não percam um instante e ergam-te estátuas nos jardins, nas praças, na cimadilha das academias e dos templos, Musageta da Vida, grande Morte, com a lira de Apolo e olhos vazios... (PATRÍCIO, 1995, p. 128)

A epígrafe que abre esta tese aponta, desde o início, para uma proposta de leitura

de Pedro, o Cru (1918), Dinis e Isabel (1919) e D. João e a Máscara (1924), obras do

escritor português António Patrício. Em cada um dos textos dramáticos, o que se discute

é a relação tensa e densa entre morte e vida. No processo de enunciação, na

materialidade do texto literário, constrói-se uma tessitura erótico-verbal em que a cena

amorosa passa, invariavelmente, pela morte. A tensão entre Eros e Tânatos é

encontrada no choque entre a paixão de viver e a busca pela transcendência, que

condena esta mesma paixão. A escolha destes três textos deu-se, justamente, pela

coesão temática entre eles: António Patrício trabalha em cada um a relação tensa e

densa entre o amor e a morte.

Seja em Pedro, o Cru, em Dinis e Isabel ou mesmo em D. João e a Máscara,

cada texto dramático funciona por si só e em si só, explicando-se no interior do tecido

textual. O que se quer dizer com isso é que, ainda que o referencial sejam figuras

históricas, como Pedro, Inês de Castro, D. Dinis, Isabel de Aragão ou D. João, o que se

inscreve nos textos dramáticos é aquilo que pode haver de mais universal: a relação

tensa e densa numa forma de perceber os laços tênues entre vida e morte. Aliás, como

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será uma das linhas de leitura desta tese para os textos de Patrício, a cena de morte está

intrinsecamente relacionada a uma cena erótica.

Tal perspectiva leva ao pensamento de Denis de Rougemont que, em seu célebre

estudo a respeito do amor no Ocidente, categoricamente afirma que “Eros se escraviza à

morte porque quer exaltar a vida acima de nossa condição finita e limitada de criaturas”

(ROUGEMENONT, 1988, p. 256). O que se percebe na obra de Patrício em questão é

que a vida humana, mesmo que marcada pelo processo de transformação inerente ao

devir e pela condição de finitude, ela assim mesmo é plenamente digna de ser vivida na

sua máxima intensidade. Patrício realizou uma “tragédia íntima” cuja efabulação afasta-

se do real, porque se centra no mito e integra personagens que perseguem sombras.

Como destaca Armando Nascimento Rosa:

Em Pedro, o Cru, Inês morta é a Eurídice que Orfeu Pedro pretende impossivelmente trazer de volta do Hades. Em Dinis e Isabel, a morte de Isabel [...] faz de Dinis um revoltado Orfeu que entrevê o rosto do plutônico usurpador na figura invisível do Deus judaico-cristão. [...] Em D. João e a Máscara, o protagonista descortina que sempre dentro de si esteve aquela que ele ama fundamente: a Morte. (ROSA, 2003, p. 173)

Como obra literária, os textos dramáticos de António Patrício eternizam no

presente textual perdas irremediáveis: Pedro não pode ter Inês, porque é morta; o

milagre das rosas, que inscreve Isabel na santidade, revela-lhe, e também ao seu amado

Dinis, que viver não é mais possível; D. João, para quem o prazer dos corpos femininos

já não é bastante, encontra na Morte a sua realização. A garantia após a morte é a vida

como texto. E o que o texto garante, para além dessa presença, é morrer outra vez.

Escreve-se sobre a vida ao se falar da morte; e vice-versa. António Patrício deixa todos

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os outros temas de lado e trata obsessivamente o confronto do ideal de vida do homem

com potências superiores, da qual a morte é maior antagonista.1

Nos textos dramáticos de António Patrício, há uma conjugação de Eros e Tânatos,

de explosão vital e de presciência da morte, que vem escrever a impossibilidade de

consumação do amor no espaço da vida, marcada pelo conflito entre o amor terrestre,

sensual e o amor puro, celeste. Só na morte, portanto, seria possível a plenitude. A

morte deixa de ser termo último e passa à primeira condição, como fica patente em

Pedro, o Cru, na fala de Pedro à amada morta: “O nosso amor, amor, ainda era pouco.

Só abraçado à morte ele inicia” (PATRÍCIO, 2002, p. 138) ou, também, em D. João e a

Máscara, na fala de D. João, quando afirma “O meu reino é para além da carne”

(PATRÍCIO, 1972, p. 75).

É possível perceber, portanto, a presença da Morte como leitmotiv nos textos

dramáticos de António Patrício, configurando-se como figura de repetição, no decurso

de sua obra dramática, como tema que envolve significação especial. Aliás, para dizer

como Bataille, para quem o erotismo abre-se à exuberância, ao excesso, à vivência

dionisíaca, “o erotismo e a morte se encadeiam como peças de um mesmo instrumento”

(BATAILLE, 1988, p. 7).

De todo o referencial bibliográfico que se pôde levantar, há poucos estudos

importantes sobre a vida e a obra de António Patrício, sobretudo mais modernamente,

dos quais dois merecem destaque: o primeiro deles, de autoria de Jorge Carvalho

Martins (2000), em que o autor, documentadamente, acompanha a carreira diplomática

de António Patrício; o segundo estudo é o que realiza Armando Nascimento Rosa

(2003), em que o autor abrange vários níveis de abordagem, procurando dilucidar os

1 A respeito do drama simbolista, escreve Anna Balakian (2007, p. 99-100): “Por que haveria um desejo de superar obstáculos na vida quando a morte, o maior obstáculo, é invencível?”

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textos dramáticos de Patrício. Há, ainda, como resultados de pesquisas acadêmicas,

algumas dissertações e teses que, num menor ou maior grau, abordam os textos de

Patrício: Patrícia da Silva Cardoso (2002) faz uma leitura do episódio histórico

protagonizado por Inês de Castro e D. Pedro, discutindo a permanência do tema

inesiano no imaginário português a partir de oito versões literárias sobre esse episódio,

das quais uma delas é Pedro, o Cru. Delfim Correia da Silva (2007), a partindo de uma

perspectiva histórica, aponta as marcas comuns ou constantes na evolução do mito de D.

Juan, e destaca em sua pesquisa o texto dramático de Patrício, D. João e a Máscara.

Pesquisas que, se não são as únicas, foram aquelas possíveis de se alcançar.

O estudo do texto dramático de António Patrício torna-se importante a partir do

que afirma Anna Balakian, ao atentar para o fato de que “nas histórias do Movimento

Simbolista não se deu muita atenção ao teatro que se originou dele” (BALAKIAN,

2007, p. 97) e que, no entanto, ele é “um dos sucessos mais verdadeiros e duradouros

que o Movimento Simbolista criou para a poesia” (BALAKIAN, 2007, p. 98). Aqui

reside, portanto, a originalidade desta pesquisa. António Patrício tem sido, até então,

pouco lido pela crítica. Seabra Pereira, em seu Decadentismo e Simbolismo na Poesia

Portuguesa, ou Maria da Graça Carpinteiro no ensaio “A prosa poética do Simbolismo:

do fim do século XIX à geração de Orpheu”, por exemplo, não tratam da obra que

António Patrício produziu. Ou a postura irônica de Jorge de Sena em artigo intitulado

“António Patrício e Camilo Pessanha”, na revista Estrada Larga. Para Sena, Camilo

Pessanha é um poeta maior da Literatura Portuguesa e Patrício, apenas uma figura

notável, mas um poeta menor. Diz categoricamente não julgar elegante aproximá-los

por não ser capaz de “universitariamente, letradamente, aproximar um ovo de um espeto

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(SENA, s/d, p.136). Se é pertinente tal pensamento, por outro lado, e no contraponto da

crítica seniana, deve-se levar em conta o que afirma Jacinto do Prado Coelho:

a História da Literatura não devia contemplar apenas as obras primas, porque havia um segundo critério de selecção de textos (o da representatividade em termos de “história da cultura literária” – isto é, história das ideias, das formas, das técnicas, do gosto, da sensibilidade) e não raro deste ponto de vista, as obras menores são as mais sintomáticas, as mais significativas. (COELHO, 1985, p. 210)

Do ponto de vista teórico, vale a pena considerar as observações de Mukarovsky,

quando ressalta aquilo que o historiador da literatura deve ter em conta, ao avaliar obras

de arte: “Aceitamos a definição teleológica do valor como capacidade de urna coisa

para alcançar um determinado objetivo; é natural que a determinação do objetivo e do

caminho a ele conducente seja dependente do sujeito concreto, e então a valoracão

contém um momento de subjetividade” (MUKAROVSKY, 1993, p. 39). Mukarovsky

elaborou sua teoria estética fundamentada numa concepção da obra artística como

unidade significativa, em que o objeto físico é o significante de um signo, cuja análise

formal revela o significado da obra numa comunidade. Os fatores sociais e extra-

estéticos, em sua teoria, adquiriam importância porque eram portadores de significação,

e, portanto, formavam parte do conteúdo.

Tal percepção pode ser entendida na obra de António Patrício. Poeta, contista e

dramaturgo, sua atividade literária se inicia com a publicação de Oceano (1905). Após

este trabalho dedicado à poesia, publicou o texto dramático O Fim, “história dramática”

em 2 quadros (1909), e o livro de contos Serão Inquieto (1910). Escreveu, ainda, os

textos dramáticos Pedro, o Cru, drama em 4 atos (1918), Dinis e Isabel, “conto de

Primavera” em 5 atos (1919), D. João e a máscara, “uma fábula trágica” em 3 atos

(1924) e Judas, ato único (1924), além da edição póstuma de suas Poesias (1942) e a

edição da Poesia Completa (1980), e de ter colaborado em publicações como A Águia e

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Atlântida. Deixou incompletos os textos dramáticos Teodora, o sonho duma noite de

Bisâncio, A Paixão de Mestre Afonso Domingues, drama histórico em 3 atos, Auto dos

Reis ou da Estrela e Rei de Sempre, “tragédia nossa” em 5 atos.

Pode-se dizer que António Patrício foi eminentemente poeta, ainda que grande

parte da sua obra neste campo só tenha vindo à luz postumamente (Poesias, 1942; e a

edição da Poesia Completa, 1980). E foi poeta de singular valor, mesmo quando

enveredou pela prosa, como observa Duarte Ivo Cruz (1983, p.145) ao destacar que “a

evolução do Simbolismo encontra em António Patrício um dos melhores momentos e

no teatro a mais completa e característica expressão”.

Sobre isso, António José Saraiva e Óscar Lopes (1997, p.980) destacam que

Patrício, em seus textos dramáticos, escreve “trechos poéticos pelo seu próprio ritmo de

verso, pois só graficamente são prosa”. Assim, não se pode pensar a obra de António

Patrício esquecendo-se de considerar, sobretudo, o seu teatro, forma em que,

justamente, o autor conseguiu realizar o melhor de si como poeta. Manuel Tânger

Corrêa escreveu para a Revista Ocidente que “a impressão que se tem perante uma peça

de António Patrício é equivalente à que se sente perante um grande poema, tal a

intensidade da mensagem, aliada ao poder estilístico de expressão extraordinariamente

original” (CORRÊA, 1960, p. 6).

As obras dramáticas de António Patrício são, sobretudo, textos poéticos. Mais que

ação dramática, seus “poemas dramáticos” se fundamentam não somente nas ações, mas

também propõem reflexões metafísicas, cuja progressão dramática, por menor que seja,

se dá de acordo com duas instâncias: a do enunciado, que traz a ideia de uma ação mais

sonhada que vivida e a do movimento, invisível, mas contínuo (REBELLO, 1979, p.

43). José Régio, por exemplo, já aludia ao fato de que muitas vezes se falava do teatro

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português desconsiderando-se, completamente, os textos dramáticos de António

Patrício. E, ao pensar na singularidade de sua obra, pensa, também, na própria

singularidade artística de António Patrício:

escreveu António Patrício versos, contos e dramas cujos motivos se comprazem no doentio, no anormal ou raro, no mortuário. E escreveu-os numa linguagem quase sempre elevada ao poético (são, até, estrofes versificadas muitos dos seus períodos transcritos na maneira corrente da prosa), linguagem apuradíssima em ritmos, imagens, efeitos sônicos, fantasia – exaustiva pela sua própria consciência e excessiva riqueza, não obstante, sedutora e convincente no seu mesmo excesso. (RÉGIO, s/d, p. 417-418)

Estudar os textos de António Patrício, portanto, é ir além de Oceano ou das

Poesias. Ou, mesmo, de sua prosa. Há que se pensar, também, nos seus textos

dramáticos para, aí sim, perceber toda a força de criação poética do autor e, desta forma,

não será difícil a intelecção de que António Patrício é um escritor de destaque na

Literatura Portuguesa. Este lugar é reconhecido por críticos como Haquira Osakabe, ao

perceber que, sobre o valor da obra de António Patrício, “poucos seriam os críticos que

hoje em dia ousariam contestá-lo, embora raros tenham sido os trabalhos que se

debruçaram mais rigorosa e exclusivamente sobre ela” (OSAKABE, 2007, p. 67).

Assim, numa possível resposta à postura de Jorge de Sena, como não considerar

como parte da criação poética de António Patrício seus textos dramáticos, tão repletos

de um sentimento vívido de sobrevivência eterna, em um apego à vida e negando tudo o

que é exterior a ela? Como não considerar como parte de sua poesia a sensibilidade, o

rigor estético e formal que imprime às suas obras teatrais?

Nesse contexto, convergem para a obra de António Patrício tendências

simbolistas, decadentistas e saudosistas, aliadas à influência do pensamento de Friedrich

Nietzsche, sobretudo na recusa de uma finalidade da vida exterior a ela própria, numa

confluência de ideias que se realizam na expressão dum misticismo panteísta que

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percorre seus textos dramáticos, em que se pode observar a ideia de uma possível

“eternidade” da vida, que se encontraria no próprio instante no qual Pedro, Isabel e D.

João são tomados pelo júbilo de existir.

No teatro de António Patrício, é através da aliança entre Apolo e Dionísio que o

autor trará ao seu texto as figuras mitificadas de Pedro e Inês, Dinis e Isabel e D. João.

O que se lê não é mais do que uma representação, uma encenação do mito, ou seja, o

que se escreve no teatro de Patrício é o mito – experiência viva no ritual – tornado

ilusão na tragédia. Assim, realizar uma leitura dos textos dramáticos de Patrício

aproximando-os da estética simbolista e num profícuo diálogo com o pensamento

filosófico de Friedrich Nietzsche justifica-se na medida em que permite delinear a

própria inscrição de figuras arquetípicas na escrita do autor.

No percorrer das leituras, salienta-se que Eros e Tânatos denotam palavras-chave

de uma forma de expressar o elixir místico da compreensão e criação da condição

humana. É numa ambivalência criativa que rodam os 'sentidos' da tragicidade que

envolvem, em Patrício, as figuras de Inês e Pedro, Dinis e Isabel e D. João e a Morte.

Se há ao menos duas possibilidades de se trabalhar textualmente o mito – numa

dimensão cultural e histórica visando à gnose nacional e noutra dimensão metafísica e

trans-histórica, visando à gnose do homem como ser universal – parece ser a essa

segunda tendência que António Patrício se aferra. Nos textos em estudo, o paradigma é

constituído a partir de figuras históricas, mas o que se escreve é, mais que isso, o mito.

As personagens de seus textos dramáticos, numa esteira simbolista, circunscrevem-se

no ideal universal, trans-histórico.

Seja ao ler Pedro, o Cru, Dinis e Isabel ou mesmo D. João e a Máscara,

percebe-se que cada texto dramático funciona por si só e em si só, explicando-se no

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interior do tecido textual. O que se quer dizer com isso é que, ainda que o referencial

sejam figuras históricas, o que motiva os textos é aquilo que pode haver de mais

universal: a relação tensa e densa numa forma de perceber os laços tênues entre vida e

morte. Aliás, como será uma das linhas de leitura para os textos de Patrício, a cena de

morte está intrinsecamente relacionada a uma cena erótica.

António Patrício cultivou um teatro poético, desenvolvendo em seus textos

teatrais materiais arquetípicos, pressupondo que as imagens e os enredos míticos

possuem o poder de estabelecer conexões entre o inconsciente individual e o

inconsciente coletivo, assumindo uma função transformativa, pois não visa

exclusivamente a proporcionar fruição ou maravilhamento sensitivo, mas, mais que

isso, pretende despertar uma centelha interior através da imaginação simbólica. A

contribuição seminal de seus textos está no ato de revalorizar a imaginação mítica no

contexto do teatro novecentista.

Assim, espiritualidade e apego à vida terrena revelam-se, no fazer poético de

António Patrício, como partes indissociáveis de uma mesma essência. Suas personagens

são animadas por uma paixão no momento em que esta é tocada pela morte, por um

desejo que a nada satisfaz e, ao querer abraçar o todo, é introduzido pela dialética de

Eros:

Eros é o desejo total, é a aspiração luminosa, o impulso religioso original levado ao seu mais alto poder, à extrema exigência de pureza que é a extrema exigência de Unidade. Mas a unidade última é a negação do ser atual, na sua sofredora multiplicidade. Assim, o arrebatamento supremo do desejo conduz ao que é não desejo. (ROUGEMONT, 1988, p. 50)

Para concretizar aquilo que se anuncia, esta tese se estrutura em três capítulos. No

primeiro, desenvolve-se, à luz do pensamento de teóricos como António de Macedo,

Dalila Pereira da Costa, Gilbert Durand, Lima de Freitas, Eduardo Lourenço e Sérgio

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Franclim, o estudo dos principais vetores da mitologia portuguesa. Além disso, discute-

se, também, dentro da perspectiva finissecular em Portugal, a revisitação de certos mitos

culturais nos textos dramáticos de António Patrício, a saber, em Pedro, o Cru, Dinis e

Isabel e D. João e a Máscara. Problematizando a relação entre História e Mito,

compreende-se, mais profundamente, o processo de formação do imaginário2 mítico

português, seus traumas, mitos e utopias.

A partir daí, discute-se o papel que desempenha a produção dramática de António

Patrício no contexto finissecular português e qual a relação que sua escrita dramática

mantém com o teatro simbolista, questões que serão discutidas no segundo capítulo,

permitindo lançar luz para as diretrizes que norteiam a cosmovisão do autor, sobretudo

na escrita dramática de Pedro, o Cru, Dinis e Isabel e D. João e a Máscara.

Por fim, no terceiro capítulo, discute-se a escrita de Eros e Tânatos no teatro de

António Patrício, percebendo como o autor constrói as metáforas, os símbolos e as

alegorias textuais, de Pedro, o Cru, de Dinis e Isabel e de D. João e a Máscara, que

convergem para a relação morte/vida e, mais ainda, de que maneira tal dicotomia

mantém relação com a cena erótica, apontando para uma importante questão: como o

signo Morte redimensiona o sentido do signo Vida, apontando para o sentido de que a

escrita de Eros e Tânatos é, sobretudo, a escrita de mitos.

2 Pensa-se na ideia de imaginário como reconstrutor ou transformador do real, o museu e os processos de todas as imagens possíveis, como define Gilbert Durand (2004, p. 117), sendo, portanto, “a faculdade da simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos que o homo erectus ficou em pé na face da Terra”.

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11

1. Mitos, traumas e utopias: dinamismos da história portuguesa e recepção no universo literário

Seria por demasiado simples dizer que a História trata do passado humano. É isso,

mas não somente. Para o estudo que hora se realiza, toma-se como referência o

pensamento de Lima de Freitas, quando diz que “aquilo a que se chama ‘história’ vai

entendido como figuração ou actualização do ‘imaginário’, e, portanto, como o efêmero

e o circunstancial de um permanente, semper et ubique, que nenhuma história de meros

factos e acontecimentos poderá jamais circunscrever” (FREITAS, 2006, p. 32-34).

Cada momento cultural tem certa densidade mítica em que se combinam e se

embatem diferentes mitos. Pensa-se, assim, na relação biunívoca que a Literatura

mantém com o imaginário de um povo através dos motivos literários que muitas vezes

estão entre os grandes ícones por meio dos quais uma nação se auto-representa. Nesta

perspectiva, pensa-se como Octavio Paz, para quem “a História é o lugar de encarnação

da palavra poética” (PAZ, 1982, p. 227), numa alusão ao fecundo encontro entre a obra

literária e o seu tempo. É algo semelhante ao que postula Mircea Eliade ao pensar nas

relações entre História e Mito, quando diz que o mito é sempre fortalecido pelo campo

histórico e não por ele aniquilado ou vencido:

Só com a descoberta da História [...], só através da assimilação radical deste novo modo de ser representado pela existência humana no mundo foi possível ultrapassar o mito. Mas não é certo que o pensamento mítico tenha sido abolido [...] Ele conseguiu sobreviver, embora radicalmente modificado [...] e o mais curioso é que ele sobrevive, sobretudo na historiografia. (ELIADE, 1989, p. 27)

Para Eliade, também, é justamente a presença de Imagens e de Símbolos que

conserva as culturas ‘abertas’, para, então, concluir que:

as situações-limite do homem são perfeitamente reveladas graças aos símbolos que sustentam estas culturas. Se se negligenciar este fundamento espiritual único dos diversos estilos culturais, a filosofia

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da cultura será condenada a ficar como um estudo morfológico e histórico, sem nenhuma validade para a condição humana em si. (ELIADE, 1989, p. 173)

O ano de 1139 marca o início fundacional de Portugal. O verdadeiro significado

histórico deste momento, porém, vai muito além do que pensar na data de um país que

está para celebrar novecentos anos de independência nacional. Pensar no Portugal de

hoje é voltar, sobretudo, à sua pré-História, e é justamente a esses tempos imemoriais

que muitos estudiosos têm devotado suas leituras, indo às origens da Lusitânia e,

partindo delas, compreendendo o todo nacional, encontrando a essência de Portugal e de

seu povo3. Conforme constata António Quadros:

A historiografia moderna portuguesa, desde Alexandre Herculano e Oliveira Martins a António Sérgio, Magalhães Godinho ou Oliveira Marques, com a excepção de Jaime Cortesão e de uns poucos pensadores mais novos, passou ao lado do que se nos afigura ser o essencial da história de um povo: a sua fenomenologia espiritual, anterior à exterioridade política, social e econômica, porque fonte primeira de todos os actos humanos. (QUADROS, 1989, p. 20)

José Mattoso acentua que:

a importância do estudo dos símbolos, das insígnias e dos rituais para compreender as conexões, as ideias e as representações mentais dos homens da Idade Média. Estes elementos, incompreendidos e até desprezados pela historiografia positivista dos séculos XIX e XX, revelam-se, afinal, altamente significativos. (MATTOSO, 1993, p. 229)

O apontamento do historiador José Mattoso, tendo em vista as historiografias

modernas, por demais críticas e apegadas às fontes escritas, é muito significativo; é

nesse contexto que o autor faz uma crítica à mentalidade de que só é científico o fazer

histórico que se pauta em documentos escritos.

3 É complexo – e mesmo bastante difícil – conceituar povo, como atestam os próprios antropólogos. Neste trabalho, tomamos a palavra com o sentido de identidade coletiva.

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13

Quanto a isso, já apontava Ernst Cassirer, no seu Ensaio sobre o Homem, ao dizer

que:

Na sua busca da verdade, o historiador está sujeito às mesmas estritas regras que o cientista. Tem de utilizar os métodos de investigação empírica. Tem de coligir todos os testemunhos disponíveis e comparar e criticar as suas fontes. Não lhe é permitido esquecer ou desprezar qualquer fato importante. Não obstante, o ato último e decisivo é sempre um ato de imaginação produtora. (CASSIRER, 1994, p. 171)

Imaginação não adquire, para Cassirer, o sentido de fantasia, mas é um motor

psicológico capaz de animar o percurso histórico da humanidade. E é por meio desse

conceito que se estabelece uma perspectiva de captação semântica dos símbolos, das

insígnias e dos rituais do Portugal Mítico. Assim, há que se pensar para além de um

materialismo histórico e pensar no lado oculto e simbólico da História de Portugal,

através das diversas ordens iniciáticas que por lá se instalaram, além das interpretações

da mitologia, do misticismo e das doutrinas religiosas que influenciaram a Península

Ibérica. Isso sem contar no rol de nomes que, por vezes, transcendem a esfera histórica e

incorporam uma aura mítica, como Viriato e o mito da antemanhã, o herói libertador; D.

Afonso Henriques e o Milagre de Ourique, como mito fundador, apontando para o

providencialismo, que se consolidando com os descobrimentos, nos séculos XV e XVI;

e, mais ainda, com o sebastianismo e a União Ibérica, advindo, daí, a construção do

mito do Quinto Império.

Por isso é que se constata a necessidade de um estudo para além dos dados

cronológicos e interpretações simplistas, mas buscar a realidade viva e simbólica da

História e dos fatos que dela se originaram, compreendendo que uma análise histórica se

dá mais do que pela leitura de documentos coevos, estudos fósseis ou interpretações de

artefatos, mas pela leitura do pensamento mágico ancestral.

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Ao longo do tempo, o espaço físico de Portugal sofreu a influência externa de

várias culturas, desde épocas mais remotas. Assim, há que se compreender os iberos

originais e a sua tradição mágica, bem como o nascimento, apoteose e decadência de

povos posteriores, como os celtas, os cartageneses, os fenícios e os romanos, além da

tradição cultural árabe, como povos de grande contributo para aquilo que Portugal é e

que pode, muito ainda, ser notado, sobretudo, nas regiões mais interiores, em que as

tradições populares sobrevivem e teimam em não desaparecer, resistindo à força do

tempo e cuja preservação é fundamental para a própria noção de Portugal.

Para dizer com – e como – Nietzsche:

um povo – como de resto também um homem – vale precisamente tanto quanto é capaz de imprimir em suas vivências o selo do eterno: pois com isso fica como que desmundanizado e mostra a sua convicção íntima e inconsciente acerca da relatividade do tempo e do significado verdadeiro, isto é, metafísico, da vida (NIETZSCHE, 1993, p. 137)

Por isso à História, normalmente dividida em quatro pilares – religioso, militar,

econômico e social – deve-se acrescer, também, o mítico, como narrativa dos ciclos da

existência humana. No que diz respeito a Portugal, ler sua História Oculta é uma forma

de compreender o passado, entender o presente e pressentir o futuro de um povo que

está situado a sudoeste da Europa, na zona Ocidental da Península Ibérica, possui uma

área total de 92 090 km², e é a nação mais ocidental do continente europeu, sendo

delimitado a norte e a leste por Espanha e a sul e oeste pelo Oceano Atlântico, mas que

é mais que tudo isso.

Deve-se, portanto, percorrer Portugal ao encontro dos seus símbolos, suas

tradições e seus lugares mágicos, considerados verdadeiros tesouros nacionais, que

certamente merecem ser estudados, interpretados e sentidos, seja à luz da antropologia

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15

ou mesmo da tradição esotérica, para desvendar a “Alma Secreta de Portugal”, como o

diz Paulo Alexandre Loução (2002).

A História pode ser entendida como uma atualidade permanente – em que o

passado é grande espelho no qual se reflete a imagem do futuro – e, portanto, há que se

saber consultar o passado para que as experiências postas diante dos olhos sirvam como

exemplos para que se projete o novo quadro histórico que se quer reproduzir. Quanto a

isso, um salutar diálogo pode ser estabelecido entre o campo histórico e o literário.

O que se quer dizer com isso é que cabe, também à literatura, a leitura,

interpretação e propagação de muitas “células mitológicas” (LÉVI-STRAUSS, 1987)

que persistem no imaginário coletivo. Para Eduardo Lourenço, a Literatura é “antes o

espelho infinitamente reflectido do sentimento de nós mesmos, dos outros e do mundo

como ávido de maior realidade e verdade que só imaginá-las inventa para que possamos

suportar a existência na sua opacidade e fulgurância absoluta” (LOURENÇO, 2003, p.

5), o que corrobora a ideia de que o texto literário é um veículo de conhecimento de

uma dada época.

Na Literatura Portuguesa dos fins de oitocentos e das décadas iniciais de

novecentos, conforme se salientará, a escrita mostra-se comprometida com um certo

modo de ler os grandes símbolos nacionais; ou, mais precisamente, a forma portuguesa

de ler o imaginário ibérico, num profundo trabalho sobre a linguagem, desviando-se do

comum, da linha reta, como será o caso de António Patrício, sobretudo em Pedro, o

Cru, Dinis e Isabel e D. João e a Máscara, em que se assiste à subversão da história e

do mito.

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1.1. Imaginário português: ateliê de mitos Portugal é um navio naufragado em que a tripulação espera há séculos... (PATRÍCIO, 1995, p. 124)

O imaginário mítico dos portugueses encontra profundas raízes nos tempos pré-

nacionais e pré-cristãos, de tal maneira que se pode perceber uma série de marcas

culturais tais como a celta-lusitana, a indo-europeia, a megalítica e a greco-latina,

culturas ancestrais cujos traços marcam o homem primordial português. É o que leva

Gilbert Durand, numa entrevista a Paulo Alexandre Loução, a sentenciar que “Portugal

possui em abundância todos os mitos da Europa” (DURAND, 2008, p. 14). Neste

sentido é que o antropólogo do imaginário percebe Portugal como uma “reserva” do

universo mítico europeu, constituindo “o paradigma da identidade criada e mantida por

um povo ao longo do processo de desenvolvimento das suas imagens fundadoras”

(DURAND, 2008, p. 133).

Ainda, para Durand:

A história não explica o conteúdo mental arquetípico, pertencendo a própria história ao domínio do imaginário. E sobretudo em cada fase histórica a imaginação encontra-se presente inteira, numa dupla e antagonista motivação: pedagogia da imitação, do imperialismo das imagens e dos arquétipos tolerados pela ambiência social, mas também fantasias adversas da revolta devidas ao recalcamento deste ou daquele regime de imagem pelo meio e o momento histórico. (DURAND, 2002, p. 390)

A “linguagem” do imaginário, nesse contexto, revelará, interpretará e manipulará

as modalidades de atuação e compreensão do ser no mundo. Pode-se, assim, dizer que o

imaginário é o principal instaurador das diferentes formas de pensar, sentir e agir. Para

Gilbert Durand, portanto, é através da troca incessante entre as pulsões subjetivas (bio-

psíquicas) e as intimações objetivas (cósmico-sócio-culturais) que se processa o “trajeto

antropológico”. Ou seja, o dinamismo equilibrador que possibilita ao homem enfrentar

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ou eufemizar a angústia relacionada à consciência do tempo que passa e da morte. Dirá,

então, que “uma sociedade caracteriza-se pelas variações sofridas pelas grandes

imagens tradicionais e míticas. [...] Conhecer esses mitos é de uma importância capital

para penetrar nas orientações mais profundas duma sociedade” (DURAND, 2002, p.

13).

E é verdade se, ao considerar a imagem primordial, o modelo das origens do

homem arcaico português, pensar-se nos traços presentes, sobretudo nos meios rurais,

da sacralidade da Natureza, onde se manifesta o numinoso4. Ou, outro traço marcante, a

influência da divindade celta Lug, o Mercúrio gaulês, como lhe chamou Júlio César.5

No medievo, as Saturnais Paracléticas – como síntese das tradições pré-cristãs e do

cristianismo espiritual – renascem através do Culto Português do Espírito Santo.

O culto do Espírito Santo foi instituído em Portugal pelo rei D. Dinis, cuja decisão

contou com a decisiva influência da rainha Isabel, sua esposa. Ligado ao culto do

Espírito Santo, há a ideia profética e joaquimita do Império Universal e à esperança

escatológica, tão cara ao padre António Vieira, da proximidade do Quinto Império ou

Terceira Idade do Mundo, a Idade do Espírito Santo. Conforme destaca Jaime Cortesão

(1990), o culto ao Espírito Santo foi, durante os séculos XIV e XV e primeira metade do

XVI, uma das mais fervorosas devoções da família real, além de ser o culto popular

mais difundido em Portugal.

4 Termo cunhado por Rudolf Otto (1985), significando – por derivação do termo latino numem – deidade ou influxo divino. Para Jung, “Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. De qualquer modo, tal como o consensus gentium, a doutrina religiosa mostra-nos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa ao indivíduo. O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é, pelo menos, a regra universal” (JUNG, 1978, par. 6). 5 Para um estudo mais aprofundado da assimilação do culto de Lug/Mercúrio na Gália romana, recomenda-se o estudo realizado por Olivieri (2004, p.102-108)

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Especialista na investigação e no estudo das religiões comparadas, de

esoterologia, de História da Filosofia, António de Macedo, em entrevista à revista

Lusophia, aponta que todo o problema da portugalidade está num reencontrar das

origens:

[...] estou totalmente de acordo com a ideia do Franclim da “verticalização da Lusitânia”. Tudo ocorreu naturalmente. As pessoas começaram a chamar Lusitânia a Portugal… Portugal tem uma missão espiritual, mas sobretudo mistérica. E há bastante gente que está em Portugal a encontrar os mitologemas portugueses e a linha tradicional própria da portugalidade, que, a partir do século XVII, se distanciou bastante da europeia, até, então, existia uma linha esoterológica comum. Com a Inquisição, com o surgimento do rosacrucianismo, a nossa linha iniciática quebrou-se da corrente iniciática. Depois do culto do Império e do Divino Espírito Santo veio o Bandarra; no século XVII, tivemos o gigantesco Vieira, que acompanhou o século XVII todo. Ele foi buscar o mito do Quinto Império ao profeta Daniel e a Frei Gil de Santarém. Então, ficámos com os mitos diferentes: o bandarrismo, o Quinto Império, o Sebastianismo e as festas do Espírito Santo. (MACEDO, 2003)

A leitura de Macedo em muito se aproxima do pensamento de Teixeira de

Pacoaes, quando, numa perspectiva mítica de interpretação da “História Oculta” de

Portugal, afirma que:

É preciso que o povo encontre o culto religioso dos seus Avós – daquela alma primitiva que, dentre a confusão das raças da Ibéria, ergueu bem alto a sua presença livre e inconfundível – primeiro na figura homérica de Viriato e depois em D. Afonso Henriques, esse rude estatuário de uma Pátria que as últimas gerações têm mutilado. (PASCOAES, 1997, p. 83)

De grande contributo para os estudos do fundo mítico-espiritual que se mantém

vivo na cultura portuguesa foi o Colóquio Internacional Imaginário Cavaleiresco e

Conquista do Mundo, realizado em Tomar, de 16 a 23 de abril de 1983. Uma série de

investigações científicas abordou a riqueza espiritual lusitana, como, por exemplo, as

comunicações de Durand e Lima de Freitas. Ambos, inclusive, com profícua amizade,

debatendo as mais diversas imagens recorrentes do imaginário português. Os trabalhos

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19

apresentados durante o Colóquio discorreram, portanto, sobre temas que tocam fundo a

consciência nacional: a cavalaria espiritual, o ciclo arturiano, os Templários, a Demanda

do Preste João, o mito do Quinto Império e os mitos femininos.

Em seu texto intitulado “A demanda portuguesa do Preste João e o Graal”, Lima

de Freitas, ao abordar o mais rico tema da cavalaria espiritual6 e de sua importância para

a história portuguesa, destaca, justamente, que “o tema pertence ao número daqueles em

que inúmeros fios se cruzam num novelo labiríntico em que o ‘imaginário’ prevalece

sobre o que os historiadores designam por ‘real’, como a seiva determina a casca”

(FREITAS, 2006, p. 27).

Assim, com os vazios históricos, com fatos imprecisos, documentos escassos – a

casca de que fala Lima de Freitas –, assume maior importância o sentido profundo em

que os fatos se organizam – a seiva, o mito – e o significado que trazem em si. É neste

contexto que o estudioso das tradições imaginais em Portugal pensa a história para além

de um tecido de relações de produção. Aponta, ainda, para um “estranho silêncio que

pesa sobre as coisas portuguesas” (FREITAS, 2006, p. 28).

A riqueza da tradição mítica em Portugal parece estar guardada como um tesouro

oculto. Afinal, há uma ausência quase total de referências aos mitos mais relevantes da

mitogenia portuguesa ou, ainda, aos Templários portugueses e aos seus continuadores,

os cavaleiros da Ordem de Cristo, que partiram na demanda do reino de Preste João.

Nem René Guénon – cujos estudos abordaram, por exemplo, os Templários, além de

6 A lenda a respeito de um Reino fantástico governado por um Imperador Cristão surgiu por volta de 1144. Segundo relata Otto Von Freising na sua Chronica, que se encontrara em Roma, com o Bispo sírio, Hugo Von Gabala, enviado ao papa pelas igrejas armênias, que lhe falara de um padre e rei que vivia em terras além da Pérsia. Esse mesmo Rei teria feito guerra à Pérsia e, após o seu término, com grande sacrifício havia saído em socorro de Jerusalém, o que não ocorreu devido às inúmeras dificuldades. Este a quem chamavam de Presbítero João, se dizia descendente dos Reis Magos, pertencia à seita dos nestorianos.

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20

um livro inteiro dedicado ao Rei do Mundo, sequer se refere aos cavaleiros portugueses

da Ordem de Cristo7 – ou Evola – que, em seu O mistério do Graal, sequer se refere à

cavalaria portuguesa nas várias páginas dedicadas ao Preste João e ao seu reino

lendário. E mesmo Mircea Eliade, que viveu em Lisboa parte de sua vida, lecionando

por lá, em seu Aspectos do mito dedica algumas páginas do capítulo “Sobrevivências do

mito” à crença num Imperador que há de regressar de seu repouso em um país distante.

Cita, por exemplo, o mito do Encoberto, a demanda do Preste João, sem, sequer, citar

Portugal.

Para Lima de Freitas, “Tudo se passa como se Portugal fosse invisível, escapando

permanentemente à atenção dos pensadores e pesquisadores europeus. Mais do que o

fruto de um acaso ou a consequência de circunstâncias políticas recentes, queremos ver

em tudo isso um sinal” (FREITAS, 2006, 123). Fica, porém, ainda a – persistente –

pergunta: Que intencionalidade se esconde por trás deste silêncio?

Rejeitando o materialismo histórico em favor de uma História Invisível, Lima de

Freitas (2006, p.78) entende que o que provoca a História é “fundamentalmente a

produção e troca de mitos, de idéias”. É de Lima de Freitas um neologismo – o

“Mitolusismo” – cunhado em 1987. Sobre o tema, o mestre pintou um bom número de

7 Escreve Guénon (1995, p. 15): “Na Europa, toda ligação estabelecida conscientemente com o centro, por intermédio de organizações regulares, está atualmente rompida, a isso está assim já há muitos séculos; aliás, esse rompimento não foi realizado de um só golpe, mas em muitas fases sucessivas. A primeira. delas remonta ao início do século XIV; o que dissemos em outra parte sobre as Ordens de cavalaria pode fazer compreender que uma de suas principais atribuições era assegurar uma comunicação entre o Oriente e o Ocidente, comunicação cujo verdadeiro alcance é possível compreender se se observa que o centro do que aqui falamos tem sido sempre descrito, pelo menos no que se refere aos tempos “históricos”, como situado do lado do Oriente. Entretanto, depois da destruição da Ordem do Templo, o Rosacrucianismo, ou aquilo a que se devia dar esse nome em seguida, continuou a assegurar a mesma ligação, se bem que de maneira dissimulada. A Renascença e a Reforma marcaram nova fase crítica, e, enfim, após o que parece indicar Saint-Yves, o rompimento completo teria coincidido com os tratados de Westfália que, em 1648, puseram fim à guerra dos Trinta Anos.”

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quadros, que ficaram expostos na Galeria Gilde, em Guimarães, de 31 de outubro a fins

de dezembro de 1987. Ali estavam presentes, para citar alguns, o reino mítico de Preste

João, o mito sebastianista com o “Encoberto”, a Rainha Santa Isabel com “O milagre

das rosas”, a paixão de Inês e Pedro com “Até a fim do mundo”. Imagens que marcaram

– e marcam ainda profundamente – o imaginário português. Os mitos encerram,

portanto, uma simbologia essencial, a partir da qual cada povo escolherá o seu modelo,

vestido de acordo com a raiz cultural em que se assenta. Por isso, ao atestar a

universalidade dos mitos, dirá Lima de Freitas (2006, p.76) que estes são “arquétipos

que governam os homens”, constatando que:

A Península é o resultado de camadas de subconscientes muito variadas: nórdicos, celtas, árabes, com todas essas moiras encantadas... tem, por isso, um fundo mítico muito grande; e quando afirmo que não existem mitos portugueses faço-o, evidentemente, em sentido estrito, porque existem formas tipicamente portuguesas de mitos e é através do estudo dessas formas que podemos alcançar uma possibilidade séria de autoconhecimento. (FREITAS, 2006, p.77)8

Para Lima de Freitas, portanto, o conhecimento da mitografia é a chave de velhas

interrogações como “Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos?”. Neste sentido

que o imaginário português se fundamenta nos mais sólidos e sagrados princípios, tendo

sido constituído a partir da Ibéria como plano de realização dos mais altos desígnios.

Visão também ressaltada pelo que diz Paulo Alexandre Loução quando afirma que:

8 Se pensarmos na tradição ibérica, é curioso o que acontece, por exemplo, com Inês de Castro: enquanto a tradição literária portuguesa mantinha certa fidelidade ao fator histórico, a maior lenda em torno de seus amores com Pedro – a póstuma cerimônia da coroação e do beija-mão aparece, pela primeira vez, no teatro espanhol (SOUSA, 1984, p. 97). E, também, o próprio mito de D. Juan traz a imagem do viajante, de um homem que busca incessantemente em cada mulher o seu objeto amado. Importante ressaltar que D. Juan vem de uma tradição ibérica, a partir de Tirso de Molina. Assim, em D. João e a Máscara, de António Patrício, um dos textos estudados nesta tese, para além de uma leitura dos mitos portugueses está uma proposta de releitura de um mito ibérico. Ou, mais ainda, a forma portuguesa de interpretar/ incorporar, na tradição literária, o mito de D. Juan. O mesmo será observado no mito isabelino que apenas no século XX se torna mais visível literariamente.

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os mitos não se aniquilam: ou se concretizam, fazendo emergir uma nova realidade mítica, ou são recalcados à força para o inconsciente colectivo de um povo, tendo isto acontecido com o caso português. Quer dizer, os mitos recalcados no século XVI continuam vivos no inconsciente colectivo da população portuguesa e a dar sinais de sua presença. Uma característica do povo português é o seu universalismo, existindo nele uma apetência natural para se fundir com outros povos. (LOUÇÃO, 2007, p. 217)

É a partir dessa portugalidade de certas imagens arquetípicas que Gilbert Durand,

em seu trabalho de mitodologia – uma orientação epistemológica com a perspectiva de

se desenvolver uma abordagem científica que leva em conta o elemento espiritual e

coletivo na concretude da realidade imediata –, desenvolve uma minuciosa mitoanálise

da psique portuguesa, ao enunciar quatro mitologemas – estruturas quase formais de um

mito ou de uma sequência de mitos –, todos eles convergindo para o “absoluto ex-

otismo do imaginário” (DURAND, 2008, p.34). Referindo-se às imagens recorrentes da

tradição mítica portuguesa, Durand classifica os mitologemas em quatro grupos; o

“Fundador vindo de fora”, a “Nostalgia do impossível”, o “Salvador oculto” e a

“Transmutação dos atos”.

O primeiro, sobretudo, é marcado pela navegação: o fundador pré-cristão Luso;

Ulisses, fundador de Lisboa, a Ulissipona; ou a lenda de São Vicente mártir, trazido

pelo mar até ao Algarve, guardado por dois corvos gigantes, em uma navegação

fúnebre. Sobre este aspecto, destaca Lima de Freitas:

S. Vicente, ao chegar por mar ao Algarve e depois a Lisboa, marca bem a vocação mortal do Ocidente, da extrema ocidental onde a terra acaba (o sólido, o manifestado, o consciente, o diurno) e o mar começa (o líquido, o latente, o inconsciente, o nocturno). Caso restassem dúvidas aí estão os corvos, a ave negra da nigredo alquímica, os ‘vicentes’ da gíria lisboeta, o cor-beau da ‘langue verte’ dos argóticos (os da arte ‘gótica’) que tão belamente exprime o corpo tisnado pelo fogo, reduzido a uma espécie de pura antractite cujas escórias estão já consumidas e que é tudo o que resta do ‘velho Adão’ após a primeira morte ou consumação pelo fogo alquímico, resíduo negro do volátil, matéria prima ou caroço da quadratura ou corpo belo de que poderá partir-se para a ulterior sucessão de sublimações,

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precipitações e operações conducentes à obra branca e à rubificação. O corvo é ainda, por cabalística fonética, o coração que é o vaso purificado pela renúncia aos pensamentos mundanais e pela morte iniciática. (FREITAS, 2006, p. 175, grifos do autor)

Também sobre o mar, diz o Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain

Gheerbrant:

Tudo sai do mar e tudo regressa a ele: lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre os possíveis ainda informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida, da indecisão e que pode terminar bem ou mal. Daí vem que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e da morte. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 592)

Sobre a simbologia do mar, é o que diz, em outras palavras, um texto gravado em

uma placa de pedra, exposta no Museu de Ouro de Bogotá, proveniente dos Índios

Kogui das costas da Colômbia, perto de Cartagena: “No começo era o mar. Todo o resto

era negro e vazio. O mar era o pensamento e a memória. Ele era a respiração do futuro”

(FREITAS, 2006, p. 187). Evocar o mar é, também, pensar no simbolismo da barca e da

navegação, na viagem. E, por isso, dirá Vergílio Ferreira:

Penso num dos mitos mais antigos da cultura ocidental e que Homero nos fixou. A viagem. Ele não é naturalmente só nosso. Mas foi sobretudo em nós que ele respondeu ao que lhe é consubstancial, ou seja, à inquietação. E uma inquietação que se não sabe verdadeiramente que existe senão depois de se ter cumprido no impossível repouso da chegada. [...] O percurso dos descobrimentos teve um ponto de partida, mas não poderia jamais ter um ponto de chegada. Porque a própria viagem de circum-navegação não fechou o termo da procura, mas foi apenas o início da que fosse além da Terra para atingir o seu limite no sem-limite de espaços. (FERREIRA, 1995, p. 35)

Na dinâmica de imagens que evoca, como a do abismo e a do nascimento-morte –

e pensando no mitologema de Durand –, a travessia e o barco assumem uma função

iniciática. Daí emergir Saturno das profundezas do mar, como seu berço; é pela

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construção da arca que Noé se salva da fúria divina manifesta no dilúvio; Pedro,

pescador e apóstolo, erige a igreja de Cristo como a barca salvadora.

O segundo mitologema traz à luz lendas ligadas ao nostálgico desejo do

impossível. No amor, é ilustrado por Sóror Mariana Alcoforado que, no convento de

Beja, teria escrito as apaixonadas Lettres ao seu amado Chamilly; e, história ímpar na

cultura portuguesa, as páginas dos trágicos amores de Inês de Castro e o Infante

Pedro de Portugal.

Como destaca Lima de Freitas:

A Nostalgia do Impossível marca, certamente, o ciclo tão português dos amores de Pedro e Inês, a mísera e mesquinha que depois de morta foi rainha cantada por Camões, paixão que tem inspirado tantos escritores, poetas e dramaturgos dentro e fora de Portugal, de Resende, António Ferreira e Houdar de la Motte, a Bocage, Bowyer, António Patrício, Lopes Vieira, Henry de Montherlant; paixão que erremete contra a lei da morte e, sem se deixar paralisar pelo delírio do macabro, leva a saudade apunhalante do ser amado e do bem perdido até à loucura ressurrecional que a transforma em união mística e transcendente.

(FREITAS, 2006, p. 89)

Neste sentido, a desilusão amorosa de Sóror Mariana e os amores de Inês e

Pedro encarnam a força simbólica de um dos mitos eternos da humanidade: o amor

que resiste ao tempo e recusa a morte. Na empreitada guerreira, destaca-se o nome

do jovem condestável de 24 anos Nuno Álvares Pereira que na proporção de um para

dez, arrebatou, decisivamente, a vitória de Aljubarrota – onde ainda hoje se eleva a

Igreja de Santa Maria da Vitória, ou da Batalha.

Lima de Freitas ainda acrescenta:

o milagre da ressurreição que nimba a figura do Mestre Roseacruz da Fama Fraternitatis, que Fernando Pessoa exalta,

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25

calmo na falsa morte e a nós exposto, o Livro ocluso contra o peito posto, assim portugalizando pela via poética um mito iniciático que Valentim Andreae articulara no século XVII em língua alemã.

(FREITAS, 2006, p. 90-91)

O mitologema do “Salvador oculto”, do rei que espera a hora do regresso é, para

Durand (2008, p.28), “cenário quase universal”. É Paraçu-Rama dos hindus escondido

no Mahendra; Holger, mítico rei dos dinamarqueses, adormecido em uma câmara

subterrânea debaixo do castelo de Kronborg; na tradição celta, o rei Artur, encoberto na

Ilha de Avalon. Na tradição portuguesa, ocupa este lugar arquetípico D. Sebastião, o

Encoberto, rei que desaparece a 4 de agosto de 1578, em Alcácer-Quibir, na cruzada

contra os mouros9.

Por trás do Herói prometido, no Restaurado das nações e dos mundos, perfila-se o mito de Saturno, na perdida Idade do Ouro que voltará no fim dos tempos, do Milénio profetizado por João em Patmos e pelo abade Joaquim, que tanto ecoou em Portugal. E temos aí a emergência lusa e universal (tão lusa na sua universalidade, tão universal no seu lusitanismo) do fascinante Preste João das Índias, Rei do Mundo até a vinda do Paracleto, oculto algures na confluência dos mares, no palácio fabuloso do Graal guardado pelo Sol e pela Lua... (FREITAS, 2006, p. 90)

Dalila Pereira da Costa aponta para um sentido alquímico da presença sebástica

no imaginário cultural português ao dizer que:

O Sebastianismo é sempre inseparável dos Descobrimentos: como segundo ato dum drama ou ritual nacional. Porque, após o descobrimento do caminho para as Índias, como aquelas que em si detinham o prestígio do centro, este posteriormente ter-se-ia deslocado e encarnado na Ilha do Encoberto. Ela será desde então, miticamente, como o umbigo do mundo, a realidade suprema e supremamente desejada. A que flutua nas águas primordiais — tal outro lótus sagrado de onde nasce Brama. Receptáculo de vida. Porque aqui, para a alma portuguesa, será acaso a realidade da ilha, a que em si detém todo o valor e função e prestígio do centro, tal como foi a rosa para o Ocidente e o lótus para o Oriente: será ela a flor

9 Interessante destacar uma entrevista de Lima de Freitas (2006, p. 75) ao Jornal de Letras, com um título bastante significativo: “D. Sebastião não é um mito português”, apontando, justamente, para a universalidade dos mitos e para a maneira segundo a qual os incorpora.

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secreta. A que no seu interior, no mais profundo das suas pétalas, concebe, encobre e protege o Salvador do mundo. Ela, a Rosa

Mística. (COSTA, 1978, 140-141)

O quarto e último mitologema, o da “Transmutação dos atos” – ou transmutação

paraclética do mundo, como também lhe chama Durand –, refere-se ao milagre da

transformação da água em vinho ou do pão dos pobres em rosas. No imaginário

português, destaca-se a taumaturgia da Rainha Santa Isabel, mulher de D. Dinis. Ela

que, à semelhança de Isabel da Hungria e de Rosa Viterbo – duas santas, ambas da

Ordem Terceira de São Francisco –, transmuta, milagrosamente, pão em rosas e rosas

em pão para os pobres.10 Para Gilbert Durand:

O cenário mítico estava, assim, pronto para que os Franciscanos pudessem integrar as taumaturgias da transmutação da rainha de Portugal, filha do rei de Aragão, Isabel, a “rainha Santa”, que nasceu em 1271 e morreu, simples Clarissa, em 1337: milagre do pão transformado em rosas, e também o milagre inverso, das rosas transformadas em pão para os pobres; e, ainda, o milagre quase crístico – tendo-lhe o seu confessor aconselhado a temperar a sua penitência bebendo um pouco de vinho – da água milagrosamente convertida em vinho. Mas acima de tudo interessa sublinhar que se trata da Rainha de Portugal e igualmente uma santa de grande devoção do país. Qual o sentido que podemos dar a esta insistência franciscana em fixar a taumaturgia das rosas e do vinho, e em atribuí-la à Rainha Santa, Rainha de Portugal? Penso que é necessário dar a estas transformações o sentido que o hagiógrafo dava à lenda de Isabel da Hungria e da Tarúngia: ver rosas em lugar do pão, ver o sangue de Cristo em lugar do vinho, é ver “com os olhos da alma” – “per interiores óculos”. (DURAND, 2008, p. 33)

É o mitologema inspirador de todas as descobertas, cujo objetivo era encontrar o

reino do Preste João, influenciado, sobretudo, pela instauração em Portugal por D. Dinis

e pela Rainha Santa do culto do Espírito Santo.

10 Interessante, também, é o estudo biográfico realizado pelo Conde de Moucheron. Numa das passagens da obra, o biógrafo relata um outro milagre de Isabel: “Foi ainda em Alenquer que teve lugar um comovente episódio: a Rainha, querendo assinalar sua estada, tinha feito construir junto da sua residência uma igreja dedicada ao Espírito Santo. Mas já não tendo acesso aos seus rendimentos, pois que o rei disso a tinha privado, ficou muito aflita na hora de ter de pagar aos operários. tendo estes se apresentado para receber o salário, ela teve uma súbita inspiração e pagou-lhes em rosas. Mas quando chegaram às suas casas, em vez dessas flores encontraram moedas de ouro” (MOUCHERON, 2008, p. 85)

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No seu primeiro de três volumes acerca dos descobrimentos portugueses, Jaime

Cortesão (1990), ao analisar as navegações para além de fatores geográficos, políticos e

econômico-sociais sugere que os Descobrimentos participam de um longo processo

espiritual que visa, tanto ao conhecimento científico do planeta quanto ao seu

enquadramento no Universo, o que, de fato, se percebe no projeto dos Alcobacenses, na

figura de Frei Bernardo de Brito, que se propunham à redação da História de Portugal

desde a sua gênese: a criação do mundo.

Nos quatro mitologemas, Gilbert Durand destaca a paixão do além como traço

marcante do imaginário português. Seja nos mitologemas do “Fundador vindo de fora”

ou do “Salvador oculto” – este um eco daquele –, seja nos outros dois, o que há é uma

fé em um além absoluto, apontando, justamente, para a possibilidade do impossível.

Assim, diz o antropólogo que:

[...] todos os sonhos com asas de caravelas levantam voo na alma portuguesa: apostolado franciscano e mais tarde jesuíta, sonho grandioso do joaquimismo, cavalgada de cavaleiros em perseguição dos mouros (primeiro no solo ibérico), depois os cavaleiros que se tornaram marinheiros, passando para lá de Gibraltar, de Cabo Verde e da Boa Esperança, dando ao mundo todos os inesgotáveis mundos de aventura e de sonho, oferecendo – “até ao fim do mundo” de terra e de pedra – a esperança dos mundos e o eterno convite à viagem. (DURAND, 2008, p.34)

Sérgio Franclim (2009, p. 13) – para quem os “mistérios de uma nação são por

vezes demasiado densos para que possam ser dissecados e compreendidos à luz de

questões materiais” – desenvolve um interessante estudo a respeito da mitologia

portuguesa, dos mistérios e das figuras ímpares da História de Portugal, ressaltando,

sobretudo, o destino divino que a pátria portuguesa sempre reclamou para si, como povo

eleito, desde a aurora da nacionalidade. Diante de um processo a que chama

verticalização da Lusitânia – caracterizada como a aglomeração de uma experiência

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coletiva – Franclim (2009, p. 11) destaca que Portugal é “o ressurgimento daquilo que

foi a Lusitânia”.

Adotando uma perspectiva espiritual, Franclim divide a história de Portugal em

cinco ciclos, ressaltando que se vive hoje o quarto, sendo o quinto, ainda, uma

promessa. Mas, como destaca:

Tal divisão é meramente simbólica e está intimamente ligada aos acontecimentos que consideramos mais significativos para que se possa compreender a importância de Portugal perante o Mundo e perante o destino da humanidade. No final de cada um dos quatro primeiros ciclos, domina a ideia de destruição da pátria. Além disso, cada um dos ciclos está intimamente ligado á ideia de iniciação. [...] Cada fase da história portuguesa, simbolicamente dividida, tem um período em que a nacionalidade portuguesa é posta em causa. (FRANCLIM, 2009, p. 11)

Desta maneira, o primeiro ciclo iniciático – em que o poder ideológico dominante

é o dos reis – inicia-se em 1140, ano em que D. Afonso Henriques passa a assinar seus

documentos como rei, perdurando por 245 anos, sendo que a prova iniciática se dá com

a morte de D. Fernando I, em 1383 – a simbólica descida aos infernos, de qua falam

René Guénon11 e Sérgio Franclim12 – para, em 1385, com a Batalha de Aljubarrota,

iniciar-se a ascensão de Portugal no início de um novo ciclo. Este, com o poder

ideológico do clero, que durou cerca de 255 anos – de 1385 a 1640 – e cuja descida aos

infernos e a ascensão são marcadas pelo desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-

Quibir e a restauração da independência (1578-1640). Durando cerca de 250 anos, de

1640 a 1890, e tendo como poder ideológico dominante o do povo, o terceiro Ciclo se

consolida – com o segundo – como cerne do messianismo português, sobretudo ao se

11 Como aponta René Guénon (1995, p. 54): “Sendo a verdadeira iniciação uma tomada de posse consciente dos estados superiores, é fácil compreender que ela seja simbolicamente descrita como uma ascensão ou uma ‘viagem celeste’; mas poder-se-ia perguntar porque é que essa ascensão deve ser antecedida por uma descida aos infernos. [...] essa descida é como uma recapitulação dos estados que precedem logicamente o estado humano, que determinaram as suas condições particulares e que devem, assim, participar na ‘transformação que se vai efectuar.” 12 Para Franclim (2009, p. 13), sendo a história de Portugal cíclica e cada Ciclo uma recapitulação dos anteriores, a descida aos Infernos constitui “a contínua purificação da nação”.

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pensar no sebastianismo que florescia cada vez mais diante de um Império então em

ruínas. Portugal perde, afinal, sua autonomia em Alcácer-Quibir e, por longos sessenta

anos, põe-se à sombra da coroa espanhola, com a geração filipina13. Trata-se, aliás, do

primeiro de um conjunto de atos que culminam, no final do século XIX, com o

Ultimato, conforme destaca Sérgio Franclim:

A escuridão que envolve Portugal é enorme. Nessa escuridão, mescla-se o nevoeiro sebástico. Nesse nevoeiro, vagueiam portugueses de outrora, mantendo viva a chama da Mitologia Portuguesa. A escuridão é enorme, mas já renascem verdadeiros portugueses, espiritualmente superiores, aptos a erigir a portugalidade no verdadeiro caminho. Hoje, o Tejo está coberto de nevoeiro e os sonhos estão sustidos sobre o império mais perfeito de Deus: aquele que será o Quinto e perfeito por ser contrário a todos os outros, pois terá o espírito de Deus a torná-lo eterno na imensidão do universo. Este é o sonho do Quinto Império: português e universal; português e espiritual. (FRANCLIM, 2009, p. 187)

Com as invasões francesas em 1807, Portugal prova uma nova descida aos

infernos, tendo início a destruição da monarquia e a incapacidade de ser independente

diante do estrangeiro. Com o poder ideológico dominante dos poetas14, em 1890

Portugal tem sua quarta Iniciação que, seguindo a média dos anteriores, durará cerca de

250 anos. Será, então, o ano de 2140 – com o poder espiritual – o da implantação do

Quinto Império após 1000 anos de Portugal?

13 Formulado pela primeira vez nas Trovas do sapateiro Gonçalo Anes, o Bandarra, em meados do século XVI, o mito de um rei Encoberto e salvador reapareceu durante o período filipino na sua forma sebástica. Após a Restauração, o padre António Vieira continuou a divulgação dos textos de Bandarra, ampliando a profecia à ideia de um Quinto Império português, em que se cruzavam temas históricos e bíblicos. Depois de D. João IV, o rei Encoberto foi sucessivamente identificado com D. Afonso VI, D. Pedro II e D. João V, reaparecendo no contexto das invasões francesas e no miguelismo. O sebastianismo assumiu importância ímpar, expressando o desejo persistente de libertação da miséria e opressão cotidianas. 14 Diz Franclim (2009, p. 152): “A 4ª Iniciação de Portugal começou a se definir com o Ultimato Inglês e com a implantação da República; é um ciclo impreciso, em que se confundem, em certa medida os três estados sociais: a nobreza, o clero e o povo e em que há uma certa dispersão, principalmente porque ainda nos situamos nele. o poder dominante da portugalidade é, contudo, dos poetas”. O autor destaca, sobretudo, o recrudescimento do sebastianismo: mais que D. Sebastião histórico, o que prevalece é o D. Sebastião metafísico.

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Assim, os principais mitos culturais de Portugal procuram justificar a aventura

portuguesa, no âmbito de uma aventura maior, a humana, movida por uma missão

universalista. Desta maneira, tem-se o sebastianismo, o Quinto Império – tão

preconizado pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa, e a Idade do Espírito

Santo, nas ideias Agostinho da Silva, que enfatizam o papel de Portugal como líder na

construção de uma sociedade de nações messiânica e providencial.

Esta vocação plasmou-se em tempos na revista A Águia, que retomava as

reflexões dessas e de outras figuras importantes da cultura portuguesa sobre o tema e

que veio encontrar eco na primeira década do século XXI com a Nova Águia, que

ressurge com a proposta de se “repensar desde a raiz o sentido de Portugal e da cultura

portuguesa lusófona […] para propiciar a emergência de uma nova consciência das

possibilidades da nação, da lusofonia e da humanidade” (BORGES, 2008, p. 5). Fala-se,

novamente, no destino grandioso de Portugal e da comunidade lusófona; dos mitos e

das profecias como indicadores de uma vocação portuguesa como nação que se auto-

elege para as cumprir.

Eduardo Lourenço, ao refletir sobre a alma nacional, o sentimento português, e a

identidade cultural, mostra que tais questões constituem uma preocupação dos grandes

escritores portugueses, quando, ao escrever, indagam-se o que é Portugal e o que

significa ser português. Em dois de seus livros – Nós como futuro (1997) e Mitologia da

Saudade (1999) –, põe em questão o culto da nação portuguesa ao passado. Para o

autor, “nenhum povo vive no passado como Portugal” (LOURENÇO, 1997, p. 19). A

memória coletiva e a sua constante revisitação do passado coletivo é, conforme ressalta

Eduardo Lourenço, uma das peças importantes que encaixam no processo de autognose

nacional, como a forma segundo a qual a pátria constrói os seus modelos identitários a

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partir do difícil equilíbrio entre o passado/memória e o futuro/destino, quando entre elas

há um presente de crise. Percebe-se, assim, nos contextos históricos, tentativas

frustradas de superação de um déficit de identidade nacional através de uma identidade

projetada e fantasiosa. É o que Eduardo Lourenço chamaria de hiperidentidade mítica.

A característica insatisfação é resultado de um sentimento de ainda não ter

cumprido plenamente algo a que Portugal crê estar destinado provocando um forte

desânimo que não é mais do que o estado de alma experimentado nos momentos de

crise anímica profunda, pela ausência de ideais, de motivações, tendo em conta, ainda,

um descontentamento em relação a si mesmo julgando-se, no momento, incapaz de

aferrar-se ao destino para o qual foi forjado. Sendo o passado essencial ao sentido de

identidade individual e coletiva, em vez do desejo de subverter as memórias

traumáticas, devia se verificar a vontade de as integrar harmoniosamente no conjunto

das dores de crescimento. Depois do passado nacional e de um presente de crise, tem-se

a ideia de destino como terceiro aspecto deste paradigma identitário português.

É por isso que Eduardo Lourenço crê que o universo cultural português arrasta,

há mais de quatro séculos, uma existência crepuscular. Após uma era gloriosa de

descobrimentos e expansão, reserva-se para esse passado um sentimento de saudade,

decorrente da incerteza de que os tempos egrégios talvez nunca mais vão se repetir.

Pela saudade projeta-se no futuro o resgate das glórias do passado. É justamente este

sentimento que cria uma identidade portuguesa a partir das figuras mitificadas. Para

Eduardo Lourenço (1999, p. 13), “a saudade não foi mais que a expressão do excesso

de amor em relação a tudo o que merece ser amado”. E, então, conclui que:

Com a saudade não recuperamos o passado como paraíso; inventamo-lo. O nosso povo, imemorialmente rural, absorvido por fora em afazeres desprovidos de transcendência, mas levados a cabo como uma epopeia, com seu talento do detalhe de miniatura é um povo

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sonhador. Não especialmente por ter cumprido sonhos maiores do que ele, mas porque, no fundo de si, ele recusa o que se chama a realidade. (LOURENÇO, 1999, p. 14)

A saudade é um sentimento de letargia decorrente da contemplação do passado

belo, que geralmente motiva o abatimento das disposições ativas da vitalidade de um

homem, podendo levá-lo inclusive a sofrer terríveis tormentos morais na condução de

sua vida prática, como decorrência do anseio de se reviver novamente as experiências

do passado tais como o foram feitas, desconsiderando, assim, o avanço do tempo e dos

acontecimentos na sua própria vida.

Dessa forma, a saudade é um afeto que direciona o enfoque de um indivíduo para

o passado radiante e idealizado, sem que, contudo, o instigue a viver criativamente no

presente, pois o indivíduo saudoso tende a considerar como valoroso, sobretudo aquilo

que faz parte do passado longínquo15. Para António Cândido Franco, “é uma saudade

quase gnóstica, uma saudade luminosa doutra matéria qualquer que não sabemos qual é.

Uma ânsia, uma aspiração, um desejo de infinito” (FRANCO, 2002, p. 140).

Dalila Pereira da Costa vê na saudade uma condição dramática da existência e,

ao mesmo tempo, redentora. É um conhecimento “de experiência feito”, um

“conhecimento-vivência”, nas palavras da autora:

No conhecimento, um povo rebentará nos limites dum século da sua história (e cada um dos seus homens nos limites da sua vida própria) os limites postos ao mundo conhecido, como Terra, abraçando-a circularmente, desvendando-a e possuindo-a num enlace e súbita iluminação, total. Na sua história, mas nela carnalmente, dramaticamente, por cada vida dum desses homens

15 Nesse aspecto, pode-se considerar como propiciador do declínio da vitalidade e da potência criadora de um homem qualquer tipo de discurso que conceda demasiada importância para o sentimento de nostalgia, da saudade, como, por exemplo, a poesia que porventura verse efetivamente sobre esse estado de ânimo, enfatizando as dolorosas recordações do homem saudoso, o qual, incapaz de se desvencilhar das suas lembranças, não consegue desenvolver ações valorosas e criativas no momento presente.

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e todos juntos e unidamente, então rebentando o que surge como o possível concedido à força humana.

Será essa exigência última, a um tempo existencial e cognitiva, porque sempre do saber como vivência, o impossível sendo a dimensão da tensão que se põe no arco para o desfecho da seta – , o que informa a história pátria: como existência terrestre dum ser coletivo.

Um caminhante em passagem aqui sobre a terra, ser finito e em trânsito, mas que para ela, sobre ela, trouxe uma medida do céu, como medida sem medida – a que humanamente se chama o impossível.

(COSTA; GOMES, 1976, p. 97)

Para Friedrich Nietzsche (2003), a arte que não está comprometida com a

afirmação da vida, com o aumento de potência criadora de ação, é extremamente

prejudicial para o homem, pois somente serve de instrumento para o declínio das suas

forças vitais. Há que se pensar, também, na criação artística que se utiliza da lembrança,

da nostalgia do passado, como impulso para o presente e para a atividade. Essa

peculiaridade, na interpretação nietzschiana, se serve da recordação saudosa como meio

de desenvolvimento de sua própria força produtiva, favorecendo a continuidade da vida,

da criatividade. Nessa concepção, compreende-se que o passado foi deveras marcante,

mas, se compreende também, que ele deve ser superado, posto que a vida é uma

constante transformação de forças.

Que os grandes momentos na luta dos indivíduos formem uma corrente, que como uma cadeia de montanhas liguem a espécie humana através dos milênios, que, para mim, o fato de o ápice de um momento já há muito passado ainda esteja vivo, claro e grandioso – este é o pensamento fundamental da crença em uma humanidade, pensamento que se expressa pela exigência de uma história monumental. (NIETZSCHE, 2003, p. 19)

De acordo com a interpretação de Nietzsche, o gênero da História Monumental

expressaria o anseio, por parte dos membros de uma determinada sociedade, de se

conceder uma aura de mitificação aos feitos passados realizados por meio das obras dos

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homens criativos e valorosos, enfatizando, sobretudo, os caracteres que os seus

antepassados produziram de grandioso, extraordinário e glorioso, que possam servir de

inspiração para a tentativa de se repetir os mesmos feitos posteriormente, no decorrer

das novas gerações. Desta maneira, portanto, “uma coisa irá viver, o monograma de

sua essência mais íntima, uma obra, um feito, uma rara iluminação, uma criação: ela

viverá porque a posteridade não poderá prescindir dela” (NIETZSCHE, 2003, p. 20).

No contexto português, as promessas não realizadas do Império – o passado

heroico e o futuro desejado – tornam-se elementos-chave para a explicação de uma

existência carente e uma fraqueza nacional. Além disso, Eduardo Lourenço ressalta que

a saudade revela o sentimento de fragilidade nacional, que se converte num dom, numa

espécie de “providência divina”, fazendo de Portugal “expressão da vontade de Deus” e

configurando sua existência mítica, de predestinação messiânica, como “povo eleito” de

“barões assinalados”, como cantou Camões16.

É o que leva Eduardo Lourenço a dizer que:

[...] a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova de fogo. O viver nacional que fora quase sempre viver sobressaltado, inquieto, mas confiado e confiante na sua estrela, fiando a sua teia da força do presente, orienta-se nessa época para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva do passado. Descontentes com o presente, mortos como existência nacional imediata, nós começamos a sonhar simultaneamente o futuro e o passado. (LOURENÇO, 2007, p. 22, itálicos do autor)

Tal projeção do passado no futuro é recorrente no imaginário português,

refletindo, principalmente, na constante ressignificação dos mitos fundadores, como a

crença no “destino imperial”, além de toda a esperança em torno da mitologia do Quinto

16 Vale ressaltar que essa perspectiva não está presente nos textos que compõem o corpus escolhido para a Tese, mas integra, certamente, um paradigma da cultura portuguesa.

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Império e do “Desejado”, além, também, do “Milagre de Ourique”.17 A ideia de “povo

eleito” seria confirmada através do papel desempenhado por Portugal nos séculos XV e

XVI, no período das navegações: o de descobridor de novas terras e de novos céus,

desempenhando papel fundamental na formação da identidade nacional, resultando, daí,

a crença num “destino nacional”.

Para Dalila Pereira da Costa:

Quando Portugal iniciar este trabalho de exegese simbólica de sua cultura, descendo ao mais fundo da sua alma, desvendando e possuindo seus arquétipos, como suas forças criadoras, as mais interiores, primevas e irredutivelmente nacionais, ele possuirá desde então também sua capacidade de se abrir ao mais exterior, actual e universal. Exterior e interior, passado e futuro, fazendo parte desde então para ele de uma unidade indivisa. [...] Será esse o segundo ciclo da Descoberta, agora proposto, a si aberto, como descida, entrada e desvendamento do Mar Tenebroso. Agora, tudo se fazendo na interioridade, os monstros a vencer estarão na sua alma, ‘num mar sem tempo nem espaço’: não mais projectados num mar exterior.[...] (COSTA, 1989, p. 287-288)

É a constante reelaboração dos mitos que os faz permanecerem no imaginário

português, assumindo diferentes roupagens de acordo com condicionamentos histórico-

político-culturais. A língua e a literatura, principalmente, revisitam certas figuras que,

sendo históricas, transcendem a própria historicidade, retornando na Literatura já como

parte da própria identidade cultural portuguesa. Quanto a isso, merece atenção a

seguinte reflexão de António Quadros:

O homem português, ou melhor, o arquétipo do homem português é o que emerge e se revela em determinados períodos históricos favoráveis, mas é também o que se oculta ou é ocultado, o que se reduz a uma vida estagnada e recalcada, nos períodos em que se desfaz a sua païdeia. Uma païdeia, ao modo grego, é a solidariedade e a univocidade entre a estrutura cultural e o sistema educativo de um povo, ambos se ordenando a um telos ou a um fim superior, que todos então sentem como seu, pelo qual vivem, lutam e se sacrificam se necessário for. Sem a restauração de uma païdeia essencialmente portuguesa, não deixado de ser universal, será difícil, se não for

17 Para estudo mais aprofundado das fontes históricas, recomenda-se a leitura de SILVA (2010), ADRIÃO (2002), DUARTE (2004) e QUADROS (1988; 1999).

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impossível, que o homem português se reencontre, numa reinvenção que ou começa pelas elites, pelas classes letradas, ou nunca mais será possível. Sem uma païdeia portuguesa renovada jamais poderemos ter uma pátria portuguesa dinâmica, criadora de valores, voltada para o futuro a partir das suas raízes de das suas linhas genéticas fundamentais, sem as quais a nossa identidade se perderia num progressismo vazio e superficial. (QUADROS, 1999, p. 61)

Não se pode descurar o fato que é pelo imaginário – esse museu de imagens – que

se atinge não só a mente de um povo, mas também o seu coração, os medos e as

esperanças. Trata-se, em suma, de um processo de definição da própria identidade

nacional. No caso específico de Portugal, inscrever, no texto literário, figuras como

Viriato, Afonso Henriques, D. Sebastião, Isabel de Aragão e Inês de Castro, só para

citar alguns, é uma forma de escrever o ser português. Assim, pela fecundação de

figuras míticas, Portugal revê seu passado, faz o presente, projeta o futuro, procura

escrever seu destino.

É o que leva Eduardo Lourenço a concluir que:

o imaginário e a sua função na arquitectura global do que chamamos o nosso destino, não se situa no simples prolongamento do real, como sublimação dele ou compensação da sua ausência. Se o nosso rei Sebastião faz realmente parte do imaginário português, como Joana d'Arc do francês, não é como figura da perda ou do sacrifício que num dado momento foram derrota ou martírio históricos, mas como figuras que transfiguraram já no mero plano histórico esse real, e, mais importante do que isso, condicionaram na sua ordem as manifestações decisivas dessa realidade, impondo-lhe uma necessidade e uma energia que nada têm que ver com a da lei que rege os fenómenos ou a energia que os suscita. É esse tipo de realidade que, literalmente, se define por não ser real, que constitui o campo do imaginário.

(LOURENÇO, 1999b, p. 14)

A partir de tal perspectiva, Eduardo Lourenço pensa Portugal como uma nação

que se volta à sua História no sentido de buscar um sustento ontológico, capaz de

suportar esse desconhecimento. Pela literatura reescreve-se a história, inventa-se a

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pátria. Assim, o povo busca no passado – talvez bastante distante – uma segurança,

uma estabilidade simbólica. E esse passado português, visto pelos próprios

portugueses, chega a ser mítico. Por isso, há que se pensar à luz do que diz Lima de

Freitas, quando afirma que: “Cada poeta, cada nação, cada modo de sentir terá de

traduzir o mito sem tempo para a inteligência do seu tempo. Sob pena de perder a

identidade de nação e de perder o sentido” (FREITAS, 2006, p. 91).

Nesse contexto, portanto, é que diversos autores aventuraram-se no espaço

denso dos símbolos e dos mitos nacionais. Poetas, romancistas e dramaturgos que,

pelas vias da memória, buscavam as mais profundas raízes dum lusitanismo

intimista, que do passado fizeram emergir vultos heroicos, e pelo sentimento saudoso

– ou, mesmo fatalista – quiseram fazer renascer a energia e a alma da nação. Vê-se,

assim, que a produção literária portuguesa vai, a cada época e em diversos estilos

literários, afirmando seus próprios mitos – ou, para dizer como Lima de Freitas, mais

exatamente – a forma portuguesa de perceber, de interpretar os mitos.

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1.2. Mitocrítica portuguesa: na crise finissecular, o reflorescer de mitos

No silêncio, nascem em nós sentidos: os sentidos prà vida do mistério... (PATRÍCIO, 1995, p. 118)

O estudo do imaginário, para Gilbert Durand, se constitui em uma apreciação

arquetípica da imaginação criadora. Em suas reflexões, destaca que o homem é dotado

de uma potencial faculdade simbolizadora no meio sócio-cultural. Pensando na

possibilidade de interpretação desses símbolos e das imagens que se configuram no

inconsciente coletivo18 – as projeções inconscientes dos arquétipos em interação com as

solicitações do meio –, o antropólogo do imaginário propôs uma classificação

taxionômica das imagens do sistema antropológico, propondo-se, por exemplo, a

diferenciar arquétipo, símbolo, signo e, por fim, mito.

Para Durand, o arquétipo possui um caráter universal e nunca poderá ser

ambivalente; quanto ao símbolo, este possui uma polivalência que, perdida, pode

transformá-lo num simples sinal arbitrário, conforme Durand elucida, ao dizer que:

enquanto o arquétipo está no caminho da idéia e da substantificação,o símbolo está simplesmente no caminho do substantivo, do nome, e mesmo algumas vezes do nome próprio. [...] Enquanto o schème ascencional e o arquétipo do céu permanecem imutáveis, o simbolismo que os demarca transforma-se de escada em flecha voadora, em avião supersônico ou em campeão de salto. Pode-se mesmo dizer que perdendo polivalência, despojando-se, o símbolo tende a tornar-se um simples signo, tendo a emigrar do semantismo para o semiologismo: o arquétipo da roda dá o simbolismo da cruz que, ele próprio, se transforma no simples sinal da cruz utilizado na adição e na multiplicação, simples sigla ou simples algoritmo perdido entre os signos arbitrários dos alfabetos. (DURAND, 2002, p. 62)

18 Jung (1991) propõe a existência de uma camada profunda do psiquismo, o inconsciente coletivo. Com isto, desenvolve o conceito de arquétipos (estruturas das imagens primordiais da fantasia inconsciente coletiva), evidenciando elementos estruturais da psique inconsciente formadores de mitos.

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39

No que se refere ao mito, Gilbert Durand, diz que este, como um sistema

dinâmico (de símbolos, arquétipos e schèmes19) “já é um esboço de racionalização, dado

que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os

arquétipos em ideias. O mito explicita um schème ou um grupo de schèmes”

(DURAND, 2002, p. 63), sendo, portanto um arranjamento de símbolos e arquétipos

que se apresenta através de mitemas – uma narrativa puramente ficcional, envolvendo

pessoas, ações ou eventos super-naturais e incorporando ideias populares referentes a

um fenômeno natural ou histórico. Durand percebe que há certos mitos diretivos que se

manifestam através da redundância, como os mitemas obsessivos, repetindo-se

recorrentemente, através da organização dos símbolos. Assim, dirá este antropólogo do

imaginário que, em todas as épocas e em todas as sociedades, existem mitos que

orientam e modelam a vida dos homens.

Assim, os mitemas que constituem a narrativa mítica permitem a análise

sincrônica, enquanto leitmotiv da narrativa, tornando-se mais significativos – pois

tendem a se intensificar, a se precisar – na medida em que se repetem. De acordo com a

visão de Durand, portanto, um mitema pode ser um motivo, um emblema, um objeto,

um cenário mítico ou uma situação dramática, apenas para citar alguns exemplos.

Visando à identificação dos mitemas e do mito diretivo do “texto cultural”, Gilbert

Durand estabelece três momentos, dos quais o primeiro caracteriza-se pelo

levantamento dos “elementos” que se repetem de forma obsessiva e significativa na

narrativa, constituintes das sincronias míticas da obra; propõe, em seguida, um exame

do contexto em que aparecem, além da combinatória das situações, as personagens, os

cenários, etc; e, por fim, pensa a apreensão das diferentes lições do mito e das

19 O schème é, de acordo com Durand “a generalização dinâmica e afetiva da imagem” (2002, p.60).

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40

correlações da mensagem de um determinado mito com as de outros mitos de uma

época ou um espaço cultural determinados.

Ao longo dos seus estudos, sistematizando uma classificação dinâmica e estrutural

das imagens, Gilbert Durand propôs uma teoria que se preocupasse com as estruturas

antropológicas do imaginário, ou seja, que tivesse como interesse as configurações de

imagens simbólicas, a partir de símbolos universais – os arquétipos. Sua metodologia

pauta-se no “método crítico do mito” (DURAND, 1996, p. 159) – a mitodologia ou a

manifestação discursiva do imaginário – que supõe duas formas de análise: a mitocrítica

e a mitanálise. Conforme destaca o próprio Durand:

Assim, a descrição, a classificação e o estudo daquilo a que chamei o aparelho mítico pode constituir um auxílio precioso para o antropólogo na detecção de ideologias, de Weltanschauungen, de terminologias de uma sociedade e de uma época, aquilo que designei de mitanálise quando se trata de antropologia e de mitocrítica quando se trata de textos literários. (DURAND, 1996, p. 116)

A mitocrítica, portanto, refere-se a um método de crítica de discurso que centra o

processo de compreensão no relato de caráter mítico para significar o emprego de um

método de crítica literária, de crítica do discurso. Percebe-se, por exemplo, a

proximidade entre o discurso literário e o “texto cultural” do mito, destacando suas

metáforas obsessivas e interpretando-as mediante o mito pessoal do autor. A mitanálise,

por sua vez, é um método de análise científica dos mitos diretores, patentes e latentes,

configurados nos fenômenos socioculturais. Trata-se, pois, do desvelamento dos

movimentos míticos nas sociedades, considerando o contexto social, buscando pensar

os mitos diretivos de uma dada sociedade, em um período de tempo.

Page 49: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

41

Numa perspectiva mitocrítica, tal como postula Gilbert Durand, é possível uma

crítica do discurso do texto da Literatura Portuguesa finissecular20, que se configura

como espaço de reinvenção de um passado coletivo, cujas utopias e traumas têm

povoado abundantemente a cultura portuguesa desde as origens da nacionalidade.

Frutos de contextos históricos e da fermentação das mentalidades, os traumas, os mitos

e as utopias são elementos estruturantes do imaginário português que permitam

compreender melhor e mais profundamente muitos elementos da história política e

cultural portuguesa.

O contexto histórico do Portugal de fim-de-século foi marcado por uma

profunda crise do pensamento, sobretudo pelo desalento, ao perceber que, mesmo com

os avanços científicos, não melhorou diante do choque de uma sociedade que

experimentava um intenso progresso técnico e científico, ainda que numa escala mais

reduzida, e que se beneficiava da inauguração da estrada de ferro que ligava Coimbra a

Paris – acelerando o trânsito de livros e ideias entre Portugal e França –, o que propiciou

o florescimento de uma literatura decadentista, dando ao final do século XIX o senso de

decadência21.

A propósito do clima finessecular português, Maria de Lourdes Belchior aponta

que “São anos de encruzilhada, de confusão e de naufrágio os anos de 1890 a 1910-

1915. A literatura denuncia e revela as situações, os problemas e as angústias daqueles

20 Contexto no qual, como será abordado mais profundamente no Capítulo 2, insere-se a obra de António Patrício. 21 Há que se destacar que, no contexto cultural português, entende-se o sentido de decadência como “o de categoria de análise histórico-cultural, de estádio moral, social, político, que serve para definir a trajectória de uma nação e de uma cultura” (PIRES, 1980, p. 29), conforme destaca António Machado Pires n’A Ideia da Decadência na Geração 70. Assim, no caso específico português, uma trajetória de retrogradação no sentido que Richard Gilman lhe confere, ao dizer que “centrally, and beyond moral categories, decadence has been thought of as a type of regression, a falling away from others in their advance toward the future” (GILMAN, 1979, p. 159).

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42

anos de viragem do século XIX para o século XX” (BELCHIOR, 1980, p. 121). A

discussão da fragilidade orgânica de Portugal foi denunciada e contestada, marcada pelo

cenário de um definhamento rácico que conduzia a nação a um sentimento de catástrofe

irreversível.

A essa altura, a juventude – descrente da ideologia monárquica – aderia cada vez

mais aos ideais republicanos e socialistas. Além disso, todo o descontentamento

cristalizava-se, também, num profundo anticlericalismo. O desencanto generalizava-se

frente às possibilidades de contato, cada vez mais intensas, com o resto da Europa, que

permitiam uma comparação, num agudo olhar, entre a realidade nacional e o que se passava

além de Portugal.

É a partir de tal perspectiva que se pensa – diante de um panorama específico da

Literatura Portuguesa de finais do século XIX e nas décadas iniciais do século XX – a

presença sempre persistente de heróis e mitos nacionais. É importante ressaltar que se

trata do período de transição, de acordo com os estudos de Sérgio Franclim (2009) entre

o 3º Ciclo Iniciático de Portugal (1640-1890) e o 4º Ciclo (1890-2140?). Da descida aos

infernos à ascensão, destacam-se dois fatos marcantes que feriram duramente a alma

portuguesa: as invasões francesas e o Ultimato inglês, que deu início à destruição da

monarquia, incapaz de se manter independente face ao estrangeiro22.

Ressalte-se, porém, que a recuperação da pátria, à época de Almeida Garrett e

Alexandre Herculano, por exemplo, já era um tema que se impunha pela sua

importância. A partir deles é que as gerações seguintes retomariam a consciência de

nação decadente e, em reação aos acontecimentos históricos do seu tempo, apenas

tornariam mais intensa a dolorosa diferença entre passado e presente nacionais. Garrett,

22 O que está em jogo é o poder estrangeiro sobre o des-poder de Portugal para manter-se na África, já retalhada pela colonização europeia.

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43

num texto intitulado Portugal na balança da Europa, sintomaticamente já apontava que

“Somos chegados a uma grande crise da Europa, de todo o mundo civilizado; crise que

ha tantos annos se prepara, que tantos symptomas annunciavam proxima” (GARRETT,

1867, p. 17) para, então, concluir que:

Praza a Deus que todos, de um impulso, de um accôrdo, de simultaneo e unido esfôrço todos os Portuguezes, sacrificadas opiniões, esquecidos odios, perdoadas injúrias, ponhamos peito e mettamos hombros á difícil mas não impossivel tarefa de salvar, de reconstituir a nossa perdida e desconjunctada pátria, de re-equilibrar emfim Portugal na balança da Europa.23 (GARRETT, 1866, p. 322)

Em Portugal, desde os românticos, portanto, até a geração finissecular, os heróis

nacionais são alvo de reinvestimento mítico com intuitos patrióticos. O texto literário

passa a refletir, assim, uma atividade transfiguradora do passado, levando Eduardo

Lourenço a concluir que:

O fim do século XIX, por reacção ao criticismo devastador e impotente da década de 70, mas também como resposta à agressão do monstro civilizado (Inglaterra), verá eclodir a mais nefasta flor do amor pátrio, a do misticismo nacionalista, fuga estelar a um encontro com a nossa autêntica realidade, mas, ao mesmo tempo, expressão profunda sob a sua forma invertida de uma carência absoluta que é necessário compreender desse modo. (LOURENÇO, 2007, p. 31)

Nos cruzamentos entre a memória histórica e a efabulação, o texto literário

configura-se, sobretudo, como o espaço de reinvenção de um passado coletivo, cujas

utopias e traumas têm marcado abundantemente a cultura portuguesa desde as origens

da nacionalidade. O mito, com a sua função “simultaneamente […] explicativa,

unificadora e mobilizadora” (VIÇOSO, 2002, p. 125), assume-se como diretor do

destino histórico da nação, que se socorre justamente do mito perante um presente que

23 A grafia obedece à segunda edição da obra, que veio à luz em1866, conforme se pode conferir nas Referências.

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44

se afigura decadente, fugindo então “da terra para a região aérea da poesia e dos mitos”

(MARTINS, 1964, p. 360-361).

Como diz António Quadros, “a mitogenia portuguesa contém uma energia

própria, transcende os eventos históricos, se é que não os provoca, estimula, alimenta”

(QUADROS, 1989, p. 50). Os mitos assumem, portanto, a função de garantir a

segurança e a auto-estima nacionais, recuando ao seu passado para nele revisitar figuras

proeminentes e fatos gloriosos que novamente se prestem à reprodução de uma memória

nacional, contrastante com o estado de crise atual. Aliás, Claude Lévi-Strauss, a respeito

da mitificação de fatos históricos, diz que “o caráter aberto da História está assegurado

pelas inumeráveis maneiras de compor e recompor as células mitológicas ou as células

explicativas que eram originariamente mitológicas” (LÉVI-STRAUSS, 1987, p. 60).

Assim, o caráter explicativo ou simbólico do mito, relacionado com uma dada cultura,

constitui-se na primeira tentativa de explicar a realidade, procurando interpretá-la sem a

necessidade de pautar-se em argumentos racionais para suportar essa interpretação. Os

acontecimentos históricos, portanto, podem transformar-se em mitos, na medida em que

adquirem uma determinada carga simbólica para uma dada cultura.

Da Geração de 70 à de 90, e chegando ao tempo de Orpheu, por exemplo,

avança-se por períodos de múltiplas tendências, que se entrecruzam e são

frequentemente coexistentes, seja no decadentismo-simbolismo ou num neo-

romantismo de pendor neo-garrettista ou vitalista, passando, ainda, pela progressiva

elaboração da vertente saudosista do neo-romantismo e o modernismo.

Herdeiros do positivismo de Comte, do idealismo de Hegel e do socialismo

utópico de Proudhon e Saint-Simon, a mesma Geração de 70 viria a constituir,

posteriormente – diante de todos os desânimos e frustrações que acabam por refletir

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45

fracassos anteriores – os Vencidos da Vida (1887), que, no dizer de António Cândido

Franco:

são a geração de 70 apanhada no cruzamento da geração de 90. E, ante ela, o Antero, o Eça e o Oliveira Martins sentem-se vencidos pela vida; vencidos pelas ideias da geração do Sampaio Bruno e do António Nobre e porque nunca conseguiram, no fundo, realizar aquilo a que se tinham proposto nas Conferências do Casino. (FRANCO, 2007, p. 122)

Há, certamente, que se discutir e ponderar sobre o que diz António Cândido

Franco. É nesse contexto de uma geração educada pelo pessimismo social – resultante,

sobretudo, da política constitucional finissecular – que a geração de 90 irá assistir ao

fracasso e à desistência de mentalidades como Antero de Quental e Oliveira Martins,

sofrendo, ainda, o malogro psicológico provocado pelo Ultimato, que já parecia predizer

a agonia da Pátria.

As reações desencadeadas por este evento revelam, emblematicamente, o clima

que então se vivia, como, por exemplo, a criação, no Porto, da Liga Patriótica do Norte,

cuja presidência foi confiada a Antero de Quental, além da Liga Liberal, em Lisboa;

destaque, também, para a publicação de Finis Patriae e Marcha do Ódio, de Guerra

Junqueiro; o aparecimento de A Portuguesa, canção de tom patriótico, com texto de

Henrique Lopes de Mendonça e música de Alfred Keil, utilizada desde cedo como

símbolo patriótico, mas também republicano. Como ressaltam António José Saraiva e

Óscar Lopes, “com o Ultimato de 1890, a sensibilidade literária portuguesa foi

deflectida por um sentimento de catástrofe nacional” (SARAIVA; LOPES; 1997, p.

941).

Muitos intelectuais assumem, portanto, uma atitude derrotista e pessimista quanto

à maneira de encarar a realidade nacional. É o sentimento que, como diz Basílio Teles,

consiste “em crer que a nação não tem futuro; que toda a esperança de uma

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revivescência pátria deve ser abandonada; que, portanto, nada valem esforços, ideias,

planos, para salvar o que o destino condenou” (TELES, 1905, p. 220).

Todo este clima, inclusive, viria a se incluir noutro ainda mais vasto, o

descrédito na latinidade – o finis latinorum – de que os povos ibéricos se deixaram

invadir, convencidos da superioridade das raças e das culturas nórdicas. Vai assim

nascer e crescer o pessimismo nacional do fim do século XIX e início do XX.

Sentimento derrotista presente, por exemplo, em Alberto de Oliveira – a quem Costa

Dias chama o “doutrinador da escolástica do pessimismo” (DIAS, 1964, p. 36) –, nas

suas Palavras Loucas, de 1894, em que ressoa todo o desencanto e pessimismo de uma

geração diante do destino nacional. Conforme escreve o autor: “Na minha voz fala um

povo a morrer [...] pois se acaba o seu fim na história” (OLIVEIRA, 1894, p.2) e mais

adiante diz que “Todos agonizamos em inércia desesperada e temos quase terror de vir a

ter filhos por não sabermos que destino lhes traçar na terra” (OLIVEIRA, 1894, p.5).

Antero de Quental, sensível à “improcrastinável decadência” portuguesa, como

diz nas suas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos

(QUENTAL, 2005, p. 8). Neste opúsculo, a segunda das Conferências do Casino,

proferida em 27 de Maio de 1871, fala da fatalidade da História de Portugal. Mais

recentemente, Eduardo Lourenço reafirmaria a importância desta obra de Antero “para a

história da nossa autognose de que a ‘Conferência’ é a primeira expressão mítica

estruturada, ainda hoje actuante” (LOURENÇO, 1991, p. 149); uma leitura da História

que «não é apenas objectivo e neutro instrumento de conhecimento do passado, mas

auto-consciência de um presente que lê nele a profecia do seu triunfo” (LOURENÇO,

1991, p. 149). Antero, nas Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do

Século XIX revela uma das linhas mestras do pensamento peninsular, ao observar que:

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47

Será pois com segurança da mais bem fundada indução e na região mais alta em que o processo indutivo pode ser empregado, que a síntese do pensamento moderno partirá do conhecimento do espírito para o conhecimento do verdadeiro ser dessa aparência fenomenal, que a concepção científica apenas deixa ver seu lado exterior e mecânico. (QUENTAL, 1991, p. 96)

N’As Farpas, Ramalho Ortigão, ao tecer críticas à decadência nacional,

reconhece na educação a aposta urgente que se impunha “para a regeneração intelectual

e moral da raça nacional profundamente abatida, apática, enfraquecida, indiferente”

(ORTIGÃO, 2007, p. 228), exortanto aos os jovens para que, no futuro, deixassem de

ser “uma geração de inúteis, incapazes de trabalho, de perseverança, de ordem, de

economia” (ORTIGÃO, 2007, p. 228). Quanto a Oliveira Martins, num tom mais

pessimista, diz que:

chegámos todos á depressão da vontade, ao amesquinhamento do caracter, e ao tedio morno da existencia passiva […] e assim como se nos apagou a vontade, assim se nos entenebreceu a intelligencia, e se perverteu o divino sentimento do bello […] Nunca o desapego à vida foi maior. (MARTINS, 1993, p. 65-66)

Eça de Queirós, ao discorrer a respeito de dois de seus confrades – Antero de

Quental e Ramalho Ortigão – traça uma breve biografia intelectual na qual alude à

Geração de 70.

Há quase doze anos apareceu, vinda parte de Coimbra, parte daqui, parte de acolá, uma extraordinária geração, educada já fora do catolicismo e do romantismo, ou tendo-se emancipado deles, reclamando-se exclusivamente da Revolução e para a Revolução. Que tem feito ela? […] Esta geração tem o aspecto de ter falhado. (QUEIRÓS, 2000, p. 31).

O Portugal de Oitocentos é marcado por contingências que lhe abriram lacunas na

idealização do seu percurso histórico e do seu passado imperial. Dizer, entretanto, que

as Conferências do Casino fracassaram de todo, que nada se conseguiu realizar, soa um

tanto exagerado. É verdade que as ideias da Geração de 70 não se aplicam à situação de

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Portugal em 1890, como bem observa Eduardo Lourenço ao dizer que Portugal dos fins

do século XIX e princípios do XX “assistirá estupefato e incrédulo a uma operação de

magia poética incomparável destinada a subtraí-lo para sempre àquele complexo de

inferioridade que a Geração de 70 ilustra com tão negra e fulgurante verve”

(LOURENÇO, 2007, p. 100). Para Lourenço, a grande marca da sociedade finissecular

é o sentimento de cansaço, de frustração, de desilusão.

É também desta postura face à vida que leva Oliveira Martins a escrever sobre o

mal do século que “É o suicídio, que nunca foi tão frequente. Nunca o desapego à vida

foi maior” (MARTINS, 1896, p. 96). E, também, Fialho de Almeida, ao dizer que “A

vida é uma peça, e quem a acha má tem dois recursos: pateá-la, é o meu caso, ou ir-se

embora, o que é o caso dos suicidas. Suportar a farsa toda, lá porque a maioria gosta

dela, um disparate! [...] o suicídio entrou de vez nos hábitos lisboetas” (ALMEIDA,

1935, p. 207-208). Basílio Teles comunga de semelhantes pontos de vista:

No programa da existência dos mais eminentes desses homems vemos, com a mais sincera mágoa, a inspiração dum desespero que chega já a formular-se em sistema filosófico. Uns suicidam-se; outros sequestram--se em tebaidas, onde não possam ir afligi-los os surdos rumores da catástrofe que se avizinha; alguns desinteressam-se propositadamente das questões políticas e sociais, para se votarem a trabalhos restritos e miúdos de erudição ou de ciência; [...] Estoicismo, resignação honesta, epicurismo desbragado e odioso - eis o triplo aspecto que revesje o convencimento comum de que estamos a assistir ao Finis Patriae. (TELES, 1905, p. 220-221)

Eduardo Lourenço chama essa atmosfera finissecular de “natural ressaca de um

século de prodigiosas mutações”, que contrastava com a “crença universal do século, o

seu grande mito popular concretizado pela confiança nos poderes da Ciência e nos seus

efeitos para a melhoria material e moral da Humanidade” (LOURENÇO, 1992, p. 32).

Eduardo Lourenço evidencia, assim, o sentimento de desalento, a desistência que

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49

caracterizaram uma geração que, antes tão ativa, tão combativa, que tentava

revolucionar a sociedade no meio da qual foi criada, agora se sentia fracassada.

Eça de Queirós, em “A decadência do riso” – ensaio publicado nas Notas

Contemporâneas –, sintomaticamente analisa o comportamento típico da sociedade

europeia, apontando o sentimento de decadência de seu tempo: “Decerto, folheando os

nossos livros, cruzando as nossas multidões, vivendo o nosso viver, o bom Rabelais

diria que “chorar é próprio do homem” – porque o largo e puro riso do seu tempo não o

encontraria em face alguma.” (QUEIRÓS, 2000, p. 164). Então, dirá mais adiante que

sobre as razões dessa decadência:

Eu penso que o riso acabou – porque a humanidade entristeceu – por causa da sua imensa civilização. [...] Quanto mais uma sociedade é culta – mais a sua face é triste. Foi a enorme civilização que nós criamos nestes derradeiros oitenta anos, a civilização material, a política, a económica, a social, a literária, a artística que matou o nosso riso, como o desejo de reinar e os trabalhos sangrentos em que se envolveu para o satisfazer mataram o sono de Lady MacBeth. Tanto complicámos a nossa existência social, que a Acção, no meio dela, pelo esforço prodigioso que reclama, se tornou uma dor grande: - e tanto complicámos a nossa vida moral, para a fazer mais consciente, que o pensamento, no meio dela, pela confusão em que se debate, se tornou uma dor maior. O homem de acção e de pensamento, hoje, está implacavelmente votado à melancolia. (QUEIRÓS, 2000, p. 165)

Eça dirá, também, que “a crise é a condição quase regular da Europa” (QUEIRÓS,

2000, p. 149) apontando para o fato de que o declínio da sociedade é comparável às

quatro estações da natureza, fenecendo no Inverno porque tal “é a vida; é a ordem” e

que a “marcha dolorosa” da decadência não é mais do que um duro Inverno;

de sorte que os males presentes, as crises, as misérias, não são mais que o natural deperecimento de Dezembro na floresta humana, donde surgirá uma mais viva, mais rica vegetação de liberdades e de noções […] E assim, aos tombos e aos socos, ora destroçado, ora reflorido, o mundo avança irresistivelmente. (QUEIRÓS, 2000, p. 151-152)

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Num conto seu, significativamente intitulado “A Catástrofe”, Eça de Queirós

relata, na voz do narrador, a experiência do fim da pátria em virtude da invasão

estrangeira, apontando que a rendição portuguesa é o resultado de um estado de

avançada decadência nacional, tendo contribuído, para este estado, fatores diversos.

Será depois do Ultimato que muitos autores veriam nessa hora extrema –

simbolicamente a morte da Pátria – o esgotamento das forças da nação.

Em 1909, no texto dramático O Fim, António Patrício dramatiza o tema, glosando

o motivo da invasão estrangeira, em que alegoricamente lê-se o “fim da Monarquia” ou,

mais apocalipticamente, o luto perpétuo de uma nação sempre ameaçada pela

possibilidade de extinção. Ao trazer em epígrafe24 um fragmento de Crepúsculo dos

Ídolos, de Nietzsche, Patrício dá ao seu texto dramático justamente a ideia – por meio

da tragédia de uma Rainha enlouquecida pelo sofrimento e que depois do Regicídio

vagueia pelo Palácio, rodeada apenas por dois aristocratas – do crepúsculo dos ídolos e

dos deuses. Oscilando entre a memória obsessiva dum passado heroico, que parece não

encontrar expressão na nova realidade, e um olhar ensombrado pelo presságio e pelo

medo, as personagens da peça exprimem a enorme solidão dos deslocados de qualquer

realidade. O texto dramático O Fim consubstancia a visão mística da queda da

monarquia, prevendo-se a sua iminente queda. Numa das passagens do texto, no Paço, à

espera do inevitável apocalipse, em ambiente de loucura coletiva, uma criada

sentenciou: “É o dia do juízo” (PATRÍCIO, 2010, p. 21). Um Desconhecido, que tinha

24 “L’affirmation de la vie même dans ses problèmes les plus étranges et plus ardus; la volonté de vivre se réjouissant de faire le sacrifice de ses types les plus élevés, au bénéfice de son propre caractere inépuisable – c’est ce que j'ai appelé dyonisien, c’est en cela que j’ai cru reconnaître le fil conducteur que même à la psychologie du poète tragique.” – “A afirmação da vida, também nos seus problemas mais estranhos e mais árduos; a vontade de viver, regozijando-se no sacrifício de seus tipos mais elevados, por seu próprio caráter inesgotável – é o que chamei dionisíaco, é nisso que acreditei reconhecer o fio condutor para a psicologia do poeta trágico (NIETZSCHE, 2006, 106)

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assistido à catástrofe, dirigiu-se ao Paço e relatou o sucedido: “Foi a Primavera trágica

de um povo que hibernava há séculos, marasmado. Mais vermelha talvez por ser a

última...” (PATRÍCIO, 2010, p. 23). O povo, certo do fim próximo, ao avistar as

esquadras estrangeiras levou farnéis para assistir ao evento. Na fala do Desconhecido:

“com uma certeza vaga de sonâmbulos, uma esperança de superstição puerilíssima,

espécie de sebastianismo tacteante...” (PATRÍCIO, 2010, p.23), que, com a entrada das

esquadras estrangeiras prosseguia no seu relato, assinalando que o sino da Basílica, que

saudara a chegada dos galeões das descobertas:

mudo há séculos como a Raça, despertou com uma voz de maldição, rugindo, uivando, vingador, povoando a noite de avejões, fauna em delírio, superstições da Índia, lendas mortas... Pouco a pouco, em cada torre, nas centenas de igrejas que existiam, descendo as sete colinas da cidade, os sinos iam acordando ao chamamento do avoengo fulminador que da Basílica cortava o ar como um profeta em fúria... [...]Dir-se-ia o Requiem de assombro por um povo, reboando em versículos de vertigem de mil torres de granito, alucinadas!... (PATRÍCIO, 2010, p. 24)

Com o toque dos sinos, homens e mulheres se armaram. O embate chegou e, com

o tiroteio frenético, “membros de cadáveres voavam como num ciclone de asas

partidas!...” (PATRÍCIO, 2010, p. 25). O pânico toma conta da multidão, que foge

desenfreadamente. Mais uma vez toca o sino da Basílica e a multidão se deteve,

entregando-se voluntariamente ao sacrifício. O efeito foi tal que o inimigo, vendo que a

defesa se calara, sequer se atrevera ao desembarque, e a metralha proveniente das

esquadras durou horas, após o que procederam ao desembarque, abrindo uma rua entre

os incontáveis cadáveres. Numa figuração bastante simbólica, a Basílica se autodestrói,

causando temor nos invasores, que debandam “desta terra de loucura”, em cuja capital

“os mortos reinam”. O Desconhecido acreditava ter chagado a hora de renascer das

cinzas: “Agora... Morreu a capital: há mais país. Triunfar pela vida ou pela morte, mas

triunfar. Fomos iniciados” (PATRÍCIO, 2010, p. 26).

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O Desconhecido concita o povo a lutar para evitar o “suicídio colectivo” e

contrapõe “aos últimos dias de um povo” o heroísmo desse povo levantado em armas

contra o invasor. Ao toque insistente dos sinos, a “Raça” desperta numa vitória

conseguida sobre os escombros:

A AIA, com desespero. Ouviu bem? Ouviu?... Isto é de endoidecer. De um lado uma esperança absurda, do outro uma visão de manicómio... (Pondo-se em frente dele) Não é evidente para si, não é evidente para que ainda mesmo que se realizasse o impossível de evitar o desembarque das esquadras, outras viriam, mais, até esmagar-nos?... Quem exige um suicídio colectivo, um heroísmo monstruoso e inútil? O DESCONHECIDO A lógica da Raça. É inevitável. (PATRÍCIO, 2010, p. 27)

Insistindo a falar com a Rainha-Mãe para que conseguisse o impossível, o

Desconhecido a vê indiferente ao Apocalipse que exterminara a capital do seu Reino,

preparando-se para um banquete ilusório, proferindo apenas “Tenho fome”. O

Desconhecido, então, que procurava fazer renascer a Nação, percebe não haver mais

nada a fazer. Era o fim da monarquia que já nem tinha alento para lutar pela sua própria

sobrevivência, resignando-se à queda inevitável.

Desta maneira, tanto o conto de Eça de Queirós quanto a peça de António

Patrício, para além da ideia de fim da pátria, registram uma aguda crítica às causas da

decadência nacional, de que, dentre todas elas – políticas, econômicas, diplomáticas e

culturais –, talvez a mais contundente e que mais foi um contributo para o contágio do

mal-estar coletivo, tenha sido a decadência moral. Alfredo da Cunha e Trindade Coelho,

por exemplo, ao assinarem a “Apresentação” do primeiro número da Revista Nova, após

lembrarem que se vive justamente num período de crise moral, intelectual, econômica e

mental, afirmam a necessidade de se reagir contra a onda de estrangeirismo, e afirmam

que “nenhum outro período da nossa história literária poderia servir-nos de melhor

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53

modelo do que aquele em que um Frei Luis de Sousa bordava e rendava a palavra”

(CUNHA; COELHO, 1893, p. 1).

Novamente Eça, num artigo intitulado “Positivismo e Idealismo”, publicado em

1893, aponta que o Positivismo de Augusto Comte, que tanta escola fez em Portugal,

tornava-se saturado, gerando, inclusive, um sentimento de revolta, conforme explica:

Quais são as causas, quais as consequências desta revolta? A causa é patente, está toda no modo brutal e rigoroso com que o positivismo científico tratou a imaginação, que é uma tão inseparável e legítima companheira do homem como a razão. O homem desde todos os tempos tem tido (se me permitem renovar esta alegoria neo-platónica) duas esposas, a razão e a imaginação, que são ambas ciumentas e exigentes, o arrastam cada uma com lutas por vezes trágicas e por vezes cómicas, para o seu leito particular - mas entre as quais ele até agora viveu, ora cedendo a uma, ora cedendo a outra, sem as poder dispensar, e encontrando nesta coabitação bigâmica alguma felicidade e paz. Assim Arquimedes tinha por emblemas na sua porta um compasso e uma lira. O positivismo científico, porém, considerou a imaginação como uma concubina comprometedora, de que urgia separar o homem; e, apenas se apossou dela, expulsou duramente a pobre e gentil imaginação, fechou o homem num laboratório a sós com a sua esposa clara e fria, a razão. O resultado foi que o homem recomeçou a aborrecer-se monumentalmente e a suspirar por aquela outra companheira tão alegre, tão inventiva, tão cheia de graça e de luminosos ímpetos, que de longe lhe acenava ainda, lhe apontava para os céus da poesja e da metafísica, onde ambos tinham tentado voos tão deslumbrantes. (QUEIRÓS, 2000, p. 264-265)

A decadência da pátria desgastou toda uma geração que, porém, antevia, na

mocidade a esperança, depositando uma forte esperança em Portugal, como no final d’A

Catástrofe, em que as famílias portuguesas praticam em segredo o culto da pátria, e

cujo amor se manterá aceso nos seus filhos; também no desfecho de Finis Patriae e de

Pátria, ambos de Guerra Junqueiro, apontando a confiança de que é dessa mocidade que

depende a regeneração nacional; na “Autópsia Final”, Gomes Leal escreve:

Melhorai os vossos corpos e os vossos espíritos […] Sede naturais e sinceros. Deixai cair as máscaras. Buscai o aplauso de vós mesmos, no trabalho, na oficina, ou no gabinete […] Mas o que é essencial é que torneis – moralmente – vossos filhos melhores que vós!... Equilibrai-os física e moralmente, formai-lhes bons músculos e bom coração. (LEAL, 1899, p. 396-398)

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O que acontece, afinal, é que se a Geração de 70 – com escritores como Eça,

Antero e Oliveira Martins – nasceu sob o signo de um humanismo realista e crítico, os

artistas que os sucederam, já no cenário de crise finissecular – dos quais se destacam

Eugénio de Castro, Raul Brandão, António Nobre e Alberto de Oliveira – nasceu sob o

signo dum idealismo subjetivista. Coube ao primeiro grupo, portanto, as expressões dos

ideais e problemas de seu tempo, procurando funcionar, pelas expressões das letras,

como uma pedagogia social; ao segundo, coube obliterar a noção de tempo,

privilegiando a expressão de uma arte atemporal, marcada por certa efervescência

mítica.

Nesse período de fermentação das imagens míticas do imaginário português, a

literatura de fim-de-século estabelece com o campo histórico, pelas vias do simbólico,

reflexos do desejo de o escritor repensar esteticamente o ser português, para tentar

encontrar o seu lugar no mundo. No contexto político e social, Portugal encontrava-se

profundamente marcado pela instabilidade, fazendo emergir uma forte atmosfera de

pessimismo e desalento. A escrita literária revela um renascido patriotismo, reerguendo

vultos históricos como figuras mitificadas e, também, exemplares de um povo letárgico.

Como ressalta José Mattoso, “a sobreposição da História e do mito agravou o

sentimento de ‘decadência’ nacional, mas o seu carácter heróico constitui um forte

apoio para fortalecer os sentimentos patrióticos, e consequentemente a consciência de

identidade nacional” (MATTOSO, 2008, p. 103-104).

As figuras mitificadas resgatam um passado saudoso e glorioso, ou extremamente

trágico, retomando, assim, um fato histórico de importância moral e afetiva para a

nação, que busca no passado uma forma de reviver as imagens que guardam a

identidade da cultura nacional. É por isso que se pode afirmar que “determinadas

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realidades humanas que sentimos ou pressentimos como fundamentais estão fora do

alcance da crítica. O mito exprime essas realidades, na medida em que nosso instinto o

exige” (ROUGEMONT, 1988, p. 20).

As décadas finais do século XIX são fortemente marcadas pelo Simbolismo

francês, o que provocará uma viragem decisiva nas concepções estéticas e estilísticas

que até então vigoravam. Quanto a isso, em artigo publicado em A Águia, Jaime

Cortesão sustentava:

O materialismo e o positivismo, que durante tanto tempo reinaram no mundo das ideias, tentando secar as fontes eternas do sentimento, já lá vão... Para substituir os dogmas antigos, tinham os sábios criado dogmas tanto, ou mais antipáticos e esterilizantes que aqueles. A corrente predominante no pensamento moderno é a do idealismo, da livre metafísica e a duma vasta e individualizada religiosidade. Antero, o divino Antero, previu-a e anunciou-a. Pois bem aí estão os Poetas portugueses a dar-lhe razão e à frente desse profundo movimento, que já abraça todo o mundo. (CORTESÃO, 1988, p. 276)

Veiga Simões n’A Nova Geração aponta para os rumos da nova literatura

portuguesa, mostrando os esforços da cultura nacional e europeia, no sentido de trilhar

novos caminhos, alguns deles de inspiração do pensamento de Friedrich Nietzsche e de

Arthur Schopenhauer, nomeadamente as correntes simbolistas:

É nesta contínua efervescência de novos remédios, de salutares remédios, que vemos, ora o anarquismo dominando objectivamente na literatura, [...], ora o completo refugio em si mesmo, ora vistas e aspectos inteiramente novos, com as bizarras criações dos simbolistas e estetas franceses, entroncadas em Nietzsche e Schopenhauer... (SIMÕES, 1911, p. 103)

Então, se referindo ao idealismo contemporâneo enquanto reação ao realismo,

escreve:

A reacção começada na literatura corria paralelamente à reacção filosófica. E o subjectivismo de Nietzsche, desconcertando o seu tempo, levantando protestos da filosofia oficial e da literatura oficial, é a ponte de passagem do realismo caído para o idealismo contemporâneo.[...] ainda perto do realismo, e com tendências mais próximas do realismo que do movimento idealista, Nietzsche,

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circunscrevendo-se na existência imediata do homem, lançou as bases do seu subjectivismo que veio a dominar alguns dos seus maiores artistas, D'Annunzio à frente. (SIMÕES, 1911, p. 215-216)

As produções literárias dos escritores portugueses do século XIX e da transição

para o século XX ultrapassam, portanto, a fronteira demarcada pelas correntes e

estéticas literárias, para vez ou outra revisitarem o tema da decadência nacional, e, a

partir daí, formular e reformular ideias e teorias. Assim, parece bem verdadeiro o que

diz Joaquim Manso, ao afirmar que “cada civilização se organiza em torno de certas

presenças que nos acompanham, suscitadas pelas nossas febris interrogações” (MANSO,

1936, p. 22). As figuras históricas, portanto, que à categoria de mitos ascenderam –

sendo-lhes anuladas as referências espaço-temporais –, alcançam uma dimensão

universal em sua capacidade de dizer.

É neste contexto que se pode pensar a produção literária de António Patrício, que,

apesar de sempre ter rejeitado integrar qualquer grupo ou movimento literário, escreveu,

enquanto dramaturgo, os textos mais significativos da literatura teatral de tendência

simbolista em Portugal. Numa hermenêutica ancorada na mitocrítica, permite-se

entender que há, sobretudo, nos três textos dramáticos de António Patrício a vocação

nostálgica do impossível, para dizer de acordo com Gilbert Durand, ao afirmar que:

toda a narrativa […] possui um estreito parentesco com o sermo mythicus, o mito […] porque uma obra, um autor, uma época […] está obcecada de forma explícita ou implícita por um (ou mais do que um) mito que dá conta de modo paradigmático das suas aspirações, dos seus desejos, dos seus receios, dos seus temores. (DURAND, 1996, p. 246)

Através da mitocrítica, Durand centra o processo compreensivo no relato mítico

inerente à significação do relato, dirigindo-se para o descobrimento do mito pessoal do

autor, de seu fantasma dominante. Com isso, crê que as grandes obras não falam de um

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homem e de sua vida, mas do homem em sua universalidade, atravessando, portanto,

barreiras de ordem vária, como as culturais, as históricas e as sociais.

O que há é um número limitado de mitos que definem as mitologias das grandes

civilizações. Aplicando o método de crítica literária aos textos dramáticos de António

Patrício, observa-se que o escritor português centra o processo compreensivo no relato

mítico inerente à significação do relato histórico. Ou seja, o que António Patrício faz é

dar voz a personagens que saltam da História e atingem a dimensão de mitos

paradigmáticos, pois, como Durand (1996, p. 234) mesmo diz, todo personagem

histórico tem bases míticas e todo texto contém, de forma subjacente, um mito.

Page 66: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

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2. António Patrício: escrita e experiência literária

Numa perspectiva mitocrítica, o que se observa no campo da literatura dramática

produzida entre os fins de oitocentos e o primeiro quartel de novecentos é a grande voga

– a par do drama naturalista e da comédia de atualidade – de um teatro histórico de

recorte romântico e de pendor nacionalista. Em muitos dos textos, percebe-se uma

tendência pedagógica fundamentada, sobretudo, no sentimento de crise nacional e na

urgência de socorrer a pátria doente, seja numa linha tradicionalista e saudosa do

passado – como são exemplares os textos de Henrique Lopes de Mendonça e Marcelino

Mesquita –, seja numa linha revolucionária, projetada para o futuro – como, por

exemplo, acontece em António Patrício.

Conforme destaca Túlio R. Ferro, “Influenciados pelos simbolistas e decadentistas

franceses, é sob o signo duma modernidade irreverente, intencionalmente extravagante e

aristocratizante, que os jovens letrados portugueses de 1890 vão tentar impor uma nova

estética” (FERRO, s/d, p. 103). Os simbolistas portugueses vivenciam um momento

múltiplo e vário, de intensa agitação social, política, cultural e artística. Será com o

episódio do Ultimato inglês que se aceleram as manifestações nacionalistas e

republicanas, que culminarão com a proclamação da República, em 1910. Os principais

autores desse estilo em Portugal seguem, portanto, linhas diversas, que vão do

esteticismo de Eugênio de Castro ao nacionalismo de Antônio Nobre.

Assim, tomando a publicação de Oaristos (1890), de Eugênio de Castro, como o

marco inicial do simbolismo em Portugal, ou, ainda, 1889, ano do primeiro número da

Boémia Nova e Os Insubmissos, revistas de manifestações decadentistas-simbolistas;

considerando Palavras Loucas (1894), de Alberto de Oliveira, como paradigma neo-

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garrettista25 e Terra Florida (1909), de João de Barros, como reação do neo-romantismo

vitalista26, além, nos últimos decênios do século, dos textos de índole panfletária de

Guerra Junqueiro ou de Gomes Leal, observa-se que, lançar olhar para a literatura

portuguesa finissecular traz importantes questões a respeito de periodização literária.

Há que se destacar que o Simbolismo não vem depois do Naturalismo, os dois

movimentos são, em vez disso, praticamente contemporâneos. Entre 1857, ano de

publicação de Madame Bovary e de Les Fleurs du Mal, e 1893, ano de finalização de

Les Rougon-Macquart e da estréia de Pelléas y Mélisande, tem-se um pouco mais de

trinta anos em que se encontram as obras de ambos os movimentos: obras de Flaubert,

Madame Bovary, Salammbô (1862), L’Éducation sentimentale (1869), La Tentation de

Saint Antoine (1874); de Zola, toda a série de Les Rougon-Maquart (1871-1892); de

Baudelaire, Les Fleurs du mal, Les Paradis artificiels (1861); de Mallarmé, Hérodiade

(1871), L’Après-midi d’un faune (1876), Vers et prose (1893), Un coup de dés (1897);

de Verlaine, La bonne chanson (1870), Romances sans paroles (1874); de Rimbaud

Une saison en enfer (1873), Les Illuminations (1886), por exemplo. Em outras palavras,

Germinal é publicado no mesmo ano da Prose pour des Esseintes, de Mallarmé, da

mesma maneira que suas Poésies coincidem com a publicação de La Terre, de Zola.

25 Também denominado neolusitanismo. Foi um movimento de retorno às fontes da lusitanidade e da defesa da personalidade coletiva. No campo literário destacam-se os nomes de Teófilo Braga, Ramalho Ortigão e Alberto de Oliveira. Este nacionalismo literário encontrou também forte expressão no âmbito da pintura com Columbano e com Silva Porto; da arquitetura, com Raul Lino e, na música, com Antero da Veiga. Todos pretendiam acordar a emoção da pátria através da imaginação popular e do misticismo. 26 Em linhas gerais, o neo-romantismo vitalista opõe-se às manifestações literárias decadentistas de fim-de-século por sua filiação naturalista e de feição libertária, assumindo atitude mental emancipalista que “recusa a inquietação metafísica; deixa de se angustiar perante o esvair do tempo, para cuidar de fruir com euforia a existência; ignora o tédio exige aceitação originária da vida toda, enquanto dado irrecusável da condição humana, da situação do Homem que se descobre apenas vivente; [...] encara como dado natural que a vida se configure como luta, mas transforma esse dado em atitude consciente e voluntária, dando-lhe a dimensão de acção transformadora do mundo, sob o signo do optimismo” (PEREIRA, 2003, p. 211).

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Neste sentido, estudar a obra de um autor – ou grupo de autores – é de grande

contributo para uma maior intelecção da complexidade de doutrinas estéticas que

atravessam as décadas finais do século XIX e os primeiros anos do século XX. Se “o

sistema literário se manifesta como um polissistema, comportando, por conseguinte,

mais do que um policódigo literário” (AGUIAR E SILVA, 1983, p. 102), como afirma

Vítor Manuel de Aguiar e Silva, percebe-se, na literatura de fim-de-século em Portugal,

justamente, a reverberação de sistemas literários hegemônicos – “estilos de época” –

mas cujas linhas de demarcação são tênues. José Carlos Seabra Pereira (1979) já aludia

ao fato de que uma obra pode, mais ou menos harmonicamente, articular aspectos que

penetram ou tangem diversas vertentes literárias.

É este o caso de António Patrício, em que tal questão coloca-se com particular

acuidade. Ao situá-lo no contexto finissecular, cabe ressaltar que seu primeiro texto

dramático – O Fim – data de 1909 e o último – D. João e a Máscara – de 1924, para se

verificar que os textos se desenvolvem numa época marcada por múltiplas tendências, o

que poderia fazer supor que António Patrício é um simbolista tardio ou simbolista

extemporâneo. Entretanto, seriam enquadramentos insuficientes para um escritor que,

como simbolista, foi, sobretudo, heterodoxo. Sua obra que se situa numa convergência do

Simbolismo e do Saudosismo, revela uma vivência “expressa em permanente tensão

dionisíaca, de inspiração nietzschiana, na fronteira da morte a todo o instante apreendida”,

no dizer de Jacinto Prado Coelho (1989, p. 802).

Tendo em vista, portanto, que uma obra literária nunca é autônoma em relação ao

contexto sociocultural em que é produzida – antes, guardando com ele estreitas relações,

– faz-se necessário um confronto com o teatro simbolista que se produzia na época e

com os ideais saudosistas, preconizados por Teixeira de Pascoais. O que se propõe neste

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61

capítulo, portanto, é – através de uma breve análise das origens do Simbolismo e suas

reverberações no teatro – estudar a produção teatral de António Patrício em seus

aspectos mais ortodoxos quanto à estética simbolista, mas, também, em suas

heterodoxias. Como será analisado, se Patrício soube, de fato assimilar, a herança teatral

simbolista – seguindo os modelos presentes no Théâtre D’Art e do Théâtre de L’Oeuvre

franceses, que se opunham ao Teatro Livre ou Moderno do racionalismo naturalista –,

soube, também, acompanhar toda a sua evolução da estética simbolista, construindo

uma obra original. Além disso, será observada a influência da filosofia de Friedrich

Nietzsche nos textos dramáticos de Patrício, sobretudo no que diz respeito aos conceitos

de apolíneo e dionisíaco, possibilitando, assim, a mitocrítica dos textos Pedro, o Cru,

Dinis e Isabel e D. João e a Máscara.

Pedro e Inês, Dinis e Isabel e D. João, presentes na memória coletiva, preenchem

o grande espaço que a saudade – também mitificada –, a vocação nostálgica do

Absoluto, para utilizar a expressão de Durand, ocupa nas manifestações artísticas de

Portugal. Consciente da importância das imagens com que se ocupa em seus textos

dramáticos, António Patrício interessa-se, mais do que pela história canonizada nos

livros, pelos mitos e representações que povoam o imaginário coletivo. A mitocrítica,

para a análise dos seus textos dramáticos, tem como propósito revelar um núcleo

mitológico, um padrão mítico. Isso porque, conforme ressalta Gilbet Durand, “qualquer

texto revela, em suas profundidades, um ‘ser pregnante’ a olhar o significado”

(DURAND, 2003, p. 158).

Quanto a isso, é importante o que diz Claude Lévi-Strauss, na sua Antropologia

Estrutural, ao estudar a estrutura dos mitos, esclarecendo que o mito está destinado a

conciliar antinomias inconciliáveis (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 243) e, que o

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pensamento mítico “procede de tomada de consciência de certas oposições, e tende à

sua mediação progressiva” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 48). E, no confronto de diversas

versões de um mito, esclarece não haver “versão ‘verdadeira’ da qual outras seriam

cópias ou ecos deformados. Todas as versões pertencem ao mito” (LÉVI-SATRAUSS,

2008, p. 242).

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2.1. A estética simbolista em texto e contexto Ao morrer, cada um de nós deve dizer à Morte: “Deixe-me estar ainda um bocadinho. Esquecia-me por completo de viver...” (PATRÍCIO, 1995, p. 117)

Os primeiros sopros simbolistas surgem em meio às novas teorias filosóficas que,

gradativamente, faziam perder força todo o entusiasmo materialista que dominou,

sobretudo, a segunda metade do século XIX, marcado historicamente pelo apogeu da

revolução Industrial que se iniciara nos finais do século XVIII, o que proporcionou um

acelerado crescimento econômico e, no nível cultural, a busca das explicações para os

fenômenos do mundo sob um olhar cientificista. Era, afinal, o século da luz elétrica, do

gás, das grandes engenharias do ferro, da máquina a vapor aplicada às grandes fábricas,

do trem, do operariado, das grandes interrogações da ciência diante do conhecimento

positivo e objetivo da realidade.

Desta maneira, com o crescimento da produção e o consumo dos bens

manufaturados, a era moderna tem as suas primeiras forças. As cidades crescem num

ritmo frenético, e os camponeses abandonam o campo em busca de melhores salários

nos grandes centros urbanos. A intensa euforia resultante da obsessão com o progresso

– além de uma crença na onipotência do homem – conduz o pensamento científico.

O processo industrial evoluía em larga escala, gerando a luta das grandes

potências por mercados consumidores e fornecedores de matéria-prima. As unificações

da Alemanha, em 1870, e da Itália, em 1871, por exemplo, alavancam o processo de

industrialização desses países e os colocam na disputa por novos mercados. Por esses

motivos, fragmenta-se a África e ampliam-se as influências sobre os territórios

asiáticos; desenvolve-se, assim, a política do neocolonialismo e toma corpo o fantasma

de uma guerra envolvendo os países europeus.

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64

O ser humano assistia às incessantes e velozes mudanças convicto do triunfo da

ciência como fonte de explicação para a vida e para o universo. O desenvolvimento do

pensamento materialista trazia consigo uma nova maneira de entender o homem e seu

lugar no mundo. O indivíduo volta-se exclusivamente para fora de si, extasiado pelo

ruído constante da produtividade, pelas vozes da multidão e pelo ritmo frenético de

trabalho.

Neste contexto estão o Positivismo de Augusto Comte, o Determinismo de Taine

e as teorias evolucionistas de Lamarck e Darwin. Não havia, portanto, lugar para a

metafísica: para cada fenômeno, uma teoria científica que fosse capaz de explicá-lo à

luz da razão. Iniciou-se uma modernidade mercantilizada, em que tanto a ciência quanto

a tecnologia foram as medidas de todas as coisas.

Arnold Hauser aponta, contudo, que havia um certo ceticismo escondido por trás

de toda euforia de um mundo em constante mutação, pois, segundo o autor, “o rápido

progresso tecnológico não só acelera a mudança de moda, mas também a variação de

ênfase nos critérios de gosto estético” (HAUSER, 2010, p. 896). A imanência material

conquistada pelo cientificismo foi desvanecendo, sem ser, porém, completamente

substituído pela transcendência religiosa do passado, o que criou um novo sentido de

perda e abandono para o indivíduo do século XIX, que já havia sofrido tais sentimentos

de decepção, de desgosto, nos princípios do século. De fato, o homem já não estava

mais tão convicto do triunfo científico sobre a metafísica, instaurando, portanto, uma

atmosfera de crise. O homem que, até então, pela razão e pelo progresso, julgava-se

conhecedor dos segredos do Universo, vê suas certezas serem abaladas. Desta maneira,

as correntes racionalistas e materialistas da segunda metade do século XIX não

respondiam mais às exigências da realidade.

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Descrente diante de um mundo regido por forças que lhe são inacessíveis, a

mutabilidade das modas provoca no homem a sensação de que tudo se esgota, de que

nada permanece. Segundo José Carlos Seabra Pereira, “o que mais se acentua é um

sentimento aflitivo de crise que, na década de oitenta, levará à idéia de ‘o fim de

mundo’” (PEREIRA, 1975, p. 24). Assim, o que se observa é que tal sentimento

decadentista que se instaura na crise de fim-de-século envolve a consciência de uma

sociedade que envelheceu antes da hora, de um século que logo se cansou das

conquistas.

Começava a se instaurar, de fato, uma atmosfera de crise. Arthur Schopenhauer,

no seu O mundo como vontade e representação, concebe o mundo como

“representação”, sendo a “vontade” a força que impulsiona o homem. Abalando as

certezas positivistas, o filósofo alemão pensa o procedimento científico como método

inútil, já que está sempre aquém de seu objetivo, visto o mundo ser, tão platonicamente

concebido, uma mera ilusão.

À medida que o conhecimento se torna mais claro e que a consciência aumenta, o sofrimento cresce, chegando no homem ao grau supremo; e é neste ponto tanto mais violento quanto melhor é o homem dotado de lucidez do conhecimento, quanto mais excelsa a sua inteligência: aquele em que está o gênio, é sempre aquele que maiormente sofre. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 77)

Querer conhecer o mundo através de experimentos que busquem abarcar o real

conduz o homem ao sofrimento, pois tudo é “representação”, e a vontade humana nada

mais é que um desejo nunca satisfeito. Eduard von Hartmann, contemporâneo de

Schopenhauer, na sua Filosofia do Inconsciente, explica que o princípio do Inconsciente

dá aos fenômenos observados sua única explicação verdadeira (HARTMANN, 1877).

Não é possível, assim, o conhecimento último do Universo, a sua origem e as suas

motivações. O que é aparente é mera ilusão, e explicações científicas para o

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conhecimento do Universo são vazias. Para o “filósofo do inconsciente”, caberia à

humanidade empenhar-se numa gradual evolução social, e não lutar pela mera ilusão de

uma felicidade impossível em futuro próximo.

Também Henri Bergson, posicionando-se radicalmente contra a atitude

cientificista, preconizava a intuição em detrimento da inteligência, sendo aquela vista

como o “instinto que se tornou desprendido, consciente de si mesmo, capaz de refletir

seu objeto e de o ampliar infinitamente” (BERGSON, 1979, p. 159). Assim, Bergson,

concebe o misticismo como contraposição ao cientificismo, ao evolucionismo, ao

materialismo e ao pragmatismo. Vê na metafísica uma forma que leva ao conhecimento

interior da realidade – é o conhecimento do espírito pelo espírito, mas é também da

matéria e da vida, por ser o homem também vida e matéria.

Com o florescer dessas teorias, a ciência, então, tornava-se incapaz de explicar o

homem, e as questões filosóficas e metafísicas se apresentavam diante de um avanço

alucinado do mundo. Desta maneira, as correntes materialistas e racionalistas da

segunda metade do século XIX não conseguem mais responder às exigências da

realidade, sobretudo porque o processo burguês industrial evoluía de maneira

incontrolada, gerando a luta das grandes potências por mercados consumidores e

fornecedores de matéria-prima.

Descrença e desalento passam a marcar o espírito humano, gerando um momento

de grande “mal-estar da cultura”, cujos ecos chegaram, também, no campo das artes,

gerando uma oposição fundamental entre Simbolismo e Decadentismo. Explica Guy

Michaud (1947) que ambos não são duas escolas, mas duas fases sucessivas de um

mesmo movimento, duas etapas da revolução poética.

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67

Assim também entende Álvaro Cardoso Gomes, ao afirmar que Decadentismo e

Simbolismo que são “duas tendências diretamente relacionadas entre si, uma, mais

propriamente existencial, o Decadentismo; outra, especificamente literária, o

Simbolismo” (GOMES, 1985, p. 14). O Decadentismo, assim, enquanto expressão de

um estado de espírito, impõe-se mais como uma atitude do que como uma doutrina, em

que, desiludidos, jovens leitores das filosofias do antimaterialismo assumem uma

atitude de revolta e de resistência, manifestada, sobretudo, assumindo uma concepção

pessimista da vida, interessando-se pelo universo interior e secreto, e a fuga do tédio,

encarnados, sobretudo, nas extravagâncias do dandismo27.

Nesse contexto em que o pessimismo se punha em cena, abria-se espaço para o

denominado “espírito decadente” em arte, demonstrando um desencanto pelo mundo e

pela matéria. Segundo Fulvia M. L. Moretto:

O estilo de decadência não é outra coisa senão a arte em seu ponto de extrema maturidade a que as civilizações, ao envelhecerem, conduzem seus sóis oblíquos: estilo engenhoso, complicado, erudito, cheio de nuanças e rebuscado, recuando sempre os limites da língua, tomando suas palavras a todos os vocábulos técnicos, tomando cores a todas as paletas, notas a todos os teclados, esforçando-se por exprimir o pensamento no que ele tem de mais inefável e a forma em seus mais vagos e mais fugidios contornos, ouvindo, para as traduzir, as confidências subtis da neurose, as confissões da paixão que envelhece e se deprava e as alucinações estranhas da idéia fixa ao tornar-se loucura. (MORETTO, 1989, p. 42)

Segundo Ernst Fischer, “é certamente verdade que o mundo burguês é um

mundo em declínio e que, portanto, por sua própria natureza, é decadente” (FISCHER,

27

Charles Baudelaire diz que o dândi é: “O homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, não tem outra preocupação senão correr ao encalço da felicidade; o homem criado no luxo e acostumado a ser obedecido desde a juventude; aquele, enfim, cuja única profissão é a elegância, sempre exibirá, em todos os tempos, uma fisionomia distinta, completamente à parte” (BAUDELAIRE, 1996. p. 51). Ainda para Baudelaire, a paixão que move o dândi é a “necessidade ardente de alcançar uma originalidade dentro dos limites exteriores das conveniências. É uma espécie de culto de si mesmo, que pode sobreviver à busca da felicidade a ser encontrada em outrem, na mulher, por exemplo” (BAUDELAIRE)

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68

1979, p. 241). Para o autor, a estranheza do homem e a sua fragmentação frente ao

mundo objetificado:

está intimamente ligado à tremenda mecanização e especialização do mundo moderno, com a força opressora de suas máquinas anônimas, com o fato de a maior parte de nós ser forçada a se empenhar na execução de tarefas que constituem apenas a pequena parte de processos cujo significado e desenvolvimento global permanecem fora do alcance da nossa posição. [...] O mundo burguês [...], industrializado, objetificado, tornou-se tão estranho aos seus habitantes, a realidade social tornou-se tão problemática, a sua trivialidade assumiu proporções tão gigantescas que os escritores e artistas são levados a se agarrar a qualquer coisa que lhes pareça um meio de romper a rígida casca que envolve as coisas. (FISCHER, 1979, p. 108-109)

A sensação de viver numa época agonizante corre por todo o século XIX, indo do

romântico mal-do-século à dolorosa consciência da vacuidade da vida, descrita por A.

de Musset (1810-1857) em La confession d’un enfant du siècle (1836), passando, ainda,

pelo baudelairiano spleen até ao decadente fin-de-siècle. As impressões crepusculares

de Nordau (1849-1923), de Nietzsche (1844-1900) e de Valéry (1871-1945) são

sintomaticamente finisseculares. As considerações de tais autores sobre o declínio

civilizacional, porém, só aparentemente podem ser lidas como catastróficas: para eles, o

sentimento de decadência que parecia ser irremediável encerrava em si as energias

vitais, então necessárias ao futuro restabelecimento da confiança no progresso e na

regeneração nacionais.

Fruto da crise finissecular, uma onda de ocultismo e misticismo traduzia uma

profunda necessidade de interpretação da realidade, que conduziria à busca de sentidos

ocultos e misteriosos, preparava terreno para uma nova arte. De fato, nas duas últimas

décadas do século XIX, já se percebia, em boa parte dos autores, uma postura de

desilusão, e mesmo de frustração, em consequência das infrutíferas tentativas de

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69

transformar a sociedade burguesa industrial. Sendo difícil analisar o mundo exterior e

entendê-lo racionalmente, a tendência natural era negá-lo, voltando-se para uma

realidade subjetiva e fazendo com que as tendências espiritualistas renascessem. Como

aponta Gilbert Durand (1996), para quem depois da onda de 'desmitologização' do

pensamento realçada pelos “dogmas totalitários” do progresso técnico, a reação para o

fortalecimento da credibilidade na dimensão mítica ocorrerá por meio de uma

cumplicidade entre poesia e mito.

Entretanto, há que se ressaltar que o tema da fuga da realidade – a imagem da

torre de marfim é basilar – e o misticismo que surgia como alternativa às inquietações

não eram novidades. A obra do místico sueco Emmanuel Swedenborg desempenhara,

no período romântico, quanto a isso, papel de relevância. Para o místico, tudo o que há

na natureza são correspondências, pois “o mundo natural, com tudo o que contém,

existe e subsiste graças ao mundo espiritual e ambos os mundos graças à Divindade”

(SWEDENBORG, 1968, p. 48). Então, conclui que o homem é uma espécie de

Universo e que há “uma correspondência de suas emoções e, portanto, de seus

pensamentos com todas as coisas do reino animal; de sua vontade e, portanto, de seu

entendimento, com todas as coisas do reino vegetal; e de sua vida final com todas as

coisas do reino mineral” (SWEDENBORG, 1968, p. 96). Para Swedenborg, portanto,

havia uma correspondência entre as coisas sensuais e as coisas naturais; as coisas

naturais e as espirituais; e as espirituais e as celestes. E é sobre tais ideais que Charles

Baudelaire (2006, p. 595) dirá de Swedenborg “que possuía uma alma bem maior, já

nos ensinara que o céu é um homem muito grande; que tudo, forma, movimento,

número, cor, perfume, no espiritual como no natural, é significativo, recíproco,

converso, correspondente” (BAUDELAIRE, 2006, p. 595).

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70

O pensamento do místico sueco encontrou ressonância em autores como William

Blake e Honoré de Balzac. Quanto a este último, Anna Balakian ressalta, sobretudo, a

obra Livre Mystique:

um volume que contém uma trilogia de romances nos quais as personagens, fascinadas pelos ensinamentos de Swedenborg, buscam comunicação com o Mestre aqui na terra e finalmente transcendem o estado que Swedenborg dissera estar perdido para o homem que se tornou espiritualmente mutilado na sociedade evoluída. (BALAKIAN, 2007, p. 21).

É justamente tal interpretação que revelará um traço distintivo entre românticos e

simbolistas: se para os primeiros a ascensão se dava com a morte, para os segundos é na

terra que ocorre a fusão do homem com a divindade. O desejo de transcendência e de

integração com o cosmos, a temática da morte, o mistério e a rejeição da razão

aproximam o Simbolismo do Romantismo, entretanto, sem todo aquele

sentimentalismo. Para Hauser, há uma superação, por parte do Simbolismo, em relação

ao Romantismo, em virtude da valorização da arte como justificativa para a existência:

não só renuncia à vida por amor à arte mas busca na própria arte a justificação da vida. Considera o mundo da arte a única compensação verdadeira para os desapontamentos da vida, a genuína realização e consumação de uma existência intrinsecamente incompleta e inarticulada. (HAUSER, 2010, p. 910)

Leitor de Swedenborg e poeta de ascendência romântica, Charles Baudelaire é um

dos grandes precursores do Simbolismo, principalmente na interpretação

swedenborguiana de seu soneto “Correspondências”, em que enuncia a proposta de

união entre o homem e a Natureza, por meio das sinestesias – o que há na terra não tem

existência por si; mais que isso, subsiste em relação ao mundo espiritual.

Cada objeto pode encerrar em si toda a profundeza da vida. Este princípio pode

ser relacionado à sua Teoria das Correspondências, baseadas nas “Correspondências”.

Sobre isso, Helène Sabbah escreveu que:

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71

La notion de correspondances (ou synesthèsies) apparâit d’abord chez les mystiques. Selon eux, les éléments du monde matériel correspondent à des éléments du monde spirituel. Il existe également des correspondances entre les perceptions: se révèle ainsi un monde symbolique dont le poète est, selon Charles Baudelaire, un traducteur, un déchiffreur. 28 (SABBAH, 1994, p.227)

Não há um liame entre céu e terra, mas se estabelece uma conexão entre as

experiências sensoriais aqui na terra, pois, para Baudelaire, a Natureza é entendida

como templo, é o espaço que possibilita, num misticismo panteísta, integração com o

Cosmo. Em vez da transcendência, pois esta se revela impossível, prega a imanência,

evitando o idealismo cristão dos românticos. Daí Anna Balakian afirmar que a

influência de Baudelaire para o movimento simbolista “se baseia em muito mais do que

no uso da terminologia de Swedenborg em um termo isolado e na sua reiteração aos

descrever os poetas românticos franceses” (BALAKIAN, 2007, p. 30). A poética

baudelaireana funda-se, portanto, numa transcendência que se revela impossível e numa

busca frustrada de superação, conduzindo a uma idealidade que é lugar vazio. Há em

Baudelaire uma viagem marcada pela náusea e pelo tédio, resultando numa quase

caminhada para a morte, vista não como alívio, mas acompanhada de angústia e

desassossego, como mostra Ernst Fischer ao pensar a imagem do nada em Baudelaire:

“O anseio pelo nada, uma das características do romantismo da morte e da embriaguez,

foi transformado por Baudelaire em um anseio de algo novo: não mais a paz eterna e

sim um desassossego inextinguível” (FISCHER, 1979, p. 203).

A dialética presente na vida moderna, com a qual Baudelaire se confrontava ,

daria como resultado o seu conhecido spleen, ou tédio fatal da vida. Segundo Walter

28 Tradução: A noção de correspondências (ou sinestesias) aparece primeiramente entre os místicos. Segundo eles, os elementos do mundo material correspondem àqueles do mundo espiritual. Há, igualmente, correspondências entre as percepções: revela-se, assim, um mundo simbólico onde o poeta é, segundo Charles Baudelaire, um tradutor, um decifrador.

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72

Benjamin, o taedium vitae29 transforma-se na melancolia do spleen em decorrência da

alienação do sujeito consigo mesmo:

O fermento novo e decisivo que, ao penetrar o taedium vitae, o transforma em spleen, é a auto-alienação. Da infinita regressão da reflexão que, no romantismo, ludicamente dilatava o espaço vital em círculos cada vez mais soltos e, ao mesmo tempo, o reduzia em estruturas cada vez mais limitadas, a tristeza em Baudelaire permaneceu apenas o tête-àtête claro e sombrio do sujeito consigo mesmo. (BENJAMIN, 1989, p. 153)

A “expressão de um sentimento de náusea em face da monotonia da vida”

(HAUSER, 2010, p. 914), traço constante na obra de Baudelaire, confere à sua obra um

tom melancólico e decadente, como afirma Hauser ao dizer que “Para o decadente [...]

“tudo é um abismo”, tudo está impregnado de temor da vida, de insegurança: ‘Tout

plein de vague horreur, menant on ne sait où’30, como diz Baudelaire” (HAUSER,

2010, p. 915).

Fulvia Moretto (1989), além do nome de Baudelaire, ressalta, como precursores

do Simbolismo, escritores como Stéphane Mallarmé, com a sua busca de uma

“linguagem autônoma” e Arthur Rimbaud, com a proposta de uma poesia

revolucionária, que seria capaz de mudar o mundo e a própria vida. A esses nomes, Ana

Balakian (2007) soma o de Paul Verlaine, apontando sua Art Poétique como também

precursora do movimento simbolista.

Quanto a Stépahne Mallarmé, herdeiro da poesia sugestiva e musical de

Baudelaire – e seu grande admirador –, buscou a autonomia da palavra, preconizando

que as palavras possuem um significado próprio, à parte o mundo exterior. Caberia,

29 O referido desassossego associado à melancolia diante da vida – o taedium vitae, no dizer de Benjamin (1989) –, é a tônica de um dos poemas de Baudelaire, intitulado, justamente, “Spleen”. Ressalte-se que a presença desse spleen é tão marcante na obra do poeta francês que vários de seus poemas recebem o mesmo título. 30 Tradução: Tudo cheio de um horror impreciso, conduzindo não se sabe onde.

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73

assim, ao poeta explorar as possibilidades de combinação das palavras de maneira que

se criasse um mundo único, sugerido. Assim, o que Mallarmé propunha era um

procedimento estético que não visasse mais encontrar o mundo real por trás dos

símbolos, mas que anulasse a realidade em nome do reinado absoluto da palavra pura.

Sua poética é marcada por uma depuração do real em linguagem, como se pode

perceber quando o poeta afirma que a poesia deve ter “enigma” ou “mistério”,

reafirmando o caráter esotérico da arte:

Creio que [...] quanto ao fundo, os jovens estão mais próximos do ideal poético que os Parnasianos que tratam ainda seus assuntos à maneira de velhos filósofos e velhos retóricos, apresentando os objetos diretamente. Penso que é necessário, ao contrário, que não haja mais que alusão. A contemplação dos objetos, a imagem levantando voos de devaneios suscitados por eles, é o canto: os Parnasianos, eles, pegam a coisa inteira e a mostram: por aí retiram o mistério; retiram aos espíritos esta alegria deliciosa de crer que criam. Nomear um objeto é suprimir três quartos da potência do poema que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugerir, eis o sonho. É o perfeito uso deste mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a pouco um objeto para mostrar um estado d’alma, ou, inversamente, escolher um objeto e nele desimpedir um estado d’alma, por uma série de descerramentos. (MALLARMÉ, 2010, p. 221)

Rimbaud procurava através de “um longo, imenso e refletido desregramento de

todos os sentidos” (RIMBAUD, 2003, p. 80) reinventar, pelo “verbo poético”, o mundo

em sua unidade original. O poeta – um “vidente” no seu dizer, porque intui a relação

que há entre as coisas, penetra num espaço desconhecido – tem missão quase oracular.

Conforme ressaltam Wimsatt Jr. e Brooks (1971, p. 705) o “vidente apreende aquelas

imagens que o inconsciente apenas revela caprichosa e acidentalmente aos outros

homens. A poesia de Rimbaud viria a ser a exploração sistemática dessas visões”. Para

Rimbaud, afinal, a atividade poética afastava-se das concepções platônica e romântica

da inspiração: o poeta não era mais dominado pela divindade – Deus ou as Musas –

mas pelo Inconsciente. Senhor absoluto de sua loucura, esta somente lhe domina a razão

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ao fim do processo criador: “quando, enlouquecido, ele acabaria por perder a

inteligência de suas visões, ele as viu!” (RIMBAUD, 2003, p. 80).

Paul Verlaine, com seu célebre poema “Arte Poética”, enuncia categoricamente

que a ambição da poesia é tornar-se música. O primeiro verso do poema – “A Música

antes de tudo” – neste sentido, é lapidar. Ainda que sigam diferentes caminhos, também

Baudelaire e Mallarmé tratam da relação existente entre poesia e música. Para o poeta

d’As flores do mal, a música é o meio de o artista sugerir impressões no ouvinte, afinal,

“a verdadeira música sugere ideias análogas em cérebros diferentes” (BAUDELAIRE,

2006, p. 917). Quanto a Mallarmé, ao destacar o caráter musical do verbo, busca a

linguagem depurada ao máximo, fazendo do poeta um “musicista do silêncio”: a

linguagem, como a música, acaba por nada dizer, pois o significado do texto não pode

ser dito, mas sugerido.

Entretanto, a poesia para Verlaine não visa às “correspondências”, como em

Baudelaire, ou à busca do “Ideal” e/ou do “Obscuro”, na perspectiva de Mallarmé. Sua

poesia apega-se ao indefinido, torna-se objeto sonoro. Desta maneira, o vago e o

musical associam-se aos inefáveis e intraduzíveis estados de alma.

Com tal elenco de nomes, de tendências poéticas, formavam-se as primeiras vozes

do movimento simbolista – que, se nasce na França, não tarda a ganhar a Europa e, daí,

o mundo. Como analisa Balakian, o simbolismo aconteceu em Paris, por seu aspecto

cosmopolita:

Todos foram a Paris: Arthur Symons, Yeats e George Moore da Inglaterra; Stefan George, Hofmannsthal e Hawptmann do mundo de língua alemã; Azorin e os irmãos da Itália; Maeterlinck e Verhaeren da Bélgica; Moréas da Grécia; Viélé-Griffin e Stuart Merrill dos Estados Unidos. Paris serviu de neutralizador de diferentes formações culturais e foi, ao mesmo tempo, o solo fértil em que germinou uma filosofia da arte aceita por todos, ainda que sujeita às variações individuais.

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(BALAKIAN, 2007, p. 16)

Ao lado da Literatura, da Música e da Filosofia, Fulvia Moretto (1989) destaca a

pintura do universo decadentista: surgem, nesse contexto, os pré-rafaelitas, que,

buscando inspiração no Quattrocento italiano, seguiam um caminho idealista, além de

nomes como o do francês Paul Gauguin, que começa a pintar influenciado pelo pós-

impressionismo, além de Gustave Moreau, Odilon Redon, Maurice Denis e Paul

Serusier. Para além das fronteiras francesas, na Áustira destaca-se Gustave Klint. O

norueguês Edvard Munch concilia aos princípios simbolistas uma forte expressão

trágica da vida, que fez dele o representante máximo do Expressionismo.

A arte simbolista buscava o mundo onírico, fonte de misteriosas revelações do

Cosmos, em que o eu é considerado como um centro interior e, inspirado pelo princípio

da analogia universal – as correspondências de Baudelaire –, visa alcançar o

conhecimento de uma realidade absoluta. No dizer de Jean Moréas “à vêtir l’idee d’une

forme sensible quei, néanmoins, ne sarait pas son but à elle-même, mais qui, tout em

servant à exprimer l’idee, demeurerait sujette” (MORÉAS, 1947, p. 24). Tal

pensamento encontra consonância em Hauser, ao afirmar que:

O Simbolismo baseia-se na suposição de que a tarefa da poesia é expressar algo que não possa ser moldado numa forma definida nem abordado por um caminho direto. Como é impossível pronunciar algo pertinente a respeito de coisas através do veículo claro da consciência, ao passo que a linguagem desvenda, por assim dizer, automaticamente, as relações secretas entre elas, o poeta deve, como sugere Mallarmé, “dar lugar à iniciativa das palavras”. (HAUSER, 2010, p. 925)

Assim, o Simbolismo, estética “Ennemi de l’enseignement, la déclamation, la

fausse sensibilité”31 (MORÉAS, 1947) fará com que o homem volte-se para uma

realidade subjetiva, retomando um importante aspecto que havia sido abandonado desde

31 Tradução: inimiga do ensino, da declamação, da falsa sensibilidade.

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o Romantismo. O eu passa a ser o universo, numa busca da essência do ser humano,

daquilo que tem de mais profundo e universal: a alma. Daí a sublimação – oposição

entre matéria e espírito, a purificação, por meio da qual o espírito atinge as regiões

etéreas, o espaço infinito. Trata-se, portanto, de uma oposição entre corpo e alma em

que esta só se liberta quando se rompem as correntes que a aprisionam ao corpo, ou

seja, com a morte. Fruto desse subjetivismo, dessa valorização do inconsciente, dos

estados de alma, da busca do vago, do diáfano, do sonho e da loucura, o Simbolismo

desenvolve uma linguagem carregada de símbolos, necessários para exprimir o fugidio e

vago, em uma sucessão de palavras, de imagens, que pudessem, assim, sugeri-lo ao

leitor.

Conforme ressalta José Carlos Seabra Pereira:

O modo lírico é promovido pelo Simbolismo a presidir à movência discursiva dos textos na surpreendente diluição das fronteiras entre os géneros e subgéneros literários. Declara-se então uma crise da narrativa (e do drama, aliás) enquanto forma natural da literatura, refl ectida nas tentativas de reelaboração dos seus géneros ou de descoberta de alternativas segundo as injunções do paradigma lírico. (PEREIRA, 2004, p. 48)

Tal tendência encontrará lugar, também, na cena teatral. Ainda que tenha surgido

em meio ao pessimismo fin-de-siécle, o teatro simbolista bebeu de fontes românticas,

sobretudo na busca de evasão isolamento e conquista do Ideal. Giséle Marie (1973), em

seu Le Théatre symboliste, aponta a obra de Victor Hugo e Gérard de Nerval – ambos

alicerces do Romantismo francês – como primeiros sopros contra o materialismo,

buscando, sobretudo, uma arte do etéreo. Neste sentido, a estética simbolista abre

espaço, portanto, para uma nova cena, preenchida por questões existenciais, em que as

personagens emergem, muitas vezes, como representações de ideias e de sentimentos.

Fortemente ligados aos impressionistas, som, luz, cor e movimento ganham destaque

nas encenações. A estética simbolista traz como uma de suas marcas poéticas a obsessão

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pela Morte, dramatizando-se com uma sensibilidade extremamente afinada a angústia

do ser humano diante desta força aniquiladora.

O próprio termo símbolo encerra o caráter da sugestão, da ambiguidade, da

multiplicidade de sentidos, tão caros ao teatro poético simbolista. Conforme a definição

de Octávio Paz para o termo imagem, no seu O arco e a lira, o escritor diz:

[...] designamos com a palavra imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que, unidas, compõem um poema. Essas expressões verbais foram classificadas pela retórica e se chamam comparações, símiles, metáforas, jogos de palavras, paronomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas, etc. Quaisquer que sejam as diferenças que as separam, todas têm em comum a preservação da pluralidade de significados da palavra sem quebrar a unidade sintática da frase ou do conjunto de frases. Cada imagem – ou cada poema composto de imagens – contém muitos significados contrários ou díspares, aos quais abarca ou reconcilia sem suprimi-los. (PAZ, 1982, p. 119)

No drama simbolista, as imagens e símbolos são responsáveis pelas relações de

múltiplos sentidos que são sugeridos à imaginação do leitor/expectador. Encenada ou

lida, a linguagem incorporara elementos poéticos que a tornam atemporal. Como

ressalta Anna Balakian, o palco seria o melhor lugar para representar a sinestesia no

teatro simbolista: “forma, a cor, o gosto, o acompanhamento musical, mesmo os

perfumes [...] anunciavam as correspondências feitas pelo homem que deveriam

substituir o casamento entre o céu e a terra” (BALAKIAN, 2007, p. 98). Assim, o texto

teatral simbolista procura, no momento da atualização, “a projeção gráfica da paisagem

interior sobre a realidade exterior do mundo dos objetos e dos seres animados, e

nenhum deles teria qualquer caráter autônomo, mas representaria os vários tons e

flutuações do estado de espírito do autor. (BALAKIAN, 2007, p.98).

No drama simbolista é nítida a recorrência à mistura de gêneros, ultrapassando a

fronteira que separa os gêneros literários. Tal confluência de estilos e recursos estéticos

dá suporte ao propósito artístico simbolista, que é o de representar, por meio de uma

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estética híbrida, a diversidade e os múltiplos estados de alma. Dessa maneira, o teatro

simbolista, também, pode ser definido pelo que disse Edmund Wilson, quando diz que:

“[...] uma tentativa, através de meios cuidadosamente estudados – uma complicada

associação de idéias, representada por uma miscelânea de metáforas –, de comunicar

percepções únicas e pessoais” (WILSON, 2004, p.45).

O caráter estático do drama será uma tônica simbolista, somado à imprecisão do

tempo e do espaço, que criam uma atmosfera, em detrimento da ação, das

circunstancialidades nas quais se baseavam o teatro tradicional. Assim, a lenda vem

preencher o tempo e o espaço da história e sem pressupostos ou demarcações espaço-

temporais, os mitos são renovados. Tudo isto a serviço da revelação das almas,

tendendo para um forte lirismo, como assim dizia Fernando Pessoa

Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a ação nem a progressão e conseqüência da ação – mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de situações [...] Pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade. (PESSOA, 1998, p. 283).

A coerência entre a concepção de teatro estático de Pessoa incorpora e traduz uma

estética alinhada, na época, com o teatro de Maeterlinck que pressupunha uma total

imobilidade do drama, mas que não viria a se concretizar de todo em sua obra, à

exceção de algumas curtas peças, como “L’Intruse e Les Aveugles, conforme ressalta

Teresa Rita Lopes ao dizer que “lls ne sont parvenus [...], qu’à imaginer des suítes de

moments statiques, des tableaux vivants d‘idées allégorisées” 32 (LOPES, 1985, p.17).

32 Tradução: Eles não são oportunos [...], senão a imaginar sequências de momentos estáticos, quadros vivos de idéias alegóricas.

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Conforme ressalta Haquira Osakabe a respeito da elaboração de uma trama sem

drama e nem tensão, ressalta que:

[...] Pessoa é particularmente sensível à discussão sobre a natureza desse novo tipo de teatro que se inventa à revelia do próprio teatro. As anotações sobre o teatro estático não serão sem conseqüências quando exatamente o poeta irá pensar numa forma teatral em que a ação se substitui pela palavra e o tempo externo dá lugar à indefinição da introspecção e os cenários estarão sugeridos e nunca suficientemente descritos pelas instruções cenográficas. (OSAKABE, 2007, p. 70)

Segundo Jeannine Paque (1989), no teatro simbolista, a ação é subordinada a

forças ocultas. A progressão dramática, portanto, ainda que mínima, realiza-se conforme

a conjugação de dois movimentos distintos: o do enunciado, pressupondo uma ação

“mais sonhada que vivida” (REBELLO, 1979, p. 43) – verbalizada, portanto – e o do

movimento, que, embora invisível, é contínuo, permanece subentendido. Neste sentido,

o teatro simbolista recorre continuamente ao poder do símbolo, abolindo as categoriais

tradicionais de “tempo” e “espaço”, enveredando por percursos míticos e lendários,

repletos de mistério.

Os simbolistas, interessados pelo oculto, pelo desconhecido, propõem-se a dar ao

teatro uma dimensão litúrgica, na tentativa de restaurar o sagrado ao domínio das artes –

o que o teatro naturalista havia fadado ao esquecimento. Há, portanto, um regresso ao

espiritualismo, em que os mistérios que envolvem a existência são sugeridos através do

silêncio. Afirma Teresa Rita Lopes que, no teatro: “le silence ne se réduit pas forcément

à l’absence de la parole: Il peut y avoir une place active, y devenir présence de

l’absence”33 (LOPES, 1985, p. 14).

O silêncio, portanto, está a serviço da criação de uma atmosfera onírica, criando

uma densidade no palco, tecendo uma trama invisível, assinalando assim tanto o limite

33 Tradução: o silêncio não se reduz necessariamente à ausência da fala: ele ai pode ter um lugar ativo, tornar-se presença da ausência.

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da linguagem como a condição essencial para a sua renovação. Assume-se como um eco

que prolonga as palavras – as pausas, as repetições, as quebras de sintaxe – e seus

múltiplos sentidos. Será, portanto, o elemento natural em que se desenvolvem e

espalham as palavras. Para Albert Mockel “La réalisation complète pourrait être une

grave pantomine jouée dans le plus subtil silence – le rythme des gestes traçant le dessin

de cette musique nécessaire dont le silence même serait la couleur et l´harmonie”34

(MOCKEL, 1962, p. 240).

Também Fernando Pessoa defende claramente esta concepção de teatro quando

afirma que “Há duas formas de dizer – falar e estar calado. As artes que não são a

literatura são as projecções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte

que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema ou o romance, ou o

drama (PESSOA, 1998, p. 289).

No dizer de Maeterlinck: “À côté indispensable Il y a presque toujours um autre

dialogue qui semble superflu. Examinez attentivement et vous verrez que c’est le seul

que l’âme écoute profondément”35 (MAETERLINCK, 1978, p. 101). A palavra,

dissolvida, exerce a paradoxal função de assegurar, justamente, a entrada e a

permanência do silêncio, que, este sim, reina absoluto: o não-dito adquire força

poderosa, evadindo-se por trás de diálogos e, sobretudo, de longos monólogos.

Desta maneira, com uma linguagem repleta de relações simbólicas, baseada na

alusão e na ambiguidade, o teatro simbolista preconizava alcançar a poesia absoluta, a

própria substância da palavra: sua finalidade não era a de descrever todo o esforço do

34 Tradução: A completa realização poderia ser uma grave pantomima representada no mais sutil silêncio – o ritmo dos gestos traçando o desenho dessa música necessária cujo silêncio seria em si mesmo a cor e a harmonia. 35 Tradução: Do lado indispensável, há quase sempre um outro diálogo que parece supérfluo. Examine-o atentamente e verá que é o único que a alma ouve profundamente.

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herói para escapar da fatalidade do destino; em vez disso, mostrava, justamente, sua

incapacidade para decifrar o mistério do destino.

Tomando por princípio a união do mito, da arte e da religião, os simbolistas

viram-se extremamente influenciados pela teoria de Richard Wagner – herdeiro das

filosofias idealistas –, em sua concepção de “drama musical”, além da prática cênica

desenvolvida ao longo de décadas (WAGNER, 1990). Wagner propunha uma “obra de

arte total”36 – gesamtkunstwerk – reunindo, portanto, dança. música, literatura e artes

plásticas. De maneira geral, o que os simbolistas franceses interpretaram da

gesamtkunstwerk foi sua aplicação ao drama, o que daria origem ao sonho de um

espetáculo total, como observa Sophie Lucet:

L’héritage wagnérien est pour beaucoup das la réflexion des symbolists sur le theater, et dans La Revue Wagnérienne s’exprime le désir d’inventer, en echo au drame musical, un theater véritablement poétique: dans ces pages, on peut lire aussi toute l’ambiguïté de l’attitude des symbolists à l’égard du théâtre et leur méfiance pour

36 Uma característica peculiar das óperas “pré-wagnerianas” consistia no fato de que tais obras eram compostas de acordo com uma estrutura estilística que impossibilitava ao seu corpo musical possuir um caráter de uniformidade, assemelhando-se, por conseguinte, a uma espécie de “costura musical”, em que os recitativos e as árias interligavam-se por uma qualidade de música composta com o objetivo de associar diversos segmentos dramáticos – geralmente heterogêneos – em uma dada peça musical. Conforme comentam Yara Caznók e Alfredo Naffah Neto: “Não se ouvia a obra em sua duração total para depois percebê-la como uma. Tratava-se da vivência de pequenas e inúmeras unidades propiciadas pelos números isolados que não sem razão eram também chamados de números isolados” (CAZNÓK; NAFFAH NETO, 2000, p. 24). Dando continuidade em suas reformas estéticas, Wagner desenvolve nas suas óperas um projeto sonoro distinto do mero acompanhamento orquestral tão utilizado pelos compositores, elaborando ousadas combinações harmônicas, de modo a tornar a estrutura musical das partituras de suas óperas uma espécie de “sinfonia dramática”, bastante distinta das tendências que estavam até então em voga. Tais inovações acompanham o processo de instauração da postulada “obra de arte total”, síntese artística que englobaria todos os recursos e meios de expressão possíveis para o desenvolvimento de uma ópera, caracterizando-se pelo fato de que a estrutura musical, a cenografia, o libreto, a arquitetura do teatro e os seus demais recursos técnicos somariam para o engrandecimento da mesma. Essa circunstância se reflete inclusive na disposição wagneriana de realizar pessoalmente todos os processos de elaboração do drama musical, criando assim uma obra artística genuinamente orgânica, na qual todas as etapas de sua produção se encontravam sob sua direção.

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toute réalisation scénique susceptible d’amoindrir la puissance suggestive du poème. 37 (LUCET, 1992, p. 39)

Seguindo os moldes da obra wagneriana, os simbolistas buscavam exatamente um

teatro que pudesse concretizar o sonho da projeção verbal e visual, além da

comunicação não racional, da excitação da imaginação e da condução à visão subjetiva.

Assim, a necessidade ontológica de superar as fronteiras materiais fez com que os

simbolistas se voltassem naturalmente para a música, numa perfeita conjunção entre

som e silêncio, servindo de modelo para a construção de sua poética, afinal, como na

poesia, a música transcende a lógica e seria capaz, segundo acreditavam os simbolistas,

de penetrar na essência das coisas.

Mallarmé, no seu artigo “Richard Wagner, rêverie d’un poète français”, publicado

em 1885, já em plena efervescência simbolista, ressalta que Wagner:

surgiu no tempo de um teatro, o único que se pode chamar caduco, tanto sua Ficção é fabricada de um elemento grosseiro: pois que ela se impõe diretamente de um só golpe, exigindo que se creia, simplesmente, nada mais. Como se essa fé exigida do espectador não devesse ser precisamente a resultante por ele tirada do concurso de todas as artes, suscitando o milagre, de outra forma inerte e nulo, da cena! (MALLARMÉ, 2010, 102-103)

Percebe-se, portanto, francos testemunhos da influência do misticismo

wagneriano nas concepções do drama simbolista francês, como é o caso de Édouard

Dujardin – que fundou em 1885, com Teodor Wyzewa, La Revue wagnérienne,

publicação mensal (1885-1887), tendo saído um último número em julho de 1888 – ou

de Édouard Schuré, que, em 1912, publicou Richard Wagner, son ouevre et son idée,

obra dedicada ao compositor alemão, em que defende a união de todas as artes, que

37 Tradução: A herança wagneriana é para muitos a reflexão dos simbolistas sobre o teatro, e n’A Revue Wagnérienne expressa-se o desejo de imaginar consoante ao drama musical, um teatro verdadeiramente poético: em suas páginas, pode-se ler também toda a ambigüidade de atitude dos simbolistas concernente ao teatro e sua desconfiança nas realizações cênicas suscetíveis à diminuição do poder sugestivo do poema.

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simbolizaria a “régénération intime dl’homme [...] qui cherche à se ressaisir dans

l’harmonie de son corps, de son ame et de as pensée”38 (SCHURÉ, 1912, p. 315). Ainda

segundo o autor, este novo conceito de arte seria capaz de atingir “ce sentiment profond,

Sûr et irréfragable de l’âme qui nous revele au-dessus de notre raison même une

harmonie divine du monde”39 (SCHURÉ, 1912, p. 316). Desta maneira, somente o

teatro – enquanto “arte total” – seria capaz de elevar o homem em direção ao divino.

O cenário teatral encontrado pelos simbolistas será marcado, nos primeiros anos

da década de 1890, pela arte de entretenimento burguês (vaudeville, bouffoneries,

comédia de costumes), como destaca Sophie Lucet:

le théatre de l’époque este une instituiton verrouillée socialement et institutionnellement, où triomphe le theater du divertissement burgeois (vaudeville, fresques historiques, théatre de boulevard, comédie de noueurs, etc...). Le jeunes et le exclus de la scène ne peuvent que s’exaspérer de cet immobilisme qui va de pair avec l’extrême médiocrité de ce qui est represente; lorqu’on lit la chronique théatrale de ‘petit revues’, le diagnostic apparait unaniment comme celui d’une crise et le ton est à la polemique aigüe, au pamphet souvent; de ce mécontentement, de ce mépris de choses existantes mais l’idée de croisade en faveur du renouvellement des scénes. 40 (LUCET, 1992, p. 36)

Nomes como os de Villiers de L’Isle Adam, Jarry, William B. Yeats, Claudel,

Gabriele D’Annunzio e Maurice Maeterlinck dão-nos a tônica de quão difícil é

sistematizar o que foi o teatro simbolista, diante de tão complexos aspectos que

assumiu. Anna Balakian ressalta que se esperaria de um poeta a criação do teatro

simbolista e não de um dramaturgo. Baudelaire já havia iniciado alguns dispersos

38 Tradução: reconstrução íntima do homem [...] que procura tornar-se mestre de si mesmo na harmonia do seu corpo, de sua alma, de seu pensamento. 39 Tradução: esse sentimento profundo,certo e irrecusável da alma, que nos revela, mesmo acima da nossa razão, a divina harmonia do mundo. 40 Tradução: o teatro de época é uma instituição proibida, fechada social e institucionalmente, onde triunfa o divertimento burguês (vaudeville, fatos históricos, teatro de rua, comédia de costumes, etc...). O jovem e o excluído de cena não podem senão se exasperar com esse imobilismo que acompanha a extrema mediocridade do que é representado; quando se lê a crônica teatral de ‘pequenas revistas’, o diagnóstico aparece unanimemente como aquele de uma crise e o tom está na aguda polêmica, no panfleto freqüente desse descontentamento, desse desprezo pelas coisas existentes mais a ideia de cruzada a favor da renovação da cena teatral.

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projetos teatrais, como Ideolus, La fin de Don Juan, Le Marquis Du ler Houzards e

L’Ivrogne, mas, como projetos dramáticos inacabados, terminaram por receber menor

importância no conjunto de sua obra. Conforme destaca Balakian, portanto, “todos os

olhos se voltaram para Mallarmé, que já nos anos de 1860 anunciara a gênese de

Hérodiade como uma tragédia de três atos” (BALAKIAN, 2007, p. 100), mas que

terminaria por não se realizar, já que Mallarmé não se consolidou como o tão aguardado

poeta do teatro simbolista.

Os Simbolistas, guiados pelas reflexões críticas de Mallarmé, começavam a se

manifestar por um teatro ideal, aspirando ao drama indizível, numa postura contrária

àquela em que ainda trazia ao palco uma interpretação melodramática, preenchida por

uma estética obcecada pelo realismo cênico, o naturalismo. Sarrazac observa que “À

rebours de l’espirit analytique cher au positivisme, le théâtre symboliste pretende capter

sur la scène, grâce au jeu de la suggestion et des correspondances, um univers – mental

plus que physique – dans tout son extension41 (SARRAZAC, 1992, p. 722). Repudiando

a obrigação de agradar a um público cujos valores desprezavam, os simbolistas

rejeitavam a encenação de forma quase dogmática, privilegiando o ato da leitura, que

seria infinitamente superior à encenação, já que a peça que se concretizaria no palco

estaria sempre aquém do poder de imaginação do leitor. Alfred Jarry, por exemplo, já

sintetizava esse espírito simbolista ao dizer que:

Je crois que la question est définitivement tranchée de savoir si le théâtre doit s'adapter à la foule ou la folule au théâtre. [...] Maintenir une tradition même valable est atrophier la pensée qui se transforme dans la durée; et insensé de vouloir exprimer des sentiments nouveaux dans une forme ‘conservée’.42

41 Tradução: Ao contrário do espírito analítico próprio ao Positivismo, o teatro simbolista pretende ganhar em cena, graças ao jogo da sugestão e das correspondências, um universo – mental mais do que físico – em toda a sua extensão. 42 Tradução: Eu creio que a questão definitiva é distinguir se o teatro deve se adaptar à multidão ou se a multidão ao teatro. [...] Manter uma tradição ainda válida é atrofiar o pensamento que se transforma no processo; insensato é querer expressar sentimentos novos num formato conservador’.

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(JARRY, 1962, p. 139-150)

O desejo dos simbolistas, portanto, era resgatar o teatro daquilo que entendiam

como uma vulgarização causada pelo gosto burguês. Quanto a Mallarmé, se não

conseguiu concretizar este drama, foi no campo da crítica teatral, porém, com sua

contribuição à Revue Indépendante nos anos de 1886 e 1887, que expressou seu

descontentamento com os espetáculos aos quais assistia. Suas reflexões influenciaram

jovens escritores, num período em que o teatro era visto como arte em declínio. Para o

poeta francês, o teatro não é senão um projeto que não pode ser aperfeiçoado na “peça

escrita no fólio do céu e mimetizada com o gesto de suas paixões pelo Homem”

(MALLARMÉ, 2010, p. 17). Mallarmé também afirma que basta apenas uma folha de

papel para evocar o prazer de um espetáculo teatral, ao dizer que “A rigor um papel

basta para evocar qualquer peça: com a ajuda de sua personalidade múltipla cada um é

capaz de representá-la para si no interior” (MALLARMÉ, 2010, p. 65)43. Os próprios

simbolistas, inclusive, defendiam a superioridade da leitura à mise en scène, ou seja, a

ideia de que a imaginação do leitor sempre seria superior a qualquer encenação material

de um texto. O teatro simbolista é sobretudo uma manifestação literária mais orientada

para a leitura e a recitação do que propriamente para a interação entre os protagonistas.

Como assinala Haquira Osakabe:

É desse modo que se pode dizer que o grande personagem do teatro simbolista é o próprio discurso colocado no meio da cena e conduzido ao leitor-ouvinte como um evento verbo-sensorial. E aqui entra um forte ponto de interseção entre a prosa dramática ou o texto dramático e a poesia simbolista: a eloqüência musical, incluindo nessa eloqüência não apenas a organização sonora, mas também a imagética ou sensorial. (OSAKABE, 2007, p. 69)

43 Importante ressaltar que esta prevalescência do texto em detrimento da cena não se trata de uma inovação da estética teatral simbolista. Quanto a isso, destaca-se, por exemplo, Alfred Musset com as infindas trocas de cenário, com setenta personagens, o que inviabilizava a concretização cênica de seu Spectacle dans un fauteuil, ou, ainda, seu drama romântico Lorenzaccio, considerado irrepresentável durante anos.

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Ao propor uma síntese entre poesia e drama, a partir do princípio de que a busca

poética residiria nas profundezas da palavra, sendo, portanto, o resultado da pura

relação entre elas, livres de sua relação com a realidade externa que, de fato, importaria,

Mallarmé terminou por não desenvolver uma obra formalmente dramática, mas três

fragmentos poéticos que foram, inicialmente, concebidos como dramas: Hérodiade,

L’Après-Midi d’um Faune e Igitur. Ainda assim, por mais que os fragmentos de peças

não tenham se concretizado como teatro, essa “obra dramática” de Mallarmé não deixou

de influenciar a produção simbolista de que Les Flaireus, de Van Lerberghe e La

Princesse Maleiene, de Maeterlinck são exemplos.

Em 17 de maio de 1893, Pelléas et Mélisande foi encenada, em Paris, no teatro

Bouffes-Parisiens. A montagem da peça de Maeterlinck inaugurava o Théâtre de

L’Oeuvre, de Lugné-Poe e Paul Fort, ainda em sede provisória. Pelléas et Mélisande44

é um dos principais textos teatrais da estética simbolista. Os personagens materializam

expressões poéticas sobre a brevidade e a falta de sentido da vida. Como observa

Edmund Wilson, o universo dramático criado por Maeterlinck é “penumbroso”, é “[...]

um mundo no qual os caracteres são, amiúde, menos personalidades dramáticas que

cismas e anseios desencarnados” (WILSON, 2004, p. 66). Rejeitando a denominação

“dramaturgos” e assumindo a de “poetas dramáticos” em oposição à de “poetas líricos”,

para Maeterlinck os poetas dramáticos deveriam se voltar para a representação da alma

do homem, das relações que essa tem com o desconhecido, com as inúmeras

possibilidades de ser do sujeito, como observa Edmund Wilson (2004). Nota-se,

44 Baseado no texto de Marterlinck, Pelléas et Mélisande foi a única ópera completa deixada por Debussy, que conhecera o drama de Maeterlinck quando de sua estreia no Théatre des Bouffes-Parisiennes, em 1893. No mesmo ano, cativado pela peça do autor belga, após obter autorização para escrever uma ópera baseada nela, Debussy inicia seu trabalho de composição, que durou oito anos. Em maio de 1901, o próprio compositor apresentou sua obra ao direor da Ópera Comique de Paris, Albert Carré. Iniciados os ensaios, a ópera estreou em 30 de abril de 1902.

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portanto, a preocupação em dispor novos elementos e características para o drama,

então responsáveis pela ruptura dos modelos do teatro naturalista, que até então

vigorava.

Outro importante nome é o de Villiers de L’Isle Adam, em quem se pode observar

um teatro de transição, de conteúdo metafísico – ora acolhido por uma tradição

romântica, ora pela simbolista – com seu Axël, que sobe aos palcos em 1894, obtendo

relativo êxito no que diz respeito ao teatro simbolista, ainda que seu texto não seja, de

todo, simbolista, como observa Anna Balakian, demonstrando que a estrutura de Axël

“parece mais com o teatro romântico de Goethe, Musset e Hugo” (BALAKIAN, 2007,

p. 101), concentrando seu aspecto simbolista no que há de “espírito decadente”.

Francisco Rebello destaca que esta peça de L’Isle Adam é dos mais

representativos dramas do teatro simbolista, sendo aquele que “exemplarmente

dramatiza esta perpétua demanda de uma ‘beleza que floresce num céu interior’, aludida

por Mallarmé” (REBELLO, 1979, p.11). É, portanto, uma obra em que há a

representação da atitude decadentista levada à cena Não parece à toa que críticos como

Edmund Wilson (2004) ou Anna Balakian (2007) identificam o personagem de L’Isle

Adam como a imagem do herói simbolista. Frantisek Deak (1993) ressalta o caráter

místico e idealista de Axël, de forma que já seria possível sentir em Villier de L’Isle

Adam o espírito simbolista no teatro, ao qual Maeterlinck será, no dizer de Guy

Michaud, representante oficial:

En dépit de leurs mérites divers, aucune de ces piéces ne réalisait le chéf-d’ouevre attendu, et le théâtre symboliste aurait pu sembler l’expression maladroite d’une idée puremmente intellectuelle, née de príncipes contradictoires, et vouée par avance à l’éche, s’il n’y avait Maeterlinck.45

45 Tradução: Apesar de seus méritos diversos, algumas dessas peças não se tornaram as obras-primas esperadas, e o teatro simbolista poderia ter se tornado a expressão desastrosa de uma ideia puramente

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(MICHAUD, p. 1947, 445)

A. M. Schimidt também compartilha da mesma opinião, apontando que

Maeterlinck acrescentará as técnicas do novo teatro, que será gerado, portanto, por um

“poeta dramático”:

par incapacite de trouver une forme dramatique analogue à leur ideal [...] lês sybmbolistes encoureront ils définitivement le reproche de n’avoir pas renouvelé comme toutes lês autres écoles littéraires l’art dramatique? Maurice Maeterlinck lês em sauve de justesse.46 (SCHIMIDT, 1947, p. 103)

Maurice Maeterlinck privilegiará, em seus dramas, as dimensões trágica, ritual e

sagrada, propondo um novo conceito de trágico – íntimo e silencioso – denominado por

ele de tragique quotidien: “Il s’agirait plutôt de faire entendre, par-dessus lês dialogues

ordinaires de la raison et des sentiments, le dialogue plus soínneí et ininterrompu de

l’être et de as destinée. Il s’agirait plutôt de nous faire suivre lês pas hesitantes et

douloreux d’um être qui s’approche ou s’éloigne de as vérité, de as beauté ou de son

Dieu”47 (MAETERLINCK, 1978, p. 290-291). O autor belga também, assim como

Stéphane Mallarmé, sonha com um drama ideal, pois, afirma Jean-Jacques Roubine, “o

palco simbolista visa a promover o sonho” (ROUBINE, 2003, p. 135).

Maurice Maeterlinck, ao afirmar que “nous sommes inférieurs aux poetes de

l’antiquité qui mêlaient à leurs fictions um souci métaphysique et qui mettaient à la

scène la lutte de l’homme contre lês dieux, c’est-à-dire le problème de la destinée

intelectual, nascida de princípios contraditórios e lançada antecipadamente à isca, se não houvesse Maeterlinck. 46 Tradução: por incapacidade de encontrar uma forma dramática análoga ao seu ideal [...] os simbolistas incorreram definitivamente na reprovação de não terem renovado, como todas as outras escolas literárias, a arte dramática? Maurice Maeterlinck salvou-os por pouco. 47 Tradução: Trata-se mais de nos fazer ouvir, acima dos diálogos comuns da razão e dos sentimentos, o diálogo ininterrupto do ser e do seu destino. Trata-se mais de nos fazer seguir os passos dolorosos de um ser que se aproxima e se distancia da sua verdade, da sua beleza, do seu Deus.

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terrestre. ces nobles inquietudes ont disparu”48 (MAETERLINCK, 1985, p. 165). O

autor de Pelléas et Mélisande mostra-se, portanto, insatisfeito com o teatro de sua

época, lamentando a perda do elemento metafísico da arte. No seu drama simbolista, o

autor busca um teatro que ponha em cena um ator desumanizado, sujeito às forças do

destino e da fatalidade. O que sobressai, no universo de Maeterlinck é o enigma do

invisível e do inexplicável, não o mundo visível.

Os simbolistas compreenderam que existia uma quase inviabilidade cênica dos

grandes poemas dramáticos da humanidade, como por exemplo Rei Lear, MacBeth ou

Hamlet. E por isso mesmo Maeterlink preconizava a criação de um teatro em que não

tivessem atores, que seriam substituídos por figuras de cera ou estátuas esculpidas, ou,

em outros casos, por uma sombra, um reflexo, ou projeção de formas simbólicas.

Mallarmé foi um dos primeiros críticos da Princesse Maleine, de Maeterlinck, sua

primeira incursão no gênero dramático, apresentando um teatro de dimensão latente,

moldado numa linguagem depurada, de sugestiva brevidade, emergindo como rumor do

trágico interior da vida humana. De acordo com Stéphane Mallarmé a respeito de suas

primeiras impressões sobre a primeira peça de Maeterlinck:

Lear, Hamlet, ele mesmo e Cordélia, Ofélia, cito heróis recuados muito adiante na lenda ou seu longínquo especial, agem em toda vida, tangíveis, intensos: lidos, eles amassam a página, para surgirem, corporais. Diferente considerei a Princesse Maleine, uma tarde de leitura permanecia a ingênua e estranha que eu saiba; em que dominou o abandono, ao contrário, de um meio ao qual, por uma causa, nada de simplesmente humano convinha. As paredes, uma maciça cessação de toda realidade, trevas, basalto [...] para que seus hóspedes desbotados antes de aí tornarem-se buracos, estirando, uma trágica vez, algum membro de dor habitual, e mesmo sorrindo, balbuciassem ou tresvariassem, sós, a frase de seu destino. (MALLARMÉ, 2010, p. 149).

48 Tradução: somos inferiores aos poetas da antiguidade, que juntavam às suas ficções uma inquietação metafísica e que colocavam em cena a luta do homem contra os deuses, ou seja, o problema do destino terrestre, essas nobres inquietudes desapareceram.

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Anna Balakian ressalta os “ingredientes do teatro simbolista que germinaram na

mente de Mallarmé e se realizaram nas peças de Maeterlinck” (BALAKIAN, 2007, p.

117), operando uma “descida” ao domínio interior e secreto do ser humano, afinal, ““si

superficiel et si matériel, du sang, des larmes extérieures et de la mort”49, conforme

escreve Maeterlinck (1999, p. 489) no seu Tragique Quotidien, em que o poeta belga

assimila e ultrapassa o teatro utópico de Mallarmé. Atento às vicissitudes de seu tempo,

Maeterlinck fez do despertar da alma humana o principal pilar de seu teatro simbolista,

de tal maneira que, atribui-lhe Edouard Schuré (1923), o papel de precursor do “Teatro

da alma”, mais do que pelo despojamento formal do drama, mas, sobretudo, pela

maneira como constrói os diálogos, fragmentados, balbuciantes, refletindo o vazio do

sentido perante o absoluto da morte. Jacques Robichez ressalta que, do ponto de vista da

encenação, a originalidade do autor residia no fato de que “non seulement il supprimait

radicalemente tout décor détaillé, tout trai des moeurs , tout élément descriptif, mais

encore il renonçait à l’analyse psychologique et négligeait la volonté, ressort dramatique

essentiel pour un Brunetière”50 (ROBICHEZ, 1972, p. 83).

Será justamente o nome de Maurice Maeterlinck o mais venerado pelos

simbolistas portugueses, conforme destacam António José Saraiva e Óscar Lopes, ao

nomearem D. João da Câmara como introdutor do teatro simbolista em Portugal,

apontando-lhe influências maeterlinckianas: “D. João da Câmara foi o introdutor da

dramaturgia simbolista, segundo a evolução que Maeterlinck imprimira a certas facetas

metafísicas de Ibsen, como O Pântano (1834) e Meia Noite (1900), peças dominadas

por uma sugestão de mistério indeterminado” (SARAIVA; LOPES, 1997, p. 959).

49 Tradução: tão superficial e tão material, do sangue, das lágrimas exteriores e da morte. 50 Tradução: ele não somente suprimia radicalmente todo cenário detalhado, todo traço dos costumes, todo elemento descritivo, mas renunciava ainda à análise psicológica e negligenciava a vontade, mola dramática essencial para um Brunetière.

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Em 1904, subiram ao palco quatro peças de Maeterlinck, no Teatro D. Amélia.

Monna Vianna, Aglavaine e Selisette, Joyzelle e A Intrusa, o que faz corroborar a

possível influência de Maeterlinck. De fato, as duas últimas décadas são marcadas, em

Portugal, pelo Simbolismo francês, e, ainda que houvesse predomínio da estética

naturalista, muitos poetas, defensores de uma arte idealista e intuitiva, encontraram na

literatura dramática o lugar de expressão para os novos valores poéticos.

A respeito da literatura dramática finissecular, F. J. Vieira Pimentel destaca que há

três vetores que a sistematizam:

O primeiro representa o esforço para que o teatro acompanhe a ruptura estética finissecular e oscila entre duas possibilidades: o poema dramático de reduzidíssimas potencialidades cênicas e o drama maeterlinckiano representável mas altamente abstrato e rebarbativo. o segundo, neo-romântico, recupera e/ou continua tradições anteriores, sendo sua via privilegiada o drama histórico [...] O terceiro é o que procura incrementar e renovar o “velho” realismo dramático [...], só que agora à luz da doutrina e dos métodos que já haviam, entretanto, chegado em força ao romance. (PIMENTEL, 2001, p. 145)

As figuras dos heróis fundadores, conquistadores e navegantes, mulheres

sedutoras, figuras trágicas perseguidas pelo destino, vultos de poetas encontram lugar

no teatro português. Figuras, enfim, que emergem da própria História e são apresentadas

à luz de um sentimento nacionalista, voltando-se para os tempos mais mitificados da

História de Portugal: Viriato, Afonso Henriques, Pedro o Cru, Vasco da Gama, Rainha

Santa Isabel, Luís de Camões, Gil Vicente, Bocage. E, mais do que todos os outros, D.

Sebastião e Inês de Castro.

Se é com Henrique Lopes de Mendonça, em O Duque de Viseu (1886), que o

teatro de tema histórico conhece um novo surto em Portugal, é bastante extensa a lista

de autores que fazem do texto literário uma maneira de recuperar vultos da história e

das lendas. Destacam-se, por exemplo, A Morta (1890) e Afonso de Albuquerque

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(1907), do próprio Lopes Mendonça; Leonor Teles (1889), O Regente (cuja primeira

representação se deu representação em 1897), Pedro o Cruel (1915), de Marcelino

Mesquita; D. Pedro (1890), de José M. de Sousa Monteiro; Aljubarrota (1912),

Nun’Álvares (1918) e Santa Isabel (1933), de Rui Chianca; Afonso VI (1890) e

Alcácer-Kibir (1891) de D. João da Câmara; Febo Moniz (1918), de Bento Faria; Vasco

da Gama (1922), de Silva Tavares; Viriato Trágico (1900) e a nova versão da Castro de

Ferreira (1920 ), de Júlio Dantas; O Pasteleiro do Madrigal (1924), de Augusto de

Lacerda; O Infante de Sagres (1916) e Egas Moniz (1918), Jaime Cortesão; Viriato

(1923) e O Infante Santo (1928), de Luna de Oliveira; Gomes Freire de Andrade (1907)

e um projeto inacabado de trilogia: Linda Ignez, A Vingança do Justiceiro e Morta e

Rainha, de Teófilo Braga; e, subvertendo história e mito, lugar de destaque tem o teatro

de António Patrício com O Fim (1909), Pedro, o Cru (1918), Dinis e Isabel (1919) e D.

João e a Máscara (1924).

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2.2. Beleza apolínea, júbilo dionisíaco: a escrita mítica de Eros e Tânatos

Viver é só fundir a nossa alma em toda a vida imensa e misteriosa como o pólen cai fecundando uma rosa... [...] É odiar a dor e tanto e tanto ter os olhos de febre no futuro, que a pedra de tortura que eu levanto, seja dentro de mim um ser que eu transfiguro. (PATRÍCIO, 1989, p. 68)

No contexto do teatro simbolista, Luiz Francisco Rebello destaca que “Raros

foram os poetas simbolistas que resistiram à solicitação do teatro” (REBELLO, 1979, p.

15). Os principais nomes do teatro simbolista português – ou que, não necessariamente

simbolistas, mas que escreveram dramas com base nesta estética – foram,

essencialmente, poetas. São os casos de Eugênio de Castro, Fernando Pessoa e António

Patrício. Como destaca Vieira Pimentel, somente “com O marinheiro (1913) de

Fernando Pessoa e a obra de António Patrício, o simbolismo se poderá considerar

consagrado e razoavelmente aclimatado à nossa latitude” (PIMENTEL, 2001, p. 152).

Ou, mesmo, ainda mais categoricamente, como dirá Francisco Rebello:

Hoje, do teatro simbolista, à parte algumas exceções – toda a obra de Claudel, a caricatura genial do Rei Ubu de Jarry, as peças num ato de Maeterlinck (A Intrusa, Interior, Os Cegos), as “fairy-plays” e os “folk-dramas” do irlandês Yeats, os contos dramáticos de António Patrício entre nós – o que resta é a música de Debussy para Pélléas e Mélisande de Maeterlinck [...] ou de Ricardo Strauss para os libretos de Hugo von Hofmannstahl e a Salomé de Wilde [...] E tudo o mais é literatura. (REBELLO, 1979, p. 14)

Ainda segundo Francisco Rebello, é possível encontrar no teatro de António

Patrício as formas mais ortodoxas da dramaturgia simbolista, como o repúdio da

“anedota”, já explicitada pelo próprio Patrício em Dinis e Isabel, ao dizer que seu

“conto de Primavera” é “uma tragédia, toda íntima, sem indicações de costumes ou

cenários mais que as estritamente indispensáveis para situar um drama de consciências”

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(PATRÍCIO, 1989, p. 7) e, explicando a “fábula trágica” de D. João e a Máscara, diz

que reduziu ao mínimo a anedota, fixando o que há de essencial no destino das

personagens (PATRÍCIO, 1972, p. 10). Como ressalta Maria do Carmo Pinheiro e

Silva:

A classificação patriciana de D. João e a Máscara como “fábula trágica” manifesta no dramaturgo português algumas das inquietações mais profundamente sentidas por poetas como Baudelaire, Villier de L’Isle-Adam, Banville, Mallarmé ou Maeterlinck (mas não só estes, pois, como poderíamos ver, a obra patriciana, embora não manifestando grande proximidade às de um Strindberg ou de um Tchekhov, não anda longe da Dramaturgia do Eu). A sensibilidade artística de Patrício parece ter procurado reter a essência da estética simbolista, onde o predomínio do poema dramático sobre o teatro de acção era um dos elementos fulcrais. E, enquanto moderno, o Autor recusa a classificação de “tragédia” para D. João e a Máscara, preferindo a de “fábula trágicaa”. (SILVA, 1998, p. 18)

Nisto, António Patrício, tal como os simbolistas, afasta-se dum teatro tradicional –

o teatro naturalista e da anedota burguesa –, reformulando seus textos dramáticos de

acordo com um diferente gênero literário, o que se explica justamente pelos subtítulos

“contos de Primavera”, “história dramática em dois quadros” e “fábula trágica”

atribuídos respectivamente aos textos dramáticos Dinis e Isabel, O Fim e D.João e a

Máscara.

Para Luiz Francisco Rebello, embora na sua criação dramática:

sejam evidentes as aproximações com os grandes nomes do simbolismo – a conceção do ‘drama estático’ de Maeterlinck, o preciosismo verbal de D'Annunzio, a carga poética de Yeats – há no teatro de Patrício uma ressonância humana a que a presença, latente ou manifesta, mas sempre obsidiante, da morte confere uma verdadeira dimensão trágica. (REBELLO, 1984, p. 108)

José Régio enaltece a “linguagem quase sempre elevada ao poético” das “estáticas

e como sonambúlicas composições” de António Patrício, tomando-o como exemplo,

quase paradoxal, dum teatro que é “verbalmente espectacular”. Para Régio, esse

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95

verbalismo de “rara qualidade literária” e “superiormente musical” surge “da autêntica

necessidade de expressão duma autêntica personalidade humano-artística” (RÉGIO, s/d,

p. 417-419). Desta maneira, o simbolismo legaria ao teatro português, com António

Patrício, uma das mais coerentes expressões de fidelidade à escola num plano de

qualidade literária, poética, mas também cênica e espetacular. Ainda no mesmo artigo

para a Estrada Larga, José Régio diz:

Por aí se tornou corrente uma noção de Teatro que limita esta grande Arte, de origem litúrgica, a uma trivial habilidade no mexer cordelinhos que provocam a atenção do mais inculto público. A tal degradação chegou o tetro justa ou imprecisamente chamado burguês. Para os convictos defensores de tal noção, tudo será o teatro de António Patrício menos Teatro. De fato, onde os cordelinhos de suas criações dramáticas? E não se vê claro que muito difícil seria interessar-se por elas qualquer grande público de bilheteria? Acima desta degradada noção de Teatro, uma outra se afirma, sustentada por inteligências de melhor calibre, segundo a qual Teatro é sobretudo acção. Também para os representantes destoutra opinião não há Teatro no Teatro de António Patrício. Com efeito, a que se reduz a acção das suas peças poéticas? Qual o movimento dessas estáticas e como sonambúlicas composições? Ainda outra opinião, porém, se tem recentemente generalizado até entre nós, para qual Teatro é sobretudo espetáculo. [...] Ora se o espetáculo é coisa muito importante no teatro, uma saída se oferece ao António Patrício, que é espetacular. Mas sobretudo verbalmente espetacular – o que não simplifica muito a questão. Antes me convida a explicar que, por exemplo, na oratória, no canto, na pura declamação, tem a palavra um prestígio, um valor de comunicabilidade, uma acção (sim, uma acção, porque nem só no sentido folhetinesco pode ser tomada esta palavra!) que, por exemplo, eu tento expressar classificando, então, de espetacular a palavra na oratória, no canto, na declamação. por outros termos: Quero dizer que muitas vezes tem a palavra o poder de reduzir os auditores a espectadores. À palavra assim poderosa chamo espetacular ou teatral. (RÉGIO, s/d, p. 418-419)

Nos textos dramáticos de António Patrício, a história ficcional move-se pelos

personagens, cujas falas são atos e decisões, de tal maneira que a intriga se desenvolve

dialeticamente para um desfecho que virá resolver o embate entre as forças antagônicas

postas em confronto. De fato, tudo é linguagem, tudo é discurso em Patrício, que busca

conferir muita força à escrita; é a força da palavra, a referida “espectacularidade verbal”

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de que fala Régio, como se observa mesmo nas difíceis, mas espetaculares, didascálias.

É o caso de Judas:

[...] Súbito, como um perfume se faz corpo, a Sombra de Jesus aflora o chão [...] a Face ainda envolta em bandeletas, donde filtra o olhar, amorosíssimo, caindo com um eco de soluço; os pés, – de luar ferido, mal pisando. (PATRÍCIO, 1972, p. 147)

Ou, também, em D. João e a Máscara:

A Morte desce os degraus. Começa a caminhar pela alameda. Há um ranger de folhas secas: rodopiam à roda d’Ela, turbilhonam; são por fim uma espiral louca que sibila. (PATRÍCIO, 1972, p. 46)

Frantisek Deak, em seu Symbolist theater: the formation of an avant-garde,

observa que a separação entre o espetáculo e o texto inscreve-se numa prática textual

iniciada no século XVIII até seu pleno desenvolvimento no século XX. Será a partir do

século XIX que a própria noção de teatralidade vai receber maior atenção, a ponto de

muitos textos serem escritos de modo a privilegiar os impulsos visuais, como cenários e

efeitos de cena. Deak ressalta que a distinção central que se formou em torno do teatro

simbolista foi justamente a que se estabeleceu entre teatro e poesia, cujos autores

“would have to transcend the seemingly mutual exclusion of theater and poetry”51

(DEAK, 1993, p. 22). De fato, no século XIX, a oposição entre teatro e poesia será um

tema constante para os simbolistas, sobretudo para aqueles que buscavam transcender a

exclusão que teatro e poesia pressupõem. Parece ser esta a tônica dos textos dramáticos

de António Patrício.

Como observa Maria do Carmo Pinheiro e Silva, ao estudar os textos dramáticos

de Patrício:

(i) a linguagem não tem como função essencial (nem sequer como simples função) pôr o leitor ou o espectador a par dos “acontecimentos”, aliás bastante reduzidos; (ii) a ausência de

51 Tradução: teriam de transcender aparentemente a mútua exclusão de teatro e poesia.

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articulação lógica nas intervenções das personagens não só impossibilita a materialização do diálogo, como sugere ou faz pressentir um protagonismo ausente, e (iii) as personagens que dão título a cada uma destas tragédias «tragédias íntimas» - a velha rainha, D.Pedro, D.Dinis, D.Isabel ou D.João – vivem permanentes conflitos espirituais com uma desconhecida invisível mas omnipresente. (SILVA, 1998, p. 110)

Há, também, um repúdio às categorias convencionais de personagens e de um

tempo e um espaço imediatos. As personagens de Patrício são arrebatadas por uma

paixão, como Pedro que, sem restrições, entrega-se à Saudade que o move, como se

percebe numa fala sua à Abadessa do Mosteiro de Santa Clara: “Erguei-vos, Madre.

Não sou eu que vos venho perturbar. É a Saudade que me traz, é ela só” (PATRÍCIO,

2002, p. 74). Além das personagens, o tempo e o espaço ganham dimensão simbólica.

Pedro se proclama o “Rei-Saudade”; três dias Pedro viverá com sua amada para – como

Cristo ressurrecto após três dias – erguê-la para a vida, como ele diz no diálogo com

Afonso, seu escudeiro: “imagina tu que justiça foi feita. [...] Então, a paz de Deus virá

sobre a minha alma... três dias viverei com ela o meu amor... [...] Logo... logo depois de

os justiçar, vou erguê-la da cova... à minha Inês” (PATRÍCIO, 2002, p. 30); ainda em

Pedro, o Cru, Portugal (espaço geográfico) torna-se “uma província apenas” diante de

um reino maior – o Reino da Saudade, erigido por Pedro: “o meu reino de segredo, sem

fronteiras, o meu reino de amor abrange a Morte, a sua natureza de mistério...”

(PATRÍCIO, 2002, p. 24).

A atmosfera de sonho que Patrício cria para Dinis e Isabel, conforme o próprio

autor sugere no prólogo da obra, ao dizer que a intenção lírica do conto é dramatizar “o

sonho de alguém que numa manhã de Primavera entrasse numa igreja e adormecesse

sob influição fulgurante dos vitrais” (PATRÍCIO, 1989, p. 7). Assim, a ação, mais

sonhada que vivida, é posta a serviço da revelação das almas.

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Em D. João e a Máscara, as didascálias e indicações de cena são breves tanto na

caracterização do espaço quanto na das personagens que “agem”, como, também, as

referências ao momento em que a “ação” ocorre, sobretudo o tempo da sedução. Os

acontecimentos passam-se em Sevilha, e circunscrevem-se, no espaço, aos palácios de

D. João e do Duque de Silvares, à casa de D. Ana e, no final, ao Convento de La

Caridad. Aliás, nas primeiras indicações de cena algumas características próprias do

teatro simbolista são bem perceptíveis: para além da animização de imagens, uma

madrugada úmida de outono que “vai descerrando devagar as pálpebras”, uma porta de

ferro, “solene e alta, armoriada” (PATRÍCIO, 1972, p. 15).

A musicalidade tem um caráter marcante na escrita de António Patrício, para

quem “A música é o médium do Mistério” (PATRÍCIO, 1995, p. 123). Subjaz a escrita

teatral de Patrício uma forte corrente musical, num engenhoso cuidado rítmico e sonoro,

com uma imagística extremamente elaborada: sinestesias, repetição de sons, de

palavras, de metros – como se fossem fragmentos poéticos postos em prosa – como nos

decassílabos de Judas:

A SOMBRA DE JESUS Dos doze és para mim o mais amado. JUDAS, com desespero Não posso ouvir, Senhor, não devo ouvir (PATRÍCIO, 1972, p. 148)

ou, mais fortemente marcado, nas frases que são construídas como versos decassílabos,

em Pedro, o Cru, em que o rei fala de sua noite da Saudade:

A noite em que a saudade se fez carne... A noite em que o passado está presente, mas presente adivinho com futuro, abrindo os olhos sobre um fundo eterno. (PATRÍCIO, 2002, p. 98)

Observa-se, portanto, que a musicalidade confere um tom às falas poéticas das

personagens, não são adornos, mas complementos daquilo que têm a dizer, passando

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pela justificativa de que a Palavra deixa para Música a criação de uma atmosfera em que

o Verbo irá adquirir o seu pleno sentido.

Em D. João e a Máscara, os diálogos que correspondem aos momentos mais

solenes são, em geral, tratados como fragmentos musicais, como ocorre no final da

“fábula trágica”, em que se opera a passagem do recitativo para a ária, ou, também, no

primeiro encontro entre D. João e a Morte, cuja voz é detentora de um poder de

encantamento:

D.JOÃO: A tua voz, que tem?... Parece que desperta uma alameda de visões, entreaberta... E depois, ao calar-se, é a quintessência, a causa - como entre acordes de órgão, numa pausa - de tudo o que na vida, e sem saber, procuro, e vai enfim abrir como uma flor no escuro. Ó Máscara sem sono, se tu vens, se tu vens nesta manhã de Outono, p´ra me dizer enfim o sentido da vida, numa casa sem luz, há a Manhã escondida. Doces, doces as mãos – como de folhas mortas, acordando a matilha e descerrando as portas... (Silêncio breve) Onde foi que eu Te vi? – Foi em mim? Foi em mim?... (PATRÍCIO, 1972, p. 36-37)

A musicalidade que ressoa da voz e – numa outra instância – do corpo do D.

João de António Patrício também o situa na linha da “genialidade erótica” – à qual

Kierkegaard atribuiu ao Don Giovanni de Mozart – e que só poderia se manifestar pela

música, por ser a mais abstrata expressão artística.

Outra forte herança simbolista presente no texto dramático de António Patrício é a

presença imaterial de forças sobrenaturais. Dinis e D. João, por exemplo, lutam contra

uma potência invisível. Em Dinis e Isabel ela se apresenta na forma do perfume exalado

pelas rosas:

ISABEL Oh! Oh!... Guiai-me. Tende pena, amigo. Socorrei-me. (Pára um instante: olhando em si) Deixai-me relembrar junto de vós. Quando

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deixei cair a arregaçada, pus a minha alma em Deus e nem olhei. Tinha medo por vós, por vossa dor, não por o que de dor a mim viesse.Passaram-se uns instantes. mal vivia. Depois esta pergunta sem sentido, em que havia terror, que me gelava: - “eram pães... dizei... trazíeis pães?...” Olhei então, e vi maravilhada, a cabeça nas mãos desse perfume, nas invisíveis mãos que ma tomavam... (PATRÍCIO, 1989, p. 64)

Em D. João e a máscara, ela está presente em todas as mulheres e, por fim, na

Soror Morte:

SOROR MORTE Desce ao claustro, de noite, sem ruído: o mistério p’ra ti, é um novo sentido; [...] O silêncio da noite é um turbilhão de gemas sofrendo como tu, em órbitas sem nome, do mal, do grande mal que te consome. (PATRÍCIO, 1972, p. 137)

Pode-se, assim, observar nos textos dramáticos de António Patrício os principais

pressupostos do teatro simbolista, manifestando-se em temas como a vida, a morte, as

contradições e dualismos do ser humano – carne e espírito, finitude e infinitude – como

apego, como vocação nostálgica do Absoluto. A fronteira entre morte e vida

dificilmente pode ser detalhadamente delimitada pela compreensão humana. Há, porém,

que se atentar ao que diz Teresa Rita Lopes, ao aludir a um caráter bastante peculiar do

teatro simbolista de António Patrício:

Chargé de missions diplomatiques à l’éntranger, il été em contact avec lês mouvements littéraires em Europe, et notamment em France. Mais, contrairement à E. de Castro, qui s’est plié aux modes symbolistes pour lês abandonner ensuite, Patrício a realize, tout au long de as vie, une ouvre [...] originale. On peut certes déceler dans cette aouevre l’influence Du Symbolisme, mais Il n’em a conserve que ce qui servait se façon três personelle de s’exprimer.52 (LOPES, 1985, p. 71)

52 Tradução: Encarregado de missões diplomáticas no estrangeiro, ele esteve em contato com os movimentos literários europeus, particularmente na França. Mas, contrariamente a E. de Castro, que se dobrou aos moldes simbolistas para abandoná-los em seguida, Patrício realizou, ao longo de sua vida, uma obra [...] original. Certamente, pode-se perceber nessa obra a influência do Simbolismo, mas ele não conservou senão aquilo que servisse à sua maneira pessoal de se expressar.

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Assim, se Patrício soube ser um simbolista bastante ortodoxo, soube, também,

acompanhar a própria evolução que o movimento Simbolista incutiu em sua própria

poética, conforme já destacara Guy Michaud ao dizer que:

Il faudrait étudier comment tout comme les idées ells-mêmes ces thémes se commandent et s’enchâinent, despuis l’inquietude, le pessimism, le sens du mystére, la nostalgie des paradis perdus ou la revolte, jusqu’au mysticisme, à l’éla ver l’absolu, puis á la inuition d’um ordre cachê, à lamour de la vie et de la nature à l’enthousiasme et à la joie.53 (MICHAUD, 1947, p. 711)

Francisco Rebello considera que foi com António Patrício que o Simbolismo

encontrou sua melhor expressão, ao afirmar que “Alheio a todo e qualquer espírito de

escola, António Patrício foi o grande, para não dizer o único, autor dramático que em

Portugal a estética Simbolista produziu” (REBELLO, 1979, p. 35), destacando-se,

portanto, como um dos consolidadores da estética teatral simbolista em Portugal.

Em seus textos dramáticos, realizou uma “tragédia íntima”, em cuja efabulação

afasta-se do real, porque se centra no mito e integra personagens que perseguem

sombras. Os simbolistas, por exemplo, para atenuar a materialização das personagens,

fizeram muitas vezes das personagens espectros e figuras sonâmbulas. Nos textos

dramáticos de Patrício, porém, e citando Teresa Rita Lopes:

Patrício n´a pas eu besoin de recourir à ces artifices pour rendre sensible ce tragique jeu d´ombres, ce colin-maillard où l´homme, les yeux bandés, essaie de trouver à tâtons “quelques chose ou quelqu´un”, selon l´exclamation anxieuse de D.João. C´est lui qui s´arrête, hagard, au milieu du jeu, pour observer: “comme il est difficile de reconnaître quelqu´un…Nous sommes des ombres folles parmi des ombres”.54

53 Tradução: Seria preciso estudar como as idéias, elas mesmas, e esses temas se comunicam e se encadeiam, a partir da inquietude, do pessimismo, do senso de mistério, da nostalgia dos paraísos perdidos ou da revolta até ao misticismo, no ímpeto ao Absoluto, à intuição de ordem dissimulada, ao amor à vida e à natureza, ao entusiasmo e à alegria. 54 Tradução: Patrício não teve necessidade de recorrer a esses artifícios para tornar sensível esse trágico jogo de sombras, esse cabra-cegas onde o homem, de olhos vendados, procura encontrar, tateando, alguma coisa ou alguém; segundo a exclamação ansiosa de D.João. É ele quem para, alucinado, no meio do jogo, para observar: “como é difícil reconhecer alguém… Somos sombras loucas entre outras sombras”.

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(LOPES, 1985, p. 84)

Não existe nos personagens de António Patrício a apatia, a ausência de vontade,

marcas, aliás, tão caras à estética teatral simbolista, como aponta Anna Balakian ao

dizer que “As personagens atuam de modo tão igual, falam tão pouco, esperam

infinitamente que alguma coisa aconteça em lugar de lutarem contra o destino”

(BALAKIAN, 2007, p. 99). Aceitam os eventos vivenciados, denotando uma entrega

plena ao jogo de forças do devir. A passividade de tais personagens decorre de uma falta

de potência vital, fazendo com que aceitem vulgarmente os eventos com os quais se

deparam, resignam-se, acreditam que se algo é ruim para a vida, de modo algum é

pertinente interceder para que se modifique o que é ruim, pois é melhor sofrer, mas

sobreviver, do que lutar para não mais sofrer e exaurir, assim, rapidamente o exíguo fio

de energia vital que ainda anima o corpo.

As personagens de Patrício se aproximam mais, portanto, de um Axël55, de

Villiers de L’Isle Adam, do que das personagens extremamente apáticas do teatro de

Maeterlinck, frente aos acontecimentos, marcados de silêncios e hesitações. Em vez

disso, as falas e ações das personagens de Patrício demonstram uma paixão, denotam

uma ação diante das vicissitudes da morte. São videntes, vivenciam o desregramento

dos sentidos. As personagens de Patrício, na verdade, mesmo convivendo com as

55 Axël realiza uma escolha: ao optar pela morte, opta pela vida interior, pela preservação de seu sonho, como a como se pode observar na sua fala à amada Sara: “Viver? Não. Nossa existência está completa, e sua taça transborda! Que ampulheta contará as horas desta noite! O futuro?... Será, crê nestas palavras: nós acabamos de esgotá-lo. Todas as realidades, amanhã que serão elas em comparação às miragens que acabamos de viver? [...] A qualidade de nosso espírito não nos dá direito à terra.” (L’ISLE-ADAM, 2005, p. 198). O mesmo se pode observar justamente na didascália que encerra a obra: “Axël leva aos lábios a taça mortal, bebe, estremece e vacila; Sara pega a taça, termina de beber o resto do veneno, depois fecha os olhos. Axël cai; Sara se inclina para ele, arrepia-se, e eis que estão jazendo, entrelaçados, sobre a areia do corredor funerário trocando sobre os lábios o suspiro supremo. [...] ouvem-se, de fora, os mumúrios distanciados do vento na vastidão das florestas, as vibrações do acordar do espaço, a agitação das planícies, o alarido da Vida” (L’ISLE-ADAM, 2005, p. 206).

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sombras, mantêm-se despertas e detentoras de todos os seus sentidos, assumindo a

violência e os seus instintos.

Há, nisto, a compreensão trágica da vida, que partilha da ideia de que há um

caráter aniquilador e efêmero na existência, mas que não se deixa conspurcar pelo

desgosto ou pelo temor diante do devir. Ao contrário, a experiência trágica é força de

ação: as personagens de Patrício, mesmo diante das vicissitudes do mundo, não se

abismam no nada, no vazio. De acordo com Teresa Rita Lopes:

Dans chaque personnage il y a deux abimes que grodent: celui des instincts, éclatant de seve souterraine, et celui de l’âme, avide de démesure [...] Il s’agit toujours d’une soif à Double sens, de nuages et racines. La vitalité tragique des personnages de Patrício vient de ce que chair et spirit, intintcs et ame tourbillonnent ensemble dans um meme corps, sans parvenir à une synchronization, à un equilibre.56

(LOPES, 1985, p. 78-79)

Fernando Guimarães aponta dois importantes nomes para situar o Simbolismo

português: Antero de Quental e Teixeira de Pascoaes, poetas que, segundo ele, “ocupam

a cena literária imediatamente antes e depois do Simbolismo em Portugal”

(GUIMARÃES, 1990, p. 90). O primeiro, um dos principais integrantes da chamada

Geração de 70, grupo de intelectuais e artistas que seu início ao realismo português; o

segundo, diretor de A Águia (1912) e figura central como mentor e doutrinador de uma

nova filosofia em Portugal, o Saudosismo.

Leitor e admirador de ambos, de Antero, António Patrício aprendeu – e exorcizou

– a visão pessimista de que tudo é ilusão e que não há um sentido, uma redenção para a

vida humana, nem mesmo para além dela. Há, por exemplo, em Oceano, ecos

56 Tradução: Em cada personagem há dois abismos ameaçantes: o dos instintos, expondo a seiva secreta, e o da alma, ávido de sentimentos violentos [...] Trata-se sempre de uma sede de duplo sentido, de nuvens e de raízes. A vitalidade trágica das personagens de Patrício origina-se da carne do espírito, dos instintos e da alma que turbilhonam juntos num mesmo corpo, sem chegar a uma sincronia, a um equilíbrio.

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anterianos que, posteriormente seriam superados. Conforme escreve António Patrício no

prólogo de D. João e a máscara: “Sabia-o bem Antero, que o sentido da vida é o

sentido da morte. E os que, como nós, rezavam os Sonetos no colégio, souberam-no de

cor, como os simples dizem orações, bem antes de em desespero as aprenderem”

(PATRÍCIO, 1972, p. 11).

Respaldado pelo modo peculiar com que lê e interpreta o Saudosismo preconizado

por Teixeira de Pascoaes, António Patrício passa da torrente ou carga elétrica que é a

poesia de Antero a uma profunda sensibilidade encantada pela vida. A sua poética passa

a perceber o mundo de forma a revelar a grandeza da vida, sobretudo, nos seus textos

teatrais, ainda que, invariavelmente, toquem na ideia dominante da morte que é,

segundo António José Saraiva e Óscar Lopes, “como que o recorte, a consciência plena

e definida, neste escritor, do valor insubstituível de cada momento da vida tensa”

(SARAIVA; LOPES, 1997, p. 980).

Quanto a Nascimento Rosa, destaca que:

Se Pedro, o Cru e Dinis e Isabel nos reflectem hoje os mais notáveis exemplos de poesia em drama inspirados por elementos da chamada estética saudosista, é porque aquela não se limita aos pressupostos mais estreitamente provinciais nesta contidos, dotando-a de elementos universalizantes, na busca pela teatralização de arquétipos, ou seja, a captação transpessoal de valor universal transmitido pela interpretação de mitos afectos à história e à cultura portuguesas; falamos de Pedro, o Cru, mas igualmente de Dinis e Isabel, onde a dramatização da vivência saudosa se verificará, se bem que de modo mais conciso e críptico, menos enfatizado embora substancialmente lírico na sua revisitação do catarismo trovadoresco (uma saudade que na Terra é a marca de nostalgia gnóstica de um Paraíso transmundano ansiado). (ROSA, 2003, p. 168)

Nisto, talvez a mais profunda influência intelectual presente na obra de António

Patrício tenha sido a exercida pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Como aponta Armando

Nascimento Rosa, “A sensibilidade e a intuição criadoras de Patrício ficarão

indelevelmente ligadas a essa embriaguez contagiada pelas leituras deste filósofo

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diferente, anti-platónico ao conceder uma superior sageza ao poeta dramático, em

detrimento do abstracto raciocinador” (ROSA, 2003, p. 54). É importante assinalar que

o próprio António Patrício, numa entrevista a João Ameal, para o Diário de Notícias

(PATRÍCIO, 1929, p. 1), confessa-se, enquanto escritor dramático, herdeiro daquilo

que, para Nietzsche, é a origem da criação estética: o apolíneo e o dionisíaco, aliás,

como fica patente pelas próprias citações nietzschianas, que se encontram esparsas por

toda a obra do escritor português. Ressalta Urbano Tavares Rodrigues que “em António

Patrício, o culto de Nietzsche anda envolto na bruma do saudosismo, que lhe esfuma as

arestas. Patrício escreve adrede enormidades para as contestar, aquém da acção, num

jogo subtil do fazer e desfazer do real, na sua projecção” (RODRIGUES, 1981, p.1).

De acordo com a perspectiva helenística que se desenvolveu na Europa a partir de

meados do século XVIII, através das pesquisas pioneiras de Winckelmann, da qual

diversos pensadores receberiam marcante influência, dentre os quais Richard Wagner e

Friedrich Nietzsche, o “princípio apolíneo” estava associado o estado de sonho, em

decorrência da capacidade de a mente humana representar, através das imagens oníricas,

as belas aparências como simulacros da dimensão harmônica do divino. Na estética, o

impulso apolíneo se manifesta através do enaltecimento da beleza, justamente pelo fato

de que o belo mantém estreito vínculo com a harmonia, com a proporção, posto que

tudo aquilo que pertence ao plano do belo deve necessariamente respeitar as regras da

proporção. O “dionisíaco” refere-se ao impulso natural que, de acordo com Nietzsche,

propunha a total inversão dos valores apolíneos de moderação e equilíbrio

(NIETZSCHE, 1993, § 1).

Ao promover enfaticamente a superação dos limites da individualidade, a visão de

mundo dionisíaca afirma como seu estado psíquico essencial não o aprazível e suave

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estado de sonho apolíneo, gerador das ilusórias belas formas da aparência, mas o êxtase,

decorrente do anseio de o indivíduo retornar ao estado de natureza, através da

integração incondicional entre todos os seres humanos, de todas as condições sociais,

idades e classes.

Assim, a beleza apolínea serve de baluarte para a harmonia das formas diante do

caos inerente ao mundo. Entretanto, há que se ressaltar que, segundo a perspectiva de

Nietzsche, seria na poesia épica que o impulso apolíneo alcançaria a sua maior

dignidade e reconhecimento (1993, § 3). Essa magnitude se manifestaria nas célebres

epopeias de Homero – que, nas suas obras, enaltece a beleza singular dos deuses

olímpicos, a excelência de heróis e a glória imortal dos grandes feitos dos nobres

guerreiros – e nas narrativas cosmogônicas de Hesíodo, quando este se propõe a

declamar a vitória da harmonia e da ordem cósmica dos deuses olímpicos sobre o estado

de caos imposto ao mundo primordial, através da ação aniquiladora dos terríveis Titãs.

O júbilo dionisíaco concede ao homem a possibilidade de se elevar acima de

suas próprias limitações, fazendo assim nascerem obras que expressam não mais a

beleza do mundo dos fenômenos, mas o próprio mundo interior da intensidade, cuja

expressão exterior se encontra no universo através da harmonia do devir. Os contrastes

da realidade, ainda que aparentemente demonstrem a instabilidade da existência, a

morte e a destruição, em sua potência vital, que se desvela através da intuição

originária, expressa uma beleza harmoniosa.

Para Nietzsche, é Apolo quem confere forma, aparência à vida – experiência

essencialmente dionisíaca – transformando-a em arte trágica. Ao conferir forma ao

mito, ao transformá-lo em arte trágica, Apolo lhe confere uma “bela forma”. Assim, o

deus da experiência onírica transforma a vida – que, em Dionísio, deseja mostrar-se

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como experiência de autenticidade – em “sonho”. Nascimento Rosa observa que “o

palco patriciano é um discípulo desse onirismo dramático, enviando as personagens

para o limbo irreal do sonho, ou melhor, para as realidades translúcidas da expressão de

conteúdos inconscientes teatralizados” (ROSA, 2003, p. 68). E, mais adiante, ainda

observando a influência nietzschiana em Patrício, acentua que:

Subvertido, treslido e assimilado na personalizada e caprichosa óptica de um esteta, Nietzsche representará na escrita de Patrício o papel de sábio transgressor que reúne, em congenialidade, na forma e no conteúdo, a chama filosófica e o fulgor poético ardendo em tocha única: a filosofia apta a dançar com Dioniso e seus sátiros e a fruir o corpo orgástico; a poesia que pensa e gravemente empurra o raciocínio para mais longe do que os freios conceptuais o autorizariam. O drama patriciano será, pois, um teatro filosófico; e só ao afastarmo-nos do tablado da caverna em sombras para o radioso sol da platônica alegoria, perceberemos que os seus esfumados enredos são tramas de arquétipos em demanda do conhecimento. Do conhecimento de si mesmo, que torna possível contemplar o teatro externo do outro, da alteridade do mundo, com uma renovada sageza provinda da nascente em devir do rio que somos, por vezes sem sabê-lo. (ROSA, 2003, p. 73)

A morte e a destruição da vida seriam parte do próprio ciclo vital, refletindo assim

a percepção global da epifania dionisíaca de que existe uma grande unidade entre todas

as expressões da natureza, mesmo que biologicamente “mortas”. Será este o tom que

Patrício dará a Pedro, o Cru, “tragédia da saudade” em que a vida e a morte se não

opõem nem competem, mas coexistem rodeadas pela Natureza e pelo Amor. Após a

trasladação do corpo de Inês do Mosteiro de Santa Clara para o de Alcobaça, é o vento

que abre a porta, apaga as luzes e “arrasta pelas lajes folhas secas” (PATRÍCIO, 2002,

p. 131). Apenas Pedro, porém, compreende o que se passa: é o primeiro beija-mão – o

da Natureza – que antecede o dos homens:

PEDRO Oh! Oh!... O vento! O vento!... ei-lo connosco. Despertou ao chegar, desceu das nuvens, e vestido de noite, entrou também. (Apanha folhas secas no lajedo) E as folhas – olhai – as folhas secas!... E o beija-mão das árvores do Outono!... Os choupos de Coimbra sonham asas...

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108

Vinde!... vinde!... vinde!... E bem assim. As amigas de Inês antes da corte... Põe sobre as mãos da Morta folhas secas. (PATRÍCIO, 2002, p. 132)

A referida passagem de Pedro, o Cru estabelece um profícuo diálogo com a

fábula poética “O amor e a morte”, também de Patrício, em que o autor revela, de

acordo com sua perspectiva dionisíaca, não haver a “morte” propriamente dita, pois que

todo tipo de forma de vida, ao perder as suas funções orgânicas, é apropriada pela

natureza, que então transforma essa matéria em energia dinâmica a ser assimilada por

outros corpos:

O Amor encontrou num jardim encantado a Morte a soluçar perdidamente Tinha nas mãos um rouxinol inanimado e falava a uma fonte docemente: [...] Eu nem sei o que faço, vou sem tino e cada passo meu, cai morto um coração [...] Às vezes morrem astros pela altura só porque ergui o meu pressago olhar... A minha dor, ó fonte, não tem cura... Quem fora como tu sempre alegre a chorar! Curvado de piedade, o Amor beijou então perdidamente a Morte... Vê tu que és para mim já quase uma saudade, como brotou desse jardim a nossa sorte! (PATRÍCIO, 1989, p. 35-36)

No teatro de António Patrício, não é o ideal de beleza apolínea que se representa,

mas, antes, a experiência dionisíaca da necessidade de se vivenciar uma nova

compreensão da existência, em que se atesta a certeza da eternidade da vida, para além

da existência individualizada. A visão de mundo trágica mostra-se capaz de promover

uma nova compreensão da existência e da condição individual humana, na qual vida e

morte se encontram intimamente entrelaçadas. A tragédia não lida apenas com a

aparência, mas une os dois impulsos estéticos, para transpor em imagens apolíneas os

Page 117: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

109

estados dionisíacos e possibilitar uma experiência trágica da essência do mundo. “O

mito trágico só deve ser entendido como uma figuração da sabedoria dionisíaca através

de meios artísticos apolíneos’ (NIETZSCHE, 1993, §22).

Pensar a experiência dionisíaca é pensar a ideia de trágico, e, mesmo nos seus

elementos mais violentos, havia já tal ideia manifestada, seja em suas ações ou

concepções valorativas. Haquira Osakabe, por exemplo, já apontava para o fato de que:

o drama Pedro o cru (1918), de António Patrício, realiza de modo exemplar essa dissolução que resulta na disposição ambivalente dos personagens, reais e imaginados, ideais e reais, históricos e aistóricos. O Portugal fundado por Inês de Castro fundiria a história a um conteúdo etéreo, país de névoas e de saudades, porém real e palpável como qualquer sentimento. Da mesma forma, em Dinis e Isabel (1919), do mesmo autor, personagens que a história portuguesa tanto homenageou transitariam pela história e pela lenda, ou pelo território material e imaterial do amor, como se tais instâncias não contassem para as motivações de seus impulsos vitais. Com esse tipo de dissolução, António Patrício parece lograr subverter a relação das duas ordens canônicas sobre as quais o pensamento ocidental se construiu e cria concretamente para os portugueses um desafio que até hoje parece ser questão para seus intérpretes: a decifração de seu próprio mito. (OSAKABE, 2007, p. 71)

A existência, na poética teatral de António Patrício, é uma surpreendente

confluência entre a vida e a morte, e tal percepção torna-se uma glorificação

incondicional da existência. Morte e vida são instâncias indissociáveis, e, ao se

compreender intrinsecamente essa dinâmica existencial, alcança-se uma jubilosa

compreensão do valor da vida e da própria morte. É o caso de D. João e a Máscara:

D. JOÃO O silêncio não uiva... a matilha calou-se... a vida, em mim, ergueu as mãos: ajoelhou-se A MORTE Não é o instante ainda do meu beijo. D. JOÃO, embainhando a espada lentamente Sinto que te amo já para além do desejo. (Fixando-A) (PATRÍCIO, 1972, p. 35)

Page 118: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

110

Assim, a dor, a perda, a morte, enfim, são partes de um processo vital. O cerne da

poética de António Patrício está, justamente, na espiritualidade e apego à vida na terra,

em que, muitas vezes, a Natureza surge como manifestação da própria divindade e, de

tal maneira, que o divino é, sobretudo, uma força imanente à própria vida.

Em Dinis e Isabel, há um violento embate entre o poder divino e a vontade

humana, em que a cena do milagre das rosas é exemplar. É o chamado de Deus da vida

terrena para a vida espiritual, renegado, porém, por Isabel: “Eu adoro Dinis: quero ser

dele. Com todo o amor e com remorso: pensa!... Eu sou da dor como era. Sou a mesma”

(PATRÍCIO, 1989, p. 76). Ou, também, numa outra fala sua:

ISABEL [...] O perfume das rosas esvaiu-me. Estou esvaída, estou deserta em mim... Devagarinho. Ouvi. Tende piedade... (Quase em soluços) (PATRÍCIO, 1989, p. 63)

O aniquilamento do indivíduo, na prática dionisíaca, não representaria, portanto, a

sombria extinção da vida, mas a possibilidade de que as suas partes extensivas se

reconfigurassem em novos modos de expressão através do processo de contínua

transformação dos elementos da natureza. Como destaca Walter Friedrich Otto acerca

do culto dionisíaco, “Quando ele irrompe com o seu selvagem cortejo, volve o mundo

primordial que desdenha todo limite e toda norma, pois lhes é anterior; mundo que não

conhece hierarquia nem distinção dos sexos, pois, sendo vida entrelaçada com a morte,

envolve e reúne a todos os seres, indiferentemente” (OTTO, 2006, p. 162). A matéria

constituinte das coisas, portanto, é viva, dotada de um poder divino imanente que lhe

permite doar a energia criadora que proporciona o desenvolvimento e florescimento

criativo de todos os seres.

Em Pedro, o Cru não há conflito. Pedro não duvida de sua crença, está

impregnado por uma certeza mística: através de seu empenho em todo um ritual de

Page 119: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

111

desenterro da amada, de sua coroação e da cerimônia do beija-mão, a Saudade será a

força que o fará comungar com Inês num reino imaterial. Numa cena durante o

traslado de Inês, Pedro desdenha do conhecimento racional, simbolizado pela figura

do astrólogo, que zomba de sua fé em fazer reviver Inês:

PEDRO: Tu mandas o teu olhar até às estrelas, – olhar perscrutador e tão agudo, que lhes põe em sangue as penas de oiro... És sábio. Acho bem que me desprezes. (Pausa. Outro tom) Pra entender estrêlas, o melhor é viver com elas e arder sempre. O resto é pouco. (Mais perto dele) É nada. O olhar que mais vê é o olhar da vida – são um espelho em face de outro espelho. Querer saber é um impossível triste. O ASTRÓLOGO; E querer amar? PEDRO: Querer amar, mesmo quando, à míngua de alma, o não consigas, seria ainda um impossível bom. (PATRÍCIO, 2002, p. 112-113)

Em D. João e a Máscara, o “burlador de Sevilha”, na interpretação que lhe dá

António Patrício, é um homem que se vê prisioneiro das formas transitórias do mundo.

Tudo para ele é, portanto, martírio, pois que sob a máscara da luxúria percebe que seu

desejo jamais encontraria saciedade nos corpos que amou. Há em D. João a procura

obsessiva, no corpo de todas as mulheres seduzidas, do objeto do seu desejo, da sua

saudade que é a morte em figura feminina, como fica patente num diálogo entre D. João

e D. Elvira:

D. JOÃO Que queres tu? Deixa-me em paz... Mais beijos?... Queres que te tenha nos meus braços, toda?... [...] é tudo cenário? Tudo? Tudo? Nada existe? [...] E sou eu o burlador – todos o dizem – eu que te minto tão sinceramente, que caio em mim de cimos de vertigem... É como as mulheres a natureza? Vazio lúgubre a mimar divino?... (PATRÍCIO, 1972, p. 27-28)

E, em outra passagem da “fábula trágica”, num diálogo com a própria Morte: D. JOÃO

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112

Não partas mais, Amor... – Não sei bem o que digo.

O Outono adormeceu. Queda-te Tu comigo.

Queria ficar assim, como um mármore, louco,

bebendo o teu além aos goles, pouco a pouco...

A MORTE

Em ti, busca-me em ti: é uma divina rota

que na alma se faz, sem vela e sem escota.

Fico contigo. Adeus. Sou tão fiel

que nenhum me pediu para enfiar-me o anel.

Na alameda há um silêncio pânico. As árvores, as folhagens verde- cúprico e oiro-velho, estão imóveis como imensos lustres. Parece, a olhá-las, que uma lufada as faria tilintar. No primeiro degrau, a Morte pára.

(PATRÍCIO, 1972, p. 45)

Uma vez que a natureza se desenvolve e se cria através de um eterno choque de

contrários, o mundo dependeria desse conflito fundamental para que pudesse se efetivar

na existência. É o que Nietzsche chama de “vontade de vida” (NIETZSCHE, 2006, §4).

É, afinal, nessa identificação de vida e vontade de poder que este vitalismo toma-se

critério e motivação de criação estética. Como observa Veiga Simões:

A arte apoiada nos critérios nietzschianos toma assim um cunho subjectivista que a aproxima sensivelmente do realismo. Entregando tudo - a potência de viver, a dominação - ao próprio indivíduo, leva-o à natural produção duma realidade que vive em estados do artista. Uma arte que representa a exteriorização de disposições sentimentais de determinado sujeito, e que de outro lado é gerada no conceito de que mais vive quem mais vontade de viver manifestarem vez de atender primariamente ao objecto, atende sobretudo ao sujeito. Por isso mesmo, tais produções trazem consigo um estranho calor que provém do subjectivismo excessivo que as enche todas, da intensa excitação do espírito produtor. O resultado é certo: como só esse Nietzsche final do Ecce Homo poderia ver em si a vida inteira, o artista não vê de alto e de conjunto e resume-se a dar aspectos pessoais, onde naturalmente é a cor que prevalece à concepção, e em vez da dramatização resultante da compreensão de elementos vitais, consegue apenas exprimir a dramatização individual - que se chama lirismo.

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113

(SIMÕES, 1911, p. 178-179)

Para Veiga Simões, portanto, a obra de Patrício situa-se num ponto intermédio

entre o realismo e o idealismo, sendo marcada por “um realismo da decadência” e por

isso “a sua arte (porque não pode vir ainda de além do bem e do mal, onde já não há

belo nem verdadeiro, mas apenas instinto e a própria vida afirmando-se) está

naturalmente condenada a viver com o próprio indivíduo – a morrer com o próprio

indivíduo” (SIMÕES, 1911, p. 180), o que leva à ideia de que tanto a obra de Friedrich

Nietzsche quanto a de António Patrício no mesmo espaço literário, o do subjetivismo.

Page 122: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

114

3. Dos mitos e suas máscaras: escritas do Amor e da Morte

Como afirma Georges Bataille (1988) o que diferencia a atividade sexual humana

– o erotismo – da dos animais, é a consciência da morte, através da qual a vida do

homem passa a ser um intervalo entre o nascimento e a morte. É a partir do momento

em que se toma consciência disso que a vida se torna uma espera angustiada. Bataille

ainda aprofunda a temática erótica como um dos aspectos da vida interior do homem,

que busca incessantemente fora de si um objeto de desejo. Para Bataille, portanto,

“Entre um ser e outros seres, há um abismo, há uma descontinuidade [...]. Se o abismo é

profundo e não há modo algum de o suprimir, podemos, em comum, todos nós, sentir a

vertigem desse abismo” (BATAILLE, 1988, p. 12). Observa-se, com isso, que o ser

humano é marcado por uma descontinuidade, uma separação, em que a vida se

apresenta como única, pessoal e intransferível para cada indivíduo que busca uma

continuidade através da experiência do erotismo.

O erotismo ultrapassa os limites da sexualidade uma vez que há uma busca de

autoconhecimento da condição humana. Nessa perspectiva, o indivíduo se desvincula de

sua animalidade através desse comportamento perante o sexo, adquirindo, portanto, uma

nova visão de consciência da morte. Aliás, a sua relação com a morte advém do fato de

que o erotismo apresenta um significado de violação dos seres que nele participam, ou

seja, é uma violação que confina com a morte.

Parece ser essa justamente a tônica que conduz os textos dramáticos de António

Patrício. Iluminados pela dinâmica paradoxal de Eros e Tânatos, seus personagens são

construídos a partir da falta, da perda, lidam com o vazio, experimentam, cada um a sua

maneira, os laços da vida e da morte. Os longos monólogos de Pedro, ou mesmo os

diálogos entre Dinis e Isabel e as falas de D. João encontram a força de seus discursos

Page 123: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

115

não na fala em si, mas na intimidade apaixonada que os liga, como uma fatalidade, ao

erotismo e à morte. Assim, Pedro, o Cru. Dinis e Isabel e D. João e a Máscara trazem a

marca da obsessão pelo tema da morte, numa sensibilidade afinada para sentir e

expressar a angústia frente a esta força aniquiladora, que, no texto de Patrício, é

presença enigmática.

O trabalho de António Patrício para auscultar a vida buscando decifrar qual é o

seu sentido diante da morte, projetará, em sua obra, um ideal metafísico que desvela a

essência da vida como a unidade entre o sensual e o espiritual. Suas personagens se

sentem, assim, constantemente incompletos em virtude da ausência do outro, que

subverte o seu equilíbrio. É o caso de Pedro que, animado por uma obsessiva saudade,

quer comungar com Inês as bodas eternas, trazendo-a do mundo dos mortos; também, é

o de Isabel, que sente a impotência de sua vontade diante do desejo de renegar a

santidade em favor de uma vida terrena; ou, ainda, exemplarmente em D. João, que

marcado pelo tédio, anseia fervorosamente uma união erótica com a Morte,

transfigurada numa figura feminina.

E será justamente nessa fusão que as personagens de Patrício experimentarão –

retomando o pensamento de Gilbert Durand – a vocação nostálgica do impossível.

Como ressalta o antropólogo, “É talvez essa nostalgia, exprimindo uma esperança

desesperada, o significado da famosa ‘saudade’ portuguesa [...] cuja tenaz tradição

literária se prolonga no século XX com o ‘saudosismo’ de Teixeira de Pascoaes ou de

António Patrício” (DURAND, 2008, p. 27).

António Patrício, na sua obra, cria personagens que não admitem limitações ao

poder de viver, e a arte, ainda que expressão estética da vida – tal como Nietzsche a

concebera –, sorvendo os seus dinamismos dessa mesma vida, se identifica com o

Page 124: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

116

indivíduo. Sendo assim, é todo o domínio que a arte possa exercer necessariamente

transitório. Da mesma forma como o é o próprio indivíduo.

O que se desenvolve, neste capítulo, portanto, é, conforme Gilbert Durand propõe

na perspectiva mitocrítica, ler as metáforas obsessivas (grupos de imagens que se

repetem) interpretando-as para a compreensão dos textos dramáticos de António

Patrício, apontando para a maneira segundo a qual suas personagens buscam uma

decifração da divindade da vida, privilegiando as loucuras, as paixões, os sonhos.

Através de sua afirmação, a vida torna-se justificada. Assim, o que Pedro, Dinis, Isabel

e D. João, na criação do texto de Patrício, buscam, é, a partir dessa paixão, não pela vida

comum, mas a verdadeira vida, desvelada em plenitude, a vida sublime, é superar a

morte. Assim, o desejo erótico é a principal mola impulsionadora das personagens de

António Patrício, esta “aprovação da vida até na própria morte” (BATAILLE, 1988, p.

11), em que se fundem vida e morte.

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117

3.1. O canto de Orfeu, a voz da Saudade: Pedro, o Cru

Fecho os olhos ao sol para estar contigo. É de noite este corpo que me assombra... Vês?! A saudade é um escultor antigo! (PATRÍCIO, 1989, p. 157)

Carolina Michaëlis de Vasconcelos, n’A saudade portuguesa, ao discutir

alguns aspectos segundo perspectivas histórico-culturais que envolvem a tradição

inesiana, estabelece, no seu texto, uma distinção entre o que chamou tradição

histórica com “fundamento sobre a verdade” e a “fábula” ou “fantasia”, ressaltando

que neste trágico episódio ambos tendem a se confundir. Com respeito ao episódio,

considera “como tradição histórica não só o amor de perdição do herdeiro da coroa e

o seu desenlace sangrento; mas também os seus reflexos de além-tumba”

(VASCONCELOS, 1996, p. 13).

Dessa imbricada relação entre os planos do real e do mitológico, certo é o

desenlace sangrento dos amores de Inês e Pedro e todo o eco de além-tumba; toma-se

como fato o grande desvario do Infante, que levantou um exército contra o próprio

pai, e viu-se apenas satisfeito quando, já rei de Portugal, saciou sua sede de vingança

ao ordenar a execução dos assassinos de sua amada, a um mandando arrancar o

coração pelo peito, ao outro pelas espáduas; evento histórico e ímpar é a trasladação

do corpo de Inês de Castro do mosteiro de Santa Clara, em Coimbra, até ao de

Alcobaça, em um cortejo fúnebre como igual nunca mais houve em Portugal.

A par dos fatos, surgiram lendas nas quais pormenores infundados foram

incluídos. Diz-se que D. Pedro teria coroado a amada e feito com que todos os nobres

se ajoelhassem e lhe beijassem a mão, seis anos após a sua morte. Lenda demasiado

romântica para se crer como verdade. Além do mais, as crônicas não deixariam

passar despercebida uma cerimônia tão espantosa. Outra lenda, em tudo bela: a de

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118

que D. Pedro mandara pôr o seu túmulo não ao lado do de Inês, no cruzeiro de

Alcobaça, mas pés contra pés, para que, ao soarem as trombetas do Juízo Final, seus

olhos se pudessem, mais uma vez, encontrar.

Desde o surgimento de Tristão e Isolda, no século XII, a impossibilidade

amorosa tem sido a marca do amor-paixão no Ocidente. Sacralizada e mitificada pelo

imaginário português, a relação de Inês e Pedro retrata essa impossibilidade, conferindo

um caráter trágico à história daquela que depois de morta teria sido rainha. Viva, ela

subjugou o corpo e a alma de um futuro rei; morta, submeteu sua mente e seu arbítrio ao

fanatismo sanguinário. Tornando-se rei, D. Pedro quebra o juramento feito ao pai e

manda executar os assassinos de Inês. Em seguida, ordena que Inês seja desenterrada,

sete anos depois de morta.

Maria Leonor Machado de Sousa, no seu estudo a respeito da propagação do

tema inesiano na Europa, observa que sendo “a história de Inês de Castro […] um caso

invulgar de interpenetração da crónica e da literatura”, ao tratá-la, “os historiadores mais

objectivos tornam-se poetas” e que, como tema literário, “todas as épocas lhe viram

interesse, cada inovação fez a sua escola, as obras de maior êxito encontraram

repetidamente tradutores e adaptadores. O carácter excepcional de certos aspectos e a

liberdade que a fluidez da personagem dava à imaginação do artista são por certo as

razões mais claras do sucesso internacional” (SOUSA, 1987, p. 12).

Quanto a Pedro, o Cru, portanto, o enredo referencia-se num acontecimento

histórico, mas de contornos lendários. Motivado pela história dos amores de Pedro e

Inês, o texto dramático de António Patrício, porém, desvia a atenção do elemento

feminino, concentrando-se inteiramente no comportamento de Pedro, posto que tudo se

Page 127: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

119

passa depois da morte de D. Afonso IV, quando, então, Pedro decide reabilitar a

memória da sua amada.

Como observa António Braz Teixeira:

O romantismo português [...] deslocou o centro da acção da morte sacrificial de Inês de Castro para a sua sobrevivência saudosa na pessoa de D. Pedro e para a sua ressurreição e coroação como rainha. Deste modo, da tragédia clássica de Ferreira e dos árcades setecentistas para o drama romântico, no tratamento e interpretação do mito, a uma visão fatalista, que se conclui com a morte e em que o elemento ou factor político assume particular relevo, substitui-se uma concepção com evidentes conotações cristãs – se bem que nem sempre inteiramente ortodoxas – em que à Paixão (representada pela morte de Inês) se sucede a Ressurreição, quando não também, como em António Patrício, a santificação de Inês. (TEIXEIRA, 1982, p. 9)

Mais do que aos fatos históricos, interessa a António Patrício justamente o

material poético. Desta maneira, em Pedro, o Cru, dissolve-se a fronteira entre o

mito e a história, legitimando-se no texto o amor pelas vias da mitificação e da

eternização: Pedro surge como a personagem central, buscando uma realização

suprema, que pode ser conseguida somente pela identificação com as forças mais

essenciais do mundo: o apolíneo e o dionisíaco, que em Pedro desperta uma chama

de lúcida loucura, sendo marcado por certa genialidade adivinhante e que assim se

torna um vidente ao tentar penetrar no fundo secreto das coisas. Pedro é essência

dionisíaca e aparência apolínea.

Os acontecimentos são dispostos em função da tragicidade – e dramaticidade –

do material mítico. A exposição dos acontecimentos é inserida no movimento dramático

da peça e vai se construindo com a materialidade do texto. António Patrício abandona a

preocupação de reconstituir a história, mas mantém determinados fatos indiciais, porque

premonitórios: o rei açoitando o Bispo do Porto e castigando os assassinos, a exumação

de Inês, o cortejo fúnebre, a coroação do cadáver. Este último ato, inclusive,

Page 128: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

120

representaria a assunção, levada às últimas consequências, do estatuto de representante

do “povo saudoso [...] que apercebe em tudo quanto toca a sombra da ilusão e da morte,

mas a uma e outra exige a promessa de vida” (LOURENÇO, 2007, p. 110)

Uma das mais belas passagens das leituras do episódio inesiano é justamente

aquela em que Pedro, tendo em seus braços o corpo da amada morta, tenta-lhe encontrar

qualquer resquício de vida. Neste sentido, os ecos de além-tumba – a trasladação do

cadáver de Inês do mosteiro de Santa Clara até ao de Alcobaça e a sua configuração

como rainha na estátua sepulcral jacente – são exemplos ímpares da ação de Pedro para

reverter a morte de Inês. É o seu esforço – fadado ao fracasso – na tentativa de burlar as

próprias condições da vida. Haquira Osakabe destaca que tais atos do rei D. Pedro

serviram para “dar matéria à saudade”, posto que:

[...] a consagração de Inês, pelos funerais reais, não foi apenas a superação simbólica da sua morte por parte de seu amante. Foi muito mais. Consagrá-la rainha correspondeu à unção (e criação) definitiva de Portugal como reino do Amor e do sentimento que permite eternizá-lo: a Saudade.

(OSAKABE, 1998, p. 110)

Lima de Freitas, em duas de suas composições plásticas, ilustra bem tal leitura,

ambas se aproximando da noção de “nostalgia do impossível”, proposta por Gilbert

Durand. Em uma delas – Ate a fim do mundo57 – o artista retrata uma Inês que é, ao

mesmo tempo, vida e morte. Uma possível interpretação é justamente a da

efemeridade e transitoriedade da aparência pela ação da morte e do tempo. Pedro e

Inês estão a se olhar na linguagem do silêncio, a única que, comenta Walter

Benjamin, corresponde à do herói trágico:

Ao ficar em silêncio, o herói quebra as pontes que o ligam ao deus e ao mundo, ergue-se e sai do domínio da personalidade

57 Anexo 1

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121

que se define e se individualiza no discurso intersubjectivo, para entrar na gélida solidão de Si-mesmo. Este nada conhece fora de si, é a pura solidão. Como há-de ele dar expressão a esta solidão, a esta intransigente obstinação consigo próprio, a não ser calando-se?

(BENJAMIN, 2004. p. 286.)

Observando atentamente os elementos da pintura, Pedro fixa seu olhar apenas

no rosto de Inês, a única parte de seu corpo que traduz vitalidade. Até a fim do mundo

é, também, uma possível tradução para a inscrição da arca tumular de D. Pedro – A:

E. AFIN DO MVDO – significando, por este ponto de vista, não exclusivamente

uma metáfora espacial, mas também temporal, podendo ser traduzida como um “para

sempre”.

Em outra obra – A que depois de morta foi Rainha58 –, Lima de Freitas

reproduz a imagem de uma Inês morta, entronada e coroada. Há uma luz a iluminar-

lhe a face, e é justamente essa luminosidade que atrai os olhos do rei D. Pedro, que,

na penumbra, está a contemplar Inês de Castro, na ânsia de encontrar no rosto

iluminado da amada qualquer sinal de vida. Parece um olhar incrédulo, mas, ao

mesmo tempo, cheio de esperança. O corpo mal coberto de Inês, entretanto, o seu

cadáver, longe da luz de sua face, é a denúncia de outra forma de olhar:

ambiguamente, ao mesmo tempo em que se quer a reversibilidade, parece-se sabê-la

irreversível: nada tem o poder de parar ou mesmo reverter o tempo.

Revelam-se nas obras de Lima de Freitas um processo de enunciação que

testemunha o vazio da linguagem e da morte. As imagens do corpo morto de Inês e a

maneira como Pedro a ele se apega, querendo enxergar não um corpo em

decomposição, mas a própria amada em vida, representam o início de todo um

58 Anexo 2.

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122

processo poético e simbólico. D. Pedro se recusa a viver sem a presença do

sentimento que lhe animava a vida, fazendo assim com que a morte de Inês não

tivesse um significado de fim. Vê-la viva, ainda que na morte, é tê-la sem medida, no

reino da Saudade, como ponte para a ressurreição da própria carne. Desta maneira, o

olhar de Pedro encontra eco no que diz Pascoaes ao afirmar que:

O homem só vê nitidamente o que perdeu; só possui em absoluto o que perdeu. E por isso, as trevas da morte revelam melhor a pessoa amada que todo o sol que a iluminou durante a vida! A morte roubou-lhe o que é efémero e transitório, a aparência, mas a Saudade revelou-lhe a eterna aparição, a sua pessoa integral e essencial. A sombra da Morte que nos esconde, esvai-se ante a Saudade que nos mostra.

(PASCOAES, 1987, p. 75)

Cria-se, assim, uma tensão entre amor e morte, presença e ausência, encontro e

separação, construindo-se um universo erótico-textual. É “a aprovação da vida até na

própria morte” (BATAILLE, 1988, p. 13). O que marca Pedro na Leitura de Lima de

Freitas é a nostalgia da continuidade do ser, conforme conceitua Bataille, ao trazer à

luz a questão da vida descontínua. O que Pedro quer é encontrar na amada, ainda que

morta, esta aprovação da vida. Assim, “o tormento do amor desencarnado é tanto

mais simbólico da verdade última do amor quanto a morte daqueles que ele uniu os

aproxima e os enternece” (BATAILLE, 1988, p. 13).

Poderia bem ser esse um mote de Pedro, o Cru, em que transparece o embate

entre Eros e Tânatos. O desejo desencadeia a luta contra a morte, ao mesmo tempo

em que a busca, anelando o trágico e todo o poder que coloca a vida em xeque. O

desenvolvimento dramático do texto centra-se em três momentos históricos da vida

de D. Pedro, correspondendo a três núcleos principais de toda a ação: a condenação e

a execução dos assassinos de Inês, o traslado do corpo, de Coimbra para o Mosteiro

Page 131: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

123

de Alcobaça, denotando, assim, uma opção em que o leitor vê-se diante dos maiores

atos de um rei, tido por uns como de justiça, por outros como de vingança, mas

sempre fundado amor por Inês. A memória de Inês é a promessa da vida na

transcendência, mas Pedro quer, além dessa vida, aquela que apenas o milagre da

ressurreição do corpo pode permitir. A perseguição desse milagre é o mote do texto

dramático de Patrício.

Quando resolve coroar a amada morta, Pedro diz a Afonso, seu escudeiro, que

até então os súditos foram governados pelo rei que vive para a Justiça – que,

portanto, se ocupa da vida –, mas que, a partir daquele momento, agora seria a vez do

rei que vive “pró Amor e prá Justiça” (PATRÍCIO, 2002, p. 17). O reino escapa aos

condicionamentos a que está sujeita a vida humana, que não tem acesso a sua

natureza de mistério:

PEDRO [...] O meu povo... a corte...mesmo tu, só conhecem de mim o justiceiro. Mas para além da Justiça e bem mais alto há um rei que te fala e não conheces, que é rei de Portugal e anda na Morte, porque é nela que vive o seu amor... O meu Paço Real, o verdadeiro, é uma cova num claustro, em Santa Clara. [...] O meu reino é maior do que tu pensas. Portugal é uma província apenas. O meu reino de segredo, sem fronteiras, o meu reino de amor abrange a Morte, a sua natureza de mistério. (PATRÍCIO, 2002, p. 17)

A Saudade como força suficientemente poderosa para reverter o irreversível,

impregna Pedro de uma certeza mística: empenhado num ritual – a vingança contra

os assassinos de Inês; o desenterro da morta; a coroação e o beija-mão do cadáver –,

só a partir desse ritual terá novamente Inês, como a teve em vida. Movido pela

saudade obsessiva, o rei se organiza com a finalidade de cumprir seus planos de

ressurreição da amada, como vida na transcendência. O que tão ansiosamente busca é

o milagre da ressurreição do corpo, sem o qual a alma não se basta. Como aponta

Page 132: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

124

Armando Nascimento Rosa, Pedro quer ressuscitar Inês “e atingir através dela a

clarividência do futuro comum aos dois. O ímpeto saudoso deste Orfeu é também a

saudade por um futuro utópico em que o reencontro de ambos se verificará” (ROSA,

2003, p. 185).

Aliás, Pedro vai ser o protagonista de toda a ação, tudo se desenrola à sua

volta. António Patrício explora a figura de Pedro enquanto um homem que a tudo se

sujeita em nome do amor a uma mulher. Cria-se um ambiente fantástico e, de certo

modo, fantasmagórico, que envolve numa bruma misteriosa a relação morte-vida dos

dois amantes, votando-os ao sofrimento e à saudade eternas.

Em uma das passagens do texto, ansiando por entrar em contato com a amada,

em vê-la, tocá-la, senti-la, enfim, para desenterrá-la do esquecimento e coroá-la

Rainha de Portugal, D. Pedro penetra no mosteiro de Santa Clara e dirige-se à

abadessa:

PEDRO: Erguei-vos, Madre. Não sou eu que vos venho perturbar. É a Saudade que me traz, é ela só. Estáveis em sossego... Mas ela veio: bateu-vos à porta, e entrou em lufada, um rei e uma corte. (Quase gritando) Madre! A minha saudade é uma hiena: vem desenterrar o meu amor... Onde está ele? (Dominando-se) Onde me espera a que será vossa Rainha!?? (PATRÍCIO, 2002, p. 74)

Tal como a hiena, que se alimenta de carne em decomposição, a Saudade do rei

encontra no cadáver de sua amada o alimento que lhe dá vida. A Saudade, inclusive,

confunde-se não só com o Amor, mas também com a Morte, tão evocada durante a

exumação do cadáver de Inês de Castro. Pedro fala da Morte com a mesma

familiaridade com a qual fala do Amor, como se observa em sua reação ao se aproximar

do túmulo da amada:

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125

PEDRO, olhando a pedra em êxtase A porta do meu Paço... Esta pedra p’ra mim é transparente. O meu amor atravessa-a como o vento o corpo vão das nuvens. (PATRÍCIO, 2002, p. 68)

A aliteração (vento/vão/nuvem) sublinha exatamente a noção de “movimento

invisível”, construindo-se a imagem do vento que atravessa a nuvem e, mais, da

Saudade que atravessa o “corpo vão” de Pedro e o seu Amor atravessa o túmulo de Inês.

Pedro vê-se como alguém que tem livre acesso aos mistérios da morte, mas que, por

isso mesmo, parece já não ter acesso à objetividade da vida, como transparece em seu

diálogo com o coveiro:

PEDRO Já enterraste algum parente, algum amigo? O COVEIRO Dois filhos pequenos, meu senhor. PEDRO E que impressão sentiste, além da mágoa? O COVEIRO Meu senhor, nenhuma. A impressão de coisas frias...coisas tristes...de coisas a que não há nada a fazer... PEDRO A impressão de fim, de acabamento? O COVEIRO Sim, meu senhor.[...] PEDRO Foste então tu [...] que enterraste o meu amor... a minha Inês? O COVEIRO Não reparei, senhor. PEDRO É justo. Enterraste, sem o olhar, o meu destino. E eu sou teu rei... O que sei eu do teu!?[...] O ofício é tudo. (PATRÍCIO, 2002, p. 71)

Page 134: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

126

Também é bastante significativa a didascália que introduz a cena em que Pedro

desenterra a amada e contempla seu cadáver, em êxtase, com todos os sentidos

dominado pela Saudade:

Ajoelha-se de novo: entra na cova, enterra os braços na terra alguns segundos; e devagar, levanta o caixão verticalmente. Quando a tem bem ao alto, as tábuas, podres, abrem-se; – e num silêncio de estupor, vê-se o cadáver esburgado: dir-se-ia que ele e Pedro se contemplam. (PATRÍCIO, 2002, p. 81)

Quando Pedro se agarra ao corpo da amada – corpo sem vida – agarra-se a uma

impossibilidade. Para Pedro, entretanto, não é ao cadáver de Inês – não é a um

simulacro – que ele se agarra, mas à própria Inês. O corpo morto é ainda para D. Pedro

a própria Inês. O que ele enxerga – ou quer enxergar – não é o corpo em decomposição,

mas a luz que ilumina o rosto da amada. Como Lima de Freitas também assim

interpreta, o olhar de Pedro volta-se diretamente para os olhos de Inês, desconsiderando

tudo que foge a esse foco.

PEDRO: Oh! Como os seus cabelos teem mais oiro, são cor dos giestais ao vir de maio, teem mais oiro que a coroa... Vêde: vede... Nem lhes buliu a Morte. Guardou-os de amuleto, sempre-vivos. Guardou-os como jóias... como jóias... São as jóias da Morte os teus cabelos... Sempre fitando a Morta, toma agora o scetro do almadraque, e entrega-o à Abadessa, que já sem terror, prêsa do sortilégio místico da scena, o vai depor entre os dedos de Inês quási esburgados. Pedro sorri. Há na sua lividez uma expressão misteriosa de triunfo. (PATRÍCIO, 2002, p. 84)

O corpo morto de Inês desperta a noção de imaterialidade, que se desprende de

sua presença/ausência, integrando-se, definitivamente, num nível simbólico e

metafórico, em que nele deixam de influir referências de espaço e de tempo para ser

apenas a ideia do mito. Morta Inês, sobrevive o seu nome. Trata-se, pois, da

interpretação de Durand quando postula os mitologemas portugueses. Agarrar-se a Inês

é, para Pedro, a “patética paixão pelo impossível, pelo objecto inacessível,

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127

irremediavelmente separado pela morte” (DURAND, 2008, p. 28). O corpo morto de

Inês é a saudade de Pedro, é a ausência, a Dor e o Desejo fundidos, como bem diz

Teixeira de Pascoaes ao enunciar que:

Saudade é o desejo da Cousa ou Criatura amada, tornado dolorido pela ausência. O Desejo e a Dor fundidos num sentimento dão a saudade. Mas a Dor espiritualiza o Desejo, e o Desejo por sua vez materializa a Dor. O Desejo e a Dor penetram-se mutuamente, animados da mesma força vital e precipitam-se depois num sentimento novo, que é a Saudade. (PASCOAES, 1988, p. 47)

Esta Saudade atinge uma dimensão ontológica e metafísica que, num amálgama

de Dor e Desejo, confere ao homem a consciência de finitude, de imperfeição e de

insuficiência, como em Patrício, nas falas do próprio Pedro à sua amada morta:

PEDRO: O nosso amor, amor, ainda era pouco. Só abraçado à morte êle inicia [...] Mil vezes, minha Inês, mil vezes sofri na minha carne a tua morte [...] Vivia com o teu corpo na memória – como um lobo no fojo com a prêsa. E então a minha dor – todo o meu gôzo – foi reviver nesta carne o teu martírio. (PATRÍCIO, 2002, p. 146) PEDRO: A minha dor, Inês, beijo-a nos olhos!... beijo-a como beijei a tua bôca... como – cerrando os olhos na saudade – beijei, beijei, beijei a tua alma... Tudo, tudo foi bom. Tudo eu bemgido. Oiço bater o coração do meu destino. Agora sei, Inês... agora entendo. Morreste moça – p’ra viveres na eternidade sempre moça. (PATRÍCIO, 2002, p. 149)

A compreensão da eternidade da vida como uma grande totalidade de forças

dissolve a perspectiva pessimista que considerava a morte, a dissolução individual,

como o aspecto contrário ao modo de expressão da vida A morte, portanto, aparece

como parte de um processo que visa à conversão da vida em eternidade e plenitude,

como na expressão de triunfo de Pedro que, ao desenterrar a amada morta, entrega o

cetro do almadraque à abadessa para que ela o coloque entre os dedos quase esburgados

de Inês:

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128

PEDRO Shut! Shut!... Estais na câmara da Rainha. Dorme... A vossa Rainha dorme. Só nós velamos. Adormeceu com ela a vida toda. Dorme. Dorme reinando... Com a sua coroa de oiro... o ceptro de oiro... Rainha de Portugal. – Rainha da Morte... (Volta-se: outro tom – olhando a corte) Há uma Rainha agora em Portugal. Afonso e os Bispos ajoelham lentamente; os outros entreolham-se atónitos; acabam por os imitar; alucinados (Pausa) Fora, novo rumor: desta vez mais perto, mais intenso. (PATRÍCIO, 2002, p. 78)

Neste momento, tendo por testemunhas o coveiro e as freiras de Santa Clara, o

rei contempla o corpo decomposto de Inês, enxergando-lhe a vida. Desta maneira, a

morte de Inês deixa de ter um significado de finitude, para assumir simplesmente

uma suspensão do modo habitual de viver um amor. É um processo em que a morte

se converte em salvação.

PEDRO:

Inês!... O teu Pedro veio erguer-te: a vida é outra. O Destino já não tem a mesma rota... Como hei-de eu viver agora, ó minha Inês!?... A vida toda desfolhou-se aos teus pés como uma flor... (debruçando-se mais sobre o cadáver) Cheiras a podre... Saboreio o teu cheiro como um corvo... Melhor do que o das rosas que me deste... Nem o sumo dos pomares de Coimbra... Nem o feno ceifado, ó meu amor... (Com uma exaltação crescente) Ó minha Inês!... O teu Pedro das noites do Mondego, que te enlaçava a ouvir os rouxinóis, quem lhe diria – que ainda havia de ser o teu coveiro!... E um coveiro assim... (Ergue-se: olha as mãos) Com estas mãos que ainda teem manchas de sangue... E a bôca... E a bôca ainda me sabe a sangue... sangue deles (Outra vez curvando sôbre a Morta) Mas a minha alma fez-se tôda branca... A tua pode vir... A minha é um berço... Há-de embalar como um menino, a tua...

(PATRÍCIO, 2002, p. 82)

O túmulo é a porta de passagem de Pedro entre o céu e a terra, entre a matéria e

a transcendência: “Esta pedra p’ra mim é transparente. O meu amor atravessa-a –

como o vento o corpo vão das nuvens” (PATRÍCIO, 2002, p. 75). Mesmo ao olhar

para a amada morta, contemplando-a, o rei não volta à consciência. Em vez disso,

Page 137: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

129

agora identificando-se com o corvo, com aquele que guarda a morte, sente-se bem

nessa viagem introspectiva, pois está vingado, purificado pelo sangue da matança, e

crê, enfim, poder receber em sua alma a alma daquela que ele vê além de um corpo

morto. Para Gilbert Durand, a carne “conduz sempre à meditação do tempo [...] e,

quando a morte e o tempo forem recusados ou combatidos em nome de um desejo

polêmico de eternidade [...] será temida e reprovada como aliada secreta da

temporalidade e da morte” (DURAND, 2002, p. 121).

O êxtase de Pedro demonstra a transfiguração através de sua imersão na

natureza primordial, favorecendo assim, em vez do aprisionamento da condição

singular da vida, a sua mais poderosa libertação. Sua fala e, sobretudo, seus atos,

revelam o valor supremo da vida, penetrando na esfera do sagrado, na qual se

desvela a realidade cósmica, livre de todas as ilusões da consciência fiada

exclusivamente no âmbito da fria racionalidade. Imergir nessa dimensão arrebatadora

torna-se condição de libertação pessoal estabelecida. É o retorno, tão aguardado, à

unidade primordial.

A experiência da morte e a desilusão amorosa têm, para Pedro, o mesmo valor.

A vida de Inês é a sua vida, e a morte da amada, a sua própria morte. Ciente disso,

rejubila-se com o sangue em suas mãos sujas, fazendo da vingança a purificação.

Uma vez trasladado o corpo de Inês do Mosteiro de Santa Clara para Alcobaça, em

meio aos preparativos para coroação, Pedro se dirige a Inês:

PEDRO:

Mil vezes, minha Inês, mil vezes sofri na minha carne a tua morte [...] Vivia com teu corpo na memória – como um lobo num fojo com a presa. E então a minha dor – todo o meu gozo – foi reviver nesta carne o teu martírio. [...] Toda a terra viveu a endoidecer-me [...] E às vezes, nas palmas destas mãos, quase

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sentia a polpa dos teus seios!... Era um lobo o teu Pedro, era uma hiena. Mas um dia “Alguém” desceu ao fojo: “Alguém que era da morte e era da vida; e mais – de além da morte e além da vida... E eu vi a Saudade ao pé de mim. Nunca mais me deixou: vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue. Fez-se Inês. Por isso sabes toda a minha vida. Por isso eu sei a morte como tu. Sou o homem que viveu a vida e a morte: sou o homem-Saudade, o rei-Saudade...

(PATRÍCIO, 2002, p.138-139)

O rei se recorda do tempo em que, enfim, pôde encontrar o caminho para a

amada. O acesso a Inês só fora possível porque a Saudade, como força encarnada,

penetrou nele, tornando-o o rei-Saudade. É tão somente por isso que pode amar Inês

em completude: diante da impossibilidade de trazê-la de volta à vida, é ele quem a

encontra na morte. A fala de Pedro traduz um modo de pensar a experiência

amorosa, o luto, a perda, a memória. Sua postura diante da morte de Inês

corresponde a um certo modo de perceber a vida e que tem forte afinidade com o

que diz Rougemont, ao afirmar que “Eros, nosso desejo supremo, não exalta nossos

desejos senão para os sacrificar. A realização do amor nega todo amor terrestre. E

sua felicidade nega toda felicidade terrestre” (ROUGEMONT, 1988, p. 53).

O que a Inês e Pedro é negado em vida inscreve-se numa ordem superior de

acontecimentos, supra temporal, inalcançável pelo poder humano. Uma transposição

para um outro nível de realidade – divina, mágica, mas possível – onde o reencontro

e a consumação do amor acontecem. O amor de Pedro e Inês revela-se, então, como

elemento universal e atemporal: Pedro não salva Inês, mas salva o seu nome. E esse

amor só poderia alcançar a consumação no eterno. Se em vida conjuga-se com a

morte, é para além das ameaças e condenações da própria vida que o amor de Inês e

Pedro, emergindo tão platonicamente como “delírio divino” se realiza. Afinal, como

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131

diz Denis de Rougemont, “o amor é a via que sobe por degraus de êxtase para a

origem única de tudo o que existe, longe dos corpos e da matéria, longe do que

divide e distingue, além da infelicidade do ser si mesmo e ser dois no próprio amor”

(ROUGEMONT, 1988, p. 48).

A morte deixa de ser, portanto, o termo último, passando a ser uma luminosa

condição, a libertação. Uma vez trasladado o corpo da amada do Mosteiro de Santa

Clara ao de Alcobaça, Pedro comunga das “bodas eternas” com Inês, numa união

para além das contingências da vida.

– É a nossa hora, Inês... Estamos sozinhos. Estás bem assim!? Tu ouves-me dormindo. Eu fico aqui, à tua cabeceira. Não bulas, meu amor, dorme assim queda – como a tua estátua ali, sobre o teu túmulo... Esta á a Casa de Deus. Deus está connosco. Ouves os sinos repicar!?... Toca a noivado. As nossas bodas agora – são eternas. Sinto na minha alma a tua alma – como a água d’uma fonte n’outra fonte, como a luz na luz e deus em Deus... Sinto-te tanto, que te perco em mim. Aqui me tens, Inês: sou o teu Pedro. O que ele tem, o que ele tem pr’a te contar!... Eu bem sei que tu sabes...sabes tudo. Os teus ouvidos, na Morte, ouvem melhor. Ouviram o desespero do teu Pedro – uma noite de pedra sobre esta alma – ouviram as suas lágrimas caladas: ouviram toda, toda a sua dor. Eu sei... eu sei... As palavras, por si, dizem bem pouco; mas acordam a alma, meu amor. Se não fosse assim, pr’a quê!?... falar... Fala-se pr’a cair no teu silêncio – no silêncio em que a alma sorri toda... O teu Pedro quer falar; deixa-o dizer... Ouve-o como, mesmo adormecida, tu ouvias a fonte do jardim, do jardim das oliveiras meigas, do teu “jardim das Oliveiras”, meu amor. (Pausa) É o primeiro serão da eternidade. Lembro a face da terra em que te amei. Vejo os campos de Coimbra ao luzir d’alva... Eu vou partir pr’a montear... digo-te adeus... As rolas cantam perto – muito triste – no pinhal vizinho, que as entende... O Mondego, ainda a dormir, já corre... O último beijo que me deste em vida, foi n’uma hora assim: caíam folhas... os pomares ofereciamse – doirados... quando fecho os meus olhos, vejo-a sempre: dir-se-ia que forra as pálpebras. Foi n’essa hora que eu nasci pr’à dor; foi na hora sagrada em que morreste, que a minha alma nasceu pr’a te adorar. (PATRÍCIO, 2002, p.144-145)

A atmosfera simbolista de Pedro, o Cru se constrói pela perscrutação de uma

existência misteriosa, pela busca de um mundo ideal e recusa do mundo real. Pedro vive

num mundo de sonho com Inês, cuja porta de entrada é o túmulo da amada. Não

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132

suportaria a realidade sem Inês, sem aquela que lhe anima a vida. Por isso, num transe

místico, cria o seu mundo de amor vivido – possível. Em momento algum, Pedro duvida

de sua crença. Ele é o mediador entre os dois mundos: a vontade humana e a vontade

divina conjugam-se, sugerindo, inclusive, que o divino nada mais é que a própria força

do seu desejo imanente à vida. Pedro é a pedra, tem a sua unidade, a sua palpabilidade e

a sua força ígnea – as três virtudes da pedra, segundo Chevalier e Gheerrbrant, que

ainda acrescenta:

Segundo a lenda de Prometeu, procriador do gênero humano, as pedras conservaram um odor humano. A pedra e o homem apresentam um duplo movimento de subida e de descida. O homem nasce de Deus e retorna a Deus. A pedra bruta desce do céu, transmudada ela se eleva para ele. (CHEVALIER; GHEERRBRANT, 1994, p. 696)

A pedra é, assim, símbolo da presença divina, é suporte de influências espirituais,

desempenhando função primordial nas relações entre céu e terra. E Pedro tem as

virtudes da pedra: é integro, pois cumpre o seu propósito, sendo fiel a si mesmo e ao seu

amor; é sensível, tem a doçura que lhe permite ser tocado; é firme, seja na atitude, na

vingança ou no amor. É, também, na pedra que Pedro erige o seu testamento de amor

para Inês. Ambos os túmulos que manda construir – o seu e o de sua amada – têm seus

próprios corpos reproduzidos, ambos com as cabeças coroadas: ele como o rei que é; ela

como póstuma rainha.

O túmulo é, no dizer de Gilbert Durand (2002), figurativamente, uma escada, que

torna possível a passagem de um modo de ser a outro. E assim o é com o monumento de

Alcobaça. O sepultamento de Inês é, para Pedro, noite de núpcias. São as suas bodas

alquímicas, a força que leva Pedro à ação, na busca da reversibilidade da morte de sua

amada. O sentimento torna-se verbo encarnado: princípio e fim, elo entre a vida e a

morte. É a força-motriz para a unção de um novo reino, diante do qual Portugal se

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revela uma província apenas. Um reino de amor que abrange a morte e os seus mistérios

– “a sua natureza de mistério". O mergulho de Pedro neste reino é uma viagem

introspectiva. Transubstanciado em Saudade, é nessa viagem que encontra a sua Inês.

Vivi um ano assim, do teu martírio. O teu sangue, amor, era o meu vinho. A tua morte, Inês, foi o meu pão. Fugia ao sol: a luz envenenava-me. Queria estar só, bem só, murado em mim: – cavava no silêncio um fojo escuro para me poder cevar da minha dor. O meu crânio era uma câmara de tortura: – viviam lá um carrasco e os assassinos. E o carrasco era eu, era o teu Pedro. Oirava de pensar... de sentir sangue... P’ra ver se assossegava, ia montear [...] Era um lobo o teu Pedro: era uma hiena. Mas um dia, “Alguém” desceu ao fojo: – “Alguém” que era da morte e era da vida; e mais – de além da morte e além da vida... E eu vi a Saudade ao pé de mim. Nunca mais me deixou: vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue. Fez-se Inês. Por isso sabes a minha vida. Por isso eu sei a morte como tu. Sou o homem que viveu a vida e a morte: sou o homem-Saudade, o rei-Saudade... [...] Sou o rei... o rei do maior reino... do reino que me deste, minha Inês... Duas vezes Rainha!... Santa! Santa!... Se estou ao pé de ti – tudo foi bom!... A minha dor, Inês, beijo-a nos olhos!... beijo-a como beijei a tua boca... como – cerrando os olhos na saudade – beijei, beijei, beijei a tua alma... Tudo, tudo foi bom. Tudo eu bendigo. Oiço bater o coração do meu destino. Agora sei, Inês... agora entendo. Morreste moça – pr’a viveres na eternidade sempre moça. Bendito seja sempre o teu martírio! Bendito o lobo em mim... bendita a hiena (Mais perto dela ainda, erguendo as mãos) bendita tu, Inês, sempre bendita! (Pausa. N’um tom d’intimidade mística) estás outra vez no reino pequenino. Ele foi-te fiel como o teu Pedro. Cada árvore sabe a tua graça. A tarde cai lembrando o teu sorriso. A terra que tu pisaste, alimentou-me: era pão para mim, mais do que pão. (PATRÍCIO, 2002, p. 147-151.)

Funda-se, na materialidade do corpo textual, uma cena erótica. Se o amor é duplo,

como crê Octavio Paz (1994, p. 187), sendo “a suprema ventura e a desgraça suprema”,

eis, então, o amor de Inês e Pedro, duplo, como ventura e desgraça. Ainda na visão de

Octavio Paz, o erotismo é algo que transcende a vida, a morte, o outro, como na leitura

que Patrício faz, ao criar Pedro como um demiurgo, que ressuscita Inês, tirando-a de seu

sossego. Assim também fez Ísis quando restaurava o corpo morto de seu marido Osíris,

todas as noites, para que o Sol pudesse nascer; como Cristo levantou Lázaro; como

Deméter chama sua filha Perséfone de volta da Terra dos Mortos, uma vez por ano;

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134

como Orfeu, que atravessa as fronteiras da vida na tentativa de resgatar a amada. Como

aponta Nascimento Rosa, a saudade é um refúgio existencial, “sentida por um Orfeu que

é Pedro e que busca na matéria dos restos mortais de Inês a imagem fantasmal de uma

Eurídice, que ele pretende transportar de regresso ao palco dos vivos” (ROSA, 2003, p.

184).

Ao anunciar o traslado de Inês, Afonso não menciona sua condição de morta, o

que dá margem a que o povo interprete a situação como fruto de um verdadeiro milagre.

Os diálogos entre a gente do povo são uma sucessão de mal entendidos que criam uma

imagem de Inês que é essencialmente viva. A expectativa de beijar a mão da nova

rainha é comentada ao longo do caminho, mas a impressão é a de que o povo acredita

no milagre, como diz um velho:

A dor de El-Rei D. Pedro era a saudade. [...] Saudades, - bem sabeis o que elas são: são as promessas que nos faz a Morte. A que a Morte lhe fez a El-Rei D. Pedro ides vê-la sorrir, coroada e linda; ides beijar-lhe a mão, talvez falar-lhe: é uma morta que volta e que sorri... (PATRÍCIO, 2002, p. 90)

Para o povo, que espera ver passar o cortejo, o que importa nesse milagre

operado pela Saudade é a restauração plena da vida, num elemento que mais o

evidenciaria: o sorriso de Inês. Diante da constatação de que a amada do Rei vem

deitada num caixão, a natureza, que até então parecia dividir com o povo a alegria da

expectativa de presenciar o milagre, desgosta-se. O diálogo entre os membros desse

povo refletem esse novo estado da natureza: “As árvores ficam como ossadas...Todas as

folhas caem sobre a morta. [...] É do bafo da Morte. Não chegam a Alcobaça: é mais

que certo. Vai-os gelar pelo caminho a todos...” (PATRÍCIO, 2002, p. 94). Para o povo,

portanto, em vez de espalhar a vida, a passagem de Inês espalha a morte, que domina a

todos – as pessoas e a Natureza, encarnando em Pedro: “O meu reino perdeu-se no

nevoeiro, e agora é isto a minha corte: uma corte de espectros, levando o meu amor

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naquelas andas, por as estradas dum planeta morto [...] entre flores de luz que

bruxuleiam... atrás de mim – fantasma de mim mesmo...” (PATRÍCIO, 2002, p. 112).

Para Pedro, a vivência dionisíaca não compreendia a extinção da existência individual

como um acontecimento digno de pesar, tampouco a própria vida como indigna de ser

vivida, pois viver é celebrar continuamente essa fusão do humano com a natureza.

Não sendo possível a Pedro trazer Inês de volta ao seu mundo, ao mundo dos

vivos – a não ser pela força da memória – ele, Pedro, mergulha no mundo de sua amada,

onde o amor poderá ser plenamente realizado, no repouso além da vida e além da morte.

Gilbert Durand, ao enunciar os mitologemas, ressalta um ligado à “vocação nostálgica

do impossível” – da qual de Pedro e Inês são representantes máximos –, destacando que

talvez seja esta “nostalgia exprimindo uma esperança desesperada o significado da

famosa saudade portuguesa” (DURAND, 1997, p. 92). Acrescenta, ainda, que “o

imaginário português encontra-se, mais do que qualquer outro, sob o signo do além”

(DURAND, 1997, p. 98). Há, na história lendária de Pedro e Inês uma nostalgia do

impossível, cuja significação se dá através de um passado irreversível e de uma morte

irremediável, depositando-se uma fé sem medida em um além absoluto: o além do “fim

do mundo”.

E é neste espaço do além que se dá o encontro de Inês e Pedro. Em um “além da

morte e além da vida”, um espaço-tempo lacunar, com qualquer coisa de iniciático: uma

iniciação aos sagrados mistérios da Saudade. Não é Inês que volta à vida. Mais que isso,

é Pedro que a tem na morte. Ele é Orfeu que desce ao Hades para trazer sua amada de

volta à luz. Assim o amor poderá ser pleno:

Oiço no teu silêncio cotovias... O som e a luz casaram-se, fundiram-se: são o ar que eu respiro... o nosso ar... Oh! Asas... asas... dêem-me asas! É um abismo d’estrelas – este amor... Faz-me medo. É um turbilhão de estrelas... (Com voz de aura, chamando) nês!... Inês!... eu tenho medo... Sinto o vento de luz da eternidade...

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136

Um momento, estende os braços como asas; e resvala inerte no lajedo. (PATRÍCIO, 2002, p. 169)

Com a amada coroada, Pedro deita-se ao seu lado, em um transe que lhe permite

entrar no mundo da amada. Pedro rompe com a realidade sufocante e obstrutiva, através

da criação de uma supra-realidade. Para atingir esse mundo onírico, inicia todo um

processo de superação da realidade primeira, ao infringir os códigos social, cultural e

moral, desenterrando Inês e assassinando os conselheiros de seu pai.Entretanto, o ato

mais referencial que abre caminho para uma nova existência é a trasladação do corpo de

Inês para o Mosteiro de Alcobaça. Esta é a noite da consagração dessa nova existência.

Pedro quer, em comunhão com Inês, entrar nesse reino da Saudade. Ultrapassando a

própria condição humana, Pedro quer penetrar na eternidade, no mundo do homem

divinizado, sempre em busca de uma existência plena, na comunhão absoluta com o ser

amado.

Assim, é a vontade de habitar esse mundo vasto e abrangente que faz Pedro

mergulhar numa realidade na qual não há limites que se impõem à condição humana,

condição única aliás, dadas as circunstâncias, de comungar o seu amor com Inês. Este é

o momento de plenitude, atingido no fim do texto, quando a noite se faz dia. “O vitral

inflama-se de sol, estende um tapete fluído no lajedo. O cabelo da Morta agora

esplende, dum loiro cínico solar, mais fulvo do que em vida, mais ardente.[…] O sol

agora ri nos colunelos” (PATRÍCIO, 2002, p. 147). Apenas Pedro tem condições de

vivenciar esta realidade. É pelo sentimento da saudade que esta segunda realidade

destrói a dicotomia vida/morte, criando uma dimensão cósmica e eterna: a vida e a

morte não são antagônicas, mas coexistem rodeadas pelas vias da Natureza e do Amor.

Page 145: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

137

Pedro vence, portanto, a morte, e o amor – até então ligado à matéria, ao corpo e à sua

degradação – é transformado num amor além da vida e além da morte, numa

conciliação de Eros e Tânatos – Amor e Morte. Inês e Pedro consumam o amor.

Diante de tal cena, Martim, o bobo então dirá, numa voz de sabedoria:

MARTIM, depois de olhar Inês e Pedro – como se os visse de repente muito longe. Oh! Oh!... Estão juntos... estão juntinhos... É manhã nas estrelas... Vão casar... (Achegando-se a Afonso, com mistério) Lá vão eles agora... de mãos dadas... Estão à porta da igreja... – Ouves os sinos?... Sorriem de mãos-dadas... vão a entrar... (Mais baixo, uma expressão de terror místico) Oh!... E o olhar de Deus – aquela luz... É o coração de Deus – aquela igreja... AFONSO Não fales mais, Martim. Deita-te: dorme. Esperemos que ele volte do outro reino. (PATRÍCIO, 2002, p. 148)

De acordo com Maria Leonor Machado de Sousa:

Para António Patrício, esse repouso é um reencontro misterioso antes da homenagem final preparada para o dia seguinte. É algo mais fundo que um sono [...] Esta visão de um mundo só seu, onde poderá reencontrar Inês, é uma obsessão de Pedro, criada pela saudade e pelo sonho de uma “noite de Inês e Pedro”. (SOUSA, 1987, p. 73)

Esta “noite de Inês e Pedro” é, diria Octavio Paz, o fogo original e primordial, a

fusão do vermelho (a sexualidade) e do trêmulo azul (o amor), a dupla chama –

erotismo e amor –, da aceitação do outro não como uma sombra, mas como realidade

carnal e espiritual. Em Pedro, o Cru, percebe-se que a vida somente possui o seu valor

através da compreensão imediata da existência da morte, e vice-versa. Morrer não é

desaparecer, mas se integrar no mundo, na terra, que insaciavelmente produz novas

singularidades; tal é o começo da morte, mas esta, em definitivo, é a condição de nova

vida. A morte e a dor emergem como parte de um processo que visa à conversão do

amor em eternidade e plenitude. A noite da Saudade – a noite ritual – concretiza as

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138

bodas de Pedro e Inês, num amálgama da densa relação entre vida e morte, da dor

espiritualizada em desejo de consubstanciação com o ser amado.

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139

3.2. Mística erótica em Dinis e Isabel

Unge-me de perfumes, minha amada, Como certa Maria de Magdala, ungiu os pés d’Aquele cuja estrada Só começou para além da vala. (PATRÍCIO, 1989, p. 159)

Parece inquestionável o predomínio do protagonismo masculino na História de

Portugal e na formação do imaginário cultural nacional, marcado por uma concepção de

História que circunscreve a mulher portuguesa numa esfera doméstica, reservando-lhe

pouco espaço numa concepção histórica que privilegia, sobretudo, os feitos guerreiros e

políticos. Manuel Dias Duarte, na sua História de Portucália. Uma história de Portugal

no feminino, ressalta que o fato de a “historiografia ter estado na mão de homens”

(DUARTE, 2004, p. 10) é sintomático da fraca projeção da mulher como agente

cultural, contribuindo para a menor representatividade feminina na história e na

mitologia portuguesas.

Ainda, Manuel Dias Duarte faz um levantamento de mais de cinquenta vultos

femininos da história nacional que a memória coletiva preserva, estatuto conquistado

por Inês de Castro, Leonor Teles, a Padeira de Aljubarrota, D. Filipa de Lencastre,

Mariana Alcoforado, e, dentre todas elas, uma que foi rainha e se tornou santa: trata-se

da Rainha Isabel de Aragão, mulher de D. Dinis, sexto rei de Portugal.

Sua vida tem sido recontada por inúmeros autores, dos quais se destacam o Conde

de Moucheron, que certamente escreveu uma das mais interessantes biografias da rainha

santificada. Vitorino Nemésio escreve um romance histórico-biográfico, recuperando a

história e recriando ambientes e mentalidades. Também poderia ser citado António de

Vasconcelos, cuja obra procura realizar uma leitura “isenta” do culto à rainha Santa

Isabel, pois o autor confessa não ser seguro remontar seu estudo ao tempo em que ela

viveu. Assim, começaria justamente por indagar sobre as primeiras manifestações

Page 148: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

140

culturais do espírito religioso do povo dirigidas à Isabel de Aragão, logo após a sua

morte. As obras destes três autores, portanto, vêm provar que as referências em relação

à vida da rainha e à evolução do seu culto não se estreitam apenas ao conhecimento da

hagiografia.

Da vida de Isabel de Aragão não se sabe onde a história termina e a lenda começa.

Em Dinis e Isabel, de António Patrício, assiste-se à total subversão da história contada e

do mito, pois o autor investe numa outra significação que passa pela inversão semântica

dos poucos elementos míticos que conserva. Isabel, tal como se apresenta na obra de

Patrício, é personagem de ficção. Só vive na linguagem: é uma invenção da linguagem.

Desta maneira, “o milagre das rosas”, que na tradição isabelina surge como o momento

da revelação do amor e da proteção de Deus, torna-se o momento da manifestação da

terrível violência do sagrado, irrompendo, bruscamente, no mundo dos homens.

A vida encerra como significado uma bendição trágica da existência: a vida

exuberante retorna e ressurge eternamente da destruição e da dor que ela própria

inelutavelmente conjura: toda expressão de vida decorre de uma fusão entre os estados

de prazer e de dor. É o que se passa em Dinis e Isabel, em que Patrício transfigura não

apenas a memória histórica, mas também a memória mítica, reinterpretando a tradição

religiosa isabelina: o milagre das rosas não é o momento bem-aventurado de uma

“epifania”, mas o instante terrível em que o homem se confronta com o seu destino,

sendo-lhe impossível resistir à voz impiedosa de Deus. Dividida por forças opostas,

Isabel é uma frágil figura de vitral que a luz terrível do amor divino atravessa e

estilhaça, erguendo-se, não como a doce “princesa de conto de fadas”, mas como uma

comovente heroína trágica.

Page 149: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

141

Diz o autor que em seu texto dramático não há “Nada de história e quase nada

lenda: só o milagre das rosas em motivo” (PATRÍCIO, 1989, p. 7). Significativamente,

há duas epígrafes que muito bem orientam a leitura do “Conto de Primavera”. A

primeira delas é uma citação de Shakespeare: “And take upon us the mystery of things /

As if we were God’s spies”59, retirada de Rei Lear, e a segunda, versos do rei D. Dinis:

“O mui namorado / Tristã sey bè q nõ amou Iseu / quãteu vos amo”, retirada do

Cancioneiro da Vaticana.

No primeiro caso, o que Patrício propõe em Dinis e Isabel, tomando “o milagre

das rosas em motivo” (PATRÍCIO, 1989, p. 7) é exatamente perscrutá-lo em sua

profundidade – é, assim, um pouco penetrar o mistério das coisas, aproximar-se o mais

possível de sua essência, desvendá-lo, isto é, ir tirando os véus superficiais que o

encobrem e que não permitem perceber sua verdadeira realidade. Quanto a Tristão e

Isolda, evocá-los é, de certa maneira, evocar duas das figuras mais emblemáticas que

marcam o mito do amor-paixão no Ocidente, “na confusão das morais e dos

imoralismos daí decorrentes, nos momentos mais sublimes de um drama, certamente

vemos transparecer em filigrana essa forma mítica”, como aponta Rougemont (1988, p.

17).

António Patrício explica, então, o seu “Conto”: a ação termina no quarto ato, e

que o quinto é uma “tragédia estática”. É a tragédia de “um homem que amou uma

Santa” (PATRÍCIO, 1989, p. 7). E Patrício lhe deu o subtítulo de “Conto de Primavera”,

numa visão dramatizada do Livro de Horas como “o sonho de alguém que uma manhã

de Primavera, entrasse numa igreja e adormecesse, sob a influição fulgurante dos

vitrais” (PATRÍCIO, 1989, p. 7). Como observa António Nascimento Rosa, “o espaço

59 Tradução: E penetraremos o mistério das coisas / Como se fôssemos espiões de Deus.

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142

de Dinis e Isabel é, desde o seu início, a da surrealidade do sonho, porque pulsa nele a

consciência da realidade suprema da morte, latejando em negativo por toda a matéria

animada da vida” (ROSA, 2003, p. 334)

O texto se inicia numa manhã de Páscoa, tendo como cenário o pátio de uma

gafaria. No diálogo entre os leprosos, transparece um intenso discurso erótico, em que

um deles parece sentir prazer com uma figueira verde, tenra, viçosa.:

PRIMEIRO LEPROSO, tocando as folhas da figueira. Olha a figueira. Como está tão tenra!... E não tem nojo – vê – posso beijá-la. Dá-se a um gafo como a um são: é boa, é boa. Há poucos dias toda encarquilhada; e agora apetece mordê-la de tão fresca... SEGUNDO LEPROSO Cheira a mulher à tua fome... hein? PRIMEIRO LEPROSO Cheira... É moça e forte. É a minha noiva. Nenhum de vós lhe toque... Durmo debaixo dela e que alguém venha... A voz das folhas diz-mo: acordo logo. É minha só: carne da minha carne. Roça a cabeça, os braços na folhagem. (PATRÍCIO, 1989, p. 17)

Há uma união erótica homem-natureza, com imagens que sugerem este

amálgama, pela humanização da natureza, como alguém que deseja o abraço:

PRIMEIRO LEPROSO, voltado para a figueira [...] A cada dia baixa mais os ramos p’ra buscar o meu corpo, p’ra tocá-lo [...] p’ra ela sou como um tronco velho que se mirra... E eu pago-lhe em amor, às noites beijo-a. Sinto frescura em mim. Dá-me família. E conversamos muito, conversamos. (PATRÍCIO, 1989, p. 18-19)

A afinidade dos seres com a natureza também é sugerida na fala do arrais leproso:

ARRAIS LEPROSO Logo que eu abicar na areia ruiva, o mar vai rir mais alto de contente... Eu falava às gaivotas, conheci-as [...] As asas não têm medo, não se importam [...] Hás de ver-me embrulhado em asas brancas. (PATRÍCIO, 1989, p. 22)

As lembranças amargas de tudo aquilo a que foram privados pela doença

culminam com a revolta de alguns que, enlouquecidos pela miséria e pela volúpia,

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143

sonham estuprar mulheres e crianças e pôr-lhes “os sete selos reais da gafaria”. Liga-se

estreitamente à violência, à violação, à desordem, à morte, à transgressão, afinal, “o que

está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas”

(BATAILLE, 1988, p. 18).

OUTRO LEPROSO Não há mulher que nos queira. Fogem todas. Quem pensas que é um gafo para elas? Um espantalho de chagas, nada mais. O PRIMEIRO LEPROSO Se assim for, deixa-o ser. Deixá-lo ser. Ainda é melhor tê-las assim, com medo, dando-se como mortas... meio mortas... Mordê-las como frutos, e gafá-las [...] O TERCEIRO LEPROSO, uma expressão feroz de louco Crianças, eu sonho com crianças... Não há igual... não...

É neste instante que surge Isabel, no encanto de seus dezenove anos, descendo as

escadas e se aproximando deles. A rainha lhes é quase uma epifania. Na descrição de

cena, ela é “uma infanta de vitral. Dir-se-ia impúbere em seu corpo de caule e olhos de

flor [...] Tem um sorrir que sara e persuade, como o aroma de uma rosa branca”

(PATRÍCIO, 1989, p. 24). Deslumbrados por sua aparição, os leprosos recuam,

temendo contagiarem-na. Isabel, porém, se aproxima mais e, docemente, num gesto faz

cair sobre os leprosos uma chuva de pétalas, desfolhando as flores bentas que trouxera.

Toca-os, um após o outro, nas mãos e na testa, num tenro gesto de amor.

Isabel, prestes a sair, pergunta se já os vira todos, no que um dos leprosos

responde: “Menos um. Falta um que vós não vistes. Mas não é como nós: é um

assassino” (PATRÍCIO, 1989, p. 29). Isabel, porém, insiste em vê-lo. Os guardas

hesitam, mas obedecem. “Isabel, sózinha, fixa a boca da prisão hiante. Sai um homem

arrastos. Ergue-se tonto de luz. Empedra a olhá-la. É o mais moço de todos, forte e belo.

Mal se lhe sente o mal” (PATRÍCIO, 1989, p. 31). O leproso mais moço sente em Isabel

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144

toda a santidade, indagando-lhe se ela é Maria. E num profundo ato de reverência,

submissão – e erotismo – ajoelha-se diante de Isabel e beija-lhe a sombra:

O LEPROSO MAIS MOÇO Sabes?... Sonhei que de alma és minha sempre. E é certo... Não é?... Diz-me que é certo... ISABEL, no mesmo tom Sou tua sempre... [...] O LEPROSO MAIS MOÇO, olhos presos no chão à sombra dela A tua sombra... Deixa-me beijar. (Bejia-lha, de joelhos, duas vezes) Como ela treme... Vês como sentiste!?... Assim não te faz mal: a sombra é pura. Ninguém pode manchá-la. Nem um gafo. (Erguendo-se) Em vida, dei-te um beijo; neste inferno, pude beijar ainda a tua sombra. Sou feliz. Fizeste-me feliz. (PATRÍCIO, 1989, p. 32)

O Leproso mais moço observa a proibição e submete-se a ela, tem consciência do

interdito: não pode tocar Isabel, mas pode beijar a sua sombra, realizar-se nela.

Transgredir a norma seria macular aquela que, para ele, é uma epifania. É, segundo

Bataille, a afirmativa de que ao interdito e à transgressão, correspondem a dois

movimentos contraditórios: o interdito rejeita, mas o fascínio introduz a transgressão.

Como ele chama atenção: “A proibição, o tabu, só se opõem ao divino num sentido,

mas o divino é o aspecto fascinante da proibição, é a proibição transfigurada”

(BATAILLE, 1988, p.60).

Numa outra cena de beatitude, Isabel – que há muito estava reclusa devido ao

ciúme de Dinis, seu marido e rei – é requisitada por uma corte de mendigos e de doentes

junto às grades, na expectativa de a verem:

VOZES DE MENDIGOS Ela há-de vir. – Está connosco sempre. Ela não tarda. – Ninguém me arranca daqui sem ela vir. Nem a mim. Nem a mim. – Eu sinto que não tarde. [...] – Ela disse-me: “No jardim do Paço, ao entardecer...” [...] – Vamos rezar em côro, se tardar [...] Estará presa no Paço... Ela, a Rainha!... – Não tendes siso. Presa a nossa santa!... [...] A Rainha! A Rainha! Onde está ela?... (PATRÍCIO, 1989, p. 50-51)

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145

Isabel, contrariando as rigorosas ordens de seu marido, não resiste ao fervoroso

chamado e comparece com “um vestido de reclusa, gris”. Seu aspecto é “quase

monacal” e “com as mãos segura a arregaçada tufando de repleta” (PATRÍCIO, 1989, p.

54). No mesmo instante, chega Dinis e lhe pergunta o que ela traz. Ela, temerosa, diz

que são flores. Dinis, porém, não acredita e a obriga a lhe mostrar. Isabel, então, abre a

arregaçada: caem “rosas e rosas brancas” e um místico perfume inunda o ar.

As rosas são, simbolicamente, a Rosa Crística da vida eterna que se renova

constantemente e ressurge ao final de cada volta. São, ainda, o emblema da perfeição

para a grande obra dos Alquimistas, sendo símbolo do segredo, pois é uma das raras

flores que se fecha sobre seu coração: ao abrir a sua corola, revela-se, justamente, no

momento de fenecer. Na tradição do homem Ocidental, muito possivelmente é a mais

importante das flores simbólicas, pois exprime o desenvolvimento do espírito, e está

identificada com todas as expressões que denotam tal significado, associando-se à ideia

de regeneração, fecundidade e pureza. Segundo indica Frédéric Portal (1837), a rosa

constitui um símbolo de regeneração e de iniciação aos mistérios.

Aponta Nascimento Rosa que:

A sobrenaturalidade do milagre indica ser Isabel uma divina eleita [...] e o próprio texto de Patrício o revela numa fala em que a personagem se pergunta pelas razões de ser escolhida, vendo-se a si mesma, nesse momento de auto-revelação consciente, como uma entidade sacrificial para com os desígnios de um Deus desconhecido – isto após Dinis interpretá-la, realçando a imaterialidade (meta)física da sua impossível amada, que é mais da qualidade divina do que da natureza sua de humano. (ROSA, 2003, p. 315)

Após o milagre da transmutação, o perfume das rosas preenche o ar. Um dos

pajens diz que “Respira-se um jardim que ninguém vê. É das rosas do milagre”

(PATRÍCIO, 1989, p. 51). Um sentimento doloroso, mas não resignado, toma conta de

Dinis, pois percebe que o seu amor por Isabel já está condenado por uma força divina,

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146

invisível, que vem com o perfume, assinalando o abismo entre o miraculoso que afasta

e o desejo que quer proximidade:

DINIS [...]O perfume das rosas do milagre ressoa em perdição pela minha alma. Ouvíeis esses dobres sem saber. ISABEL Milagre, dizei vós. Pois credes, credes!... DINIS Como não crer, como não crer, amiga?... Pudesse eu duvidar, e tinha esperança. Quando da arregaçada elas caíram, quando caíram rosas brancas nos degraus, na minha alma foram pás de terra, terra de cova sobre a minha sorte. (PATRÍCIO, 1989, p. 63)

Há no drama de Dinis e Isabel a consciência fatalista de que um mundo oculto

rege a vida humana, retirando das personagens qualquer sentido de ação ou palavra, á

que, de antemão, sabe-se que os esforços para modificar o destino inexorável são vãos.

É o pressentimento da fatalidade inexorável, contra a qual não se pode fazer nada, a não

ser esperar que aconteça implacavelmente. Há, no texto de Patrício, uma espera terrível,

tensa, da morte, como se pode ler num diálogo entre Dinis e Isabel:

DINIS Sois mais da erva que pisais a medo. Sois de Deus, de todos. Não sois minha. ISABEL, em eco, a voz velada. Não sou vossa, meu Dinis?... Não sou?... DINIS Nem que quisésseis, Isabel. Era impossível. Não sois, não sois e nunca foste minha. Vós não vos pertenceis, sois toda d’Ele. (PATRÍCIO, 1989, p. 66)

E, também, numa outra passagem do texto dramático:

DINIS: Ouvi, ouvi. Tudo é perdido. São duas velas que se tocam em naufrágio, os nossos corpos ao tocar-se assim. Que hei-de eu fazer!?... O que te rouba, amiga, não tem corpo. Crispar as mãos em torno de um perfume, em garra, em garra, e estrangulá-lo... Não é possível, Isa, não se pode. És dele. Eu sei, eu sei, que há-de levar-te, que vais nos

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147

braços dele neste instante. Só me deixa o teu corpo que eu não quero, assim deserto de alma, e lindo, lindo... Eu não nasci p’ra bodas com um moimento, com um túmulo de pétala, de lírio... Há dois anos que vivemos juntos, e não tivemos bodas. Podres bodas!.. (PATRÍCIO, 1989, p. 69)

O caráter religioso e sensual do amor é como algo indissociável, corporificando-se

em Isabel como espiritualidade pura e em Dinis como sensualidade. Isabel expõe com

mais contundência e entrega a sua condição feminina, numa intensa mescla de erotismo

e religiosidade. Assim, é a importância desse erotismo religioso que a faz peculiarmente

mulher. A tensão entre erotismo e epifania fica mais clara na cena em que, no

desenvolvimento dos discursos, vê-se de que maneira tanto a religiosidade estava

impregnada de uma adormecida sensualidade quanto a adoração sensual de Dinis por

Isabel abraçava, no fundo, um caráter religioso: “[...] O teu Dinis, amor, adora o sol

como tu a dor, e de mãos postas” (PATRÍCIO, 1989, p. 68). Isabel, então, desperta para

o amor e Dinis para a dor inconsolável:

ISABEL Antes queria-te muito, quis-te sempre, mas meia adormecida, como em sonho... (Caindo-lhe nos braços) Olha em ti, olha em ti: pois não me vês?... DINIS Cais-me no peito como uma ave morta, uma ave que um falcão largou no ar... ISABEL E para sempre, para sempre, amigo... Há um outro milagre, um bem maior. A dor também te disse o seu segredo. (PATRÍCIO, 1989, p. 86)

Aliás, toda essa religiosidade de Isabel parece se voltar toda para a vida na terra. É

um amor desejoso de sarar o mundo, que tem por objeto de desejo as próprias

criaturas. A divindade manifesta-se num um núcleo de forças intensivas, em contínua

expansão em Isabel, tomada por esse sentimento de amor incondicional. É na sua

própria afetividade que a interação com o divino ocorre, revelando uma potencial e

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148

transfiguradora experiência do sagrado, como na fala de Isabel à Aia, sobre o milagre,

sobre Dinis e a vontade de devotar cada vez mais seu amor aos necessitados:

ISABEL Sou outra?... Sou mais eu. Sou quase eu. Tu pensas que os esqueço, os pobrezinhos... O meu amor por ele é todo o amor. Quero-lhes mais, porque lhe quero mais. Só tremo por as rosas do milagre: com medo que voltem, de que voltem... Não sou digna do Céu: não sou do Céu... (Com desespero) Que me deixem na terra e amá-la toda... amá-la toda nele... (PATRÍCIO, 1989, p. 75) ISABEL [...] Quero viver na terra, é o que lhe peço. É o que peço a Deus... (PATRÍCIO, 1989, p. 77)

A santidade de Isabel revela-se, desde o primeiro instante, numa devoção à vida.

Na visita aos leprosos, condenados pela doença, revela-lhes a capacidade de se viver

em estado de beatitude, de amor sem ressentimento, e essas qualidades se granjeiam

mediante a compreensão de que, no fundo, nunca ocorreu a ruptura entre a instância

humana e a instância divina. Trazendo-lhes remédio para o mal, simbolicamente lhes

traz a vida em promessa. Traz, ainda, as flores de Celas ao lavrador, promete ao arrais

que ele ainda voltaria a ver o mar e, a um outro, que lhe traria o filho pequenino para

que o veja. Assim, a maneira como Patrício constrói sua Isabel aproxima-se muito do

que diz Friedrich Nietzsche ao preconizar a existência de um amor fati.

Minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não suportar apenas o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo. (NIETZSCHE, 2001, §10)

Esse posicionamento diante da existência faz da Isabel de António Patrício uma

valorosa realizadora do conceito de amor fati, demonstrando ser capaz de vivenciar

plenamente toda experiência de sofrimento, sendo símbolo sublime, ainda que na

indesejada morte, realizando-se na própria imanência da vida. O milagre das rosas – a

transmutação dos atos – portanto, inscrevem Isabel na santidade. Na leitura de Patrício,

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149

isto é significativo: o perfume que inunda o ar representa o chamado divino da vida

material para a vida espiritual. Sentindo que Deus não lhe permitiria conciliar, como era

seu desejo, a sua doação à dor do mundo e o seu amor a Dinis, Isabel quer renegar o

milagre das rosas, e renegar o próprio chamado de Deus.

DINIS Esqueceis as rosas dos milagre... ISABEL Esfolho-as na tua alma p’ra que as pises, para que o nosso amor possa pisá-las. (PATRÍCIO, 1989, p. 81) DINIS [...] O perfume das rosas voltará. E tu estás semi-morta, amiga minha. Se os nossos corpos se unem nesta alcova, agora que a tua alma enlaça a minha, Deus tem ciúmes, Isa, certo, certo... O perfume das rosas voltará. ISABEL, pondo-lhe as mãos nas têmporas, os olhos quase espásmicos, sem íris. Eu não sou dele, amor. Eu sou só tua. Amo-te mais que a Deus... Mais, mais, Dinis... (PATRÍCIO, 1989, p. 87-88)

Isabel não pode pertencer aos dois mundos. O milagre das rosas, ao mesmo tempo

em que inscreve Isabel na santidade, mostra a Dinis que não pode ter sua mulher, ainda

que ela também relute contra a manifestação do divino. Revela-se, porém, a impotência

do desejo humano, e a vida está fadada ao seu termo máximo, a morte. Diante da

escolha de Isabel pelo amor de Dinis, o que a leva a renegar o milagre das rosas, Deus –

que surge como um “rival” de Dinis, despertando nele a consciência de um amor

condenado – toma-a para si. O desejo da vida humana é derrotado por uma força que a

subjuga, pela presença imaterial de uma força sobrenatural.

Há o que Bataille chama de erotismo sagrado, em que a ação erótica é comparável

ao sacrifício religioso: a morte ritualística quebra a descontinuidade por meio do retorno

ao divino. A continuidade do ser não é conhecível, mas sua experiência se dá através da

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150

experiência mística. Entretanto, o que as personagens de Patrício buscam não é a

transcendência, mas a imanência, a “nostalgia da continuidade perdida”, o erotismo dos

corações, para alcançar uma estabilidade proveniente da afeição entre os amantes.

Em Dinis e Isabel, porém, não se sustenta a crença de eternidade e plenitude da

vida em sua natureza espiritual e sensual. Diante da consciência da impotência da vida e

do desejo humano, apresenta-se a D. Dinis a promessa da Saudade, da eternização de

Isabel em espírito. A Saudade é a força mística que substitui a criatura, eternizando-a

em espírito. Nessa leitura de Dinis e Isabel, é possível uma aproximação com o

pensamento de Teixeira de Pascoes (1988), no que se refere ao desejo de eternidade

para o ser que se ama.

DINIS E quem me dá os seus seios? Os seus seios?... E a sua voz, a sua voz tão meiga [...] Eu tinha, por amor, sede de eterno, sede de eternidade p’rò seu corpo. (PATRÍCIO, 1989, p. 126)

Mas, o que o Dinis de António Patrício almeja não é essa eternização em espírito.

Mais que isso, ele deseja Isabel, pois sua sensibilidade é indissoluvelmente sensual e

espiritual, reclamando, portanto, a eternidade em corpo e alma. Quando o bispo, no

texto de Patrício, presencia a sua dor e a sua revolta perante a morte de Isabel, tenta

consolar Dinis, mas, para ele, a dor é inconsolável: “tens um crime de amor ante os teus

olhos” (PATRÍCIO, 1989, p. 126), é o que responde, numa fala em que fica patente que,

na leitura de Patrício, a plenitude e a perfeição das criaturas estão nelas próprias. É o

caso de Dinis e Isabel.

Page 159: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

151

3.3. D. João e a Máscara: a predestinação da morte

A Morte, às vezes, queria descansar, mas sem saber porquê, tem de tecer nesse invisível, trágico tear... (PATRÍCIO, 1989, p. 163)

D. Juan é um personagem que tem fascinado, desde o século XVII, os leitores do

mito, tornando-se motivo para muitas recriações literárias. Seu caráter ambíguo,

simultaneamente admirável e reprovável, levanta questões sociais e políticas relevantes

em diversos espaços e tempos, uma vez que ele, D. Juan, é o grande desarticulador de

dois sustentáculos sociais de setecentos: o clero e a nobreza. Mas, marcado pela

sensualidade e pelo erotismo, parece ser justamente o elemento amoroso dessa história a

garantia de seu sucesso.

As fontes históricas, religiosas ou os contos tradicionais, folclóricos apontam para

uma possível origem andaluza do mito, no século XVII, influenciado sobremaneira pelo

clima religioso da Contra-Reforma, sujeitando-se às especificidades de um contexto

cultural bem específico. D. Juan é, de fato, um mito, já que, conforme analisa Pierre

Brunel (1988), comporta três funções: narra uma história, explica o como e o porquê

dessa narrativa e revela um herói.

No seu ensaio “O Donjuanismo”, inserto n’O Mito de Sísifo, publicado em 1942,

Albert Camus considera que D. Juan, tal como Sísifo, não compreendeu o verdadeiro

sentido da vida – ou mesmo a sua falta. Afinal “O que Don Juan põe em prática é uma

ética da quantidade, ao contrário do santo) que tende à qualidade” (CAMUS, 2008, 85).

Ao não acreditar “no sentido profundo das coisas” (CAMUS, 2008, p. 86) torna-se um

herói do absurdo. Na concepção de Camus, D. Juan tem consciência daquilo de que é

símbolo: ele é o sedutor comum e o mulherengo.

Page 160: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

152

Quando escolhe o amor libertador – aquele que corresponde a um constante

processo de morte e renascimento de um novo amor –, D. Juan sabe que, como mortal,

terá um fim e será castigado, e ser punido “lhe parece normal. É a regra do jogo”

(CAMUS, 2008, p. 87). Mas, ainda que aceite o castigo, “ele sabe que tem razão e que

não pode tratar-se de castigo. Um destino não é uma punição” (CAMUS, 2008, p. 88). E

o destino que Camus vê para D. Juan remete ao cenário de onde vem o mito primordial:

Vejo Don Juan numa cela daqueles monastérios espanhóis perdidos numa colina. Se ele olha para alguma coisa, não é para os fantasmas dos amores passados, mas, talvez por uma seteira ardente, para alguma planície silenciosa da Espanha, terra magnífica e sem alma onde se reconhece. Sim, é nessa imagem melancólica e refulgente que é preciso parar. O fim último, esperado mas nunca desejado, o fim último é desprezível. (CAMUS, 2008, p. 90)

A primeira versão literária afasta-se muito do arquétipo divulgado em versões

posteriores, sobretudo aquelas que ultrapassam o fim de novecentos, afastando-se,

portanto, numa trajetória de inúmeras recriações, da sua original construção. É a partir

de O burlador de Sevilha, escrito no século XVII pelo frei Gabriel Téllez sob o

pseudônimo de Tirso de Molina, que se dará início a toda uma tradição literária.

O D. Juan de Tirso de Molina é mais do que apenas um conquistador de mulheres,

mas é também, um burlador da sociedade, pois transgride toda norma ou convenção

instituída. A questão erótica, muito explorada pelas posteriores criações, é

marcadamente negativa n’O burlador de Sevilha, pois D. Juan, mais do que querer

seduzir as mulheres, simplesmente as engana, prometendo falso casamento, já que não

pretende amar nenhuma delas, querendo apenas possuí-las. Ao fim, D. Juan, encontra

sua punição: após matar Gonzalo de Ulloa, pai de Dona Anna, moça a que D. Juan tenta

burlar, o comendador morto, sob a forma de uma estátua de pedra, serve como

instrumento da vontade divina e pune o personagem com um castigo eterno. É a

Page 161: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

153

condenação de um pecador que se recusa ao arrependimento no tempo oportuno,

provando o quão implacável é a justiça divina.

Victor Said Armesto, tendo por base o texto de Tirso de Molina, admite as

influências que o folclore e as tradições locais exerceram, numa certa medida, no autor,

durante a sua longa estada no nordeste da Península Ibérica: “De muchos pasajes de

comedias de Tirso (Mari-Hernández la Gallega, El amor médico, La villana de la

Sagra...) se infere com toda claridad que Tirso residió bastante tiempo en Gallicia y en

Portugal, seguramente em conventos de su Orden o para negocios de ella”60

(ARMESTO, 1968, p. 57-58). O tema do sedutor irá sofrer nas posteriores versões as

mais variadas alterações, de acordo com a interpretação poética que seus autores lhe

darão, assistindo-se, ao longo dos tempos, a uma espécie de metamorfose da

personagem. Tirso de Molina, ao caracterizar pela primeira vez a personagem,

transporta-a para a literatura. A partir daí, D. Juan será o dissoluto da primeira metade

do séc. XVIII até as reedições de 1837 e o sedutor da idade romântica e daí em diante, o

que prova que próprio modo de atuação de D. Juan evolui ao longo das estéticas e

interpretações autorais. De destemido e impulsivo no período Barroco, D. João seduz

mais pela mentira, pela promessa de casamento e pelo disfarce, torna-se mais reflexivo

no Romantismo: é um herói rebelde, que seduz pelo fascínio de sua aparência. Em

Zorrilla, é salvo graças ao amor puro de D. Inês, solução que a modernidade rejeita.

Uma das mais famosas aparições do burlador será a realizada por Molière, em

1665, com seu D. Juan, que, diferentemente da realização de Tirso de Molina, critica

incisivamente a religião, a nobreza e a burguesia. Exemplar é a reflexão feita pela

personagem a respeito da hipocrisia. Quando está a ponto de ser preso, não foge, 60 Tradução: Em muitas passagens das comédias Tirso (Mari-Hernández la Gallega, El amor médico, La villana de la Sagra...) percebe-se que Tirso residiu muito tempo na Galiza e em Portugal, certamente nlos conventos de sua Ordem ou de seus negócios.

Page 162: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

154

preferindo tornar-se um hipócrita com a desculpa de que assim poderia ser aceito pela

sociedade da época:

Disso ninguém mais se envergonha. Ao contrário, se orgulha. A hipocrisia é um vício. Mas está na moda. E todos os vícios na moda são virtudes. O personagem do homem de bem é o mais fácil de interpretar em nossos dias. Qualquer hipócrita o representa com razoável perícia [...] O exercício da hipocrisia oferece maravilhosas possibilidades. É uma arte da qual faz parte natural a impostura [...] E mesmo quando a impostura é transparente, ninguém ousa condená-la, com medo de que isso abra o caminho para a condenação de imposturas mais habilidosas. (MOLIÈRE, 2002, p. 120)

Talvez a recriação que mais tenha exercido influência nas releituras portuguesas

é a ópera Don Giovanni, de Mozart, cujo libreto ficou a cargo de Lorenzo da Ponte.

Segundo Gustave Kobbé, Don Giovanni é o principal responsável pela popularidade da

ópera: “Outro fator decisivo para esta popularidade é a própria figura do protagonista,

libertino e blasfemador, fascinante para os homens pela audácia e para as mulheres pela

reputação escandalosa” (KOBBÉ, 1997, p. 90). Aliás, a ópera de Mozart tem muitos

pontos de contato com o D. Juan da peça de Tirso de Molina, mas, apesar disso, difere

em alguns aspectos e personagens, como a presença de Dona Elvira, personagem criada

por Molière. Percebe-se na figura de D. Juan , como paradigma do sedutor irresistível, o

poder ilimitado de que se vangloria com soberba: não admite rivais. É uma força da

natureza, como na leitura de Molière:

Não há nada que possa deter o ímpeto dos meus desejos, sinto em mim um coração capaz de amar toda a terra; e como Alexandre, gostaria que houvesse mais mundos, para poder alargar até aí as minhas conquistas amorosas. (MOLIÈRE, 2002, 28)

Em Portugal, o mito de D. Juan é revisitado apenas tardiamente, sendo objeto,

inicialmente, de duas principais concepções: a romântica e a realista/naturalista. A

literatura portuguesa muitas vezes atribui a um objeto mágico – o bandolim – o poder de

sedução de um D. Juan envelhecido e melancólico. Destacam-se, nas obras portuguesas,

Page 163: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

155

quase sempre uma visão simpática de D. Juan e uma concepção muitas vezes ortodoxa

do mito. Na tradição portuguesa, D. Juan – tratado, na maioria das vezes como D. João

– o dissoluto é mais comedido, menos temperamental, retomando o caminho da

remissão e, assim, num gesto final, acerta contas com todos. Conforme comenta Maria

Idalina Resina Rodrigues:

[…] um Don Juan Tenório esconjurador de delitos passados, sem sombras de anteriores apetites, vencedor corajoso de tumultos íntimos e, para mais, marido convertido às delícias do matrimónio sagrado, em busca da esposa fiel que, aliás, rapidamente lhe facilita o regresso ao lar. Quer nos assombre ou não, que se comova quem quiser e se indigne quem for dado a exaltações, é assim mesmo que as coisas se passam: Don Juan e Dona Elvira abraçam-se e dispoem-se a ser felizes para sempre, os irmãos da até então ofendida senhora trocam a vingança pelo perdão ao arrependido cunhado, o sensato criado sente-se recompensado pela boa moral pregada e todos em esfusiante happy end proclamam a benignidade de um Céu que perdoa os delitos mais horrorosos. (RODRIGUES, 1997, p. 365-366)

Leo Weinstein (1959) reafirma a transnacionalidade que o mito de D. Juan tem

assumido ao longo da história, considerando-o um caso paradigmático no âmbito da

Literatura Comparada, ao dizer que “if any subject is truly international, it is that of Don

Juan”61 (WEINSTEIN, 1959, p. vii). O mito de D. Juan tem sido reinterpretado de tal

maneira que dentro da Literatura de cada país, podem ser encontrados vários tipos do

herói sedutor. Na Espanha, dividem-se as preferências entre a versão de Tirso de Molina

e a de Zorrilla; os franceses veem-se entre Molière e Lenau; na língua alemã, entre

Mozart ou Frisch; Byron ou Shaw no caso inglês; em Portugal, um dos modelos mais

bem realizados é a figura vil e demoníaca que Junqueiro aparentemente apresenta a

julgamento à sociedade positivista, no final século XIX, e o D. João metafísico de

Patrício, que se mostra fascinado pela figura do sedutor.

61 Tradução: Se qualquer assunto é internacional, é-o D. Juan.

Page 164: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

156

Aliás, há que se ressaltar que, quanto à estrutura formal do mito donjuanesco,

praticamente todas as versões portuguesas se desviam significativamente dela. Há,

sobretudo, uma notável preocupação metafísica no D. João “português”, no qual se

destacam por vezes certos laivos do Fausto, de Goethe, na entrega enigmática e

obsessiva da busca de um ideal, ou desejo de absoluto.

O texto teatral de António Patrício é o que mais se aproxima da versão tradicional:

seu D. João tem ainda a cumplicidade de Leporello; há o encontro sobrenatural com o

Conviva de Pedra, figura pouco relevante no desfecho da sua “fábula trágica”; redime-

se, como nas versões românticas, no recolhimento do convento de La Caridad. Renata

Junqueira observa que, quando António Patrício publica D. João e a Máscara:

a figura do lendário conquistador de mulheres já se tinha entranhado numa secular tradição literária que o dramaturgo português certamente conhecia. A sua peça viria a inscrever-se numas das vertentes dessa tradição, como podemos ver, desde logo, no pequeno texto introdutório que o autor fez aparecer na sua primeira edição. Ali, à laia de prefácio, Patrício admite que se inspirou na “verdade histórica” de Miguel de Mañara para compor o seu Don Juan (JUNQUEIRA, 2007, p. 87)

O texto dramático de António Patrício compõe-se de quatro atos e abre com uma

epígrafe de Shakespeare: “Nothing can we call our own but death”, que se traduz como:

“Bem nossa, só a morte”. Num primeiro momento, Patrício fornece a sua definição

pessoal de donjuanismo: “instintivo religioso”, “amoral místico”, “possesso de eterno”,

“inesgotável” e “entre o Diabo e a Morte” (PATRÍCIO, 1972, p.9). Assim, em D. João

e a Máscara, António Patrício recria uma figura histórica documentada para fazer dela

um ser díspar.

Inspirando-se na história real de Miguel Maraña, que morreu em santidade no

convento de La Caridad, o interesse de Patrício, porém, vai no sentido de criar

personagens que se definem muito mais a partir da matéria mítica do que da história

Page 165: Escrita de Eros e Tanatos No Teatro de Antonio Patricio

157

conhecida, pois, como afirma, “Desta vez, por excepção, a história é superior à lenda”

(PATRÍCIO, 1972, p. 10). Como aponta Fernando Araújo Lima, D. João e a Máscara:

Não nos apresenta, evidentemente, um D. João histórico, com a sua devassidão tradicional, a sua gula de carne, um Burlador-Matéria, roído pelo vício, capa ensanguentada e cinismo nos lábios gafos. Não. Patrício cria um D. João filosófico, schaupenhaueriano talvez, iluminado, cerebral, tedioso, completamente enamorado pela ideia da Morte, a única herança que cabe a cada homem sobre a terra. Não seguiu Tirso de Molina, nem se preocupou com os pormenores macabros de Zorrilla, mas realizou uma obra de Arte bem significativa. (LIMA, 1945, p. 128)

Na interpretação de Patrício, o “burlador de Sevilha” é intelectualizado, aspira

apenas à sua liberdade, recusa as suas responsabilidades sociais e a fatalidade do seu

destino de sedutor, fugindo de todo o contato físico, por viver obcecado pela morte. O

D.João dissoluto de “natureza excessiva e dinâmica”, símbolo de vontade de

transgressão e de atravessar as fronteiras da vida humana, “dotado do poder de atracção

e da delirante concupiscência” (RODRIGUES, 1960, p. 10) que na “vertigem do

excesso” (RODRIGUES, 1994, p. 102) se realiza na sedução de uma pluralidade de

mulheres, nesse aspecto, no texto de Patrício, se afasta do protótipo das criações mais

clássicas: mais que um sedutor inconstante, a personagem se aproxima do sedutor

romântico, que busca incessantemente a mulher ideal. Neste caso, a sua ânsia de

absoluto leva-o a perseguir, ou esperar, obsessivamente a Morte, que se configura numa

personagem feminina. D. João, portanto, irá se aventurar na descoberta da sua própria

identidade, se envolvendo, sobretudo, num processo de autognose. É o próprio D. João

quem se define: “Sou um buscador de fontes por destino; mas por mais que procure,

nunca as oiço” (PATRÍCIO, 1972, p. 30). É esta predestinação e incapacidade de

atingir o absoluto que o levam ao sofrimento e ao tédio.

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158

No texto dramático de António Patrício, há a conjugação de Eros e Tânatos, de

explosão vital e de presciência da morte. Para além das aparências dos seus atos, que

deram a D. João a alcunha de “O burlador de Sevilha”, Patrício viu nele uma alma ávida

por atingir o Absoluto: desejo que passa, necessariamente, pelo desejo da Morte que

liberta. Como diz ainda Teresa Rita Lopes: “C´est dans l´amour que la vie touche de

plus près à la mort. Pour D.João, le spasme de l´amour mime l´union avec l´absolu, que

seule la mort peut apporter”62 (LOPES, 1985, p. 80). O D. João de Patrício transforma

esse desejo erótico numa fusão com a Morte. Como diz Georges Battalie, “O erotismo

abre para a morte. A morte abre para a negação da duração individual” (BATAILLE,

1988, p. 22).

Para Urbano Tavares Rodrigues, o erotismo é “coisa interna, latejar contínuo da

vida” (RODRIGUES, 2005, p. 25). Saturado ao extremo de erotismo e de toda a luxúria

com a qual viveu, D. João toma plena consciência do seu tédio existencial e refugia-se

no convento: “D. João só tem um caminho: dar-se ao amor dos outros, a mais alta e

depurada forma de amor: só essa o tornará digno de Soror Morte. A fábula aponta assim

no sentido da preparação para o fim, regresso ao cosmos – mediante o amor”

(RODRIGUES, 2005, p. 26).

E é exatamente isso o que ocorre com D. João. Sua experiência trágica favorece a

ampliação do enfoque valorativo e insere-o numa dinâmica de forças em constante

transformação, de maneira que D. João compreende todas as coisas como intimamente

associadas, afirmando-as nas suas qualidades intrínsecas, mesmo que subjetivamente

dolorosas. De acordo com a interpretação de Mário Ferro e Manuel Tavares:

Na visão trágica, vida e morte, ascensão e decadência formam um todo e, por isso, o sentimento trágico da vida não é recusa, mas

62 Tradução: É no amor que a vida toca mais perto da morte. Para D. João, o espasmo de amor mima a união com o absoluto, que só a morte pode trazer.

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159

aceitação do devir, adesão à morte e ao declínio. Declínio que não significa decadência ou destruição, mas um regresso ao fundo da vida do qual surgiram todas as coisas individualizadas. (FERRO; TAVARES, 2001, p. 33)

D. João encarna os princípios dionisíacos, cuja experiência pressupõe a

embriaguez, mas não apenas a embriaguez fisiológica pelo vinho, mas, acima de

tudo, a embriaguez existencial pela vida, pela natureza e pela expansão contínua da

força criativa de cada singularidade, pois nessa experiência a limitada

individualidade adquire o caráter divino na própria natureza, tão pródiga em sua

concessão de dádivas.

Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez. (NIETZSCHE, 1993, § 1)

Ao comentar essa percepção nietzschiana da apoteose dionisíaca, Eugen Fink

afirmará que “A embriaguez é a torrente cósmica, um delírio báquico que destrói,

despedaça e reabsorve todas as formas, que suprime tudo o que é finito e individual.

É o grande ímpeto da vida” (FINK, 1983, p. 25). O aniquilamento do indivíduo, na

prática dionisíaca, não representa, portanto, a sombria extinção da vida, mas a

possibilidade de que as suas partes extensivas se reconfigurem em novos modos de

expressão através do processo de contínua transformação dos elementos da natureza.

Este é, sobretudo, o caso de D. João.

Na abertura do Acto Primeiro, o sedutor é assim descrito, numa didascália:

É alto e magro, musculado, um animal de sedução e presa. Nos gestos, no andar, em todo o corpo, qualquer coisa de felino, de onduloso. A

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160

cabeça, de tinta aciganada, tem insolência cínica e fadiga, uma tensão de vida tão aguda, que é quase dolorosa, inquietante. No impudor da boca, do olhar, uma mobilidade que perturba, por excesso de expressão, de intensidade. (PATRÍCIO, 1972, p. 16)

Este retrato corresponde, segundo Maria do Carmo Pinheiro e Silva, à

“predilecção imagística epocal pela figura nómada (e dândi) de cigano, de insolência

cínica e fadiga” (SILVA, 1998, p. 120), mas D. João é marcado desde o primeiro

instante pela “entrega voluptuosa ao spleen” (RODRIGUES, 1994, p. 102), pelo

aborrecimento que domina o entediado sedutor. O D. João de Patrício é um homem

possuído por um desejo desmesurado de Deus, sob a máscara da luxúria – que o fez

prisioneiro das formas transitórias do mundo, dando-lhe apenas o martírio, a sensação

de possuir sombras. Como diz o próprio António Patrício, “A tragédia de D. João está

no supremo poder de seduzir, de que ele próprio foi a maior vítima. Em nenhum amor

matou a sede” (PATRÍCIO, 1995, p. 122)

D. JOÃO O delírio de posse é o meu delírio. E tudo se escoou entre os meus dedos [...] A luxúria sorveu-me. E renasci. Bebi o ópio dos seus olhos fluidos. Senti-lhe a boca fria e sugadora, colada às minhas vértebras de lento. O meu desejo, galgo enlouquecido, correu-lhe os labirintos com terror. O seu nada filou-me semimorto. E tive sede ainda... [...] Toda a minha virtude a minha sede. (PATRÍCIO, 1972, p. 73)

O texto começa “quando D. João e a Morte pela primeira vez vão encontrar-se”

(PATRÍCIO, 1972, p. 10). É o momento em que as máscaras do mundo começam a cair

diante de D. João que, enfim, compreende que o seu desejo jamais se saciaria em

qualquer uma daquelas formas com que tentou matar a sede, e que eram apenas indícios

desta força imaterial. A nostalgia da plenitude lhe é inerente:

D. JOÃO Os meus amores, os meus amores foram só sombra. Beijava ar, água corrente, efêmero. Enlacei sombra. Bebi nada aos haustos. De corpo em corpo fui como um cego a tactear de muro em muro. Sempre a essência das formas a fugir-me como o perfume duma flor pisada.

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161

Palpei, palpei, e era a caveira sempre, como um sarcasmo de ossos, laminado. (PATRÍCIO, 1972, p. 70)

António Patrício relê um D. João que, numa esteira simbolista, é marcado pelo

conflito eu versus mundo: desilusão, pessimismo, melancolia, consciência da

efemeridade da vida fazem com que o sedutor desmorone desesperadamente ao tédio.

Cansado, frustrado e desiludido desabafa com Elvira, a sua companheira de momento:

“E aborreci-me, aborreci-me, aborreci-me. Havia teias de aranha na minha alma. […] E,

afinal –, imenso tédio, tédio” (PATRÍCIO, 1972, p. 21). O tédio, o aborrecimento, a

apatia, a aspiração ascética são os sentimentos que os espaços despertam em D. João,

numa ânsia nostálgica do Absoluto, e nem mesmo Elvira consegue livrá-lo desse spleen.

D. João a convida para que se deite sobre as folhas secas que cobrem a lama, num

desejo de fusão com o espaço ocupado por aquela por quem ansiosamente espera: a

Morte, que se revela instância indissociável da vida. Ao se compreender

intrinsecamente essa dinâmica existencial, alcança uma jubilosa compreensão do valor

da vida e o da própria morte:

D.JOÃO [...] Antes a lama. Antes a lama do jardim e as folhas secas. Não posso mais, não posso mais assim... D. ELVIRA Não me queres, amor? Já não me queres... D. JOÃO, num exaspero imenso Qualquer coisa ou Alguém... Seja o que for. Já não sei rir. [...] (PATRÍCIO, 1972, p. 26)

Para o D. João de Patrício, a mulher é um objeto de devoção. Por isso venera-a

como uma santa, num local de culto. Até mesmo quando parece dominado pelo êxtase

provocado pela sensualidade feminina, relembrando um corpo que se fragmenta em

“pés”, “seios”, “joelhos”, “nuca”, “pele”, “beiços”, transforma de súbito o convite à

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162

relação sexual numa contemplação da morte. Ainda que D. João ressalte a beleza física

de D. Elvira, o amor que ele nutre por ela não é carnal, mas transcendental, quase

religioso, conforme o próprio D. João diz a ela, já confessando sentir-se dominado pela

ansiedade da espera de uma visita ainda que distanciada do real: “Vai ser o meu

convento o teu amor. Dás-me os teus olhos como Livro de Horas” (PATRÍCIO, 1972, p.

23).

No diálogo enfastiado com D. Elvira, é o próprio D. João que se interroga sobre

as fontes do seu encanto:

O que há de estranho em que me acreditasses, quando eu mesmo ia levando a ouvir-me... A minha voz, o timbre, um não sei quê...Arcada de violino na medula...estradivário nos meus nervos...- Ouves? O que há em mim? Podes dizer-mo, tu?... (PATRÍCIO, 1972, p. 26)

Neste aspecto, a confissão que o D. João de Patrício apresenta parece consonante

com o que Shoshana Felman (1980) chama, na sua interpretação do D. Juan de Molière,

de sensualidade erótica do “corps parlant”. Como salienta Baudrillard, é preciso forçar o

corpo a expressar-se, principalmente através de signos que não têm sentido na fala

(BAUDRILLARD, 1979, p. 126). D. João não consegue descrever o mal-estar que

sente, nem lhe adivinha a causa. Bruscamente, irrompe um novo elemento, visível

somente para ele: a Morte. No discurso que D. João lhe dirige, pela saudação servil que

lhe faz o sedutor – Dona Morte –, esta é transformada numa mulher digna de amor, mas

sua figuração é destituída das qualidades físicas que despertam o desejo e o interesse

masculino, como se refere nas indicações de cena: que “é um Goya, uma manola

trágica, de uma esbelteza acutângula, macabra” (PATRÍCIO, 1972, p. 33).

O tom elogioso evolui de uma declaração de amor quase petrarquista a que não

faltam as rosas, como símbolo do amor, para uma fusão cada vez mais íntima: “Não

penses um instante, oh! Não, que tenho frio: estou a arder, estou a arder, e estou a arder

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163

por Ti: Ó máscara de Outono, ó meu amor, sorri” (PATRÍCIO, 1972, p. 34). Não cabe à

Morte conotações negativas, mas, feminizando-a, há mesmo demonstrações de carinho

e de uma profunda ligação num sentimento de religiosidade a manifestações de natureza

estética e erótica:

D. JOÃO, embainhando a espada lentamente Sinto que te amo já para além do desejo. [...] Falavam com terror , e baixinho, de Ti, e eu pensava: é mulher, e se é , sorri: é mulher, é mulher: e se é mulher é minha. A Morte, para mim, tem olhos de andorinha. [...] Na voz de Igreja, a ouvir os salmos pelas naves, Pensava:os braços seus devem ser tão suaves Como a luz dos vitrais, na penumbra, em surdina... E a ouvir responsar: - Tem a cintura fina... (PATRÍCIO, 1972, p. 35)

D. João recorda através do corpo e dos olhos da Morte, como imagem que

reflete o escândalo das suas conquistas, imagens que, no fundo, nada mais eram do que

a busca ilusória de Absoluto. O que ele busca é a experiência erótica na ânsia pela

substituição do isolamento do ser, a substituição de sua descontinuidade, por um

sentimento de continuidade profunda (BATAILLE, 1988). D. João relembra a monja,

virgem inacessível, a quem, no convento de Burgos, despe violentamente, com um

punhal o seu “brocado de oiro”:

D. JOÃO [...] Sob o luar que esponja as arcadas do claustro em carpícias lustrais, sabiam-me a jasmim os mamilos da monja, a touca ia a fugir para céus irreais... Carmelitana?... Não. Era Clarisse. [...] A MORTE Rasgaste-lhe a punhal a tela de brocado. E a desnudar-lhe o corpo inviolado (PATRÍCIO, 1972, p. 39)

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164

Prossegue nas suas recordações de procura de Absoluto, e diante de uma

interrogação da Morte – “Dize: onde é que me vês?...” (PATRÍCIO, 1972, p. 42) –

responde D. João, “como vendo num espelho em frente”:

D. JOÃO

Na infanta que num quadro desdoirado,

em seu complexo e heráldico peiñado,

seu olhar de esmeralda semi-louca,

beijou na boca da marquesa a minha bica.

Uma pequena Habsburgo a sorrir-me na tela...

Eras Tu, eras Tu: eras Tu... e era ela.

Oh! a perversa graça corruptriz

e distante, de criança, de criança-imperatriz...

E enlaçava a marquesa...

Ao fundo do salão só uma vela acesa

em lágrima doirada. Todo em sangue, o crepúsculo

ia afogando tudo. Saí como um fantasma, sem um músculo...

A MORTE

As máscaras de amor mimam só a agonia.

D. JOÃO

Eras Tu para além que o meu desejo queria.

(Desejo que fascina e de que sou escravo.)

(PATRÍCIO, 1972, p. 42-43)

O D. João de Patrício é um sedutor atípico. Afasta-se do D. Juan vil e

inescrupuloso de Tirso de Molina. É bem diferente, também, do herético D. Juan de

Molière, que, através da falsa promessa de casamento, engana as mulheres que cruzam

seu caminho. A personagem de Patrício, ao contrário, é idealista. Vive no tédio, na

fadiga, dominado pela saudade de “Alguém” que julga ser a Morte, na ânsia de

absoluto, aspirando a um amor verdadeiro. Apresenta-se desprovido de estratégias de

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conquista e não sabe donde lhe vêm as faculdades que atraem tanto o sexo feminino.

Buscava nos corpos que tanto amou o aniquilamento da individualidade descontínua. A

passagem do estado normal ao desejo como a dissolução do ser descontínuo, numa

espécie de alquimia sexual. Sua realização erótica era uma busca da destruição da

estrutura do ser fechado, propiciando a sua dissolução. Assim, tal como pensa Bataille

(1988), a paixão pode ser mais brutal do que o puro desejo, fazendo com que a

felicidade se transforme em perturbação. Nas mulheres que amou, D. João

experimentou apenas a relação entre dois seres descontínuos que anseiam uma

continuidade impossível, despertando desejos de morte quando da constatação dessa

impossibilidade. Assim, tem-se a ideia de que somente o ser amado pode realizar a

fusão sonhada, ocasionando sofrimento ao se perceber que isso é inalcançável. E, no

fundo, descobre uma manhã que o amor que procurava ter sempre no desejo de morte

dentro dele. Como observa Renata Junqueira:

Patrício faz o seu herói transitar de um materialismo sensualista para o mais austero espiritualismo, sempre obsidiado pelo desejo de morrer: a Morte, personificada, é a única mulher que ele não consegue conquistar. A morte, aliás, é tudo na vida desse herói: é ela que se desdobra e que se projeta em cada uma das mulheres que ele possui. E é esta precisamente a sua tragédia: descobrir que a vida é feita apenas de aparências, de formas transitórias, e que a única realidade essencial é a da morte. (JUNQUEIRA, 2007, p. 88)

D. João percebe a passagem do tempo e seus dias se revelam em uma lenta

espera pela morte, na certeza de que esta possibilite novas experiências. Essa entrega à

morte, representada por Tânatos, tem por base a sua crença de que apenas na morte

poderá encontrar a plenitude procurada, a que vai de encontro à força vital representada

por Eros. Desse modo, a narrativa se configura como a preparação de D. João para a

morte, onde, então, será possível abandonar a individualidade e penetrar no infinito.

Como observa Bataille, “A essência da paixão é a substituição da persistente

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descontinuidade por uma maravilhosa continuidade entre dois seres. Essa continuidade

é, no entanto, particularmente sensível na angústia, na medida em que é uma procura em

impotência e em temor” (BATAILLE, 1988, p. 18).

Não interessam a D. João quaisquer planos de sedução. Apenas a Morte – e

numa nova personificação, Soror Morte – merece sua reverência. Seja sua noiva Elvira,

noiva de D. João, “suporte do tédio, a representação da miséria do mundo e

transmutação de objecto erótico em objecto maternal” (SILVA, 1998, p.145), ou, ainda,

Helena Coeli, adiam o encontro de D. João com a morte. A reduzida interação verbal é

exemplificada nos diálogos com estas duas mulheres em que não há progressão temática

ou argumentativa, mas simplesmente a repetição de ideias, sobretudo para aquelas que

apontam para a tensão Amor-Morte. Apesar de toda a beleza de Helena, apesar do

elogio expressivamente sem força de sedução – é, sobretudo, uma invocação da Morte –

para D. João o encontro com ela é uma espécie de despedida:

D. JOÃO, fitando-a, com fervor A mesma sempre: está a ouvir-me em ti, a chamejar no teu cabelo ruivo: o teu perfume é seu; a tua pele é Ela em flor, é Ela em jasmim branco; e o espanto e o terror que há nos teus olhos, são Ela, a sombra d´Ela na tua alma… O ritmo do teu corpo, dos teus gestos, é o seu silêncio: toda a música; as tuas mãos de coroação coroam-na; e os teus cílios que Deus fez tão curvos dão-lhe frescura neste mesmo instante, quando se mira nos teus olhos verdes… [...] Chamam-lhe Morte. – Não a vês... não sentes?... (PATRÍCIO, 1972, p. 63)

A Morte surge, então, como a resposta para o seu tédio e para a ansiedade que a

espera provoca, mostrando todo o cortejo de mulheres nas quais D. João amou a própria

Morte, a libertação suprema. Ao descobrir que há uma relação intrínseca entre o seu

desejo e a Morte, chega à conclusão que a sua busca de absoluto fora uma ilusão, pois

aquilo que procurava incansavelmente e que desconhecia, sempre estivera na própria

Morte:

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167

D. JOÃO Ouvia a tua voz em milhares de gargantas. A MORTE Tu que tantas possuíste... D. JOÃO O Teu reflexo só, que me fugia, triste. (olhos nos olhos d’Ela, como hipnotizado) Só beijei, só cingi, só te escutei a Ti. o teu mistério é para o meu desejo, o sexo que não pode atingir nenhum beijo. Só a Ti eu busquei, só aspirei a Ti. [...] Agora que eu Te sei, oh! reouvir um pouco a Tua voz na voz de algumas delas... – Louco, louco que eu fui....- Mas não: se tu preferes, repete o que eu Te disse a falar às mulheres, quando de forma em forma, a errar, em doidice, não te via sequer dentro de mim, Beatrice. (PATRÍCIO, 1972, p. 38)

É justamente quando D. João centra toda a sua atenção na Morte que ele

recupera os seus sentidos para alcançar seu único objetivo: juntar-se à “Maja”. Cansado

dos festins eróticos e cada vez mais “enfermo”, diz:

D. JOÃO Perco a memória ao ver-Te... Eu já Te vi assim?... A MORTE Pois quem viste tu mais?... Olha bem, interroga. Desarvorada em ti, toda a tua alma voga. Entra em ti devagar: sê a tua própria sonda. Pouco a pouco, a manhã faz hialina a onda... [...] D. JOÃO Onde foi que eu Te vi? – Foi em mim? Foi em mim?... (PATRÍCIO, 1972, p. 36)

O D. João de Patrício não persegue as mulheres. Em vez disso, ele próprio se

interroga sobre as causas do seu poder de sedução sobre elas. É na presença do Conviva

de Pedra – um intermediário da morte – que D. João se revela um “possesso de eterno”.

D.João recebe o representante da Morte, de forma hospitaleira, lívido, mas com “um

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fulgor heroico” nos olhos63. A relação com o Conviva de Pedra se transforma num

desejo de sedução de D. João, que então expõe à estátua as razões que explicam o seu

caráter e a ligação das manifestações religiosas a manifestações de natureza estética e

erótica:

Deixa contar-te, Mármore: ora escuta. […] Nas catedrais de Espanha há santas trágicas. Têm cabelos vivos… E eu amei-as. Era pequeno, ao pé da minha mãe: a sua lividez fazia a minha. Bispos e padres, entre vozes de órgão, perfumavam-nas de incenso para mim. Os seus olhos de vidro só me olhavam. E eu empedrava todo, de desejo. (Silêncio breve. Tristemente.) As primeiras que amei, essas bonecas… (PATRÍCIO, 1972, p. 72)

D. João gradualmente redime-se da vida de luxúria e inconstância, renuncia aos

bens terrenos e à materialidade que o entedia e aborrece, passando a viver, para surpresa

de todos, na ascese. As máscaras vão caindo uma a uma, o sedutor, “vindimador de

morte” e “possesso de eterno”, vai seguindo um percurso de pecador e sedutor passivo

até ao recolhimento no Convento de La Caridad, onde já destituído do seu estatuto e

título, se apresenta na figura do irmão João, a caminho da santidade.

D. João, avivado pelas recusas da mais terrífica, fatal e desejada das amantes, a

Morte, e vivendo na expectativa espiritual que ela lhe criou, é um exemplo de que,

como assim prega a moral cristã, não são os ferros que vingam a moralidade e o bem,

mas a palavra. Através do sofrimento, o libertino alcança a grandeza na sua remição,

tornando-se um dissoluto absolvido de seus pecados.

O próprio discurso de D. João deserotizado, pois transfere as manifestações

eróticas para a castidade, como se percebe na dedicação contemplativa, em relação a

Helena:

63 Interessante notar o que escreve Camus a respeito do Conviva de Pedra na tradição donjuanesca: “Que outra coisa significa o Comendador de pedra, essa fria estátua animada para castigar o sangue e a coragem que ousaram pensar? Nele se resumem todos os poderes da Razão eterna, da ordem, da moral universal, toda a grandeza externa de um Deus acessível à cólera. Essa pedra gigantesca e sem alma simboliza apenas os poderes que Don Juan sempre negou” (CAMUS, 2008, p. 86).

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HELENA, hirta, como em síncope, ofertando-se Beija-me a boca já. Beija-me a boca. Beija-me a boca sem palavras. Beija-a. [...] Com a face em estupor, ela desnuda-os, como um frontão de altar, humildemente D. JOÃO Como se fossem de uma estátua tumular, da estátua tumular do meu passado. (PATRÍCIO, 1972, p. 61)

Uma vez que a dor fora divinizada, também a morte o foi, pois ela não resulta na

supressão da criatividade da vida, mas na sua continuidade, pois efetivamente não há

dissociação entre morte e vida no núcleo plástico da natureza. Da mesma maneira, D.

João, em sua experiência, compreende afirmativamente a própria morte, retirando-lhe os

seus traços pesarosos e tristonhos.

Conforme os dizeres de Vernant e Vidal-Naquet:

Plenitude do êxtase, do entusiasmo, da possessão, mas também bem-aventurança do vinho, alegria da festa, prazer do amor, felicidade do cotidiano, Dionísio pode trazer tudo isso se os homens souberem acolhê-lo, e as cidades, reconhecê-lo; assim como pode trazer infelicidade e destruição, se negado. Mas em nenhum dos casos ele vem para enunciar uma sorte melhor no Além. Ele não preconiza a fuga para fora do mundo, nem pretende trazer às almas, através de um modo de vida ascético, o acesso à imortalidade. Os homens devem, pelo contrário, aceitar sua condição mortal, saber que não são nada diante das forças que transbordam de toda parte e que têm o poder de esmagá-los. Dionísio não faz exceção à regra. Seu fiel submete-se a ele como a uma força irracional que o ultrapassa e dele dispõe; o deus não tem contas a prestar; estranho a nossas normas, a nossos usos, a nossas preocupações, além do bem e do mal, supremamente suave ou supremamente terrível, ele brinca de fazer surgir à nossa volta e dentre de nós, as múltiplas figuras do Outro. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999, p. 359)

O sofrimento trágico demonstra a resistência da individualidade transfigurada

através de sua imersão na natureza primordial, favorecendo assim, em vez do

aprisionamento da condição singular da vida, a sua mais poderosa libertação. Numa

interpretação nietzschiana, representando a luta e a vitória de Dionísio sobre o princípio

extensivo da individuação, a tal ponto que todo herói deve ser compreendido como seu

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substituto ou sua máscara, a alegria que é proporcionada pela tragédia é o sentimento de

que o limite da individualidade será abolido e a unidade originária restaurada.

Ao fim, surge a Sóror Morte junto a João. O novo contrito roga-lhe que o leve,

mas, como no passado, o pedido é-lhe negado:

SOROR MORTE Hei-de vir, hei-de vir. O silêncio será como na despedida, o detonar da vela da partida. Hei-de vir… hei-de vir… Quando o Amor te tocar, quando o amor te florir… […] “O Senhor é Amor”. Ser Amor é ser Deus. Há eternidade já nesta palavra: Adeus… Esvaiu-se a forma. É quase noite. A presença da Morte é toda íntima. JOÃO Non sum dignus. (Com uma humildade imensa) Não sou digno. (Religiosamente, beija as lajes,como um vestígio de asa, os pés da Morte) Não sou digno ainda. (PATRÍCIO, 1972, p. 141)

A Morte tem, para D. João, um sentido de ascese: sai da posição de libertino

para liberto. A Morte, agora a Sóror Morte, metáfora de todas as mulheres a quem o

sedutor burlou –, sai da posição passiva de vítima a qual todas as mulheres seduzidas se

encontravam e passa a posição de sujeito da ação. D. João reconhece, como estágio

último de seu coroamento, a multiplicidade do mundo, o aprisionamento à matéria – as

máscaras – e percebe a essência do real, a unidade espiritual com o Absoluto. A Morte

viria, assim, como um natural remate, já que nesta etapa a individualidade e os atributos

terrenos estariam, enfim, mortos.

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Conclusão – Morte! És pra mim o sal da vida... (PATRÍCIO, 1995, p. 128)

António Patrício construiu em seus textos dramáticos Pedro, o Cru, Dinis e

Isabel e D. João e a Máscara uma possibilidade de interpretação dramática que associa

ao impulso de destruição do ser amado o sentimento amoroso, entrecruzando, assim, os

signos de amor e morte – de Eros e Tânatos. A morte aparece como parte de um

processo que visa à conversão da vida em eternidade e plenitude, revelando, uma

postura metafísica em seus textos dramáticos, nos quais é possível perceber uma coesão

temática em que a essência da vida surge como unidade entre o sensual e o espiritual,

num sentimento pleno de vitalidade, na experiência-limite entre a densidade da vida e a

luta para superar a morte.

Suas personagens movem-se, portanto, na luta e no conflito incessante destas

duas forças poderosas da natureza humana. Nisto, percebe-se o grande contributo que

lhe foi a filosofia de Friedrich Nietzsche. O que se lê em Patrício é a busca pela vida

intensiva, mágica, que não depende, necessariamente, de uma configuração orgânica,

corporal e individual para se expressar, pois a sua vitalidade ontológica se expressa

sempre de modo desmedido, para além dos limites da figuração, revelando-se o

vitalismo dionisíaco pela euforia orgiástica e pela vontade de viver.

Assim, na vasta produção artística que envolve os temas do trágico amor de

Inês e Pedro, da sedução de D. Juan e da visão paraclética de que Isabel é exemplar,

observa-se que, em António Patrício, a inscrição textual do tema Amor-Morte passa

pela leitura de figuras mitificadas pelo imaginário ibérico, revelando um certo olhar

de António Patrício na leitura dos mitos. No seu “drama da Saudade”, por exemplo, o

autor dá largas asas, para além da tradição histórica, aos fabulosos atos fúnebres: o

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da coroação do cadáver, com o cerimonial do beija-mão e a posição dos túmulos pés

contra pés, dando asas às lendas. No “conto de Primavera”, Patrício coloca-se, de

fato, como alguém menos preocupado com os acontecimentos históricos, preferindo

o motivo das rosas, a taumaturgia da rainha Santa. No prefácio de sua “fábula

trágica”, António Patrício fascinado pela figura do sedutor, afirmando que “Tentaram

julgá-la, até puni-la. Eu por mim, mais simplesmente, tive de a dizer porque a amei e

o meu amor quis exprimir-se em cenas” (PATRÍCIO, 1972, p. 9). O autor se inspira

na história real de Miguel Maraña, que morreu em santidade no convento de La

Caridad, mas o que se verifica é que o interesse de Patrício está no sentido de criar

personagens mais a partir da matéria mítica do que da tradição histórica. Aliás, nos

textos dramáticos de António Patrício não são apenas as personagens referenciais que

assumem o primeiro plano, mas a própria transubstanciação da matéria histórica

numa dimensão mítica. A presença de figuras mitificadas em seus textos dramáticos

reiteram o caráter poético e simbólico que sua obra possui.

A saudade de Pedro é o canto de Orfeu. Se não pode trazer Inês de volta à

vida, ressuscitá-la, ele mergulha profundamente no “reino de mistério”, onde, assim

crê, pode tê-la em plenitude. Concentrando, portanto, as ações do texto dramático

nos desdobramentos da morte de Inês, o que o Pedro de Patrício busca é ressurreição

da carne, numa tensão que, no decorrer do texto, se revela: a dialética “morte/vida”,

que surge como um obstáculo à resolução da angústia de Pedro, sobretudo gerada

pela Saudade, sentimento ao mesmo tempo doloroso e indefinível, que não o deixa

sossegar. Em Dinis e Isabel, o milagre das rosas, ao mesmo tempo em que inscreve

Isabel na santidade, mostra a Dinis que não pode ter sua mulher, ainda que ela

também lute contra a manifestação do divino, que se mostra como força inexorável, e

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173

a morte vem com o perfume das flores. Patrício contrapõe na figura de Isabel o

trágico destino de uma santa que a não quis ser e do homem que a amou. Para o D.

João de Patrício, a morte é epifânica, revelando-lhe a impossibilidade de completude

em outros corpos, dizendo-lhe, assim, a insaciabilidade, abandonando, assim, o

desejo erótico, ou melhor, como “possesso do eterno” e transforma esse desejo numa

fusão com a Morte.

Assim, em seus textos dramáticos, António Patrício mostra como a escrita literária

– ou, noutras palavras, a linguagem enquanto energia criadora e princípio de

significação – pode reinventar, não apenas os fatos que a memória recorda, mas também

as lendas e os mitos que o imaginário coletivo foi guardando e transformando, ao longo

dos séculos. Não é a ação das personagens, nem os seus atos, ou mesmo as

circunstâncias de tempo e espaço que interessam à efabulação. Tudo o que cerca suas

personagens não se explicam pela materialidade do mundo, mas por uma força que as

sobrepaira e que tem, por fim último, como diz Anna Balakian, testemunhar “a natureza

fortuita da existência humana aqui na Terra” (BALAKIAN, 2010, p. 104).

As personagens de Patrício, portanto, experimentam o núcleo de pura dor do

mundo, interagem com o espírito que vivifica todo o universo através do êxtase, como a

afirmação trágica de que homem é sempre vencido por forças maiores do que a sua, e

que a possibilidade de atenuar o poder dionisíaco da natureza, que está para além do

bem e do mal, consiste em se mesclar a visão apolínea de mundo, que propõe a

moderação, com os valores dionisíacos, de modo que o homem se torne efetivamente

uma figura trágica, portando consigo as insígnias dos dois princípios naturais, que em

Patrício se entrelaçam à escrita de Eros e Tânatos.

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174

Retomar em epígrafe o pensamento inicial para o qual a leitura da tese se orientou

é confirmar a ideia de que António Patrício registra a experiência de criar uma escrita

capaz de abarcar de modo pleno a dor e a morte, interpretando a vida como um

exercício existencial de criação contínua, na valorização de todas as circunstâncias

vitais, pois que a morte nada mais é que “o sal da vida”.

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Anexos

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Anexo 1

Fig. 1: “Depois de morta foi rainha”. Lima de Freitas, 1987

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Anexo 2

Fig. 2: “Até a fim do mundo”. Lima de Freitas, 1984