energia (apontamentos)

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CAP ´ ITULO 1 INTRODUC ¸ ˜ AO 1.1 Conceito e ˆ ambito da termodinˆ amica A Termodinˆ amica ´ e o ramo da F´ ısica que trata dos sistemas macrosc´opicos, ou seja, sistemas com n´ umero suficientemente elevado de constituintes. Est´a baseada num pe- queno conjunto de princ´ ıpios ou leis, resultantes da observa¸ c˜ao experimental, e de onde se extraem consequˆ encias l´ogicas. Muitas vezes ´ e poss´ ıvel explicar o comportamento dos referidos sistemas a partir desse pequeno n´ umero de princ´ ıpios e tal possibilidade constitui um dos principais atractivos da Termodinˆ amica. S˜ao de citar, a este respeito, as palavras de Albert Einstein, em 1949: Uma teoria tem tanto mais impacte quanto maior for a simplicidade das suas premis- sas, quanto mais diversas forem as coisas relacionadas e quanto maior for a sua ´area de aplicabilidade. Da´ ı a impress˜ ao profunda que a Termodinˆ amica cl´assica me causou. ´ E unica teoria f´ ısica de conte´ udo universal a respeito da qual estou convencido que, no quadro da aplicabilidade dos seus conceitos b´asicos, nunca ser´a ultrapassada. Somente por estas raz˜ oes ´ e uma parte muito importante da forma¸c˜ ao de um f´ ısico. A mecˆanica estat´ ıstica, por vezes designada por termodinˆamica microsc´opica por oposi¸c˜ao`atermodinˆamicamacrosc´opica,forneceajustifica¸c˜aomicrosc´opicadater- modinˆamica. Um dos objectivos da mecˆanica estat´ ıstica ´ e extrair do comportamento individual das part´ ıculas (por exemplo mol´ eculas) as leis da termodinˆamica e as suas consequˆ encias. Atendendo `a multid˜ ao de part´ ıculaspresentesnumapor¸c˜aomacrosc´opica de mat´ eria, o racioc´ ınio da mecˆanica estat´ ıstica tem de ser necessariamente de natureza

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Page 1: Energia (Apontamentos)

CAPITULO 1

INTRODUCAO

1.1 Conceito e ambito da termodinamica

A Termodinamica e o ramo da Fısica que trata dos sistemas macroscopicos, ou seja,

sistemas com numero suficientemente elevado de constituintes. Esta baseada num pe-

queno conjunto de princıpios ou leis, resultantes da observacao experimental, e de onde

se extraem consequencias logicas. Muitas vezes e possıvel explicar o comportamento dos

referidos sistemas a partir desse pequeno numero de princıpios e tal possibilidade constitui

um dos principais atractivos da Termodinamica. Sao de citar, a este respeito, as palavras

de Albert Einstein, em 1949:

Uma teoria tem tanto mais impacte quanto maior for a simplicidade das suas premis-

sas, quanto mais diversas forem as coisas relacionadas e quanto maior for a sua area de

aplicabilidade. Daı a impressao profunda que a Termodinamica classica me causou. E

a unica teoria fısica de conteudo universal a respeito da qual estou convencido que, no

quadro da aplicabilidade dos seus conceitos basicos, nunca sera ultrapassada. Somente por

estas razoes e uma parte muito importante da formacao de um fısico.

A mecanica estatıstica, por vezes designada por termodinamica microscopica por

oposicao a termodinamica macroscopica, fornece a justificacao microscopica da ter-

modinamica. Um dos objectivos da mecanica estatıstica e extrair do comportamento

individual das partıculas (por exemplo moleculas) as leis da termodinamica e as suas

consequencias. Atendendo a multidao de partıculas presentes numa porcao macroscopica

de materia, o raciocınio da mecanica estatıstica tem de ser necessariamente de natureza

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estatıstica, procurando resumir num reduzido numero de parametros relativos a glob-

alidade um conjunto vasto de dados individuais. A atitude da mecanica estatıstica e,

portanto, a de averiguar as caracterısticas individuais para entao retirar conclusoes; a da

termodinamica e nao fazer essa observacao detalhada.

Em Termodinamica nao se faz, em geral, referencia a constituicao pormenorizada

dos sistemas, o que realca o facto de se poder formular independentemente de qualquer

interpretacao microscopica.

1.2 Princıpios da termodinamica

A Termodinamica veio alargar o Princıpio de Conservacao da Energia Mecanica, es-

tabelecido originalmente na mecanica, introduzindo uma nova grandeza, chamada ener-

gia interna, cuja conservacao nos chamados sistemas isolados e afirmada pelo Primeiro

Princıpio (ou Lei) da Termodinamica. Esta e uma lei experimental pois foi sempre con-

firmada pelos dados da observacao. Contudo, ha fenomenos que nao podem ser cabal-

mente explicados recorrendo apenas a Lei de Conservacao da Energia. Ha, por outro

lado, uma serie de comportamentos que, nao estando proibidos pelo Princıpio de Con-

servacao da Energia, nunca foram observados. Tambem para explicar essa ausencia foi

necessario introduzir um princıpio adicional, denominado Segundo Princıpio (ou Lei) da

Termodinamica. Este princıpio viria a constituir-se como a principal inovacao que a

Termodinamica trouxe ao conhecimento humano.

E conveniente, logo de inıcio, referir as leis da termodinamica, das quais as mais

importantes sao a primeira e a segunda.

0 - A lei zero e assim chamada porque e basica no formular de toda a teoria. Esta lei

garante a existencia de uma propriedade dos sistemas chamada temperatura. Dois

corpos estao a mesma temperatura se, quando colocados em contacto, nao ocorrer

um fluxo de calor (o conceito de fluxo de calor e, para ja, suficiente; mais tarde

definiremos calor com toda a exactidao). Diz-se entao que se esta em presenca de

uma situacao de equilıbrio termico. A consistencia desta nocao de igualdade de

temperatura e assegurada pelo seguinte enunciado da lei zero, cuja validade, como,

de resto, a de todas as leis da termodinamica, e experimental:

Lei Zero – Dois corpos em equilıbrio termico com um terceiro estao em equilıbrio

termico entre si e, por definicao de temperatura, os tres corpos estao a mesma

temperatura.

1 - A primeira lei da termodinamica garante a existencia de uma propriedade dos sis-

temas chamada energia interna. A energia interna conserva-se em sistemas isolados,

pelo que a primeira lei e denominada lei de conservacao de energia.

Primeira Lei – Existe uma propriedade dos sistemas, chamada energia interna, que

se conserva em sistemas isolados.

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Page 3: Energia (Apontamentos)

2 - A segunda lei afirma a existencia de uma propriedade dos sistemas, chamada en-

tropia, que nao pode diminuir em sistemas isolados (so pode, portanto, manter-se

ou aumentar). Esta lei e, por conseguinte, designada por lei da nao-diminuicao da

entropia.

Segunda Lei – Existe uma propriedade dos sistemas, chamada entropia, que nao

pode diminuir em sistemas isolados termicamente.

3 - A terceira lei fixa em zero o valor da entropia no zero absoluto de temperatura

(T = 0 K, t = −273, 15 o C).

Terceira Lei – No zero absoluto a entropia e zero.

Do ponto de vista da mecanica estatıstica, a energia interna e interpretada como o

resultado das energias (cineticas e potenciais) das partıculas individuais. Por seu lado, a

entropia pode ser interpretada como uma medida da desordem ou, melhor expresso, da

falta de informacao. Se, por exemplo, tivermos um sistema composto por dois lıquidos

miscıveis que inicialmente se encontram separados, juntando-os obteremos uma mistura

a que corresponde um valor maior de entropia, porquanto a informacao sobre onde esta

cada um deles se perdeu.

O conceito de entropia, porque e qualitativamente inovador relativamente aos conceitos

da mecanica, suscita por vezes algumas dificuldades de compreensao. A entropia surge

na termodinamica macroscopica mais como um artifıcio matematico e so a mecanica

estatıstica – classica ou quantica – permite explicar o seu significado.

Como a segunda lei da termodinamica proibe que a entropia de um sistema isolado

decresca, conclui-se que se tem assim disponıvel um modo de distincao entre o passado e o

futuro: o futuro e caracterizado por um valor nao inferior da entropia. Medindo a energia

de um sistema isolado em duas ocasioes distintas encontra-se o mesmo valor, enquanto

que, efectuando medidas da entropia, ja pode ser possıvel dizer qual foi a medida tomada

antes e qual foi a medida tomada depois. Daqui se infere imediatamente a extraordinaria

importancia do conceito de entropia. A entropia pode funcionar como um indicador do

sentido do tempo.

Atendendo a que as equacoes da mecanica, tanto classica como quantica, sao in-

variantes relativamente a inversao do tempo (quer dizer, as equacoes ficam inalteradas

substituindo t por −t) verifica-se que existe um salto quando se passa da escala mi-

croscopica para a macroscopica, na qual se constata, inequivocamente, a irreversibilidade

dos fenomenos. Uma situacao hipotetica de reversibilidade dos acontecimentos quotidia-

nos seria a exibida num filme a rodar em sentido contrario ao normal. Essa mudanca de

paradigma quando se passa do mundo microscopio para o macroscopio tem sido objecto

de muita controversia cientıfica, pelo que se pode dizer que a interpretacao rigorosa em

termos microscopicos da segunda lei da termodinamica oferece ainda questoes em aberto.

A terceira lei tem uma justificacao que so e possıvel ser fornecida pela fısica moderna

(mecanica estatıstica quantica). Uma afirmacao semelhante a contida na terceira lei nao

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Page 4: Energia (Apontamentos)

e verdadeira quando aplicada a energia interna. Na verdade, a energia no zero absoluto

nao e zero. Em mecanica quantica existe uma energia do estado fundamental — que e

o estado de mais baixa energia — pelo que nao se pode dizer que as partıculas de um

sistema estao imoveis a temperatura absoluta zero. O que acontece a T → 0 e que os

movimentos estao limitados o mais possıvel e consequentemente a entropia e mınima (a

entropia e uma funcao positiva).

As duas principais leis da Termodinamica — a primeira e a segunda — referem-se

a essas duas caracterısticas fundamentais do mundo fısico que sao a conservacao e a

mudanca, o ser e o tornar-se. Se a conservacao descreve o aspecto que permanece nos

sistemas macroscopicos isolados, a mudanca tem a ver com as transformacoes desses

sistemas. A palavra “energia”significa etimologicamente “capacidade de accao”(daqui

uma primeira e restrita definicao de energia como “capacidade de realizar trabalho”).

Por outro lado, a palavra “entropia”significa etimologicamente “capacidade de mudanca”.

Por razoes que ja foram sugeridas (a Primeira Lei refere-se a energia), a Termodinamica

pode ser considerada a ciencia da energia. E a parte da Fısica que identifica o calor como

forma de energia. Sempre que um sistema esteja sujeito a trocas de energia sob a forma

de calor, esta sob a alcada da Termodinamica. Mas a Termodinamica deve, sobretudo,

ser considerada a ciencia da entropia, grandeza cujos ingredientes de definicao sao o calor

e a temperatura. A Termodinamica e, entao, a ciencia da energia e da entropia.

1.3 Estrutura conceptual

Os objectivos da Termodinamica sao ambiciosos pois, em princıpio, pretende tratar

uma enorme variedade de sistemas fısicos, desde que estes sejam suficientemente grandes.

Os sistemas macroscopicos tem tipicamente um numero de partıculas da ordem das que

existem em 1 mol (6, 022 × 1023), embora estejamos aqui a introduzir consideracoes de

tipo microscopico que nao sao necessarias no contexto da Termodinamica. Pode, no

entanto, aplicar-se a sistemas muito mais pequenos, como nucleos atomicos e agregados

de atomos com apenas dezenas ou centenas de partıculas. Apesar de insatisfatoria de um

ponto de vista puramente logico, a definicao mais segura de sistema termodinamico e a

de um sistema (regiao do mundo) que satisfaz os princıpios (e, portanto, as conclusoes)

da Termodinamica.

A Termodinamica e aplicavel a todos os sistemas macroscopicos. Por exemplo, seja

qual for o sistema, a relacao entre as compressibilidades isotermica e adiabatica e sempre

igual a relacao entre as capacidades termicas massicas a pressao e a volume constante1.

Mas a Termodinamica nao diz quanto valem essas compressibilidades nem essas capaci-

dades termicas massicas. Fornece apenas relacoes gerais entre variacoes de propriedades,

mas nao e capaz de atribuir valores a essas propriedades em cada caso particular.

1Definiremos mais a frente essas compressibilidades e capacidades termicas e demonstraremos a relacaoindicada.

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Page 5: Energia (Apontamentos)

Embora em Termodinamica o formalismo seja essencial, para que ele tenha conteudo

fısico e possa ser aplicado a sistemas concretos, sao necessarios alguns, nao muitos, conhec-

imentos adicionais. Estes, proporcionados pela experiencia ou pela Mecanica Estatıstica,

sao fundamentalmente de dois tipos:

i) A equacao de estado do sistema, relacionando variaveis termodinamicas basicas,

como o volume, a pressao e a temperatura, ou, alternativamente, os chamados

coeficientes de dilatacao e de compressibilidade. Esta equacao de estado tambem se

chama equacao de estado termica. Acrescente-se, desde ja, que a existencia de uma

equacao de estado e garantida pelo Princıpio Zero.

ii) A equacao da energia interna do sistema, relacionando a energia interna com a

temperatura e outra variavel (volume, pressao), ou, em alternativa, as chamadas

capacidades termicas ou capacidades termicas massicas. A equacao da energia in-

terna tambem se chama equacao de estado energetica.

Com estes conhecimentos adicionais, toda a informacao termodinamica sobre um sis-

tema pode ser obtida aplicando os princıpios e os metodos da Termodinamica: por e-

xemplo, pode prever-se o que sucede em processos adiabaticos (processos em que nao ha

trocas de calor), numa expansao livre (expansao contra o vacuo), etc. Embora a cabeca

de todo o desenvolvimento da Termodinamica estejam observacoes experimentais, o puro

empirismo absoluto seria absolutamente infertil. So a existencia de uma teoria previa

permite fazer observacoes com sentido, porque so uma teoria permite efectuar previsoes

que a experiencia pode confirmar ou refutar.

O desenvolvimento do formalismo termodinamico utiliza conceitos e ferramentas sobre-

tudo da Analise Matematica, e recorre tambem a metodos e tecnicas que lhe sao exteriores,

como, por exemplo, os da Termometria. A Termodinamica pode ate formular-se sem ne-

cessidade de descrever os metodos de medida das temperaturas proprios da Termometria.

Mas e evidente que, nas aplicacoes praticas, e mesmo necessario medir temperaturas.

Um outro conceito imprescindıvel mas externo a Termodinamica e o de trabalho. A

nocao de trabalho mecanico e generalizada no quadro da Termodinamica definindo-se

entao o chamado trabalho termodinamico. Mas so o conhecimento do sistema em causa

permite encontrar uma expressao para o trabalho termodinamico. Uma vez obtida essa

expressao, a Termodinamica permite entao chegar a todo um conjunto de relacoes uteis.

No contexto da Primeira Lei, aparecera o conceito de paredes adiabaticas (paredes que

impedem trocas de calor). Alguns autores consideram mesmo que a existencia de paredes

adiabaticas deve ser elevada a categoria de princıpio mas tal posicao nao e consensual.

Na discussao da Segunda Lei, tem ainda de se admitir, como hipotese adicional, a exis-

tencia de processos reversıveis. As afirmacoes de existencia de paredes adiabaticas e de

processos reversıveis (tomados como condicoes limite dos processos reais), nao sendo de

facto consideradas princıpios, sao suposicoes a priori.

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Page 6: Energia (Apontamentos)

Uma distincao importante e a que se efectua entre sistemas fechados (sistemas em que

nao pode entrar nem sair materia) e abertos (sistemas em que pode entrar e sair materia).

O chamado Postulado de Gibbs permite o tratamento de sistemas abertos. O Princıpio

do Potencial Quımico conduz a generalizacao para esses sistemas de alguns resultados

obtidos para sistemas fechados.

Os metodos da Termodinamica, acrescidos das contribuicoes externas referidas, per-

mitem obter a chamada Equacao Fundamental, que contem toda a informacao termodi-

namica sobre um sistema. E, a partir desta equacao, chega-se aos potenciais termodi-

namicos e as condicoes de equilıbrio e de estabilidade.

Sistemas Abertos

Postulado de GibbsTermometria

Paredes Adiabáticas

TemperaturaAbsoluta

Processos reversíveis

TERCEIROPRINCÍPIO

Condições deEquilíbrio

SistemasFechados

Calor

SEGUNDOPRINCÍPIO

EquaçãoFundamental

Condições deEstabilidade

Potenciais Termodinâmicos

PRIMEIROPRINCÍPIO

PRINCÍPIOZERO

Trabalho

Matemática

OBSERVAÇÕESEXPERIMENTAIS

PRINCÍPIO DOPOTENCIAL

QUÍMICO

Equações de estado

Figura 1: Esquema geral dos fundamentos da Termodinamica do Equilıbrio. Os princıpiosencontram-se em caixas de linha dupla e com tracos. Em caixas a traco grosso indicam-se osresultados tipicamente termodinamicos, que sao consequencia dos princıpios.

A Fig. 1 mostra um esquema geral dos fundamentos da Termodinamica do Equilıbrio,

de acordo com a estrutura conceptual antes referida.

A existencia de equacoes de estado obtem-se do Princıpio Zero (embora a sua es-

pecificacao seja, como foi dito, exterior a Termodinamica), a nocao de calor do Primeiro

Princıpio e o conceito de temperatura absoluta do Segundo Princıpio. A existencia da

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Page 7: Energia (Apontamentos)

Equacao Fundamental e dos potenciais termodinamicos, e as condicoes de equilıbrio e de

estabilidade sao tambem resultados puramente termodinamicos que se seguem do Segundo

Princıpio.

1.4 Historia da Termodinamica

A termodinamica e uma ciencia do seculo XIX. Antes de tudo ela e o resultado de

necessidades praticas. A motivacao dos percursores das primeira e segunda leis da ter-

modinamica (Conde Rumford e Carnot, respectivamente) foi a fabricacao de instrumentos

e a rentabilizacao de maquinas. Depois seguiram-se-lhes fısicos, matematicos, quımicos,

que escreveram as equacoes, desenvolveram o formalismo e estudaram as aplicacoes. A

termodinamica e portanto o resultado de um esforco interdisciplinar de tentativa de com-

preensao do comportamento de porcoes macroscopicas de materia.

Listam-se a seguir um conjunto de nomes de cientistas que contribuiram decisivamente

para a formulacao da termodinamica.

1 - B. Thompson, Conde Rumford (1753-1814), aventureiro e engenheiro norte-

americano.

2 - J. Mayer (1814-1878), medico alemao.

3 - H. von Helmholtz (1821-1894), fısico e medico alemao.

4 - J. Joule (1818-1889), engenheiro e industrial escoces.

5 - N.L. Sadi Carnot (1796-1832), engenheiro frances.

6 - R. Clausius (1822-1888), fısico alemao.

7 - W. Thomson, Lord Kelvin (1824-1907), fısico escoces.

8 - W. Nernst (1864-1941), quımico alemao.

9 - C. Caratheodory (1873-1950), matematico grego.

10 - L. Boltzmann (1844-1906), fısico austrıaco.

11 - J.W. Gibbs (1839-1903), fısico norte-americano.

Em seguida tecem-se alguns comentarios sobre a obra realizada pelos cientistas enu-

merados.

1 - Foi o Conde Rumford quem sugeriu pela primeira vez a hipotese de que o calor

era uma forma de transmitir energia equivalente a realizacao de trabalho mecanico. An-

teriormente supunha-se que o calor era um fluido — o calorico — que impregnava as

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Page 8: Energia (Apontamentos)

substancias, e julgava-se que, quando se punham dois corpos a temperaturas diferentes

em contacto, aquele que continha mais calorico (o mais quente) cedia-o ao outro ate se

atingir uma situacao de equilıbrio.

2 a 4 - Apesar das importantes contribuicoes, contemporaneas mas independentes

umas das outras, de Mayer e Helmholtz foi Joule quem formulou pela primeira vez com

rigor quantitativo a primeira lei. Estava-se a meio do seculo XIX quando Joule calculou

com grande exactidao o equivalente mecanico do calor, servindo-se para o efeito de uma

experiencia em que se aquecia um lıquido por meio de um conjunto de pas que rodavam

gracas a um sistema de pesos. A partir de Joule, calor e trabalho sao ambos duas formas

de energia. A energia interna de um sistema pode ser aumentada indistintamente quer

fornecendo calor quer realizando trabalho.

5 - Carnot, apesar de ter falecido muito novo (aos 36 anos devido a uma epidemia

de colera) forneceu um contributo muito importante para o progresso da termodinamica.

Foi o inventor do ciclo termodinamico que tem o seu nome e, com base nele, chegou a

um enunciado da segunda lei que, embora nao fale em entropia, e, para todos os efeitos,

equivalente ao da nao diminuicao da entropia. O enunciado de Carnot refere que o rendi-

mento de maquinas termicas e independente da substancia operante, e e portanto mais

compreensıvel de um ponto de vista tecnico do que o enunciado relativo a entropia. Uma

consequencia do enunciado de Carnot e que nenhuma maquina operando entre duas tem-

peraturas pode ter um rendimento superior a uma maquina que funcione segundo o ciclo

de Carnot entre as mesmas temperaturas. Mais adiante sera explicitado com mais por-

menor o significado da formulacao de Carnot da segunda lei.

Como o livro em que Carnot deixou as suas reflexoes (que se intitula mesmo Reflexions

sur la puissance motrice du feu) foi publicado em 1824, bastante antes dos trabalhos

de Clausius e Kelvin, ha quem considere que a segunda lei e cronologicamente ante-

rior a primeira e, de acordo com esse facto, procure uma desmitificacao da segunda lei,

libertando-a de um certo esoterismo em que por vezes aparece rodeada.

6 - Foi no entanto Clausius quem consagrou lapidarmente as duas principais leis da

termodinamica, escrevendo: “Die Energie der Welt ist konstant. Die Entropie der Welt

strebt einem Maximum zu”.

7 - A Lord Kelvin coube a autoria da escala de temperatura absoluta, cuja existencia

e uma consequencia directa do segundo princıpio.

8 - Nernst, com base em estudos experimentais minuciosos de reaccoes quımicas,

chegou a seguinte formulacao da terceira lei: proximo do zero absoluto as reaccoes dao-

se sem modificacao de entropia. O enunciado da terceira lei transcrito na pagina 2 foi

proposto por Planck (fısico alemao, 1858-1947) e e apenas uma afirmacao mais forte da lei

de Nernst. Estava-se no inıcio do seculo XX e o programa da termodinamica, enquanto

conjunto de princıpios gerais, estava praticamente completado.

9 - Caratheodory efectuou a axiomatizacao da termodinamica. O seu contributo

consistiu fundamentalmente numa reformulacao da segunda lei em termos mais abstractos,

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Page 9: Energia (Apontamentos)

cuja vantagem e inegavel para sistemas com um numero elevado de graus de liberdade

termodinamicos. O seu trabalho demorou a ser compreendido e so recentemente comecou

a ser tratado de uma forma pedagogica e a aparecer nos livros de texto.

10 e 11 - Finalmente, Boltzmann e Gibbs foram os grandes obreiros da mecanica

estatıstica. O primeiro foi o autor da interpretacao da entropia em termos de probabili-

dades. O segundo deixou-nos em legado a mecanica estatıstica como um corpo coerente

de doutrina. A proposito da importancia da mecanica estatıstica, escreveu R.C. Tolman:

A explicacao de toda a ciencia termodinamica, em termos da ciencia mais abstracta da

mecanica estatıstica, e uma das maiores conquistas dos fısicos. Alem disso, o caracter

mais fundamental das consideracoes da mecanica estatıstica torna possıvel suplementar

grandemente os princıpios comuns da termodinamica.

Nao se pense no entanto que, pelo facto de a termodinamica ter ficado basicamente

estabelecida nos princıpios do nosso seculo, ela constitui actualmente um domınio desin-

teressante para os criadores da ciencia. Hoje, a termodinamica e a mecanica estatıstica,

mais a segunda que a primeira do ponto de vista teorico, oferecem ainda assuntos de

investigacao corrente. Refiram-se como topicos de grande actualidade: a termodinamica

dos processos irreversıveis, a teoria das mudancas de fase, a termodinamica cosmologica,

etc.

Deve ainda aqui acrescentar-se que a termodinamica se encontra alicercada, para alem

dos sucessivos trabalhos de investigacao experimental e teorica, na impossibilidade com

que muitos inventores esbarraram de construirem maquinas que violassem os princıpios

da termodinamica, em especial as primeira e segunda leis. Maquinas cujo funcionamento

negasse esses princıpios sao designadas de maquinas de movimento perpetuo (“perpetuum

mobile”).

A termodinamica e pois um ramo do saber empırico que nos fornece os limites do

possıvel, que nos indica impossibilidades. Criar energia do nada, diminuir a entropia sem

mais, sao processos que nao ocorrem na natureza.

1.5 A utilidade da termodinamica

A termodinamica e extremamente util. Tem-se revelado frutuosa nos seguintes

domınios:

- fısica e engenharia fısica: fısica da materia condensada, fısica das baixas temperat-

uras (criogenia) e das altas temperaturas (fısica dos plasmas), fısica do vacuo e das

altas pressoes, astrofısica, mecanica dos meios contınuos, etc.

- quımica e engenharia quımica: a chamada termodinamica quımica (termodinamica

de aplicacao quımica) e um dos capıtulos fundamentais da quımica-fısica.

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Page 10: Energia (Apontamentos)

- engenharia mecanica: motores de combustao interna, sistemas de refrigeracao e de

condicionamento de ar, sistemas de propulsao de foguetes, avioes, navios e veıculos

terrestres, etc.

- engenharia civil: propriedades termicas dos materiais, aquecimento de edifıcios e

problemas de transmissao de calor, etc.

- engenharia electrotecnica: centrais de energia convencional e nuclear, energias

renovaveis (energia solar, energia eolica), dissipacao da energia em sistemas

electricos, etc.

- biologia: a bioenergetica (termodinamica aplicada a biologia) e uma parte essen-

cial da biofısica e bioquımica, e a aplicacao da termodinamica do nao-equilıbrio a

processos biologicos e cada vez mais actual.

- geologia, geofısica e meteorologia: a meteorologia, por exemplo, nao e, em princıpio,

mais do que a aplicacao da termodinamica a sistemas extremamente grandes e

complexos como sao aqueles que se encontram na atmosfera terrestre.

- matematica e informatica — a termodinamica estuda-se na fısica-matematica; as

teorias da informacao e da comunicacao usam a linguagem e os princıpios da ter-

modinamica (existe uma entropia da comunicacao de C. Shannon.

10

Page 11: Energia (Apontamentos)

CAPITULO 2

A LINGUAGEM DA TERMODINAMICA

Antes de entrarmos na doutrina da termodinamica e nas suas aplicacoes, convem

concretizar o vocabulario que vai ser utilizado. Como em qualquer ciencia, tambem a

termodinamica possui uma linguagem propria, que deve ficar clara desde o inıcio. Os

conceitos mais importantes sao: sistemas termodinamicos, propriedades termodinamicas,

equacoes e funcoes de estado, equilıbrio, processos termodinamicos, etc.. Introduzem-se

neste capıtulo estes conceitos, muitas vezes numa perspectiva fenomenologica e intuitiva

que pode revelar-se demasiado restritiva. Sera o proprio desenvolvimento do formalismo

termodinamico nos capıtulos seguintes que vira a dar generalidade e rigor a estes conceitos.

2.1 Sistema

O sistema e a parte do universo em que estamos interessados. A superfıcie, real ou

abstracta, que delimita o sistema chama-se fronteira. A parte do universo que rodeia o

sistema e que pode interagir com ele chama-se vizinhanca.

O conjunto do sistema e vizinhanca e o universo (que se nao deve confundir com

“Universo”no sentido astrofısico de cosmo). Quando a fronteira que limita o sistema e

real designa-se por parede. Um sistema pode ser, por sua vez, subsistema de um outro

maior, ou estar ele proprio dividido em subsistemas (Fig. 2).

Um sistema termodinamico pode interagir, em princıpio, com a vizinhanca e os subsis-

temas podem tambem, em princıpio, interagir uns com os outros. Observa-se experimen-

talmente que variacoes das propriedades fısicas de um sistema podem induzir variacoes

Page 12: Energia (Apontamentos)

S

SISTEMA

VIZINHANÇA

FRONTEIRA

S1 S3

S2

SUBSISTEMAS

Figura 2: Sistema termodinamico (S) e subsistemas (S1, S2, S3).

nas propriedades fısicas de outros. As interaccoes entre diferentes sistemas dependem

tanto da natureza dos sistemas como do tipo de superfıcies separadoras.

Os sistemas classificam-se em isolados ou nao isolados conforme a fronteira nao per-

mita ou permita trocas de energia. Classificam-se ainda em abertos ou fechados consoante

a fronteira permita ou nao permita trocas de materia com a vizinhanca. O universo e,

por definicao, um sistema isolado.

Se a composicao quımica e as propriedades fısicas locais de um sistema (propriedades

macroscopicas, entenda-se sempre, porque a nossa atencao nao desce ao nıvel das

partıculas constituintes) sao iguais em todos os pontos do mesmo, este diz-se homogeneo

(tem uma so fase). Um exemplo e a agua lıquida. Quando o sistema e composto de

varios subsistemas homogeneos ou fases, diz-se heterogeneo. Um exemplo e a agua lıquida

em contacto com o seu vapor e gelo. Alem disso, um sistema pode ser formado por

uma so substancia (sistema mono-componente) ou por varias substancias (sistema multi-

componente). Um exemplo de um sistema mono-componente e a agua. Um exemplo de

um sistema multi-componente e oxigenio e hidrogenio num recipiente.

A Fig. 3 ilustra um exemplo pratico de um sistema: um recipiente cilındrico com

um embolo movel, no interior do qual se encontra um gas. Este e um sistema tıpico que

reencontraremos frequentemente.

g á s

Figura 3: Gas contido num recipiente: exemplo de um sistema termodinamico.

12

Page 13: Energia (Apontamentos)

2.2 Propriedades

Consideremos que o cilindro da Fig. 3 contem 32 g de oxigenio. Quantas moleculas

aı se encontram? A resposta obtem-se a partir da constante de Avogadro, NA =

6, 022×1023 mol−1: como em 32 g de oxigenio ha uma mole de moleculas, o numero

procurado e

N = 6, 022×1023. (1)

Para conhecer o estado microscopico deste sistema haveria, pois, que especificar as

coordenadas de posicao e as velocidades de cada uma das moleculas. O comportamento

do sistema e descrito pelas equacoes da mecanica classica (segunda lei de Newton) com-

plementadas pelas condicoes iniciais. Ter-se-ia, pois, de resolver o seguinte sistema de

equacoes diferenciais de segunda ordem:

~Fi = mid2~ri

dt2, i = 1, . . . , N , (2)

com ~ri (t = 0) e ~vi (t = 0) conhecidos. Em (2) ~Fi e a forca sobre cada molecula i, mi e

a massa dessa molecula e ~ri e a sua posicao num referencial de inercia.

Ora, por um lado, as forcas intermoleculares, que entram nas equacoes do movimento

(2), nem sao simples nem exactamente conhecidas; por outro lado, as condicoes iniciais sao

em numero tao exorbitante (6 N , isto e, 3 N para ~ri e 3 N para ~vi) que e completamente

impossıvel especifica-las na totalidade. E mesmo que se admitisse um modelo simples

para as forcas e que as condicoes iniciais pudessem ser indicadas, a evolucao do sistema

nao seria calculavel porque o numero elevado de equacoes a resolver exclui, na pratica,

qualquer possibilidade de resolucao. Os metodos da chamada dinamica molecular usados

em Fısica Molecular e Fısica da Materia Condensada estao ainda restritos a milhares de

partıculas.

Acontece, felizmente, que o estudo pormenorizado das N partıculas seria absoluta-

mente inutil, pois nao haveria qualquer interesse pratico no conhecimento de uma mul-

tidao de dados sobre as moleculas. A grande vantagem da Termodinamica consiste em

substituir as 6 N variaveis microscopicas por um numero muito reduzido de variaveis, cujo

significado fısico e claro e cuja medicao e viavel. Pressao, volume e temperatura sao ex-

emplos de propriedades ou variaveis termodinamicas que descrevem estados de equilıbrio

de um sistema termodinamico.

Pode dar-se uma primeira nocao dessas variaveis:

- A pressao (P ) e a forca por unidade de superfıcie, devida, em ultima analise, a trans-

ferencia de momento linear das partıculas quando colidem nas paredes. Mede-se com

um barometro ou com um manometro.

- O volume (V ) e a medida do espaco ocupado pelo sistema. Calcula-se a partir de

dados obtidos, por exemplo, com uma regua.

13

Page 14: Energia (Apontamentos)

- A temperatura (T ) e uma variavel de estado essencial em Termodinamica. Tem um

significado macroscopico, que vem da definicao de equilıbrio termico (ver adiante).

Muitas vezes e dado um significado microscopico, relacionado com a energia cinetica

de translacao das moleculas do gas perfeito (a definicao de gas perfeito sera dada

tambem adiante) mas a relacao simples entre temperatura e energia cinetica so se

aplica ao gas perfeito, devendo por isso revestir-se das maiores cautelas a utilizacao

do referido significado microscopico. Mede-se com um termometro.

- A quantidade de materia (n) presente no sistema e indicada pelo numero de moles.

Para um sistema fechado esta variavel tem um valor fixo. Pode medir-se com a

ajuda de uma balanca.

Adiante-se desde ja que as propriedades ou variaveis de estado nao sao todas indepen-

dentes. Por exemplo, os comportamentos de gases a baixas pressoes sao bem descritos

pela equacao P V = nR T , com R uma constante. Esta e a chamada equacao de estado

dos gases perfeitos ou ideais.

Ha mais propriedades de um sistema, algumas das quais, como a energia interna (U) e

a entropia (S), ja foram referidas. De outras, como a entalpia (H), a funcao de Helmholtz

(F ) e a funcao de Gibbs (G) falaremos mais adiante.

Em termodinamica estudam-se tambem sistemas mais complexos do que o gas con-

tido no cilindro (que e dito um sistema PV T , uma vez que estes sao os sımbolos das pro-

priedades mais elementares necessarias para descrever o sistema). Sao exemplos de outras

propriedades a magnetizacao de um corpo magnetico, a polarizacao de um dielectrico, a

area da superfıcie de um lıquido, etc.

A termodinamica ocupa-se tambem de grandezas que nao sao propriedades de um

sistema. Exemplos sao as varias formas de energia transferida (calor ou trabalho) atraves

da fronteira de um sistema.

2.3 Variaveis extensivas, intensivas e conjugadas

E habitual classificar as variaveis termodinamicas em intensivas e extensivas. As

primeiras sao independentes da quantidade de materia presente (massa ou numero de

moles). Exemplos tıpicos sao a pressao e a temperatura. Estas propriedades intensivas

assumem os mesmos valores em qualquer ponto do sistema, independentemente do numero

de fases.

As propriedades extensivas, por seu lado, sao caracterizadas pela sua aditividade no

sentido de que o seu valor no sistema e a soma dos seus valores em qualquer conjunto de

subsistemas nos quais o sistema se decomponha. O volume e a quantidade de materia

sao exemplos de variaveis extensivas. Com efeito, o volume total e o numero total de

14

Page 15: Energia (Apontamentos)

moles obtem-se somando os volumes e os numeros de moles de cada subsistema. Outros

exemplos sao U , S, H, F e G.

E tambem frequente exprimir as variaveis extensivas dividindo-as pelo numero de

moles (o que so e possıvel se houver uma unica substancia). Denominam-se entao variaveis

molares. Se se dividirem as variaveis extensivas pela massa, obtem-se as chamadas

variaveis massicas ou especıficas.

Uma propriedade extensiva pode, pois, ser transformada em molar ou massica

dividindo-a pelo numero de moles ou pela massa. Por exemplo, o volume molar v = Vn,

com n o numero de moles, e uma propriedade molar e o volume massico v = Vm

= 1ρ, com

m a massa do sistema e ρ a massa volumica ou densidade, e uma propriedade massica.

Usaremos letras minusculas para designar os valores molares e massicos das variaveis ex-

tensivas2, e.g. v, u, s, h, f . Ao contrario das variaveis intensivas que caracterizam o

estado de equilıbrio, como T , P , etc., as variaveis molares nao tem, em geral, os mesmos

valores em diferentes fases do sistema.

A tıtulo de concretizacao numerica vejamos quais sao os volumes massicos e molares

da agua e do ar:

1) Agua

ρ = 1 g cm−3 = 103 kg m−3,

v =V

m= 10−3 m3 kg−1 (volume massico) (3)

v =V

n=

1

ρ

m

n= 10−3 ×

18

103

= 1, 8 × 10−5 m3 mol−1. (volume molar) (4)

2) Ar (a massa de 1 kmol de ar e, aproximadamente, 29 kg)

ρ = 0, 00129 g cm−3 = 1, 29 kg m−3,

v = 0, 775 m3 kg−1 (volume massico) (5)

v =1

1, 29×

29

103= 22, 4 × 10−3 m3 mol−1. (volume molar) (6)

A Tab. 1 reune algumas propriedades dos sistemas termodinamicos. Juntamos as

propriedades antes referidas, outras necessarias a descricao de sistemas nao PV T como,

por exemplo, um elastico sob tensao, a superfıcie de um lıquido, sistemas electricos e

magneticos e ainda sistemas PV T abertos.

2Usa-se a mesma letra para variaveis molares ou massicas, depreendendo-se do contexto o tipo devariavel em questao.

15

Page 16: Energia (Apontamentos)

Propriedade Unidade SI

P Pressao PaV Volume m3

T Temperatura KS Entropia J K−1

µ Potencial quımico J mol−1

n Quantidade de materia mol

Γ Tensao NL Comprimento m

σ Tensao superficial N m−1

Σ Area m2

E Campo electrico V m−1

Π Momento dipolar electrico C m

H Campo magnetico A m−1

M Momento magnetico A m2

U Energia interna JH Entalpia JF Funcao de Helmholtz JG Funcao de Gibbs J

Tabela 1: Propriedades de sistemas termodinamicos e respectiva unidade SI. As variaveis con-jugadas aparecem agrupadas duas a duas. As quatro ultimas variaveis sao os potenciais ter-modinamicos.

Um outro conceito muito importante em Termodinamica e o de variaveis conjugadas.

Diz-se que duas variaveis, uma extensiva, Y , e outra intensiva, X, sao conjugadas se o

produto XdY for uma energia infinitesimal. Entre estes produtos, refiram-se as energias

infinitesimais −P dV , Γ dL, E dΠ, etc. Na Tab. 1 as propriedades agrupadas aos pares

sao conjugadas, sendo a primeira intensiva e a segunda extensiva (veja-se, por exemplo,

que o produto das suas dimensoes tem a dimensao de energia).

2.4 Estado de um sistema e equacoes de estado

Define-se estado do sistema indicando o conjunto de propriedades ou variaveis fısico-

quımicas que o caracterizam. Experimentalmente, verifica-se que todos os sistemas ter-

modinamicos tem estados privilegiados, designados por estados de equilıbrio, cuja carac-

terıstica essencial e a sua estabilidade se o sistema estiver isolado.

Em geral nao e necessario indicar todas as propriedades uma vez que elas nao sao todas

16

Page 17: Energia (Apontamentos)

independentes. As equacoes de estado relacionam as diferentes variaveis de um sistema.

Vejamos um exemplo concreto. A baixas pressoes o oxigenio pode ser considerado um gas

perfeito ou ideal, isto e, obedece a lei experimental

P V = n R T , (7)

onde R = 8, 314510 J K−1 mol−1 e a chamada constante (molar) dos gases ideais. A

temperatura e conhecida imediatamente se a pressao e o volume o forem:

T =P V

nR. (8)

Neste contexto, P e V podem ser vistos como parametros de estado e T = T (P, V, n)

como a funcao de estado. Se explicitassemos P na equacao anterior, entao os parametros

de estado passariam a ser T e V .

Uma equacao, como a dos gases perfeitos, da forma geral

f(P, V, T, n) = 0 (9)

e designada por equacao de estado termica (ou, simplesmente, equacao de estado). A eq.

(7) e a equacao de estado termica de um gas perfeito.

A energia tambem pode ser obtida a partir de V e T , sendo este facto expresso pela

equacao de estado energetica. Para um gas perfeito e um facto experimental que a energia

interna apenas depende da temperatura, U = U(T ):

U = U0 + CV (T − T0), (10)

com CV uma constante caracterıstica de cada gas chamada capacidade termica a volume

constante e U0 = U(T0) outra constante (energia a uma dada temperatura de referencia,

T0). Quando, mais a frente, estudarmos a Primeira Lei e dela retirarmos as suas con-

sequencias, voltaremos a abordagem das equacoes de estado energeticas.

Regressando a equacao de estado termica, para um sistema PV T fechado (n fixo) bas-

tam entao duas variaveis quaisquer para especificar completamente o estado do sistema.

Este facto permite-nos representar geometricamente o estado do sistema por um ponto

num diagrama plano. Num grafico em que no eixo das abcissas se indica o volume e em

que no eixo das ordenadas se indica a pressao (diagrama PV ou de Clapeyron) o estado

do sistema (por exemplo, V = V1, P = P1) representa-se por um ponto como mostra a

Fig. 4. Mas essa representacao so e possıvel para estados de equilıbrio.

2.5 Equilıbrio

Convem precisar melhor, entao, o que se entende por estado de equilıbrio de um

sistema.

17

Page 18: Energia (Apontamentos)

P

V0 V 1

P 11

Figura 4: (a) Diagrama PV ou de Clapeyron onde se representa o estado 1 do sistema.

Suponhamos que temos um sistema cuja fronteira e um isolador termico (a fronteira

impede fluxos de calor de e para o exterior) e que e inicialmente contituıdo por dois

subsistemas as temperaturas T1 e T2 (T1 > T2), sendo a fronteira entre os subsistemas

um condutor termico perfeito (precisamente o oposto de parede adiabatica, referida no

capıtulo anterior). Ficando os dois sistemas em contacto termico directo vao ocorrer

espontaneamente alteracoes e acaba por se alcancar um certo estado final com uma mesma

temperatura em todos os pontos do sistema (Fig. 5). Se os subsistemas sao identicos (em

massa e em natureza) a temperatura final sera a media aritmetica das temperaturas dos

dois subsistemas iniciais, T = T1+T2

2. Dizemos que se atingiu o equilıbrio termico.

T 1 T 2T 1 + T 22

Figura 5: Evolucao para o equilıbrio termico. Inicialmente os dois subsistemas identicos, sepa-rados por um condutor termico perfeito, estao a temperaturas diferentes; passado algum tempoatinge-se o equilıbrio termico, sendo a temperatura final a media aritmetica das temperaturasiniciais de cada subsistema.

Pode tambem acontecer que num dado sistema a pressao nao seja uniforme e haja

movimentos, expansoes e contraccoes, de partes do sistema. Quando estes deslocamentos

terminarem, dizemos que o equilıbrio mecanico foi atingido. Lembre-se que, ao contrario

da temperatura, num estado de equilıbrio mecanico a pressao nao tem que ser a mesma

em todos os pontos do sistema. Se-lo-a para um gas mas para um lıquido no campo

gravıtico os varios nıveis hidroestaticos estao a pressoes diferentes.

18

Page 19: Energia (Apontamentos)

Finalmente pode acontecer que um sistema contenha substancias que podem reagir

quimicamente. Uma vez que as reaccoes quımicas possıveis se tenham efectuado, diz-se

que se atingiu o equilıbrio quımico.

Por equilıbrio termodinamico entende-se o equilıbrio simultaneamente termico, meca-

nico e quımico.

Note-se que so numa situacao de equilıbrio termodinamico e que tem sentido falar de

propriedades do sistema, pois so entao e possıvel indicar valores globais para a temper-

atura, pressao, etc. Portanto e obvio que a palavra estado usada atras deve ser entendida

como estado de equilıbrio termodinamico, em particular na seccao anterior. Reforcamos

agora o que entao dissemos no final daquela seccao: so um estado de equilıbrio pode ser

representado por um ponto num diagrama de Clapeyron. Se o estado nao for de equilıbrio

ha alguma propriedade de estado que nao tem valor bem definido (a pressao, por exemplo,

se nao existir equilıbrio mecanico).

2.6 Processos

Designa-se por processo termodinamico a transformacao que leva de um estado de

equilıbrio a outro por variacao das propriedades do sistema. Pode acontecer que o estado

final de um processo coincida com o estado inicial, dizendo-se entao que o processo e

cıclico. Os processos dividem-se em quase estaticos e nao quase estaticos conforme os

estados intermedios sao praticamente ou nao estados de equilıbrio (seja ou nao infinites-

imal a diferenca para um estado de equilıbrio), e em reversıveis e irreversıveis conforme

for possıvel ou nao inverter o sentido do processo, alterando infinitesimalmente uma pro-

priedade do sistema. Toma lugar de destaque nesta discussao o conceito de diferenca in-

finitesimal entre propriedades de um sistema. Se um estado de equilıbrio for caracterizado

por (V1, P1), um estado de equilıbrio infinitesimalmente proximo deste tera propriedades

(V1 + dV, P1 + dP ).

Todos os processos reversıveis sao quase-estaticos mas nem todos os processos quase

estaticos sao reversıveis. Analisemos as diferentes situacoes:

a) Processos reversıveis e quase-estaticos

E uma sucessao de processos infinitesimais que pode inverter-se em cada passo medi-

ante uma mudanca infinitesimal na vizinhanca. Um exemplo e a compressao muito lenta

de um gas num cilindro. O processo e quase-estatico porque os estados intermedios sao

de equilıbrio (o sistema tem tempo para se reajustar as novas condicoes) e e reversıvel

porque a operacao inversa e possıvel. Todos os processos reversıveis sao quase-estaticos.

Um cilindro com um embolo movel contem um gas – por exemplo, um gas ideal. Puxando

lentamente o embolo realiza-se um processo uma vez que ha alteracao do volume do sis-

tema. Se considerarmos que a temperatura e mantida constante durante o processo,

19

Page 20: Energia (Apontamentos)

usando um banho termico, ter-se-a a representacao do processo no diagrama P V como

se mostra na Fig. 6. A curva e uma hiperbole como se ve da equacao dos gases perfeitos,

Eq. (7). A representacao da Fig. 6 so e possıvel porque os estados intermedios sao de

equilıbrio.

P

V0 V 1

P 1

T 1 = T 2

1

V 2

P 22

( P 2 , V 2 )( P 1 , V 1 )

Figura 6: Expansao isotermica de um gas perfeito.

O processo e quase estatico porque os estados intermedios sao de equilıbrio (o sistema

tem tempo para se reajustar as novas condicoes) e e reversıvel porque se pode realizar a

operacao inversa, empurrando o cilindro lentamente.

b) Processos quase-estaticos e irreversıveis

Consideremos um sistema semelhante ao descrito anteriormente na Fig. 5, consistindo

de dois corpos em contacto dentro de um isolador termico, mas em que agora a superfıcie

de separacao entre os dois subsistemas em vez de ser perfeitamente permeavel a fluxos

de calor, e quase-adiabatica, quer dizer apenas permite um fluxo de calor muito pequeno

(infinitesimal). Entao o processo sera quase-estatico, porque se realiza lentamente, mas

e irreversıvel, uma vez que, aumentando ligeiramente a temperatura do subsistema a

temperatura mais baixa nao se consegue inverter o fluxo de calor.

c) Processos irreversıveis e nao quase-estaticos

Um exemplo obtem-se quando se puxa rapidamente o embolo do cilindro da Fig. 6.

Outro exemplo e o processo descrito na Fig. 5, no qual se atinge finalmente o equilıbrio

termico. E impossıvel a situacao inversa: um corpo, inicialmente a temperatura uniforme,

nao se separa espontaneamente em duas partes a temperaturas diferentes.

Os processos nao quase-estaticos, como estes, nao podem evidentemente ser represen-

tados em diagramas porque o sistema ou seus subsistemas nao tem bem definidas todas

as suas propriedades termodinamicas.

20

Page 21: Energia (Apontamentos)

Finalmente deve dizer-se que a distincao de processos em reversıveis e irreversıveis e

de importancia capital no quadro da segunda lei. E para os processos reversıveis que a en-

tropia se mantem constante, enquanto cresce necessariamente nos processos irreversıveis,

admitindo em ambos os casos que o sistema se encontra isolado. Assim, o sistema no

estado final da Fig. 5 tem mais entropia do que na situacao inicial.

Os processos podem ainda classificar-se de acordo com uma propriedade que porven-

tura seja mantida constante. Para processos reversıveis num gas ideal podemos considerar,

entre outros, os seguintes processos, que se representam na Fig. 7:

– Processos isocoricos (V = Cte)

– Processos isobaricos (P = Cte)

– Processos isotermicos (T = Cte)

– Processos adiabaticos ou isoentropicos (S = Cte).

Os processos adiabaticos sao aqueles que ocorrem em sistemas protegidos por fron-

teiras adiabaticas, ou seja, fronteiras que impecam qualquer fluxo de calor de ou para a

vizinhanca.

Poder-se-iam ainda acrescentar outros processos.

V0

V = C t e S = C t eT = C t e

P = C t e

P

Figura 7: Exemplos de processos em que uma propriedade se mantem constante. Os processosa temperatura constante e a entropia constante referem-se a um gas ideal.

21

Page 22: Energia (Apontamentos)
Page 23: Energia (Apontamentos)

CAPITULO 3

TEMPERATURA, LEI ZERO E EQUACOES DE ESTADO

3.1 Temperatura e Princıpio Zero

O conceito de temperatura teve uma origem antropica. As sensacoes de quente e frio

foram desde sempre experimentadas pelo corpo humano. Com o advento das ciencias

naturais procurou dar-se a essa distincao subjectiva entre quente e frio um caracter quan-

titativo. Afirmou Lord Kelvin numa conferencia proferida, em 1883, no Instituto Britanico

dos Engenheiros Civis:

Quando se pode medir aquilo de que se esta a falar e expressa-lo em numeros, entao

sabe-se alguma coisa sobre isso; mas quando nao se pode medir, quando nao se pode

expressar em numeros, o nosso conhecimento e escasso e insatisfatorio.

A temperatura e a propriedade dos sistemas termodinamicos que permite quantificar

as nocoes tacteis de quente e frio. Permite que esses dados sensoriais sejam expressos em

numeros.

Em Termodinamica a temperatura e introduzida por meio do conceito de equilıbrio

termico e a consistencia da sua definicao pressupoe o chamado Princıpio Zero: todos os

sistemas em equilıbrio termico com um sistema de referencia tem em comum o valor de

uma propriedade — a temperatura. Um termometro em equilıbrio termico com um sistema

regista a temperatura deste. Sem o Princıpio Zero a Termometria, ciencia e tecnica das

medidas de temperatura que discutiremos na proxima seccao.

Tal como foi descrito no Cap. 2, se colocarmos dois corpos em contacto, um quente

e um frio, o “corpo frio aquece”e o “corpo quente arrefece”ate se atingir o estado de

Page 24: Energia (Apontamentos)

equilıbrio termico, caracterizado por uma temperatura uniforme para o sistema total. O

que acontece durante o processo de estabelecimento do equilıbrio termico e a ocorrencia

de um fluxo de calor do corpo a temperatura mais elevada (“o quente”) para o corpo a

temperatura mais baixa (“o frio”). Note-se que o conceito de calor, que so mais adiante

definiremos formalmente (para ja a ideia intuitiva e suficiente), diz respeito a um processo

e nao a um estado. O calor nao e uma propriedade de um sistema, mas sim uma grandeza

fısica que se associa a uma mudanca de estado. Fica desde ja bem nıtida a diferenca entre

calor e temperatura: dois corpos em equilıbrio termico estao a mesma temperatura; se

nao estiverem a mesma temperatura ocorrera um fluxo de calor de um para outro.

A definicao de temperatura que foi apresentada e compatıvel com as observacoes ex-

perimentais e esse facto encontra-se expresso na Lei Zero da termodinamica que, numa

formulacao mais moderna da que a que foi apresentada no Capıtulo 1, se pode enunciar:

Existe uma grandeza escalar, denominada temperatura, que e uma propriedade (in-

tensiva) dos sistemas termodinamicos em equilıbrio, tal que a igualdade da temper-

atura e a condicao necessaria e suficiente de equilıbrio termico.

Vamos de seguida descrever o conteudo da lei zero, uma vez que ela e preliminar

na formulacao rigorosa da termodinamica macroscopica. Consideremos um corpo A a

temperatura TA. O corpo A e colocado em contacto com um corpo C e verifica-se que ha

equilıbrio termico. Entao, por definicao de temperatura, os dois corpos estao a mesma

temperatura:

TA = TC . (11)

Tomemos agora um outro corpo B, que se poe em contacto com o corpo C. Constata-se

experimentalmente a existencia de equilıbrio termico e pode entao tambem dizer-se que

os corpos B e C estao a mesma temperatura:

TB = TC . (12)

Uma consequencia matematica necessaria e que os dois corpos A e B, que estiveram

em contacto com o corpo C, estao a mesma temperatura:

TA = TB. (13)

Para se averiguar se a definicao de temperatura em termos do equilıbrio termico e

consistente, so tem de se verificar experimentalmente a ocorrencia ou nao de equilıbrio

termico, quando os corpos A e B sao postos em contacto dentro de uma fronteira

adiabatica. A experiencia confirma que ha efectivamente equilıbrio termico, o que sig-

nifica que o equilıbrio termico goza da propriedade transitiva: dois corpos em equilıbrio

termico com um terceiro estao tambem em equilıbrio termico entre si.

Este e um dos possıveis enunciados da lei zero sem a qual a termometria, de que

falaremos a seguir, seria um absurdo completo.

24

Page 25: Energia (Apontamentos)

Importa ainda referir, a proposito do Princıpio Zero que e ele que assegura que existe

uma equacao de estado termica para cada sistema em equilıbrio, embora nao especifique

a respectiva forma. Esta equacao de estado permite relacionar variacoes de grandezas

termodinamicas. Embora nao facamos aqui a demonstracao rigorosa desta afirmacao,

tomemos um exemplo que a ajuda a ilustrar. Consideremos de novo um sistema gasoso

contido num cilindro munido de um pistao e suponhamos que o sistema, no estado de

equilıbrio (V, P ), esta em equilıbrio termico com um outro sistema, que vamos denomi-

nar sistema de referencia ou termometro. Este estado de equilıbrio pode representar-se

num diagrama de Clapeyron. Movendo-se o pistao, o sistema atinge um outro estado

de equilıbrio, com coordenadas (V ′, P ′), que admitimos estar em equilıbrio termico com

o sistema de referencia, que permaneceu inalterado. De acordo com o Princıpio Zero,

os estados (V, P ) e (V ′, P ′) tem entao a mesma temperatura. Se se procurarem outros

estados (V ′′, P ′′), etc., todos em equilıbrio termico com o sistema de referencia, o lugar

geometrico de todos esses estados, por exemplo num diagrama de Clapeyron, designa-se

por isotermica como vimos no capıtulo anterior (ver Fig. 6 para o caso de um gas ideal).

A temperatura e dada por T = T (V, P ) = T (V ′, P ′) = t(V ′′, P ′′) = ... e e, portanto, uma

funcao do volume e da pressao. Para o gas ha uma relacao funcional entre V , P e T ,

f(P, V, T ) = 0 , (14)

que e a equacao de estado termica. A existencia de uma equacao deste tipo, que da uma

propriedade de equilıbrio em funcao de outras, e geral, nao se limitando aos sistemas

PV T . A existencia da equacao de estado e consequencia do Princıpio Zero.

3.2 Temperaturas empıricas e termometria

A medicao de temperaturas faz-se com a ajuda de termometros, cujos princıpios e

tecnicas de funcionamento sao estudados na termometria.

Ha varios tipos de termometros, mas o fundamental em todos eles e que existe uma

propriedade facilmente mensuravel, que varia com a temperatura, chamada propriedade

termometrica. A Tab 2 resume os principais tipos de termometro e as propriedades ter-

mometricas respectivas. O valor da temperatura medida com um destes termometros

chama-se temperatura empırica, que se deve distinguir da chamada temperatura ter-

modinamica ou absoluta que so pode ser formalmente introduzida no quadro da Segunda

Lei.

A relacao entre duas temperaturas empıricas medidas com um destes tipos de

termometro define-se como a razao dos valores respectivos da propriedade termometrica

em causa, X. Normalmente, para se poder ter um valor numerico para uma destas temper-

aturas empırica — que passaremos aqui a designar por t para a distinguir da temperatura

25

Page 26: Energia (Apontamentos)

Termometro Propriedade termometrica X

de lıquido volume Vde resistencia resistencia electrica Rtermopar forca electromotriz Ede gas (a volume constante pressao P

Tabela 2: Tipos de termometros e respectivas propriedades termometricas, X.

absoluta que se designa por T —, atribui-se um valor arbitrario a outra, que se escolhe

para ponto de referencia. Para ponto de referencia e norma escolher-se o ponto triplo

da agua. Designando essa temperatura de referencia por t3, a equacao da termometria

escreve-se

t

t3=

X

X3

. (15)

O ponto de referencia pode ser outro qualquer mas, de facto, e o ponto triplo da agua

o mais utilizado. No ponto triplo coexistem em equilıbrio termodinamico (num vaso de

onde se extraiu o ar) agua lıquida, gelo e vapor de agua, o que so ocorre a pressao de 610,5

Pa, equivalente a 0,006 atm. A temperatura do ponto triplo e t3 = 273, 16 K (=0,01 ◦C

e a Fig. 8 mostra o vaso, de onde inicialmente se extraiu o ar, e em cujo interior coexiste

agua lıquida em equilıbrio com gelo e vapor.

Á g u al í q u i d a

G e l o

C a m a d a d e á g u al í q u i d a

V a p o r

T e r m ó m e t r o

Figura 8: Vaso para obter o ponto triplo da agua. Ao vaso, contendo agua pura, e inicialmenteextraıdo o ar. Colocando uma mistura refrigerante na parte interior do vaso, forma-se umacamada de gelo. Retirando a mistura refrigerante e colocando um termometro, ocorre a fusao deuma fina camada de gelo junto da parede. Quando as tres fases da agua, solida, lıquida e gasosa,coexistem no interior do vaso, o sistema esta no ponto triplo e a sua temperatura e 0,01 ◦C.

26

Page 27: Energia (Apontamentos)

A habitual escala Celsius foi estabelecida com base em dois pontos de referencia: o

ponto do gelo (tg = 0 ◦C) e o ponto do vapor (tv = 100 ◦C). Estes valores foram atribuıdos

arbitrariamente para que a escala fosse centesimal. Com dois pontos fixos, a Eq. (15) nao

e valida (aplica-se apenas quando ha um so ponto fixo) e a temperatura e entao dada por

t = 100X −Xg

Xv −Xg

◦C , (16)

onde Xg e Xv sao os valores que a propriedade termometrica do termometro utilizado

toma nos pontos fixos e X o seu valor a temperatura que se deseja medir.

Vejamos mais em pormenor como funcionam os varios tipos de termometros:

a) Termometro de lıquido

E talvez o mais conhecido, devido a sua utilizacao quotidiana em meteorologia, no

diagnostico medico, etc.

A propriedade termometrica e o volume de lıquido encerrado no vidro, por exemplo,

mercurio. A agua, como foi dito, nao e uma boa substancia termometrica. Alem de

congelar a 0 ◦C, sendo por isso inutil um termometro de agua abaixo dessa temperatura,

a razao principal da inutilidade desse termometro e a variacao nao monotona do volume

da agua com a temperatura. O volume massico da agua a pressao atmosferica (101,3 kPa)

e dado por

v = ρ−1 = 1− 0, 00006105 t + 0, 000007733 t2 (m3/kg) (17)

em funcao da temperatura Celsius t.

Tal como a Fig. 9 ilustra, a massa volumica da agua tem o maximo a temperatura de

3,98 ◦C, pelo que o volume de uma certa massa de agua e entao mınimo. Se se marcasse

o zero do termometro de agua quando esta em contacto com uma mistura de agua e gelo

em equilıbrio a pressao atmosferica, entao a temperatura de 4 ◦C seria negativa lida no

termometro...

0 2 4 6 8

0,999980

0,999960

0,999940

0,999920

0,999900

/ g cm-3

t / ºC

H2O

r

Figura 9: Massa volumica da agua em funcao da temperatura Celsius.

27

Page 28: Energia (Apontamentos)

b) Termometro de resistencia

Baseia-se no facto de a resistencia de um condutor ou semicondutor variar com a tem-

peratura. A baixas temperaturas, utiliza-se um fio de platina ao passo que, a temperaturas

altas, se utiliza um semicondutor (germanio dopado, por exemplo).

c) Termopar

O termopar baseia-se no chamado efeito Seebeck, que consiste no aparecimento de uma

forca electromotriz quando se juntam dois metais ou ligas metalicas de natureza diferente,

se as juncoes estiverem a temperaturas diferentes. Normalmente utilizam-se termopares

platina – liga de platina e rodio, cobre – constantan (liga de cobre e nıquel) e cromel

(liga de nıquel e cromio) – alumel (liga de nıquel, alumınio e manganesio). A diferenca

de potencial que se estabelece, apesar de pequena, pode ser facilmente medida. Uma

vez que e viavel efectuar medidas de resistencias e de diferencas de potencial com grande

precisao, os termometros de resistencia e os termopares sao muito usados nos laboratorios

e na industria.

Na utilizacao de todos estes tipos de termometros surge um grande problema: na

pratica verifica-se que termometros diferentes indicam temperaturas empıricas diferentes

para o mesmo corpo! Por exemplo, consideremos dois termometros de lıquido, um com

alcool e outro com mercurio, e marquemos o 0 e o 100 das respectivas escalas, colo-

cando-os em contacto com agua e gelo em fusao a pressao de 1 atm (ponto do gelo ou

ponto de fusao normal) e agua em ebulicao a pressao de 1 atm (ponto do vapor ou ponto

de ebulicao normal). O intervalo entre as duas marcas e dividido em 100 partes iguais.

Agora coloquemos o termometro de mercurio em contacto com agua quente e suponhamos

que ele marca 50. O termometro de alcool, colocado simultaneamente no mesmo banho,

apenas marca 48, 5!

Numa outra experiencia verifica-se que um termometro de resistencia de platina indica

o valor Rv/R3 = 1, 39 para a razao das resistencias correspondentes ao ponto de vapor e

ao ponto triplo da agua que e, portanto, de acordo com (15), a razao das temperaturas

empıricas daqueles pontos. Mas, num termopar, a correspondente razao das propriedades

termometricas e Ev/E3 = 1, 51.

Fica-se perplexo perante esta disparidade de resultados... A Fısica baseia-se na uni-

versalidade das medicoes. Para salvar a ciencia termometrica e necessario um termometro

padrao que deve ser independente da substancia termometrica. O termometro de gas, que

vamos estudar na proxima seccao, e universal.

3.3 Termometro de gas (a volume constante)

O termometro de gas a volume constante esta representado esquematicamente na

Fig. 10. O gas esta contido num recipiente e a pressao que ele exerce pode ser medida

com um manometro de mercurio.

28

Page 29: Energia (Apontamentos)

m e r c ú r i o

g á s0

- 5

5

1 0

1 5

h

Figura 10: Termometro de gas a volume constante.

Se inicialmente o gas ocupar um certo volume, indicado por uma marca no tubo, o

gas expande-se com o aumento de temperatura, obrigando o mercurio a descer. Elevando

o reservatorio de mercurio na outra extremidade, pode obrigar-se o gas a ficar no volume

inicial. A pressao exercida pelo gas e entao medida pela altura de mercurio acima desse

nıvel. Pela importancia que o termometro de gas assume em Termodinamica, vamos

discuti-lo em pormenor.

O estudo dos gases permitiu concluir que eles podiam ser usados como substancias

termometricas. Para tal procede-se do modo que passamos a descrever. Introduz-se uma

determinada quantidade de gas, por exemplo ar, num balao. O gas fica fechado devido

ao mercurio que e colocado no tubo em U que faz de manometro e permite calcular a

pressao exercida pelo gas (Fig. 10). Poe-se o balao em contacto com um sistema no ponto

do vapor. Adicionando mercurio no manometro, ou subindo ou baixando o reservatorio

de mercurio garante-se que o volume de gas no balao permanece constante (mercurio

no ramo esquerdo do tubo em U sempre na marca 0). Regista-se entao a pressao que

o manometro indica, Pv. Manometros deste tipo nao medem directamente a pressao,

mas, sim, as diferencas de pressao3 entre o gas contido no balao e a pressao atmosferica,

atraves da diferenca de altura, h, dos dois nıveis superiores do mercurio no tubo em U;

essa diferenca de pressao e ∆P = ρHg g h. De seguida, coloca-se o balao em contacto

com um sistema no ponto triplo ate se atingir o equilıbrio. Anota-se a pressao indicada,

P3. Tem-se assim um primeiro par de valores (Pv, P3). Podemos extrair um pouco de gas

do balao e repetir a operacao. Medem-se agora novas pressoes (P ′v,P

′3). Naturalmente,

havendo menos gas, as pressoes sao menores do que as pressoes correspondentes anteriores.

3A pressao atmosferica mede-se com um barometro, e, por meio de um calculo simples, calcula-se apressao do gas.

29

Page 30: Energia (Apontamentos)

A operacao pode repetir-se com quantidades de gas cada vez menores, obtendo-se pares

de pressoes (P ′′v , P ′′

3 ),..., (P nv , P n

3 ) com Pv > P ′v > ... > P n

v e P3 > P ′3 > ... > P n

3 .

Curiosamente, termometros de gas contendo diferentes gases (ar, hidrogenio, azoto,

oxigenio) fornecem tambem varios valores para essa razao Pv/P3 conforme a substancia

considerada e conforme a quantidade de gas contida no termometro (que pode ser avaliada

medindo a pressao do gas no ponto de referencia). A Fig. 11 e elucidativa.

1 , 3 6 9 0

1 , 3 6 8 0

1 , 3 6 7 0

1 , 3 6 6 0

1 , 3 6 5 0P 3 / t o r r

P v / P 3

1 0 0 0 2 5 0 5 0 0 7 5 0 0

O 2

N 2

H 2

A r

Figura 11: Para varios gases, mostram-se os valores lidos num termometro de gas a volumeconstante para a temperatura do vapor em condensacao em funcao da pressao P3 no pontotriplo.

Mas, da Fig. 11 conclui-se tambem que o termometro de gas fornece resultados in-

dependentes da substancia considerada se a pressao no ponto de referencia for muito re-

duzida, quer dizer, se a quantidade de gas contida no recipiente for pequena. Para baixas

pressoes, todos os gases se comportam da mesma maneira, pelo menos aproximadamente.

Pode-se extrapolar o grafico para a pressao nula, a qual e impossıvel de obter experimen-

talmente pois corresponde a ausencia de gas. O valor obtido para a temperatura empırica

do gas para o ponto de vapor e dado por

tv

t3= lim

P3→0

(Pv

P3

)

V

= 1, 3660, (18)

indicando o ındice V que as medidas sao tomadas mantendo o volume constante. Para se

saber tv e necessario dar um valor a t3. Como dissemos antes, a temperatura de referencia

foi, um tanto arbitrariamente, atribuıdo o valor

t3 = 273, 16 (19)

pelo que tv = 373, 15.

30

Page 31: Energia (Apontamentos)

Porque se fixou o ponto triplo da agua em 273,16? A razao e de ordem historica.

Como antes se disse, Celsius, astronomo sueco do seculo XVIII, propos uma escala de

temperaturas em que o 0 coincidia com o ponto de gelo e o 100 com o ponto de vapor

para a agua. A convencao internacional de se usar um unico ponto fixo (ponto triplo da

agua) data de 1954. Anteriormente usavam-se temperaturas empıricas do termometro de

gas baseadas em dois pontos fixos, precisamente os pontos escolhidos por Celsius. Ora,

para que o “tamanho”do grau da escala de temperaturas empıricas de gas coincidisse com

o tamanho do grau da escala de Celsius (note-se que o tamanho do grau e perfeitamente

arbitrario), e que o valor de t3 tem de ser 273,16. Este numero pode encontrar-se, da

resolucao de um sistemas de equacoes constituıdo pela eq. (18) e por

tv − t3 = 99, 99 (20)

(note-se que ponto de fusao do gelo e o ponto triplo da agua nao tem a mesma temperatura:

t3 − tg = 0, 01 graus (Celsius ou da escala empırica dos gases).

Para a temperatura empırica dos gases, a Eq. (15) passa a ser escrita na forma

tgas = 273, 16 × limP3→0

(P

P3

)

V

, (21)

sendo independente do gas em causa. Desta equacao conclui-se que existe um zero absoluto

de temperaturas empıricas dadas pelo termometro de gas (tgas ≥ 0) uma vez que nao ha

pressoes negativas.

Por outro lado, veremos mais tarde, como corolario da segunda lei da termodinamica,

que e possıvel definir uma escala de temperaturas que e universal e que se representa por

T . Essa escala, chamada de temperaturas absolutas ou termodinamicas, deve-se a Kelvin.

Provaremos nessa altura que a escala empırica do termometro de gas e a escala teorica de

Kelvin sao coincidem:

T = tgas . (22)

A unidade SI e o kelvin, cujo sımbolo e K. O kelvin define-se como sendo 1/273,16

da temperatura termodinamica do ponto triplo da agua. A relacao entre a escala de

temperaturas termodinamicas, e a escala de temperaturas Celsius e dada pela seguinte

formula:

t = T − 273, 15 (23)

uma vez que 273,15 e a temperatura do ponto de gelo. Uma diferenca de temperaturas e

indistintamente expressa em kelvin ou em graus Celsius.

O termometro de gas serviu para mostrar que existe algo de fundamental e universal

na propriedade temperatura. No entanto ha dificuldades no emprego de tal genero de

termometros. O seu uso e moroso e nao e possıvel para todos os valores da temperatura.

Como a temperatura termodinamica so pode ser introduzida formalmente no quadro da

Segunda Lei, antecipando desde ja que ela vai coincidir com a temperatura empırica dos

termometros de gas, vamos passar a designar esta ultima tambem por T .

31

Page 32: Energia (Apontamentos)

3.4 Equacoes de estado

Vamos estudar equacoes de estado de sistemas PV T , tais como os fluidos (gases e

lıquidos a pressao uniforme) e os solidos. Em sistemas deste tipo, a equacao de estado faz

corresponder a valores de pressao e volume um so valor da temperatura.

Vimos na seccao anterior que ha caracterısticas comuns a todos os gases quando sub-

metidos a pressoes muito baixas. De facto, o seu comportamento pode ser bem descrito

pela equacao dos gases perfeitos. Esta equacao constitui uma aproximacao mais ou menos

grosseira ao comportamento dos gases reais. Outras equacoes de estado, como a de van

der Waals, permite um melhor ajuste as observacoes experimentais relativas a um gas e

possui ainda o merito de dar conta, pelo menos qualitativamente, de transicoes de fase

gas-lıquido.

Contudo, as equacoes de estado mais adequadas na descricao das substancias que

ocorrem na natureza sao bem mais complexas que as correspondentes aos dois modelos

mencionados (gas perfeito e de van der Waals).

Vamos de seguida estudar equacoes de estado relativas a:

1) Gases, no quadro da equacao dos gases perfeitos.

2) Fluidos, no quadro da equacao de van der Waals.

3) Lıquidos e solidos.

3.4.1 - Gases e a equacao dos gases perfeitos

Comecemos por notar que na equacao dos gases perfeitos ou ideais

Pv = RT, (24)

em que v = V/n e o volume molar, estao reunidas tres leis fısicas que sao anteriores ao

estabelecimento da termodinamica como ciencia:

a) Lei de Boyle (ou de Boyle-Mariotte)

Aplica-se a processos isotermicos. Se T =Cte,

Pv = Cte, (25)

sendo a pressao inversamente proporcional ao volume (a curva isotermica num diagrama

PV e uma hiperbole).

b) Lei de Charles e Gay-Lussac

Aplica-se a processos isobaricos. Se P=Cte,

v

T= Cte (26)

e o volume e directamente proporcional a temperatura absoluta (a curva isobarica num

diagrama V T e uma recta que passa pela origem).

32

Page 33: Energia (Apontamentos)

c) Lei de Avogadro

Em condicoes PTN (pressao e temperatura normais, i.e. P = 1 atm e T = 273, 15 K),

o volume ocupado por uma mole de um gas ideal e v = 22, 4 × 10−3 m3 mol−1, como e

facilmente verificavel.

A equacao dos gases perfeitos pode ser representada graficamente por uma superfıcie

num espaco a tres dimensoes cujos eixos coordenados sao P , V e T . A Fig. 12 mostra a

superfıcie de estado de um gas perfeito. Sobre essa superfıcie estao indicadas curvas que

descrevem processos (reversıveis, evidentemente) isotermicos, isobaricos e isocoricos.

P

0 T

V

Figura 12: Superfıcie PV T para um gas ideal.

Estes processos estao tambem representados na Fig. 13, em diagramas planos que sao

obtidos por projeccao das linhas da Fig. 12.

P

V0( a ) ( b ) T

P

Figura 13: Projeccao da superfıcie PV T para um gas ideal sobre (a) o plano PV e (b) o planoPT .

33

Page 34: Energia (Apontamentos)

O gas perfeito e uma primeira aproximacao a realidade complexa que e um gas real,

sendo essa aproximacao tanto melhor quanto menor for a pressao. A Fig. 14 ilustra bem o

facto de o gas perfeito nao ser mais do que uma idealizacao de comportamentos detectados

experimentalmente. Nessa figura representa-se Pv/T em funcao da pressao e verifica-se

que esta quantidade se afasta do valor constante R mas tende para ele no limite de baixas

pressoes. O afastamento relativamente a R tambem e maior para menores temperaturas.

O modelo de gas ideal e uma aproximacao a um gas real tanto melhor quanto menor for

a pressao e maior a temperatura.

P

1 0

8

6

4

2

2 4 6 8 x 1 0 7 / P a

P v / T( J k m o l - 1 K - 1 )

R g á s i d e a l T > T '

T '

Figura 14: A quantidade Pv/T para um gas real, para varios valores da temperatura, emfuncao da pressao. Quando P → 0, Pv/T tende para um mesmo valor R, independentementeda temperatura. Para o gas ideal Pv/T e a constante R.

E possıvel “deduzir”a equacao dos gases perfeitos no quadro da teoria cinetica dos

gases que poe o foco no movimento molecular. A teoria cinetica fornece uma especificacao

microscopica do significado de gas perfeito baseando-se no seguinte modelo:

i) E um gas constituıdo por um grande numero de partıculas chamadas moleculas.

ii) O movimento das moleculas obedece a lei de Newton.

iii) As moleculas sao pontuais.

iv) Nao existem forcas intermoleculares a nao ser no instante das colisoes, que se

consideram elasticas (i.e. processam-se sem perdas de energia cinetica).

A partir das quatro hipoteses anteriores vamos mostrar como se pode chegar a equacao

dos gases perfeitos. Este estudo tambem servira para alargar o conceito de temperatura,

fornecendo-lhe uma interpretacao microscopica.

Consideremos uma caixa cubica de aresta ` no interior da qual se encontram moleculas

de massa m (Fig. 15). A pressao e devida ao embate das moleculas contra as paredes da

caixa. Designemos a velocidade de uma molecula por ~v = (vx, vy, vz).

No choque com a parede 1, que consideramos ser perfeitamente elastico, a componente

segundo o eixo dos xx da velocidade e invertida, enquanto as restantes nao sao alteradas.

34

Page 35: Energia (Apontamentos)

x

y

z

1

2

l

Figura 15: Recipiente cubico contendo gas a baixa pressao.

Portanto, a variacao do momento linear da molecula devido ao choque na face 1 e

∆p = pf − pi = −mvx −mvx = −2mvx (27)

e, uma vez que ha conservacao de momento linear total, −∆p e o momento linear trans-

ferido para a parede.

Se suposermos que a molecula bate na face oposta 2 e regressa a 1 sem colidir com

qualquer outra partıcula, o tempo total entre duas passagens por 1 e ∆t = 2`vx

. Logo, o

momento linear transferido por unidade de tempo que, de acordo com a segunda lei de

Newton, tem o significado de uma forca, e

F =|∆p|∆t

=mv2

x

`. (28)

A pressao e o quociente da forca resultante, i.e. da forca devida a todas as partıculas,

pela area total da parede:

P =1

`2

N∑

i=1

Fi =m

`3

N∑

i=1

v2x,i =

mN

`3v2

x = ρ v2x, (29)

com v2x = 1

N

∑Ni=1 v2

x,i a media do quadrado da componente da velocidade segundo o eixo

dos xx, e ρ a densidade do sistema (mN e a massa total).

Ora, o quadrado da velocidade e dado pela expressao v2 = v2x + v2

y + v2z e, efectuando

a media,

v2 = v2x + v2

y + v2z . (30)

Como existe isotropia, quer dizer, como as propriedades do espaco sao identicas em todas

as direccoes, as componentes segundo os tres eixos estao em igualdade de circunstancias,

v2x = v2

y = v2z e, portanto, v2 = 3 v2

x. Da eq. (29) obtem-se

P =1

3ρ v2, (31)

35

Page 36: Energia (Apontamentos)

A pressao e, pois, proporcional a densidade e a media do quadrado da velocidade das

moleculas. Este resultado nao depende da aproximacao de ausencia de colisoes entre as

moleculas, sendo valido se se considerarem colisoes instantaneas e elasticas no interior da

caixa.

A equacao (31) relaciona uma quantidade macroscopica, P , com uma quantidade

microscopica, v2. A fim de ficarmos com ideia dos valores das velocidades moleculares,

tomemos o exemplo do hidrogenio em condicoes PTN. Nestas condicoes, a densidade do

hidrogenio e ρ = 8, 99 × 10−2 kg m−3 e o valor da raiz media quadratica (raiz quadrada

da media do quadrado da velocidade) e

vrmq =√

v2 =

√3 P

ρ= 1840 m s−1. (32)

A Tab. 3 mostra um conjunto de valores de velocidades moleculares medias corres-

pondentes a diferentes gases. Estes valores sao pouco superiores aos da velocidade do som

nesse meio: por exemplo para o hidrogenio, a velocidade do som em condicoes PTN e de

1286 m s−1.

Gas vrmq / m s−1

H2 1840He 1300O2 650Ar 410Vapor de benzeno 290Vapor de mercurio 180Gas de electroes 100 000

Tabela 3: Valores tıpicos de vrmq.

Multiplicando a expressao (31) pelo volume obtem-se

PV =1

3ρ v2 V =

1

3Nm v2 (33)

que tem uma forma semelhante a equacao dos gases perfeitos. Se compararmos as duas

equacoes (24) e (33) podemos encontrar um significado de base microscopica para a tem-

peratura de um gas:1

3Nm v2 = nRT. (34)

36

Page 37: Energia (Apontamentos)

Como NA = N/n, e definindo a constante de Boltzmann como a razao entre a constante

dos gases perfeitos e a de Avogadro,

kB =R

NA

= 1, 381× 10−23 J K−1 (35)

obtem-se1

3mv2 = kBT. (36)

A energia cinetica media de translacao de uma molecula e, por consequencia, proporcional

a temperatura absoluta:1

2mv2 =

3

2kBT. (37)

No mesmo modelo de gas ideal, em que ha apenas energia cinetica molecular e nenhuma

energia potencial, verifica-se que a energia total depende unicamente da temperatura.

Neste caso, e so neste caso, pode identificar-se temperatura com energia cinetica media,

mas deve notar-se que esta nao e uma definicao de temperatura.

3.4.2 - Fluidos e equacao de van der Waals

A equacao dos gases perfeitos, no domınio da sua validade, pretende abranger todos

os gases, pelo que a unica constante que aı figura e a constante universal, R. A equacao

de van der Waals pretende representar melhor o comportamento de gases reais, nela

figurando dois parametros, aos quais sao dados valores empıricos adequados para cada

gas. As modificacoes introduzidas relativamente a eq. (24) consistem na substituicao da

pressao e do volume por uma pressao e um volume efectivos definidos atraves de

vef = v − b (38)

Pef = P +a

v2, (39)

com a e b constantes para cada gas. Entao, de Pef vef = R T resulta

(P +

a

v2

)(v − b) = R T. (40)

Esta equacao foi proposta em 1870 pelo fısico holandes J.D. van der Waals. Na Tab. 4

listam-se os valores de a e b para algumas substancias em unidades tais que, em (40), P

vem em N m−2, v em m3 kmol−1, T em K e R = 8, 31× 103 J kmol−1 K−1.

O lado esquerdo da Fig. 16 mostra uma superfıcie de van der Waals, com a indicacao

de curvas isotermicas. A isotermica desenhada com linha mais grossa esta representada

no lado direito da mesma figura, onde tambem se mostra a isotermica de um gas ideal a

mesma temperatura..

Das expressoes (38) constata-se que o volume efectivo e menor do que o volume total

acessıvel e que existe uma diferenca entre a pressao efectiva e a pressao verdadeira, que

37

Page 38: Energia (Apontamentos)

a b

Substancia (J m3 kmol−2) (m3 kmol−1)

He 3, 44× 103 0,0234H2 24, 8× 103 0,0266O2 138× 103 0,0318CO2 366× 103 0,0429H2O 580× 103 0,0319Hg 292× 103 0,0055

Tabela 4: Constantes a e b na equacao de van der Waals.

P

T

V

p c

P

V

v a n d e r W a a l s

g á s i d e a l

( l í q u i d o - g á s )

Figura 16: Superfıcie PvT para um gas de van der Waals, indicando-se o ponto crıtico, pc (veradiante). No lado direito representam-se isotermicas de um gas de van der Waals e de um gasperfeito para uma mesma temperatura.

e inversamente proporcional ao quadrado do volume especıfico molar. A razao ultima

destes factos pode tambem ser encontrada no quadro da teoria cinetica dos gases. O

modelo de van der Waals difere do do gas ideal por se relaxarem as hipoteses iii) e iv)

antes enunciadas para se deduzir a equacao do gas ideal.

Quanto ao item iii), o facto de as moleculas terem um certo volume faz diminuir

o volume total disponıvel para o movimento molecular. Este fenomeno e quantificado

atraves do parametro b, denominado covolume. Note-se que e devido a existencia de

forcas fortemente repulsivas entre as moleculas que estas nao podem ocupar o espaco

umas das outras. A consideracao de uma molecula como uma esfera rıgida simula bem

esse efeito.

No que diz respeito ao item iv), a modificacao relativa a pressao e tambem facil de

compreender se se atender as forcas atractivas entre as moleculas (ver Fig. 17 para

38

Page 39: Energia (Apontamentos)

r

V

r e p u l s ã o

a t r a c ç ã o

Figura 17: Energia potencial de duas moleculas em funcao da distancia entre elas.

clarificar a distincao entre forcas atractivas e forcas repulsivas). Uma molecula perto da

superfıcie de um vaso tem muito mais moleculas vizinhas do lado do interior do vaso.

Assim, nem todas as forcas atractivas a que esta sujeita essa molecula se anulam, sendo o

efeito total uma forca que puxa a molecula da superfıcie para o interior do vaso. A forca

exercida pela molecula na parede e portanto reduzida, e a pressao e concomitantemente

reduzida, relativamente ao modelo do gas ideal corrigido pela introducao do volume finito

das moleculas. A diminuicao da pressao e proporcional a densidade do sistema, sendo o

efeito mais notorio para gases densos. A pressao de um gas denso e, pois, aproximada por

P =R T

v − b− a

v2, (41)

em que o termo a/v2 e chamado pressao interna. Repare-se que a pressao interna e

proporcional ao quadrado da densidade e nao simplesmente a densidade.

Sendo a = 0 e b = 0 (as moleculas sao tomadas como pontuais e desprezam-se as forcas

atractivas entre elas), reencontra-se a equacao dos gases perfeitos a partir da equacao do

gas de van der Waals.

A equacao (40) transforma-se em

Pv3 − (Pb + RT ) v2 + av − ab = 0 (42)

que, para valores fixos de P e T , e uma equacao cubica em v, que admite tres raızes. So

uma das raızes tem de ser necessariamente real.

A Fig. 18 representa uma famılia de curvas isotermicas de van der Waals num dia-

grama de Clapeyron. Verifica-se que, para baixas temperaturas (T1, por exemplo) ha tres

raızes reais, para um certo intervalo de valores de P . A temperatura Tc, denominada de

temperatura crıtica, as raızes reais sao iguais. Acima dessa temperatura (a temperatura

T2, por exemplo) ha apenas uma raiz real.

O ponto crıtico assinalado nas Figs. 16 e 18 (pc) e o ponto em que as tres raızes

reais da equacao (42) coincidem. Este ponto e simultaneamente um ponto estacionario

39

Page 40: Energia (Apontamentos)

P cp c T = T c

V c V

T 1 < T c

T 2 > T c

P

Figura 18: Isotermicas para gas de van der Waals, com indicacao do ponto crıtico, pc.

(e nula a primeira derivada parcial de P relativamente a v) e um ponto de inflexao (e

igualmente nula a segunda derivada parcial da isotermica crıtica). Para temperaturas

acima da temperatura crıtica, as isotermicas sao curvas monotonamente decrescentes, ou

seja, as suas derivadas sao sempre negativas. Abaixo da temperatura crıtica, a curva

isotermica mostra dois pontos estacionarios, sendo um mınimo local e outro um maximo

local.

Para o ponto crıtico (∂P

∂v

)

T

= 0;

(∂2P

∂v2

)

T

= 0. (43)

De (41) vem

(∂P∂v

)T

= − RT

(v − b)2+

2a

v3(44)

(∂2P∂v2

)T

=2RT

(v − b)3− 6a

v4(45)

pelo que RTc

(vc−b)2= 2a

v3c

e 2RTc

(vc−b)3= 6a

v4c

donde

vc = 3 b

Tc = 8 a27 R b

Pc = a27 b2

·(46)

Obtiveram-se, assim, os valores das propriedades no ponto crıtico em funcao dos

parametros a e b. Uma maneira de ver como a equacao de van der Waals se afasta

da equacao de estado de uma substancia real, pelo menos no ponto crıtico, consiste em

considerar a razao adimensional Pc vc/R Tc = 3/8 = 0, 375, que e independente de a e b

40

Page 41: Energia (Apontamentos)

Substancia Pcvc/RTc

He 0.327H2 0.306O2 0.292

CO2 0.277H2O 0.233Hg 0.909

Tabela 5: Valores experimentais de Pcvc/RTc.

(e, portanto, da substancia considerada), e comparar com os valores obtidos experimen-

talmente mostrados na Tab. 5.

Conclui-se que para o helio a diferenca nao e muito grande, mas para o mercurio ela

ja e bem evidente.

Cabe aqui fazer uma breve referencia a outras equacoes de estado porventura mais

adequadas a descricao de gases reais, nomeadamente a equacao de Berthelot (1899), que

difere da de van der Waals pela introducao de uma dependencia explıcita da temperatura

na pressao efectiva, (P +

a

Tv2

)(v − b) = RT ; (47)

e a equacao de Dieterici (1899)

P (v − b) = R T e−α/(v R T ). (48)

A equacao de van der Waals possui o grande merito de permitir descrever, ainda que

qualitativamente, transicoes de fase de gas para lıquido e vice-versa.

O estudo experimental detalhado da mudanca de fase lıquido–gas comecou com uma

serie de experiencias relativas a compressibilidade e a liquefaccao do dioxido de carbono

levadas a cabo por T. Andrews em meados do seculo passado. As suas principais con-

clusoes foram as seguintes (ver Fig. 19):

i) Acima da temperatura de cerca de 48 oC o CO2 assemelha-se a um gas perfeito;

ii) A 31,1 oC nao ha liquefaccao apesar de a isotermica ser muito distorcida relativa-

mente a de um gas ideal;

iii) Abaixo de cerca de 31 oC a liquefaccao ocorre sob o efeito da compressao e esta e

a primeira temperatura a que a liquefaccao e possıvel;

iv) A, digamos, 21 oC a compressao produz liquefaccao, ocorrendo um estagio in-

termedio em que as duas fases (lıquido e gas) coexistem.

41

Page 42: Energia (Apontamentos)

l í q u i d o - g á s

líquid

o

P

P c

VV c

5 0 , 0 º C

2 1 , 0 º C3 0 , 9 º C

g á s

Figura 19: Variacao da pressao P com o volume V para o CO2.

Vejamos como esta situacao encontrada no laboratorio pode ser explicada usando

a equacao de van der Waals. Acima do ponto crıtico, as isotermicas de van der Waals

aproximam-se das hiperboles dos gases ideais e a aproximacao e tanto melhor quanto mais

alta for a temperatura. Mas, abaixo da temperatura crıtica, a curva com um mınimo e

um maximo, e diferente da dos gases perfeitos. Esse comportamento deve ser interpretado

como a indicacao de uma transicao de fase. Para grandes volumes especıficos (pequenas

densidades) o sistema esta na fase de gas e para pequenos volumes especıficos (grandes

densidades) o sistema esta na fase de lıquido. Ora, a experiencia de Andrews revela que

durante uma transicao de fase de lıquido para gas os processos isotermicos sao tambem

isobaricos (ver Fig. 19). Este facto e bem conhecido: a pressao atmosferica, a ebulicao da

agua, alem de ser um processo isobarico e isotermico, pois a energia fornecida ao sistema

nao serve para elevar a temperatura mas sim para quebrar ligacoes e levar as moleculas da

fase lıquida para a fase gasosa. Ha uma construcao geometrica que permite representar o

patamar correspondente a transicao de fase. Consiste em tracar a isobarica-isotermica, de

tal maneira que as areas acima e abaixo da isotermica de van der Waals sejam exactamente

compensadas (ver as duas areas sombreadas na Fig. 18).

Na zona de patamar o sistema mostra simultaneamente as duas fases: o lıquido e o

gas estao em equilıbrio um com o outro. O patamar reduz-se a um ponto (ponto crıtico)

para a temperatura crıtica. Acima da temperatura crıtica e impossıvel mudar um gas num

lıquido por um processo isotermico. A Tab. 6 fornece uma serie de valores de propriedades

no ponto crıtico para varias substancias.

Note-se, no entanto, que a isotermica de van der Waals pode tambem representar

estados fısicos possıveis para o sistema. Assim, se se proceder a condensacao de um gas,

42

Page 43: Energia (Apontamentos)

Substancia Tc (K) Pc (N m2) vc (m3 kmol−1)

Helio 4 5,25 1,16 ×105 0,0578Helio 3 3,34 1,15 ×105 0,0726Hidrogenio 33,3 12,8 ×105 0,0650Azoto 126,2 33,6 ×105 0,0901Oxigenio 154,8 50,2 ×105 0,078Amonıaco 405,5 111,0 ×105 0,0725Freon 12 384,7 39,7 ×105 0,218Dioxido de carbono 304,2 73,0 ×105 0,094Dioxido de enxofre 430,7 77,8 ×105 0,122

Agua 647,4 209,0 ×105 0,056Dissulfureto de carbono 552 78 ×105 0,170

Tabela 6: Constantes crıticas.

diminuindo o volume durante um processo isotermico, se acaso nao existirem impurezas,

que sao necessarias para se iniciar a condensacao, o sistema pode ocupar estados ao longo

da isotermica de van der Waals. Esses estados, acima do patamar, sao de equilıbrio

instavel. Diz-se que o gas esta superarrefecido (por seu lado, um lıquido que nao entre

em ebulicao por ser extraordinariamente puro diz-se sobreaquecido).

Uma transicao de fase gas–lıquido pode ser descrita, em termos genericos, pela equacao

de van der Waals, mas esta equacao apenas da conta de aspectos gerais de transicoes de

fase e nao consegue descrever pormenores do fenomeno. Do ponto de vista matematico,

uma transicao de fase de primeira ordem, como esta, nao e mais do que a ocorrencia de

descontinuidades das primeiras derivadas na superfıcie de estado.

3.4.3 - Lıquidos e solidos

Do ponto de vista microscopico, o que distingue gases, lıquidos e solidos e a liberdade

de movimentos das suas moleculas. Enquanto que num gas as moleculas se movem quase

livremente, num lıquido esses movimentos sao mais restritos e, num solido, os movimentos

dos ioes estao extremamente limitados.

Os gases sao normalmente a fase preferida para as aplicacoes da mecanica estatıstica

e da termodinamica. Por outro lado, os solidos sao objecto de estudo de um importante

ramo da fısica moderna — a fısica da materia condensada — que, evidentemente, incor-

pora metodos e conceitos provenientes da mecanica estatıstica e da termodinamica. Os

lıquidos — fase intermedia — constituem, em geral, um problema mais complicado. So

recentemente se comecou a alcancar para os lıquidos um grau de conhecimento comparavel

ao ja existente para os solidos e gases.

43

Page 44: Energia (Apontamentos)

O que atras se disse sobre a existencia de um patamar para a transicao de fase lıquido–

gas aplica-se mutatis-mutandis a transicao de fase solido–lıquido. Nos diagramas como os

da Fig. 20 (diagramas de fases) indicam-se as regioes de pressao, volume e temperatura em

que podem existir as varias fases de uma substancia. E, por vezes, possıvel a coexistencia

das tres fases e, num grafico a tres dimensoes, essa coexistencia corresponde a uma linha —

a chamada linha tripla —, cuja projeccao num diagrama PT e um ponto (ponto triplo).

Como vimos, o ponto triplo da agua serve como ponto de referencia para a escala de

temperaturas. No diagrama PT identifica-se tambem a existencia de pontos crıticos, de

que ja falamos, precursores das transicoes de fase. A Tab. 7 fornece valores de pressao e

temperatura no ponto crıtico para algumas substancias.

S

S - L

L - G

S - G

L

G

G

p c

l i n h a t r i p l ap o n t o t r i p l o

p o n t o c r í t i c oL

S

G

S - L

L - G

S - G

P P

T v

Figura 20: Exemplo de diagramas de fase.

Substancia Temperatura Pressao(K) (Torr)

Helio 4 (ponto λ) 2,186 38,3Hidrogenio (normal) 13,84 52,8Deuterio (normal) 18,63 128Neon 24,57 324Azoto 63,18 94Oxigenio 54,36 1,14Amonıaco 195,40 44,57Dioxido de carbono 216,55 3880Dioxido de enxofre 197,68 1,256

Agua 273,16 4,58

Tabela 7: Dados de alguns pontos triplos.

Deve notar-se que as transicoes entre fases solida, lıquida e gasosa nao sao as unicas

que ocorrem na natureza. Podem ocorrer transicoes de fase solido–solido e lıquido–lıquido,

44

Page 45: Energia (Apontamentos)

correspondendo a mudancas de estrutura e consequentemente de algumas propriedades

fısicas das substancias.

Exemplos de transicao de fase solido–solido sao as do diamante para a grafite ou de um

tipo de gelo para outro. O diamante e a grafite sao arranjos cristalograficos distintos dos

atomos de carbono. O diamante corresponde a uma cristalizacao no sistema tetragonal,

enquanto que na grafite ela se processa no sistema hexagonal. A grafite passa a diamante

para temperaturas entre 0 e 4000 K, e pressoes superiores a um valor que medeia entre

109 e 1010 Pa, tal como o diagrama de fases da Fig. 21 ilustra.

1 0 5

1 0 4

1 0 3

1 0 2

1 0 1

P / M P a

0 2 0 0 0 4 0 0 0 6 0 0 0 T / K

D i a m a n t e

G r a f i t e

L í q u i d o

G á s1

Figura 21: Diagrama de fases do carbono.

3.5 Coeficientes termicos

Uma caracterıstica essencial dos lıquidos e dos solidos e que ambos apresentam pe-

quenas expansibilidades e compressibilidades, o que quer dizer que o seu volume nao

e facilmente mutavel com, respectivamente, o aumento da temperatura a pressao con-

stante, e com o aumento da pressao a temperatura constante. Definem-se coeficientes que

indicam quantitativamente quanto dilatavel ou compressıvel e o sistema. Por exemplo, o

coeficiente de dilatacao (ou expansividade) define-se como a variacao relativa de volume

a pressao constante:

α =1

V

(∂V

∂T

)

P

, (49)

enquanto que o coeficiente de compressibilidade isotermica (ou coeficiente de compressao

ou simplesmente compressibilidade) se define por

κT = − 1

V

(∂V

∂P

)

T

. (50)

45

Page 46: Energia (Apontamentos)

Os ındices inferiores P e T realcam o facto de que, no primeiro caso, a pressao e mantida

constante, enquanto que, no segundo caso, e a temperatura que e conservada constante.

Deve reparar-se no sinal negativo que surge na definicao do coeficiente κT . Esta definicao

implica que κT seja um numero positivo, uma vez que, qualquer que seja o sistema,

mantendo-se constante a temperatura, a um aumento de pressao corresponde sempre

uma diminuicao de volume.

Os coeficientes de dilatacao e de compressao sao grandezas fısicas facilmente men-

suraveis. Para um solido ou lıquido assumem geralmente valores baixos comparados com

os de um gas. A Fig. 22 mostra os coeficientes de dilatacao e compressao para um solido

(cobre) e para um lıquido (mercurio).

T / K0 2 0 0 4 0 0 6 0 0 8 0 0 1 0 0 0 1 2 0 0

2

4

6

8

1 0

2

4

6

8

0

a

0 1 0 0 0

1 5

2 0 0 0 3 0 0 0 4 0 0 0 5 0 0 0 6 0 0 0 7 0 0 0

3 8

3 4 1 6

1 7

1 8

3 0

P / a t m

( a ) ( b )

kT 1 0 1 2 / m 2 N - 1x a 1 0 5 / K - 1x

a

kT 1 0 1 2 / m 2 N - 1x

kT

kT

a 1 0 5 / K - 1x

Figura 22: Coeficientes de compressao κT e de expansao α (a) do cobre em funcao da temper-atura com P = 1 atm; (b) do mercurio em funcao da pressao para t = 0 o C.

Se se conhecer a equacao de estado, entao e obvio que se podem determinar por simples

derivacao os coeficientes α e κT . O contrario tambem e verdade, isto e, conhecidos os

coeficientes α e κT pode chegar-se a equacao de estado. E este facto que vamos de seguida

utilizar para deduzir uma equacao de estado para lıquidos ou solidos em determinadas

circunstancias.

Para um sistema descrito pela equacao de estado V = V (T, P ), uma pequena variacao

de volume e uma diferencial exacta4, que se pode escrever

dV =

(∂V

∂T

)

P

dT +

(∂V

∂P

)

T

dP (51)

ou, atendendo a definicao de α e κT ,

dV = V α dT − V κT dP. (52)

4Ver nota matematica sobre diferenciais exactas na proxima seccao.

46

Page 47: Energia (Apontamentos)

Supomos agora que, para o caso de um sistema na fase lıquida ou solida α e κT podem ser

considerados constantes numa certa zona de pressoes e temperaturas, e que uma variacao

de volume desse sistema e sempre muito pequena. Nestas condicoes, e facil integrar a

equacao anterior, obtendo-se

∫ V

V0

dV = V − V0 =∫ T

T0

V α dT −∫ P

P0

κT V dP (53)

ou (com V ∼ V0 nos integrais do ultimo membro)

V = V0 [1 + α(T − T0)− κT (P − P0)]. (54)

Portanto, o conhecimento dos valores numericos de α e κT , aliado ao conhecimento das

propriedades (V0, T0, P0) num dado estado de referencia permite-nos escrever a equacao

de estado de um solido ou lıquido nas aproximacoes consideradas. A equacao de estado

(54) indica depende linearmente das variacoes de pressao e de temperatura.

O conhecimento dos coeficientes α e κT implica o conhecimento da equacao de estado

e vice-versa, qualquer que seja o sistema, e nao apenas para o exemplo dado em que se

efectuaram algumas aproximacoes. Como ilustracao deste facto vamos considerar o gas

perfeito.

i) Conhecida a equacao de estado (24) obtem-se os coeficientes α e κT

α =1

V

nR

P=

1

Te κT = − 1

V

(−nRT

P 2

)=

1

P(55)

Na Fig. 23 representa-se α e κT em funcao da temperatura e da pressao respectiva-

mente (as curvas sao, em ambos os casos, hiperboles equilateras).

P

kTa

T

Figura 23: a) coeficientes de dilatacao α em funcao da temperatura e (b) de compressao κT emfuncao da pressao para um gas perfeito.

Deve reparar-se que, ao contrario dos lıquidos e dos solidos, α e κT nao podem de

alguma forma ser considerados constantes. As areas sombreadas nas figuras indicam

47

Page 48: Energia (Apontamentos)

as zonas onde os valores de α e κT nao sao de confianca em qualquer comparacao com

valores obtidos com gases reais, uma vez que, para temperaturas baixas ou pressoes

elevadas, o modelo de gas perfeito nao tem aplicabilidade (em particular repare-

se que a temperaturas baixas nao ha nenhum elemento na fase gasosa: sao todos

solidos com a excepcao possıvel do hidrogenio e do helio). O comportamento do

coeficiente de dilatacao de um gas perfeito a baixas temperaturas e completamente

oposto aquele que a Terceira Lei da Termodinamica determina para uma substancia

numa fase condensada. Com efeito, a lei de Nernst tem como consequencia que o

coeficiente de dilatacao tem obrigatoriamente de tender para zero no limite do zero

absoluto da temperatura:

limT→0

α = 0. (56)

Ja o mesmo nao acontece com o coeficiente de compressao que pode ter um valor

finito para temperaturas proximas de 0 K.

ii) Conhecidos os coeficientes α e κT , por integracao, pode saber-se a equacao de estado.

Inserindo (55) em (52)dV

V=

dT

T− dP

P(57)

ou ainda log V = log T − log P + log C e, finalmente,

PV = TC. (58)

Identificando a constante C com nR, obtem-se a equacao dos gases perfeitos como

se pretendia.

Acresce que, conhecidos os coeficientes α e κT , se pode logo saber tambem como varia

a pressao com a temperatura, conservando o volume constante. Isto significa que existe

uma relacao entre as derivadas parciais

(∂V

∂T

)

P

,

(∂V

∂P

)

T

e

(∂P

∂T

)

V

, (59)

que interessa deduzir. Da equacao (51) e da equacao analoga para a pressao (a pressao

e, tal como o volume, uma propriedade, e uma sua pequena variacao e uma diferencial

exacta)

dP =

(∂P

∂T

)

V

dT +

(∂P

∂V

)

T

dV, (60)

obtem-se a seguinte relacao (basta introduzir (60) em (51))

[1−

(∂V

∂P

)

T

(∂P

∂V

)

T

]dV =

[(∂V

∂P

)

T

(∂P

∂T

)

V

+

(∂V

∂T

)

P

]dT. (61)

48

Page 49: Energia (Apontamentos)

Esta equacao e geral. Para processos isotermicos (dT = 0, dV 6= 0), obtem-se uma

expressao para a derivada parcial da funcao inversa:

1−(

∂V

∂P

)

T

(∂P

∂V

)

T

= 0 (62)

e portanto (∂V

∂P

)

T

=1(

∂P∂V

)T

. (63)

Para processos isocoricos (dV = 0, dT 6= 0) e, de (61) resulta

(∂V

∂P

)

T

(∂P

∂T

)

V

+

(∂V

∂T

)

P

= 0 (64)

ou (∂V

∂P

)

T

(∂P

∂T

)

V

(∂T

∂V

)

P

= −1. (65)

Chega-se a uma relacao para o produto encadeado das derivadas parciais (o produto diz-se

encadeado porque os sımbolos V , P e T surgem ciclicamente em cada uma das derivadas

parciais). A expressao anterior e conhecida por teorema de reciprocidade).

Por consequencia, a derivada parcial da pressao em ordem a temperatura, e igual ao

quociente do coeficiente de dilatacao pelo coeficiente de compressao:

(∂P

∂T

)

V

=−

(∂V∂T

)P(

∂V∂P

)T

=−αV

−κT V=

α

κT

. (66)

Para alem de α e de κT podem ainda definir-se outros coeficientes termicos como,

por exemplo, o chamado coeficiente relativo de pressao que indica a variacao relativa da

pressao a volume constante, ou seja

αP =1

P

(∂P

∂T

)

V

(67)

Da Eq. (66) resulta imediatamente a seguinte relacao entre os tres coeficientes termicos

referidos nesta seccao:

αP =α

κT P. (68)

3.6 Nota sobre diferenciais exactas

Dissemos que uma variacao infinitesimal de volume e uma diferencial exacta, e que o

mesmo se passava com uma variacao infinitesimal de pressao (vide equacoes (51) e (60)).

Nesta seccao vamos ver quais sao as condicoes matematicas para se ter uma diferencial

exacta e qual e o seu significado fısico.

49

Page 50: Energia (Apontamentos)

Consideremos uma funcao matematica bem comportada, i.e. contınua e com primeiras

derivadas contınuas, z = f(x, y). Entao dz e uma diferencial exacta e escreve-se

dz =∂f

∂xdx +

∂f

∂ydy (69)

se e so se a segunda derivada parcial mista de f for independente da ordem dos factores

(teorema de Schwarz)∂2f

∂x ∂y=

∂2f

∂y ∂x. (70)

Alternativamente, fica garantido que dz e uma diferencial exacta se for nulo o integral

fechado ∮dz = 0. (71)

qualquer que seja o percurso. As condicoes (70) e (71), de per se, sao condicoes necessarias

e suficientes para dz ser uma diferencial exacta.

Uma diferencial inexacta (ou pfaffiano) e qualquer expressao diferencial

δw = g(x, y)dx + h(x, y)dy, (72)

em que os coeficientes de dx e dy nao sao derivadas parciais, nao sendo satisfeitas as

condicoes (70) e (71), ou seja∂g

∂y6= ∂h

∂x(73)

ou ∮δw 6= 0. (74)

Deve notar-se que para distinguir bem uma diferencial exacta de uma inexacta em-

pregamos para a primeira o sımbolo d e para a segunda o sımbolo δ.

Para passar de uma diferencial inexacta para uma diferencial exacta tem de se multi-

plicar (72) por uma certa funcao de x e de y, que e o chamado factor integrante. Prova-se

que, se existirem apenas duas variaveis independentes (no caso x e y), esse factor inte-

grante existe sempre. Se se tratarem de tres ou mais variaveis independentes o factor

integrante pode existir ou nao.

Vamos exemplificar, de um ponto de vista fısico, qual e o conteudo da nocao de

diferencial exacta. Para isso servimo-nos da diferencial exacta associada ao volume.

i) Tomemos uma superfıcie de estado V = V (P, T ) e dois estados vizinhos 1 e 3 (ver

Fig. 24). Podemos ligar 1 e 3 por um processo primeiro isobarico e depois isotermico

(123) ou por um processo primeiro isotermico e depois isobarico (143). A variacao de

volume de 1 para 3 tem de ser, evidentemente, independente do caminho utilizado.

Da Fig. 24 conclui-se que a diferenca de volume entre 1 e 3 e, se se utiliza a trajectoria

123 (estamos a supor 1 e 3 muito proximos),

dV123 =

(∂V

∂T

)

P1

dT +

(∂V

∂P

)

T2

dP, (75)

50

Page 51: Energia (Apontamentos)

V

T

P

T 1

T 2P 1

P 3

D P D T

1

2

3

4

Figura 24: Superfıcie PV T com indicacao de quatro estados vizinhos.

e, se se utiliza a trajectoria 143,

dV143 =

(∂V

∂P

)

T1

dP +

(∂V

∂T

)

P3

dT. (76)

De dV123 = dV143 resulta

1

dP

[(∂V

∂T

)

P3

−(

∂V

∂T

)

P1

]=

1

dT

[(∂V

∂P

)

T2

−(

∂V

∂P

)

T1

]. (77)

Ora, por definicao de derivada parcial, esta igualdade e equivalente a[

∂P

(∂V

∂T

)

P

]

T

=

[∂

∂T

(∂V

∂P

)

T

]

P

(78)

que e um exemplo fısico da relacao matematica (70). O facto de a segunda derivada

parcial mista ser independente da ordem dos factores e consequencia directa da inde-

pendencia do caminho utilizado quando se calcula a variacao de uma propriedade. A

relacao anterior pode ainda reescrever-se na forma seguinte, se se atender a definicao

dos coeficientes de dilatacao e de compressao(

∂α

∂P

)

T

= −(

∂κT

∂T

)

P

. (79)

ii) Efectuando a integracao do volume entre os dois pontos i e f,

∫ Vf

Vi

dV = Vf − Vi, (80)

o resultado apenas depende dos pontos extremos, sendo indiferente o percurso uti-

lizado ao longo da superfıcie de estado. Se se particularizar a relacao anterior para

51

Page 52: Energia (Apontamentos)

o caso em que o ponto de partida coincide com o ponto de chegada (o processo e

entao cıclico) tem-se ∮dV = 0, (81)

isto e, o integral de volume ao longo de qualquer percurso fechado e nulo.

Todas as variacoes infinitesimais de propriedades termodinamicas sao diferenciais e-

xactas. Assim dV , dT , dP sao diferenciais exactas, assim como o sao dU , dS e as variacoes

de outras propriedades que mais tarde serao discutidas. Grandezas termodinamicas que

digam respeito a interaccoes com a vizinhanca do sistema atraves da fronteira, tais como

trabalho e calor, correspondem, pelo contrario, a diferenciais inexactas. No proximo

capıtulo trataremos de explicar o que e trabalho, o que e calor, e qual e a relacao entre

ambos.

52

Page 53: Energia (Apontamentos)

CAPITULO 4

ENERGIA E PRIMEIRA LEI

4.1 Introducao

A discussao da Primeira Lei vai comecar pela definicao de trabalho termodinamico. O

enunciado basico dessa lei diz respeito ao trabalho adiabatico: o trabalho adiabatico entre

dois estados de equilıbrio so depende desses estados e nao do processo que liga um estado

ao outro. A partir desse enunciado pode definir-se, em primeiro lugar, a energia interna,

precisamente a grandeza cuja variacao e igual ao trabalho adiabatico, e, depois, o calor.

A variacao de energia interna e igual a soma de trabalho e calor.

No contexto do Primeiro Princıpio distinguem-se essencialmente tres grandezas com

as dimensoes de energia:

• Energia interna, U , que obedece a um princıpio de conservacao, e que e uma funcao

de estado ou de ponto. Essa energia depende, entre outras grandezas, da tempera-

tura.

• Trabalho, W , uma energia sempre associada a um processo mecanico descrito por

um reduzido numero de parametros. Nao e uma funcao de estado mas sim uma

funcao de processo.

• Calor, Q, uma forma de transmitir a energia que nao se pode descrever mecanica-

mente de uma forma directa. Tal como o trabalho, e uma funcao de processo.

Page 54: Energia (Apontamentos)

4.2 Trabalho em mecanica e em termodinamica

O conceito de trabalho termodinamico baseia-se no conceito de trabalho mecanico,

pelo que antes de definir o primeiro convem recordar o segundo.

Se uma partıcula de massa m se desloca da posicao 1 para a posicao 2, ao longo de

uma certa trajectoria, o trabalho mecanico realizado pela forca ~F que actua na partıcula e

W =∫ 2

1

~F · d~r . (82)

Usando a segunda lei de Newton prova-se que, em qualquer caso, o trabalho e a

diferenca das energias cineticas final e inicial:

W =1

2m v2

2 −1

2mv2

1 = T2 − T1. (83)

Pode pois dizer-se que o trabalho e a maneira de comunicar energia cinetica a partıcula.

Se a forca for conservativa entao o trabalho realizado e independente do percurso entre

os pontos extremos (WI = WII , ver Fig. 25), e e possıvel definir uma chamada energia

potencial V (rrr), tal que o trabalho e igual a diferenca dos valores dessa funcao nos pontos

extremos

W = V (rrr1)− V (rrr2) = V1 − V2 (84)

I

I I

F

1

2

Figura 25: Se a forca ~F for conservativa, o trabalho entre os pontos 1 e 2 nao depende datrajectoria.

Das eqs. (83) e (84) conclui-se que a energia mecanica da partıcula E = T + V , que e a

soma das suas energias cinetica e potencial, conserva-se: E1 = E2. Se houver trabalho de

forcas nao conservativas, esse trabalho e igual a variacao da energia mecanica: Wnc = ∆E.

Em Termodinamica o trabalho e tambem um modo de comunicar energia agora ao

sistema macroscopico (de momento, a nocao intuitiva de energia do sistema e suficiente).

O trabalho termodinamico pode ser de configuracao ou dissipativo. Comecemos por definir

o trabalho de configuracao. Este trabalho, num sistema PV T , relaciona-se com uma va-

riacao de volume. Recordemoss do Capıtulo 2 que o volume e a variavel conjugada com

a pressao. Em contraste com a Mecanica, onde se considera forca e deslocamento de uma

54

Page 55: Energia (Apontamentos)

partıcula, em Termodinamica considera-se pressao e deslocamento de uma fronteira. Mas

existe um paralelismo entre os conceitos de trabalho mecanico e termodinamico. Assim,

todo o trabalho termodinamico (seja de configuracao seja dissipativo) pode ser associado,

por exemplo, ao deslocamento de um corpo pesado na vertical (trabalho mecanico num

dispositivo externo).

d r

A

P

P e

Figura 26: Trabalho realizado por um embolo sobre um gas. O deslocamento infinitesimal doembolo encontra-se exagerado.

Consideremos um gas num recipiente com um embolo, de area A, e suponhamos que

o sistema esta sujeito a uma pressao exterior uniforme Pe (Fig. 26). Se o embolo se

deslocar para cima de uma distancia infinitesimal, dr, o volume do sistema aumenta de

dV = A dr. Em Termodinamica o trabalho infinitesimal realizado pelas forcas externas,~Fe, e a quantidade

δW = ~Fe · d~r = −Fe dr = −Pe A dr = −Pe dV . (85)

Esta definicao de trabalho de configuracao num sistema PV T (tambem chamado trabalho

hidrostatico) e geral, apesar de se ter considerado um sistema com uma geometria parti-

cular. Vimos ja, no final do capıtulo anterior, a razao de escrever δW em vez de dW —

o trabalho infinitesimal nao e uma diferencial exacta.

Na convencao que adoptamos (que e a recomendada pela IUPAP, International Union

for Pure and Applied Physics), o trabalho e negativo ou positivo consoante o sistema, res-

pectivamente, aumenta ou diminui de volume. Quando o trabalho e negativo (expansao,

caso em que dV > 0), diz-se que o trabalho e feito pelo sistema. Quando o trabalho e

positivo (compressao, em que dV < 0) diz-se que o trabalho e feito sobre o sistema.

Num processo quase-estatico, existe praticamente equilıbrio mecanico em todas as

configuracoes intermedias, o que significa que Pe = P , sendo entao o trabalho infinitesimal

δW = −P dV . (86)

55

Page 56: Energia (Apontamentos)

Num processo quase-estatico finito, no qual o volume varia de V1 para V2, o trabalho

termodinamico e simplesmente

W = −∫ V2

V1

P (V ) dV . (87)

No integral escrevemos P = P (V ) para deixar claro que P e funcao do volume do sistema.

V

P 1

P 2

P

P = P ( V )

W < 0

V 1 V 2

1

2

Figura 27: O trabalho W realizado no processo de V1 para V2 e medido pela area indicada.Note-se, porem, que o trabalho e negativo neste caso, ao contrario da area.

Atendendo a sua definicao, o trabalho realizado num processo entre dois estados de

equilıbrio, inicial e final, corresponde, num diagrama P V , a “area”por baixo da funcao

P = P (V ) (Fig. 27). Portanto, dado que ha um numero infinito de processos que podem

ligar os estados inicial e final, a cada um deles corresponde uma area e um trabalho

diferente. Ou seja, o trabalho termodinamico e uma funcao de processo e nao de estado,

e uma funcao de linha e nao de ponto. Num processo cıclico, tal como o indicado na

Fig. 28, o trabalho pode ser diferente de zero:

W = −∮

P dV 6= 0 (88)

V

P

V

P

V

P

0 0 0( a ) ( b ) ( c )

1

2

1 I I2

I I '

I

1

I 2

1

Figura 28: Representacao em diagramas de Clapeyron de dois processos distintos entre osmesmos estados 1 e 2. O trabalho no processo I, em (a), e em modulo maior do que no processoII, em (b). (c) representa o processo cıclico reunindo I e o inverso de II (representado por II′).

56

Page 57: Energia (Apontamentos)

O trabalho (negativo) no processo I nao e igual ao trabalho no processo II e o trabalho

total, dado pelo integral sobre o contorno fechado I+II′ nao e nulo. O trabalho “lıquido”no

processo cıclico e dado pela area encerrada pelo contorno fechado — ver Fig. 28 (c).

E o que sucede em processos nao quase-estaticos? Nessas situacoes, o trabalho nao

se pode exprimir por integrais, pois um integral pressupoe sempre a indicacao de um

caminho. A funcao P = P (V ) e o conceito de caminho deixam de ter significado em

processos nao quase-estaticos. So o tem quando o sistema passa por sucessivos estados

de equilıbrio.

Isto nao quer dizer que so se possa calcular o trabalho de configuracao em processos

quase-estaticos. Um caso particularmente simples ocorre sempre que o sistema esteja

isolado termicamente (fronteira adiabatica). Nesse caso, o trabalho realizado calcula-se

a partir de consideracoes puramente mecanicas. Por exemplo, suponhamos que sobre

um sistema deste tipo, fechado por um embolo (de massa desprezavel), se deixa cair

um bloco de uma certa altura, aguardando-se ate que o embolo se imobilize5. Medindo a

diferenca de altura do bloco e calculando a sua variacao de energia potencial pode obter-se

o trabalho realizado sobre o sistema (admitindo que nao ha atrito na juncao do embolo

com as paredes do pistao).

Existe ainda um outro tipo de trabalho, chamado dissipativo, que se distingue do

de configuracao. Um exemplo de trabalho dissipativo obtem-se mexendo um agitador

mergulhado no interior de um fluido. Neste caso, nao ha variacao de volume, mas ha

transferencia irreversıvel de energia para o sistema. Os processos em que ha trabalho

dissipativo sao sempre irreversıveis.

4.2.1 - Calculo de trabalhos de configuracao

Vamos agora calcular o trabalho em alguns processos reversıveis (logo, quase-estaticos)

particulares: Como vimos, o trabalho de configuracao pode ser representado num dia-

grama de Clapeyron pela area debaixo da curva que descreve o processo. Convenciona-se

que esta area e negativa se o volume aumentar no processo e positiva se diminuir.

1. Processos isocoricos:

O trabalho de configuracao e sempre nulo pois a area no diagrama de Clapeyron

nao existe, porque uma linha vertical (V =Cte) projecta-se num ponto no eixo dos

volumes.

2. Processos isobaricos:

O trabalho de configuracao e sempre dado pela expressao (“area”do rectangulo)

W = −P ∆V. (89)

5O processo e irreversıvel, mas ha trabalho de configuracao correspondente a uma variacao de volume.

57

Page 58: Energia (Apontamentos)

3. Processos isotermicos:

Os dois resultados anteriores sao de caracter geral, independentemente da equacao

de estado. Porem, para se calcular o trabalho em processos isotermicos (e adiabati-

cos), necessitamos de conhecer a equacao de estado.

Partindo de

W = −∫ V2

V1

P (V, T = Cte) dV, (90)

vamos considerar os exemplos do trabalho isotermico no gas perfeito, no gas de van

der Waals e num lıquido ou solido a pressao hidroestatica.

a) Gas perfeito

O trabalho e

W = −∫ V2

V1

nR T

VdV = −nR T

∫ V2

V1

dV

V

= −nR T ln(

V2

V1

). (91)

Se V2 > V1 (expansao), entao ln(

V2

V1

)> 0 e W < 0; e se V2 < V1 (compressao),

entao ln(

V2

V1

)< 0 e W > 0. A funcao ln x e dada pela area compreendida entre

1 e x debaixo da hiperbole y = 1/x. Assim, o trabalho nos processos isotermicos

para um gas perfeito pode medir-se pela area debaixo da hiperbole que descreve o

processo.

b) Gas de van der Waals

Da equacao de estado de van der Waals (41), vem

W = −n∫ v2

v1

(R T

v − b− a

v2

)dv

= −nR T∫ v2

v1

dv

v − b+ n a

∫ v2

v1

dv

v2

= −nR T ln

(v2 − b

v1 − b

)−na

(1

v2

− 1

v1

). (92)

Note-se que nem sempre se tem W < 0 para v2 > v1 e W > 0 para v2 < v1. Dado

que se devia ter W < 0 quando v2 > v1, conclui-se que a equacao de van der Waals

nem sempre e adequada6.

c) Solido ou lıquido a pressao hidroestatica

Da equacao de estado (54), num processo isotermico dV = −V0 κT dP pelo que

W =∫ 2

1P dV = −V0 κT

∫ 2

1P dP =

V0 κT

2(P 2

1 − P 22 ) . (93)

6Para ver que W < 0 quando v2 > v1 basta invocar o teorema da media: W = − ∫ v2

v1P dv =

−P (v2 − v1). Se P > 0, o sinal de W e o contrario do de (v2 − v1).

58

Page 59: Energia (Apontamentos)

Neste calculo e mais conveniente passar da variavel de integracao V para a variavel

de integracao P . Repare-se que, para aumentar a pressao, o trabalho tem de ser

negativo (o volume diminui).

A grandeza trabalho e, como sabemos, uma funcao de processo e nao de estado. Ao

trabalho nao se pode, pois, associar uma diferencial exacta (ver final do Capıtulo 3).

O trabalho de configuracao infinitesimal, definido em (86) como o produto da variavel

intensiva pressao pela diferencial exacta associada a propriedade extensiva volume, e uma

diferencial inexacta.

Repare-se que da Eq. (86) nao se pode concluir que P e “o simetrico da derivada

parcial de W em ordem a V ”. Assim, a expressao

P = −δW

dV(94)

deve ser entendida como o quociente do trabalho infinitesimal por uma variacao de volume

tambem infinitesimal. Nao se pode dizer que o trabalho finito e “a diferenca entre o

trabalho final e o trabalho inicial”, pois nao faz sentido falar em trabalho de um estado.

4.3 Trabalho adiabatico, energia interna e Primeiro Princıpio

Energia interna e uma forma do conceito generico de energia. E uma grandeza que

se conserva num dado sistema fısico se forem satisfeitas certas condicoes. Mas a ener-

gia interna nao teria realmente significado sem um meio de a medir. Introduz-se para

isso o importante conceito de trabalho adiabatico, que pressupoe, por seu lado, a exis-

tencia de paredes adiabaticas. O conceito de parede adiabatica desempenha um papel

muito importante em Termodinamica, sobretudo nas formulacoes mais recentes (como

a de Caratheodory). Num processo adiabatico, o sistema troca energia com as vizin-

hancas unicamente sob a forma de trabalho (por definicao, nenhuma energia entra ou

sai do sistema sob outra forma — calor, como adiante veremos). Um sistema envolto

completamente em paredes adiabaticas mantem durante um tempo indefinido a mesma

temperatura, o que nunca acontece na realidade. Uma parede adiabatica pode ser vista

como um caso limite de paredes pouco condutoras de calor. Estas paredes impedem as

interaccoes termicas entre o sistema e o exterior, garantindo que todas as variacoes que

se produzam no estado do sistema sao devidas a interaccoes de tipo trabalho. Supomos

a existencia dessas paredes7.

Tomemos um sistema isolado adiabaticamente num estado inicial com um certo vo-

lume e temperatura (Vi, Ti). Realizando trabalho adiabatico sobre o sistema, Wadia (que

tanto pode ser quase-estatico como dissipativo), o sistema atinge um estado final (Vf, Tf),

7Esta suposicao e essencial para a formulacao da Primeira Lei.

59

Page 60: Energia (Apontamentos)

caracterizado por novos valores do volume e da temperatura. Tem-se, por definicao de

energia interna, U , ou melhor, de variacao de energia interna, ∆U ,

∆T + ∆V + ∆U = Wadia . (95)

No primeiro membro desta equacao surgem a variacao de energia cinetica do sistema

∆T , a variacao de energia potencial do sistema ∆V , e a variacao de energia interna

∆U = Uf − Ui = U(Vf, Tf) − U(Vi, Ti), com Uf e Ui as energias internas final e inicial.

Note-se que todas estas energias se somam, o que significa que a energia interna e uma

forma de energia, como a energia cinetica e potencial do sistema. Um sistema como um

todo pode ter energia cinetica, energia potencial e, alem disso, energia interna. Admite-se,

assim, que parte do trabalho pode ser utilizado para deslocar o sistema, por exemplo

elevando-o num campo gravıtico, ou para aumentar a sua velocidade, e que outra parte se

associa ao sistema de uma outra maneira. A energia necessaria para assegurar a validade

do Princıpio de Conservacao da Energia em situacoes como aquela que foi descrita e

precisamente a energia interna. E claro que a energia interna deve depender, entre outras

grandezas, da temperatura, pois a temperatura e necessaria para descrever os sistemas

termodinamicos. Ora, se nao houver variacao de outras formas de energia do sistema o

trabalho adiabatico e sempre igual a variacao da energia interna. Fazendo medicoes de

tal maneira que nao haja variacoes de energia cinetica ou potencial do sistema, verifica-se

experimentalmente

∆U = Uf − Ui = Wadia . (96)

O trabalho Wadia, de acordo com (96), nao depende do processo mas tao-so dos estados

inicial e final8. Nestas condicoes, o trabalho adiabatico mede a variacao da funcao de

estado energia interna U e uma possıvel formulacao da Primeira Lei e a seguinte:

O trabalho adiabatico sobre um sistema termodinamico (com energias cinetica e po-

tencial constantes) so depende dos estados inicial e final e nao do processo realizado

entre estes dois estados. Existe, por isso, a funcao de estado energia interna.

Este enunciado da 1a lei tem tres consequencias imediatas: a existencia da propriedade

energia interna; a possibilidade de definicao de calor; a conservacao da energia interna

para sistemas isolados.

4.3.1 - A energia interna como funcao de estado

Existe uma certa analogia entre processos adiabaticos (inexistencia de fluxos de calor)

e o movimento sem atrito em mecanica. Em ambos os casos se afirma que o trabalho e

independente da trajectoria. Assim, do mesmo modo que se define uma funcao energia

potencial em mecanica, tambem se pode definir uma funcao de estado em termodinamica,

8Este facto e semelhante a afirmacao na Mecanica de que o trabalho das forcas conservativas naodepende do processo mas tao-so dos estados inicial e final.

60

Page 61: Energia (Apontamentos)

de tal maneira que o trabalho adiabatico seja a diferenca dos valores dessa funcao nos

pontos extremos. Tal funcao tem o nome de energia interna, e costuma designar-se por

U . Por definicao

Wadia =∫ 2

1δWadia = U2 − U1 (97)

isto e, o trabalho adiabatico total e a variacao da energia interna. A energia interna e

uma propriedade, e dU e uma diferencial exacta, pelo que

∫ 2

1dU = U2 − U1 = ∆U = Wadi (98)

∮dU = 0 . (99)

Foi dada uma definicao operacional de energia interna em termodinamica macros-

copica, e nada nos permite, por enquanto, saber qual e o significado fısico desta energia

interna. A mecanica estatıstica e a teoria cinetica, porem, ao relacionarem a energia

interna com o movimento molecular, esclarecem qual e a natureza daquela energia: a

energia interna do sistema e o resultado das energias cinetica e potencial das partıculas.

Obtem-se multiplicando a energia media de cada partıcula pelo numero de partıculas que

compoem o sistema.

A realizacao de trabalho adiabatico e uma maneira de mudar a energia do sistema.

Sao possıveis varios processos em que so se realiza trabalho adiabatico entre dois estados

fixos e todos eles, de acordo com a primeira lei, tem de conduzir ao mesmo resultado final

para a energia.

V

P

0

1 2

Figura 29: A linha a cheio corresponde a um processo adiabatico reversıvel. O outro processoe tambem adiabatico mas irreversıvel.)

Note-se que, considerados dois pontos quaisquer num diagrama PV , nem sempre e

possıvel liga-los por um processo adiabatico e reversıvel. Isto quer dizer que, por exemplo,

se se parte do ponto 1 da Fig. 29 ao longo de um processo adiabatico reversıvel, pode nao

se alcancar o ponto 2 directamente, e tem de se realizar trabalho adiabatico e dissipativo

para se atingir o estado de chegada. Estamos a supor que o ponto 2 e acessıvel por

um processo adiabatico a partir do ponto 1. Ha, contudo, estados que nao podem ser

atingidos por processos adiabaticos. Esta proibicao esta consignada na segunda lei.

61

Page 62: Energia (Apontamentos)

4.3.2 - Calor

Introduzidos os conceitos de trabalho (e, em particular, de trabalho adiabatico) e de

energia interna, vejamos agora o conceito de calor. Se retirarmos as paredes adiabaticas

e o sistema interagir com o meio exterior, tanto realizando trabalho como efectuando

trocas termicas (estas trocas ocorrem quando se poem em contacto sistemas a diferentes

temperaturas), o sistema passa do estado inicial ao estado final, havendo variacao da sua

energia interna, U . Consideremos entao um sistema termodinamico que nao esta isolado

termicamente. O trabalho, W , realizado quando o sistema passa de um certo estado

inicial a um certo estado final e diferente do trabalho adiabatico, Wadia, que tem um valor

fixo entre esses dois pontos. Nestas circunstancias dizemos que ha um fluxo de calor entre

o sistema e a sua vizinhanca. O fluxo de calor para o sistema e definido como a diferenca

entre o trabalho adiabatico, Wadia, e o trabalho efectivamente realizado, W ,

Q = Wadia −W = ∆U −W . (100)

encontrando-se a seguinte expressao que traduz o Princıpio de Conservacao da Energia:

∆U = W + Q . (101)

Ha, em geral, duas maneiras possıveis de variar a energia interna: ou atraves da realizacao

de trabalho ou atraves de permutas de calor com o exterior.

A equacao anterior e vista como uma possıvel formulacao do Primeiro Princıpio da

Termodinamica. Serve para definir uma forma de energia, o calor Q, que e a energia trans-

ferida por todos os processos diferentes de trabalho. O calor e a energia comunicada ou

recebida de um sistema que nao se pode descrever mecanicamente de uma forma directa9.

Tanto ∆U como W podem ser medidos por consideracoes mecanicas, o que permite medir

Q. E esta mensurabilidade do calor Q confere-lhe significado fısico.

Que o fluxo de calor depende do processo em causa, e muito facil de constatar. Para

dados estados inicial e final, ∆U e fixo, porque U e uma propriedade do sistema, mas o

trabalho varia com o processo. Portanto, da Eq. (100) conclui-se que o fluxo de calor

tambem tem de variar de processo para processo.

O calor nao e, pois, uma propriedade dos sistemas e um fluxo muito pequeno de

calor nao corresponde a uma diferencial exacta. Escrevemos δQ para exprimir um fluxo

infinitesimal de calor. Para processos infinitesimais a eq. (101) escreve-se

dU = δQ + δW . (102)

Se o processo e reversıvel todo o trabalho e de configuracao e

dU = δQ− P dV. (103)

9De facto, indirectamente pode-se. A eq. (100) pressupoe a realizacao de duas experiencias distintasem que se mede o trabalho. No entanto, subjacente a Wadia, esta o conceito de paredes adiabaticas quenao e do ambito da Mecanica.

62

Page 63: Energia (Apontamentos)

Esta equacao e conhecida, por vezes, como a expressao matematica do primeiro princıpio,

mas e preferıvel dizer que a primeira lei esta contida no resultado experimental indicado

pela expressao (96) e que a expressao anterior envolve, adicionalmente, as definicoes de

energia interna e de calor.

Tal como ficou atras dito relativamente ao trabalho, o calor

Q =∫ 2

1δQ (104)

nao e a diferenca de um “calor inicial”e de um “calor final”! E o calor lıquido num ciclo

nao e nulo:

Q =∮

δQ 6= 0 . (105)

O fluxo de calor nao e mais que uma maneira de variar a energia interna. E uma

maneira diferente da realizacao de trabalho. O trabalho pode relacionar-se, em ultima

analise, com o deslocamento de um peso. O calor refere-se a toda a restante variacao de

energia interna do sistema. Ou, uma definicao mais operacional, o calor e a variacao de

energia interna que e devida a existencia de uma diferenca de temperatura entre o sistema

e a sua vizinhanca. Na presenca de uma fronteira diatermica, se a vizinhanca esta a uma

temperatura mais alta, o fluxo de calor e para o sistema (Q > 0); se a vizinhanca esta a

uma temperatura mais baixa entao o fluxo de calor e do sistema (Q < 0). Quando sistema

e vizinhanca estao a mesma temperatura, nao ha fluxos de calor e existe equilıbrio termico.

Tanto calor como trabalho sao interaccoes de energia do sistema com a vizinhanca, reali-

zadas atraves da fronteira.

Em resumo, podemos dizer que se pode aumentar o conteudo de energia de um dado

sistema tanto realizando trabalho como fornecendo calor. O resultado final e o mesmo e

o processo escolhido para o alcancar e uma mera questao de conveniencia. Ninguem se

lembraria de aumentar a energia interna de uma cafeteira de agua realizando trabalho

(de agitacao, por exemplo) em vez de lhe fornecer calor (pondo a cafeteira ao lume). Mas

ambos os processos conduzem ao mesmo estado final, e uma vez a agua “quente”, isto e

com mais energia que inicialmente, nao ha maneira de saber se a energia adicional veio

atraves da realizacao de trabalho ou do fornecimento de calor.

A este respeito e curioso referir a seguinte alegoria, imaginada por Callen, que permite

apreender melhor o genero de argumentos envolvidos na definicao de energia interna,

trabalho e calor.

Considere-se uma piscina ao ar livre. A agua pode entrar de duas maneiras: ou

atraves de um cano onde existe uma torneira (processo controlado); ou atraves das chuvas

(processo nao controlado, uma vez que nao se pode prever exactamente o tempo). A agua

da piscina pode tambem sair de duas maneiras: ou atraves de um cano de saıda com

torneira (processo controlado); ou atraves da evaporacao (processo nao controlado).

Se a piscina for coberta e se se desprezar a quantidade relativamente pequena de agua

que se continua a evaporar, entao todas as entradas e saıdas de agua estao perfeitamente

63

Page 64: Energia (Apontamentos)

controladas. A quantidade de agua no interior da piscina mede-se com um indicador de

nıvel, e a diferenca de nıvel observada explica-se muito naturalmente pela diferenca entre

a agua entrada e a agua saıda pelas torneiras.

A piscina pode ser comparada com um sistema termodinamico. A agua e a energia

interna. A entrada e saıda de agua pelas torneiras corresponde ao trabalho. A entrada e

saıda de agua para e do ar e o calor. A cobertura da piscina pode ser comparada a uma

fronteira adiabatica. Com uma fronteira adiabatica, todas as entradas e saıdas de energia

do sistema dizem respeito ao trabalho. Sem essa fronteira tanto ha trabalho como calor.

Uma vez a agua dentro da piscina, nao se tem possibilidade de saber se ela e proveniente

da chuva ou dos canos. Assim tambem, nao se pode averiguar se a energia do sistema foi

devida a trabalho ou a calor. O calor pode ser visto como uma forma nao controlavel de

movimentacao de energia.

Fica clara uma primeira diferenca entre calor e trabalho: trabalho e a energia trans-

ferida que se pode caracterizar mecanicamente, ao passo que o calor e a energia transferida

que nao se pode caracterizar mecanicamente mas apenas a partir do Primeiro Princıpio

da Termodinamica. Uma segunda diferenca entre calor e trabalho reside na assimetria

entre transformacoes: todo o trabalho realizado sobre um sistema pode transformar-se ci-

clicamente em calor, mas nem todo o calor absorvido se pode transformar ciclicamente

em trabalho. Esta assimetria esta na origem do Segundo Princıpio da Termodinamica,

que sera discutido no capıtulo seguinte.

Em suma, tanto calor como trabalho devem-se a interaccoes de um sistema com a

vizinhanca, havendo passagem de energia atraves da fronteira. O trabalho pode relacionar-

se directamente com o deslocamento de um peso. O calor descreve a restante variacao de

energia interna do sistema.

4.3.3 - Sistemas isolados e processo cıclicos

Quando se realiza um processo quase-estatico, o sistema passa por sucessivos estados

de equilıbrio que se podem descrever por uma equacao termica de estado. Cada passo

infinitesimal deve observar a equacao dU = δW + δQ e, se o processo for quase-estatico e

finito (isto e, nao infinitesimal), poderemos escrever

∫f

i

dU = ∆U = Uf − Ui = W + Q . (106)

Se o sistema estiver isolado, nao havera trocas de energia com o exterior nem sob a

forma de trabalho nem sob a forma de calor. Assim, se Q = W = 0 , vem da Eq. (101)

∆U = 0 , (107)

isto e, a energia conserva-se

Uf = Ui . (108)

Muitas vezes esta e a maneira de expressar a Primeira Lei.

64

Page 65: Energia (Apontamentos)

Pode, porem, a variacao de energia interna ser nula, ∆U = 0, sem que nenhuma das

parcelas que compoem a variacao de energia seja necessariamente zero. Isto acontece, por

exemplo, num ciclo. Neste caso, o calor no ciclo e sempre igual ao trabalho no ciclo:∮

dU = 0 , (109)

donde

Q = −W. (110)

Num processo em que ∆U = 0, uma certa quantidade de trabalho converte-se em calor

e reciprocamente. Para alguns autores, este e o Princıpio de Equivalencia entre Calor e

Trabalho.

As maquinas termicas sao dispositivos cujo modo de funcionamento se baseia num

ciclo termodinamico. Ao fim de um ciclo, a energia interna volta a ter o valor inicial, nao

podendo haver nem criacao nem destruicao de energia. Muitos inventores perseguiram

o sonho de construir a maquina que produzisse trabalho ao longo de um ciclo sem o

correspondente dispendio de calor (Movel Perpetuo de Primeira Especie). Mas uma con-

sequencia importante da Primeira Lei e a inexistencia de maquinas desse tipo. Maquinas

que realizam trabalho tem de ir buscar energia a algum lado, e so podem transforma-la.

Vejamos um exemplo de aplicacao dos conceitos introduzidos. A Fig. 30 ilustra um

conjunto de valores para o calor, trabalho e variacao de energia interna ao longo de um

ciclo termodinamico. Tem-se, portanto, uma maquina termica. No processo adiabatico

ca, o calor e nulo (Q = 0) uma vez que o sistema tem uma fronteira adiabatica. Os valores

de Q, W e ∆U , em joules, correspondentes aos processos representados no diagrama da

esquerda estao indicados na tabela a direita.

P

a

V

bc

a d i a b á t i c a

P r o c e s s o

a bb cc aa b c a

Q W D U

1 0 0- 6 0 0

- 5 0 0

1 5 0 0- 1 0 0 0

5 0 0

1 0 09 0 0

00

- 1 0 0 0

0

Figura 30: Exemplo de ciclo termodinamico.

O Primeiro Princıpio da Termodinamica estabelece, por assim dizer, a contabilidade

energetica dos processos termodinamicos. Ao fim de um ciclo, o trabalho que se fornece

iguala o calor que se recebe. A analogia com a escrita contabilıstica de uma empresa que

nao da lucros e evidente: o balanco e zero, isto e, o deve e igual ao haver.

65

Page 66: Energia (Apontamentos)

4.3.4 - Breve nota historica

Foi na primeira metade do seculo XIX que se chegou a conclusao firme que o calor e

uma forma de energia e que existe uma grandeza, chamada energia interna, que se conserva

em sistemas isolados. Antes suponha-se que o calor era uma substancia — calorico —

e que a quantidade total de calorico existente no universo era constante. Os fenomenos

termicos explicavam-se devido a trocas de calorico entre os corpos.

O Conde Rumford vislumbrou, antes dos outros, que o calor nao e nenhuma entidade

misteriosa que impregna os corpos. Mas a ideia de calorico demorou muitos anos a ser

varrida do rol das ideias aceites (de resto tal como, por exemplo a ideia de eter). Assim,

Carnot pode formular uma serie de raciocınios relativos ao segundo princıpio, aceitando

a ideia de calorico como verdadeira, sem necessidade de uma formulacao rigorosa do

primeiro princıpio.

Coube, mais ou menos simultaneamente, a Mayer, Joule e Helmholtz a autoria do

primeiro princıpio. Eles obtiveram esse princıpio por diferentes vias e trabalhando inde-

pendentemente uns dos outros. Os tres foram apenas alguns investigadores que, a meio

do seculo XIX, chegaram a ideia de conservacao da energia.

Em 1842 J. Mayer, com base na observacao de processos fisiologicos, chegou a um

resultado para o chamado equivalente mecanico do calor.

Em 1847 H. von Helmholtz escreveu um artigo intitulado Sobre a conservacao da

forca 10 em que dizia que e impossıvel criar uma forca motriz a partir do nada. Defendia

essa tese com base em argumentos matematicos, o que de certo modo contribuiu para o

reconhecimento da sua idoneidade e para a sua rapida expansao.

Em 1849 Joule publicou os resultados das suas rigorosas experiencias, iniciadas em

1840 e prosseguidas laboriosamente nos anos seguintes.

Figura 31: Dispositivo usado por Joule para obter o “equivalente mecanico do calor”.

A mais famosa das experiencias de Joule utilizava um dispositivo como mostra a

Fig. 31. Um peso, a descer, fazia girar uma roda de pas no interior de um recipiente isolado

termicamente (calorımetro) que continha agua ou outro lıquido. Assim era realizado

10Forca, em linguagem moderna, significa energia.

66

Page 67: Energia (Apontamentos)

trabalho de agitacao na agua, que podia ser medido, uma vez que o peso e a distancia

por ele percorrida podiam ser conhecidos. Com o auxılio de um termometro podia ser

medida a variacao de temperatura do sistema.

Com esta instrumentacao Joule obteve um valor para o equivalente mecanico do calor,

isto e a energia necessaria para elevar de 1 o C a temperatura de 1 g de agua. Em

linguagem moderna, o que Joule mediu foi o trabalho dissipativo necessario para aumentar

a temperatura da agua e nao “uma quantidade de calor produzida por friccao”como na

altura se julgou. Quando se diz normalmente que, num processo dissipativo, o “trabalho e

convertido em calor”, dever-se-ia dizer mais precisamente que, num processo dissipativo,

e obtido um aumento de energia interna do sistema, que e o mesmo que seria obtido se

houvesse um fluxo de calor Q igual em grandeza ao trabalho dissipativo realizado.

A unidade de calor corrente ao tempo de Joule era a caloria, que se definia como o

fluxo de calor que era necessario fornecer a 1 g de agua para aumentar a sua temperatura

de 1 o C. Joule mediu o seguinte equivalente mecanico para a caloria, encontrando

1 cal = 4, 19 J. (111)

Hoje sabe-se que essa quantidade varia conforme a temperatura da agua (ver Fig. 32) pelo

que se decidiu, por convencao internacional, definir caloria de 15o como o fluxo de calor

para 1 g de agua, que faz aumentar a temperatura desta de 14,5 para 15,5o C. Adiante, na

seccao 4.5, voltaremos a este assunto no contexto da definicao das capacidades termicas

massicas e molares.

4 , 1 7

4 , 1 9

0

c / J g - 1 º C - 1

t / º C2 0 4 0 6 0 8 0 1 0 0

4 , 2 1

Figura 32: Capacidade termica massica da agua, c, em funcao da temperatura, T (energianecessaria para elevar de 1 ◦C a temperatura de 1 g de agua).

As melhores medicoes experimentais ja realizadas fornecem o valor

1 cal = 4, 1858 J (112)

de onde ressalta a elevada precisao obtida na epoca de Joule (1 % de erro). Para evitar

variacoes do valor da caloria devida a novos ajustes de calibracao experimental define-se

caloria da Nova Tabela Internacional de Vapor como

1 cal =3600

860J = 4, 1860 J. (113)

67

Page 68: Energia (Apontamentos)

Deve notar-se, no entanto, que em fısica, quımica e engenharia recorre-se com muito

mais frequencia a unidade SI de energia (Joule).

A ideia da conservacao de energia foi claramente expressa por Joule em 1843, logo na

fase inicial das suas experiencias relativas ao equivalente mecanico do calor. Escreveu ele

nessa data: Estou satisfeito, porque os grandes agentes da Natureza sao indestrutıveis pela

vontade do Criador; (...) onde quer que se consuma energia mecanica, e sempre obtido

um equivalente mecanico do calor.

Os fısicos acreditam firmemente que a energia se conserva. Em mecanica, tanto classica

como quantica,mostra-se que o facto da energia se conservar e consequencia directa da

homogeneidade do tempo, isto e tem a ver com a equivalencia de todos os instantes

do tempo. A energia e constante num sistema isolado, pelo que, do ponto de vista

exclusivo de uma analise energetica, nao sabemos distinguir o passado do futuro. A

homogeneidade do tempo e uma ideia bastante agradavel, embora se deva notar que

a validade de leis de conservacao, e de princıpios de simetria que lhe estao associados,

assenta fundamentalmente no facto de, ate agora nenhuma experiencia as ter posto em

causa.

4.4 Outros tipos de trabalho

Considerou-se ate agora para um gas, lıquido ou solido — sistema PV T — apenas o

trabalho de expansao (ou trabalho hidrostatico), mas podem considerar-se outros tipos

de trabalhos de configuracao para sistemas nao-PV T : electrico, de tensao num fio ou

corda esticada, etc. A importancia do trabalho hidrostatico deve-se aos seguintes motivos

principais:

i) Historicamente foi o primeiro tipo de trabalho industrial;

ii) em muitos sistemas e um tipo de trabalho cuja realizacao nao e possıvel evitar, pois

o volume nao se mantem constante;

iii) no fundo, todos os trabalhos que se consideraram ou se vao considerar (hidrostaticos,

electricos, quımicos, etc.) sao equivalentes. Quer isto dizer que, ao contrario do

calor, nao parece existir nenhuma limitacao a transformacao completa entre si das

diferentes formas de trabalho mecanico (em processos cıclicos).

Por analogia com o trabalho mecanico comum, um intercambio de energia de um

sistema com a sua vizinhanca pode ser descrito, em geral, pelo trabalho de uma “forca

externa”que altera o estado termodinamico do sistema. Tal alteracao representa-se pela

variacao de uma variavel extensiva. Tem-se a seguinte expressao para o trabalho ter-

modinamico generalizado:

δW = X dY , (114)

68

Page 69: Energia (Apontamentos)

onde X e uma variavel termodinamica intensiva que representa o valor da forca macros-

copica externa e dY representa a mudanca infinitesimal na variavel extensiva Y . A X

chama-se forca generalizada e a Y o deslocamento generalizado. E evidente, por outro

lado, que nao se pode combinar qualquer par de variaveis termodinamicas, uma intensiva

e outra extensiva, para obter um trabalho termodinamico. De facto, os requisitos a impor

sao:

i) O produto X dY deve ter as dimensoes de uma energia,

ii) X dY deve representar uma interaccao fısica.

Consideremos diferentes formas de interaccao de um sistema com a sua vizinhanca e

estabelecamos a forma adequada para o trabalho realizado pelas forcas externas:

1. Suponhamos um fio ou corda elastica com determinado comprimento L e a tem-

peratura T . Neste caso, a tensao Γ na corda e a grandeza intensiva que entra na

definicao de trabalho. A equacao de estado e Γ = Γ(T, L), do mesmo modo que a

equacao de estado de um gas e P = P (T, V ). A tensao, Γ, e a forca generalizada

deste sistema, e o incremento do comprimento o deslocamento generalizado. Assim,

δW = Γ dL e

W =∫ L2

L1

Γ dL (115)

e o trabalho necessario para mudar o comprimento do fio. De acordo com a definicao

adoptada, se Γ > 0, dL > 0 e δW > 0: a energia interna da corda aumenta quando

se aumenta a tensao. Portanto, para um sistema ΓLT ,

dU = δQ + Γ dL , (116)

em contraste com dU = δQ− P dV para um sistema PV T .

2. Algo parecido sucede quando se trata a area de uma superfıcie, Σ. Considerando,

por exemplo, uma bola de sabao, os aumentos e diminuicoes da sua superfıcie

relacionam-se com a temperatura, T , e com a tensao superficial, σ, da pelıcula

de sabao e agua. A equacao de estado para este sistema escreve-se σ = σ(Σ, T ). A

bola tem uma energia de superfıcie medida por σ. Neste caso, a tensao superficial

e a forca generalizada, e a variacao da area e o deslocamento generalizado. Assim,

δW = σ dΣ e

W =∫ Σ2

Σ1

σ dΣ (117)

e o trabalho necessario para modificar a superfıcie sem mudar o volume. Tambem

neste caso a energia interna aumenta quando aumenta a area. Para um sistema

σΣT ,

dU = δQ + σ dΣ . (118)

69

Page 70: Energia (Apontamentos)

3. Para um sistema magnetico, a equacao de estado e H = H(M, T ), onde M e o

momento magnetico (dipolar) do sistema e H o campo magnetico externo. O campo

actua como uma forca generalizada, e a variacao do momento magnetico e o efeito

da forca, e, portanto, o deslocamento generalizado. A analise da situacao e algo

complexa, pois parte da energia “acumula-se”como energia magnetica, mas conclui-

se que o trabalho a realizar sobre um sistema se obtem de δW = µ0 H dM , com µ0

a permeabilidade magnetica do vazio11. Portanto,

W = µ0

∫ M2

M1

H dM (119)

e o trabalho necessario para modificar o momento magnetico de um material. Tem-

se ainda no sistema HMT , dU = δQ + µ0HdM . Se, alem dos efeitos magneticos, o

volume do sistema variar quando muda o seu momento magnetico, a expressao do

Primeiro Princıpio e

dU = δQ− P dV + µ0 H dM . (120)

A razao ultima de, no Primeiro Princıpio, so se considerar o trabalho de uma forma

generica como grandeza distinta do calor, deve-se ao facto de todos os trabalhos que

examinamos serem termodinamicamente equivalentes. Isto significa que se admite a exis-

tencia de processos cıclicos que podem transformar completamente o trabalho electrico

em hidrostatico, e este em magnetico, e este em electrico de novo, etc. Embora os

varios trabalhos devam ser distinguidos, eles sao todos equivalentes do ponto de vista

termodinamico. Se nao fosse assim, se por exemplo a variacao de energia electrica (tra-

balho electrico) fosse especial, o Primeiro Princıpio teria de distinguir entre trabalho

electrico, calor e trabalho generico, onde, no ultimo termo, se incluiriam todos os trabal-

hos termodinamicamente equivalentes diferentes do electrico. E, para alem do Segundo

Princıpio, que fornece uma assimetria entre calor e trabalho, seria necessario um outro

princıpio referente a energia electrica.

Em geral, se um sistema apresentar todos estes tipos de trocas de energia, a aplicacao

do Primeiro Princıpio a todos eles da

dU = δQ− P dV + Γ dL + σ dΣ + µ0 H dM + ...

= δQ +n∑

i=1

Xi dYi , (121)

onde Xi sao as forcas generalizadas e dYi sao os deslocamentos generalizados que entram

no trabalho

δWi = Xi dYi . (122)

Note-se que sao necessarias n + 1 variaveis para especificar completamente o estado do

sistema fechado, sendo n o numero das formas independentes de um sistema realizar

11Neste caso ha que incluir a constante µ0 na Eq. (114).

70

Page 71: Energia (Apontamentos)

trabalho reversıvel. Essas variaveis sao a temperatura e os n deslocamentos generalizados

Yi. Por exemplo, para o sistema descrito por (120) as variaveis sao tres: T , V e M .

O sinal menos so aparece no termo −P dV . Os trabalhos que fazem aumentar a energia

interna de um sistema sao positivos e os que a fazem diminuir sao negativos, razao pela

qual a IUPAP definiu todos os trabalhos, excepto −P dV , com sinal positivo.

Na Tab. 8 sumariam-se os principais tipos de trabalho de configuracao.

Sistema Trabalho DesignacaoXY T X dY

PV T −P dV HidrostaticoΓLT ΓdL ElasticoσΣT σ dΣ SuperficialEqT E dq ElectricoHMT µ0 H dM MagneticoEΠT E dΠ Dielectrico

Tabela 8: Trabalhos infinitesimais de configuracao.

4.5 Capacidades termicas

Em geral, a temperatura de um sistema muda quando ha um fluxo de calor para o

sistema (uma excepcao, ja atras mencionada, refere-se a transicoes de fase). Mas, para

um dado fluxo de calor Q, essa mudanca de temperatura, ∆T , toma valores diferentes

para substancias diferentes.

A capacidade termica de um corpo da-nos uma medida para essa diversidade de com-

portamentos. Definimos primeiramente capacidade termica media como a razao do fluxo

de calor no processo, e a correspondente variacao de temperatura:

C =Q

∆T. (123)

A capacidade termica e o valor para que tende a capacidade termica media quando o

processo se torna infinitesimal

C = lim∆T→0

Q

∆T=

δQ

dT. (124)

Note-se que δQ/dT nao e a derivada de Q em ordem a T , porque nao existe nenhuma

funcao Q = Q(V, T ) que se possa derivar! Trata-se apenas do quociente de um fluxo de

calor elementar pela correspondente variacao infinitesimal de temperatura.

71

Page 72: Energia (Apontamentos)

A capacidade termica massica ou molar c e a capacidade termica dividida pela massa

ou pelo numero de moles, conforme a conveniencia.:

c =C

mou c =

C

n. (125)

Desta forma podemos falar de capacidades termicas massicas (ou molares) de substancias

em vez de falarmos em capacidades termicas de corpos.

A capacidade termica depende do processo, uma vez que o fluxo de calor tambem

depende, e sempre que falarmos em capacidade termica teremos de indicar qual o processo

a que ele se refere. Mas ha dois processos particularmente interessantes e definem-se:

• Capacidade termica a pressao constante

CP =

(δQ

dT

)

P

, (126)

que e o calor que tem de se fornecer a um corpo para que, a pressao constante, a

sua temperatura aumente de um kelvin.

• Capacidade termica a volume constante

CV =

(δQ

dT

)

V

, (127)

que e o calor que e necessario fornecer para que, a volume constante, a temperatura

de um corpo aumente de um kelvin.

Estes calores devem ser fornecidos ao corpo de uma forma quase-estatica. Define-se

ainda o chamado coeficiente adiabatico por

γ =CP

CV

=cP

cV

. (128)

Como a volume constante nao ha trabalho de expansao, o calor cedido transforma-se

integralmente em energia interna (δQ = dU), pelo que (127) e equivalente a

CV =

(∂U

∂T

)

V

. (129)

(note-se que U(T, V ) ja e uma funcao que se pode derivar). O conhecimento de CV

permite um primeiro calculo da energia interna. Se CV for constante, entao

U = CV T + f(V ) + U0 , (130)

onde f(V ) e uma funcao apenas do volume e U0 e uma constante de integracao. Sistemas

para os quais U seja funcao unicamente da temperatura, U = U(T ), quer dizer, para os

quais a energia interna nao dependa do volume, sao chamados ideais, como acontece com

o gas perfeito. A Eq. (130) reduz-se entao a forma (10).

72

Page 73: Energia (Apontamentos)

As capacidades termicas CP e CV definidas por (126) e (127) nao sao independentes

como veremos — elas estao relacionadas com os coeficientes termicos referidos no Capıtulo

3. A equacao de estado, combinando a primeira e a segunda leis, e suficiente para se

reconhecer essa relacao.

Em geral, cP e mais facil de medir, uma vez que pode ser difıcil manecer constante

o volume do sistema . Mas, conhecida a relacao entre cP e cV , entao cV e calculado

imediatamente a partir de cP . Saliente-se desde ja que cP tem de ser superior a cV , pelo

que o coeficiente adiabatico (128) e sempre superior a 1.

Vamos de seguida analisar as capacidades termicas especıficas (massicas ou molares)

de gases, de lıquidos e de solidos numa perspectiva fenomenologica.

a) Gases

A Tab. 9 mostra as capacidades termicas especıficas, cP e cv, medidas experimental-

mente a temperaturas proximas da ambiente.

Gas cP /R cv/R (cP − cv)/R

He 2,50 1,506 0,991Ne 2,50 1,52 0,975Ar 2,51 1,507 1,005Kr 2,49 1,48 1,010Xe 2,50 1,50 1,000H2 3,47 2,47 1,000O2 3,53 2,52 1,010N2 3,50 2,51 1,000CO 3,50 2,50 1,000NO 3,59 2,52 1,070Cl2 4,07 3,00 1,070CO2 4,47 3,47 1,000NH3 4,41 3,32 1,100CH4 4,30 3,30 1,000Ar 3,50 2,50 1,000

Tabela 9: Capacidades termicas molares para varios gases a temperaturas proximas datemperatura ambiente.

Da tabela conclui-se que entre cP e cV existe a seguinte relacao aproximada

cP − cv = R, (131)

relacao esta que, de facto, e prevista pela teoria cinetica dos gases e que preve para cada

uma das quantidades, no quadro do modelo de gas perfeito os valores

73

Page 74: Energia (Apontamentos)

cV cP

32R 5

2R gases monoatomicos

52R 7

2R gases diatomicos.

(132)

Deve reparar-se que nada obriga a que a capacidade termica molar seja constante

mesmo num gas perfeito. O que se verifica e que, de facto, sao aproximadamente con-

stantes para gases reais em certos intervalos de temperatura. Mas, se o gas for perfeito

prova-se que a capacidade termica molar so pode depender da temperatura.

b) Lıquidos

Um exemplo de variacao da capacidade termica especıfica cP de um lıquido com a

temperatura encontra-se representado na Fig. 32. A capacidade termica massica cP e

praticamente igual a cV para a agua (a 4o C e mesmo exactamente igual, como veremos

mais tarde). Portanto, o que Joule mediu foi a capacidade termica massica da agua — a

caloria de 15o tem o valor numerico da capacidade termica massica da agua a 15o C. A

capacidade termica massica da agua e bastante mais elevada quando comparada com a

de outros lıquidos. Por exemplo, e preciso tres vezes mais energia para elevar de 1o C a

temperatura de 1 g de agua do que de 1 g de gasolina.

A Fig. 33 mostra a variacao com a pressao das capacidades termicas do mercurio.

Como se constata cP > cv, embora a diferenca entre os dois nao seja muito grande.

c P

c v

0 2 0 0 0 4 0 0 0 6 0 0 02 4

2 6

2 8c / J m o l - 1 K - 1

P / a t m

Figura 33: Variacao com a pressao das capacidades termicas massicas do mercurio, para t = 0o.

c) Solidos

A Fig. 34 representa a variacao com a temperatura das capacidades termicas molares

do cobre a pressao de 1 atm. A baixas temperaturas (inferiores a 300 K), cP e praticamente

igual a cV , e tanto cP como cV decaem para zero quando T → 0. Note-se que o ponto em

que a capacidade termica comeca a decair coincide aproximadamente com o ponto em que

74

Page 75: Energia (Apontamentos)

o coeficiente de dilatacao α comeca tambem a decair (ver Fig. 22). Para temperaturas

altas (superiores a 300 K), cv e praticamente constante enquanto que cP cresce linearmente

com a temperatura, sendo um pouco mais elevado do que cv.

0 4 0 0 8 0 0 1 2 0 0 T / K

c v

c P

c / J m o l - 1 K - 1

0

1 0

2 0

3 0

Figura 34: Variacao com a temperatura absoluta das capacidades termicas massicas do cobre,a pressao constante de 1 atm.

A constancia com a temperatura de cV a altas temperaturas esta contida no enunciado

da lei de Dulong e Petit (cv = 25 × 103 J K−1 mol−1). Como este valor e aproximada-

mente 3R, ve-se que a constante dos gases perfeitos aparece como unidade natural para a

capacidade termica especıfica tanto para gases como para solidos. Este facto sugere-nos

que esta constante tem qualquer coisa de universal, o que realmente a teoria cinetica e a

termodinamica estatıstica permitem demonstrar.

4.5.1 - Teoria cinetica e capacidades termicas

Vamos de seguida analisar o problema da capacidade termica a luz da teoria cinetica.

Consideremos um gas monoatomico, isto e um gas cujas moleculas podem ser considera-

das sem estrutura interna. No Capıtulo 3, a proposito da “deducao”da equacao de estado

de um gas perfeito no quadro da teoria cinetica, vimos que v2x = v2

y = v2z , uma vez que o

espaco e isotropico. Entao a energia cinetica de translaccao distribui-se igualmente pelas

varias componentes espaciais da velocidade e, portanto, v2 = 3 v2x. A energia cinetica

associada a cada componente cartesiana da velocidade e 1/3 da energia cinetica total (ver

(36))1

2mv2

x =1

3(1

2mv2) =

1

2kBT. (133)

Dizemos que a molecula tem tres graus de liberdade e que a energia esta igualmente

distribuıda por eles. Em geral, os graus de liberdade correspondem as diversas maneiras

de distribuir a energia.

75

Page 76: Energia (Apontamentos)

Este exemplo ilustra um princıpio relativo a distribuicao de energia pelos diferentes

graus de liberdade. E o princıpio da equiparticao da energia, de acordo com o qual a

energia se distribui igualmente por todos os graus de liberdade possıveis, cabendo 12kBT

a cada grau de liberdade, desde que a energia associada a cada grau de liberdade seja

uma funcao quadratica da variavel respectiva. Mas note-se que o exemplo dado relativo

a energia cinetica de uma molecula monoatomica constitui apenas um caso particular do

princıpio geral da equiparticao de energia, que tem muitas aplicacoes.

De acordo com este princıpio de equiparticao, a energia interna e

U = Nε = N

(f

2kBT

)(134)

com N o numero de moleculas, ε a energia media de cada molecula e f o numero de graus

de liberdade de cada molecula.

A energia interna de um gas monoatomico e

U =3

2NkBT. (135)

Esta expressao esta de acordo com a afirmacao que adiante sera feita, de que a energia

interna de um gas perfeito apenas depende da temperatura. A expressao fornece um valor

absoluto para a energia interna, enquanto que o Primeiro Princıpio so fala de variacoes de

energia interna. Nesta teoria cinetica, que e classica, a energia interna no zero absoluto e

zero, o que corresponde a ausencia total de movimento. Na teoria quantica nao e assim e

existe uma energia do ponto zero.

Se a molecula for diatomica, existe a possibilidade de haver uma rotacao no espaco,

do eixo que une os atomos constituintes. A orientacao do eixo no espaco pode ser especi-

ficada por meio de dois angulos, que podem ser os habituais angulos polar e azimutal das

coordenadas esfericas. Existem assim, para alem dos tres graus de liberdade associados

a translacao do centro de massa, mais dois graus de liberdade internos respeitantes a

rotacao.

Ora, a energia cinetica de rotacao depende quadraticamente da velocidade angular,12Iω2, pelo que se pode aplicar o princıpio da equiparticao da energia. Assim, uma

molecula de um gas diatomico tem 5 graus de liberdade, e a sua energia interna e

U =5

2NkBT. (136)

Se suposermos ainda que os dois atomos podem vibrar em torno das suas posicoes de

equilıbrio, entao tem-se mais dois graus de liberdade adicionais relativos a energia cinetica

e potencial do oscilador harmonico na coordenada relativa. Ambas as energias, respecti-

vamente 12mv2

x e 12kx2 sao quadraticas nas variaveis respectivas, pelo que o princıpio da

equiparticao se pode voltar a aplicar, originando o seguinte resultado

U =7

2NkBT. (137)

76

Page 77: Energia (Apontamentos)

Um solido, por sua vez, pode-se considerar como uma rede de ioes entre os quais exis-

tem forcas elasticas (forcas de oscilador harmonico). Como se devem considerar osciladores

harmonicos para cada eixo coordenado, e como a cada oscilador harmonico correspondem

dois graus de liberdade (energia cinetica e potencial), tem-se que o numero total de graus

de liberdade por iao e f = 6 e portanto a energia interna do solido nesta teoria classica e

U = 3N kB T. (138)

A capacidade termica a volume constante, CV , obtem-se derivando parcialmente a

energia interna U em ordem a temperatura com V constante (ver (129)). De (134) e em

geral

cv =

(∂u

∂T

)

v

=f

2

kBN

n. (139)

Como kB N = nR (ver Eq. (35)) pode-se ainda escrever

cv = fR

2. (140)

Assim, para um gas monoatomico, cv = 32R; para um gas diatomico, cv = 5

2R e, se

existir vibracao na coordenada relativa, cv = 72R.

A Fig. 35 mostra o valor experimental da capacidade termica molar a pressao constante

para o hidrogenio que e um gas diatomico. Numa zona de temperaturas intermedias, a

capacidade termica cv = cP − R tem realmente o valor 52R, mas verificam-se saltos de

R sempre que se sai dessa zona de temperaturas. Esses saltos devem-se ao facto de, a

temperaturas baixas os graus de liberdade de rotacao estarem congelados; por seu lado,

acima de uma temperatura crıtica despertam os graus de liberdade de vibracao molecular.

c P / R

5

4

3

2

1 0 0 1 0 0 0 5 0 0 0 T / K

7 5 0 K7 5 K

1

Figura 35: Variacao com a temperatura absoluta da capacidade termica molar (a pressaoconstante) do hidrogenio.

77

Page 78: Energia (Apontamentos)

Para moleculas poliatomicas (com mais de dois atomos) o numero de graus de liberdade

cresce, crescendo tambem correspondentemente os valores do calor especıfico (ver Tab. 9).

Para um solido

cv = 3R (141)

relacao conhecida por lei de Dulong e Petit, ja atras referida. Este resultado e classico,

falhando para temperaturas baixas, regiao onde se exige um tratamento quantico. A

teoria quantica em conjugacao com a teoria estatıstica, da conta perfeitamente do com-

portamento da capacidade termica massica a baixas temperaturas. Esta capacidade tende

para zero quando T → 0, conforme obriga a terceira lei da termodinamica, obedecendo a

lei de Debye

cv = A(

T

θD

)3

(142)

em que A e uma constante (A = 19, 4 × 105 J K−1), e θD e a chamada temperatura de

Debye, que tem o significado de temperatura a que se da a transicao do regime classico

para o regime quantico. Para o cobre, θD =315 K. Cada substancia tem uma temperatura

de Debye caracterıstica, sendo o calor especıfico uma funcao universal de T/θD. A Fig. 36

mostra a previsao teorica e os valors experimentais de cv para varios solidos. O acordo e

excelente. Indicam-se tambem as temperaturas de Debye desses solidos.

c v / R

0

1

2

3

T / q D2 , 01 , 0

P b

K C lA g

Z nN a C lC u A l C a F 2C

8 8

2 3 02 1 5

2 3 52 8 13 1 53 9 84 7 41 8 6 0

Q D

Figura 36: Variacao com T/θD da capacidade termica especıfica dos solidos.

4.5.2 - Condutividade termica

Para concluir esta seccao vamos fazer uma breve referencia ao problema da condutivi-

dade termica.

O transporte de energia entre dois materiais em resultado da diferenca de temperatura

entre eles chama-se conducao termica. A lei fundamental que regula a conducao termica

(lei de Fourier) afirma que o fluxo de calor por unidade de tempo e proporcional a area

da seccao recta do material por onde ocorre a transferencia e a diferenca de temperatura,

e inversamente proporcional a distancia entre os dois corpos 1 e 2 (ver Fig. 37).

78

Page 79: Energia (Apontamentos)

2 1A

D x

T 1T 2 > T 1Q

Figura 37: Esquema de uma peca de comprimento ∆x e seccao A unindo dois materiais 1 e 2.

A lei da conducao termica pode escrever-se

Q

∆t∝ A

∆T

∆x. (143)

No limite em que ∆t → 0,δQ

dt= −kA

dT

dx(144)

chamando-se a k a condutividade termica e a dT/dx o gradiente de temperatura. Um

bom condutor termico caracteriza-se por um elevado valor de k, ao passo que um mau

condutor termico tem um baixo valor de k.

Para uma peca uniforme o gradiente de temperatura e dTdx

= T2−T1

∆xpelo que

δQ

dt= −kA

T2 − T1

∆x. (145)

Na Tab. 10 indicam-se as condutividades termicas de alguns materiais.

Material k / J s−1 m−1 K−1

Prata 427Cobre 397Alumınio 238Ferro 80Vidro 0,8Cimento 0,8

Agua 0,6Borracha 0,19Madeira 0,08Cortica 0,06La pura 0,04Ar 0,023

Tabela 10: Capacidades termicas molares para varios gases a temperaturas proximas datemperatura ambiente.

79

Page 80: Energia (Apontamentos)

4.6 Entalpia

Da eq. (101) conclui-se que, para um processo reversıvel e isocorico num sistema PV T ,

a variacao de energia interna iguala o fluxo de calor:

∆U = Q (∆V = 0). (146)

Ora, acontece que muitos processos como, por exemplo, as reaccoes quımicas, se desen-

rolam a pressao constante. E entao conveniente definir uma grandeza cuja variacao seja

tal que iguale o fluxo de calor em processos isobaricos. Essa grandeza e a entalpia que e

a energia interna somada da quantidade PV :

H = U + PV. (147)

A entalpia H e uma propriedade dos sistemas porque somando a uma funcao de estado

o produto de outras duas, obtem-se naturalmente outra funcao de estado. A utilidade da

funcao entalpia advem do facto de dH, para processos isobaricos, igualar o fluxo de calor

dH = dU + PdV + V dP =

= δQ− PdV + PdV + V dP =

= δQ + V dP (148)

pelo que

δH = δQ (dP = 0) , (149)

e tambem

∆H = Q . (150)

Durante mudancas de fase, os processos isotermicos sao tambem isobaricos, pelo que o

calor necessario para se dar a transicao de fase e entao igual a diferenca de entalpia entre as

duas fases. A este fluxo de calor, dividido pela massa ou pelo numero de moles, chama-se

calor de transformacao ou calor latente:

` =Q

m=

∆H

m= ∆h. (151)

O calor de transformacao para a fusao do gelo e muito menor do que o calor de

transformacao para a ebulicao da agua lıquida. A Fig. 38 representa o calor de ebulicao

(`) da agua em funcao da temperatura.

A entalpia desempenha, para processos isobaricos, um papel semelhante ao da energia

interna para processos isocoricos. A primeira e o calor se dP = 0 e a segunda e o calor se

dV = 0. As duas sao exemplos de potenciais termodinamicos. Dos dois restantes, F e G,

falaremos mais tarde.

80

Page 81: Energia (Apontamentos)

0 1 0 0 2 0 0 4 0 00

1 0

2 0

l x 1 0 - 5 / J k g - 1

t / º C3 0 0

Figura 38: Calor latente de vaporizacao da agua em funcao da temperatura.

4.7 Consequencias da Primeira Lei e formalismo termodinamico —

V e T como variaveis independentes

A primeira e segunda leis da termodinamica consideradas em conjunto tem muitas con-

sequencias. Nesta seccao vamos ver como se podem obter algumas dessas consequencias

apenas recorrendo a primeira lei e a alguma informacao experimental. Desta forma

chegaremos a resultados importantes tais como

– a equacao da energia, a qual exprime a energia interna em funcao de duas variaveis

de estado, por exemplo V e T ;

– a relacao entre as capacidades termicas especıficas a volume e a pressao constante;

– a equacao de um processo adiabatico.

Tendo em vista as finalidades apontadas, partimos da expressao matematica da

primeira lei na sua forma diferencial dada pela Eq. (103) e do facto de du ser uma diferen-

cial exacta. Iremos estudar processos isocoricos, isobaricos e adiabaticos e, como exemplos

de aplicacao, iremos considerar o gas perfeito e o gas de van der Waals.

Tomemos o volume V e a temperatura T como variaveis independentes (embora seja

possıvel considerar quaisquer duas outras), e consideremos um processo reversıvel. A

expressao da Primeira Lei em forma diferencial permite escrever

δq = du + P dv. (152)

A diferencial du, porque e exacta, e dada por (recorde-se que T e v sao as variaveis

independentes)

du =

(∂u

∂T

)

v

dT +

(∂u

∂v

)

T

dv (153)

81

Page 82: Energia (Apontamentos)

expressao que, inserida em (152), origina

δq =

(∂u

∂T

)

v

dT +

[(∂u

∂v

)

T

+ P

]dv. (154)

Esta expressao, que e geral, pode ser particularizada para o caso dv = 0 (processos

isocoricos). Entao, por definicao de capacidade termica massica a volume constante,

δqv = cv dTv (ver Eq. (127)) e a eq. (154) passa a escrever-se

cv dTv =

(∂u

∂T

)

v

dTv (155)

e reencontramos a expressao (129)

cv =

(∂u

∂T

)

v

. (156)

Do ponto de vista matematico, a capacidade termica massica ou molar cv e a derivada

parcial da energia interna em ordem a temperatura, com o volume constante. O significado

geometrio e evidente: cv e a inclinacao de uma isocorica na superfıcie da energia u(v, T ),

da mesma maneira que o coeficiente de dilatacao α esta relacionado com a inclinacao da

isocorica na superfıcie de estado [ver Eq. (49)]. A expressao (127) pode ser vista como a

definicao fısica da capacidade termica, ao passo que (156) sera a sua definicao matematica.

Entrando com (156) em (153), vem

du = cv dT +

(∂u

∂v

)

T

dv. (157)

Mas, para integrar esta expressao e obter a equacao da energia e necessario conhecer,

alem de cv, a derivada parcial(

∂u∂v

)T.

Para processos isobaricos dP = 0 e δqP = cP dTP . Da Eq. (154),

cP dTP = cv dTP +

[(∂u

∂v

)

T

+ P

]dvP , (158)

donde se conclui que

cP − cv =

[(∂u

∂v

)

T

+ P

] (∂v

∂T

)

P

. (159)

A derivada(

∂v∂T

)P

relaciona-se com o coeficiente de dilatacao e e conhecida directamente

a partir da equacao de estado. Voltamos, por outro lado, a encontrar a derivada(

∂u∂v

)T

que, a priori, nao conhecemos.

Consideremos, finalmente, processos adiabaticos (ou isoentropicos) reversıveis, (δq =

ds = 0). Obtem-se, de (154), a equacao diferencial

cv

(∂T

∂v

)

s

= −[(

∂u

∂v

)

T

+ P

](160)

82

Page 83: Energia (Apontamentos)

que, depois de integrada, permite conhecer a equacao de um processo adiabatico12. Mas

para podermos efectuar essa integracao, e forcoso conhecer igualmente a derivada(

∂u∂v

)T.

4.7.1 - Experiencia de Gay-Lussac — Joule

Descrevemos a seguir uma experiencia que permite determinar(

∂u∂v

)T

para um gas. E

a chamada experiencia de Gay-Lussac – Joule, dos nomes de Joule e do quımico frances

Gay-Lussac que, em meados do seculo XIX, a realizaram.

Como nao e possıvel medir directamente a energia interna, vamos expressar a derivada

procurada(

∂u∂v

)T

em termos de outra mais facilmente mensuravel. Para isso usamos a

regra do produto em cadeia de derivadas parciais (Eq. 65) na forma

(∂u

∂v

)

T

(∂v

∂T

)

u

(∂T

∂u

)

v

= −1 (161)

ou, atendendo a (156), (∂u

∂v

)

T

= −cv

(∂T

∂v

)

u

= −cv η, (162)

onde η e o chamado coeficiente de Joule. Apenas tem de se investigar como varia a

temperatura com o volume num processo em que nao haja variacao de energia interna.

O processo imaginado por Gay-Lussac e por Joule consiste numa expansao livre, isto

e um processo em que se aumenta o volume do sistema, permitindo que um gas, que

inicialmente ocupava um recipiente, venha a alargar-se a uma zona onde inicialmente

existia o vacuo. O trabalho numa expansao livre e zero porque a pressao externa e zero

(pode pois haver mudanca de configuracao de um sistema sem realizacao de trabalho). O

dispositivo experimental (Fig. 39) consta de um vaso A, que contem inicialmente o gas.

Esse vaso liga-se por intermedio de uma torneira a um vaso B, onde se fez previamente

o vacuo. Os dois vasos estao mergulhados num tanque de agua, termicamente isolado

do exterior, e onde existe um termometro que permite avaliar eventuais mudancas de

temperatura da agua.

Inicialmente o sistema conjunto esta num estado de equilıbrio e a temperatura da

agua pode ler-se no termometro. De seguida abre-se a torneira, de modo a processar-

se a expansao livre. O processo e irreversıvel, porque a situacao inversa nao acontece

(e extremamente improvavel que o gas que inicialmente ocupava os vasos A e B venha a

confinar-se so a A). Acaba por se chegar a um novo estado de equilıbrio no fim do processo

e pode ler-se entao novamente a temperatura no termometro. A energia interna final e

igual a energia interna inicial

u2 = u1 (163)

12Como veremos no proximo capıtulo, um processo adiabatico e isoentropico: a entropia especıficarepresenta-se por s e esta grandeza em ındice nas equacoes anteriores significa que ela se mantem con-stante.

83

Page 84: Energia (Apontamentos)

A B

Figura 39: Experiencia de Gay-Lussac – Joule.

porque nao houve nem trabalho nem fluxos de calor de ou para o exterior. Nestas condicoes

pode saber-se qual e a variacao de temperatura associada a variacao de volume, e portanto

qual o valor da derivada η =(

∂T∂v

)u.

Vamos aplicar o que ate agora vimos do formalismo termodinamico ´decorrente da

Primeira Lei aos gases perfeitos e de van der Waals, referindo os resultados da experiencia

que acabamos de descrever.

4.7.2 - Energia de um gas perfeito

Embora os resultados nao fossem de grande precisao, Gay-Lussac e Joule concluiram

que o coeficiente de Joule era muito pequeno, podendo mesmo, em determinadas cir-

cunstancias, ser considerado nulo. Todas as experiencias subsequentes, realizadas com

gases a baixas pressoes (cujo comportamento se aproxima, portanto, do descrito pela

equacao dos gases perfeitos), confirmaram que praticamente nao ha variacao de tempera-

tura com o aumento de volume no processo isoenergetico de expansao livre. Pode portanto

postular-se que uma caracterıstica fundamental dos gases ideais e que o seu coeficiente de

Joule e zero:

η = 0. (164)

Este resultado tem grandes repercussoes. Assim de (162) conclui-se imediatamente que(

∂u

∂v

)

T

= 0. (165)

Este facto vai permitir simplificar as eqs. (157), (159) e (160). Assim, de (157) resulta

du = cv dT (166)

ou

cv =du

dT. (167)

Para gases perfeitos a capacidade termica a volume constante e a derivada total da energia

interna em ordem a temperatura. Integrando (166) obtem-se∫ u

u0

du = u− u0 =∫ T

T0

cv dT (168)

84

Page 85: Energia (Apontamentos)

ou, se cv puder ser considerado constante,

u = u0 + cv(T − T0), (169)

que e a equacao da energia procurada. A energia interna do gas perfeito so depende da

temperatura, o que esta de acordo com o resultado (134) da teoria cinetica dos gases. A

representacao grafica da equacao da energia e um plano, cuja inclinacao e medida por cv

(ver Fig. 40).

Porque e que se aquecem as casas no inverno? A esta questao o homem da rua

respondera que se fornece calor para tornar a casa mais habitavel, enquanto o estudante

de termodinamica podera dizer que se trata de aumentar a energia interna da sala. Neste

caso e a primeira resposta a mais proxima da verdade e a segunda errada. Com efeito a

energia interna da sala permanece constante com o aumento da temperatura.

u

T

V

Figura 40: Superfıcie uvT para um gas ideal.

Considere-se, para simplificar u(T0) = u0 = 0 em (169), donde u = cvT . Considerando o

ar da sala como um gas perfeito,

U = cvPV

R. (170)

Ora, como P e V sao fixos, a energia total e independente da temperatura. O que

acontece e que o sistema nao e fechado. Uma sala tem sempre orifıcios que permitem a

comunicacao com o exterior. Assim, a pressao da sala sera sempre a pressao atmosferica.

Ao aquecer a sala diminui-se o numero de moles de ar dentro da sala, uma vez que algumas

moleculas saem. No interior ficam menos moleculas, mas mais energeticas, o que assegura

a constancia da energia interna total.

Podemos ainda estabelecer a relacao entre as capacidades termicas a pressao e a volume

constantes para um gas ideal a partir de (159) uma vez que e nula a derivada da energia

85

Page 86: Energia (Apontamentos)

interna nessa expressao. Usando a equacao de estado do gas perfeito para obter a outra

derivada parcial em (159) conclui-se que

cP − cv = P

(∂v

∂T

)

P

= R. (171)

A diferenca entre os calores especıficos cP e cv e simplesmente a constante dos gases

perfeitos. A Tab. 9 fornece valores de (cP − cv)/R para gases reais a temperaturas

proximas da ambiente e conclui-se que a relacao e bastante bem satisfeita na pratica.

4.7.3 - Equacao da adiabatica para o gas ideal

Vamos deduzir a equacao para um processo adiabatico realizado num gas ideal. A Eq.

(160) e valida quando δq = 0. Se usarmos o resultado experimental (160) e a equacao de

estado do gas perfeito obtemos sucessivamente

cv

(∂T

∂v

)

s

= −P

cv

(∂T

∂v

)

s

= −RT

v

dTs

T= −R

cv

dvs

v(172)

donde, procedendo a integracao, na qual se supoe que cv e constante,

log T +R

cv

log v = log C

T vR/cv = C (173)

que e a equacao da adiabatica para um gas perfeito. Usando o coeficiente adiabatico

definido em (128) e usando a eq. (171), a equacao anterior toma a forma

T vγ−1 = C. (174)

Uma forma talvez mais usual da equacao da adiabatica emprega as variaveis P e v, e

pode obter-se a partir de (174) com a ajuda da equacao de estado

Pv

Rvγ−1 = C

Pvγ = C (175)

(o valor da constante na ultima equacao e obviamente diferente). Uma terceira forma da

equacao da adiabatica de um gas ideal, envolvendo agora as variaveis T e P e ou (tambem

aqui a constante e diferente das anteriores)

T P (1−γ)/γ = C . (176)

86

Page 87: Energia (Apontamentos)

P

V

Figura 41: Representacao de processos adiabaticos (curvas a cheio) e de processos isotermicos(curvas a tracejado).

A quantidade γ e 5/3 para gases monoatomicos e 7/5 para gases diatomicos, a tempera-

turas proximas da ambiente, de acordo com a teoria cinetica dos gases quando aplicada

ao calculo de capacidades termicas molares. A Fig. 41 representa curvas adiabaticas num

diagrama Pv. Em qualquer ponto estas curvas sao mais inclinadas que as isotermicas que

passam por esse mesmo ponto, como se prova de seguida analiticamente.

Diferenciando a eq. dos gases perfeitos a temperatura fixa, Pv = RT obtem-se

v dPT + P dvT = 0 (177)

enquanto que diferenciando a equacao da adiabatica (175) se encontra

Pγvγ−1dvs + dPs vγ = 0 (178)

De (177) vemdPT

dvT

=

(∂P

∂v

)

T

= −P

v(179)

e de (178) obtem-sedPs

dvs

=

(∂P

∂v

)

s

= −γP

v. (180)

Como o coeficiente adiabatico e sempre maior do que 1

∣∣∣∣∣

(∂P

∂v

)

s

∣∣∣∣∣ >

∣∣∣∣∣

(∂P

∂v

)

T

∣∣∣∣∣ (181)

como querıamos provar — num dado ponto do diagrama de Clapeyron a adiabatica que

passa por esse ponto e sempre mais inclinada que a isotermica que passa nesse mesmo

ponto.

O trabalho realizado num processo adiabatico reversıvel para um gas ideal pode

calcular-se com a ajuda da equacao da energia (169). Num processo adiabatico nao

87

Page 88: Energia (Apontamentos)

ha fluxos de calor e o trabalho realizado, de acordo com a primeira lei, e entao dado pela

variacao da energia interna

ws = ∆u. (182)

Mas, de (169) resulta ∆u = cv ∆T , se cv puder ser considerado independente da temper-

atura, pelo que

ws = cv ∆T = cv(Tf − Ti). (183)

Se ha aumento de volume o trabalho e negativo e a temperatura final Tf tem de ser menor

que a inicial Ti. E obvio que o resultado (183) pode igualmente ser obtido efectuando o

integral∫

P dv com o recurso a equacao da adiabatica (175).

O ciclo de Carnot, que servira de base aos raciocınios da segunda lei, e composto por

dois processos isotermicos reversıveis e por dois processos adiabaticos reversıveis. Iremos

referir muitas vezes este ciclo ao longo do proximo capıtulo. Podemos desde ja represen-

ta-lo num diagrama PV para o caso de um gas ideal, tal como se mostra na Fig. 42, onde

tambem se indica o trabalho realizado no ciclo (area sombreada). Os processos I e III sao

isotermicos e os processos II e IV sao adiabaticos.

P

V

1

2

3

T 1

T 2

4I

I II I I

I V

Figura 42: Representacao do ciclo de Carnot para um gas perfeito.

4.7.4 - Gases de van der Waals

Para gases reais o coeficiente de Joule nao e exactamente zero tal como acontece para

gases reais. O modelo de van der Waals permite simular bastante bem o comportamento

de gases reais. Para gases de van der Waals pode determinar-se, por via teorica, o seguinte

valor para o coeficiente de Joule, valor este que esta de acordo com algumas observacoes

em experiencias como a de Gay-Lussac – Joule:

η = − a

cvv2−→

(∂u

∂v

)

T

=a

v2(184)

O coeficiente de Joule para gases de van der Waals conduz aos seguintes resultados:

88

Page 89: Energia (Apontamentos)

• Da equacao da energia (157), vem

u = cv(T − T0)− a(

1

v− 1

v0

)+ u0 ; (185)

• A diferenca entre as capacidades termicas molares cP e cv obem-se de (159),

encontrando-se

cP − cv = R1

1− 2a(v − b)2

RTv3

; (186)

• A equacao da adiabatica e obtida a partir de (160) e, nas variaveis T e v,

T (v − b)R/cv = C. (187)

Como se constata, para a = b = c os resultados reduzem-se aos de um gas ideal. O

parametro a, que esta relacionado com as forcas intermoleculares de atraccao, tem a ver

com o coeficiente de Joule e, portanto, com a equacao da energia e com a diferenca cP−cv.

O parametro b, que esta relacionado com o tamanho das moleculas, aparece tao somente

na equacao da adiabatica.

4.8 Formalismo termodinamico — P e T como variaveis independentes

Suponhamos agora que se escolhem as variaveis T e P . Esta situacao pode conside-

rar-se simetrica da anterior. Em vez da energia deve-se usar agora a entalpia, tal como se

intui dos argumentos utilizados na seccao anterior. Com as seguintes simples substituicoes

podem obter-se novas formulas, quando as variaveis independentes sao T e P , em vez das

antigas T e v

u → h , P → −v , v → P. (188)

Mas vejamos, com mais pormenor, como para os processos isocoricos, isobaricos e

adiabaticos referidos anteriormente se obtem agora respectivamente: a diferenca entre as

capacidades termicas molares a pressao e a volume constantes; a equacao da entalpia; a

equacao da adiabatica.

Como a diferencial da entalpia e

dh = du + P dv + v dP (189)

resulta que

δq = dh− v dP. (190)

A diferencial dh e exacta, o que permite escrever

dh =

(∂h

∂T

)

P

dT +

(∂h

∂P

)

T

dP (191)

89

Page 90: Energia (Apontamentos)

e entao

δq =

(∂h

∂T

)

P

dT +

[(∂h

∂P

)

T

− v

]dP. (192)

Consideremos agora varios tipos de processos. De dP = 0, e evidente que

cP =

(∂h

∂T

)

P

(193)

que e a equacao analoga de (156). A analoga de (159) e

cP − cv = −[(

∂h

∂P

)

T

− v

] (∂P

∂T

)

v

. (194)

A equacao da entalpia e

dh = cP dT +

(∂h

∂P

)

T

dP. (195)

e a equacao da adiabatica e

cP

(∂T

∂P

)

s

= −[(

∂h

∂P

)

T

− v

]. (196)

Mas agora e necessario conhecer a derivada(

∂h∂P

)T

o que e possıvel recorrendo a ob-

servacao experimental. A experiencia de Joule-Thomson ou de Joule-Kelvin (Thomson

veio a tornar-se Lord Kelvin), permite determinar essa derivada embora de uma maneira

indirecta. De um modo analogo a (162) tem-se que(

∂h

∂P

)

T

= −cP

(∂T

∂P

)

h

= −cP µ, (197)

em que µ =(

∂T∂P

)h

e o chamado coeficiente de Joule-Thomson ou de Joule-Kelvin. Na ex-

periencia de Joule-Thomson realiza-se o estrangulamento de um gas devido a um obstaculo

poroso (tampao). Um tubo cilındrico de paredes rıgidas e adiabaticas esta dividido em

duas partes por uma parede rıgida isoladora na qual existem pequenos orifıcios (Fig. 43).

Contra esta parede encosta um pistao adiabatico e sem atrito, evitando deste modo que o

gas do outro lado passe atraves dos orifıcios. O gas mantem-se a pressao P1 mediante um

outro pistao adiabatico e sem atrito. Imagine-se que ambos os pistoes se deslocam simul-

taneamente, de modo que, quando o gas passa atraves dos orifıcios, a pressao mantenha

o valor constante P1, de um lado do tabique, e o valor P2 < P1, do outro lado, ate que

todo o gas tenha passado atraves do orifıcio. Estes valores de pressao (e de temperatura

tambem) sao mensuraveis.

O sistema esta protegido por um isolador termico, sendo portanto o processo

adiabatico. Facilmente se conclui que a entalpia final e igual a entalpia inicial:

Q = ∆U −W = ∆U +∫ V2

0P2dV +

∫ 0

V1

P1dV = ∆U + P2V2 − P1V1 = 0

U2 − U1 + P2V2 − P1V1 = 0

U1 + P1V1 = U2 + P2V2 ⇐⇒ H1 = H2. (198)

90

Page 91: Energia (Apontamentos)

P 1

P 2

( i )

( f )

( T 1 , V 1 1 )

( T 2 , V 2 )

Figura 43: Experiencia de Joule-Thomson ou de Joule–Kelvin.

Note-se, no entanto, que nao se pode afirmar que o processo seja isoentalpico pois tal

afirmacao pode dar a entender que a entalpia se mantem durante todos os passos in-

termediarios do processo. Ora acontece que o processo e irreversıvel e nao ha estados

intermediarios de quase-equilıbrio.

Suponhamos que o sistema parte de um estado de equilıbrio com a pressao P1 e a

temperatura T1 e chega a pressao P3 e T3, diferentes respectivamente de P2 e T2, corres-

pondentes a um estado final com a mesma entalpia que o estado inicial. Este estado

final pode conseguir-se mudando simplesmente o ritmo de bombagem. Tem-se pois, deste

modo, uma famılia de pontos obtidos a partir do estado P1 T1, que se podem representar

num diagrama PT . E o caso da curva a cheio na Fig. 44. Note-se que a curva nao

representa um processo real mas e simplesmente o lugar geometrico dos possıveis pontos

de chegada com a mesma entalpia que o ponto de partida. Comecando com outros estados,

como por exemplo P ′1 T ′

1 obtem-se novas curvas com todos os seus pontos a mesma entalpia

(a entalpia difere de curva para curva). A situacao representada na Fig. 44 e tıpica de

muitos gases reais. Para temperaturas baixas, as curvas apresentam um ponto maximo

chamado ponto de inversao. Para a esquerda do ponto de inversao, a temperatura do gas

diminui, o que pode levar a sua liquefaccao.

Acontece que para grandes temperaturas e baixas pressoes, regiao onde os gases reais

podem ser descritos pelo modelo dos gases perfeitos, nao ha ponto de inversao e a in-

clinacao da curva de entalpia constante T = T (P ) e praticamente zero. Portanto nessa

situacao a temperatura nao varia com a pressao a entalpia constante, e pode postular-se

que o coeficiente de Joule-Thomson e nulo para um gas perfeito:

µ = 0. (199)

As consequencias deste facto vem apenas confirmar as formulas ja atras obtidas a partir

do conhecimento do coeficiente de Joule. As novas expressoes nao trazem nada de novo,

dando apenas um aspecto diferente ao mesmo conteudo fısico que atras foi concluıdo. As-

sim, a diferenca entre capacidades termicas molares para processos isobaricos e isocoricos

91

Page 92: Energia (Apontamentos)

T

P

( T 1 , P 1 )( T 2 , P 2 )

( T 3 , P 3 )( T ' 1 , P ' 1 )

Figura 44: Pontos de igual entalpia.

e

cP − cv = v

(∂P

∂T

)

v

= R. (200)

Se cP puder ser considerado constante a equacao da entalpia e representada por um

plano mais inclinado que o plano da energia, porque cP > cv. Finalmente, a equacao da

adiabatica e

cP

(∂T

∂P

)

s

= v, (201)

que integrada, na suposicao de cP ser constante, resulta em

TP (1−γ)/γ = C. (202)

que e a Eq. 175. Uma aplicacao interessante de (4.96) consiste no calculo da dependencia

da temperatura da atmosfera com a altitude.

Para gases de van der Waals, os resultados sao os seguintes. Parte-se do coeficiente

de Joule-Thomson

µ = − 1

cP

R T v3 b− 2 a v (v − b)2

R T v3 − 2 a (v − b)2(203)

e obtem-se:

• Diferenca entre as capacidades termicas molares:

cP − cv = −[−cP µ− v]

(∂P

∂T

)

v

= R1

1− 2a(v−b)2

RTv3

; (204)

• Equacao da entalpia:

h = cP T − 2a

v− RTv

v − b; (205)

• Equacao da adiabatica:

T (v − b)R/cv = C . (206)

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Page 93: Energia (Apontamentos)

Depois de estudarmos a segunda lei ver-se-a que nao e necessaria a determinacao

experimental dos coeficientes de Joule-Thomson para conhecer as expressoes deduzidas

da termodinamica macroscopica. Tal como ja foi dito, a equacao de estado permite

determinar esses coeficientes.

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