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TRAJETÓRIAS DO DISCURSO LATINO-AMERICANISTA

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TRAJETÓRIAS DO DISCURSOLATINO-AMERICANISTA

a busca de sentido do vocabulário integracionista,nada melhor do que partir de questões fundamen-tais: o que vem a ser a América Latina, o que ela

bal trader o tornam player de relevo na cena internacional.De modo altamente negativo, todavia, pesam sua democra-cia de participação restrita, tumultuada pela corrupção nasaltas esferas, e seus desavantajados indicadores sociais nasescalas do Índice de Desenvolvimento Humano da ONU edo Índice Gini, mesmo em comparação com vizinhos dohemisfério sul.

A PRODUÇÃO DA AMÉRICA LATINA

O trabalho arqueológico e genealógico de reinvençãoda América Latina, lida com a parafernália de informa-ções e análises constitutivas do latino-americanismo, deorigens diversas. Por essa via, o trajeto vai da mitologia edo romantismo à hegemonia. Ao discurso dos heróis demuitas lutas, mesclam-se discursos dos founders, da es-tirpe bolivariana, até os latino-americanistas de além-mar,não poucas vezes recheados de fantasias culturais, exo-tismos, etnocentrismos, paternalismos.

Levando-se em conta estilos e métodos de integração,vinculados a interesses, que impelem determinados gru-pos a disseminar suas idéias e tentar impor suas práticasde América Latina, América Ibérica, Terceiro Mundo, Oci-

tem sido, quais são as propostas da perspectiva de sua inte-gração econômica, política, social e cultural? O que poderesultar da proximidade geográfica e dos trajetos iniciaisassemelhados dos atuais estados nacionais, sob o estatuto decolônias ibéricas ou latinas? Do ponto de vista econômico,político, social e cultural, qual a persistência e consistênciada suposta identidade de nascença? Na conclusão, levanta-se a possibilidade de alternativas, dadas as brechas existen-tes no sistema internacional. A proposta não é analisar oseixos básicos da política externa brasileira, mas o significa-do de dados da realidade do país, indispensáveis na análisemais extensa do que vem a ser a América Latina. A posiçãodo Brasil com relação a vizinhos, seu enorme contingentepopulacional; sua dimensão territorial, superdotada de rique-zas naturais; seu produto interno bruto, sua condição de glo-

Resumo: Para acompanhar as inconstâncias de que se revestem os esforços integracionistas, o autor se posicionadiante de pautas de estudo, a indicar que as relações internacionais se afirmam para os estudiosos como áreasde saber. Tendo como foco a América Latina, os discursos integracionistas latino-americanistas sãoproblematizados no quadro do grande debate teórico.Palavras-chave: alternativa; América Latina; integração.

Abstract: With the purpose of pointing out the inconsistencies present in integrationist movement, the authorconsiders the interdisciplinary nature of international relations, basing his hypothesis on a large body of research.The Latin American approaches toward integration receive special focus, and are assessed within the frameworkof the larger theoretical debate.Key words: alternative; Latin América; integration.

PAULO-EDGAR ALMEIDA RESENDE

Novo lugar, no não-lugar. O Império sem Roma.

Hardt e Negri (2001)

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(2): 3-11, 2002

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dente Cristão, é de vital importância a avaliação da com-patibilidade destas representações com a amplitude e com-plexidade de projetos em curso: Mercosul, ComunidadeAndina, Área de Livre Comércio Sul-Americana, Área deLivre Comércio das Américas, Mercosul-CAN/União Eu-ropéia/Asean/China/Rússia/África, etc. Incluem-se nodebate o bilateralismo e multilateralismo. São excluden-tes ou se complementam; a integração aberta prioriza quaisrelações inter-blocos.

Produzida no interior do Antigo Sistema Colonial, aAmérica Latina não é inteligível se não estiver estabele-cida no marco da longa duração e do grande espaço dosistema que a integrou, sob diferentes padrões, seja o daConquista espanhola, seja o da Expansão portuguesa, daHegemonia inglesa ou norte-americana. Com alguma li-cença, retiram-se categorias formuladas com objetivo ana-lítico diverso, ao se nomear um padrão de integração-primitiva (colonial), e um padrão de integração-ampliada.Este último chega aos dias atuais com a intensificação deprocessos de internacionalização dos mercados internos,corroendo fronteiras, nem bem constituídas. Tais referên-cias não se fazem na perspectiva de adotar método de ex-posição sintética do que se passou. Não se trata de resu-mo apressado da intricada história latino-americana atravésdos séculos. A pretensão é valorizar, teórica e metodolo-gicamente, princípios de integração que nos permitem teridéia menos aleatória da natureza da realidade integrada.Sob o impacto da colonização, foi obtido certo grau, ain-da que mínimo, de homogeneização. A dominação euro-péia prefigurou a América Latina, que, a partir daí, deve aessa origem colonial alguns de seus traços fundamentais.O impacto originário do Ocidente configura sui generisintegração, motu externo. O sistema colonial implica mon-tagem do Novo Mundo, na condição de elemento consti-tutivo no processo de formação do capitalismo moderno,peça de um sistema, elemento decisivo na criação de pré-requisitos do capitalismo industrial, tanto quanto na Eu-ropa a categoria original de acumulação primitiva apon-tava para a formação do mercado de trabalho. Com adiversificação regional, decorrente da vulnerável eman-cipação política dos novos Estados, atualizam-se os prin-cípios de unidade extramuros. O localismo das Indepen-dências tem a aparência de desintegração regional. Mas,com a Revolução Industrial, a Europa modificou seu sis-tema de produção. A mudança levou a uma totalidade maisprofunda e mais compacta, com a incorporação da perife-ria, embora em novos termos. Transformada em potênciamundial, a Inglaterra não teve dificuldade de capitalizar

os movimentos de independência no decorrer do séculoXIX, incapazes, por si mesmos, de organizar novo siste-ma de poder. A ruptura da ordem anterior fragmentou osgrandes espaços coloniais, levando-os a se relacionar di-retamente com a nova metrópole européia. Ao mesmo tem-po, o hegemonismo programado da Doutrina Monroe exal-tava o movimento pan-americanista. A política interna dospaíses latino-americanos passou a ser de interesse das au-toridades dos Estados Unidos, com uma cadeia de inter-venções. As relações mútuas se processam, a partir deentão, pendularmente, em situações de acomodação e con-flito. Se admitimos o bordão divide et regna, a centrali-dade, nos moldes capitalistas de sobredeterminação he-gemônica, dividiu a América Latina, dificultando aintegração motu proprio.

Não se entenda por aí a consagração da argumentaçãode André Gunder Frank (1973:27), segundo a qual a es-trutura capitalista na América Latina vem desde o séculoXVI até o presente, com invariabilidade de algumas desuas contradições. O que é problemático em tal postura éa possibilidade de ela implicar, em algum grau, adesistoricização de estruturas ou transformação da histó-ria em uma série de permanências estruturais. Feita a res-salva, há vantagens na recuperação do passado vivo, nosentido que ele se mantém ainda eficaz, com nova e histó-rica eficacidade, sem exclusão do novo, mas resistindo àruptura com o Ocidente Cristão, de que se ufanava Golberyde Couto e Silva, ideólogo da Escola Superior de Guerra(1957). Caberia dizer com Marx: não só nos atormentamos vivos, como também os mortos.

Valorização Unilateral de DeterminadoPadrão de Análise

Os estudos da dependência na América Latina tiveramdurante o período da guerra fria indiscutível centralida-de. O grande debate se instaurou a partir da fundação daCepal, com ênfase nos limites do projeto de desenvolvi-mento nacional autônomo. Após os encaminhamentos deprojetos de industrialização a governos, economistas daCepal dão decisiva contribuição teórica para projetos deintegração regional, a partir da segunda metade da déca-da de 50. O que ocorre nas décadas de 60 a 80 é o desta-que para questões internas, relacionadas com o tema dodesenvolvimento. Nesta mesma Revista, e em alguns ou-tros textos, saltando de elipse em elipse do discurso inte-gracionista latino-americanista, foi exposta a constelaçãodos discursos básicos de tal debate, que mudam de ênfase

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à medida que seus formuladores transitam pelas encruzi-lhadas deste complexo continente. Retoma-se a distinçãoclássica entre Teorias da Dependência e Teorias do De-senvolvimento (1975, 1995), com a atualização destas úl-timas pelos neoliberais. Enfoques mais amplos ficarammarcados pela excessiva compartimentalização, comoenfatiza Oliveira (2001:49). Mais recentemente, com acriação de cursos de graduação e pós-graduação de Rela-ções Internacionais, como que fomos pegos de calças cur-tas. Sem tradição de pesquisa mais elaborada no campo,verifica-se a tendência predominante nas universidadesbrasileiras de acompanhar de perto a produção acadêmi-ca norte-americana, na sua vertente mais conservadora,recheada de neos. Ficam de lado vertentes mais inovado-ras, lá mesmo formuladas. Acrescente-se certa desatençãocom as contribuições européias, salvo em parte a inglesa,como se o processo de constituição da União Européianão tivesse suscitado estudos basilares sobre integraçãonos importantes centros de pesquisa da Alemanha, da Fran-ça, da Itália, da Suíça. Temos, no entanto, de admitir que,pelo menos do ponto de vista quantitativo, a produçãoacadêmica dos Estados Unidos, no campo das RelaçõesInternacionais, tem sido mais acurada pelo incentivo re-cebido. O conselho de Maquiavel ao Príncipe, de que eleconhecesse o terreno em que pisava, suscitou nos EUApolpudos investimentos nas especializações em áreas es-tratégicas, daí o número significativo de brasilianistas.Não parece exagerado divisar o cenário do harvardismodos porta-fólios de nossos economistas ser clonado pelosestudos da agenda internacional de pesquisadores latino-americanos.

Outro ponto crítico é o da suposição, de caráter corpo-rativo, de que Relações Internacionais constituem área desaber, como postula Hoffmann (1960). Tal restrição epis-temológica tem levado a dois extremos: descritivismos ouabstracionismos, neste último caso, no sentido de não-acei-tação de que o real concreto está sujeito a múltiplas de-terminações, e que assim também ocorre com as relaçõesinternacionais. No primeiro caso, são superdimensiona-dos os procedimentos de coleta de dados, sua ordenaçãocomo informação, nos moldes da sociologia empírica: tra-ta-se do modelo de investigação administrativa, como adenominou T. W. Adorno, a qual prescinde da análise depressupostos e suas conseqüências. A nosso modo de ver,há vantagens de se definir Relações Internacionais comocampo de confluência de áreas de saber, para o que sãobem-vindos estudos de historiadores, cientistas políticos,economistas, juristas, filósofos, sociólogos, antropólogos,

psicólogos. Só dessa forma, no diálogo inter e transdisci-plinar, tornamo-nos capacitados para dar conta das for-ças profundas que movem a história, de que nos falaRenouvin (1994), o que é retomado por Duroselle (1981),e mais sensivelmente valorizado na produção acadêmicada França. Trata-se sobretudo da crítica ao reducionismooperado pela história diplomática, tratadística, jurisdicistae factual, conforme bem acentua Saraiva (1997:21-30).Com tal orientação, não basta para a compreensão da for-mação dos blocos, do processo de integração, registrarapenas as iniciativas estatal e empresarial, até mesmo sin-dical. Não é menos importante a dinâmica, embora me-nos visível, de movimentos pelos quais fluem solidarie-dades por novos canais, externos a blocos formalizados.Cabe acentuar que uma disciplina não se constitui apenaspelo seu objeto, mas pelo trajeto teórico-metodológicoadotado na análise desse objeto. No mapeamento de tra-jetos adotados no estudo de RI, há necessidade de amplia-ção da iniciativa multidisciplinar.

Identidade Comprometida

Há um tipo de discurso que busca dar visibilidade àAmérica Latina, tornando-a dizível a partir de identidadesupostamente natural. Na versão local, tem sido caracteri-zada, não poucas vezes, de maneira mecânica, a partir deum apriorismo geográfico. Na versão externa mais negati-va, herdada do Espírito das Leis de Montesquieu, o conti-nente é colocado em posição de subordinação disciplinada,ou na dispersão sob controle, efeito determinado pela geo-grafia física, pelo clima do trópicos. Tem-se, neste últimocaso, a representação comprometida de que fala Greenblatt(1991:12-13), na qual o que é primordial não é o conheci-mento do outro, mas a ação sobre o outro, a prática sobre ooutro. É o discurso do colonizador, do império.

Idealização Identitária

Há o inócuo e até mesmo prejudicial discurso latino-americanista, sujeito a impulsos emocionais. Seu méritoefetivo se reduz ao modo reativo com que se defronta como pan-americanismo, gestado pelo destino manifesto norte-americano.

Fragmentado Apelo ao Imperialismo

Reiteram-se, neste caso, observações, colhidas do nemsempre claro apelo ao imperialismo, ora categoria econô-

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mica, ora categoria política. Tem servido como referen-cial teórico para a apologia do nacionalismo autarcizante,incapaz de propostas concretas de superação de rivalida-des regionais, e que tampouco tem servido à proclamadaexacerbação da luta de classes no continente. Não se tratade negar a categoria, mas de torná-la sujeita às vicissitu-des da atual correlação de forças no mundo.1 A crescenteintersecção de traços para fora/para dentro na atual carto-grafia mundial, a sinuosidade de interesses, aspirações,lealdades, suscitam importantes realinhamentos teórico-metodológicos nas Ciências Sociais. No que mais de pertointeressa neste texto, em meio ao debate sobre a qualidadedo conhecimento apropriado à realidade latino-america-na, é a referência às avaliações por que passa a inteligibi-lidade dos blocos em formação, com a relativização dassoberanias nacionais, com as complexas assimetrias denichos mais e menos desenvolvidos dentro de uma mes-ma nação. Como anota Pierucci (1999:170), o Ocidentese defronta com seu outro cultural em seu próprio territó-rio, dentro de suas próprias fronteiras geográficas, con-trariando a tese do choque de civilizações, ersatz da bi-polaridade. Essa nova realidade tem sido amplamentedescrita, e analisada de forma bastante diferenciada(Resende, 2001). Há necessidade de se aprofundar o realsignificado do vocabulário integracionista das teorias emvoga, para que o apelo à integração não opere como deus-ex-machina, à esquerda ou à direita. Reificado, o vocábu-lo integração se transforma em fator atuante nas análises,como se operasse, com certo automatismo, na direção dodesenvolvimento sustentável da região, ou o seu contrá-rio, sem que seja identificada sua natureza real. Faz-seimprescindível a decodificação das relações entre proje-tos integracionistas e interesses em jogo; vinculações en-tre o econômico, o político, o social e o cultural; imbrica-ção de instituições e valores. Na falta de controleintelectual dessas relações, a interpretação fica à derivade procedimentos românticos, ideológicos ou de clona-gem acadêmica importada, quando não de descritivismos,à base de muita informação e precário processamento dapletora de dados à disposição.

REALINHAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Tornou-se lugar-comum a afirmação que a aceleraçãoexponencial na formação de blocos força a abertura docampo discursivo das ciências sociais. Na era dos fluxose redes globais, a versão expandida do capitalismo sim-plifica o mundo pela intensificação dos capitais em movi-

mento e seu séquito. Registram-se mudanças na geopolí-tica do conhecimento, que estão a exigir da intelectuali-dade novas formas de reflexão sobre a realidade de cadanação, de cada região neste processo de building block.Caso contrário, as ciências sociais se tornarão tão arcai-cas quanto a alquimia.

Buscam-se sugestões nos debates, com a certeza da uti-lidade do confronto de idéias, como maneira eficaz de su-peração dos obstáculos epistemológicos, que tanto difi-cultam o conhecimento da complexa realidade atual. Demodo seletivo, destacam-se alternativas teóricas na análi-se de projetos intergovernamentais e internacionais de in-tegração, tendo como critério glosar tendências básicas,duas ou três, dentro de cada qual se situam diferentes au-tores com opções próximas, embora não equivalentes, poiso debate teórico-metodológico, conotando práticas, nãofoge à fronteira de respostas limitadas. Como não se pre-tende fazer exegese talmúdica de pensamentos em si, acre-dita-se que as vantagens de tal síntese para avaliação doconhecimento da América Latina superam a desvantagemdo resvalo numa quase tipologia. Braillard (1990:18) sevê confrontado, na edição original de sua Teoria das re-lações internacionais em 1977, com a evolução do obje-to, sua complexidade e diversidade de aspectos, que re-clamam estudo pluridisciplinar. Teoricamente, ou no nívelda narrativa histórica, analistas não têm economizado ouso dos prefixos neo e pós. Estamos diante de neo-rea-lismos, neopositivismos, neofuncionalismo, neo-socia-lismo, neoliberalismo, pós-guerra fria, pós-moderno. Ficano ar, não poucas vezes, a oportunidade do uso do prefi-xo paleo ao invés do neo. O prefixo neo tem caracteriza-do formas de revisões nos moldes de atualização conser-vadora de conceitos ou de referências históricas, na dupladireção: a de integração como ameaça ou de integraçãocomo salvação. É o esforço de fazer entrar situações no-vas em esquemas antigos ou elaborados para outro con-texto histórico.

As situações de oposição e conflito se colocam lado alado dos intentos de cooperação e integração. Imbricam-se os estudos sobre cooperação e integração com os estu-dos sobre estratégias de resolução dos conflitos – as viasde solução, controle e prevenção. Diferentes ênfases, naspesquisas de integração/conflitos, são colocadas, com vistaaos fatores intervenientes, aos agentes de proveniênciavariada e a ritmo e abrangência das relações internacio-nais. Basicamente, os estudos e as práticas diplomáticaslatino-americanas têm estado parametrados pelo que seconvencionou chamar de realismo e neoliberalismo. As

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nuanças do neo-realismo, do funcionalismo, neofun-cionalismo, institucionalismo, behaviorismo, não parecemrepercutir como alternativas e sim como acessórios, aper-feiçoamento na linha do Estado, como agente central naperspectiva realista, e do mercado, na perspectiva neoli-beral. A fuga de tais limites seria tarefa de alguns marxis-tas. Estamos propondo algo mais radical, a partir de pers-pectiva crítica aos apelos identitários.

A escola realista e seus autores clássicos – Carr (1981),Morgenthau (1948), ou a teoria diplomático-estratégicada sociologia histórica de Aron (1979) –, têm em comuma concepção de que as relações entre as nações se estabe-lecem enquanto correlação de forças, com o animusdominandi, cada qual visando impor seus interesses. Aordem internacional é marcada por relação de soma zerono complicado mundo de múltiplas soberanias. É uma po-sição de crítica diante dos impropriamente cognominadosde idealistas, melhor dizendo legalistas, pelo apelo a tra-tados, negociações institucionalizadas. Seu grande men-tor, Woodrow Wilson, não teve êxito na proposta de cria-ção da Sociedade das Nações, após a Primeira GuerraMundial. O impacto de tal concepção, antes mesmo de tersido explicitada academicamente, qualifica a prática dapolítica externa de alinhamento da América Latina aosEstados Unidos, ao mesmo tempo que se desqualificamprojetos de integração regional. Bueno (1992:168-179) fezpesquisa histórica bem respaldada em documentação so-bre as visões realistas de Rio Branco e Joaquim Nabuconos primórdios da República, claro está, em sentido depragmatismo diplomático, sem explicitação teórica.

Para Rio Branco (1905), “a tão falada liga das repúbli-cas hispano-americanas, para fazer frente aos EstadosUnidos, é pensamento irrealizável, pela impossibilidadede acordo entre povos em geral separados uns dos outros,e é tão ridícula, dada a conhecida fraqueza e falta de re-curso de todos eles”. À base do pressuposto do balanceof power, esse quadro realista é completado por Bueno,citando os Discursos e conferências de Joaquim Nabuco,para quem “a América, graças à doutrina Monroe, é o Con-tinente da Paz, e essa colossal unidade pacificadora, inte-ressando fundamentalmente a outras regiões da Terra –todo o Pacífico a bem dizer –, forma um Hemisfério Neu-tro e contrabalança o outro hemisfério, que bem podería-mos chamar o Hemisfério Beligerante”.

Na década de 60, com a reconstrução da Europa Oci-dental graças ao Plano Marshall, o realismo passa pelocrivo das críticas dos behavioristas, dentre os quaisDeutsch (1966), com seu foco no crescimento das comu-

nicações, conduzindo à integração por amálgama; ouRosenau (1967), atento às ligações transnacionais. É abran-dada a visão essencialista do estado-soberano e criticadaa ênfase dada de modo unilateral à noção de soberania. Opeso de variáveis econômicas, sociais, culturais na confi-guração da ordem internacional é incorporado às análi-ses. De modo reativo, os neo-realistas, dentre eles Waltz(1954), Bull (1977), retomam a ênfase da centralidade doEstado na cena internacional, ao qual se subordinam ato-res não-estatais. Manifestam seu ceticismo quanto aomovimento de interdependência, a partir de processoseconômicos transnacionais. Halliday (1999:25-26) não vê,no entanto, mesmo no caso do behaviorismo, de espectroampliado na análise da realidade internacional, uma al-ternativa, e sim um acessório, com relação à abordagemcentrada no Estado. Em suma, persiste a margem signifi-cativa de limitações a qualquer interpretação da realidadeinternacional baseada na solidariedade.

A releitura neo-realista e a crítica behaviorista abriram,no entanto, possibilidade para nova variedade de sub-campos nos ramos da análise de política externa, da inter-dependência e da economia política internacional. Nessamesma linha de entornos do realismo, a teoria funciona-lista de integração, em sua formulação primeira, valorizaa cooperação em vez da integração. Vale dizer, é ciosa damanutenção das soberanias nacionais. De modo pragmá-tico, coloca-se diante de tarefas de natureza técnica na so-lução de problemas de caráter econômico. A paz se cons-trói na busca de solução para questões concretas diantede necessidades, não a priori, no campo dos valores. Ex-clui-se o apelo à institucionalização no plano político,como forma de preservação das soberanias nacionais. Issoquer dizer que um de seus princípios básicos é o da não-territorialidade da autoridade, cuja competência se esgo-ta no exercício de determinada atividade. Dentre os teóri-cos clássicos de tal posicionamento, destaca-se Mitrany(1943).

O que nos parece de interesse na revisão da teoria fun-cionalista, sob a rubrica do neofuncionalismo de Haas(1958), é o pressuposto da ramificação. O processo decooperação se amplia, cronologicamente, com a sucessãode novas demandas, em grau crescente. Instauram-se prá-ticas governamentais e societárias de ampliação da coo-peração diante de necessidades concretas, que passam aencontrar, com tais procedimentos, o melhor caminho desolução, na medida em que surgem. Os desdobramentosda Comunidade Européia do Carvão e do Aço levam osneofuncionalistas a se colocarem diante do processo que,

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de modo germinal, vai supondo o surgimento de novo cen-tro decisório, órgão central de integração, ao qual se con-fere a atribuição de decisões obrigatórias, o que marca adiferença fundamental da teoria neofuncionalista e da teo-ria funcionalista de integração: no último caso, a autoritas,à frente da cooperação, não se territorializa enquantopotestas; naquele, ela se territorializa, com a construçãogradual de aparatos institucionais centralizados, de cará-ter não apenas econômico, mas também político (Lindberg,1963). Essa perspectiva tem como ponto positivo ser ca-paz de dar conta de vários agentes de integração. Conse-gue acompanhar, dando peso, os acontecimentos que sepassam fora do âmbito das iniciativas estatais e de seucontrole direto. Seu grande limite é o de seqüenciá-los,com ênfase no elenco cronológico de demandas e respos-tas. O que de fato parece estar ocorrendo é que, à medidaque o processo se desencadeia, há uma constelação deagentes que operam simultaneamente e não apenas emtempos sucessivos. Oliveira e Sennes ( 2001:71-110) fa-zem, na linha do neofuncionalismo, o que denominam deanálise sincrônica da integração, a passagem do etapismodos neofuncionalistas – a integração num crescendo – paraa integração aberta às opções dos agentes de integração,simultaneamente. Partem da hipótese de que os atoresenvolvidos abrigam percepções distintas sobre a naturezado processo, as motivações dos outros atores envolvidose suas próprias prioridades políticas e econômicas, semque isso obstaculize a acomodação de interesses.

De modo imbricado com o que se denomina, sem maiorprecisão de globalização, o paradigma da interdependên-cia complexa veicula a categoria de regime internacionalem substituição ao sistema internacional de Estados comoestrutura básica da ordem mundial: há uma rede de nor-mas, regras e procedimentos que os players internacio-nais, de diversas origens, levam em conta em suas rela-ções. Nye (2002) reitera, após o 11 de setembro, o fato dea unipolaridade do poder dos Estados Unidos e a multi-polaridade econômica, estabelecida entre os países de ca-pitalismo de ponta, serem atravessadas pela transnacio-nalidade de relações, que fronteiras, fora do controle degovernos, de modo isolado. Vínculos cooperativos se es-tabelecem, o que faz, em caso de conflito, que a soluçãoseja encontrada no âmbito da negociação entre Estados,empresas, organismos internacional, etc., fora do âmbitopolítico-militar. Nye (2002:140) enfatiza a possibilidadede consolidação da hegemonia dos Estados Unidos, atra-vés do equilíbrio de seu hard power, com dose crescentede soft power: “isto significa que meio milhão de estu-

dantes estrangeiros querem estudar nos Estados Unidos acada ano, europeus e asiáticos querem assistir filmes e TVamericanos, que as liberdades americanas são atrativo emmuitas partes do mundo, e que outros nos respeitam edesejam a liderança norte-americana, quando ‘we are nottoo arrrogant’”. O foco de tal análise tende a sofisticarassimetrias, que perpassam essas mesmas relações e as ten-ções permanentes daí decorrentes, mesmo que atenuadaspelo soft power.

O neoliberalismo retoma o velho encanto dos paleo-liberais com o mercado e o desencanto com o Estado. Ofracasso do Plano na URSS é assumido como prova deque o mercado deve ser aceito como principal motor danova ordem internacional, desde que não se lhe antepo-nham as arcaicas políticas sociais do Welfare State. Omercado se apresenta como tendo potencialidades nãoimaginadas pelos paleoliberais. Por essa via expressa emundial, circulariam confortável e velozmente compra-dores e vendedores, sem os entraves das lombadas alfan-degárias das estreitas vias locais e estatais. O receituárioneoliberal, última versão, foi exportado para a AméricaLatina com as teses do Consenso de Washington, hojeavaliado pelos seus próprios autores de modo relativamentesevero. A expressão foi forjada pelo economista JohnWilliamson em 1989. Trata-se da estratégia de ajustamentoe estabilização das economias dos países periféricos, for-mulada pelo governo americano, o FMI e o Banco Mun-dial. Baseia-se na redução do tamanho do Estado atravésde privatizações, no fim do déficit nas contas públicas ena abertura dos mercados nacionais, com o objetivo deobter a retomada dos investimentos externos para alavan-car o crescimento econômico.

O tertium quid teórico, ultrapassando a alternativa rea-lismo ou neoliberalismo, com as gradações intermediárias,tem sido rotineiramente posto pelas várias vertentes saí-das do marxismo, em baixa ou em crise de reformulaçãono continente, após o desmoronamento da União Soviéti-ca. Interessam mais de perto as atuais reformulações dacategoria de imperialismo. O debate mais tradicional, ede menor interesse no presente, centrava-se na caracteri-zação mais precisa do que se entendia por imperialismo,categoria que, pendularmente, movimentava-se entre o po-lítico, o econômico e o cultural, sem que se determinassea imbricação ou não destes âmbitos na mesma categoria.Importantes reformulações destacam não apenas o papeldesempenhado pela estrutura socioeconômica, como amaior atenção com aspectos políticos, colhidos das tradi-ções da democracia representativa, e culturais.

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TRAJETÓRIAS DO DISCURSO LATINO-AMERICANISTA

DESCONSTRUÇÃO DASPOLÍTICAS IDENTITÁRIAS

Teórica e metodologicamente, o desafio é de descons-trução da precária lógica de políticas identitárias.2 As iden-tidades ancestrais, as solidariedades, definidas de modoessencialista, têm apenas função reativa. Parece-nos opor-tuna a relativização e, em alguns casos, até mesmo a des-legitimação de tradições ou práticas geopolíticas, queemperram irrupções a favor de novos trajetos, como des-dobramento de potencialidades. Não é descartável o re-forço de movimentos de desidentificação com memóriasnacionais. Desfazem-se, dessa forma, noções essencialis-tas, que atravessam os discursos instituintes da idéia deAmérica Latina. O geografismo força os que a habitam àlatino-americanização, no momento mesmo em que oslatino-americaniza ou ibericiza. Doutra parte, é recursotático não desprezível de negociação a flexibilização dapolítica identitária, determinada pela Deusa Fortuna, comexaltação da Virtù da boa vizinhança, de modo confuso.Contra afirmações autarcizantes de autopresença nacio-nal no contexto mundial, é uma forma tática de enfrentara globalização neoliberal. No entanto, torna-se recurso nomínimo ambíguo, quando se lhe confere função estratégi-ca. O conhecimento latino-americanista, segundo Moreiras(2001:10), num primeiro sentido, aspira à forma particu-lar do poder disciplinar, herdado do aparato hegemo-nizante do estado imperial. É conhecimento que operacomo instância da agência global. Nascido da ideologiada diferença cultural, seu impulso fundamental é de cap-tar a diferença latino-americana, a fim de lançá-la na gra-de epistêmica global. É conhecimento que azeita a má-quina de homogeneização, mesmo nas ocasiões em quejulga estar promovendo ou preservando a diferença. Asdiferenças latino-americanas são controladas, homogenei-zadas e colocadas a serviço da representação global. Oconhecimento latino-americanista, entendido nesse primei-ro sentido, busca sua própria negação e se dissolve den-tro do panóptico. Os diagramas disciplinares em geralfuncionam, basicamente, em posições determinadas, pon-tos fixos em que se compõem, de modo impositivo, asidentidades. Foucault3 via a produção de identidades,mesmo as oposicionistas ou desviadas, como fundamen-tais para funções de domínio em sociedades disciplina-res. O par centro-periferia, sujeito à polaridade dentro/fora, leva-nos a pensar a América Latina, até o momentopresente, fora das benesses da modernidade modernizante,o que legitima a percepção da dicotomia países desenvol-

vidos/países subdesenvolvidos ou, eufemisticamente, cha-mados “em vias de desenvolvimento”, como se fossempotências médias.

LATINO-AMERICANISMO SUBVERTIDODE MODO ANTIDISCIPLINAR

Há, no entanto, brechas para se pensar o latino-americanismo de modo alternativo, subvertido de modoantidisciplinar. Por esse trajeto, desarticulam-se diferen-ças e identidades (Hardt, 1995:34-36). O diagrama do con-trole não está orientado na direção da posição e da identi-dade, mas da mobilidade e da anonimidade. Nesse caso,registra-se atuação flexível e instável de identidades con-tingentes, através da repetição e da produção de simula-cros. Enquanto das janelas do panóptico capturam-se po-sições, pontos fixos, identidades, nas sociedades de controledecreta-se a falência da sociedade civil, que se torna so-ciedade política, com surgimento do Estado global. Impé-rio é o nome dado por Hardt à sociedade global de contro-le. Empalidecem as fronteiras territoriais, sem que seregistrem conquistas. Os elementos de transcendência dasociedade disciplinar declinam, enquanto os aspectosimanentes são acentuados e generalizados. Segundo Hardte Negri (2001:338), no espaço regular do império, não hánenhum lugar de poder, que está em todo lugar e em lugarnenhum. Acaba, nem que seja gradualmente, ou se atenuaa polarização centro/periferia – os antigos pontos fixos. Éum “Império sem Roma: na transição da soberania para oplano de imanência, o colapso das fronteiras teve lugardentro de cada contexto nacional e em escala global. (...) acrise geral das instituições disciplinares coincide com odeclínio dos Estados-nação como fronteiras que marcam eorganizam as divisões no governo global. O estabelecimen-to de uma sociedade global de controle que suavize as es-trias das fronteiras nacionais anda junto com a realizaçãodo mercado mundial e a submissão da sociedade global aocapital” (Hardt e Negri, 2001:354).

Na superfície lisa de intersecção, a pretensão é se dis-cutirem as reais possibilidades de se colocar, por fora des-ses discursos de poderes, o imperial, o regional e o nacio-nal, versões disciplinares e versões de controle. Passa-seentão a ter como referente primário não as identidadesnativas, os Estados nacionais ou o sistema interestatal la-tino-americano, supervisionados pelo pan-americanismo,filho pródigo do monroísmo.

Com efeito, os Estados nacionais no sistema interna-cional estão deixando de ser o local onde o saber e o poder

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se encontram na definição do valor social. Deleuze eGuattari falam de desterritorialização. Moreiras (2001:112)fala de desreferencialização da cultura. À medida que ocapital se desprende de seu momento produtivo, ele aban-dona o solo e, literalmente, levanta vôo.

Na linha de tal reflexão, trata-se sobretudo de caracte-rizar, com um mínimo de clareza e objetividade, o latino-americanismo do ângulo da globalização, seja como sis-tema global do capital, operando como on, it, numaesdrúxula descentralização, seja como alternativa horizon-talizante.

No primeiro caso, o eixo de raciocínio dos intelectuaisinstitucionais da América Latina sujeita-se à severa ava-liação de alguns poucos. Moreiras (2001:41-42) reproduzas críticas de Petras, Morley, Rafael, aos que escrevempara outros intelectuais institucionais e trabalham dentrodas fronteiras destes, seus patrocinadores estrangeiros –instituições financiadoras, seus congressos internacionais.( ...) os estudos da área têm se integrado a redes institu-cionais mais amplas, (...) que tornaram possível a repro-dução de um estilo norte-americano de conhecimento, (...)seguiram uma lógica integracionista, pela qual se faz coin-cidir a função conservadora dos estudos.

Quanto à globalização alternativa, horizontalizante, porfora das crostas identitárias nacionais e regionais, em talcaso, a crítica divisa aí ato de abdicação de toda a história,desde o período colonial, que lhe teria outorgado a identi-dade no âmbito que pertença ao Ocidente. É a desconstru-ção de codificações impositivas, a favor da reinvenção daAmérica Latina mestiça (Resende, 2001), capaz de não ape-nas se redefinir, mas ir mais longe, em novos fluxos civili-zatórios, de dimensão planetária, com novas possibilida-des para as forças de liberação. Tem-se preferido a categoriade mestiçagem, sem casa grande e senzala, como referên-cia à natureza plural das sociedades contemporâneas, cu-jas relações em rede colocam em relevo a dimensão eco-nômica, política, social e cultural de desidentificações.Problematizamos, ademais, as categorias de multicul-turalismo e tolerância, tidas como insuficientes ou inade-quadas para acompanhar a emergência de novas formas deconectividade social. Moriconi (2001:74), na mesma dire-ção, enfatiza o fato de que identidade só existe em situa-ções muito estabilizadas. Caso contrário, seriam dadas iden-tificações cambiantes, ou seja, identificações que sãosimultaneamente vivências de desidentificação. Deslocaentão o eixo de seu raciocínio da categoria de identidadepara a de posicionalidade, que se traduz na dialética dopar identidade-desidentidade, ou ainda, no perene movi-

mento de identificações e desidentificações. O bordão penseglobalmente, aja localmente tem, nesta maneira de pen-sar, a nova realidade, a inadequação de repor o dualismodo global e do local. Ao contrário, as redes de relaçõesnos vários níveis da convivência humana entre os povosestão a exigir uma resposta global alternativa. A respostalocal é insuficiente, e Cuba o comprova,4 conforme acen-tua Hardt em sua entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, osmovimentos de protesto são indicadores de uma conexãoque existe entre as pessoas de partes diferentes do mundo,de uma potencial convergência de interesses que ultrapas-sam situações locais. Não estamos mais diante do imperia-lismo, que supõe a expansão do Estado-Nação hegemôni-co. O império é uma forma política que não tem confins,forças localizadas, como o Estado-Nação. O império mandapara os ares os conceitos de nação, raça, etnia, e até depovo. Para Hardt e Negri, em Império, precisamos de no-vas formas de solidariedade internacional, de culturas hí-bridas para enfrentar o império por fora dos mecanismosde representação.

Nessa linha de raciocínio, cabe redefinir o que vem aser latino-americano hoje: caberia admitir a fragilidadeda dialética entre a interioridade continental e a exterio-ridade imperial, como se esta última operasse de fora, nosmoldes das teorias da dependência dos anos 50, 60, 70,no contexto da guerra fria, na vigência do imperialismodisciplinar. Centro e periferia são categorias espaciais fra-gilizadas na atualidade, um modelo arquitetônico de mundoque pressupõe a rígida divisão internacional do trabalho,e fronteiras ideológicas do mundo bipolar, que mal acom-panha hoje os movimentos do capital, que já Marx supu-sera tendencialmente apátrida. Encontramo-nos diante deprocessos de desterritorializações que nos desafiam a tra-çar nova cartografia com a mistura de lugares, com novasconfluências. O controle imperial, no lugar da disciplinarecheada de lugares e identidades, é desconcertante paraa construção de cenários de resistência. É, no entanto, amaneira mais apropriada de descobrir meios adequadosde luta, o que já mostra seu fluxo em Seattle, Davos, Pra-ga, Gênova e Porto Alegre, de forma bastante híbrida,portanto atual. Assistimos no presente ao advento dosnovos bárbaros, a ver caminhos por toda parte, o que su-põe, na bela e desafiadora imagem de Hardt e Negri(2001:235), de estarmos chamados a nos colocar em en-cruzilhadas. Incluam-se as da América Latina e do Brasil.Não são vias fáceis, mas tampouco o eram as antigas. Adinâmica das mestiçagens é colocada em contraposição,de um lado, com afirmações hegemônicas e uniformizan-

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tes e, de outro, contra fundamentalismos, relativismos enacionalismos. Velha nossa conhecida, a mestiçagem decorpos, mas, sobretudo, cabe falar da mestiçagem de re-presentações, de códigos, de práticas, de gostos, de cren-ças. A criatividade local, regional, passa por aí e se afir-ma não como entrave, mas diferencial, valorizado pelainserção positiva na realidade transnacional mais ampla.

NOTAS

1. Deve-se ter alguma precaução em afirmar a hegemonia dos EUA,em que pesem sua economia e sua tecnologia. Se por hegemonia en-tendemos coerção + consenso, há várias manifestações em contrário, enão como protestos isolados.

2. Ultrapassa as intenções do presente texto discutir a tese de Cuche(1999). O autor assume o relativismo cultural e o etnocentrismo comoprincípio metodológico. A utilização combinada, segundo o autor, doque seria aparentemente contraditório, permitiria a ele apreender a dia-lética do igual e do outro, da identidade e da diferença, ou seja, daCultura e das Culturas, como fundamento da dinâmica social. Admi-tamos que em nome da dialética têm-se resolvido aporias, que deixamem suspenso qualquer filosofia, mesmo tendo como respaldo Bourdieu,Pierre Jean Simon.

3. Na produção da identidade, na perspectiva de Foucault, estão emação uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento depoder, métodos que permitem o controle minucioso das operações docorpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes im-põem uma relação de docilidade-utilidade.

4. Nas práticas diplomáticas da América Latina, tem imperado a pro-blemática exclusão de Cuba em importantes reuniões de cúpula, porexigência unilateral dos EUA e contínua pressão para que tal compor-tamento seja legitimado pelos demais países do continente, o que nãotem encontrado resistências decisivas. É, na melhor das hipóteses, ati-tude insólita, levando-se em conta a legitimação anterior dos Trujillose Batistas.

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M

INGERÊNCIA OU SOLIDARIEDADE?dilemas da ordem

internacional contemporânea

udanças profundas surgem no relacionamentointernacional desde o início dos anos 80: asorganizações internacionais afirmam-se como

pública interna e externa pelos meios de comunicação epor outro, não relutam em defender posições distintas,muitas das quais frontalmente contrárias às defendidaspelos representantes dos atores tradicionais, ou seja, osgovernos dos Estados.

A pauta reivindicatória contempla temas cujos princí-pios pertencem ao homem como seu patrimônio comum edevem ser defendidos mesmo implicando no desrespeitodas fronteiras territoriais dos Estados. Onde há crime sendocometido contra o ser humano, toda a humanidade consi-dera-se agredida. E seus valores comuns – chamados deseu direito imanente – tendem a fazer que se exija padrõesde comportamento, tanto no interior quanto fora das fron-teiras nacionais, que respeitem um standard mínimo.Quando esses princípios são violados, ainda mais com aguarida do Estado, este deve ser responsabilizado.

Os direitos humanos (respeito às minorias, combate àtortura e ao genocídio, luta contra o racismo), a preserva-ção ambiental e a exclusão social constituem o fulcrotemático dessa nova realidade. Todavia, um patamar suple-mentar foi alcançado com a luta pelos direitos políticos damaioria que pode resumir-se no respeito ao Estado de direi-to, a alternância no poder e na democracia representativa.

novos atores; multiplicam-se as organizações não-governa-mentais (ONG); o fenômeno do transnacionalismo empre-sarial ganha novo impulso graças ao avanço tecnológicoe ao lugar preponderante do capital; atores infra-estatais(governos estaduais e prefeituras municipais) afastam-sede seu campo tradicional e tendem a agir externamente;partidos políticos nacionais aproximam-se de congêneresestrangeiros; centrais sindicais criam redes internacionaise, sobretudo, toma relevo uma opinião pública mundialconectada à realidade internacional.

O crescimento do número de partícipes na cena inter-nacional é acompanhado por formas inovadoras de atua-ção com o delineamento de uma agenda própria. Por umlado, os novos atores dirigem-se diretamente à opinião

Resumo: O artigo trata do instigante tema da intervenção nos assuntos internos dos Estados em tempo de paz.A multiplicação de atores e a complexidade da agenda internacional apresentam novos desafios para tornareficaz a solidariedade internacional. O autor sugere a reformulação das instâncias decisórias a fim de afastar,como tem ocorrido até o momento, o perigo da intervenção do mais forte sobre o mais fraco.Palavras-chave: intervenção; solidariedade; relações internacionais.

Abstract: This article takes on the provocative subject of the peacetime intervention of stronger nations in theinternal affairs of weaker ones. The increasing multiplicity of actors and the complexity of the global agendacreate new challenges to the achievement of meaningful international cooperation. The author calls for a re-thinking of existing decision-making mechanisms, with a view toward reversing current interventionist trends.Key words: intervention; cooperation; international relations.

RICARDO SEITENFUS

O pior dos pecados contra os nossos semelhantes não é o de odiá-los, mas ser indiferente com eles. Na verdade, eu vos digo,

esta é a essência da desumanidade.

George Bernard Shaw, O discípulo do Diabo

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Mergulhado em crises e dúvidas, faltou ao homem con-temporâneo, entre outras, a resposta para o dilema funda-mental das relações entre os dois mundos separados pelaradical geografia da pobreza. Tanto a testemunha ocularde brutais violações dos direitos fundamentais, como omais distante e rico cidadão do hemisfério Norte, pergun-tam-se hoje: é preciso intervir militarmente num Estadocuja lógica dominante o leva a assassinar seus própriosnacionais ou é preciso que cada país tenha direito a suaprópria guerra?

Se a omissão implica aceitação da guerra do outro, aação impõe que uma nova guerra sobreponha-se à origi-nal. Em qualquer uma das hipóteses, é compreensível aindignação dos pacifistas, dos democratas e dos homensde boa vontade diante da via crucis de horrores que insis-te em permanecer cravada na paisagem do mundo. A ques-tão é: ou se aprecia o quadro, ou se faz parte dele. Ora,com exceção do período Gorbatchev (1986-1992), o sis-tema de solução de controvérsias da Organização dasNações Unidas (ONU) abriga eficácia duvidosa e seleti-va. Ocorreram, nos últimos 50 anos, mais de 200 guerrasque provocaram 25 milhões de mortes e outro tanto derefugiados. A ausência de uma guerra mundial não deveser confundida com a paz.1 Atualmente, grassam no mun-do pobre mais de três dezenas de conflitos sangrentos,distantes da mídia internacional, sem que a ONU demons-tre capacidade para intervir. Um novo milênio inicia-se eainda nos matamos em massa, ou de fome, ou pela guerra,seja a violência urbana, seja o ataque militar. Castigo glo-bal e inescapável que dilacera o sagrado império do indi-víduo.

Para os países desenvolvidos, embora a Carta de SãoFrancisco prescreva o contrário, o Conselho de Segurança(CS) é apenas uma das alternativas para debater a soluçãodos conflitos. É evidente que os Estados Unidos preferi-riam intervir ungidos por um mandato da ONU para a utili-zação da força. Entretanto, Washington não aceita a possi-bilidade de paralisar sua ação externa diante do veto de umdos membros permanentes do Conselho de Segurança.

Os conflitos armados contemporâneos realizam dificil-mente a separação do externo e do interno. Raros são osembates de natureza doméstica. À guerra civil – o maisterrível dos flagelos dos povos – vem sobrepor-se umadimensão internacional, fazendo que o princípio da não-intervenção seja dificilmente aplicável. Todavia, sob oângulo do número de vítimas, o que marcou a segundametade do século passado não foi o horror das guerrasinternacionais. A luta pelo poder no interior das socieda-

des – basicamente os crimes cometidos pelos governos –foi muito além, pois significou a morte de 150 milhões deindivíduos.

Escusados por uma concepção anacrônica do princí-pio da soberania, os diferentes Estados detêm permissãopara torturar, executar, provocar desaparecimentos força-dos e utilizar-se das prisões sem julgamento para afastaraqueles que os contestam. Por conseguinte, a solidarieda-de só pode materializar-se caso intervenha nos assuntosinternos dos Estados.

Mesmo que se imagine um cenário de intervenção noqual o interventor nada tem a ganhar e é movido apenaspela solidariedade, a decisão de intervir exige o alinha-mento com uma das partes em conflito. Reforça, ainda, opredomínio da vontade do mais forte sobre qualquer fe-nômeno que se oponha à hegemonia do Ocidente.

O debate dessas questões está tão-somente em seus pri-mórdios e deve-se acrescentar um tema que por ora apre-senta-se como marginal nas preocupações dos analistas.Trata-se da necessidade de definição dos objetivos e meiospara que se possa defender, transnacionalmente, os princí-pios democráticos, essencialmente o governo da maioria.

Diante do que nos informa a simples realidade fática, énatural que se encontre generalizado, na cena internacio-nal, o discurso da não-intervenção em assuntos internosdos outros Estados, como decorrência lógica da noção desoberania. A não-intervenção constitui um princípio nomais das vezes consagrado pelas próprias ordens jurídi-cas nacionais, como é o caso do Brasil, e, implicitamente,pela ordem internacional, seja meio de Carta das NaçõesUnidas (ONU), seja pela Carta da Organização dos Esta-dos Americanos (OEA) que serão referidas adiante.

Posto que o discurso é generalizado, forma-se umacontradição em que a segunda extremidade é a prática doEstado em movimento. Como demonstram séculos de his-tória, a ingerência de um Estado soberano sobre outroEstado, também soberano, é uma constante, sob diversasmodalidades. Predomina nesse panorama a ação das de-nominadas potências, nas ocasiões em que seus interes-ses, mascarados ou nítidos, exigem ou recomendam umainterferência. Em geral, tal imisção tem como únicas re-gras incontestes o egoísmo (por fundamento) e o proveito(por resultado). Todavia, a percepção da regra geral nãosignifica recusar-se a ponderar sobre as exceções impor-tantes trazidas pela contemporaneidade.

Impelido por essas constatações iniciais, o presenteartigo tem por escopo: a) buscar as razões que ocasionamum largo divórcio entre os enunciados e a prática, não

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somente por parte das potências, mas até mesmo dos paí-ses de porte intermediário; b) atenuar a imprecisão do usodos conceitos de ingerência e intervenção militar, e, maisadiante, a confusão entre as definições de soberania e daautodeterminação dos povos; c) descartar, enquanto ati-tude acadêmica, um juízo axiológico sobre a interferên-cia externa como um mal em si mesmo; d) investigar asconseqüências da não-institucionalização desse princípio.

Há consciência plena dos perigos que envolvem essedebate.2 Na verdade, quer-se discutir em termos jurídicose de interesse público uma típica manifestação política dopoder, supondo que se possa vir a ser pólo ativo ou passi-vo dessa potencialidade de agir. O fenômeno da intromis-são legítima será negado por Raymond Aron, como a con-junção do poder-fazer e da existência de leis queregularizem essa ação. Não havendo esse plus, que sóexistiria na relação de império, está-se apenas em umarelação de domínio. Entretanto, não haveria outra formade institucionalização que não fosse o império e que pu-desse estar mais próxima de uma democracia no planointernacional? Lançado o pano de fundo desse percurso,é possível proceder a árdua tarefa de demarcar o campoconceitual atinente à matéria tratada.

CONSISTÊNCIA DA INTERVENÇÃO

São tênues os limites que circundam o relacionamentointerestatal: cooperação, integração ou comunhão de in-teresses, e a imisção externa em assuntos internos. Essatensão aprofunda-se à medida que se intensificam as rela-ções comerciais e cooperativas entre as nações.

Em geral, define-se a ingerência pelo caráter impositi-vo ou coercitivo, isto é, o fato de um país impor ao outrodeterminada conduta ou situação que ele não desejaria porsi. Ao não desejar por si, estaria expressando precisamenteo conteúdo da denominada soberania (o atributo exclusi-vo de exercício de poder por um grupo em determinadoterritório).

Tentando lapidar uma definição, note-se que certosautores tomam como requisitos de existência da ingerên-cia externa a unilateralidade e a violência. Portanto, se-gundo eles, se for a ingerência uma obra do coletivo, es-truturado mediante alianças pontuais ou de organizaçõesinternacionais regionais ou universais, não estaria confi-gurada a ingerência. Por outro lado, a simples pressão ouimposição de sanções não-militares afastaria a tipificaçãode uma ingerência, passando a ser circunstância aceitávelda vida internacional.

Ora, se é bem certo que a invasão de um país pelo ou-tro, ou qualquer dos muitos exemplos de ação militarizada,compõem estereótipos da intervenção, seja motivada ounão, seja aceitável ou não, é bem certo que existem for-mas não-militares e não solitárias de levar terceiros paí-ses a agirem de forma orientada por ditames exógenos.Portanto, a ingerência é um leque muito mais amplo doque esse fenômeno, unilateral e violento, que se poderiadesignar como intervenção armada.

Em outro extremo há autores, entre os quais me colo-co, que reconhecem a ingerência ainda que solicitada pelopróprio Estado que sofre a intervenção. Assim, a ingerên-cia seria o fato em si, da pura interferência, independenteda existência de um foco de receptividade que repassa oditame externo à nação como se interno fosse, legitiman-do-o. Esse problema resta multiplicado nos casos concre-tos de deterioração estrutural, em que há dificuldades deidentificar os legítimos representantes de um Estado, so-bretudo nos casos de guerra civil. Nesses casos, a interfe-rência externa pode vir a ser a munição definitiva paraum dos contendores.

Para que se possa identificar as múltiplas modalidadesde intervenção que se operam entre os Estados, transcre-ve-se no quadro a seguir uma tipologia da intervenção(Seitenfus e Ventura, 2001:154-57). Nota-se, de pronto,o extraordinário alcance do fenômeno que se reveste deformas variadas, encontrando raras vezes suporte legal.

MODALIDADES DE INTERVENÇÃO

Pressões em Sentido Lato

Como premissa para o leitor, fique claro que este temanão se refere ao intercâmbio normal de relações entre osEstados: o diálogo não caracteriza a pressão, que neces-sariamente o excede.

A pressão externa é antes de mais nada uma forma decondicionar o futuro de um Estado ou de um grupo quenele desempenhe um papel relevante, mediante barganhaou mesmo ameaça. Ela pode transformar-se em fato con-creto, em iniciativa unilateral ou concertada. Se isso ocor-rer, não será mais uma pressão. No entanto, o elementoque a define é justamente a presença do vetor que poderáou não levá-la a constituir-se em sanção concreta.

A pressão não é formalizada, nem generalizada; sequerserá, de regra, institucional. Tanto a decisão de uma orga-nização internacional que condena a prática “y” por umpaís, como uma ameaça via telefônica (seja proveniente

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de um representante do Estado ou de uma empresa) con-figuram uma pressão. Ela poderá vir a ser uma etapa denegociação, servindo como um torniquete. É dinâmica,maleável e acompanha o processo relacional. Por vezes énotada apenas pelos próprios atores, portanto fugaz e dedifícil identificação pelo exterior. Há casos, porém, emque a mídia e a opinião pública internacional operam comoseus próprios instrumentos.

Rompimento de Relações Diplomáticase Comerciais

Diferentemente da pressão, essa modalidade será sem-pre um ato institucional que sintetiza a negação da negocia-ção. É uma manifestação oficial do Chefe do Estado queintervém. Apesar do caráter unilateral dessa modalidade,concedendo total liberdade de iniciativa, segundo o Direi-to Internacional, ao Estado proponente, não resta dúvidaque sua utilização ou a simples ameaça de fazê-lo, objetivafazer que o Estado vítima venha a ter uma atitude que nãoteria caso não fosse objeto dessa circunstância.

Aqui se opera a interferência pela exclusão, afastan-do-se da cena institucional, refutando, no momento, qual-quer solução negociada. Um Estado pode então introme-ter-se pela omissão. Embora essa atitude contenha umainegável insinuação: a transferência do tratamento do pro-blema para outra esfera.

Embargo e outras Sanções Internacionais

Até o século XIX, o embargo foi uma espécie de pré-guerra, no qual os navios, bens e nacionais de determina-do país, sitos no território ou em águas territoriais de ou-tro ou ainda no espaço internacional, eram apreendidos.Contudo, a prática do embargo neste século demonstra quesua utilização pode ser feita sem que venha a degenerarem guerra.

O embargo consiste hodiernamente em forma de inge-rência, que poderia ser individual, mas geralmente é cole-tiva, materializada pela interrupção das trocas comerciais,ou de parte delas, do resto do mundo com determinadoEstado.

As experiências históricas demonstram, como subli-nha Victor-Yves Ghebali, que o impacto limitado dassanções internacionais não pode ser atribuído nem àinsuficiência do próprio dispositivo, sequer sua possí-vel aplicação imperfeita, pois trata-se de um vícioontológico das sanções.

Diante de um Estado não-democrático, um embargo épor definição ineficaz, visto que ele acaba por punir a po-pulação do país-alvo das sanções, sem atingir o regime decujo comportamento provocou a imposição de sanções.Além disso, em um sistema econômico internacional ex-clusivamente regido pela lei da oferta e da demanda, leia-se da vantagem, as violações são moeda corrente, em es-pecial pelo chamado comércio triangular (Kalpyris, Vorke Napolitano, 1995:IX-X).

Portanto, sem a universalidade de aplicação e de con-trole, o embargo é simplesmente uma utopia. Assim foramos embargos impostos ao Japão (invasão da Manchúria) eà Itália (ocupação da Abissínia), no entre-guerras.3

Intervenção Consentida

Nessa modalidade de intervenção, o consentimentopossui duplo significado. Por um lado, a autorização deintervir deve ser concedida por organização internacionalintegrada tanto pelo país objeto da intervenção quantopelos intervenientes. Portanto, a intervenção materializauma vontade coletiva que se torna legal no momento emque é aprovada nas instâncias decisionais da organização.

Por outro lado, o país receptáculo da intervenção devesolicitá-la expressamente. Em geral, são situações de guer-ra civil, catástrofes naturais ou ainda a deposição de umgoverno legal por um golpe inconstitucional. O recentecaso do Haiti é bom exemplo de intervenção requerida demodo insistente pelas autoridades depostas e recebida comentusiasmo e alívio pela população.

Intervenção Armada

A mais comum das ações armadas entre dois ou maisEstados é a guerra, que pode-se desenrolar em seus terri-tórios respectivos, desdobrando-se em operações bélicas,ou em terceiros territórios. A guerra, contudo, ao ser nomínimo bilateral, foge de nossa definição. A intervençãoarmada da qual se trata nesse momento jamais supõe queo pólo passivo da intervenção tenha forças para introme-ter-se em negócios do interventor. Portanto, é desse modoque se opera a unilateralidade, mesmo que o interventorseja um bloco, seja uma organização.

A ação armada de intromissão em assuntos internos deum Estado soberano será, é claro, coercitiva, mas nãonecessariamente ilegítima. Ao contrário, o processo ins-titucional pretensamente amparado no direito internacio-nal poderá deliberar pela iniciativa militar em direção a

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QUADRO 1

Tipologia da Intervenção

Tipo Natureza Objetivos Meios Intervenientes Legalidade

Reparação Financeira Obter reparação para os estrangeiros após Jurídicos Individual Ilegaluma guerra civil

Cobrança Financeira Obrigar o respeito dos compromissos Militar e ocupação Individual ou coletiva Ilegal (Convenção Drago-Porter efinanceiros do Estado-objeto das alfândegas Carta da ONU, art. 2.4)

Compensação Financeira Exigir um tratamento eqüitativo dos bens Político e jurídico Individual Legal somente no caso de serestrangeiros nacionalizados respaldado em um tratado entre os

Estados-partes

Administração do Finanças públicas Adoção de programas de ajustamento Econômico FMI e agências de Legal à medida que háEstado estrutural e a denominada good governance notação consentimento do Estado-objeto

Embargo Econômico Interromper as relações econômicas Jurídico Individual, grupo de Legal somente se autorizado pelo CSexteriores do Estado-objeto Estados ou Organização das Nações Unidas

Internacional

Boicote Comercial Suspender o consumo de produtos oriundos Campanha de opinião Particulares (corporações, Legal caso seja feito por particularesdo Estado-objeto pública ou legislação sindicatos de trabalhadores e ilegal caso o Estado sujeito interfira

específica ou de consumidores) ou sem razão (unilateral)Estado

Quarentena Comercial Isolamento de duração variável imposto a Jurídico Individual ou coletivo Legal caso aprovada pela OMSviajantes ou produtos estrangeiros

Bloqueio Econômico Tornar impossível as relações econômicas Militar Individual, grupo de Legal unicamente no âmbito do Cap. VIIexternas do Estado-objeto Estados ou OI da Carta da ONU

Congelamento Econômico Torná-los indisponíveis, até de seus dirigentes Jurídico Individual ou organização Legal caso coletivo e resultante dedos bens internacional decisão judicial reconhecida

Sanções Econômica Punir empresas de um terceiro Estado Econômico (comercial Individual Ilegal (cf. leis Helms-Burton eeconômicas que não respeita embargo unilateral e financeiro) d’Amato-Kennedy)

Discriminação Comercial Conceder condições favoráveis aos Jurídico Coletivo no âmbito da Legal porque aprovada pelo Conselhopositiva produtos dos Estados que respeitam União Européia da UE

cláusulas sociais e ambientais

Renúncia Econômica Abandono dos privilégios de Estado Jurídico Individual ou coletivo Legal(imunidades de jurisdição e execução) paraos contratos de empréstimos externos

Corrupção Econômica Corromper agentes do Estado-objeto Financeiro Individual Ilegal

Dumping do trabalho Econômico Fazer respeitar um standard mínimo para Diplomático Individual, grupo de Estados Ilegal, salvo no âmbito das normas eprodução de bens ou associações de Convenções da OIT

consumidores e sindicais

Meio ambiente Político Fazer respeitar normas de proteção Diplomático e Consumidores dos Estados Ilegalambiental econômicos sujeitos, OI e ONGs

Defesa das nações Política Socorrer nações que sofrem uma Militar Individual e coletiva Legal (legítima defesa ou autorizadoamigas agressão externa pelo CS/ONU)

Socorro a um Político Auxiliar um governo ameaçado pela Militar Individual ou coletivo Ilegalgoverno amigo oposição interna

Eliminação de um Política Auxiliar a deposição de um governo hostil Militar Individual ou coletivo Ilegalgoverno hostil

(Continua)

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Segurança coletiva Política Restaurar ou manter a independência de um Militar Coletiva sob o mandato das Legal no âmbito do Cap. VII da CartaEstado vítima da ameaça ou de uma Nações Unidas ou individual das NU e do art. 51agressão externa em caso de legítima defesa

Segurança coletiva Política Limitar a independência do Estado-objeto Militar, jurídica Individual Nulo e ilícito, pois foi utilizada a forçaunilateral por meio de tutela ou do protetorado e política (art. 52 da Convenção de Viena sobre

o direito dos Tratados)

Certificação Política Lutar contra os narcotraficantes, Jurídico e Individual Ilegalconcedendo facilidades ou colocando econômico (sobretudo osentraves às relações exteriores do Estados Unidos)Estado-objeto

Parlamentar Política Pressionar um governo estrangeiro para Adoção de resoluções Individual ou coletivo Legalque mude sua política externa ou interna não obrigatórias (Parlamento Europeu)

Nuclear Político Tornar inacessível a tecnologia nuclear Jurídico e Individual e coletivo Ilegal sem o consentimentoaos Estados não atômicos econômico do Estado-objeto

Moral Política Pressionar o Estado-objeto por meio de Psicológicos Individual Legalemissões de rádio e TV

Imposição da paz Política Separar os combatentes e exigir uma Militar, caso necessário ONU Legal no âmbito do Cap. VII dasolução do litígio com armas ofensivas Carta das NU

Apoio ao Estado Político Condição prévia para que o Estado-objeto Diplomáticos e Individual, grupo de Legal caso realizada por meio dede direito tenha acesso à uma posição ou ameaça e econômicos Estados ou OI organizações regionais (UE, OSCE,

sanção caso ele desrespeite os princípios Conselho da Europa, Mercosul edemocráticos OEA)

Restauração do Política Restauração do poder legal vítima de Diplomático e/ou Individual, grupo de IlegalEstado de direito um golpe militar Estados ou OI

Controle eleitoral Jurídico e Verificação e auxílio para operações Missões de Individual, coletivo ou OI Legal, com o consentimento doadministrativo eleitorais observadores Estado-objeto

e técnicos

Manutenção da paz Militar Separar os combatentes Interposição com Coletivo com mandato Legal no âmbito do Cap. VII daarmas defensivas da ONU Carta das NU

Reconhecimento Diplomático Reconhecimento prematuro sem respeitar Político Individual ou coletivo Legal, pois o reconhecimento é um atoo princípio da efetividade unilateral e discricionário

Não-reconhecimento Diplomático Recusar o reconhecimento, desrespeitando Não reconhecer os Individual ou coletivo Legal (cf. anterior)o princípio da efetividade governos oriundos (UE, OEA, Mercosul)

de um golpe(DoutrinaTobar ePacto Briand-Kellog)

Catástrofes naturais Ajuda civil Restabelecer as condições anteriores Financeiro e material Público (individual e/ou Legal com o consentimento docoletivo) e privado Estado-objeto

De humanidade Direitos humanos Proteger seus nacionais em território Militar Individual ou grupo de Legal segundo o costumeestrangeiro Estados

Humanitário Direitos humanos Proteger a população civil nos conflitos Estabelecer espaços Público ou privado, Ilegal sem anuência do Estado-objetoarmados protegidos individual ou coletivo ou autorizado pelo CS/ONU

QUADRO 1

Tipologia da Intervenção

Tipo Natureza Objetivos Meios Intervenientes Legalidade

(Conclusão)

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determinado país. Esse é precisamente o caso do Conse-lho de Segurança da Organização das Nações Unidas.

Segundo Corten e Klein (1992:10), a ilegitimidade nãoestá vinculada a coercibilidade, mas a um limite de licitudeque impede o interventor de imiscuir-se em matérias so-bre as quais o Estado deve preservar seus direitos sobera-nos, coagindo onde deveria silenciar. Os autores citam umadecisão da Corte Internacional de Justiça sobre a Nicará-gua que assim preceitua: “a intervenção proibida deve (...)referir-se a matérias sobre as quais o princípio da sobera-nia dos Estados permita a cada um entre eles decidir li-vremente (...) A intervenção é ilícita quando, no que dizrespeito a estas escolhas que devem ficar livres, ela utili-za meios de constrangimento”.

Não se pode negar, de fato, que muitas intervençõespontuais, de natureza institucional, extrapolaram a atri-buição que lhe havia sido dada pela organização interna-cional e, portanto, foi atravessado esse limite de ilicitude.Deve-se fazer nota, porém, de que há certa hipocrisia empresumir que o Estado merecedor da intervenção externatem condições de exercer plenamente sua soberania. Emesmo que a interferência seja limitada do ponto de vistaformal, tudo indica que a decisão de intervir, quando to-mada pelas instituições, traz dentro de si a certeza de que,na prática, necessariamente tal limite será excedido.

Há, portanto, outra maneira de perceber o limite dalicitude de uma intervenção, atribuindo-o à organizaçãointernacional, tema que será tratado mais adiante.

O importante é observar a existência de intervenções ar-madas lícitas e não-lícitas, legítimas e ilegítimas. Seu ele-mento caracterizador é a presença bélica. Essas armas queserão usadas defensiva ou, em alguns casos, ofensivamente.

Disseminaram-se as armas modernas no mundo, comgrande capacidade de destruição. Em geral, os países quesofrem a intervenção não dispõem de armas nucleares epor vezes dela são objeto precisamente para que não te-nham acesso à tecnologia nuclear militar (conforme os re-centes casos da Líbia e Iraque). O desenvolvimento tecno-lógico da indústria de armamentos foi acompanhado poruma extraordinária distribuição via comércio, muitas ve-zes clandestino, levando à possibilidade de encontrar, nosrecantos mais remotos do globo, soldados, civis e inclusi-ve crianças, armados com fuzis, metralhadoras e granadas.

O paradoxo que se coloca aqui é o da paz pela guerra.Caso os contendores, marcadamente em guerras civis, nãovislumbram outra relação que escape a ação bélica, trata-se de identificar a necessidade de impor, pela força mili-tar exógena, a paz ou, ao menos, a interrupção da guerra.

Esses conflitos sustentam-se também, pelas diferençasconsideradas irredutíveis no campo dos valores, da reli-gião, da etnia. Aliados a informalidade dos combatentes,as práticas monstruosas de genocídio, de limpeza étnica ede toda sorte de radicalismos, aprisionam a população civilque, tomada entre dois fogos, transforma-se na principalvítima.

Caso se tome a vida humana como valor, a solidarieda-de como princípio e se considere que uma vida é uma vida,não importando a cor da pele, a religião ou a nacionalida-de, claro está que a intervenção armada se legitima em taiscircunstâncias. Todavia, os países capacitados a intervirconservam grande prudência e total independência de jul-gamento. A intervenção armada, quando ocorre, resulta depressões de organizações privadas, de parte da opiniãopública ou ainda pela decisão política de um dirigente.

As razões da prudência dos potenciais interventores,originam-se no constante embate entre o egoísmo nacio-nal e a solidariedade internacional; na percepção diferen-ciada do valor da vida; nos riscos de derrapagem, pois osinimigos utilizam-se de meios não-convencionais de com-bate. Os exemplos do Líbano e da Somália são significati-vos. As dificuldades em adotar uma clara linha de condutalevam os interventores a optar pela adoção de meias-me-didas, ou seja, uma intervenção armada defensiva. O fra-casso reiterado dessa maneira de intervir é patente. No casodo conflito da ex-Iugoslávia a guerra somente chegou aofim no momento em que as forças de intervenção abando-naram a mediação entre os combatentes e decidiram con-trapor-se aos agressores, por meio de armas.

NATUREZA DA INTERVENÇÃO

Intervenção com o Uso da Força Ilegítima

Trata-se da ação violenta de um Estado soberano den-tro dos limites do território de outro Estado soberano. Podeser uma ocupação parcial ou total, perene ou pontual, uni-lateral ou mediante aliança. Entretanto, sua característicaessencial é o fato de operar-se fora do espaço institucio-nal, à parte das organizações internacionais, que pressu-põe a absoluta ausência do Estado passivo no processo dedecisão que engendrou tal imisção.

Diferentemente de um tipo de intromissão que será re-ferida adiante, cujo objetivo é restaurar o status quo ante,sem buscar uma vantagem visível para quem interfere, apresente espécie objetiva defender interesses específicosde um ator ou de um grupo de atores. Trata-se de exercí-

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cio incondicionado do poder do mais forte e reproduz oestado de natureza hobbesiano no cenário internacional.

Intervenção como Conseqüênciada Interpenetração de Interesses Econômicos

Não se pode desconhecer o extraordinário nível deintersecção entre os Estados que se desenvolveu nas últi-mas décadas, seja de cooperação, seja de confronto de in-teresses. Constituído por instrumentos pouco visíveis, nemsempre por representantes do Estado, é percebido muitasvezes como necessário à inserção internacional dos Esta-dos, em especial no âmbito comercial.

Nenhum Estado poderá hodiernamente sobreviver demaneira autárquica diante da intensificação das relaçõescomerciais e de cooperação nos mais variados campos.Organismos multilaterais vinculados ou não à Organiza-ção das Nações Unidas fomentam esse relacionamento.

A intervenção nos assuntos de organização econômicainterna dos Estados, aqui referida, ocorre quando parte desua produção é direcionada para o exterior. Ao internacio-nalizar seu consumo, os Estados destinatários desses pro-dutos podem manifestar a intenção de julgar as condiçõesem que eles foram elaborados. Portanto, não se trata deanalisar o produto em si, mas como ele foi elaborado. Nessaocasião, há nítida ingerência em matéria que, em princí-pio, deveria corresponder de modo exclusivo ao direitointerno dos Estados, resguardados os compromissos assu-midos por intermédio dos tratados internacionais.

Caso os países exportadores de produtos não se sub-meterem a ditames dos países consumidores, pode seraplicado um boicote comercial. Enquanto a retorsão e asrepresálias são tipificadas como ações dos Estados, o boi-cote é iniciativa de particulares que renunciam a manterrelações comerciais com particulares do país boicotado.

Essa forma de ingerência prende-se a tentativa de fa-zer respeitar condutas nos chamados temas emergentesque, como o nome indica, são escassamente codificadosnas relações internacionais. O primeiro exemplo provémda vinculação do comércio internacional com a proteçãodo meio ambiente. Apesar de sofrer restrições por partede um grande número de países-membros da Organiza-ção Mundial de Comércio (OMC), que recusam-se a dis-cutir a possibilidade desse vínculo nas instâncias interna-cionais, devemos constatar que, na prática, está sendointroduzida a etiquetagem ecológica ou selo verde, a fimde identificar, para os consumidores, os produtos que sãofabricados, respeitando princípios ambientalistas.4

Apesar da etiquetagem ecológica ser voluntária – logo,os países exportadores são livres de adotá-la ou não –, osmercados consumidores dos países industrializados exi-gem sua apresentação. Portanto, um produto que não aapresente por certo será excluído do mercado.

O segundo tema emergente manifesta-se pela discus-são em torno da chamada cláusula social.5 Certo númerode países industrializados expressam, por meio de seusgovernos e sindicatos, a idéia de vincular o comércio compadrões trabalhistas. Com o objetivo de diminuir os ris-cos de uma concorrência desleal, os países desenvolvidosingerem-se diretamente na forma de organização laborale econômica dos países em desenvolvimento.6

Finalmente, um aberto e importante modo de intervirnos assuntos internos dos Estados é representado pelaconcessão de empréstimos de órgãos multilaterais, comoo Banco Mundial (Bird) e Banco Interamericano de De-senvolvimento (BID), uma vez que os tomadores adotemmedidas internas preconizadas por essas instituições oupelo Fundo Monetário Internacional (FMI). A negocia-ção das dívidas externas de muitos países e questões fun-damentais como o papel do Estado, o processo de privati-zação e o gerenciamento da máquina pública, são assuntosque, ao vincular-se com estratégias forasteiras, fogem daalçada dos Estados. Os governos destes transformam-se,muitas vezes, em meros gerentes de planos e projetos es-tabelecidos alhures (Cachapuz de Medeiros, 1991:51-72).7

Intervenção como Conseqüênciade um Processo Institucional

A interferência externa será, nesse caso, juridicamenteaceitável, o que não quer dizer que seja justa ou inconteste.Encontra sua justificativa no próprio direito das gentes,como resultado de acordos ou da atividade de fóruns dejurisdição internacional aceitos voluntária e antecipada-mente pelos Estados que a sofrem. Exemplos podem serextraídos da experiência da Corte Internacional de Justi-ça, do Tribunal de Luxemburgo e da prática da arbitra-gem internacional.

Os casos de intromissão classificados sob este critériosão evidentemente os menos numerosos, como nos demons-tra a história das relações internacionais. A institucionali-zação de um conflito significa, precisamente, a antecipa-ção de sua ocorrência, pois pressupõe (I) a atitude anteriordo Estado passivo em aceitar tal jurisdição; (II) a atitudeda instituição em prever a conduta passível de sanção eestabelecer qual será esta; (III) a atitude posterior da insti-

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tuição de interpretar o caso concreto e dosar a penalidade,constituindo um processo decisório próprio e autônomo.

É fácil detectar aqui o problema de não ser a ordemjurídica internacional provida de um poder de sanção queconceda automaticidade entre a materialização do supor-te fático da regra internacional e a efetivação do preceitoda mesma regra.

INTERVENÇÃO SEGUNDO SUA FINALIDADE

Intervenção como Proteção aos EstrangeirosResidentes em Território Instável

Tem sido comum nas últimas décadas a alegação deque a vida e os bens de estrangeiros estão sob risco emdado território. Percebido do ponto de vista do interventor,trata-se de proteger os interesses e direitos de seus nacio-nais e nesse sentido possui uma clara dimensão humani-tária. Exclui-se, desde logo, a possibilidade de intervir nosassuntos políticos de um país por meio do reforço conce-dido ao governo local ou a tentativa de instaurar outro.Ela cessaria quando os cidadãos em tela estivessem pro-tegidos e tivessem seus direitos respeitados.

Opera-se, logo, quando o Estado que deveria protegere dar segurança a todos os que se encontram em seu terri-tório não o faz. Sobretudo, é constatada quando há anar-quia e não se sabe quem responde pelo Estado, ou quandoo próprio Estado incita, pela ação ou pela inação, as ativi-dades de grupos paraestatais.

Trata-se de situações-limite, cujo deslinde quase sem-pre está vinculado a uma intervenção estrangeira que foi,em uma célebre sentença, aceito pelo árbitro suíço MaxHuber. Ele reconhece que é “inconteste que, até um certoponto, o interesse de um Estado em proteger seus nacio-nais e seus bens deve ter primazia sobre a soberania nacio-nal, mesmo na ausência de obrigações convencionais”. ParaHuber, não deve ser discutido o chamado direito de inter-venção, mas tão-somente seus limites (Apud Pellet, 1995:4).

Assistência Humanitária

As catástrofes provocadas junto à população civil pe-las guerras ou a situação de descontrole de um país, quese aproxima da anarquia, sempre existiram. É evidente,não com a dimensão hodierna, marcada pela modificaçãodas formas de extermínio. Perante essa situação, foi cria-do o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e depoisassinados os Protocolos de Genebra que tentam humanizar

a guerra e restaurar um mínimo de normalidade em situa-ções caóticas.

O elemento fundamental dessas iniciativas é a divul-gação das imagens dessas situações desumanas. Por exem-plo, se o mundo ocidental tivesse sabido do genocídionazista em toda a sua dimensão e seu horror, é provávelque teria tomado atitudes que, no contexto do passado,restaram impossíveis. O cotidiano da imagem, reproduzi-da infinitas vezes pela televisão, cria uma espécie de opi-nião pública mundial.

Por outro lado, constatou-se que o que foi feito via CruzVermelha Internacional, e mais tarde via Alto Comissa-riado para Refugiados das Nações Unidas, está muitoaquém das necessidades. Foi transposto para o direito in-ternacional um princípio jurídico que é uma regra dospaíses ocidentais, da obrigatoriedade de prestar socorro apessoas em perigo, para justificar essa intervenção huma-nitária. Ele está sintonizado com um dos princípios bási-cos do mundo ocidental cristão, o direito à vida.

Baseado nessas experiências, surgiram movimentosprivados, vinculados às ONGs, que atuam desconhecen-do as fronteiras nacionais, em situações de grave risco egrande urgência. Assistem populações depauperadas emtema que vão de saneamento básico à escolaridade, deforma permanente. Também promovem ações pontuais emrazão de catástrofes naturais, terremotos, secas, tufões, quedesestruturam uma sociedade já frágil ou ações pontuaisde conflitos tribais ou conflitos étnicos, civis.

O direito humanitário foi, outrora, o direito dehumanização da guerra, ou seja, a imposição de normasque orientassem os beligerantes. No entanto, os desafiosdo direito humanitário ampliaram-se para muito mais doque as normas que regem a guerra, porque outras situa-ções fazem mais mortos que a guerra. O direito humanitá-rio não regra, por exemplo, a atuação das ONGs. Alémdessas, como se poderia impor uma ação do coletivo hu-manitário internacional em razão da enorme necessidadede recursos? Por intermédio da intervenção unilateral, semprévia autorização? Há, nesses termos, programas espe-cíficos de assistência. Contudo, não existe institucionali-zação que os exceda e que possa, através da codificação,fazer surgir um novo direito humanitário.

Ingerência como Imposição da Paz

O direito internacional, ao enumerar os métodos desolução pacífica para os litígios interestatais, não prevê apossibilidade de imposição da paz. A mediação, os bons

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ofícios e a arbitragem são recursos que, para serem acei-tos, dependem da vontade dos contendores. Desse modo,as Nações Unidas não dispunham de meios coercitivos paraefetivar a paz.

Entretanto, o agudo conflito desenrolado na ex-Iugos-lávia levou a ONU, após um acirrado e longo processo dediscussão interna, a delegar à Otan a tarefa de agir mili-tarmente, inclusive de forma ofensiva, para bloquear aguerra, em uma literal luta pela paz. No caso específicoda Bósnia, o conflito tem duas faces, por ser uma guerrainternacional, mas também uma guerra civil. E assim seabre um caminho para intervenção não consentida do co-letivo internacional.

As resoluções relativas à Bósnia certamente foram pro-vocadas pelo grande impacto que representou estar a bar-bárie localizada dentro da Europa. De toda forma, é níti-do o precedente de ter o coletivo levado os guerreiros adepor as armas, de estarem os litigantes desprovidos dodireito de matar-se, em que pese o ódio encontrar-se in-tacto entre eles. Parece que a razão determinante dessadecisão do coletivo não foi o ingrediente conceitual, seguerra civil ou internacional, mas o fator geográfico e daopinião pública. Justa ou injusta, houve na Bósnia umapaz ofensiva. Tardia para os que a desejavam, imberbepara os que devem explicar a teoria das relações interna-cionais.

Ingerência como Restauração da Democracia

As idéias do início deste século confirmam a demo-cracia como o regime de governo, por excelência, do Es-tado contemporâneo. Em menos de uma geração o núme-ro de Estados que se dotaram de regimes democráticosliberais foi multiplicado por três (atualmente perfazem 140Estados). A América Latina é exemplo claro do fenôme-no e a OEA, por meio do Compromisso de Santiago(1991), define a democracia como o regime de governodo continente.

À parte da discussão dos meios dos quais dispõe a or-ganização internacional para realizar os postulados quedetermina, não se pode negar a importância da democra-cia como referência das modernas relações internacionais.

Num primeiro plano, lembre-se os casos em que umregime democrático foi pressuposto para que Estados ti-vessem acesso a interesses que reputavam relevantes, comofoi o ingresso da Grécia, da Espanha e Portugal às Comu-nidades Econômicas Européias. Tais países vieram a in-tegrar esse bloco econômico apenas quando conseguiram

eliminar os regimes ditatoriais que lhes governavam. Aindapor um prisma, o Mercosul, motivado pelas reiteradas ten-tativas de golpe no Paraguai, decidiu fixar como condi-ção indispensável para plena participação no processo deintegração, a manutenção do regime democrático. Intro-duziu assim, pelo Protocolo de Ushuaia, a condicionali-dade democrática.

O exercício da democracia representativa que se apre-senta como condição sine qua non da manutenção de re-lações econômicas ou políticas com o exterior constituievidente pressão em sentido lato e, portanto, uma formade ingerência.

Um segundo plano, contudo, desvela a restauraçãomaterial da democracia, com o restabelecimento do Esta-do de Direito nos locais em que ele se encontra violado.Aqui, é assídua a imprecisão conceitual, com uso indis-criminado da expressão ingerência como intervenção ar-mada. Diversas vezes, esse gesto, armado ou não, de apa-rente solidariedade aos regimes constitucionais assentadosno mundo foi utilizado como mero pretexto para uma açãofundada em interesses bastante diversos e, como já foi dito,freqüentemente expectativas nacionais do interventor.

Como a percepção da democracia atine à axiologia, arestauração democrática somente poderia ser um verda-deiro objetivo em si mesmo caso decidida pelo coletivointernacional. É bem certo, contudo, que ainda perdurariao problema da legitimidade decisional dentro da instân-cia internacional. Em outras palavras, um direito de inge-rência fundado na violação da democracia só pode ser obrado coletivo e certificando-se que a organização interna-cional responsável pela intervenção não fosse objeto demanipulação dos Estados-membros defensores de interes-ses nacionais.

Ao tratamento do processo decisional em si deveriasomar-se a discussão de condições bastante precisas domodus operandi da intervenção restauradora. O períodode imisção é um dos temas centrais para debate; uma vezrestaurado o regime, deve cessar a ação do interventor,ao menos sob essa modalidade. Nada impede que perduresob outras formas, como a da assistência humanitária, porexemplo.

Todavia, a pergunta principal a ser respondida é: qualação do interventor? Sob a finalidade de restaurar a de-mocracia, em que termos deve expressar-se a decisão docoletivo internacional?

Refutada, de toda forma, a ação unilateral, enfrenta-sebasicamente o dilema de conferir ou não ao coletivo orecurso à força. Parece claro que as demais sanções inter-

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nacionais são aceitáveis em tese. Na prática, são contes-tadas mais pelas condições objetivas, como o caso de umEstado repudiar uma sanção porque apóia o regime sancio-nado, do que pela ação em si mesma.

A polêmica acende-se propriamente quando se preten-de militarizar a sanção. Parafraseando o enunciado sobrea Bósnia, tratar-se-ia da literal luta pela democracia. Nãoé propriamente uma novidade que as sanções que pres-cindem da força têm dificuldade de real implementação.Portanto, a opinião pública tende a exigir, quando diantede uma ditadura, sobretudo se ela é cruel, uma verdadeiraatitude e não apenas o repúdio formal contido no discursopara consumo da mídia. Ou seja, exige a eficácia da deci-são internacional que opõe-se ao regime ditatorial, cujaoposição não consegue efetivar-se.

Contudo, quando os Estados defensores da democraciatêm a concreta vontade de agir? É bem certo que muitasditaduras sanguinárias passaram desapercebidas quandointeresses outros não estavam em jogo. De outra parte, afraqueza do coletivo forja a disposição de agir de inúme-ros ditadores. Rasgando a Constituição e impondo umainaceitável concepção de soberania nacional, eles nada têma temer: a história ensina que os golpistas agem impune-mente. Não há uma posição clara do coletivo internacio-nal em relação às conseqüências da violação do Estado deDireito, que poderia servir como elemento de dissuasão.O caso do Haiti foi sintomático dessa possibilidade de umgrupo apropriar-se do Estado, destituir as autoridades cons-tituídas, e construir uma soberania dos ditadores.8 A or-ganização internacional deve dispor, de forma prévia ecoletiva, um catálogo de atitudes que configurem uma res-posta à violação da democracia. O discurso vazio faz pro-liferar os ânimos dos aprendizes de golpistas e nos obrigaa assistir inertes fenômenos como o de Fujimori no Peru,flagrante ofensa ao Estado de Direito.

O item máximo, ao final dessa escala de medidas, se-ria a intervenção armada? Ninguém menos do que Dalmode Abreu Dallari (1994:1-3), renomado jurista e incansá-vel lutador pelo respeitos dos direitos humanos, salientaque a possibilidade de vir a existir um direito de ingerên-cia, materializado em ação armada, é a juridicidade dahiprocrisia das grandes potências, uma vez que lhe propi-ciaria meios legais para agir quando for de seu interesse.De fato, as situações de intervenção deveriam serdetalhadamente previstas, caso tal direito viesse a materia-lizar-se. Sobretudo, a discricionariedade seria banida comocritério para ação ou omissão, instalando-se uma solida-riedade internacional efetiva. No entanto, restaria ainda o

problema: qual democracia a ser restaurada? Antes de maisnada, trata-se de preservar o exercício de poder aos quedetém tal direito, como resultado do regime representati-vo e democrático. Se é bem certo que o conceito de de-mocracia vai muito além do sistema de representação, tam-bém é posto que o mínimo a ser assegurado é o modelorepresentativo (Ribeiro, 1995:238-39).

INTERVENÇÃO E MULTILATERALISMO

Existe permissivo no âmbito das organizações interna-cionais para a intervenção nos assuntos considerados in-ternos pelos Estados? A Liga das Nações, criada em 1919,indicava várias formas de intervenção solidária.9 Toda-via, no âmbito universal, a Carta da ONU constitui o do-cumento mais importante que trata da questão.

A Carta das Nações Unidas dispõe em seu art. 2o, pará-grafo 7 que “nenhum dispositivo da presente Carta auto-rizará as Nações Unidas a intervir em assuntos que de-pendem essencialmente da jurisdição de qualquer Estadoou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a umasolução, nos termos da presente Carta; este princípio,porém, não prejudicará a aplicação das medidas coerci-tivas constantes do Capítulo VII” (grifo nosso).

O art. 39 do Capítulo VII concede faculdade ao Con-selho de Segurança (CS) de determinar “a existência dequalquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão,e fará recomendações ou decidirá que medidas deverãoser tomadas de acordo com os arts. 41 e 42”.

A leitura do texto da Carta demonstra que a ONU nãopermite a intervenção nos assuntos internos dos Estados-membros exceto quando se trata da manutenção da paz.Ora, ao mencionar como inaceitável a simples ameaça àpaz, a Carta abre a possibilidade da adoção de medidascoercitivas preventivas. No entanto, trata-se de qualquerameaça, o que faz supor ampla liberdade concedida ao CSpara analisar sua aplicação fática.

Contudo, a adoção das medidas coercitivas do Capítu-lo VII não configura, segundo o texto da Carta, a inter-venção nos assuntos internos. O infrator, a depender dainterpretação do texto pelo Conselho, poderá sofrer a açãodo coletivo onusiano. Essa ressalva do art. 2o, item 7 pos-sibilita a ação coletiva dentro da jurisdição de domínioreservado de um Estado. Exceto por este enunciado, a açãocoletiva só poderia desenrolar-se fora do território sobe-rano (Pecourt, 1962:101).

O art. 41 estabelece medidas de bloqueio, ações queobjetivam isolar o país faltoso, mas ainda não configu-

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ram a utilização das forças armadas, que somente intervi-rão, segundo o art. 42, para manter ou restabelecer a paze segurança internacionais, em ações que poderão “com-preender demonstrações, bloqueios e outras operações, porparte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membrosdas Nações Unidas”. A possibilidade de utilização dasforças armadas coletivas para outras operações ultrapas-sa agora o âmbito da coerção para atingir, de maneira mi-litar e com a amplitude resultante da indefinição, o fenô-meno da intervenção nos assuntos internos.10

No Capítulo VIII, relativo aos acordos regionais, a Cartada ONU declara que o CS “utilizará, quando for o caso,tais acordos e entidades regionais para uma ação coerciti-va sob a sua própria autoridade. Nenhuma ação coerciti-va será, no entanto, levada a efeito de conformidade comacordos ou entidades regionais sem autorização do Con-selho de Segurança”. Portanto, a Carta indica duas fun-ções essenciais dos acordos regionais no que se refere acoerção. Por um lado, eles podem servir de executores dasmedidas e, por outro, não podem chamar a si a responsa-bilidade pela decisão.

A Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA)reconhece, em seu art. 136, a primazia da ONU ao decla-rar que “nenhuma das estipulações desta Carta se inter-pretará no sentido de prejudicar os direitos e obrigaçõesdos Estados Membros, de acordo com a Carta das NaçõesUnidas”.

Longa e exaustiva para definir regras, a Carta da OEAtorna-se contraditória à medida que não prevê mecanis-mos que garantam seu fiel cumprimento. Em geral, ba-seia-se em princípios do direito internacional, da igualda-de entre os Estados e, em particular, no respeito àsoberania. Um dos pontos essenciais da Carta, é o art. 2o

(b), pelo qual os países-membros comprometem-se a “pro-mover e consolidar a democracia representativa, respei-tado o princípio da não-intervenção”.11

Em seu art. 3o (d), no qual a OEA define os princí-pios, a Carta reforça outra vez sua preocupação com aforma de governo dos países-membros e estipula que a“solidariedade dos Estados americanos e os altos fins aque ela visa requerem a organização política dos mes-mos, com base no exercício efetivo da democracia re-presentativa”.

Contudo, o parágrafo seguinte contém uma contradi-ção: “todo Estado tem o direito de escolher, sem ingerên-cias externas, seu sistema político, econômico e social,bem como de organizar-se da maneira que mais lhe con-venha, e tem o dever de não intervir nos assuntos internos

de outro Estado”. Para além da conduta omissiva da não-intervenção, a Carta exige um posicionamento dinâmicode seus membros, que deverão cooperar “amplamente entresi, independentemente da natureza de seus sistemas polí-ticos, econômicos e sociais”.

As disposições antagônicas do texto espelham o per-manente confronto entre a visão de Washington e as pers-pectivas dos países latino-americanos. Em todo caso,devemos sublinhar que a Carta jamais menciona a possi-bilidade de tomar medidas coercitivas como as sançõesou ainda a exclusão de um país da Organização, caso vio-le os dispositivos da Carta.12

É enfatizado o princípio da segurança coletiva. Contu-do, quando “a inviolabilidade, ou a integridade do terri-tório, ou a soberania, ou a independência política de qual-quer Estado americano forem atingidos por um ataquearmado... os Estados americanos, em obediência aos prin-cípios de solidariedade continental, ou de legítima defesacoletiva, aplicarão as medidas e processos estabelecidosnos Tratados especiais existentes sobre a matéria” (Cf.cap.VI, art. 28) (grifo nosso).

Ao contrário da Carta da ONU, a carta constitutiva daOEA delega expressamente aos denominados Tratados es-peciais, em particular ao Tratado Interamericano de As-sistência Recíproca (Tiar), as medidas coercitivas quedevem ser tomadas para resguardar a paz continental. Ora,estes Tratados especiais são documentos que legalizamalianças militares defensivas e não podem ser assimila-dos a tratados constitutivos de uma organização interna-cional de caráter regional. Em conseqüência, do ponto devista jurídico, não se configura o traço coercitivo ou deingerência que se tenta identificar nas organizações inter-nacionais.

Finalmente, o reiterado condicionamento dos países-membros da OEA aos princípios da democracia represen-tativa impõe que se identifique o modo pelo qual será pro-movida a “ação coletiva pelo direito à democracia nasAméricas” (Muñoz, 1995:16-35).

Mais tarde, em 1991, o já referido Compromisso deSantiago ressaltou, uma vez mais, a importância de umaluta coletiva pela democracia nas Américas. Contudo, nareunião de dezembro de 1992, em Washington, firmou-senovo texto, objetivando uma reforma da Carta. O disposi-tivo mais importante do Protocolo de Washington, pro-posto pela Argentina, prevê a suspensão da Organizaçãodos Estados-membros cujo governo seja deposto pelo usoda força. Trata-se, portanto, de dispositivo similar ao ado-tado pelo Mercosul, mencionado anteriormente.

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Outra dimensão tem a atuação da ONU, que tentará,ao longo de sua história, intervir nos conflitos internacio-nais. A Assembléia Geral e o Conselho de Segurança con-frontam-se incessantemente. A primeira, concebendo aingerência de forma restritiva, e integrada por todos osEstados-membros, reflete o temor da maioria numérica depequenos países, mas seu processo de decisão resulta ape-nas em recomendações. O analista deve ater-se à posiçãodo Conselho, que dispõe de força executória e concebe aingerência de maneira mais ampla, de todo maleável àscircunstâncias objetivas.

O Conselho de Segurança decidirá conforme o grau deinteresse que seus membros permanentes tiverem no casoem pauta. Deve ser feita nota, entretanto, que a regra daunanimidade que resulta no poder de veto, levará, porvezes, à paralisia em casos nos quais o coletivo efetiva-mente poderia intervir. Por essa razão foi possível a in-tervenção do CS nas questões marginais das relações in-ternacionais até o final da Guerra Fria. O desaparecimentoda União Soviética e a atuação mais moderada da Chinadeverão reduzir ou descartar as situações de bloqueio, doque a Guerra do Golfo pode ser um bom exemplo.

CONCLUSÃO

O princípio da autodeterminação dos povos é freqüen-temente apresentado como obstáculo da ingerência exter-na. Ele significa que os povos detém capacidade para auto-organizar-se, basta que manifestem esse desejo medianteum plebiscito. Surgiu como elemento que embasou juri-dicamente o processo de independência das colônias eu-ropéias situadas na África. Portanto, é um princípio basilardo movimento de descolonização, detentor de uma ori-gem geográfica e histórica definidas. Modernamente, esseprincípio seria o precioso alimento para os separatismose os afãs nacionalistas. A própria Assembléia Geral daONU, que formulou o princípio da autodeterminação dospovos decidiu, em face dos possíveis deslizes provoca-dos por sua aplicação indiscriminada, limitar seu alcan-ce. Assim, ela identificou sua aplicação unicamente aocombate contra o colonialismo. Exclui-se, portanto, osfenômenos de secessão que atingem vários Estados, loca-lizados sobretudo nos continentes africano e europeu.

De outra parte, a soberania nacional é o mais forte ar-gumento a opor-se à intervenção solidária. Ora, ao anali-sar o elenco de formas assumidas pela ingerência, viu-seque a soberania está muito mais próxima do mito do queda realidade. O viver em sociedade impõe, de forma con-

tínua, que se sofra ou se exerça a ingerência. Todo o con-ceito de soberania que não compreender essa realidade,será insuficiente para explicar o Estado contemporâneo eservirá como instrumento para toda sorte de manipulaçõesinternas.13

Atualmente, a força da qual dispõe um Estado definesua posição quanto à ingerência: ele será vítima ou algoz.Por essa razão a proposta de codificá-la, a fim de resguar-dar os interesses dos mais fracos, prevendo situações eatribuindo-lhes conseqüências também previsíveis, cons-titui a única forma de disciplinar o uso indiscriminado daforça. Não se pode negar que, entre os opositores a talregulamentação, encontram-se tanto os candidatos a dita-dores, que refutam todo tipo de controle, até quanto aosdireitos humanos, como setores progressistas que vêemna intervenção externa uma ameaça de imposição com-pleta de um sistema perverso, de padronização da culturae de fenecimento absoluto de uma possibilidade de insur-reição.

A experiência histórica demonstra que a falta de crité-rios e a flexibilidade das interpretações levam, efetiva-mente, à ingerência indiscriminada do forte sobre o fra-co. Este argumento serve mais à codificação do que a suarecusa. Portanto, é paradoxal a atuação dos progressistasneste campo. Ao mesmo tempo em que refutam a inge-rência, são os primeiros a utilizar as instituições interna-cionais para influir nas questões internas, como é o casodos Relatórios de direitos humanos e sobre as minorias,as questões ambientais e indígenas.

Diante da inépcia das instituições universais hoje exis-tentes, o uso da força acaba por escapar às instituições, ecom isso a critérios e a controles. Urge a criação de umConselho Permanente de Segurança da Humanidade(CPSH), com representação regional e cultural, que tomedecisões por maioria qualificada e sem poder de veto. Osprincípios do direito das pessoas não devem ser observa-dos só nos casos em que contemplam o interesse dos maisfortes. Os interventores devem restringir seus objetivos afazer cessar o desrespeito aos direitos humanos fundamen-tais. A ação do coletivo internacional só seria justificávelquando compatível com o objetivo buscado.

O exterior não é um ente unívoco, homogêneo, quepossa ser temido ou desejado em sua totalidade. A reite-rada oposição à ingerência externa, ao insistir na negaçãodo cotidiano, desgasta o postulado do controle e reforça adiscricionariedade dos mais fortes. É necessário contro-lar, regrar e construir uma ingerência assentada na solida-riedade, como forma de combate ao egoísmo e à indife-

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rença que se instalam mortalmente no cenário internacio-nal contemporâneo.

NOTAS

O presente trabalho foi contemplado com uma bolsa de pesquisa doCNPq.

1. Como declarou o poeta Paul Valéry “a paz era a guerra n’outrolugar”.

2. Henry Bonfils (1912:184), ao tratar justamente desse tema em 1912,metaforiza estes riscos: “la pente est rapide, et la chute est fréqüente”.

3. Uma situação distinta, que pode ser indicada como o embargo de-monstrou uma relativa eficácia, encontramos no exemplo do fim doregime de apartheid na Africa do Sul. Todavia, o longo processo quelevou ao fim o regime racista deve temperar um eventual entusiasmocom a eficácia do embargo.

4. O GATT permitiu, no início da década de 90, que os Estados Uni-dos usassem uma etiqueta ecológica para a identificação do atum im-portado que fosse pescado segundo as regras definidas na US MarineMammal Protection Act de 1972. Este precedente, praticamente, eli-minou a importação de atum mexicano.

5. Também chamado dumping social. Considera-se errônea as duasdenominações, pois trata-se tão-somente de questionar as condiçõestrabalhistas em que foram produzidos tais bens. Portanto, deve-se adotara expressão dumping laboral para designar essa hipotética prática des-leal de comércio.

6. Nas concessões de créditos aos países em desenvolvimento, muitospaíses concedentes vinculam a utilização de tais recursos à aquisiçãode bens exclusivamente dos países concedentes. A concessão do cré-dito, portanto, consiste em uma operação de venda de produtos dospaíses concedentes. Ao eliminar a liberdade de escolha, o chamadocrédito vinculado, obriga o concessionário a abrir mão de uma essen-cial prerrogativa. Nessas circunstâncias, é problemática a identifica-ção do beneficiário da operação ser o concedente ou o concessionário.

7. Cachapuz de Medeiros ressalta que o comprometimento externo denatureza financeira da União exige, contrariamente ao invocado peloExecutivo, a prévia autorização do Senado. Portanto, essa ausência,caracteriza, segundo nosso entendimento, a nítida ingerência dessesorganismos internacionais nos assuntos internos do Estado brasileiro,pois ausente o consentimento.

8. Este episódio é de grande relevância, mesmo em se tratando de umpequeno país marginal, porque a ingerência externa esteve tanto naraiz da violação da democracia como na plenitude de sua restauração.A diferença entre estes dois momentos é que o golpe militar que depôsJean-Bertrand Aristide em 1991 foi financiado pelo governo republi-cano dos EUA de forma unilateral e velada, indiretamente constituin-do um recurso à força. Já a recomposição do Estado de Direito ope-rou-se com o permissivo do Conselho de Segurança da ONU para açãomilitar, realizada de maneira explícita. A OEA serve como o exemploda declaração vazia, pois apesar de opor-se ao golpe desde o primeiromomento, legou aos EUA a tarefa solitária de cumprir o Compromissode Santiago pela democracia.

9. O Pacto estipula que o “Conselho tomará conhecimento de todaquestão que entrar na esfera de atividade da Sociedade ou que interes-sar à paz do mundo” (artigo 4.4). Pode-se discutir o significado daexpressão tomará conhecimento, mas deve-se ressaltar que o órgão exe-cutivo da Liga abriga amplo poder de interpretação sobre o que podevir a ser uma ameaça à paz mundial, não fazendo a distinção entreorigem interna ou externa da ameaça. Uma atenção especial merece aÁfrica Central que exige que o Mandatário assuma a administração doterritório “em condições que, com a proibição de abusos, tais como otráfico de escravos, o comércio de armas e o do álcool, garantam a

liberdade de consciência e religião”. A característica principal dosdispositivos da Liga é a sua falta de praticidade e a ausência de indi-cação dos meios para alcançar tão amplos objetivos. De todos os mo-dos, nota-se que responsabilidades exclusivas dos Estados em temasespecíficos e setores de sua população, podem vir a ser objeto de açõescoletivas, segundo os redatores do Pacto.

10. Contudo, a Assembléia Geral (AG) das Nações Unidas tomou po-sição em duas oportunidades sobre a “inadmissibilidade da interven-ção nos assuntos internos dos Estados”. Em 1965 a AG aprovou aResolução 2.131 e em 1981 a Resolução 36/103 redigidas em termossimilares. No entanto, a AG declara nos textos que tais Resoluçõessubmetem-se às disposições contidas nos Capítulos VI e VII da Carta.

11. Um terceiro considerandum da Carta, reforçando a luta pela de-mocracia, foi aprovado em 5 de dezembro de 1985 com a seguinte re-dação: “Seguros de que a democracia representativa é condição indis-pensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região”.

12. Portanto, a expulsão de Cuba da organização foi um gesto exclusi-vamente político, ausente qualquer base legal.

13. Consultar a inovadora percepção do conceito de soberania (Ven-tura, 1996).

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INSERÇÃO INTERNACIONAL: TRÊS TEMAS NA AGENDA BRASILEIRA

A

INSERÇÃO INTERNACIONALtrês temas na agenda brasileira

Resumo: Propõe-se, aqui, uma reflexão sobre as estratégias de inserção internacional do Brasil, a partir deuma tríade de políticas componentes da Agenda diplomática. Nesse sentido, a análise se desenvolve desde oinício dos anos 90, com a observação das orientações da nossa política externa para o Mercosul, para as nego-ciações multilaterais, e em relação à proposta de constituição da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).Palavras-chave: política externa; inserção internacional; diplomacia.

Abstract: A review of that part of Brazil’s diplomatic agenda, which, through a three-pronged policy approach,seeks to secure Brazil’s engagement in the international sphere. The analysis begins in the early 1990’s, withan examination of Brazil’s policy towards Mercosul, its multilateral negotiations, and with regard to itsparticipation in FTAA.Key words: foreign policy; international engagement; diplomacy.

MEIRE MATHIAS

título introdutório e para uma primeira aproxi-mação com o tema central que será objeto dedebate ao longo deste texto, entende-se que, em

ciações multilaterais e em relação à proposta de consti-tuição da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).Nesse sentido, parte-se da hipótese de que, com essa com-posição, é possível visualizar, mesmo que parcialmente,os parâmetros que norteiam a inserção internacional dopaís e como isso, mais recentemente, vem ocorrendo. Arigor, considerados isoladamente, esses temas represen-tam diretrizes específicas de nossa política exterior, po-rém agregam-se e estão interpenetrados quando se abor-da o sentido político-econômico do processo de inserçãointernacional do Brasil. Cabe igualmente esclarecer que ainterpenetração não significa dependência entre os temasquanto ao seu encaminhamento, mas, na observação dasações externas do país, essas políticas aparecem mais doque imbricadas.

A interpretação da chancelaria brasileira sobre as es-tratégias de inserção internacional do Brasil, em linhasgerais, é a de que a América Latina é a nossa circunstân-cia, todavia, o Mercosul é uma prioridade na Agenda. “Omultilateralismo, por sua vez, é uma opção estratégica paraas relações comerciais, sendo que a adesão à Alca deveser negociada. É bem provável que, em virtude da opçãopela adesão negociada, percebam-se resistências a esta pro-

relação ao sistema internacional, o Brasil ocupa uma po-sição significativa no eixo principal de países que consti-tuem o Mercosul,1 participa de instâncias multilaterais,como a Organização Mundial do Comércio (OMC), e tam-bém atua em diferentes foros internacionais e regionais,como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Gru-po do Rio. No processo negociador da Alca, o Brasil étido pelos Estados Unidos – nação formuladora desta pro-posta – como “um país de baixa relevância nas relaçõesinternacionais como um todo, à exceção de temas comomeio ambiente, onde o país se destaca como um ator polí-tico de relevo. Em questões de alcance hemisférico ou re-gional, os EUA consideram o Brasil uma ‘liderança natu-ral’ e um fator de estabilidade regional no contexto doMercosul”.2

O objetivo deste artigo é refletir sobre as estratégiasde inserção internacional do Brasil a partir de uma tríadede políticas componentes da nossa Agenda externa. Des-ta forma, as discussões estão centradas nas orientações dapolítica externa brasileira para o Mercosul, para as nego-

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posta nos procedimentos adotados pelo Itamaraty, entre-tanto, esse posicionamento não implica a negação da Alca,o que significaria, em última instância, a não-adesão porparte do Brasil.

Há alguns anos, Roberto Abdenur (1994a) comentouque, a partir dos anos 90, o encaminhamento da políticaexterna passou a sofrer enrijecimentos e pressões de vá-rias ordens e que a diplomacia brasileira tomou cons-ciência que, no cenário pós-guerra fria, “a importânciarelativa de cada país também é medida por sua projeçãoeconômica, comercial, científica ou cultural, isso contu-do, não nos parece que seja um elemento de comprome-timento daqueles que fazem a agenda externa do país”.O diplomata procurou explicar que, dadas as condiçõesdeste contexto, o Brasil tem assumido uma posição maisflexível na definição de Agenda e alianças e, por isso,acredita ser necessário recuperar com realismo a expres-são do ex-chanceler Ramiro Saraiva, que dizia: “o Bra-sil não dispõe de excedentes de poder”. Em certo senti-do, aproxima-se desta linha interpretativa Celso Lafer(1994), quando afirmou que, “o mundo, hoje, é muitomais importante estrategicamente para o Brasil do que oBrasil é relevante estrategicamente para o mundo”. Me-diante essas considerações, cunhadas por uma forte dosede realismo e pragmatismo, questiona-se qual é a impor-tância estratégica do Brasil no cenário internacional? Emais. Quais são as possibilidades de uma inserção inter-nacional favorável para o País?

Sem pretender esgotar as várias possibilidades queenvolvem a formulação desta resposta, pode-se esboçarum desenho em que sejam traçados os processos que fa-zem parte desse debate, procurando dar visibilidade aostemas que são relevantes a esta questão. Antes porém, épreciso considerar que a totalidade de temas que compõema Agenda externa do País, invariavelmente, é observadapela diplomacia brasileira com o objetivo de evitar queocorram práticas incoerentes entre a condução de cada umdestes temas e a orientação geral da política externa. Ou-tra referência é que, no tratamento das diretrizes da polí-tica externa, observa-se a configuração, a dinâmica e asmudanças ocorridas no sistema internacional. Além dis-so, para a diplomacia é “pretensão legítima de todo traba-lhador intelectual, desde Platão e Maquiavel até os maismodernos conselheiros do Príncipe, que seu esforço in-terpretativo possa conduzir a um melhor diagnóstico darealidade e, a partir daí, à conformação de um guia razoa-velmente eficaz para a ação política dos dirigentes doEstado” (Almeida, 1991).

Para os membros do Itamaraty, a atuação diplomáticaé uma prática que se desenvolve no mundo exterior, mui-tas vezes com discrição, outras em sigilo, mas semprenegociando os interesses nacionais, construindo atravésda ação diplomática a imagem do País no sistema interna-cional. Segundo o embaixador Sérgio Bath, a dimensãoda ação diplomática está relacionada à atuação de um es-pecialista do Poder Executivo que executa a política ex-terna, podendo ser interpretada como um instrumento deajuste dos interesses do Estado. Para ele, “a importânciada diplomacia reside na sua promessa de paz e ordem, pelasolução razoável dos conflitos” (Bath, 1989).

Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se considerar queo momento de paz significa ausência de guerra, porém, issonão implica a inexistência de interesses conflituosos, oumelhor, não há interesses assimétricos de natureza militar,tecnológica ou comercial, entre outros. A arte da política3

no exercício diplomático se traduz em pensamento estraté-gico que formula ações a partir das relações de poder e in-fluência no cenário externo, seja ele global ou regional. Nes-se sentido, diplomacia é ação sobre antagonismos epossibilidades, com diretrizes orientadas pelas realidadesinterna e externa que, no pós-guerra fria, encontram a Agen-da dominada pelo econômico e pela confecção de regras paraprocessos de transação internacional.

No Brasil, a partir dos anos 90, entre as diretrizes defi-nidas para a política externa, está a inserção do País noMercosul, que significa um aprofundamento de nossoscompromissos político-econômicos junto aos países-mem-bros. O multilateralismo é uma tendência que vem se acen-tuando4 desde o início do mesmo período, com o fortale-cimento do papel de global trader do País. Em relação àAlca, a chancelaria brasileira tem divulgado, através dosmeios de comunicação e em diferentes foros, que o maiorinteresse do Brasil, no momento, não é o de negociar da-tas e procedimentos de implementação do projeto, massim discutir a suspensão das medidas protecionistas ame-ricanas, em especial, no setor agrícola. Percebe-se que estastrês frentes de atuação externa não são incompatíveis en-tre si ou em relação ao desenho de liberalização econômi-ca traçado pelo governo brasileiro, sobretudo na últimadécada.

Este debate, contudo, também tem origens no textoconstitucional brasileiro de 1988, que referenda aintegração regional latino-americana e aponta que este sejaum objetivo no estabelecimento de nossas relações exter-nas. Constitucionalmente, determina-se que ocorram açõesdiplomáticas nesse sentido e que a análise da vida inter-

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nacional do País seja mediada por relações que perpas-sam pelo nacional e pelo regional. A rigor, a interpreta-ção da opção regional para o Itamaraty é difícil de serapreendida, considerando-se que esta instituição não ma-nifestou seu posicionamento diante da nova diretriz cons-titucional. Entretanto, há declarações e considerações emtextos produzidos por membros do Itamaraty que indicampistas do entendimento diplomático sobre este tema. Porexemplo, o atual ministro das Relações Exteriores do Brasilafirma que a América Latina não é para nós uma meraopção diplomática, mas sim a nossa circunstância (Lafer,1994). De acordo com os comentários do diplomataFernando Guimarães Reis, o significado da expressãonossa circunstância está no fato de que, a partir da Cons-tituição de 1988, as relações do País com a América Lati-na são singularizadas de tal forma que, para a políticaexterna, a regionalização “não é uma prioridade excludentemas é certamente uma prioridade diferente, catalisadora,nervosa. Transita por ela a possibilidade de criar e operaroutras prioridades” (Reis, 1994).

Estas declarações possibilitam algumas consideraçõesreferentes à interpretação da diplomacia sobre a questãoda integração regional. Primeiramente, é importante per-ceber que a integração latino-americana não é, para osmembros do Itamaraty, sinônimo de uma limitação nas re-lações exteriores do Brasil. Segundo, não se pode afirmarque a opção regional seja compreendida por estes comouma alavanca fundamental para a inserção do Brasil nosistema internacional. Tudo indica que a expressão nossacircunstância signifique a posição internacional do paíscircunscrita à configuração geopolítica e geoeconômicalatino-americana. Nesse sentido, as possibilidades de in-serção no cenário internacional dependem, em certa me-dida, do grau de mobilidade estratégica no contexto dasrelações de âmbito regional.

Entende-se, com isso, que as relações regionais sãoconstruídas pela diplomacia brasileira sob uma perspecti-va estratégica, em que a nossa circunstância tem umaimportância relativa e não é considerada um condicionante,que poderia representar imobilidade. Com estes parâmetrosestabelecidos, nota-se que as diretrizes da política exter-na são elaboradas sem “engessamentos” dessa ordem. Aocontrário, com esse escopo, torna-se viável a conduçãode políticas orientadas para acordos bilaterais e regionais,bastante confluentes com o multilateralismo, permitindoainda, que temas de grande amplitude e polêmicos, comoé o caso da Alca, sejam tratados de maneira particular eno “tempo diplomático”.

Com esses parâmetros, o Itamaraty pode orientar apolítica externa para a integração a partir de estratégiasque se definem pelas contradições existentes no sistemaregional, ou ainda pelas deficiências dos outros países quecompõem o bloco. Nesse caso, assume-se uma posição po-lítica de competitividade e acirramento das diferenças.Diametralmente oposta à posição anterior, a política ex-terna pode ser construída por estratégias que orientam abusca de melhoria nos indicadores socioeconômicos in-ternos, que se somam à integração, no objetivo de contri-buir para o crescimento da atividade econômica produti-va nacional. Desta forma, melhoram as condições deinserção regional e a manutenção da posição ocupada nointerior da formação, dado o fortalecimento do poder po-lítico-econômico do País.

É válido considerar que a tomada de decisão sobre asestratégias de inserção compreende, em si, decisões deordens política e econômica internas, bem como a consi-deração das decisões e estratégias tomadas pelos paísesenvolvidos, a fim de medir as confluências e as divergên-cias existentes no processo. Contudo, o andamento desseprocesso é estabelecido por categorias referentes à suaefetivação, como paz, cooperação e interesses político-econômicos combinados. O inverso, ou melhor, os inte-resses específicos e divergentes também estão presentesno processo negociador e tornam evidentes as tensões quedimensionam os limites do espaço cedido pelas partes.

POLÍTICA EXTERNA E O MERCOSUL

Quando o Brasil e a Argentina assinaram o TratadoIntegração, Cooperação e Desenvolvimento, em 1988, osrumos do processo de disputa pela hegemonia regionalforam alterados. O acordo previa, ao longo de dez anos, oestabelecimento de um espaço econômico comum tradu-zido pela eliminação de tarifas comerciais e de serviços,assim como a convergência entre políticas macroeconô-micas. A opção estratégica da integração bilateral obede-cia uma formulação diplomática, que se orientava porquatro princípios norteadores: realismo, gradualismo, fle-xibilidade e equilíbrio.

No início dos anos 90, ocorreu o aceleramento do pro-cesso de integração para o Mercosul. Com a assinaturado Tratado de Assunção, em março de 1991, a opção es-tratégica da integração passou a obedecer uma formula-ção diplomática orientada por três princípios norteadores:gradualismo, flexibilidade e equilíbrio. Estes são os fun-damentos que sustentam a base do projeto de integração e

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são percebidos quanto à sua aplicabilidade, na definiçãode prazos e medidas adotadas, em face de algumas dasalterações promovidas pelos países-membros em suas po-líticas macroeconômicas, bem como na opção dos instru-mentos jurídicos que viabilizaram as etapas do períodode transição que se sucedeu.

Na verdade, entre outros indicativos, o aceleramentona implementação do Mercosul ocorreu em virtude daformação dos grandes blocos econômicos, da alteração dasrelações Leste-Oeste e, nessa perspectiva, da redução daimportância geopolítica da América Latina. Por outro lado,conforme as considerações de Renato L. R. Marques(1991), que na época era chefe da Divisão EconômicaLatino-Americana do Ministério das Relações Exteriores,a integração regional fez com que se cumprisse o disposi-tivo incorporado no artigo 4, parágrafo único, da Consti-tuição brasileira, “sendo também considerada como umaferramenta valiosa para inserção mais competitiva dasquatro economias no mercado internacional”.

Distanciando-se da alternativa de integração hemisfé-rica, desde aquele momento proposta pelos Estados Uni-dos, o Mercosul foi orientado pela estratégia de integraçãoeconômica sub-regional. Seu desenvolvimento foi condu-zido sob o modelo de intergovernamentalismo, não tendocomo meta criar instituições supranacionais de coordena-ção e fiscalização, a exemplo do que fez a União Econô-mica Européia – UEE e que poderia representar a demo-cratização do processo de decisões. No seu bojo, o projetoestabelece alterações de ordem político-econômica quemodificam a configuração regional, ao vincular o proces-so decisório ao conjunto dos quatro países, reduzindo ograu de autonomia para decisões individuais por parte dosEstados nacionais. Devido a esta configuração, no âmbi-to doméstico, a integração passa a ser um elemento estra-tégico relevante pois a dinâmica político-econômica ficavinculada, em maior ou menor grau, a esta formação.

É interessante perceber que, no processo decisório,criou-se um paradoxo,5 uma vez que tomam forma, na pró-pria dinâmica da integração, questões com dimensões su-pranacionais, embora o modelo institucional adotado te-nha um caráter intergovernamental. Mesmo assim, asupranacionalidade não foi discutida no âmbito doMercosul. Ao que parece, jamais esteve em pauta a dis-cussão sobre a formação de uma comunidade dos paísessul-americanos, o que significa um envolvimento mais pro-fundo da sociedade civil. Esta opção, ao que tudo indica,orientaria diferentemente tanto o processo deliberativoquanto a dinâmica de funcionamento da integração.

No cenário regional atual, o modelo intergovernamentalé caracterizado pela exclusividade do poder de decisão,que permite ao Conselho Mercado Comum (CMC) e aoGrupo Mercado Comum (GMC) exercerem ação ordena-dora na integração. Na verdade, esta centralização éviabilizada no transcorrer do processo de consolidação doMercosul, pois os principais sujeitos deste projeto estãoalocados no Ministério das Relações Exteriores, da Eco-nomia e do Banco Central de cada país membro, manten-do outros atores – como sindicalistas, intelectuais, empre-sários (sobretudo pequenos e médios) – distanciados doprocesso decisório. Isso significa que o poder de decisãodo Executivo amplia-se com o projeto regional, uma vezque, para a estrutura técnico-burocrática regional, esta éa instância reconhecida como interlocutora para o enca-minhamento de consultas e propostas em âmbito interno.

O contraponto desta discussão está no fato de que, hoje,diferentes atores organizados em associações empresariais,sindicatos e organizações não-governamentais, para citarsomente alguns, debatem sobre a construção de formasde controle democrático da política externa. Fundamen-ta-se, cada vez mais, a crítica sobre o modelo tradicionalde separação entre políticas interna e externa. Maria Re-gina Soares de Lima, por exemplo, argumenta que estãoem curso um crescente interesse e uma maior participa-ção da sociedade civil em temas da Agenda externa, poisocorrem perdas e ganhos distributivos desiguais entre osdiversos setores da sociedade. Isto posto, diz ela, “surgiua necessidade de legitimação das posições assumidas nacondução da política externa, a necessidade de um con-senso e de garantir a credibilidade necessária para adotardeterminadas políticas externas”.6

Um outro aspecto a ser considerado sobre a participa-ção da sociedade civil em temas da Agenda externa estánas discussões orientadas pela teoria institucionalista. Emlinhas gerais, esta teorização pressupõe que os atores teminteresses comuns e que o grau de institucionalização emdeterminados setores da sociedade está aumentando,7 ha-vendo, contudo, uma variação de grau nas instituições.Segundo Keohane (1999), teórico desta corrente, o termoinstituições pode ser definido como sendo um “conjuntode regras permanentes e conectadas (formal ou informal)que definem papéis comportamentais, limitam a ação ecompartilham expectativas”. Essas considerações auxi-liam a pensar a estrutura institucional do Mercosul comoum canal (ou não) de representação das demandas advin-das da sociedade e, em que medida, um resultado políticodepende das possibilidades e limites delineados pelas ins-

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tituições. Vale registrar que um dos pressupostos da teo-ria institucionalista é considerar que ação política envol-ve sujeitos e, por isso, instituições são estruturadas de açãocom sentido, com lógica e por intermédio de processos.

O GOVERNO BRASILEIRO DA NOVAREPÚBLICA AO BRASIL DO REAL

No início dos anos 90, o presidente americano GeorgeBush apresentou, no projeto Iniciativa para as Américas,uma alteração nas relações comerciais e econômicas en-tre os países latino-americanos e os Estados Unidos. Poresta razão, ocorreu o encontro que reuniu tecnocratas dogoverno norte-americano e de organismos financeiros in-ternacionais como o FMI, Banco Mundial e o BID, no qualse realizou uma avaliação tanto das economias dos paíseslatino-americanos quanto sobre o relacionamento políti-co-econômico destes com os Estados Unidos. O objetivodessa avaliação era medir as proporções e as possibilida-des de pagamento da dívida externa latino-americana paracom os organismos financeiros presentes naquela ocasião.O resultado deste encontro é o conhecido Consenso deWashington,8 que apresenta deliberações sobre as refor-mas tidas como necessárias por estas instituições e abran-gem dez áreas específicas, como disciplina fiscal, redu-ção dos gastos públicos, reforma tributária, liberalizaçãofinanceira, investimento estrangeiro, privatizações,desregulamentação do mercado interno e de propriedadeintelectual. Na perspectiva do Estado nacional, essas de-liberações alteram a concepção de gestão de políticaspúblicas e provocam a redefinição do papel do Estado,obedecendo uma lógica de distanciamento paulatino deum modelo de Estado de Bem-Estar Social, em virtude daadoção do modelo neoliberal de gestão econômica e go-vernamental.

Na gestão de Fernando Collor de Mello, o Brasil aderiuaos postulados consolidados no Consenso de Washington,promovendo, entre outras medidas, a abertura quase queunilateral do nosso mercado com a liberalização das im-portações. O governo brasileiro reforçou, através da chan-celaria,9 o seu interesse de inserção internacional, comadequações no modelo político-econômico interno e deacordo com as diretrizes definidas na Iniciativa para asAméricas. Por sua vez, o Ministério das Relações Exterio-res passou a divulgar nos foros internacionais o posi-cionamento do Brasil em favor do fortalecimento domultilateralismo universal, buscando firmar o papel deglobal trader do país.

A gestão Collor apostou na liberalização comercial ereafirmou a sua posição em defesa ao sistema multilateralde comércio, privilegiando temas da Agenda externa comaspectos de natureza comercial, interessado nos efeitos enos resultados comerciais para o país, como aumento donível de comércio, dinamismo das importações e geraçãode fluxos comerciais. Contudo, é interessante observar oscomentários feitos pelo embaixador Celso Amorim (1994a)sobre esses encaminhamentos do governo brasileiro, quan-do analisa este processo: “abrimos a nossa economia, masnão foi concedido, a não ser muito marginalmente, me-lhor acesso para nossos principais produtos de exporta-ção no mercado norte-americano (contrariamente a umadas promessas fundamentais do discurso da Iniciativa paraas América do presidente Bush)”.

O fim do conturbado mandato do presidente FernandoCollor de Mello, marcado pelo seu impeachment, provo-cou, em âmbitos nacional e internacional, expectativas eincertezas quanto aos rumos que o País seguiria. O vice-presidente Itamar Franco assumiu o cargo em meio a con-trovérsias e, por isso, procurou pontuar não só o rompi-mento político com o seu antecessor, mas também, umnovo governo para o Brasil. Naquele momento, ocorre-ram alterações de quadros no poder Executivo, que modi-ficaram os rumos e a condução político-econômica do País.Segundo as considerações de Amado Luiz Cervo (1997),com a sua posse, voltou a público, no âmbito da políticaexterna brasileira, “o pensamento precursor do processode integração do Cone Sul, aquele que o subordinava nãoem primeiro lugar à criação de um mercado ampliado, masao apoio logístico aos sistemas produtivos nacionais numesforço de desenvolvimento sustentado”.

Consoante com as mudanças em curso, a diplomaciabrasileira reafirmou a continuidade e o fortalecimento dosistema de comércio internacional baseado em regras mul-tilaterais, bem como, anunciou o interesse em aprofundara iniciativa da integração regional como uma complemen-tação do primeiro tema. Sobre esse aspecto, o ministroCelso Amorim viria a manifestar, em artigos e entrevistas,um novo enfoque sobre a política externa. Segundo ele, ocomércio brasileiro é “distribuído de maneira homogêneapelas várias partes do mundo. Então para o Brasil, a regio-nalização nunca deve ser vista como condição de escalapara lá chegar em condições competitivas. O Mercosulsempre foi concebido como um grupo econômico voltadopara a competitividade externa, jamais como um blocofechado” (Amorim, 1994b). Percebe-se, nestas considera-ções, que durante esta gestão, além do reforço ao sistema

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multilateral de comércio, a discussão sobre as diretrizesdo Mercosul é intensificada, com o objetivo de convergirintegração regional e comércio multilateral.

Nesta nova etapa política em que o país reforça suascaracterísticas de global trader, somadas ao aquecimentodo comércio no âmbito regional, emergem os elementosque levaram o presidente Itamar Franco a apresentar, emreunião do Grupo do Rio10 uma proposta de formação daÁrea de Livre Comércio Sul-Americano (Alcsa). A pro-posta, tendo por núcleo o Mercosul, visava congregar, emum prazo de dez anos, os países de Iniciativa Amazônica,do Grupo Andino e o Chile. O Brasil propôs uma altera-ção no dinamismo da integração a partir da ampliação emleque pela América Latina, primeiro com a inclusão doChile e da Bolívia ao Mercosul e depois com a afetivacriação da Alcsa. Do ponto de vista estratégico, isso au-mentaria o grau de mobilidade político-econômica lati-no-americana diante dos Estados Unidos, bem como pro-jetaria uma efetiva possibilidade de criar mecanismos decontrole regional que favorecessem o desenvolvimento sul-americano a partir da associação de objetivos.

Nesta linha propositiva, durante o mesmo governo, tem-se um segundo eixo de ação externa relacionado ao avan-ço do processo de cooperação entre o Mercosul e a UEE– União Econômica Européia.11 Segundo as consideraçõesdo ministro Celso Amorim (1994b), o empenho do Brasilem consolidar os entendimentos entre os dois blocos rea-firma a idéia de que “a concertação hemisférica não dimi-nui o interesse e a prioridade de nossas relações com aspotências européias”.

Vale ressaltar que, nesse mesmo período, a propostaamericana de criação da Alca é recebida pela diplomaciabrasileira com prudência, por fomentar dependência eco-nômica aos Estados Unidos e restringir a autonomia dapolítica nacional de desenvolvimento junto ao Mercosule ao projeto Alcsa. Após a Conferência da Cúpula dasAméricas em Miami, o secretário-geral das Relações Ex-teriores no Governo Itamar Franco, Roberto Abdenur, es-creveu um longo artigo, confirmando, entre outrosposicionamentos, que para o Brasil a parceria hemisféricaé vista com realismo e prudência. Ressalte-se ainda que,desde esta I Conferência, o país defende o calendário queestabelece a criação da Alca em 2005, por entender queeste cronograma “resguarda de perturbações indesejáveisos trabalhos de consolidação dos agrupamentos e inicia-tivas sub-regionais de integração já existentes, ou em mar-cha, como, no que interessa ao Brasil, o Mercosul e aAlcsa” (Abdenur, 1994b).

Não se pode afirmar que, durante essa gestão de transi-ção, tenha ocorrido uma alteração nas concepções brasi-leiras sobre o projeto Mercosul, entretanto, há evidênciasde que, neste período, a política externa diminuiu a distân-cia entre os temas da Agenda sobre comércio regional emultilateral do país, bem como criou novas relações eco-nômicas fora do eixo América do Sul-América do Norte.De certa forma, esta iniciativa foi mais propositiva diantedo processo de globalização em relação à gestão anterior,que assumiu uma postura mais reativa no sentido de ade-quações às regras internacionalmente estabelecidas.

Retomando algumas análises sobre o período, relati-vas ao tema sobre política externa e desenvolvimento, oministro Celso Amorim criticou a forma que o governoCollor realizou a liberalização da economia brasileira. Deacordo com os seus argumentos, o predomínio doneoliberalismo contribuiu para corrigir distorções em re-lação ao papel do Estado, porém agravou as dificuldadesno campo social, atingindo diretamente o significado doconceito de desenvolvimento. É também por esta razãoque, na 47a seção da ONU, em 1993, o Brasil apresentoua proposta de que os problemas referentes ao desenvolvi-mento fossem apreciados e incluídos nas discussões daAgenda para o Desenvolvimento. A proposta para a reto-mada do crescimento econômico nos países latino-ameri-canos possuía três eixos indicativos para atuação: um deordem interna, referente às necessidades e possibilidadesnacionais de cada país; um no campo internacional, im-plicando o fortalecimento do comércio multilateral atra-vés da revisão dos critérios de concessão de empréstimose acesso desimpedido à tecnologia de ponta para fins pa-cíficos; e o último, relacionado diretamente à ONU, nosentido de promover uma agenda temática específica, comestratégias de apoio encaminhadas pela própria entidade.

Percebe-se que a interpretação das questões referentesàs estratégias de inserção internacional do Brasil e dospaíses da América Latina, realizada pelo segundo minis-tro das Relações Exteriores do Governo Itamar, possuidiferenças significativas em relação àquelas apresentadaspelo primeiro ministro das Relações Exteriores do Gover-no Fernando Henrique Cardoso. A rigor, o embaixador Cel-so Amorim desenvolveu suas considerações sobre oMercosul, multilateralismo e América Latina a partir decategorias referentes ao desenvolvimento econômico-pro-dutivo, dependência econômica externa relativa e atençãoespecial para as relações político-econômicas entre paíseslatino-americanos. Ao que parece, Luiz Felipe Lampreia,remeteu a importância desses mesmos temas da Agenda

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para os aspectos positivos (ou confluentes) que esses pos-suem para a atuação no mercado econômico-financeiro.

Para o embaixador Lampreia, a trajetória percorridapelo Mercosul desempenhou um papel fundamental noprocesso de integração regional enquanto fator de amplia-ção dos mercados preferenciais. Méritos, segundo ele,obtidos a partir do estabelecimento de prioridades em nossaAgenda, em que se buscou, com a ação externa, defendero fortalecimento do multilateralismo econômico e a cons-trução do relacionamento bilateral com os três grandesblocos econômicos representados pela UEE, pelo Nafta epelo Japão, sem contudo deixar de garantir a continuida-de de relacionamento em nossa área mais imediata de con-vivência internacional, qual seja, a América Latina. Emsuas considerações, o embaixador fez o contraponto en-tre dificuldades conjunturais e os desajustes estruturaisinternos que balizam as referências e a interpretação danação no nível internacional. Entretanto, Lampreia (1993)também justifica a lógica do sistema internacionalglobalizado, dizendo que diante da “dependência crescenteque temos em relação aos influxos provenientes do qua-dro externo, estejamos limitados e condicionados severa-mente em nossas alternativas individuais”.

Na verdade, as concepções no tocante à política externabrasileira entre os dois ex-ministros transparecem em outrosmomentos em que ambos reafirmam diferentes pontos devista. Na cerimônia de transmissão de cargo de ministro dasRelações Exteriores, por exemplo, o embaixador CelsoAmorim fez um balanço sobre sua atuação no cargo e afir-mou que, “a diplomacia do Governo Itamar Franco sempreteve como referência um Brasil politicamente estável, eco-nomicamente dinâmico, consciente de seus problemas na áreasocial”.12 Já o embaixador Luiz Felipe Lampreia insinuou,na cerimônia em que tomava posse do cargo de ministro deEstado, que, diferentemente do Governo Itamar Franco, opresidente Fernando Henrique Cardoso valoriza o papel dadiplomacia e proporciona o estreitamento das relações entreo governo e o Itamaraty. Ele anunciava ali que a diplomaciabrasileira, na sua atuação externa, passaria a operar median-te a participação do presidente da República e justificou: “adiplomacia de Chefes de Estado e Governo é a marca dasrelações internacionais contemporâneas e uma característi-ca particularmente importante da diplomacia hemisférica”.13

Não há dúvidas de que, desde 1995, o governo brasilei-ro tem demonstrado um posicionamento favorável às ten-dências da ordem internacional, o que caracteriza sua ges-tão pelo aprofundamento dos mecanismos de adaptação àera da globalização. A gestão Fernando Henrique também

enfatiza o papel de global trader do País e defende umaestratégia de inserção internacional orientada para a aber-tura de novas frentes de comércio internacional e pela li-beralização de fluxos de capital financeiro. Para a chance-laria, a globalização deve ser interpretada como umfenômeno que funciona como um mecanismo ordenadordas relações internacionais e provoca, no âmbito interno,o enfrentamento de forças em um movimento de alteraçãodas estruturas, dos comportamentos, das mentalidades edos objetivos nacionais. Nesta perspectiva, o Estado bra-sileiro deve mover-se “abrindo o seu acesso aos mercadosinternacionais, alargando o leque de parcerias operacio-nais e atraindo investimentos externos” (Lampreia, 1995).

O governo Fernando Henrique, determinado a corrigiraquilo que interpreta como sendo indícios de desequilíbriosmacroeconômicos que retardam e, ao mesmo tempo, cons-tituem uma ameaça à sustentabilidade de um processo deliberalização, promove um novo ciclo de privatizações dasempresas públicas, ajustes fiscais e cortes orçamentários,sobretudo aqueles destinados a programas sociais comoeducação, saúde e infra-estrutura. Estas medidas reduzem,ainda mais, a intervenção do Estado no âmbito socio-econômico e cedem espaço para as forças de mercado, oque significa a “reposição às idéias de apoio ao capitalismoglobalizante”, como bem coloca Amado Luiz Cervo (1997).

Cabe recordar que o ministro Luiz Felipe Lampreia,na sessão inaugural do Conselho Geral da OMC, afirmouque o Brasil defende a prevalência do sistema multilate-ral de comércio e, neste sentido, o governo pretende de-senvolver projetos que dêem continuidade às reformasmacroeconômicas e aos compromissos de liberalização daeconomia. No mesmo discurso, relativizou a capacidadede poder e influência do Mercosul no cenário internacio-nal, dizendo que esse o projeto foi instituído não para pro-teger as economias de seus integrantes, mas sim paratransformá-las e liberalizá-las. No final, Lampreia reite-rou a disposição do Governo do presidente FernandoHenrique de “colaborar para o surgimento de um entornoeconômico em que as forças de mercado tenham funçãopreponderante na alocação de recursos produtivos, redu-zindo-se a intervenção governamental a corrigir falhasdesse mercado e a garantir a prevalência das condiçõesde competitividade”.14

APONTAMENTOS PARA UM DEBATE...

Contemporaneamente, o movimento de globalizaçãopropõe uma interdependência econômica entre os países

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em que a estruturação do capitalismo deve corresponderao que se refere não só aos fluxos de capitais, de merca-dorias e de serviços, mas também ao capital produtivo.Prova disso é o aumento do número de empresas de natu-reza transnacional que, com a sua expansão, alteram alocalização espacial da produção.

Na verdade, a reestruturação dos processos de produ-ção e de circulação de mercadorias e o fortalecimento dahegemonia do capital financeiro têm o objetivo de recu-perar e redimensionar a acumulação do capital. A interfe-rência desse processo econômico mundial está refletidono Estado nacional, através da perda de poder de inter-venção e regulação sobre as formas de produção e distri-buição de renda, afetando violentamente a esfera públicae social.15 Paralelamente, os pólos de poder econômico-financeiro mantêm a vanguarda na chamada revoluçãotecnológica e reafirmam estrategicamente “a dominaçãosobre a economia dos países periféricos (o que também éreforçado pela dependência desses quanto à importaçãode capitais)” (Vizentini, 1990).

No Brasil, a ação externa do Estado está legitimada peloEstado Democrático de Direito e pela representatividadedas instituições governamentais, que atribuem ao corpodiplomático o papel de conduzir as diretrizes definidaspara a política externa. Entretanto, a formulação dessasdiretrizes pode, em tese, ser encaminhada por um númeroampliado de sujeitos. A confirmação desta hipótese pres-supõe que o processo de formulação da política externaseja concebido como algo dinâmico e em construção, tan-to pelas relações humanas quanto pelas relações de po-der. Segundo considerações de Tullo Vigevani (1999), estaconcepção é vital para que se possa “pensar as relaçõesinternacionais não apenas dando-se entre Estados, mastambém entre seres humanos”.

Esta é uma discussão de extrema complexidade, poisnela está implícita a negação ou a aceitação de uma aber-tura no processo decisório sobre as diretrizes políticasexternas e implica que os temas da Agenda sejam discuti-dos e definidos direta e o mais amplamente possível, comos diversos segmentos organizados da sociedade, ou ain-da, por meio da participação propositiva dos representan-tes parlamentares, na esfera nacional. Justamente este é oponto de mutação em que, através da participação de umnúmero maior de sujeitos, o espaço de articulação políti-ca pode ser ampliado, legítima e autonomamente. Comisso, as possibilidades e expectativas nacionais referentesao projeto Mercosul, às relações comerciais multilateraise quanto aos planos bi-regionais (Alca e UEE), podem ser

definidas pelo conjunto da sociedade com maior lucideze qualidade de análise.

Deve-se considerar ainda que, em virtude do ataque aosEstados Unidos, em 11 de setembro de 2001, as proje-ções sobre o plano internacional alteraram-se. Como bemcolocou Emir Sader (2001), “pela primeira vez os EUAreinam sozinhos como superpotência e têm dificuldadespara fazer uso da sua força”. Os desdobramentos desteataque ainda são imprevisíveis, tendo-se somente a certe-za de que mudou a dinâmica do sistema internacional.Neste momento, a Agenda diplomática releva os temasreferentes à Segurança Nacional, em consideração da for-te tendência de endurecimento da situação internacionale da posição preponderante dos Estados Unidos em favorda militarização dos conflitos.

No entanto, é razoável pensar em uma outra tendênciano curso desse processo, fortalecida pela defesa dos di-reitos humanos, pela solução pacificamente negociada dosconflitos, pela continuidade do sistema de cooperaçãointernacional. Ou seja, uma tendência em defesa damultipolaridade no sistema internacional e contra açõesterroristas, mas contrapondo-se ao unipolarismo no siste-ma e de propostas defensoras da superioridade militar emprocessos de paz.

Neste cenário, a postura externa do Brasil deve ser derespeito aos seus princípios de relações internacionais quesão: independência nacional; prevalência dos direitos huma-nos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdadeentre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos confli-tos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre ospovos para progresso da humanidade; concessão de asilopolítico. Mas, este é um outro debate...

NOTAS

1. O Brasil compõe o eixo principal com a Argentina. O eixo secundá-rio é composto pelo Paraguai e Uruguai.

2. Comentário feito pelo Embaixador do Brasil em Washington, RubensAntonio Barbosa, em evento do Centro Brasileiro de Relações Inter-nacionais (Cebri) e do Conselho de Empresários para a América Lati-na (Ceal), em 06/08/01 (Cebri, 15/08/01).

3. Recuperando os conceitos de Virtú e Fortú, formulados por N.Maquiavel, em O Príncipe.

4. Para aprofundar este debate, ver Miyamoto (2000).

5. Para aprofundar este debate, ver Mathias (1999).

6. Anais Fórum Continental Área de Livre Comércio das América: atorespolíticos nos processo de integração. Realizado no Parlatino Latino-Americano, entre 27 e 29/11/2000, em São Paulo.

7. Para aprofundar este debate, ver Vigevani (1999).

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INSERÇÃO INTERNACIONAL: TRÊS TEMAS NA AGENDA BRASILEIRA

8. Para aprofundar este debate, ver Batista (1994).

9. Durante esta gestão de Governo estiveram no cargo de ministro dasRelações Exteriores, o embaixador Francisco Rezek e, posteriormen-te, o embaixador Celso Lafer.

10. Realizada em outubro de 1993, em Santiago, Chile.

11. Em 1992, Mercosul e UEE assinam o Acordo Interinstitucional,que abriu o diálogo de aproximação entre os dois grupos. Em 1994,foi assinada uma Declaração Conjunta Solene.

12. Discurso do ministro das Relações Exteriores, embaixador CelsoAmorim, por ocasião da cerimônia de transmissão de cargo. Paláciodo Itamaraty, 02/01/1995.

13. Discurso por ocasião de sua posse como ministro de Estado dasRelações Exteriores. Palácio do Itamaraty, 02/01/1995.

14. Discurso do ministro das Relações Exteriores, na OMC, em Gene-bra, em 31/01/1995.

15. Para aprofundar este debate, ver Castro (1999).

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MEIRE MATHIAS: Socióloga, Professora das Faculdades Integradas Tere-sa Martin.

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O

A VERDADEIRA PAZdesafio do Estado democrático

Resumo: O conceito de paz tem evoluído na história recente da humanidade. Paz não é mais a simples ausên-cia da guerra ou a condição resultante do equilíbrio do poder entre as superpotências bélicas. Um novo con-ceito para paz está na cooperação entre os povos, objetivando o fim da violência estrutural e da predisposiçãopara a guerra. Este artigo visa apresentar essa evolução do conceito de paz do ponto de vista das CiênciasPolíticas e oferecer uma primeira análise contextualizada sobre o papel do Estado democrático.Palavras-chave: democracia e relações mundiais; paz.

Abstract: Recent history has wrought a change in the concept of peace. Peace is no longer merely the absenceof war or the balance of hostile superpowers. Peace has now come to signify cooperation between peoples, theend of structural violence and a general indisposition towards war. This article aims to portray this changingconcept of peace from the point of view of the political scientist and to provide a contextualized analysis ofthe role of the democratic state.Key words: democracy and international relations; peace.

JORGE VIEIRA DA SILVA

objetivo do autor é introduzir a discussão do temapaz no contexto do Estado democrático capita-lista, enfatizando a proposta da teoria da interde-

A palavra paz, usualmente, significa a ausência da guer-ra. Os termos guerra e paz seriam, nesse caso, opostos,antônimos. São, portanto, situações extremas. E estão, defato, situadas em pólos opostos. Mas entre uma e outraexistem situações e estágios intermediários.

Johan Galtung (1995) tenta definir melhor a palavrapaz ao apontar os conceitos de uma paz negativa e de umapaz positiva. A paz negativa, segundo esse ilustre profes-sor, é a mera ausência da guerra, o que não elimina a pre-disposição para ela ou a violência estrutural da socieda-de. A paz positiva, por outro lado, implica ajuda mútua,educação e interdependência dos povos. A paz positivavem a ser não somente uma forma de prevenção contra aguerra, mas a construção de uma sociedade melhor, na qualmais pessoas comungam do espaço social.

Concordando com Galtung, evolui-se da polarização guer-ra e paz para, no mínimo, três estágios distintos: a guerra, apaz negativa e a paz positiva. Uma maior reflexão ainda sefaz necessária sobre as situações que envolvem guerra e paz.No entanto, em um primeiro momento, pode-se identificar:a guerra declarada e em curso, a chamada guerra fria, a pre-paração para a guerra ou para a eventualidade da guerra, aguerrilha, o terrorismo, a violência estrutural, a não-coope-

pendência como modelo de ação política e, principalmente,destacando a importância de uma educação multidisciplinarpara a paz baseada na idéia do rompimento dos limitesatuais da cidadania. Conceitos introdutórios ao tema – comoas funções do Estado inserido na prática do modelo da in-terdependência e os limites legal-político, social, econô-mico e organizacional da cidadania – são colocados comosugestão, como proposta para o desenvolvimento acadê-mico do tema paz nas ciências políticas ou áreas afins.

O CONCEITO DE PAZ

O estudo da paz é, notoriamente, multidisciplinar ecomplexo. A coexistência de tendências díspares dopensamento nas Ciências Políticas dificulta ainda maisa compreensão e o trabalho de análise sobre o signifi-cado real de paz. Desse modo, a idéia principal é tentarlistar alguns conceitos relevantes nas Ciências Políti-cas, oferecendo uma base teórica para quem se predis-por a estudar o tema paz.

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A VERDADEIRA PAZ: DESAFIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO

ração da paz negativa e, finalmente, a paz verdadeira ou, uti-lizando-se o termo de Galtung, a paz positiva.

O ESTUDO DA PAZ NAS CIÊNCIAS POLÍTICAS

A introdução ao estudo da paz, a meu ver, passa porsua contextualização acadêmica, dado que a racionalida-de dos representantes dos Estados democráticos moder-nos apresenta diferentes modelos, diferentes “escolas”.Entre esses modelos, destacam-se o realismo político e omodelo da interdependência, os quais são, respectivamen-te, chamados de uma “escola realista” clássica e de uma“escola idealista” nas Ciências Políticas.

O realismo político encontra suas primeiras formula-ções em autores como Maquiavel e Hobbes e, mais recen-temente, inclui autores como Morgenthau (1948) e Waltz(1979). Em linhas gerais, esse modelo não reconheceempresas e organizações não-governamentais (ONGs)como atores do cenário internacional. Somente Estadossão unidades relevantes. As relações internacionais sedefinem por relações entre Estados, entre nações. EssesEstados distinguem a forma de agir em sua política inter-na (nacional) e externa (internacional). Os mesmos prin-cípios morais e democráticos, praticados nas relações in-ternas ao território do Estado, não estão necessariamentepresentes no trato internacional, na prática de suas rela-ções internacionais. Na política externa, prevalecem asquestões de poder e de segurança. Prevalece a chamadaalta política (high politics), em detrimento dos demaistemas internacionais, como a economia e os problemasdemográficos e ambientais, os quais constituem proble-mas de baixa política (low politics). Finalmente, no rea-lismo político, o poder de um Estado nacional é associa-do à potencialidade do uso da força. O conflito deinteresses entre Estados é marcado pelo uso ou possibili-dade de uso da força, uma vez que supõe uma luta cons-tante pelo poder no contexto das relações internacionais.Por isso, a paz e a segurança só podem ser alcançadasmediante um equilíbrio de poder (balance of power) en-tre os Estados.

O modelo da interdependência tem Robert Keohane eJoseph Nye (1977) como principais pensadores e precur-sores. Nesse modelo, os Estados não são os únicos atoresmundiais. Empresas, ONGs e indivíduos podem e devemter influência na política mundial. A igualdade no tratodos princípios morais e democráticos das relações inter-nas é um objetivo para as relações entre Estados e demaisatores mundiais. Ainda que difícil de ser obtida, essa igual-

dade se coloca como algo a ser tentado. Dada essa pri-meira e principal característica de tal modelo, tem-se maiorabertura para outros temas, como os demográficos, eco-nômicos e ambientais, em detrimento das questões de po-der e de segurança. Mais que isso, esses temas criam ainterdependência entre os atores mundiais. Assim, coo-peração e negociação se tornam palavras de ordem, umavez que Estados, empresas e organizações representantesdas sociedades locais e mundial se entrelaçam em um ema-ranhado de relações econômicas, políticas, demográficase ambientais.

O conceito de interdependência evolui com as idéiasde Galtung, cuja abordagem destaca: os conceitos da pazpositiva e da paz negativa e a necessidade de uma educa-ção para a paz (peace education). Para Galtung, a paz ne-gativa, simplesmente, implica a inexistência da guerra eda violência, o que, necessariamente, não se traduz em co-operação entre povos e nações. Ao contrário, a eventualpredisposição para a guerra e a rivalidade entre as naçõese a falta de cooperação podem continuar a vigorar na paznegativa. A paz negativa é, portanto, omissa em relaçãoaos problemas mundiais, pois visa, quase exclusivamente,à solução dos problemas locais, ou seja, do Estado singu-lar. A paz positiva, por outro lado, implica, além do aban-dono definitivo da idéia de guerras e de rivalidade, a idéiade cooperação entre povos e nações com vistas à intera-ção da sociedade humana. Essa verdadeira paz é conse-qüência de ações contra a violência e a guerra, através daproteção dos direitos humanos, do combate às injustiçassocioeconômicas, do desarmamento e da desmilitarização.No caminho da verdadeira paz, Galtung propõe a necessi-dade de uma educação para a paz. Para ele, a violência éestrutural e deriva dos conflitos resultantes das disparidadese tensões socioeconômicas. A violência não é inerente aoser humano, mas produto de sua cultura, criando a neces-sidade da formulação e do aprendizado da convivênciapacífica, por meio de uma educação para a paz.

Galtung (1996) afirma que “nós temos uma tendênciapara garantir que os pais tenham o direito de educar suascrianças em sua própria cultura nacional, incluindo suaprópria língua e religião e nos mitos de sua própria na-ção, tanto em glórias quanto em traumas. Ninguém iránegar-lhes o direito de agir dessa forma. Mas os pais, nofuturo, não terão o direito de fazer somente isso, pois edu-car suas crianças somente dentro dos princípios de suaprópria nação é algo totalitário e, até, constitui uma for-ma maior de lavagem cerebral. Dos pais de amanhã, nósesperamos não somente a tarefa de propagar sua própria

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cultura e língua, mas também que abram as janelas e asportas para outras culturas e línguas”. Desconhecer ou-tras culturas, segundo o professor Galtung, será, em bre-ve, como “desrespeitar” a cultura alheia, será algo com-parável a ter “maus modos”.

Têm-se, portanto, diferenças manifestas entre uma “es-cola” antiga das Ciências Políticas, de caráter mais nacio-nal, e uma nova “escola”, de caráter mais mundial. Am-bas coexistem na atualidade e, embora haja o desejo demuitos para o fim do realismo, ele é ainda muito forte nosmeios governamentais – e acadêmicos – das nações maisricas do planeta. O contraste das “escolas” pode tambémser notado nas raízes etimológicas das palavras realista eidealista. A primeira vem de real e implica realidade. Asegunda vem de ideal e implica algo desejável mas aindainexistente. Esse é o principal argumento dos neo-realis-tas, como Kenneth Waltz, contra o idealismo. Segundo osneo-realistas, as propostas idealistas são boas, mas sãoidealistas e não correspondem à realidade atual do plane-ta, nem a seu futuro imediato. Essas propostas, para osneo-realistas, talvez possam ser algo factível em 100 ou200 anos. Robert Keohane e Joseph Nye, precursores domodelo da interdependência, nem mesmo se referem aoidealismo utilizando essa palavra. Eles preferem os ter-mos interdependência e globalismo, que, segundo essesautores, já seriam uma realidade mundial.

A INTERDEPENDÊNCIA NA PRÁTICA

Com a queda do muro de Berlim e a derrocada do blo-co socialista com a divisão da União Soviética em diver-sos países, cujo expoente bélico ainda é a Rússia, ficouevidente um mundo cujo processo deixara de ser puramentepolítico-militar para ser político-econômico. O fim daUnião Soviética seria o fim da história na perspectiva dorealismo político. Todavia, afirma-se um “neo” realismo,um realismo clássico transportado da lógica militar da ba-lança do poder para a lógica diplomática da economia.Colocando de outro modo, os países com os maiores exér-citos, maiores arsenais bélico e nuclear, capazes de pro-mover a “guerra nas estrelas” e capazes de destruir o mun-do mais de uma vez, talvez já não sejam as maiorespotências econômicas mundiais. As regras mudaram.

Segundo Clausewitz (1988), “guerra é um ato de vio-lência com que se pretende obrigar o nosso oponente aobedecer a nossa vontade”. A guerra, no entanto, “não éum ato isolado” e sim o ápice de um confronto, ou seja,“a mera continuação, por outros meios, da política”. As-

sim, indiretamente, Clausewitz coloca a guerra como umdos recursos que se podem utilizar na política. Ou seja,há o desejo de impor uma vontade e, quando a política éineficiente, parte-se para a guerra. Clausewitz ainda su-gere que, na guerra, o lado que faz as regras e faz umasurpresa planejada ao inimigo despreparado tem maioreschances de sucesso. A “surpresa”, as novas regras do rea-lismo político são os tratados comerciais que organizamos blocos econômicos. Homens e mulheres de negócios ediplomatas são, agora, um “exército” muito mais podero-so que as tradicionais forças armadas. O realismo políti-co sofisticou relações diplomáticas e comerciais, atravésde um novo e mais civilizado, embora nem sempre justoou ético, código de conduta. No contexto da substituiçãoda guerra militar pela econômica, o poder do Estado, alémde sua lei em nível interno e de seu exército, é conferidopor sua política, suas relações internacionais e, em espe-cial, sua economia. A política, no “neo” realismo, não ne-cessita mais da guerra, a não ser como retaguarda nas ne-gociações. Os objetivos de uma nação forte podem, naopinião daqueles que advogam o realismo político, seralcançados pela diplomacia e as pressões econômicas efinanceiras.

O poder do Estado é, no entanto, restrito a seu territó-rio. Seu papel é legitimado por suas leis, por sua Consti-tuição, e tem o território nacional como campo de atua-ção. Sua soberania é limitada a seu espaço territorial. Osdireitos de cidadania, do ponto de vista formal, são exer-cidos dentro desses limites. Garantias dadas aos cidadãosquando esses se encontram no exterior, em outro Estadosoberano, fazem-se através de acordos diplomáticos ouda força, seja pela intervenção armada de um exército, sejapor pressões ou boicotes econômicos. Essa concepção, po-rém, como atesta Keohane e Nye, está sendo mudada pelaglobalização. O Estado, com o inter-relacionamento dasorganizações mundiais, que inclui outros Estados, alémde empresas e ONGs, torna-se um entre diversos atoresmundiais. Se representativo ou não, potência ou não, per-tencente a blocos ou fora deles, o Estado é um ator a maisno contexto mundial. O poder do Estado, por essa ótica, émaior ou menor, dependendo, primariamente, de sua re-presentatividade em fóruns interdependentes regionais oumundiais e, em segundo lugar, de seu poderio político-econômico-militar, de seus recursos políticos, econômi-cos e militares. Há, portanto, fundamentação para expli-car porque o comportamento dos representantes de umEstado passa de um realismo político para um idealista. Aevolução, primeiro, de um realismo militar para realismo

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A VERDADEIRA PAZ: DESAFIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO

econômico e, depois, desse para um idealismo interde-pendente resulta da evolução dos tratados econômicosmundiais.

O esforço de reconstrução de muitos países, principal-mente europeus, após a Segunda Guerra, forçou represen-tantes estatais, paulatinamente, a abandonar o realismomilitar e partir para o realismo econômico. Como esbarra-ram em economias competitivas, foram obrigados a con-duzir sua política, independentemente do poder bélico. Opoder militar, nesses países, deixou seu papel de principaldestaque na esfera de sua alta política, dando lugar à eco-nomia. Vera Thorstensen (1990) afirma que “o ideal per-seguido pelos fundadores da Comunidade Européia [UniãoEuropéia] foi exatamente o da conquista da paz por meioda interdependência econômica. A primeira experiência deintegração do pós-guerra foi com o carvão e o aço e, de-pois, com o comércio de mercadorias. Hoje a integraçãocontinua com a livre-circulação de pessoas, de serviços ede capitais”. As economias dos países europeus começa-ram a se mostrar interdependentes – assim como as dos 50estados norte-americanos entre si –, porém com as desvan-tagens formais de suas divisas internacionais e proteçõesaduaneiras. Nesse ponto, as relações internacionais euro-péias passaram a ser apresentadas além das econômicas.Problemas sociais, demográficos e ambientais comunspassaram a fazer parte da agenda das discussões políticas,tornando exposta uma relação de interdependência muitomais profunda. Estava criada na prática uma corrente novana política, que remetia à antiga idéia do período “entreguerras” de uma sociedade das nações, dessa vez, porém,dando voz às organizações não-governamentais.

AS FUNÇÕES DO ESTADONA INTERDEPENDÊNCIA

O Estado, teoricamente, responde por funções variadas.A Função de Legitimação é voltada aos dispositivos le-gais que permitem ao Estado, além da busca do bem-estarsocial, a atividade policial e militar, entre outras ativida-des tradicionalmente sob seu controle. A Função de Acu-mulação é, pretensamente, voltada à geração de empregovia investimentos estatais, incentivos ou subsídios aos in-vestimentos de capital e à sua reprodução na forma de lu-cro. A Função Fiscal é voltada à obtenção de recursos pormeio de taxas e impostos incidentes sobre capital e traba-lho. A Função Monetária é voltada ao controle da basemonetária, pela emissão de papel-moeda e controle das ati-vidades financeiras do mercado. Por fim, a Função de ne-

gociação é voltada para as atividades, inclusive legislati-vas e jurídicas, que visam às garantias da cidadania.

O Estado retira sua receita da economia, o que permiteo exercício de suas demais funções. Em uma sociedadedemocrática sujeita a conflitos de interesses, esse é umaspecto fundamental, pois a Função de Legitimação poderepresentar uma remuneração indireta do trabalho e a Fun-ção de Acumulação pode representar um incremento nolucro do capital. Dessa forma, no conflito de interesses,coloca-se, de um lado (à “direita”), o capital, as empre-sas, a Função de Acumulação, a geração de empregos e,de outro (à “esquerda”), as organizações não-governamen-tais não-empresariais, o trabalho, a Função de Legitima-ção e o Estado do bem-estar social.

O destino do dinheiro, retirado da economia por taxase impostos, complica-se quando ocorre uma crise fiscal,pois, diante da falta de recursos no Estado, os conflitostendem a se agravar. A chamada crise fiscal ocorre quan-do o Estado em sua Função Fiscal não consegue equili-brar suas Funções de Legitimação e de Acumulação. Nes-se caso, na tentativa de recuperar o equilíbrio, o Estadopode adotar uma ou mais das diversas “fórmulas” tradi-cionais: diminuir suas atividades ligadas à Função de Le-gitimação, diminuindo o gasto com o bem-estar social, ge-rando uma demanda reprimida carente; diminuir suasatividades ligadas à Função de Acumulação, eliminandoincentivos fiscais e investimentos do Estado, o que, de-pendendo do tamanho desse na economia; pode gerar umaqueda significativa no nível de emprego; aumentar im-posto, através de sua Função Fiscal, provocando a dimi-nuição do lucro empresarial ou do salário do trabalhador;finalmente, aumentar progressivamente a emissão de papel-moeda, através de sua Função Monetária, provocando umprocesso inflacionário.

A conseqüência mais grave da crise fiscal é quando asalternativas para sua eliminação passam a ser excludentese se inserem numa situação de conflito de interesses. Ondeaplicar o “pouco” dinheiro do Estado diante de tamanhademanda social? O Estado, diante de uma crise fiscal, deveoptar entre diferentes segmentos na sociedade. O Estadopode conceder incentivo fiscal a empresas (para manter onível de emprego) ou investir no bem-estar social, con-trapondo empresas e sociedade. O Estado pode dar incen-tivo fiscal a um ou a outro segmento empresarial, contra-pondo empresas entre si. Ou, o Estado pode investir nobem-estar de uma região e não de outra, contrapondo gru-pos de interesses na própria sociedade. A definição de ondeinvestir diante dessas diferentes opções é política. Os re-

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presentantes das empresas ou da sociedade que tiverem maisprestígio, maior poder político e maior capacidade de nego-ciação com o Estado e seus pares terão a preferência da “de-cisão” estatal. Por outro lado, aqueles com menos prestígio,menor poder político e menor capacidade de negociação fi-cam marginais ao sistema, entregues à própria sorte.

Uma alternativa, porém, surge para um Estado capita-lista desenvolvido: buscar uma solução global para suasdificuldades internas. O Estado pode incentivar a interna-cionalização de suas empresas, associando esta prática aum controle (rígido) também estatal das transferências decapital. Como a sociedade desenvolvida de um Estado de-senvolvido, geralmente, possui um alto poder de consu-mo, esse Estado pode tentar aumentar sua receita median-te a taxação de impostos sobre lucros ocorridos no exterior,sem temer que suas empresas mudem suas sedes para ou-tro lugar. Os Estados desenvolvidos, detentores de uma“força” econômica, sabem que as empresas não abando-narão seus atrativos mercados consumidores internos, poisdependem deles. Embora invistam em países menos de-senvolvidos em busca de novos mercados e redução decustos, os Estados desenvolvidos sabem que o dinheirodeve retornar na forma de royalties ou lucros, então taxa-dos por eles mesmos. Com o tempo, pode-se estabelecerum fluxo contrário na balança financeira, ou seja, enquantopaís investidor poderá passar a receber, via royalties elucro, mais dinheiro do que enviara a outros países na for-ma de investimentos.

Essa alternativa da busca de uma solução global, hoje,subdivide-se em duas possibilidades de ação, não exclu-sivas, por parte dos representantes do Estado: uma clássi-ca (ou de exploração) e outra interdependente (ou de co-operação). A solução global clássica exporta a crise, alémde eliminar sociedades e mercados internos e externos damesa de negociação internacional. Dentro de uma críticamarxista das relações internacionais, nesse caso, podemse separar os atores internacionais entre exploradores eexplorados, entre dominantes e dominados. Uma classetrabalhadora se encontra no país receptor do investimen-to do capital e uma classe burguesa se encontra no paísinvestidor, embora faça-se representar no país receptor.A globalização do Estado por blocos, então, numa visãomais pessimista, simplesmente, separa os explorados e ex-ploradores no mundo. Nesse caso, embaixadas, consula-dos, enfim a diplomacia, através dos recursos de que dis-põem, o que nas economias capitalistas desenvolvidaspodem ser comparados em eficiência aos recursos dasempresas, passam a operar em função da exploração, vi-

sando ao benefício interno de seu país. A paz que se esta-belece no mundo, se existir, é o que se pode chamar deuma paz negativa.

No caso da solução global realista, a supremacia depoder se coloca pela força bélica, política e econômicado Estado e de suas empresas e sociedade. As empresassediadas nos Estados desenvolvidos, cujos representan-tes agem baseados em um realismo político, são subjugadasno contexto internacional pelo próprio Estado. Diante dasdemais nações, atores menores do planeta, cujas socieda-des e mercados, fracos política e economicamente, nãotêm vez enquanto atores de um mercado global.

Na solução global interdependente, o modelo da inter-dependência, reconhecendo outros atores globais além dosEstados, e dando maior importância ao direito internacio-nal, implica uma atitude mais otimista, baseada na possi-bilidade da negociação democrática e cooperação. Nessecaso, tem-se uma negociação política, mas de uma pers-pectiva mundial. A globalização do Estado regida pelomodelo da interdependência envolve entidades estataissupranacionais, que, através de suas Funções de Legiti-mação e de Acumulação, e mesmo Fiscal e Monetária, tentaconciliar os objetivos de países mais e menos desenvolvi-dos no bloco ou no mundo, o que se pode chamar de um“Estado supranacional” interagindo com empresas e coma sociedade organizada.

O “Estado supranacional” visa conciliar objetivos depaíses mais e menos desenvolvidos, bem como os objeti-vos das empresas e das sociedades locais. Isso significa,no modelo da interdependência, um crescimento nos paí-ses menos desenvolvidos, via incentivos ao investimentode capital originados nos países mais desenvolvidos, demodo que se tenha uma balança financeira positiva tam-bém nesses últimos. Existe uma busca de qualidade doinvestimento de capital coerente com o sistema capitalistae as funções do Estado. Um bom investimento é aqueleque gera riquezas e emprego e cria valor nos países inves-tidores e receptores, a fim de proporcionar lucro para asempresas e empregos e mercadorias para a sociedade. Aconclusão subseqüente de como obter uma qualidade dosinvestimentos de capital, uma vez que esse envolve maisde um Estado, além de empresas e organizações represen-tantes da sociedade, é a proposta para uma negociaçãopolítica. Se a negociação era importante no trato internode um país, passa a ser ainda mais importante no trato en-tre países. A Função de Negociação de um “Estado suprana-cional” passa pelo incentivo aos fóruns interdependentesde negociação, visando a garantias de cidadania.

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A VERDADEIRA PAZ: DESAFIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO

O Estado, normalmente, vê o cidadão pelos aspectoslegais (ou civis) e políticos formais. A sociedade, por ou-tro lado, possui um sentimento sobre o que seja e repre-sente a figura de um cidadão. O status legal-político decidadania implica, geralmente, o funcionamento dos sis-temas legais e políticos do Estado. Pelas leis formais doEstado, uma pessoa pode ou não ser reconhecida cidadã,pode ou não ter direitos civis e políticos e pode ou não tera “permissão” do Estado para usufruir, ou tentar usufruir,da liberdade possível no contexto da democracia local. Ostatus social de cidadania determina o reconhecimentoda sociedade local. Pelas leis informais (culturais) da so-ciedade, uma pessoa pode ou não ser reconhecida cidadã,mesmo que goze de direitos civis e até políticos reconhe-cidos pelo Estado, pode ou não ter o direito social de usu-fruir, ou tentar usufruir, da liberdade possível no contex-to da democracia local. Ou seja, no Estado capitalistademocrático moderno, cidadão é aquele indivíduo que, re-sidindo ou tendo nascido em um país democrático, temum status legal-político de cidadão perante a lei local; umstatus social de cidadão perante o sentimento de cidada-nia local e acesso aos meios e recursos que lhe propiciemliberdade de consciência, liberdade de ação e liberdadede associação, advindos do que se passará a chamar aquide seu status econômico de cidadania e de seu status or-ganizacional de cidadania.

Essa definição de cidadão, enquanto conjunto do statuslegal-político, social, econômico e organizacional do in-divíduo no meio social, supõe limites ao exercício plenoda cidadania: limites formais ou legais-políticos, basea-dos nas leis formais do Estado; limites sociais, baseadosnas leis informais (ou comportamentais) da sociedade; li-mites econômicos, baseados no bem-estar social; e limi-tes organizacionais, baseados na capacidade de organi-zação individual em grupos.

O rompimento desses limites da cidadania, no entanto,é algo que conflita com o poder local do Estado, por exem-plo, nos limites formais, dando-se direitos políticos e so-ciais aos estrangeiros, para receber esses direitos quandono exterior; nos limites sociais, tentando-se eliminar ospreconceitos de qualquer espécie e dando voz às mino-rias; nos limites econômicos, investindo-se globalmenteno bem-estar social, integrando economicamente os indi-víduos e, nos limites organizacionais, educando-se as po-pulações do mundo e criando fóruns locais e mundiais paraque estas se façam representar.

Sendo a cidadania um status, são condições préviasnecessárias para a cidadania: o suprimento das necessida-

des físicas individuais, como vida, alimento e saúde; osuprimento das necessidades de segurança, como a garantiade vida, alimento e saúde; e, finalmente, o suprimento dasnecessidades de afeto. A marginalização econômica ori-ginada nas empresas e em alguns Estados, de início, eli-mina as primeiras necessidades e inviabiliza a cidadania.A inviabilidade dessas condições prévias à cidadania im-plica uma reação social sem fronteiras. Quem tem fome,sede, medo ou ódio não respeita a cidadania do outro. Vio-lência e imigração são conseqüências naturais que se se-guem, assim como o Estado policial e militar e a fiscali-zação de fronteiras. O muro de Berlim caiu, mas o murode Tijuana continua lá atestando, como um ícone, a in-competência mundial no desenvolvimento da paz.

A organização da sociedade mundial, em conseqüên-cia do processo de globalização do capital e do Estado,está apenas se iniciando. Os direitos civis, políticos e so-ciais, assim como os limites legais e políticos, sociais, eco-nômicos e organizacionais recém começam a ser pensa-dos e abordados no contexto supranacional. Apresentamuma amplitude insuficientemente grande para gerar resul-tados a fim de que se possa reverter a reação social exis-tente no planeta. As sociedades, bem como os Estados eas empresas, começam a perceber que o sistema de “ex-ploração”, que estabelece exploradores de um lado e ex-plorados de outro, envolve um altíssimo risco, o risco daperda das vantagens sociais obtidas por aqueles privilegia-dos. As sociedades percebem a reação social em cadeia,resultante da prática do realismo político, que começa coma prática do realismo, via exploração ou exclusão, e passapara a reação social, incluindo a violência local advindadas pessoas marginalizadas da sociedade local ou migrante.Então, surge a repressão, que mede força com o improvi-so daqueles marginalizados.

O MODELO EUROPEUDE EXPANSÃO DA CIDADANIA

A chamada globalização começa pelo comércio. Asempresas locais de sucesso expandem-se e, nesse proces-so de crescimento capitalista, ultrapassam as fronteiras deseus Estados. Uma vez agindo em mais de um país, conti-nuam a tentar melhorar o retorno sobre o capital investi-do, maximizando suas atividades comerciais. Desse modo,as empresas trazem o comércio para a perspectiva dos Es-tados e dos indivíduos. Os Estados, herdeiros de uma po-lítica baseada no realismo clássico, passam a tentar regu-lar a ação de empresas estrangeiras em seu país e de suas

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empresas no estrangeiro. Os indivíduos passam a convi-ver com produtos, serviços e pessoas estrangeiras e, alémde se exporem a uma cultura alheia, passam a negociarcom o estrangeiro.

Uma segunda fase da globalização, então, surge tam-bém pelo comércio. Os Estados, ainda na tentativa de re-gulamentar a ação de empresas, com vistas a vantagenscompetitivas locais, começam a negociar com outros Es-tados buscando um alinhamento internacional de interes-ses econômicos ou a formação de zonas livres de comér-cio e de união aduaneira. Assim, o Estado propicia, criaum espaço, para a maior e melhor ação das empresas dosEstados-membros do acordo. Isso direciona o comércio eas pessoas. Estas, em conseqüência da atuação das em-presas e Estados mais globais, passam, então, em uma ter-ceira fase da globalização, a se aprofundar na culturaalheia, cujo acesso fica facilitado. Aprendem a língua, es-tudam sua história, seus costumes e visitam esses mesmospaíses. Com o tempo, verifica-se que as relações entre in-divíduos passam a transcender o puro comércio.

Em síntese, o comércio primeiro envolve a ampliaçãoda negociação política para além das fronteiras e acabapor converter a atitude realista dos representantes do Es-tado singular local em uma atitude interdependente naesfera de um realismo supranacional. Isso provoca, de umaperspectiva local, uma evolução econômica, política esocial. O sucesso da interdependência interna, então, podelevar a um Estado global regido pelo idealismo suprana-cional. Mas isso ainda está por vir. O que se percebe, agora,são somente os primeiros sinais.

O livre-trânsito de pessoas, produtos e recursos finan-ceiros, assim como os incentivos ao intercâmbio culturalentre os países-membros do bloco, incrementa o comér-cio e, principalmente, o trato entre suas populações. Essepode ser o início do rompimento dos limites sociais dacidadania. Uma vez rompidos os limites econômicos esociais, o rompimento dos limites legais da cidadania é opasso seguinte. O direito à cidadania do imigrante, quan-do aceito socialmente, fica facilitado.

Para tornar viável uma unificação em um plano factí-vel, primeiro se deve pensar em um planejamento de lon-go prazo, nos acordos comerciais com vistas a um pro-gresso econômico comum para, posteriormente, incentivaro sentimento de cidadania mútuo e, finalmente, obter aaprovação legal-política via consenso democrático. Estra-tegicamente, esse é o plano, o qual deve ser ratificado le-galmente em todos os países-membros, ter a aceitação dassociedades e dos atores políticos locais, ser concomitante

à obtenção do bem-estar social para a totalidade – ou quasetotalidade – de sua população, prever entidades negocia-doras que viabilizem seu processo de execução.

Determinando suas fases, pode-se apontar:- 1a fase: acordos comerciais entre países próximos esta-belecendo um bloco econômico, que deve incluir uma po-lítica comum de tratamento comercial aos não-signatáriose uma política para futuros signatários, isto é, uma zonade livre-comércio e uma união aduaneira;

- 2a fase: incentivos especiais às regiões e às indústriasmenos desenvolvidas do bloco;

- 3a fase: livre-trânsito de pessoas, produtos e recursosfinanceiros entre os países-membros, com desativação daspolícias de fronteiras;

- 4a fase: incentivos ao intercâmbio cultural entre os paí-ses signatários;

- 5a fase: direito à cidadania com tempo de moradia e,posteriormente, direito à cidadania incontinente.

CONCLUSÃO: UMA EDUCAÇÃOMULTIDISCIPLINAR PARA A PAZ

Este artigo começou a ser escrito antes dos atentadosterroristas de 11 de setembro de 2001 contra Nova Yorke Washington. Na época anterior aos atentados, a idéia deconclusão deste artigo para introduzir a necessidade dafunção policial do Estado contra a violência consistia nadiscussão ética do atentado na cidade de Oklahoma nosEstados Unidos. Os autores do atentado contra as instala-ções do governo americano nessa cidade eram, em princí-pio, contra as iniciativas do governo Clinton na esfera dobem-estar social. O edifício destruído era, entre outras ati-vidades, voltado para esse fim. Para os autores do atenta-do, o progresso da humanidade seria o progresso de al-guns, a maioria da humanidade deveria se sacrificar emnome do progresso da minoria. Nesse caso, o investimen-to no bem-estar social seria um despropósito e o motivodo ataque. O radicalismo desse posicionamento introdu-ziria os temas da violência estrutural e da construção doespaço social local e mundial no contexto da interdepen-dência. Os atentados de Nova York e Washington fize-ram regredir a discussão da teoria da interdependência parao realismo econômico e, deste, para o realismo militar.

O terrorismo, assim como a violência urbana e rural,deve ser combatido no curto prazo com força militar e po-licial. A diferença e os radicalismos de pensamento coe-

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A VERDADEIRA PAZ: DESAFIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO

xistem e causam conflitos violentos. O radicalismo oriun-do da falta de integração e cooperação, assim como o ra-dicalismo contra o bem-estar social, não desaparecerá nocurto prazo e é questionável se desaparecerá no longoprazo. No longo prazo, no entanto, a interdependência e aeducação para a paz se colocam como propostas a seremdiscutidas e, talvez, tentadas. As iniciativas da “escolaidealista” das Ciências Políticas não impedirão o fluir e orefluir do realismo militar, pois as diferenças sociais, cul-turais e econômicas são enormes entre as nações do mun-do. As idéias e as iniciativas relativas à verdadeira paz,entretanto, surgem em pontos isolados, mas cada vez emmaior número, pelo mundo inteiro. O esforço pela paz existecomo proposta e coexiste com o realismo político militar.

A educação para a paz está sendo, paulatinamente, or-ganizada no mundo inteiro. A iniciativa é maior nos paí-ses desenvolvidos, onde institutos com esse propósito es-tão sendo criados. A educação para a paz é multidisciplinar,mas, em um primeiro momento, ficam evidenciadas as ne-cessidades de análises jurídicas sobre o limite legal-polí-tico, sociológicos e comportamentais sobre o limite so-cial, econômicos e logísticos sobre o limite econômico e,finalmente, administrativos e políticos sobre os limitesorganizacionais da cidadania. Geografia, Sociologia, Teo-logia, Economia são apenas alguns poucos exemplos deáreas do conhecimento que permeiam o tema paz, cujodesenvolvimento acadêmico se faz premente.

Este artigo busca ser um incentivo para universidadesbrasileiras criarem grupos, ou mesmo institutos, multidis-ciplinares voltados para o estudo da paz.

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S

EM BUSCA DE UMA POLÍTICA EXTERNABRASILEIRA DE MEIO AMBIENTEtrês exemplos e uma exceção à regra

Resumo: A política externa brasileira de meio ambiente carece de princípios claros, objetivos e estratégias.Por não compreender o que significa o desenvolvimento sustentável, o Itamarati freqüentemente privilegia osinteresses econômicos de curto prazo, em detrimento da proteção do meio ambiente. A Convenção da Basi-léia, o Protocolo de Cartagena e a Convenção de Estocolmo são três exemplos dessa tese, enquanto a Conven-ção de Mudanças Climáticas é a exceção que confirma a regra.Palavras-chave: meio ambiente; política externa; desenvolvimento sustentável.

Abstract: Brazil´s foreign environmental policy lacks clear principles, objectives and strategies. In its failureto understand the significance of sustainable development, the Itamaraty often favors short-term economicinterests, to the detriment of environmental protection. The Basil Convention, the Cartagena Protocol and theStockholm Convention are three supporting examples of this thesis, while the Convention on Climate Changeis the exception that confirms the rule.Key words: environment; foreign policy; sustainable development.

MARIJANE VIEIRA LISBOA

ó uma conceituação muito frouxa do que seria po-lítica poderia permitir o uso do termo política ex-terna brasileira de meio ambiente para qualificar

ça dos países em desenvolvimento. Três exemplos, a se-guir, ilustram essa realidade.

CONVENÇÃO DA BASILÉIA

A Convenção da Basiléia começou a ser negociada em1989 e pretendia dar conta do grave problema e, ao mes-mo tempo, moralmente indecente crescimento das expor-tações de lixo perigoso do mundo industrializado para omundo em desenvolvimento. Nos anos 80, a crescenteconsciência ambiental no mundo industrializado criavaenormes dificuldades à construção de novos aterros eincineradores para resíduos perigosos. Isso que veio a serchamado de Nimby Efect – Not in my backyard – , tradu-zido como “não na minha vizinhança”, aliado a legisla-ções ambientais mais severas e aos novos compromissosinternacionais de não mais se despejar resíduos perigososnos oceanos,1 fez que os custos de manejo de lixo perigo-so subissem vertiginosamente nos países industrializados.O comércio de lixo perigoso apresenta-se, então, como aalternativa, pois por baixos custos era possível encontrarcompanhias que comprassem esse lixo e o despejassemnos países em desenvolvimento. Ditadores corruptos de

um conjunto de posicionamentos ambíguos e contraditó-rios intercalados por omissões sistemáticas que tem dadoo tom da atuação brasileira na esfera internacional, emrelação aos temas ambientais. A famosa diplomacia bra-sileira, no campo ambiental, tem sido bastante medíocree uma explicação para o fenômeno desafia observadorese atores envolvidos nas negociações internacionais. Aexceção que confirma a regra é o caso da política brasi-leira na área da Convenção das Mudanças Climáticas, masse verá, mais adiante, que as condições que permitiram odesenvolvimento de uma política coerente para essa pro-blemática, não estiveram presentes em nenhum dos ou-tros temas relevantes da política ambiental internacional.

A mediocridade da política ambiental brasileira con-trasta tragicamente com as pretensões mais gerais da di-plomacia brasileira de situar o Brasil como potência mun-dial, capaz de dialogar de igual para igual com os EUA, aUnião Européia e o bloco asiático, ao mesmo tempo emque se reivindica a posição de líder natural dos países la-tino-americanos, disputando ainda com a Índia a lideran-

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EM BUSCA DE UMA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DE...

países africanos ou centro-americanos autorizavam a des-carga de barris em praias desertas e áreas abandonadas,em troca de depósitos bancários em algum paraíso fiscal.

Também havia um outro destino para esse lixo perigoso.Fundições secundárias, que extraem metais com algum va-lor, partindo de resíduos industriais, como o chumbo, o zin-co e o cobre, tinham interesse em adquirir essa “matéria-pri-ma” barata. Em países recém- industrializados como o Brasil,a Índia, a Indonésia ou as Filipinas, existem dezenas de in-dústrias deste tipo, poluindo o meio ambiente com metaispesados como chumbo, mercúrio, cromo e arsênico, ao mes-mo tempo em que condenam à invalidez sem assistênciamédica e previdenciária seus milhares de trabalhadores.

Por pressão dos países africanos, principais vítimasdesse comércio imoral, a ONU começou a patrocinar ne-gociações para elaborar uma convenção internacional, vi-sando coibir esse comércio criminoso. A Convenção daBasiléia, no entanto, assinada em 1989 em Basiléia, de-cepcionou enormemente os países africanos, por excluirum dispositivo que proibiria a exportação de resíduos pe-rigosos do Primeiro Mundo para os países em desenvol-vimento. Essa exclusão deveu-se às pressões de última horados EUA, um dos maiores exportadores de resíduos peri-gosos para o mundo em desenvolvimento, juntamente coma Inglaterra e a Alemanha.

Em dezembro de 1992, a 1a Reunião das Partes da Con-venção da Basiléia deu-se em Piriápolis, no Uruguai. Namesa, novamente, uma proposta de resolução, apresenta-da pelo próprio secretário-geral do Programa das NaçõesUnidas para o Meio Ambiente, o sr. Mustafa Tolba, quepropunha a proibição de exportação de resíduos perigo-sos para os países em desenvolvimento. Entretanto, devi-do à enorme resistência do bloco dos países desenvolvi-dos, capitaneados pelos EUA, Canadá, Austrália, Japão,Inglaterra e Alemanha, Mustafa Tolba retirou sua proposta.O Grupo 77 e China, porém, inconformados com o desen-lace da reunião, deixaram registrado que pretendiam ado-tar e apresentar de novo a mesma proposta, na próximareunião das Partes, o que ocorreria em março de 1994,em Genebra. Nessa reunião, finalmente, após calorososdebates e negociações que se arrastaram até alta madru-gada, aprovou-se a resolução que passou a ser conhecidacomo a Proibição da Basiléia. Por essa resolução, a par-tir de fins de 1997 os países industrializados estariam im-pedidos de exportar resíduos perigosos para os países emdesenvolvimento.

Como comportou-se o Brasil em relação a essas nego-ciações? Em contatos com o Departamento de Meio Am-

biente do Itamaraty (Dema), ainda antes da realização da1a Reunião das Partes, em Piriápolis, o Greenpeace diag-nosticou certa resistência brasileira à aprovação de umaproibição total para importações de resíduos perigosos,em virtude do País costumeiramente importar resíduos pe-rigosos de metalúrgicas, para extração de chumbo e ou-tros metais perigosos. Devido ao fato de não possuirmosjazidas de chumbo e a importação de minério puro ser agra-vada por impostos especiais, tornava-se economicamenteinteressante para recicladoras de baterias automotivas noBrasil importar as baterias usadas dos EUA, de modo arecuperar-lhes o chumbo. Vale dizer, que a recuperaçãode chumbo, mesmo que realizada com a mais avançadatecnologia – o que não era o caso no Brasil – é uma ope-ração altamente perigosa tanto para o meio ambiente, quan-to para a saúde dos trabalhadores nela envolvidos.

Embora concordasse com o espírito geral da propostade proibir as exportações de resíduos perigosos para oTerceiro Mundo, a existência de um setor econômico den-tro do nosso próprio país contrário à essa proibição – ain-da que fosse um setor de expressão econômica insignifi-cante no conjunto da economia brasileira – levou oItamaraty a assumir uma postura absolutamente discretadurante a 1ª Reunião das Partes, em Piriápolis.

Um ano e tanto depois, por solicitação do Greenpeace,o Ministro Rubens Ricúpero, na época Ministro do MeioAmbiente, convocou uma reunião informal do ConselhoNacional de Meio Ambiente para discutir a posição a sertomada pelo Brasil na próxima reunião da Convenção, asegunda, a ser realizada em Genebra, em março de 1994.Presentes diversos secretários de meio ambiente, deputa-dos e entidades ambientalistas, o Ministro declarou nãover qualquer inconveniente em apoiar resolução que proi-bisse a importação de resíduos perigosos. Paralelamente,em um de seus raros períodos proativos, o Ministério doMeio Ambiente estava preparando legislação nacionalvisando eliminar as últimas exceções para importação deresíduos perigosos, entre eles o chumbo.

Em Genebra, no entanto, a própria delegação brasilei-ra é surpreendida por novas instruções chegadas deBrasília. O Brasil não apoiaria uma resolução que proi-bisse a exportação de resíduos perigosos para países emdesenvolvimento, já que ele próprio necessitava de algunsdesses resíduos, como o chumbo.

Isolado, porém, nessa posição dentro do Grupo Lati-no-Americano e do Caribe (Grulac), o Brasil, que alémdo mais fora escolhido com o porta-voz do grupo juntoao G-77, teve que ceder à posição consensual dos demais

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e endossar a proposta de proibição. Novamente apresen-tada ao plenário da 2ª Reunião das Partes pelo G-77, apósárduas negociações, ela foi aprovada. Decisivo para essedesenlace foi a formação da União Européia, forçandoInglaterra e Alemanha, grandes oponentes da proibição aaceitarem a posição majoritária dos outros membros daUnião, favoráveis à proibição.2

Nos meses que se seguiram, o bloco dos países expor-tadores, EUA, Canadá e Austrália, rearticulou-se, buscan-do invalidar os efeitos da Probição da Basiléia. Endossa-ram a proposta feita pela Inglaterra, anterior à formaçãoda União Européia, de transformar em emenda ao textoda Convenção apenas a parte da resolução que menciona-va a proibição de exportação de resíduos perigosos comvista ao despejo final. Com isso, deixava-se de fora justa-mente aquela parte mais significativa do tráfico de resí-duos perigosos que ia parar nas fundições secundárias dospaíses em desenvolvimento, classificado como resíduoexportado para reciclagem ou recuperação.

Para contornar essa manobra, a Dinamarca apresentouproposta de transformar em emenda à Convenção o texto in-tegral da resolução aprovada no ano anterior. Quando da 3ªReunião das Partes, em setembro de 1995, também em Ge-nebra, uma distribuição de forças ligeiramente diferente seconfigurou: de um lado o bloco EUA, Canadá, Austrália,Japão e aliados e de outro o G-77, ainda que com algumasdefecções, mas com o apoio de toda a União Européia.

O Brasil chegou a Genebra com uma delegação nume-rosa, tendo a sua frente um diplomata de grande experiên-cia na área de direito ambiental, defendendo a tese de quenão era necessário emendar a Convenção, pois resoluçõesadotadas livremente por países em convenções internacio-nais deveriam ter força de lei, ou seja, efeito vinculante.Esse argumento técnico, no entanto, servia apenas comodesculpa para a recusa do Brasil em apoiar a proposta deemenda da Dinamarca. Durante as negociações e mesmoem entrevista à imprensa brasileira, a delegação brasilei-ra deixava transparecer a real razão de sua recusa em apoiara emenda dinamarquesa: sua postura contrária à proibi-ção aprovada no ano anterior.

Novamente, no entanto, o Brasil tinha pouco espaçode manobra. Premido entre os dois blocos, acabou por terque engolir a proposta dinamarquesa, quando esta foi apro-vada por consenso, depois que as últimas resistências dobloco EUA, Canadá, Austrália e Japão foram vencidas.

Na verdade, a saída de Rubens Ricúpero do Ministériodo Meio Ambiente tinha permitido que os setores econô-micos ligados à metalurgia ocupassem vácuos de poder

ali deixados. O grupo de funcionários do ministério quetentava desenvolver uma política ambiental para resíduosfoi desbaratado e o ministério chegou mesmo a promul-gar uma resolução ad hoc do Conama, às vésperas do Natal,que deixava a exclusivo critério do Ministro do Meio Am-biente autorizar a importação de resíduos perigosos quandofosse de interesse nacional.

Além disso, o Greenpeace descobriu troca de corres-pondência entre o Ministério do Meio Ambiente e o De-partamento de Estado dos EUA, visando a elaboração deum tratado bilateral, que permitisse ao Brasil importar re-síduos perigosos dos EUA.

Em 1996, o Ministério do Meio Ambiente de GustavoKrause mobilizou-se ativamente para encontrar uma so-lução para alguns importadores de baterias usadas, em es-pecial para a empresa Baterias Moura, localizada na suaárea eleitoral, em Pernambuco. Uma resolução do Minis-tro autorizando a importação para várias indústrias, tevede ser cancelada, graças à pressão do Conselho Nacionalde Meio Ambiente (Conama), impressionado com o dossiêtrazido pelo Greenpeace e a Aspan (Associação Pernambu-cana de Proteção à Natureza), evidenciando com fotos eanálises laboratoriais a contaminação do solo e das águascom chumbo provocada pela Baterias Moura (Lisboa eRocha, 1997).

Consultado pelos Ministérios de Minas e Energia, In-dústria e Comércio e Meio Ambiente sobre como driblara Proibição da Basiléia que vigoraria em fins de 1997, demodo que o País pudesse continuar a importar resíduosperigosos, o Itamaraty prometeu negociar um perdão es-pecial para o Brasil, embora felizmente a Convenção daBasiléia não contivesse esse dispositivo. O prazo de maisde 3 anos, após a aprovação da proibição, em março de1994, fora dado justamente para que os países tivessemtempo para tomar as providências necessárias.

Na quarta reunião da Convenção da Basiléia, em KualaLumpur, Malásia, em fevereiro de 1998, a mesma estraté-gia hesitante foi adotada por nossa delegação. Desta veza ameaça à Proibição da Basiléia vinha do pedido israe-lense para que se permitisse a inclusão de novos países nalista dos que não poderiam exportar para os países em de-senvolvimento, o famoso Anexo VII. Caso isso fosse pos-sível, países como o Brasil poderiam ingressar nesse ane-xo e, embora impedidos de enviar seus resíduos para outrospaíses em desenvolvimento, poderiam receber dos paísesque normalmente exportam resíduos perigosos, como osEUA, Alemanha e outros. A delegação brasileira, nume-rosa, como sempre não expunha publicamente sua posi-

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ção, embora continuasse disputando um papel de lideran-ça entre os países em desenvolvimento, tendo obtido, tam-bém, a representação do Grulac. Em conversas privadas,no entanto, externava a opinião de que a proibição de im-portar resíduos perigosos prejudicava a economia brasi-leira, “impedindo-a de reciclar metais pesados a preçoscompetitivos, ao mesmo tempo em que se criava um mer-cado cativo para os países desenvolvidos”. Era impres-sionante, portanto, a total ignorância sobre a problemáti-ca ambiental propriamente dita, ou seja, sobre o fato deque reciclar resíduos de metais pesados é uma operaçãosempre ambientalmente prejudicial, não havendo tecno-logias capazes de evitar a contaminação do meio ambien-te e dos trabalhadores com seus poluentes (Lisboa, 2000).A 4ª Conferência da Basiléia foi concluída, no entanto,com a derrota da proposta de abrir o Anexo VII. Uma frenteque reunia o G-77, liderada pelos países árabes, que te-miam a contaminação da Ásia Menor com os resíduosperigosos que Israel pretendia importar e reciclar em seuterritório, foi capaz de enterrar essa última tentativa dereverter a Proibição da Basiléia.

O décimo aniversário da Convenção da Basiléia, du-rante a 5ª Reunião das Partes, realizada na própria cidadeem Basiléia, foi comemorado com grande pompa. Autori-dades internacionais e ministros do meio ambiente reco-nheciam ser esta uma convenção ambiental de significa-do estratégico para o planeta, evitando que o mundo emdesenvolvimento se tornasse a lixeira do Primeiro Mun-do, ao mesmo tempo em que direcionava esse último paraa chamada produção limpa, ao lhe proibir a solução fácilda exportação de lixo perigoso. Por isso mesmo, o presi-dente do Programa das Nações Unidas para o Meio Am-biente, Klaus Töpfer, encarecidamente pedia aos países-partes da Convenção que ratificassem a emenda aprovadaem 1995 (Töpfer, 1999). O Itamaraty, no entanto, discor-dava dessa interpretação, ainda que não abertamente. En-carava como uma discriminação injustificável ao livre-comércio, proibir um grupo de países “de receber resíduosperigosos” e defendia a tese de que países que tivessemtecnologias apropriadas deveriam ser autorizados a im-portar esses resíduos. Por isso mesmo, o Itamaraty pro-positalmente tem retardado até hoje os procedimentos re-ferentes à ratificação da emenda aprovada em 1995.

PROTOCOLO DE CARTAGENA

O surgimento das plantas e animais transgênicos sina-lizou uma nova área de perigo ambiental para o planeta: a

biossegurança. Escapes de material transgênico podemtrazer riscos significativos ao meio ambiente e a saúdehumana, como a perda de biodiversidade – plantas, inse-tos, microorganismos – e o desenvolvimento de novasenfermidades. Como se tratam de seres vivos, que se re-produzem espontaneamente, eventuais incidentes dificil-mente serão controlados, podendo inclusive ser irrever-síveis. Isso motivou a Convenção sobre a DiversidadeBiológica elaborar um protocolo de biossegurança, quedeveria criar dispositivos que permitissem aos países-mem-bros controlar o comércio de organismos geneticamentemodificados, evitando que os movimentos transfronteiriçosdessas substâncias pudessem trazer danos a seus territó-rios e suas populações. Sua lógica interna estruturava-seem torno do chamado Princípio de Precaução, princípiofundamental do direito ambiental, que estipula que casohaja indícios de que riscos de monta possam ocorrer aomeio ambiente, as autoridades não devem alegar à faltade evidência científica como desculpa para não tomar asprovidências adequadas (Tickner, 1999). Portanto, combase no Princípio da Precaução, o protocolo pretendiaconferir aos países-partes o direito de recusar a importa-ção de organismos geneticamente modificados, caso es-ses países considerassem que tais importações poderiamtrazer danos a seu meio ambiente, saúde e economias.

Contrários a essa formulação, de um lado, tínhamos ochamado Grupo de Miami, formado pelos EUA, Canadá,Argentina, Austrália, Chile e Uruguai. Os três primeiros,produtores de transgênicos e defendendo seus interesses.Sendo a Austrália uma tradicional aliada dos EUA nasquestões ambientais internacionais, o que havia de sur-preendente no Grupo de Miami era a presença do Chile edo Uruguai, que não são produtores de transgênicos. OGrupo de Miami, na verdade, era uma inteligentíssima ma-nobra diplomática dos EUA, capturando países que erammembros tradicionais do G-77, como a Argentina, o Chi-le e o Uruguai e inviabilizando, conseqüentemente, umaarticulação do G-77 como oposição ao Grupo de Miami.Favoráveis ao Princípio de Precaução e ao “direito dedizer não” aos transgênicos, estavam todos os países daÁfrica, a maioria dos países asiáticos e também a maioriados países latino-americanos. Para opor-se ao Grupo deMiami, formou-se o Grupo dos Like-Minded. A UniãoEuropéia, que não apresentava uma posição tão firme comrelação ao direito de dizer não, constituía o terceiro gru-po importante na mesa das negociações.

Durante os 13 dias de negociações em Cartagena, naColômbia, os representantes da delegação do Brasil não

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defenderam as mesmas posições nos diversos grupos detrabalho. Isso se explica, em parte, em razão da composi-ção da própria delegação. Incluindo diversos representan-tes da Comissão Técnica de Biossegurança (CTN-Bio),subordinada ao Ministério de Ciência e Tecnologia e quevinha patrocinando a introdução dos transgênicos no Brasildesde a sua formação, a delegação contava com apenasum representante do Ministério do Meio Ambiente e trêsdiplomatas. Além dessa falta de um consenso interno e dedisciplina por parte dos membros da CTN-Bio, que exter-navam suas opiniões pessoais como se fossem as oficiais,agregaram-se as pressões vindas dos EUA e das multi-nacionais presentes no Brasil, exigindo que o Itamaratyabandonasse sua posição favorável à inclusão do Princí-pio de Precaução nos parágrafos operativos do texto daConvenção. Alertado pelo Greenpeace, o ministro do MeioAmbiente teve que interceder diretamente junto ao presi-dente da República, para que se mantivesse o que se esta-va considerando como um princípio ambiental, há muitoacatado pela diplomacia brasileira.

O fracasso das negociações de Cartagena levou o en-tão presidente da Conferência de Diversidade Biológica,o ministro do meio ambiente da Colômbia, Juan Mayr, aconvocar uma reunião informal em Viena, visando acele-rar as negociações entre o Grupo de Miami, o Grupo dosLike-Minded e a União Européia. Novamente trazendo umacomposição heterogênea, com franco predomínio da tur-ma da CTN-Bio, a atuação da delegação brasileira na reu-nião de Viena foi ainda mais errática do que a de Cartagena.Isolava-se do Grupo dos Like-Minded quanto à redaçãodo artigo que definia as relações entre o futuro protocoloe outras Convenções, somando forças com o Grupo deMiami. A questão aí oculta era a possibilidade de quepaíses fossem processados por ferirem cláusulas da Or-ganização Mundial do Comércio, caso não quisessem au-torizar a importação de transgênicos. Em defesa de suaposição, o Brasil alegava que “o direito de dizer não”poderia ser usado como “barreira não alfandegária”. Al-guns países do Grupo dos Like-Minded chegaram aexternar a opinião de que o Brasil estaria intencionalmenteatrapalhando a definição de uma posição conjunta por partedo Grupo e, assim, dificultando as negociações.

Nesse quadro de indefinições, o Protocolo de Bios-segurança foi para sua última rodada de negociações emMontreal, em janeiro de 2000. Sob enorme pressão de or-ganizações não-governamentais, cooperativas de campo-neses e entidades de consumidores, cujas manifestaçõesexternas do centro de Convenções, com temperatura de

-30º, impressionam vivamente a mídia internacional, o Pro-tocolo foi finalmente assinado. Dessa vez, o Grupo dosLike-Minded não esteve sozinho. Alguns ministros do MeioAmbiente da União Européia vieram pessoalmente parti-cipar das negociações e defenderam energicamente o Prin-cípio da Precaução e a independência do futuro Protoco-lo diante de outras convenções, como a da OrganizaçãoMundial do Comércio.

Já tendo adquirido fama de confusa e não confiável, adelegação brasileira continuou atuando da mesma forma,sendo comum ver-se os representantes brasileiros da CTN-Bio saindo e entrando na sala do Grupo de Miami, a todomomento.

Finalmente, em maio de 2000, durante a 5a Reunião daConvenção da Diversidade Biológica, em Nairobi, quan-do o Protocolo de Biossegurança foi aberto solenementepara assinaturas, uma surpresa. Enquanto países do Gru-po de Miami como a Argentina e o Chile assinaram o Pro-tocolo e Canadá e Austrália anunciaram que provavelmenteviriam assiná-lo, depois de consultas internas,3 o Brasilcomunicou que ainda não poderia assiná-lo, porque esta-va aguardando resposta de seus diferentes ministérios. Jáse está em 2002 e parece que tais respostas não chega-ram, embora a Esplanada dos Ministérios tenha sido es-pecialmente desenhada para facilitar os contatos entre essesdiversos órgãos do poder executivo.

A questão que se coloca, é: qual é, afinal, a posiçãobrasileira com relação ao Protocolo de Biossegurança? Éfavorável ou é contrário, e por quê? Em defesa do Itamaratydeve-se reconhecer que o Executivo brasileiro, em sua to-talidade, não tem uma posição clara quanto à liberaçãono meio ambiente de plantas e animais transgênicos. En-quanto o Ministério da Ciência e Tecnologia, durante osmandatos Israel Vargas e Bresser Pereira, advogou publi-camente a favor dessa liberação, apoiado pelo Ministérioda Agricultura de Francisco Turra, o Ministério do MeioAmbiente resistia discretamente por meio do Ibama, bemcomo o Ministério da Justiça defendia uma rotulagem plenapara os alimentos transgênicos. Mais tarde, a mudança mi-nisterial leva um Pratini de Morais a assumir papelprotagônico na defesa dos transgênicos, enquanto o novoministro da Ciência e Tecnologia, Sardenberg, adota umapostura mais discreta. A Justiça Federal, em sucessivosjulgamentos em primeira e segunda instância, dá ganhode causa para o Greenpeace e o Idec, impedindo o plantiode transgênicos sem que haja estudo de impacto ambiental,mas a União entra como litisconsorte, ao lado da Monsantoe força o Ibama, com medida provisória, a se retirar da

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causa, com o Greenpeace e ao Idec. Seria compreensível,portanto, que o Itamaraty não tivesse uma postura muitoclara para apresentar. O que é estranho, sim, é que haven-do participado das negociações e do acordo consensualem torno ao texto final do Protocolo de Cartagena, recu-sou-se a assiná-lo, com todos os custos políticos que essaatitude implicaria, quando até os seus maiores oponentesjá o haviam feito, como a Argentina e o Chile.

CONVENÇÃO DE ESTOCOLMO

A Convenção de Estocolmo, sobre os Poluentes Orgâ-nicos Persistentes, começou a ser negociada em 1995,quando o Programa de Meio Ambiente da ONU formouum grupo de trabalho para analisar as políticas a seremadotadas em relação aos poluentes orgânicos persisten-tes. Perigosos por serem persistentes no meio ambiente ebioacumulativos, ou seja, transferindo-se ao longo da ca-deia alimentar, os poluentes orgânicos persistentes,comumente chamados de POPs são, entre outras coisas,cancerígenos, disruptores do sistema endócrino e supres-sores do sistema imunológico. Na maioria dos casos mui-to voláteis, são carregados pelas correntes atmosféricasdesde as regiões mais quentes do planeta, condensando-se nas baixas temperaturas das áreas próximas aos pólos,aí se depositando. As correntes marítimas também encar-regam-se de distribuir esses poluentes por todo o planeta,transformando-os em poluentes globais. Cinco reuniõesinternacionais foram necessárias para preparar o texto daConvenção, que finalmente foi aprovado em maio desseano, em Estocolmo. O principal dispositivo da Conven-ção é a decisão de se eliminar a produção e consumo de12 dos piores POPs, grande parte deles, agrotóxicos jáproibidos na maioria dos países. Ponto de especial dispu-ta, no entanto, era o artigo que definia que os países deve-riam adotar medidas para eliminar também aqueles POPsde produção não intencional, como as dioxinas e furanos,que são produzidos sem que se possa evitar sua forma-ção, nas indústrias que utilizam o cloro. Ainda que o arti-go deliberadamente adotasse uma formulação ambígua,propondo que a eliminação desses POPs ocorresse ape-nas quando viável, a indústria química opunha-se resolu-tamente a essa idéia, tendo seu ponto de vista defendidocom toda a energia pelos EUA, Canadá, Austrália e Ja-pão. Na delegação brasileira, a indústria química estevepresente em todas as negociações, por intermédio um re-presentante da Abiquim, muito ativo. Foi ele o autor daproposta, que exigiu enormes esforços para ser retirada

posteriormente, de que o artigo referente aos POPs nãointencionais se redigisse de modo que só adotasse medi-das de eliminação caso elas fossem técnica e economica-mente viáveis. Manifestamente, as delegações brasileirastinham problemas com o Princípio da Precaução, presentetanto na introdução da Convenção, como em seus pará-grafos operativos. Embora o Brasil já tivesse aceitado ainclusão do Princípio da Precaução em diversos outrosacordos internacionais, relutou até a última hora em darseu apoio a inclusão desse princípio nessa convenção, ale-gando que a conferência estava alterando sua formulaçãoclássica. Além de retornar ao clássico argumento brasi-leiro, de que o Princípio da Precaução pode ser usadocom barreira não-tarifária contra os países em desenvol-vimento. Entretanto, a surpresa maior veio quando a Con-venção de Estocolmo foi assinada, em maio de 2001. O Bra-sil assinava o texto, mas pedia uma exceção de uso, de seisanos para um dos agrotóxicos a serem eliminados, oheptacloro. Utilizado no passado para tratamento de madei-ra, para evitar cupim, o heptacloro foi abandonado paulati-namente por ser altamente tóxico, e por existirem alternati-vas menos perigosas no mercado. A última fábrica queproduzia o heptacloro, a empresa norte-americana Vesicol,fechou suas portas há dois anos, nos EUA. No entanto, a em-presa brasileira Action, que comprou os estoques da Vesicol,conseguiu que o ministério de Indústria e Comércio interce-desse a seu favor, vencendo as resistências, aliás sempredébeis, do Ministério do Meio Ambiente. Em virtude dessafábrica, assim como no caso da Basiléia, por causa das Bate-rias Moura, o Brasil solicitou uma exceção especial, contra-riando o esforço coletivo de eliminar no mais curto espaçode tempo possível e em todos os casos para os quais hajaalternativas, esses perigosos poluentes.

FALSO DILEMA

A causa principal da mediocridade de que padece apolítica externa brasileira de meio ambiente parece resi-dir na própria concepção errônea do que venha a ser umapolítica ambiental para o Itamaraty. Nossos diplomatasainda concebem a questão ambiental de forma isolada,separada das demais atividades humanas relacionadas àeconomia. De fato, é comum ouvir dos nossos represen-tantes diplomáticos afirmações do tipo, “se por um lado oBrasil se preocupa em defender o meio ambiente, por ou-tro lado, por ser uma potência industrial, não pode permi-tir que princípios ecologistas venham a prejudicar a econo-mia, o emprego e o progresso material e científico do país”.

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Ora, separar economia e meio ambiente como se fos-sem dois lados estanques e complementares de uma reali-dade qualquer, indica que o já velho conceito do desen-volvimento sustentável dos anos 70 ainda não chegou aser compreendido em seu conteúdo substantivo. Uma eco-nomia sustentável do ponto de vista ambiental é uma eco-nomia que não destrói suas próprias condições de exis-tência. Por isso, não pode haver a contradição entre umaboa política ambiental e uma boa política econômica. Oque é mau para o meio ambiente é mau também para aeconomia, ainda que a tradução dos danos ambientais emprejuízos econômicos possa não ser perceptível a curtoprazo. Mais tarde ou mais cedo os custos ambientais se-rão infalivelmente cobrados em saúde pública, qualidadede vida, esgotamento de recursos naturais e desvaloriza-ção de bens materiais e imateriais.

A separação entre economia e ecologia, portanto, é umamiopia. Ao contrário, a economia deveria subordinar-se àecologia, que, como ciência dos ecossistemas, estuda abase física na qual qualquer tipo de economia podeestruturar-se (Alier e Schlupmann, 1991). Desenvolvimen-to sustentável, portanto, é aquele tipo de desenvolvimen-to que garante a permanência dessa base física.

A chegada da filosofia neoliberal ao departamento demeio ambiente do Itamaraty, o Dema, em meados dos anos90, só pode piorar as coisas. Esse credo neoliberal conde-nará medidas políticas que proíbam atividades considera-das prejudiciais ao meio ambiente, como inócuas e con-traproducentes. Defenderá a tese de que os incentivoseconômicos são o único gênero de política capaz de pro-vocar mudanças de comportamento e que a excessiva in-gerência do Estado na atividade econômica por meio depolíticas ambientais pode levar a uma atrofia dessas ati-vidades. Além disso, grande parte das restrições estabe-lecidas pelos acordos ambientais internacionais às ativi-dades consideradas como prejudiciais ao meio ambientepassaram a ser interpretadas como “barreiras não-tarifá-rias”, formas de cercear as exportações dos países em de-senvolvimento nos mercados do Primeiro Mundo.

Dividido quanto a que partido tomar entre o meio am-biente e a economia, a saída do Itamaraty freqüentementetem sido a busca de um meio termo, de uma média entre oque seriam os interesses ambientais e os interesses eco-nômicos. Favorece as soluções mais moderadas, propõe adilatação dos prazos para adoção de medidas, avança comprudência infinita, configurando um estilo de política que,no nosso próprio país, chamaríamos de “ficar em cima domuro”.

A concepção de política ambiental como uma média aser tirada entre os diversos “aspectos” de uma problemá-tica, ilustra-se magistralmente pela forma como o Itamaratyrealiza suas reuniões preparatórias para negociações deconvenções internacionais de meio ambiente. Os diver-sos ministérios que possam considerar-se atingidos por de-terminada problemática ambiental são convidados para de-bater a política a ser definida. Além dos Ministérios doMeio Ambiente e do Ministério da Indústria e Comércio,poderão estar presentes o Ministério da Saúde, se houveralgum vínculo direto com a saúde, bem como Minas e Ener-gia, Fazenda, Ciência e Tecnologia. Representantes dosetor industrial e organizações não-governamentaisambientalistas também poderão ser convidados para ex-por suas preocupações. Como não podia deixar de ser,nessas reuniões o Ministério do Meio Ambiente é sempreminoria, ainda que conte com o apoio das organizaçõesnão-governamentais, forçando matematicamente as posi-ções a serem defendidas pelo Brasil a favorecer, antes detudo, os interesses econômicos do curto prazo, defendidosciosamente pelos ministérios da Indústria, Fazenda, Minas eEnergia.

Esse procedimento para tomada de decisão não permi-te a elaboração de uma política ambiental. Não há umconjunto de princípios que norteie as posições adotadas,um conjunto de objetivos e estratégias e alianças visandoalcançar esses objetivos. Enquanto em uma convençãoapoiamos certos princípios, em outra podemos rejeitá-los.Tampouco há uma continuidade nas posições assumidasno interior de uma mesma negociação. Mudam nossasposições ao sabor dos representantes diplomáticos envia-dos e não há qualquer preocupação em garantir que nãose perca a memória e a experiência acumulada pelos di-plomatas que são transferidos de setor.

DIFÍCIL LIDERANÇA

O curioso dessa situação é que ela contraria o objetivotão caro à diplomacia brasileira de situar o País como po-tência mundial, pois a tibieza e a omissão não costumamchamar a atenção. Discursos bem construídos, delegaçõesnumerosas e manobras diplomáticas para garantir o postode porta-voz do Grulac e do G-77, grupo que reúne ospaíses em desenvolvimento, contrasta com a pobreza daspropostas por nós apresentadas e com a nossa falta de cla-reza sobre o que queremos. Os EUA e o Canadá, por exem-plo, destacam-se por serem sempre contra quaisquer avan-ços em matéria de legislação ambiental internacional. Os

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EUA não assinaram a Convenção sobre a DiversidadeBiológica, a Convenção da Basiléia, e batem o pé em nãoassinar o Protocolo de Kyoto. Os países nórdicos, ao con-trário, em geral estão na vanguarda das questões ambien-tais. Em aliança com os países em desenvolvimento, oG-77, Suécia, Dinamarca e Noruega sempre estão à fren-te das grandes negociações em andamento. A Colômbia,na América Latina, tradicionalmente tem posturas ousa-das e coerentes em prol do meio ambiente, enquanto a Ar-gentina secunda, quase sempre, os EUA. Os países afri-canos, unidos em um bloco sólido pela Organização daUnião Africana (OUA), transformaram sua fragilidade emfortaleza. Do Brasil, no entanto, quase nada que mereçadestaque pode ser apontado, na política ambiental.

RESPONSABILIDADES COMUNS,MAS DIFERENCIADAS

É preciso reconhecer, no entanto, a parte da culpa quecabe ao Ministério do Meio Ambiente nessa questão. Comexceção do período de Lutzemberg, quando o Ministérioainda era Secretaria do Meio Ambiente e do curto perío-do do Rubens Ricúpero, todos os demais ministros do MeioAmbiente foram incapazes de pressionar o Itamaraty paraque adotasse qualquer política externa ambiental coeren-te. Na maioria dos casos, porque eles próprios não pos-suíam qualquer entendimento a respeito da questãoambiental e, portanto, tampouco tinham qualquer coisa asugerir como política externa. Alguns deles ganharam oministério do Meio Ambiente na tradicional divisão dobolo ministerial entre partidos e regiões, deixando que osegundo escalão continuasse fazendo o que bem lheaprouvesse, desde que não lhes criasse problemas com seusprotegidos. Quando isso acontecia, no entanto, os funcio-nários zelosos eram desautorizados e transferidos de car-go, convergindo tudo isso, ao fim, para um total imobilismoda máquina governamental.

José Sarney Filho é, de fato, o primeiro ministro doMeio Ambiente que entende de Meio Ambiente, se ex-cluirmos Lutzemberg, um dos fundadores do movimentoambientalista brasileiro e Rubens Ricúpero, diplomata decarreira, que embora não fosse da área, dominava bastan-te bem a problemática da floresta amazônica, tendo sidoum dos articuladores principais da Eco-92. Infelizmente,no entanto, José Sarney Filho não demonstra qualquerinteresse pela política externa ambiental. Aliás, mesmo na-cionalmente, seu interesse restringe-se à questão da pro-teção à Amazônia e Mata Atlântica, abandonando inteira-

mente ao Itamaraty as temáticas referentes à poluiçãoquímica e à segurança biológica. É freqüente a situaçãoem que o Ministério do Meio Ambiente não envia repre-sentantes seus para integrar as delegações diplomáticasbrasileiras nas negociações internacionais de meio ambien-te, alegando falta de recursos.

Já o mesmo não ocorre com os demais ministérios comoo da Agricultura, Ciência e Tecnologia, Indústria e Co-mércio e Minas e Energia, que estão sempre presentes nasdelegações diplomáticas enviadas às convenções de meioambiente. Como o Ministério do Meio Ambiente mani-festa pouco interesse em defender os interesses difusosem jogo nas questões internacionais, de um lado, e de outroos ministérios da área econômica são resolutos na defesadaqueles interesses econômicos, que além disso costumamter nome, endereço e padrinhos políticos, o Itamaraty tendenaturalmente para a defesa dos últimos.

CLIMA, UM CASO À PARTE

O caso da Convenção das Mudanças Climáticas per-mite analisar a diferença que um Ministério pode fazer naelaboração de uma política diplomática coerente e inteli-gente para o meio ambiente. Por circunstâncias que aquinão cabe desenvolver, alguns altos funcionários do Mi-nistério de Ciência e Tecnologia e de outros institutos depesquisa vieram acompanhando as negociações para a ela-boração da Convenção das Mudanças Climáticas desdeo seu início, antes da Eco-92. Participando da definiçãodos princípios básicos em que se deveria basear essa con-venção, o Princípio da Precaução e o das Responsabili-dades Comuns, mas diferenciadas e das principais medi-das para controle das mudanças climáticas, bem comodesenvolvendo cálculos e propostas específicas, como asdo mecanismo limpo, o Brasil se impôs, assim, como umdos mais importantes negociadores no cenário diplomáti-co dessa convenção. É isso que confere ao nosso país, hoje,autoridade moral para criticar o Presidente Bush, por suarecusa em assinar o Protocolo de Kyoto.

Vale comentar, no entanto, que aquilo que se exige hoje,do Brasil, para cumprir com seus compromissos diante dosdemais países-partes da Convenção de Mudanças Climá-ticas não afeta quaisquer interesses econômicos a curtoprazo em nosso país. Como o Brasil não se encontra entreos países do Anexo I, os que possuem a maior responsa-bilidade histórica nas mudanças climáticas que hoje ex-perimentamos, e que, portanto, devem em primeiro lugarreduzir suas emissões de gases estufa, não se está exigin-

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como se viu nos três exemplos que iniciam esse artigo.Lamentavelmente, pois, a gravidade da crise ambiental pelaqual atravessa o planeta exige respostas rápidas e respon-sáveis por parte de toda a comunidade internacional.

NOTAS

1. A Convenção de Londres surgiu em 1973, logo após a Conferênciade Estocolmo para o Meio Ambiente, e tinha como objetivo regula-mentar o despejo de resíduos perigosos no mar. Em 1985 adotou umamoratória indefinida para despejo de resíduos radioativos de baixo teore em 1988 propôs a suspender a incineração de resíduos líquidos emnavios, que entrou em vigor em 1990. Nesse mesmo ano, decidiu-sesuspender o despejo de resíduos industriais nos oceanos, o que foi efe-tivado em 1995.

2. Sobre as condições políticas que levaram a que toda a União Euro-péia apoiasse a Proibição da Basiléia ver tese de doutoramento daautora (Lisboa, 2000).

3. Os EUA sequer assinaram a Convenção da Diversidade Biológicae, por isso, não poderiam assinar o Protocolo de Cartagena, que é uminstrumento negociado dentro dos marcos dessa Convenção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TICKNER, J. “A Map Toward Precautionary Decision Making”. In:RAFFENSPERGER, C. e TICKNER, J. (orgs.). Protecting PublicHealth and the Environment: Implementing the PrecautionaryPrinciple. Washington DC/Covelo, 1999.

TÖPFER, K. “Editorial”. Notre planète. Nairobi, PNUD, v.2, n.4, 1999.

MARIJANE VIEIRA LISBOA: Socióloga, Diretora Executiva do Greenpeace,Professora de Sociologia dos cursos de Relações Internacionais e Ciên-cias Sociais da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP.

do da economia brasileira nenhuma mudança drástica emsua forma de atuar. Nessas circunstâncias, é fácil cobrardos EUA e outros países suas responsabilidades, o quesoa ainda menos sincero quando consideramos que as emis-sões brasileiras de gases estufa estão aumentando em umavelocidade assustadora e não há sinais de que se estejaconsiderando quaisquer medidas para reduzir esse cresci-mento. O complexo industrial automobilístico continuamerecendo incentivos do governo federal bem como dosgovernos estaduais, em guerra fiscal na disputa de fábri-cas automobilísticas. Grande parte das verbas de trans-porte e construção civil são destinadas à infra-estruturanecessária para expandir o transporte de carga e de passa-geiros automotivo. O Proálcool foi abandonado assim queo preço do petróleo baixou, embora se tratasse de com-bustível renovável, portanto, não prejudicial ao clima. Aeclosão da recente crise energética veio promover deze-nas de termoelétricas a gás e mesmo algumas a carvão – opior dos combustíveis fósseis para as emissões de dióxidode carbono na atmosfera –, ameaçando modificar o perfilde nossa matriz energética, que até então baseada emhidroeletricidade, não contribuía significativamente paraas mudanças climáticas. Por outro lado, as políticas paracombater o desmatamento e as queimadas, a principal for-ma de contribuição do Brasil às mudanças climáticas, con-tinuam débeis e ineficientes.

Tomando como exemplo a posição brasileira na ques-tão das mudanças climáticas, poderíamos dizer que a re-ceita para uma boa política ambiental externa parece ser,em primeiro lugar, a ausência de quaisquer pressões eco-nômicas contrárias à essa política. Em seguida, é impor-tante que haja uma área técnica, possuidora de massa crí-tica capaz de analisar a problemática em questão e proporsoluções – como é o caso do Ministério de Ciência eTecnologia e, finalmente, uma boa diplomacia. Uma re-ceita difícil de se reproduzir em outros temas ambientais,

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O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: DEVER DO ESTADO OU PROTECIONISMO...

A

O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃOdever do Estado ou

protecionismo disfarçado?

Resumo: A inclusão da saúde pública na ordem do dia dos movimentos sociais, em especial a resistência aoprocesso de globalização, coincide com um impasse na evolução da liberalização do comércio mundial, dianteda inexistência de consenso entre os Estados sobre a questão agrícola. O princípio da precaução surge nessacomplexa equação como obstáculo ao livre-comércio ou pode ser interpretado como forma de mascarar o pro-tecionismo que caracteriza os Estados desenvolvidos.Palavras-chave: princípio da precaução; saúde pública; protecionismo.

Abstract: The inclusion of public health as an agenda item within grass-roots movements, especially the anti-globalization movement, coincides with an impasse in continued liberalization of world trade, due to a lack ofconsensus between nations with regard to agricultural issues. The precautionary principle emerges within thiscomplex equation as an obstacle to free trade, or as an attempt to mask the protectionist tendencies of developingnations.Key words: precautionary principle; public health; protectionism.

SUELI GANDOLFI DALLARI

DEISY DE FREITAS LIMA VENTURA

última década do século XX foi marcada por im-portante mudança nas bandeiras de luta dos mo-vimentos sociais. A resistência organizada contra

É precisamente nesse momento de publicização inédi-ta do debate da saúde que a liberalização do comércio mun-dial chega a seu grande impasse: o desmantelamento daproteção tarifária e não-tarifária no setor da agricultura.Os países desenvolvidos recusam-se a abrir seus merca-dos, protegendo sua produção e, ao menos no caso daEuropa, preservando também sua qualidade de vida, pormeio da multifuncionalidade da agricultura e do modelointensivo de produção. Já os países em via de desenvolvi-mento lutam pelo acesso aos grandes mercados, e é porintermédio da inserção no comércio internacional que pro-curam a superação de seus graves problemas econômicos.

A opinião pública tende a situar-se, em um primeiro mo-mento, dentro da “comunidade de destino” de que fala Ed-gar Morin, de modo que todos os humanos estão confron-tados aos mesmos problemas de vida e de morte, queultrapassam largo os limites de cada soberania, relativosprecipuamente à sobrevivência da espécie (saúde) e do pla-neta (meio ambiente). Em outras palavras, existe o reco-nhecimento de que o Estado-Nação não teria, hoje, condi-ções de lidar sozinho com as questões sanitárias eambientais, devendo dirigir-se à integração, e não ao isola-mento, para cumprir corretamente seu papel de proteção

o processo histórico, que se convencionou chamar de “glo-balização”, empunha novos estandartes e, entre eles, en-contra-se o da saúde pública. Mais do que reivindicar a açãodo Estado nessa área, tais movimentos exigem transparên-cia no tratamento das questões sanitárias, sobretudo no queatine à cadeia alimentar, ou seja, o processo que vai da pro-dução à comercialização dos alimentos. Além disso, ques-tiona-se a legitimidade de acordos internacionais de comér-cio que privilegiam interesses econômicos em detrimentoda segurança sanitária. Uma das figuras emblemáticas des-se movimento é o militante francês José Bové, que em sualuta contra a malbouffe não hesita em destruir plantaçõestransgênicas e atacar as franquias do McDonald’s.

Parece claro que a bandeira da saúde chega ao públicoprincipalmente pelos escândalos que envolveram a cadeiaalimentar nos últimos dez anos, com destaque para o casoda “vaca louca” (encefalopatia espongiforme bovina) queassolou a Europa, e da discussão acerca da comercializa-ção de produtos alterados geneticamente, conhecidos comotransgênicos.

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do indivíduo. Ainda é cedo para avaliar o peso político dessa“opinião pública internacional”, dessa nova classe políti-ca, de indivíduos e grupos que tecem vínculos transnacio-nais, independentes do Estado, que Philippe MoreauDefarges chamou de “sociedade civil mundial”. Contudonão há dúvidas de que ela tende a defender as causas dasaúde e o ambiente como questões de princípio.

Em sentido contrário, quando ocorrem situações comoa retaliação comercial imposta pelo Canadá ao Brasil –que impediu recentemente a entrada em território cana-dense da carne brasileira, apresentada como suspeita, emaplicação do princípio da precaução –, a opinião públicatende a reagir de modo violento, em defesa do Brasil, ta-chando a atitude canadense de falso protecionismo. É evi-dente que, nesse caso, a aplicação do princípio mostrou-se, na verdade, descabida. Questiona-se, porém, comoreagirá a opinião quando estiver diretamente oposta, deum lado, a precaução legítima, assecuratória da saúdepública de outros povos e, de outro lado, um prejuízo eco-nômico nacional de monta?

Esse panorama geral impele à tentativa de precisar oconceito de saúde pública e de discernir de modo claro osignificado da polêmica noção de precaução no âmbitosanitário, aprofundando essas noções tão facilmentemanipuláveis no discurso político, o que permitiria iden-tificar alguns dilemas relativos à aplicação desse princí-pio no âmbito do comércio internacional. Assim, em umprimeiro momento, será tratado o deslocamento do eixoda noção de saúde pública, que se consolida pela idéia deprevenção, mas ruma mais à frente para a precaução. Aseguir, será dimensionado o princípio da precaução nocontexto da moderna concepção de saúde. Finalmente, serápossível refletir sobre esse novo elemento como dadopolítico do complexo cenário internacional, em especialno âmbito dos blocos econômicos.

DA PREVENÇÃO À PRECAUÇÃO:A EVOLUÇÃO DO CONCEITODE SAÚDE PÚBLICA

A evolução histórica mostra que o atual conceito desaúde pública começa a se delinear no Renascimento,correspondendo praticamente ao desenvolvimento do Es-tado Moderno. É muito curioso – porque absolutamentedesprezado – verificar a aproximação histórica da idéiade saúde da de exercício físico (ginástica) e dieta, issoporque a saúde não é na origem um conceito científico,mas uma idéia comum, ao alcance de todos.

Para a antigüidade grega o termo hygieia significa “oestado daquele que está bem na vida” e tem um sentidoeminentemente positivo. Mesmo com a incorporação dosentido de cura e, portanto, com a formação da medicina,ainda a higiene alimentar e o exercício físico são caracte-rizados como importantes elementos de cura.1 Platão(s.d.:444b-c) amplia, um pouco mais, a idéia de saúde,acrescentando-lhe o campo da alma e a necessidade deque ele mantenha relação adequada com o corpo. Assim,o estado de equilíbrio interno do homem com a organiza-ção social e a natureza é sinônimo de saúde para a anti-güidade grega.

Durante a Idade Média o saber culto continua a privi-legiar o equilíbrio na definição de saúde (Maimônides).Tratados de ginástica e dietética são publicados como re-ceitas de saúde para os não-médicos (Rauch, 1995), masa reação coletiva à epidemia é a imagem mais marcantedesse período. Assim aparecem os primeiros contornos daidéia de prevenção, implicando o respeito seja aos signosdo zodíaco, seja ao desenrolar das estações, seja ao rela-cionamento adequado entre o clima e o corpo humano,mas, sobretudo, o afastamento dos contactos impuros – amelhor forma de prevenção.

No Renascimento, um fato importante para a compreen-são do conceito de saúde pública foi a preocupação dascidades em prestar cuidados aos doentes pobres em seusdomicílios ou em hospitais, aumentando o poder das ci-dades em matéria de higiene. Novas concepções de saúdefavorecem a limpeza e os exercícios corporais que evitamo recurso aos medicamentos (Montaigne, s.d.), enquantooutras tendem a mecanizar o corpo, trabalhando com umconjunto de fatores que constituem a saúde (eliminaçãodos resíduos, apetite, facilidade de digestão). E a valori-zação do exercício como elemento essencial para uma vidasaudável encontra reforço no romantismo, que estimulamaior aproximação da natureza. Entretanto, a experiên-cia das epidemias deixou sua marca, elaborando o con-ceito de perigo social, “usado mais como pretexto paraum controle sobre as pessoas e não somente sobre as doen-ças do que para medidas específicas de prevenção”(Berlinguer, 1988:82).

É nesse período que, na Alemanha, define-se a idéia depolícia médica, em plena coerência com o cameralismo.2

Não tendo os alemães participado ativamente das grandesnavegações e da colonização decorrente, o principal obje-tivo do mercantilismo foi aumentar a força interna do Es-tado – particularmente depois que o império germânico foiesfacelado nos Tratados de Paz da Westphalia (1648) –

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para o que foi importante o conceito de polícia. Concor-dando com a ideologia hegemônica na Alemanha no finaldo século XVII, que afirmava ser o crescimento popula-cional a manifestação primeira da prosperidade e bem-es-tar de um povo e que, portanto, um bom governo deve agirpara proteger a saúde de seus súditos, Leibnitz sugeriu, em1680, ao imperador Leopoldo I, a criação de um órgão ad-ministrativo encarregado dos assuntos de polícia, o que im-plicava a existência de um conselho de saúde. Logo após(1685), Frederico-Guilherme de Hohenzollern – o GrandeEleitor de Brandemburgo – cria, nos territórios que viriama constituir o reino da Prússia, um Collegium sanitatis,definindo uma autoridade médica para supervisionar a saú-de pública (Rosen, 1980:151-53).

Nesse período pode-se observar, também, que o ensi-no do cameralismo na Universidade – iniciado sob o rei-nado do, então, imperador Frederico-Guilherme I – favo-recendo o desenvolvimento do ramo da AdministraçãoPública conhecido como ciência da polícia, forneceu asbases para a definição da polícia médica,3 a ele estrutu-ralmente vinculada. Assim, a teoria política do contratua-lista barão de Pufendorf (1732:349) – revelada no Direi-to natural e direito das gentes, de 1672 – além de insistirque “a força de um Estado consiste no valor e nas rique-zas dos Cidadãos: ... [e que o Soberano, portanto,] ... nãodeve nada negligenciar, para promover o cuidado e o au-mento dos bens dos particulares”, dedica no Capítulo VI,livro 2 aos “deveres do homem com relação a ele mesmo,tanto para o que respeita ao cuidado de sua alma, quantopara aquilo que concerne ao cuidado de seu corpo e desua vida”. Nesse trecho ele afirma ser necessário “traba-lhar para ter a saúde com bom-senso” (Pufendorf,1733:244), lembrando que a saúde encerra todos os ou-tros bens. E seus seguidores, como von Justi, escrevendono auge do despotismo esclarecido4 (exercido na Alema-nha por Frederico II – 1740-1786), advogavam que o so-berano fizesse todo o possível para prevenir as doençascontagiosas e para, em geral, diminuir as doenças entreos súditos. Para isso deveriam, empregando o aparato ad-ministrativo do Estado, estimular a prática da medicina,da cirurgia, do partejo, da farmácia e regulamentar o exer-cício dessas atividades para evitar abusos e charlatanismo.Deveriam, também, promover a pureza da água e dos ali-mentos, assim como, assegurar a higiene do meio, regu-lando, inclusive, as edificações em solo urbano (Rosen,1980:159).

Fica claro que a sistematização da polícia médica re-sulta, em especial, da profunda influência exercida – du-

rante todo o século XVIII – pela filosofia do Iluminismo,que considera a razão o único caminho para a sabedoria.Assim, ao não admitir as explicações sobrenaturais paraos fenômenos naturais, o Iluminismo promove a amplaaceitação da obrigação do Estado de controlar o exercí-cio das práticas médico-cirúrgicas e farmacêuticas, com-batendo o charlatanismo. Do mesmo modo, por buscar em-pregar o método científico na descrição das doenças e nadeterminação dos tratamentos, essa filosofia eleva o exer-cício das ciências médicas (como das demais profissõesliberais) a uma condição de dignidade inimaginável naIdade Média, o que justifica plenamente a regulamenta-ção estatal do ensino médico. E, também, ao advogar apossibilidade de planejamento da atividade estatal soma-da à exaltação crescente dos direitos naturais do homem– que permitiu consagrar mais atenção aos infortúnios dasclasses mais pobres – o Iluminismo estimulou a drenagemde pântanos, a abertura de canais, favorecendo a preven-ção de epidemias.

A noção contemporânea de saúde pública ganha maiornitidez de contorno no Estado liberal burguês do final doséculo XVIII. A assistência pública, que envolvia tanto aassistência social propriamente dita (fornecimento de ali-mentação e abrigo aos necessitados) como a assistênciamédica, continuou a ser considerada matéria dependenteda solidariedade de vizinhança, na qual o Estado deveriaenvolver-se apenas se a ação das comunidades locais fos-se insuficiente. Pode-se colocar nessa atuação subsidiáriado Estado um primeiro germe do que viria a ser o serviçopúblico de saúde. Entretanto, tomando-se o exemplo fran-cês, verifica-se que a grande transição revolucionária –que passa tanto pela supremacia dos jacobinos quanto pelamilitarização napoleônica – retarda o início da instaura-ção efetiva da assistência à saúde como objeto do serviçopúblico, para o período conhecido como Restauração.5

A proteção da saúde é admitida no elenco das ativida-des do Estado liberal e recebe, portanto, um status cons-titucional. Isso significa que, apesar do empirismo que ca-racteriza a regulamentação das atividades de interesse paraa proteção da saúde, as medidas de polícia administrativarelativas à tal proteção devem estar sob o manto da lei.Apareceram, assim, durante a Restauração (para ficar noexemplo francês) as primeiras leis que tratavam organi-camente da higiene urbana, da noção de estabelecimentoinsalubre e do controle sanitário de fronteiras (Forges,1998:489-501). Não se pode ignorar, contudo, que, tantoo controle do ensino e do exercício da medicina e da far-mácia – profissões cuja regulamentação estatal era

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advogada há cerca de 50 anos – quanto a manutenção doshospitais pelas comunas, também, receberam acolhidaconstitucional, uma vez que o Estado liberal e burguêsdaquele final de século legislou sobre esses assuntos.6 Emsuma, as atividades do Estado relacionadas à vigilânciasanitária, na implantação do liberalismo, eram em tudocoincidentes com os interesses da burguesia vitoriosa:valorizando sobremaneira o individualismo dominante,limitá-lo apenas no estritamente necessário à preservaçãoda segurança individual, com o mais absoluto respeito àlei – condição do Estado de Direito.

Entretanto, é apenas na segunda metade do século XIXque a higiene torna-se um saber social, que envolve todaa sociedade e faz da saúde pública uma prioridade políti-ca. São desse momento as primeiras tentativas de ligar asaúde à economia, reforçando a utilidade do investimentoem saúde.7 Inúmeros trabalhos de pesquisa conformes aoparadigma científico vigente revelam claramente a rela-ção direta existente entre a saúde e as condições de vida.Assim, proteger a saúde das camadas mais pobres, modi-ficar-lhes os hábitos de higiene, passa a ser um objetivonacional, pois estar-se-ia pari passu, lutando contra amiséria que ameaça a ordem pública. A idéia de preven-ção encontra, então, ambiente propício à sua propagação.De início, fomentada por associações,8 a prevenção trans-forma-se tanto em objetivo político quanto social. Trata-va-se de encontrar os sinais precursores da doença paraevitá-la. Nesse sentido, a vacinação – descoberta dePasteur, com o posterior isolamento do germe – provocauma verdadeira revolução na prevenção de moléstias, poisa proteção contra a infecção permite simplificar a precau-ção. São criados os Comitês de Vacinação e verifica-seque, politicamente, o risco de contrair doenças se sobre-põe ao da própria moléstia, transformando-a de episódioindividual em objetivo coletivo, sobretudo por meioda disseminação dos meios estatísticos na avaliaçãoda saúde.

No início do século XX encontra instaurada a prote-ção sanitária como política de governo. E são hierarqui-zadas três formas – hoje clássicas – de prevenção:9 a pri-mária, que se preocupa com a eliminação das causas econdições de aparecimento das doenças, agindo sobre oambiente (segurança nas estradas, saneamento básico, porexemplo) ou sobre o comportamento individual (exercí-cio e dieta, por exemplo); a secundária ou prevenção es-pecífica, que busca impedir o aparecimento de doençadeterminada, por meio da vacinação, dos controles de saú-de, da despistagem; e a terciária, que visa limitar a pre-

valência de incapacidades crônicas ou de recidivas (Leavelle Clark, 1976). O Estado do Bem-Estar social da segundametade do século XX reforça a lógica econômica, espe-cialmente em decorrência da evidente interdependênciaentre as condições de saúde e de trabalho, responsabili-zando-se pela implementação da prevenção sanitária.

Instituem-se, então, os sistemas de previdência social,que não se limitam a cuidar dos doentes, mas organizam aprevenção sanitária. A princípio, pressupunham uma di-ferenciação entre assistência social – destinada às classesmais desfavorecidas e baseada no princípio de solidarie-dade e, portanto, financiada por fundos públicos estatais– e previdência social – mecanismo assecuratório restritoaos trabalhadores. Entretanto, exatamente porque a pre-venção sanitária era um dos objetivos do desenvolvimen-to do Estado, logo se esclarece o conceito de seguridadesocial, que engloba os subsistemas de assistência, previ-dência e saúde públicas.10 Trata-se, portanto, de identifi-car a responsabilidade a priori do Estado. Assim, quantoaos estilos de vida, verifica-se um grande investimentoestatal.11

Os últimos anos do século XX, contudo, revelam novaconcepção da saúde pública, fortemente influenciada sejapelo relativo fracasso das políticas estatais de prevenção,que não conseguiram superar os limites impostos pela ex-clusão social, seja pela constatação – agora científica –da importância decisiva de comportamentos individuaisno estado de saúde.

Por outro lado, o predomínio da ideologia neoliberalprovocou uma diminuição do papel do Estado na socie-dade em favor dos grupos e associações e da própria res-ponsabilidade individual. A evolução da organização doscuidados relativos à Aids– na maioria dos Estados con-temporâneos – é um exemplo eloqüente dessa nova con-cepção. Com efeito, prevaleceu a idéia de que a proteçãocontra a doença é responsabilidade individual e que os gru-pos – de doentes ou de portadores do vírus ou de familia-res ou amigos deles – devem organizar a prestação doscuidados de saúde, ficando o Estado subsidiariamente res-ponsável pelo controle da qualidade do sangue, fator im-portante na cadeia da causalidade, mas, é claro, não oúnico. Reforça-se, assim, o papel dos comportamentosindividuais e não se questionam as estruturas econômicase sociais subjacentes. De fato, o que se verifica, então, éque as estruturas estatais de prevenção sanitária passam aestabelecer suas prioridades, não mais em virtude dosdados epidemiológicos, mas, sobretudo, em decorrênciada análise econômica de custo/benefício. E isso, por ve-

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zes, acaba implicando a ausência de prevenção, elementohistoricamente essencial ao conceito de saúde pública.

NEM REMEDIAR, NEM PREVENIR:DESCARTAR OS RISCOS, O NOVO DESAFIO DOESTADO

No início do século XXI, a resposta inovadora que sebusca construir para preservar o mundo de ameaças reaisou mesmo do sentimento geral de medo em relação à de-fesa da saúde pública, da qualidade dos alimentos e doequilíbrio do meio ambiente, chama-se “princípio de pre-caução”. Curiosamente, tal anseio une segmentos sociaisaté então afastados por posições ideológicas, econômicase culturais que pareciam inconciliáveis. Quer-se, ao mes-mo tempo, preservar os benefícios resultantes do desen-volvimento científico e agir de modo que se garanta a pre-caução no domínio da saúde pública e do ambiente.12

Pode-se afirmar que a convicção de que todos os homenstêm um destino comum, pois todos “estão no mesmo bar-co”, tornou impossível a existência de riscos estritamenteindividuais.

Para avaliar o alcance da constatação de que o riscocoletivo é de determinação cultural, recíproca e pública,basta lembrar que tal compreensão gerou a necessidadede uma nova teoria da justiça para dar forma política aosriscos sociais. Assim, apenas uma proteção eficaz contraas injustiças relativas à liberdade ou à igualdade podegarantir o sentido da justiça e o apego moral aos valorespolíticos, indispensáveis à ação após a descoberta do fu-turo comum (Worms, 1996:287-307).

O fenômeno social traduzido no princípio de precau-ção levou, igualmente, ao desenvolvimento de uma filo-sofia da precaução (Ewald, 1996:382-412),13 construídacom base em uma história da prudência, que revela, a prin-cípio, o domínio do paradigma da responsabilidade, subs-tituído – na passagem para o século XX – pelo da solida-riedade. É a segurança – o novo paradigma, em fase deformação – que dá às obrigações morais a forma de éticae transforma o princípio de responsabilidade em precau-ção. Com efeito, a idéia moderna de responsabilidadebuscava tornar o homem prudente, pois sancionava o com-portamento contrário àquele que deveria e poderia serprevisto. Definia-se a noção de culpa, que articulava asanção, à prevenção e à indenização. A responsabilidadeera, sem dúvida, um excelente princípio regulador, queperdia sua eficácia diante da dúvida ou da incerteza – ele-mentos cada vez mais freqüentes na sociedade que se in-

dustrializava – induzindo sua suplantação pelo princípioda solidariedade. Tratava-se, assim, de compensar o pre-juízo decorrente dos acidentes que não se era capaz deprevenir. O motor principal dessa transformação foram osacidentes do trabalho e as aposentadorias. A responsabi-lidade permanecia em ação no que respeitava ao compor-tamento imprudente, mas a solidariedade garantia a inde-nização nos casos em que – embora se tenha tomado todasas precauções para evitá-los – os acidentes aconteciam.

A sociedade passou a organizar, então, as formas derepartir os riscos considerados eminentemente sociais,chamando de responsável aquele que ela considerava jus-to que suportasse o prejuízo pecuniário, fosse ele o autorou a vítima. Esse foi o clímax do seguro social, que – tam-bém, sem dúvida – influiu para uma diminuição na aten-ção dada ao comportamento individual imprudente.

O desenvolvimento social revela que na base das so-ciedades securitárias do Estado de Bem-Estar, encontra-va-se a crença numa ciência capaz de sempre melhor con-trolar os riscos. Ora, é exatamente a constatação de que aprópria evolução científica vem aumentado os riscos im-previsíveis, que está provocando a afirmação do novoparadigma, o da segurança. Assim, num contexto de in-certezas científicas e do risco da ocorrência de danos gra-ves e irreversíveis, ele induz à formação do princípio deprecaução. É igualmente evidente que esse princípio pre-tende conter a inovação, re-orientando o progresso cien-tífico ilimitado e re-valorizando a busca dos verdadeirosresponsáveis pelos comportamentos imprudentes. Dessemodo, o princípio de precaução não se compraz apenascom a caracterização do dano a ser compensado, pois eleabriga a convicção de que existem comportamentos quedevem ser proibidos, sancionados e punidos. A mudançaé, portanto, significativa: não basta determinar o montan-te da indenização, pois existem danos que não têm preço.

A teoria, que começa a ser construída, sobre o princí-pio de precaução procura minimizar o argumento de queele conduza à abstenção e, portanto, à estagnação do de-senvolvimento científico. Afirma-se que, muito ao con-trário, seu emprego deve implicar o aumento do investi-mento em ciência e tecnologia, uma vez que, em situaçõesde risco potencial desconhecido, ele exige que se busquea solução que permita agir com segurança, ou seja, que setransforme o risco potencial, seja em risco conhecido, seja– ao menos – em risco potencial fundado. Trata-se, pois,de fenômeno social que implica a radicalização da demo-cracia: exige-se o direito de participar – possuindo todasas informações necessárias e indispensáveis – das gran-

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des decisões públicas ou privadas que possam afetar a se-gurança das pessoas.

A aplicação do princípio de precaução impõe uma obri-gação de vigilância, tanto para preparar a decisão, quantopara acompanhar suas conseqüências. E, sobretudo, elapromove a responsabilidade política em seu grau mais ele-vado, uma vez que obriga a avaliação competente dos im-pactos econômicos e sociais decorrentes da decisão de agirou se abster.

Talvez a maior contribuição trazida pelo princípio daprecaução seja, contudo, duplamente jurídica. Com efei-to, ao deixar claro que se trata de analisar um risco, isto é,a possibilidade de causar dano a alguém, ainda que semculpa, a exigência de precaução obriga a considerar, seria-mente, a instituição da perícia judicial, mas, também, ex-tra-judicial. É conveniente observar que o risco está deforma direta ligado à técnica, não ao indivíduo que delase vale. A complexidade dos saberes envolvidos na deci-são de instituir a vacinação generalizada contra uma gra-ve infecção viral de incidência crescente, ou de retirar domercado um produto suspeito de causar infecção e morte,com base apenas em informações epidemiológicas aindanão comprovadas em laboratório, por exemplo, requer aparticipação de peritos que não devem ser responsáveispela decisão, mas de quem se exige o domínio sobre suaárea de especialidade e que deverão responder – social ejuridicamente – pelas informações prestadas. E, em casode se exigir a resposta judicial, o juiz deverá ser capaz deformar seu convencimento com base na apreciação de re-latórios periciais que traduzam a complexidade da pes-quisa científica em informações que sejam compreensí-veis para todos os interessados.

Verifica-se, portanto, a necessidade de investimentostanto na formação dos pesquisadores, que deverão domi-nar, também, as ciências sociais – na teoria e na prática –para serem capazes de comunicar à sociedade os resulta-dos de seus experimentos, quanto das pessoas em geral,que necessitam conhecer as bases do trabalho científicopara poderem escolher o grau de risco ao qual conside-ram aceitável submeterem-se em nome do progresso.

Por outro lado, o reconhecimento judicial do princípiode precaução implica, igualmente, a indispensável atuali-zação da filosofia do direito no que envolve a teoria da res-ponsabilidade, pois, para ser identificado, o risco exige queseja afastada toda possibilidade de culpa do autor. De fato,a sociedade contemporânea tem sido colocada diante de umfalso dilema quanto a tal princípio. Os governantes buscamexplicar suas decisões contestadas por ausência de precau-

ção com o argumento da fatalidade (ou da força maior, emtermos jurídicos) e os governados, ainda quando têm seuprejuízo indenizado, procuram penalizar todos os respon-sáveis pelo crime de não terem agido com precaução. Ora,juridicamente a aplicação do princípio de precaução nadamais é do que a exigência do comportamento prudente comocondição para excluir a responsabilidade por culpa, o queexige a identificação do elemento voluntário na caracteri-zação do ato. Entretanto, a evolução da teoria da responsa-bilidade – como já se observou – tem sido no sentido con-trário, generalizando-se a chamada responsabilidadeobjetiva ou responsabilidade sem culpa, sobretudo em re-lação às ações do Estado, o que permite, com maior facili-dade, a obtenção de indenização, estimulando, por sua vez,a generalização do seguro. Deixando de analisar o com-portamento que gerou o dano, desconhecendo, portanto, ohomem (negligente ou imprudente) ou não verificando suafalta de conhecimento ou sua competência técnica insufi-ciente (imperícia) a responsabilidade por risco, todavia, nãosatisfaz o prejudicado que não mais aceita apenas ser inde-nizado, mas deseja a identificação do culpado. Tal com-portamento social deve servir aos filósofos e teóricos dodireito para lembrar que a responsabilidade situa-se entre aretribuição e a imputação, ou seja, ela envolve tanto a inde-nização quanto a procura da verdade.14

Para um profissional da saúde pública, a análise doselementos que constituem o princípio de precaução traz àmemória, portanto, os fundamentos de sua arte, pois agirem saúde pública significa conduzir uma ação política, que,por sua vez, obriga à prudência. Assim, qualquer sanita-rista em face de uma decisão deverá certificar-se do me-lhor estado da arte envolvido, empregando o conhecimentoepidemiológico, e analisar as repercussões socioeconômi-cas e culturais do problema.

Ora, o uso da epidemiologia como instrumento de tra-balho do sanitarista não prescinde do estabelecimento deum adequado e eficaz sistema de vigilância e de alerta;do mesmo modo que a compreensão do ambiente socio-econômico e cultural exige a participação ativa das pes-soas para que se possa estabelecer a correta relação cus-to/benefício, indispensável à tomada de decisão em políticade saúde. Verifica-se, portanto, que o novo “princípio deprecaução” atualiza a tradicional “saúde pública”. Embo-ra seja necessário e justo lembrar essa verdade, é impor-tante reconhecer a capacidade política de que dispõe talprincípio, servindo mesmo para despertar os Estados parauma de suas missões essenciais e prioritárias: proteger epreservar a saúde pública.15

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O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: DEVER DO ESTADO OU PROTECIONISMO...

DIMENSÃO TRANSNACIONAL DA SAÚDEPÚBLICA: RESPOSTAS REGIONAIS

A evolução do conceito de saúde pública indica, pri-meiramente, a afirmação do princípio da precaução comoum dever do Estado. Contudo, sua aplicação mostra-sebastante complexa quando se trata de tomar precauçõesem relação a um produto ou objeto proveniente do exte-rior, ou que será exportado. Com efeito, as relações co-merciais internacionais encontram no princípio da precau-ção um novo e inquietante ingrediente. Após a sensíveldiminuição das tarifas alfandegárias, a definição dos pa-râmetros fitossanitários no âmbito da OMC e o enquadra-mento das barreiras técnicas, começam a surgir claros in-dícios de novas formas de restrições dos fluxos comerciaismediante adoção do princípio da precaução.

As reservas emitidas pela OMC e a falta de definiçãojurídica do princípio da precaução pela Corte Internacio-nal de Justiça não significaram seu fenecimento. A opi-nião pública, sobretudo na Europa Ocidental, levou aUnião Européia e seus Estados-Membros a lançarem mãodo princípio da precaução, ao vislumbrar um risco poten-cial para a saúde pública ou o meio ambiente.

No feixe de relações internacionais cada vez mais mar-cadas pelo componente econômico, a precaução apresen-ta características que dificultam sua abordagem na práti-ca das relações entre os Estados. Além da imprecisãoterminológica aguda, o tratamento multidisciplinar do temaé obrigatório, tornando o diálogo inevitável entre profis-sionais das áreas humanas, especialmente da política e dodireito, e os das exatas. Esse diálogo nem sempre é fácil,o que levou alguns autores a perceber uma cientificizaçãoda política (Comissão Européia, 2000a).

Em segundo lugar, na seara internacional, o valor jurídi-co desse princípio é indeterminado, com alcance diferenciadoconforme as ordens jurídicas em questão. Há uma aparenteoposição ontológica ao princípio do livre-comércio e umaaparente função de instrumento do protecionismo de paísesdesenvolvidos no domínio agrícola, que leva a diplomaciaeconômica a percebê-lo com maus olhos, com tendência arecusar-se a incluí-lo em sua pauta de discussões.

Paradoxalmente, ele também é empregado por paísesem via de desenvolvimento, como foi o recente bloqueioda circulação de carne bovina entre os países do MercadoComum do Sul, Mercosul, em razão da existência de fo-cos de febre aftosa no Rio Grande do Sul e no Uruguai.Embora se possa discutir a questão da aftosa no Mercosulcomo uma questão de prevenção, e não exatamente de pre-

caução, o fato é que houve de forma nítida uma restriçãode comércio com o intuito de afastar um risco. O proble-ma é sensível, sobretudo no que se refere às negociaçõesdo Brasil e do Mercosul com a União Européia, em que aprecaução mostra-se como obstáculo concreto e fundamen-tado juridicamente à exportação de produtos agrícolas.

Finalmente, o princípio da precaução tem desempenha-do recentemente a função de eixo político justificador dosmovimentos internacionais de oposição ao processo deglobalização, fundadores de uma nova noção de solidarie-dade, que tem como elementos o direito à vida saudável eo imperativo de preservação do planeta. Está em curso umadescaracterização dos representantes dos governos nacio-nais nas negociações multilaterais como representantes dopovo e de seus interesses (meio ambiente, saúde, consu-mo), gerando inédito questionamento da legitimidade dosEstados em sua ação internacional. Nota-se, ainda, um des-locamento dos parâmetros do senso comum da goodgovernance dos critérios econômicos em direção de maio-res exigências relativas à proteção da vida. Daí decorreuma influência crescente no comportamento do consumi-dor quanto aos produtos empiricamente considerados comosuspeitos; na seara interna, mas com repercussões exter-nas, trata-se de elemento provocador de uma nova con-cepção acerca da responsabilidade civil e penal dos agen-tes públicos.

Tais características dimensionam bem a importância daprecaução na atualidade, mas são insuficientes para defini-la e delimitar nitidamente suas ramificações. O princípioda precaução foi utilizado pela primeira vez no direito am-biental alemão (Vorsorgeprinzip), na década de 70, (Boy,1999:5)16 impondo às autoridades alemãs a obrigação deagir diante de uma ameaça de dano irreversível ao meioambiente, mesmo que os conhecimentos científicos até en-tão acumulados não confirmem tal risco. Dele decorre igual-mente a obrigação de instaurar um sistema de pesquisa quepermita detectar riscos para o ambiente, mas também paraa saúde pública (Vaqué et alii, 1999:85). Além do direitoalemão, são poucos, entretanto, os regulamentos nacionaisque consagram o princípio com precisão.

De maneira geral, o escopo da precaução é ultrapassara prevenção. Não seria mais preciso que um dano se pro-duzisse, ou se mostrasse iminente, para que um gesto, vi-sando evitar a produção ou a repetição desse dano, fosselegítimo. Invertendo essa lógica, a precaução baseia-se naexperiência em matéria técnica e científica: as vantagensque surgem a curto prazo são, com freqüência, seguidasde desvantagens a médio e longo prazo. Logo, é preciso

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dotar-se dos meios de prever o surgimento de eventuaisdanos, antes mesmo da certeza da existência de um risco.

Dimensionando tal princípio no quadro das relaçõescomerciais internacionais, tem-se, grosso modo, que a in-certeza científica autorizaria a restrição do comércio.

Paradoxalmente, os acordos regionais de integraçãoeconômica multiplicam-se, mas a maioria deles exclui aagricultura, considerado um tema sensível, e silencia a res-peito do princípio da precaução. Tal situação não pode,entretanto, perdurar sem criar problemas insuperáveis alongo prazo.

Na Declaração de Quebec, da Cúpula das Américas2001, quanto à gestão dos recursos naturais, os Esta-dos Partes da futura Área de Livre Comércio das Amé-ricas (Alca) reconhecem que a proteção do meio am-biente e uso sustentável dos recursos naturais sãoessenciais para a prosperidade e para a sustentabilida-de da economia, assim como para a qualidade de vida ea saúde das gerações presentes e futuras. A Cúpula com-promete-se a implementar acordos ambientais multila-terais (AAMS) e a respeitar a Declaração do Rio deJaneiro, de 1992. Essa Declaração consagra o princí-pio da precaução. Entretanto, diferentemente da UniãoEuropéia, países da Alca são intransigentes na defesade que cada país tenha a autonomia para definir seuspróprios níveis de proteção ambiental.

Após o caso da carne com hormônios que envolveu osEstados Unidos e a Europa, é de supor que aquele paíslidere a recusa do princípio da precaução como elementojustificador da restrição do princípio do livre-comércio.É de se investigar qual a posição que será adotada pelasdemais nações americanas e prescrutar se o princípio daprecaução será ou não um desafio nessas negociações ouum ponto de união entre os países da futura Alca, tendo aclareza de que tal posição configuraria um pólo de atritocom outros Estados que defendem a consolidação do prin-cípio da precaução como possível elemento restritivo docomércio internacional.

No âmbito do sistema de solução de controvérsias(ORD) da Organização Mundial do Comércio (OMC), emque 40% das controvérsias examinadas desde a criaçãodo GATT referem-se à agricultura, o princípio da precau-ção é refutado claramente.

Três casos foram apreciados até o momento pelo ORD:o caso da carne bovina com hormônios, produzida nosEstados Unidos, cuja circulação foi proibida nos paísesda União Européia; o caso do salmão canadense, subme-tido pela Austrália a severas medidas preventivas; as fru-

tas produzidas nos Estados Unidos, cuja entrada no Japãofoi proibida, salvo quando os exportadores pudessem ates-tar a ausência de insetos devoradores.

O ORD considerou que o princípio da precaução nãoencontrou ainda uma formulação respeitável e que seriaimprudente tomar partido contra ou a favor de sua aplica-ção. O ORD aproxima-se, assim, da posição dos EstadosUnidos e do Canadá, para quem o princípio da precauçãonão faz parte do direito internacional público e constituinão mais do que uma orientação para os poderes públicos(Noiville, 2000:268).

A União Européia constitui o laboratório mais rico daaplicação do princípio da precaução no âmbito da segu-rança sanitária. A experiência da Europa é também signi-ficativa por tratar-se do maior importador/exportador mun-dial de produtos alimentares, que realiza trocas comerciaiscom todos os países.

No direito comunitário, o princípio da precaução esta-va, de início, limitado ao direito do meio ambiente, con-sagrado pelo artigo 174-2 do Tratado de Amsterdã. Con-tudo, tal postulado alargou-se progressivamente aodomínio da saúde e consolidou-se como verdadeira nor-ma jurídica européia, incorporada, também, às regras so-bre alimentação.17

Concretamente, a consagração desse princípio impõeaos Estados-Membros da União Européia e à ComissãoEuropéia a obrigação de não aguardar a confirmação deum risco em matéria de saúde pública para agir. Um ali-mento cuja segurança é, apenas, duvidosa pode ser retira-do do mercado, ter sua circulação proibida, ou ainda sersubmetido a uma avaliação preliminar para que possa en-trar ou permanecer no mercado. Todas essas medidas im-plicam, é óbvio, efeitos restritivos sobre o comércio.

A Europa vai adiante: o Livro Branco sobre a seguran-ça dos alimentos determina que “A proteção da saúdepública não se limita à segurança química, biológica e fí-sica dos alimentos. Deve igualmente ter por objetivo as-segurar a ingestão dos nutrientes essenciais, limitando aingestão de outros elementos a fim de evitar efeitos nega-tivos para a saúde, incluindo efeitos antinutricionais” (Co-missão Européia 2000b). Por essa razão, a Comissão Eu-ropéia apresentou propostas de Diretivas (normaseuropéias que necessitam transposição nas ordens jurídi-cas nacionais) sobre alimentos dietéticos, complementosalimentares e alimentos enriquecidos. A Comissão preten-de, ainda, apresentar uma “política nutricional” conformeRecomendações ao Conselho da União Européia relati-vas a orientações em matéria de regime alimentar.

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A posição sustentada pela Europa não encontra, porém,amparo no direito do comércio internacional, cuja preo-cupação primeira é evitar que a aplicação de medidas re-lacionadas à segurança alimentar sirva como camuflagemao protecionismo comercial. Com efeito, o Acordo sobrea Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias(SPS), assinado no âmbito da Organização Mundial do Co-mércio, determina que o Estado, cujas regras são maisseveras do que as normas internacionais em vigor, deverájustificar a manutenção ou a implementação de suas nor-mas pelas provas científicas disponíveis (Bureau e Bureau,1999:30). Assim, a justificação científica impõe-se comoa espinha dorsal do texto (Maruyama, p.651).

Como já foi mencionado, os Estados que defendem oprincípio da precaução argumentam, porém, que sua apli-cação não supõe menos ciência mas, ao contrário, maispesquisa científica. Tal estratégia compreende certas prá-ticas dos governantes como: não contentar-se com pes-quisas científicas sumárias, multiplicar perícias e contro-les, além de cercar-se do máximo possível de pareceresantes de permitir a circulação de um produto cuja segu-rança é discutível.

Desse modo, a precaução não seria reduzida apenas àgestão de uma crise ou urgência, mas como utensílio deacompanhamento da evolução tecnológica: avaliar os pro-dutos antes de sua comercialização, seguir seus efeitos,constituir uma espécie de jurisprudência científica e, en-fim, refletir e compreender de modo progressivo os efei-tos de novos modos de produção (Hermitte e Noiville,1993:391).

Para o direito ambiental, o princípio da precaução sig-nifica que os Estados devem tomar medidas para prevenira degradação ambiental, mesmo na ausência de certezacientífica absoluta quanto aos efeitos nefastos das ativi-dades projetadas sobre o meio ambiente (Martin-Bidou,1999:633). Ele compreende, assim, as questões nuclea-res, da camada de ozônio e dos fundos marinhos, mas igual-mente o problema dos transgênicos e da biotecnologia demodo geral.

Se no direito da União Européia a aplicação do princí-pio da precaução em matéria ambiental é pacífica, seu va-lor jurídico resta, porém, vago na seara internacional. Istose deve à imprecisão das convenções internacionais a elerelacionadas, assim como à recusa de parte de certas ins-tâncias jurisdicionais a pronunciar-se sobre tais questões.Por tudo isso, apesar de sua consagração em diversos tra-tados internacionais e regulamentações nacionais, muitosautores lançam dúvidas sobre seu caráter normativo no

âmbito do direito ambiental, preferindo reconhecer-lhe oestatuto de objetivo de caráter geral (Vaqué et alii,1999:83).

No caso do Brasil, a questão da aplicação do princípioda precaução é paulatinamente afirmada pela ordem in-terna, orientada pelo art. 225 da Constituição Federal eoutras normas, como a Lei n. 6.938/81, que trata da polí-tica nacional do meio ambiente, a Lei n. 7.437/85, quecuida da Ação Civil Pública, e a Lei n. 9.605/98, que zelapela proteção penal.18 Daí decorre uma possível interro-gação sobre a responsabilidade penal e civil dos infrato-res das normas de proteção ao meio ambiente, tanto degovernados como de governantes.

O Poder Judiciário brasileiro já foi provocado a mani-festar-se sobre o princípio da precaução (Justiça Federal,1999). Nas decisões judiciais é patente a confusão entreos princípios jurídicos da prevenção e da precaução, o quenão impediu a determinação judicial da suspensão do cul-tivo, em escala comercial, da soja round up ready no Bra-sil, assim como da comercialização de sementes de sojageneticamente modificadas no território nacional.19

De maneira geral, os produtos geneticamente modi-ficados têm provocado um fascinante contencioso, tan-to no que atine à proteção da saúde como do meio am-biente. A tradução do princípio da precaução emverdadeira “ação de precaução” depende da evoluçãodos atuais sistemas de definição e de gestão de riscos.A dificuldade da aplicação do princípio consiste em daruma resposta proporcional a um risco incerto, pois aprecaução não existe por ela mesma: ela se constrói acada contexto (Boy, 1999:333-51).

No atual estágio de conhecimento do tema, é naturalque a União e os Estados brasileiros, na gestão da coisapública, hesitem quanto à aplicação desse princípio. Es-sas hesitações, tanto aqui como nos demais países con-frontados a essa situação, merecem ser relativizadas con-forme o grau de precisão das obrigações que esse princípioengendra. Uma concepção mais restritiva do princípio fa-cilitaria, aparentemente, a adesão das autoridades estatais,enquanto uma acepção mais ampla afastaria possíveisadeptos. Assim, a posição majoritária da doutrina e da ju-risprudência é que esse princípio deve avançar, na searaambiental, em direção de uma maior precisão: é a falta declareza das obrigações nele implicadas que leva alguns apôr em dúvida seu caráter normativo (Martin-Bidou,1999:663-64).

Retomando o contexto comercial internacional, a ques-tão agrícola apresenta-se como um dos maiores desafios

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das negociações entre o Mercado Comum do Sul, Mercosule a União Européia. Após um longo período no qual asrelações entre a Europa integrada e a América Latina sepassavam no quadro da política comunitária de coopera-ção ao desenvolvimento, o final dos anos 80 e sobretudoa década de 90 trazem uma grande mudança na concep-ção das relações exteriores da hoje União Européia. O re-lacionamento intra-regional passa a compreender a coo-peração política e a econômica, e o território da AméricaLatina é coberto por acordos classificados de terceira ge-ração, que compreendem, entre outros itens, a preparaçãode uma futura liberalização comercial.

Nesse contexto, destaca-se o acordo de cooperaçãointer-regional assinado entre a Comunidade Européia e oMercosul, em Madri, em 1995, e a polêmica que o suce-deu no seio das instituições européias, referente à assina-tura de um posterior acordo de associação entre os doisblocos econômicos. Nesse processo, ficou claro que o gran-de obstáculo à liberalização comercial entre as regiões éa questão da agricultura. De um lado, uma política agrí-cola comum que agoniza diante dos sucessivos escânda-los que abalaram a produção européia e da própriainsustentabilidade do modelo adotado no bojo da libera-lização comercial mundial. De outro lado, um conjuntode países cuja produção tem dificuldades de afirmar suasegurança e confiabilidade em escala mundial, tambémafligidos por um modelo de produção ultrapassado, e in-ternamente considerado como gerador de desigualdadessociais, merecendo políticas e investimentos de porte emseara interna.

Envolvidos num esforço de negociação significativo,Mercosul e União Européia adotam posições distantes,senão antagônicas, nas instâncias internacionais que dis-cutem questões relativas à saúde e ao ambiente. Além dis-so, em caso de contencioso direto, o princípio da precau-ção encontra suficiente amparo jurídico para justificarimportantes medidas restritivas de comércio em territórioeuropeu. Adicione-se a percepção dos países do Mercosulde que o princípio da precaução constitui pouco mais doque uma forma de protecionismo mascarado em discursopoliticamente correto. Embora recentemente a Europa te-nha feito um gesto importante em direção ao Mercosul,apresentando uma pauta concreta para a negociação e umnítido compromisso com a consolidação do bloco platino,nada indica que a divergência profunda relativa à questãoagrícola tenha-se atenuado.

Esse artigo pretendeu suscitar o urgente debate sobre asaúde pública no âmbito do comércio internacional, colo-

cando sobre a balança dos processos decisórios não so-mente os elementos econômicos, mas também a questãohumana em toda a sua complexidade. O princípio da pre-caução desafia o direito do comércio internacional a criarregras que descartem o protecionismo mascarado, mas quepermitam a exceção legítima. Ou seja, que possa ser des-respeitado o acordo de comércio sobre objeto que gereincerteza em termos de saúde humana, por razões claras enum processo decisório transparente, por maior ganho quea circulação de um novo produto possa representar. Oproblema é que, como bem sintetizou Mireille Delmas-Marty (1999:209-16), não se queira procurar a palavra hu-manidade nos manuais de direito: no campo jurídico, ahumanidade é realmente um recém-nascido.

Como um balanço das inquietações aqui expressas,lembre-se, com Edgar Morin, que toda a ação empreen-dida em meio à incerteza traz à tona a contradição entreo princípio do risco e o princípio da precaução, um tãonecessário quanto o outro. Ficam as palavras de Péricles:“Nós sabemos dar provas de uma audácia extrema e, aomesmo tempo, nada fazer sem antes uma profunda refle-xão. Nos outros, a bravura é resultado da ignorância en-quanto a reflexão engendra a indecisão”(Tucídides, Guer-ra do Peloponeso).

NOTAS

1. A medicina hipocrática é formada pela dietética ou ciência dos re-gimes e pela ginástica ou ciência dos exercícios.

2. Ensinam os historiadores da civilização que o mercantilismo ale-mão, interessado sobretudo em aumentar as rendas do Estado, ficouconhecido como “cameralismo”, uma vez que Kammer significa te-souro real.

3. Sobre o tema ver, especialmente, Small, 1909.

4. Suas obras sobre a administração do Estado e os fundamentos daciência da polícia datam de 1755 e 1756, respectivamente.

5. 1814 (Primeira queda de Napoleão); 1830 (revolução de julho, que-da de Charles X).

6. Na França, leis de 10 de março (medicina) e 11 de abril (farmácia)de 1803 e a lei de 16 vendémiaire na V, que introduz um modelo degestão comunal –, os diversos estabelecimentos e casas de caridadesão reagrupados sob um estabelecimento público comunal, dirigido poruma comissão administrativa municipal, destinado, exclusivamente aosdoentes locais.

7. Veja-se, por exemplo, os trabalhos de Chadwick, E. Rapport sur lacondition sanitaire dês travailleurs en Grande-Bretagne; de Marshal,A. Príncipes d’economie politique; ou de Thünen, J.H.von L’etat isolé.

8. Tomando o exemplo francês, basta lembrar a Société française detempérance, organizada em 1873, para atuar contra o alcoolismo; aSociété protectrice de l’enfance, organizada em 1865, militando pelaalimentação com leite materno; ou o Comitê de défense contre la tu-berculose, criado em 1896.

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9. Veja-se, especialmente, a obra de Leavell e Clark (1976).

10. Modelo adotado, por exemplo, na Constituição Federal brasileirade 1988 (art.195).

11. Considere-se, por exemplo, os investimentos dos Estados contem-porâneos na luta antitabagista.

12. Com esse objetivo o Primeiro Ministro francês encomendou aosprofessores Geneviève Viney e Philippe Kourilsky um estudo paradefinir a posição da França no quadro das discussões sobre a aplica-ção do princípio de precaução no seio da Organização Mundial doComércio.

13. François Ewald, um dos mais respeitados autores da teoria do ris-co, vem trabalhando no tema nos últimos anos.

14. Veja-se a esse respeito a excelente obra de Morelle (1996), espe-cialmente o capítulo dedicado à responsabilidade.

15. Tal é a integra de uma recomendação, para ficar no exemplo fran-cês, do estudo citado: “Um esforço particular deverá ser feito em fa-vor do ensino da saúde pública (que deverá imperativamente ser prati-cado nas escolas especializadas e não apenas nas faculdades de Medi-cina) e de todas as medidas permitindo desenvolver na França umaverdadeira cultura de saúde pública” (Kourisky e Viney, 2000:221).

16. No mesmo período, os legisladores norte-americanos introduziramesse princípio de maneira informal na maior parte das leis relativas aomeio ambiente.

17. Para análise completa do emprego do princípio da precaução naEuropa, ver Comissão Européia.

18. Para um estudo preliminar, ver Paulo Affonso Leme Machado,“Direito ambiental e princípio da precaução”, <www.merconet.com.br/direito/1direito.htm>.

19. “Em certos casos, face à incerteza científica, a relação de causali-dade é presumida com o objetivo de evitar a ocorrência de dano. En-tão, uma aplicação estrita do princípio da precaução inverte o ônusnormal da prova e impõe ao autor potencial provar, com anteriorida-de, que sua ação não causará danos ao meio ambiente” (Justiça Fede-ral, 1999:40).

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PRINCÍPIOS E DIREITOS FUNDAMENTAISNO TRABALHO NA AMÉRICA LATINA

Resumo: Este artigo desenvolveu-se em torno de dois objetivos: apresentar as características primordiais dasreformas laborais na América Latina; e indicar as características do mercado de trabalho contemporâneo, e osdesafios para promover e institucionalizar direitos fundamentais, a fim de evitar a deterioração das condiçõesde trabalho e renda para parte expressiva da força de trabalho.Palavras-chave: política pública; trabalho na América Latina; direitos sociais.

Abstract: This article has dual objectives: presenting the main characteristics of Latin American labor reform,and describing the current state of the labor market and the challenges of promoting and institutionalizingbasic rights, in order to safeguard a large segment of the labor force from a deterioration in conditions andsliding wages.Key words: public policy; labor in Latin America; social rights.

MARIA CRISTINA CACCIAMALI

liberalização do comércio reascende o debate so-bre a promoção de padrões mínimos laborais. Osinteresses suscitados por essa questão confrontam-

sários dos países em desenvolvimento. Na prática, paraestes últimos, os padrões mínimos representam aumentodos custos do trabalho e, principalmente, uma restriçãoadicional para suas exportações, visto que qualquer de-núncia de infração implicaria em sanções comerciais,multas e/ou paralisação temporária das exportações, o querestringiria o desenvolvimento de seu sistema comercial.

Os circuitos de informação, por outro lado, difundema implementação de programas de defesa dos direitos hu-manos por iniciativa de instituições internacionais quecompõem a Organização das Nações Unidas (ONU). Essadisseminação influencia mudanças de valores, ações po-líticas e políticas públicas em escala planetária, e tambémna definição e adoção de padrões mínimos trabalhistas.Estes últimos, sob a orientação da Organização Internacio-nal do Trabalho (OIT), são apresentados e passam a sercompreendidos como direitos humanos.1

A Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamen-tais no Trabalho foi adotada na Conferência Internacionaldo Trabalho da OIT em 18 de junho de 1998, 50 anos depoisda Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, edesenvolve os direitos humanos compreendidos na área decompetência da OIT, que adicionalmente também compõem

se principalmente em dois fóruns: relações comerciais inter-nacionais e defesa dos direitos humanos, embora essa pro-blemática, suas repercussões e decorrências transcendamesses dois âmbitos, pois intervêm na legislação e nas práti-cas laborais de cada país envolvido, além de introduziremnovos valores e regras de funcionamento em adição às ca-racterísticas de seus mercados de trabalho.

A expansão do comércio entre as nações insere o temana definição de suas regras multilaterais na OrganizaçãoMundial do Comércio (OMC), sob a denominação de cláu-sula social. Caso determinadas normas laborais sejamaprovadas, obrigarão as partes a cumpri-las, sob pena desanções legais – multas e suspensão de exportações. Ainclusão de direitos trabalhistas nas relações comerciaisinternacionais transformou-se em proposta política quedivide os países em uma perspectiva norte-sul. Os gover-nos dos países industrializados, com o apoio do setorempresarial e dos sindicatos, lideram a demanda de ele-var internacionalmente os padrões mínimos trabalhistas,defrontando-se com a resistência dos governos e empre-

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a agenda da OMC. São quatro princípios que regem os direi-tos fundamentais, a saber: i) livre associação e reconheci-mento do direito de negociação coletiva; ii) eliminação detodas as formas de trabalho forçado; iii) efetiva abolição detrabalho infantil; e iv) eliminação da discriminação com re-lação ao emprego e à ocupação. Esses princípios constituemuma base mínima universal de direitos do trabalho para to-dos os países membros, independente de sua ratificação dasconvenções pertinentes.2 O acompanhamento das medidastomadas e dos avanços sobre seu cumprimento é realizadopor meio de relatórios anuais encaminhados pelos governos,empregadores, trabalhadores, ou em conjunto à OIT. Essainstituição, por sua vez, disponibiliza assistência técnica eoutras formas de apoio para sua promoção e implementação.

Os países em desenvolvimento, embora apresentem re-sistência em acordar formalmente quaisquer dos itens inte-grantes da cláusula social, em virtude das possíveis sançõese potenciais prejuízos comerciais, estão avançando na acei-tação e implementação dos quatro princípios e direitos fun-damentais no trabalho. Indicadores, retirados de documen-tos oficiais da OIT, evidenciam essa evolução positiva: váriosgovernos manifestam a intenção de ratificar com a OIT umaou mais convenções pertinentes; o número de governos queinformam sua situação e as medidas tomadas em relação aessa matéria vem aumentando (67% do total dos relatóriosdevidos); a base de informações tem sido aprimorada; assimcomo há maior envolvimento efetivo na implementação demedidas por parte de associações de empregadores e traba-lhadores, e de ONGs. Ademais, verifica-se tendência ascen-dente em quase todos os países de mudar as constituições eoutras legislações, e formular programas e medidas para pos-sibilitar sua implementação, até entre os países mais pobresda África e da Ásia (ILO, 2001).

Os quatro princípios são encadeados com o objetivode reforçarem-se, entretanto, o princípio da livre associa-ção e reconhecimento do direito de negociação coletivatem sido reconhecido na literatura especializada como umelemento importante para implementar os demais (ILO,2001; OECD, 2000). Trabalhadores na agricultura, noserviço doméstico, imigrantes, os inseridos em pequenasempresas e no setor informal3 não são contemplados, emmuitos países, pela legislação laboral e da seguridade so-cial e encontram-se excluídos tanto dos direitos trabalhistasderivados da operacionalização dos princípios, quanto dapossibilidade de participarem e serem beneficiados pelasnegociações coletivas.

O ambiente econômico contemporâneo, por outro lado,configura um tipo de mercado de trabalho no qual um dos

traços marcantes é o aumento da insegurança laboral, sub-jetiva e objetiva.4 Essa insegurança deriva tanto do me-nor ritmo de crescimento econômico e conseqüente me-nor criação de oportunidades de emprego, como dasmudanças institucionais implementadas para atender às ne-cessidades da flexibilidade laboral, e aquelas origináriasdas mudanças tecnológicas e da reestruturação produtiva,como, por exemplo, aumento do desemprego, mudança noconteúdo das ocupações e maior necessidade de manter aempregabilidade, entre outras.

Assim, o aprofundamento do processo de internacio-nalização das economias, e das próprias sociedades, latino-americanas decorrente da maior liberalização comercial, in-duz um conjunto de desafios, nos campos da políticatrabalhista e da política social, para promover o progressosocial e a distribuição de renda paulatinamente ao aumentoda riqueza.

Este trabalho foi desenvolvido para produzir subsídios parao debate e a construção de um quadro de referênciamacrossocial para analisar e delinear políticas públicas nocampo social e trabalhista na América Latina, sem a preten-são de abordar ou exaurir todas as suas dimensões. O recortede análise privilegiou dois objetivos específicos. O primei-ro, elaborado na primeira seção, é apresentar as característi-cas primordiais das reformas laborais nos países da região,paulatinamente à perda de representatividade dos sindica-tos, à maior flexibilização das relações de trabalho e ao avançodo processo de informalidade no mercado de trabalho,5 noqual, entre as suas principais características, pode ser desta-cada a diminuição da cobertura da seguridade social públi-ca. Este objeto foi selecionado pela importância dos sindi-catos e das negociações coletivas nas ações para implementaros direitos fundamentais no trabalho. O segundo objetivo es-pecífico, discutido na seção seguinte, analisa as característi-cas do mercado de trabalho contemporâneo, e os desafiospara promover e institucionalizar práticas e direitos traba-lhistas nesse contexto. Destacamos, nesse âmbito, a necessi-dade de desenvolver abordagens sociais e econômicas nosníveis meso e micro para superar as limitações da menor taxade crescimento econômico e do emprego, impostos pelo com-portamento e pelas características dos mercados de traba-lho, e pelo quadro e política macroeconômicos.

REFORMAS LABORAIS E INFORMALIDADE NOMERCADO DE TRABALHO

Na América Latina a adoção de regimes democráticosem quase todos os países e a ratificação dos convênios de

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nos 87 e 98 da OIT influenciam as reformas laborais quesão implementadas na maioria dos países, a partir dos anos90. As mudanças orientam-se no que se refere às relaçõescoletivas do trabalho assalariado na direção de maior au-tonomia, e de descentralização das negociações. Dessemodo, entre as modificações introduzidas salientam-se:supressão de normas restritivas ao direito de associação;simplificação dos procedimentos burocráticos para orga-nizar um sindicato; e ampliação do direito de sindica-lização a categorias de trabalhadores que não tinhamacesso, como, agricultores, funcionários públicos, traba-lhadores eventuais ou autônomos. Nesse mesmo sentido,a maioria dos países introduz em suas legislações traba-lhistas dispositivos com intuito de promover as negocia-ções coletivas, como por exemplo: ampliação do númerode itens a serem negociados; prevalência da convençãocoletiva sobre o contrato individual; obrigatoriedade denegociação coletiva por meio de sindicatos; obriga-toriedade de contribuição aos beneficiários de uma con-venção coletiva que não são sindicalizados; e a negociaçãoda flexibilização de componentes do contrato indivi-dual de trabalho.

A despeito das mudanças da legislação, os sindicatos namaioria dos países da América Latina possuem pouco poderde barganha e baixo índice de filiação. A baixa taxa de cres-cimento econômico, que vem acompanhando a liberalizaçãodo comércio, aumenta a desorganização dos mercados de tra-balho que pode ser caracterizada pelo aumento das taxas dedesemprego, maior grau de informalidade e mudanças emsuas formas de expressão (Cacciamali, 2000). Em muitos paí-ses a elevada participação dos trabalhadores em pequenas emédias empresas e a perda da importância das negociaçõessetoriais em face da descentralização favorecem a negocia-ção por empresa e debilitam a organização e o poder de bar-ganha dos sindicatos. A descentralização das negociações,se bem que pode favorecer o diálogo entre as partes e permi-tir alcançar de forma mais veloz a solução de problemas es-pecíficos do local do trabalho,6 aumenta ainda mais aassimetria do poder de barganha relativa ao empregador, emespecial em uma estrutura de produção de pequenos e mé-dios estabelecimentos e em um mercado de trabalho com ele-vadas taxas de desemprego. Peru e Argentina, por exemplo,descentralizam a negociação coletiva, e no segundo país, ogoverno promulga uma legislação específica para a pequenae média empresa, na qual por cláusula de contrato coletivopermite ao empregador, entre outras, contratar trabalhado-res por tempo determinado, diminuir período de férias,redefinir postos, atividades e funções de trabalho.

Além disso, acompanhando as tendências observadas nospaíses industrializados, embora com velocidade menor, asnegociações e os contratos coletivos implementados nãoapenas nos setores mais dinâmicos da economia, mas tam-bém no segmento pequeno e médio, como na Argentina, vêmsendo um dos principais instrumentos para flexibilizar rela-ções de trabalho, e reduzir na prática os direitos trabalhis-tas.7 Há registros de que a jornada de trabalho padrão, porexemplo, é substituída, em quase todos os países, por arran-jos que consideram diferentes sistemas de compensação –anualizadas ou por contagem mensal ou semanal, limitando-se a jornada diária em geral para 10 horas –, diminuindo autilização das horas extras e seu sistema de remuneraçãoadicional. Na Argentina, Brasil e Uruguai, as negociaçõescoletivas introduzem a prática cada vez mais freqüente decompor a remuneração total do trabalhador pelo salário adi-cionado de uma parcela variável determinada por indicado-res vinculados ao desempenho da empresa, como participa-ção nos lucros, produtividade, diminuição de custos, índicede qualidade, etc. (Dieese, 1999; Toledo, 1997; Hirata, 1999;Marión e Vega, 2000).

Os contratos individuais de trabalho, por sua vez, tam-bém são modificados por meio de legislações que ratifi-cam a flexibilização das relações de trabalho e a reduçãode seu custo. Estudo recente contemplando 18 países lati-no-americanos indica que a maioria dos países da regiãoadotou mudanças no contrato individual de trabalho, in-troduzindo contratos por tempo determinado, diferentesformas de subcontratação, extensão do período de expe-riência, ampliação dos motivos que permitem, e simplifi-cam, os procedimentos para a dispensa injustificada e re-dução das indenizações (Marión e Vega, 2000).

Os contratos por tempo determinado8 reduzem os be-nefícios do trabalhador com relação à seguridade social,em virtude do tempo descontínuo de contribuição. Alémdisso, em alguns países, esses contratos foram formula-dos prevendo menores contribuições por parte dos empre-gadores e diminuindo a abrangência dos direitos sociais ebenefícios. O resultado é o estabelecimento de dois tiposde trabalhadores: aqueles com abrangência plena dos di-reitos sociais, subdivididos ainda por categorias de traba-lhadores de acordo com regimes previdenciários especiais;e aqueles com abrangência limitada. Nesses termos, nãorestringir a utilização dessa modalidade de contrato paraum percentual de novos empregos ou defini-los apenas paraa fase inicial do ciclo de vida profissional, por exemplo,jovens ou primeiro emprego, constitui um fator adicionalpara a não-contribuição ao sistema de seguridade social e

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pode ter conseqüências sobre o nível de renda e a quali-dade de vida das camadas populares, ampliando os índi-ces de pobreza. As cooperativas de trabalhadores tambémrepresentam uma expressão freqüente de subcontrataçãode produtos e serviços no Peru e Brasil, por exemplo. Essaforma de terceirização não considera os sócios de umacooperativa como empregados assalariados, portanto nãohá regra jurídica explícita que caracterize o vínculo desubordinação e continuidade entre empregador e empre-gado. Dessa maneira, os trabalhadores inseridos nessarelação de trabalho não se encontram incorporados nemao sistema sindical, nem ao da seguridade social, e nãopossuem algum direito trabalhista, como salário mínimoda categoria profissional, proteção contra enfermidade oudoença profissional, férias, horas extras, entre outros.

Uma das justificativas recorrente dos governos e repre-sentantes dos interesses empresariais para alterar as legisla-

ções trabalhistas nesta direção é a de diminuir o grau deinformalidade do mercado de trabalho, incorporando maiornúmero de trabalhadores ao sistema de seguridade social. Essatendência, entretanto, não vêm ocorrendo em vários paísesda região, como Brasil e Argentina, por exemplo (Tokman eMártinez, 1999; Cacciamali, 2000).9 A não-contribuição àseguridade social, além disso, foi agravada pela expansãodo setor informal, pois uma das conseqüências das menorestaxas de crescimento econômico, da reorganização do espa-ço e da estrutura produtiva e da concentração da renda naAmérica Latina é a ampliação do espaço econômico para aocupação no setor informal.10 Entre as economias mais im-portantes da América Latina, ao final da década de 1990,segundo estatísticas oficiais – em geral subestimadas pelacomplexidade e difícil mensuração do fenômeno –, quasemetade dos ocupados exerce seu trabalho nesse setor, excetoChile e México que apresentam níveis em torno de 40%. Adeterioração institucional do mercado de trabalho na maio-ria dos países latino-americanos vem acarretando a diminui-ção da cobertura da seguridade social pública que alcança,nesse mesmo período, cerca de dois terços do total dos ocu-pados dos setores público e privado, exceto no Chile onde opercentual atinge 77% (Tabela 1).

Ao excluirmos do total de ocupados aqueles que se en-contram no setor público, o grau de cobertura pode ser me-nor. No Brasil, por exemplo, considerando apenas os ocupa-dos do setor privado, o número de contribuintes em 1999alcança o percentual de 46%. Esse indicador, contudo, es-conde diferenças significativas entre regiões e Estados, e entrecategorias de posição na ocupação. Nas regiões Norte eNordeste, por exemplo, o grau de cobertura é de 27% e 29%,respectivamente (Tabela 2). Entre os assalariados do setorprivado, o grau de cobertura da legislação trabalhista e

TABELA 1

Ocupados no Setor Informal e Contribuintes ao Sistema Público deSeguridade Social, segundo Países Selecionados

América Latina – 1990-1998

Países SelecionadosSetor Informal Contribuição ao SSP

1990 1998 1990 1998

Argentina 52,9 49,3 61,9 57,5

Brasil 40,6 47,1 74,0 67,0

Chile 37,9 37,5 79,9 77,4

Colômbia 45,7 49,0 62,6 67,1

México 38,4 40,1 58,5 69,9

Peru 52,7 53,7 53,6 56,0

Venezuela 38,6 49,1 70,6 66,4

Fonte: Elaborada pela autora com base na OIT (2000a).

TABELA 2

Não-Contribuição e Indicadores Selecionados, segundo RegiõesBrasil – 1999

Coeficiente de Coeficiente de Coeficiente de Participação Renda MédiaRegiões Não-contribuição Não-contribuintes Empregados PEA Agrícola Total de Ocupados

(por 100 reais) (%) Sem Registro (%) (R$)

Brasil 66,98 53,56 0,63 23,00 445,00

Nordeste 132,85 73,29 1,32 40,00 326,00

Sul 51,87 43,45 0,41 25,00 571,00

Centro-Oeste 110,21 60,93 0,89 20,00 563,00

Sudeste 53,74 43,38 0,46 14,00 635,00

Norte (1) 142,48 70,55 1,24 (2) ... 433,00

Fonte: Cacciamali, 2001.(1) Exclui a população residente da região.(2) Dado não disponível.

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previdenciária chega a atingir 59% e 54% nas regiões Sul eSudeste, entretanto, na região Nordeste para cada 100 assa-lariados com carteira assinada no setor privado, 132 traba-lham sem registro, e na região Norte essa relação é de 124.A cobertura nas demais formas de inserção no trabalho é aindamais limitada. Entre os empregados domésticos da regiãoNorte, estima-se que o grau de cobertura seja de 7% e entreos trabalhadores por conta própria e empregadores da regiãoNordeste a incidência é próxima de 11% (Cacciamali, 2001).Estima-se, na média brasileira, que para cada 100 reais decontribuição, 67 não sejam pagos. Esse comportamento di-fere substancialmente entre regiões (Tabela 2). A diferençaentre os Estados, conseqüentemente, também é bastante ele-vada, por exemplo, considerando-se as situações extremas,estima-se que no Tocantins e no Maranhão para cada R$100,00 de contribuição, R$ 217,00 não sejam pagos; enquantonos Estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio deJaneiro e São Paulo essa relação é de R$ 100,00 para res-pectivamente R$ 43,00, R$ 47,00 e R$ 49,00 para os doisúltimos Estados11 (Cacciamali, 2001).

A impossibilidade de poder contar com uma atuaçãomais efetiva do movimento sindical na América Latina paraimplementar direitos trabalhistas, a deterioração institu-cional e a crescente insegurança percebidas no mercadode trabalho da região remete à necessidade de avaliar ascaracterísticas, o comportamento e as condições de repro-dução desse mercado de uma forma mais abrangente. Esteé o objetivo da próxima seção, que em primeiro lugar ana-lisa características do mercado de trabalho contemporâ-neo e em segundo lugar propõe quatro eixos de análisepara discutir a formulação de políticas públicas que criemum ambiente favorável para a promoção dos direitos fun-damentais no trabalho.

CARACTERÍSTICAS DO MERCADO DETRABALHO E DESAFIOS INSTITUCIONAIS

A mudança do padrão de acumulação nas sociedadescontemporâneas, desde os anos 70, apresenta um conjun-to de características que induzem profundas modificaçõesno mercado de trabalho, entre as quais, apresentamos, deforma estilizada, as mais importantes:- os resultados da política macroeconômica que apóia aexpansão comercial mundialmente mostram, para a maio-ria dos países da América Latina, menores taxas de cres-cimento econômico e menores oportunidades de empre-go, refletindo-se em maiores taxas de desemprego esubemprego. A maioria dos países industrializados tam-

bém apresenta desempenho similar; na expressão de Rodrik(1997:11) esse modelo não tem sido capaz de produzir“nem nos Estados Unidos nem na Europa crescimento sus-tentado de ‘bons empregos’”. Nos Estados Unidos, a pau-ta do debate sobre o tema compreende a importância daabertura comercial na ampliação do diferencial de salárioentre mais qualificados (universitários) e menos qualifi-cados (diplomados até o segundo grau); a maior desigual-dade salarial entre os trabalhadores qualificados, e a de-corrente ampliação na desigualdade da distribuição derenda; e a maior instabilidade da demanda de trabalho,ocasionando volatilidade de rendimento e de horas traba-lhadas (Rodrik, 1997; Katz e Revenga, 1989). Na Euro-pa, dominam esse debate: o alto nível de desemprego; ocrescimento de empregos flexíveis; e o aumento do graude insegurança laboral (Freyssinet et alii, 2000; Rodgerse Rodgers, 1989; Standing, 2000). Enquanto na AméricaLatina, discutem-se a ampliação do desemprego; o aumentodo emprego no setor informal, no serviço doméstico e emempregos sem contrato de trabalho registrado (León, 1999;Baltar et alii, 1996; Cacciamali, 1999 e 2000).

- a liberalização comercial acompanha processos dereestruturação produtiva que em geral implicam mudan-ças tecnológicas mais intensivas em capital, mudanças naestrutura ocupacional e no conteúdo das ocupações. Es-tas mudanças tecnológicas poupadoras de trabalho sãointroduzidas em um ambiente de menor crescimento eco-nômico o que vem a ratificar a menor criação de empre-gos. Tecnologia intensiva em capital e mão-de-obra qua-lificada, por outro lado, são geralmente complementaresna estrutura produtiva, fato que aumenta a demanda detrabalho por mão-de-obra qualificada e o diferencial desalários em favor desse tipo de mão-de-obra (Bound eJohnson, 1992; Krueger, 1993);

- a liberalização do comércio e maior grau de concor-rência intercapitalista ratificam não só as mudanças dosmétodos de produção e dos processos de trabalho, comotambém introduzem relações de trabalho compatíveiscom as necessidades de redução de custos. Entre asprincipais modificações devem ser destacados: rompi-mento do vínculo entre o aumento dos salários e o au-mento da produtividade; maior intensidade do trabalho;maior subcontratação; menor estabilidade na maioriados empregos e menor abrangência da proteção socialpública (Cacciamali, 2001);

- a maior integração dos mercados de produtos e serviçosdomésticos à economia mundial, além de diminuir mar-

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gens de lucro, elevam a elasticidade de preço da demandados bens e a elasticidade da oferta de todos os fatores deprodução, mesmo aquela da oferta do fator trabalho, pos-sibilitando a substituição entre categorias de mão-de-obrae entre o fator trabalho e outros fatores de produção. Es-ses comportamentos, seguindo as Leis Hicks-Marshall dademanda derivada, aumentam a elasticidade da demandade trabalho, restringindo tanto os aumentos dos custos di-retos e indiretos do trabalho, como retirando poder de bar-ganha dos sindicatos;

- o aumento da elasticidade da demanda de trabalho, comintensidade diversa entre os diferentes setores da econo-mia, contribui para a fragmentação do poder sindical ereordena as reivindicações trabalhistas para interessescorporativos, diminuindo a importância de demandas uni-versais, conforme observa-se no movimento sindical dediferentes países da América Latina.

Esses aspectos introduzem um conjunto de desafiosteóricos, políticos e institucionais para definir padrões tra-balhistas e políticas públicas. Focalizando a região lati-no-americana, a superação desses desafios exige mudan-ças institucionais que compreendem o fortalecimento deenfoques meso e microeconômicos, tendo em vista a difi-culdade de articular interesses e recursos para as ações depolíticas públicas nesses níveis. Entre aqueles que julga-mos importante destacar, selecionamos quatro eixos deanálise que são expostos a seguir.

Definir Políticas de Emprego emum Ambiente de Maior Competitividade

Aumentar investimentos, retirando obstáculos institu-cionais e realizando articulações políticas para suaimplementação, propicia aumento na taxa de crescimentoeconômico e nas oportunidades de emprego. Esta é a ala-vanca do desenvolvimento econômico. A liberalização daseconomias e sua maior integração à economia mundial nãogarantem maiores investimentos diretos estrangeiros nemdomésticos (Rodrik, 1999). Desse modo, para os paíseslatino-americanos, manter as condições de estabilidade daeconomia e ajustar o déficit público, e conseqüente me-nor dependência de financiamento externo, abre espaçopara a redução das taxas de juros domésticas, ampliandoas possibilidades de investimento e de promoção ao aces-so ao crédito. Entretanto, além dessa estratégia macroeco-nômica, a articulação política entre governo e empresá-rios para criar e manter a infra-estrutura necessária e

promover o acesso ao crédito depende de arranjos e me-canismos institucionais eficazes para sua consecução. Umquadro macroeconômico consistente com os fundamen-tos econômicos e o funcionamento do mercado por si sónão são suficientes para atrair os investimentos requeri-dos para dinamizar as economias. A política pública e asações do governo são essenciais para estabelecer uma es-tratégia de investimento que deve compreender não ape-nas a implementação de uma estrutura tributária adequa-da e a formulação de políticas substitutivas de importaçõesorientadas para a exportação (redução das tarifas para aimportação de bens de capital e indução de investimentosem infra-estrutura, por exemplo), como também a trans-parência dos mecanismos utilizados e a redução de obstá-culos burocráticos e administrativos. Medidas para am-pliar os mercados domésticos também são essenciais paraos países latino-americanos que têm elevado grau de con-centração da renda, que podem ser corroboradas median-te o próprio crescimento econômico, embora a manuten-ção da estabilidade de preços e a implementação depolíticas redistributivas constituam-se em pré-requisitos.

Esses objetivos são permeados por fortes interessespolíticos e econômicos – setoriais, regionais e internacio-nais –, e procurar atingi-los muitas vezes resulta em in-consistência a curto prazo; algumas metas, além disso,podem ser atingidas de forma significativa apenas em pra-zos mais longos, como a redistribuição da renda e o au-mento sistêmico da produtividade. O desempenhoeconômico pode ser satisfatório, sob a óptica de seus fun-damentos, os resultados sociais, entretanto, podem dei-xar a desejar, sobretudo quando se trata da inclusão aosbenefícios do crescimento econômico de determinadosgrupos étnicos, setores ou regiões.

Portanto, a política macroeconômica não pode deixarde ser complementada por meio de abordagens meso emicro que se concretizam mediante políticas de desenvol-vimento regional/local e setoriais. Estas são instrumentoseficientes no diagnóstico de oportunidades econômicas eeficazes na articulação de interesses políticos e econômi-cos, além de, quando implementadas, diminuir desperdí-cios e ampliar os efeitos multiplicadores das iniciativas,caso sejam aplicados mecanismos de transparência e decontrole social. Adicionalmente, podem ser criados arran-jos institucionais factíveis para investimentos e o cresci-mento de segmentos pouco integrados aos sistemas de ino-vação tecnológica e de crédito. O caso das pequenas emédias empresas é paradigmático. O aumento do nível derenda amplia o mercado e o potencial de fortalecimento

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para esse segmento, entretanto, seu acesso ao sistema decrédito é limitado em virtude de sua lógica intrínseca deaversão ao risco, que requer garantias reais para o cum-primento dos contratos. Muitas das limitações de créditoa esse segmento decorrem da ausência dessas garantiaspor parte do demandante do empréstimo, e/ou da assimetriade informação entre as partes envolvidas na transação: odemandante do empréstimo pode avaliar de forma maisadequada às suas possibilidades de cumprir o contrato doque o credor; o credor, por sua vez, defronta-se com pro-blemas decorrentes de seleção adversa ou de risco moral.Nesse sentido, a criação de mecanismos e instituições demicro crédito focalizados nessa problemática e tipo declientela, e o desenvolvimento de metodologias e sua apli-cação podem incorporar maior número de empreendimen-tos e empreendedores ao processo de crescimento. Paratanto, programas de desenvolvimento e redes de créditolocais (ONGs, Bancos populares, ou Departamentos so-ciais em bancos privados ou públicos), integrados a pro-gramas de desenvolvimento local ou setorial podem per-mitir o acesso ao crédito e amplificar os benefícios docrescimento econômico, além de poder, inclusive, dimi-nuir os efeitos da instabilidade da demanda ou do menorritmo do crescimento econômico sobre os níveis de em-prego e renda.

Estratégias de Produtividade e Relações de Trabalho

A utilização de empregos flexíveis12 possui pelo me-nos dois atributos para as empresas no cenário contempo-râneo: diminui os custos – diretos e indiretos – do traba-lho; e permite com maior velocidade o ajustamento doemprego em um ambiente caracterizado por mercados maiscompetitivos e com maior flutuação de demanda. A redu-ção dos custos nesses tipos de contrato pode ser auferidapelos menores custos diretos envolvidos na transação (re-muneração total: salários, outros benefícios; diminuiçãode alíquotas à contribuição social; menor indenização noato da dispensa) e pela redução dos custos indiretos (me-nores custos de recrutamento, seleção, treinamento e per-da do treinamento no ato da dispensa). No limite, a redu-ção dos custos indiretos concretiza-se com práticas desubcontratação, nas quais uma relação de trabalho, subor-dinada aos estatutos trabalhistas (códigos, regras e tribu-tos), é transferida para uma relação comercial, sujeita aosestatutos comercial e civil. Na maioria dos países latino-americanos, conforme já exposto, as reformas laborais têmcorroborado esses aspectos, destacando-se o caso do Brasil

que na modalidade de contrato por tempo determinado nãoaltera as alíquotas da contribuição social. O segundo atri-buto salientado, o ajustamento do emprego, decorre doanterior: a diminuição dos custos do trabalho, bem comoda pequena institucionalidade dos contratos de trabalho.Ele pode ser efetuado em duas dimensões: numérica (ho-ras e número de empregados) e qualitativa (intensidadedo trabalho, mudança de atividades e funções, e exigên-cia de habilidades e qualificações).

A despeito desses fatos, vasta literatura especializada foiproduzida para demonstrar que a falta de experiência e decompromisso dos trabalhadores podem diminuir os níveis deprodutividade e a qualidade dos serviços prestados, compro-metendo o desempenho da empresa, especialmente nos mé-dio e longo prazos (Akerloff e Yellen, 1986 e 1990; OIT,1997). Seja como for, a definição de estratégias de produti-vidade deve considerar a formulação de normas laborais econtratos coletivos que objetivem propiciar maior estabili-dade aos trabalhadores, investimento nas pessoas e sistemasde remuneração que promovam a produtividade e a qualida-de, como, por exemplo: adicionais por desempenho, pormérito, além de obedecer a critérios de justiça salarial.13 Maiortransparência dos mecanismos e dos resultados das negocia-ções coletivas referentes às empresas que praticam de formapermanente a subcontratação, e a extensão de uma formaplanejada de determinados benefícios alcançados para os tra-balhadores das empresas subcontratadas podem diminuir asdiferenças nas condições de trabalho e de remuneração, en-tre trabalhadores permanentes e terceirizados. Convém des-tacar que a desigualdade pode ser diminuída, por meio doaumento da produtividade nas seguintes situações: estabili-dade no emprego; aquisição de treinamento e de hábitos ade-quados para o exercício do trabalho; e prevenção e diminui-ção dos riscos no campo da saúde e segurança do trabalho.

Promover Instituições que Objetivam Fortalecer oProgresso Social: o Sistema de Seguridade Social

Atingir essa meta compreende, além da adesão dospaíses às normas fundamentais do trabalho, o seu cumpri-mento, o que implica aumento dos custos do trabalho erealocação ou aumento do gasto público para aumentar aeficácia da fiscalização. Além disso, a política pública deveorientar-se para o desenvolvimento da consciência cole-tiva e manter e ampliar espaços para que sindicatos e ou-tras organizações da sociedade civil constituam-se em su-porte à transparência e à fiscalização. A banalização donão-cumprimento das leis conduz a comportamentos opor-

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tunistas, à quebra de laços de solidariedade social, provo-cam a erosão da autoridade do Estado e à perda de receitapara fazer frente aos investimentos sociais, gastos daseguridade e assistência social. Dessa maneira, os traba-lhadores que exercem seu trabalho assalariado ou sua ati-vidade por conta própria ou como microempresário à mar-gem da legislação laboral14 devem ser incorporados aosistema de seguridade social.

Essa proposição encerra uma contradição para a açãoda política pública pela óptica macroeconômica, pois emum ambiente de liberalização comercial com fortes desa-justes macroeconômicos, aumentos de custos de produ-ção e dos serviços governamentais, aumentariam aindamais o desajuste das contas públicas, além de poder pro-vocar inflação. Entretanto, um enfoque meso ou micro-econômico aponta possibilidades para ampliar a abran-gência da cobertura da seguridade social por meio doaumento da eficiência e eficácia do sistema. A reduzidacontribuição à seguridade social pública nos países em de-senvolvimento, conforme apontado pela literatura espe-cializada, deve ser remetida em primeiro lugar à pobreza,entretanto o desenho institucional do sistema também podeser considerado inadequado diante de características damaioria da população (Mesa Lago, 1994; Ginneken, 2000).Um conjunto de restrições pode ser removido com o ob-jetivo de ampliar a cobertura, como por exemplo:- diminuir as alíquotas de contribuição. No Brasil, porexemplo, a contribuição para os trabalhadores por contaprópria é da ordem de 20% de sua renda;

- simplificar os registros, e remover dificuldades burocrá-ticas e administrativas para cadastramento e inscrição;

- ampliar as informações sobre os objetivos e funciona-mento do sistema, aumentando a confiança e alterando ocomportamento da população mais pobre que privilegia ouso de sua renda limitada para bens e serviços destinadosà sua sobrevivência imediata;15 e

- modernizar, manter a continuidade e melhorar a quali-dade dos serviços prestados.

O sistema foi implementado referenciado a um conjunto decaracterísticas demográficas e do mercado de trabalho quenão correspondem à situação atual. Exemplos dessa situa-ção, conforme exposto anteriormente, são a maior propor-ção de ocupados no setor informal – por conta própria,microempresários e no serviço doméstico – e de assalaria-dos na informalidade, que pode chegar a representar nospaíses latino-americanos pouco mais da metade do total deocupados. Essa composição de formas de trabalho, atomizada

em excesso, aumenta o custo e dificulta a fiscalização, salvoimplementação de reformas administrativas. Como conse-qüência, o sistema, além de mostrar sinais de esgotamento,apresenta ineficiência e crescentes problemas financeiros quequestionam sua sustentabilidade, exigindo reestruturação.

Eqüidade, Desenvolvimento Humano ePolíticas Sociais

Os países latino-americanos mostram índices de desen-volvimento humano insatisfatórios, bem como elevadosíndices de pobreza e de desigualdade na distribuição derenda. Deve-se levar em conta que os indicadores expos-tos na Tabela 3 referem-se à média nacional, portanto nãorevelam disparidades regionais ou entre grupos étnicos oude gênero. O indicador de pobreza pode estar subestima-do, visto as condições macroeconômicas ou sociais terempiorado nos últimos dois anos, em quase todos os paísesda região. Além disso, a cobertura da educação formal nãocapta nem o analfabetismo funcional ou a evasão ao siste-ma escolar. Não se encontram disponíveis para a regiãoindicadores de desigualdade por gênero ou etnia, entre-tanto, há uma tradição de atribuir posições sociais subal-ternas às mulheres e populações não brancas, bem comoelevado grau de desigualdade social e econômica entre aspopulações branca, negra e autóctone.16

Atingir melhor desempenho social requer – além demanter adequado ambiente macroeconômico para buscaro desenvolvimento sustentável – políticas sociais persis-tentes com base na definição de prioridades nacionais eimplementadas de acordo com critérios retirados de pro-gramas sociais bem-sucedidos em diferentes países, quese citará a seguir:- coordenação para evitar duplicação de esforços e des-perdício de recursos;

- boa focalização;

- de forma descentralizada e local;

- envolvimento de atores locais e maior interação entrediferentes atores e parceiros sociais;

- concentração dos recursos nas atividades fins, minimi-zando despesas administrativas;

- contar com monitoramento e avaliação de seu impacto eefetividade, bem como dependendo do tipo de política,como por exemplo microcrédito, sustentabilidade;

- ademais, as ações que utilizam metodologia com aborda-gens integrais mostram resultados superiores (ILO 2001).

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Essa orientação fortalece os atores sociais e aprofundao processo democrático por meio da promoção ou da cria-ção do diálogo social. Nesse sentido, desde 1990, váriosgovernos de países da América Latina, no qual se destacao Brasil, esboçam e paulatinamente consolidam um novodesenho de política social e trabalhista: descentralizam asações, inserem a participação de organizações da socie-dade civil e articulam órgãos e fundos públicos. Os espa-ços públicos de diálogo social, no Brasil, foram institu-cionalizados nos diferentes campos da política social,como, por exemplo, saúde, educação, infância e adoles-cência, trabalho e assistência social, e nos diferentes ní-veis de governo. Os mecanismos de organização dos inte-resses da comunidade, sua representatividade, as condiçõesefetivas de trabalho dessas comissões e a adoção de polí-ticas integradas mostram-se ainda incipientes, reduzindoa formulação, a transparência e o controle das ações emmuitos municípios e Estados; contudo, resultados positi-vos, inseridos no novo desenho institucional podem serobservados, em especial na contenção dos índices de po-breza, mortalidade infantil, trabalho infantil, bem como,cobertura do sistema escolar público e promoção dacapacitação profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A liberalização do comércio e a maior internacio-nalização das economias, conforme analisado neste tra-balho, impõem na maioria dos países latino-americanosum quadro macroeconômico que conduz a profundas

modificações na atuação dos sindicatos, na definição dasrelações e contratos de trabalho, no sistema de seguridadesocial público, e nas condições concretas sob as quais otrabalho é realizado. Esse contexto reduz as possibilida-des de introduzir e implementar os direitos fundamentaisno trabalho, à medida que lhe elevam os custos. Entretan-to, essa situação pode ser paulatinamente revertida, casoa par de uma política macroeconômica consistente com ocrescimento sustentável, e as políticas econômica e socialsejam orientadas para os níveis meso e macro, por meiode ações de desenvolvimento local e setorial. A elevaçãodo nível de investimento, por exemplo, não pode prescin-dir de uma estratégia de governo que contemple a criaçãode arranjos e mecanismos institucionais para a sua conse-cução, e que envolva aspectos setoriais, regionais e lo-cais. A ampliação do crédito para micro e pequenas empre-sas, conforme já exposto, somente pode ser atingida por meioda criação de novos mecanismos de acesso para superar osobstáculos originários da lógica do próprio mercado de cré-dito. A política trabalhista também requer uma abordagemmeso e micro econômica quando se analisam a ampliação dacobertura da seguridade social e as limitações impostas peloaumento do custo do trabalho e dos gastos governamentaispara aumentar o número de filiações e aprimorar o sistema.As políticas sociais, por sua vez, em razão das restrições derecursos, exigem de forma crescente a aplicação de critériosque otimizem a utilização dos recursos, reduzam as possibi-lidades de fracasso e permitam maior controle social. Essesobjetivos podem ser obtidos de uma forma mais eficaz emnível local.

TABELA 3

Índice de Desenvolvimento Humano e Distribuição de Renda, segundo Países SelecionadosAmérica Latina – 2000

Países SelecionadosIDH EV Aa Tm PIBPC IDDR IP

Ranking (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)

Argentina 34 0,842 73,2 96,7 83 12.277 - 13,1Brasil 69 0,750 67,5 84,9 80 7.037 13,17 24,6Chile 39 0,825 75,2 95,6 78 8.652 11,89 17,8Colômbia 62 0,765 70,9 91,5 73 5.749 10,00 39,5México 51 0,790 72,4 91,1 71 8.297 15,37 31,1Peru 73 0,743 68,5 89,6 80 4.622 19,04 (8) ...Venezuela 61 0,765 72,7 92,3 65 5.495 8,05 42,3

Fonte: PNUD, Relatório de Desenvolvimento Humano 2001. Banco Mundial, Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001 Cepal/2000.(1) IDH = Índice de desenvolvimento humano.(2) EV = Expectativa de vida (em anos).(3) Aa= Adultos alfabetizados.(4) Tm = Taxa de matrícula.(5) PIBPC = PIB per capita PPP.(6) IDDR = Índice de desigualdade na distribuição de renda (+10%/-20%).(7) IP= Índice de Pobreza, percentual de famílias abaixo da linha de pobreza (anos em torno de 1997-98).(8) Dado não disponível.

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PRINCÍPIOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS NO TRABALHO NA AMÉRICA LATINA

NOTAS

A autora agradece Anita Kon (PUC-SP), Christian Azais (Picardie),Maria Regina Nabuco (PUC-MG), Maria de Fátima José-Silva (Unifesp-EPM), Márcio Bobik (USP), Simão Silber (USP) e Paulo Gusmão(Dieese-Prolam/USP) pelos debates empreendidos ao longo da elabo-ração deste texto, ressaltando que as opiniões aqui expressas podemnão coincidir com aquelas manifestadas pelos pesquisadores citados.

1. Especialmente na defesa da abolição do trabalho infantil, integramo sistema da ONU outras organizações, sobretudo as seguintes: Orga-nização das Nações Unidas para Ciência, Educação e Cultura (Unesco),Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico(PNUD) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

2. Liberdade de associação e proteção ao direito de organização, 1948,no 87; Direito de organização e de negociação coletiva, 1949, no 98;Trabalho forçado, 1930, no 29; Abolição do trabalho forçado, 1957, no

105; Igualdade de remuneração, 1951, no 100; Discriminação (empre-go e ocupação), 1958, no 111; Idade mínima (para o trabalho), 1973,no 138; Piores formas de trabalho infantil, 1999, no 182.

3. Adota-se neste, assim como em outros estudos realizados anterior-mente, a definição da OIT sobre setor informal, como se segue: “Theinformal sector is a subset of household enterprises, i.e. unincorporatedenterprises owned and operated by households or household members,either individually or in partnership with others. As opposed tocorporations or quasi-corporations household enterprises are definedin SNA as production units which are not coinstituted as legal entitiesseparate from their owner(s) and which do not have a complete set ofbusiness accounts, including balance sheets of assets and liabilities.Thus, the type of legal organization of the unit and the type of accountskept are the first two criteria of the proposed international definitionof the informal sector” (OIT, 1993:26). Esta definição ganha maiorclareza, em 1997, com a seguinte complementação: “[...] the informalsector has to be defined in terms of characteristics of the productionunits (enterprises) in whcich the activities take place, rather in termsof the characteristics of the persons involved or of their jobs.Accordingly, the population employed in the informal sector wasdefined as comprising all persons, who during a given reference period,were employed in at least one preoduction unit of the informal sector,irrespective of their status of employment and whether it is their mainor secondary job. [...] Persons exlusively employed in production unitsoutside the informal sector are excluded, no matter how precarioustheir employment situation may be. Thus the concept of personsemployed in the informal sector is not identical whith the concept ofpersons employed in the informal employment relationship”(Hussmans, 1997:6-7).

4. Esses termos são utilizados de acordo com Standing (2000).

5. O termo Processo de Informalidade denomina, neste estudo, o pro-cesso de mudanças estruturais na produção, no emprego e nas institui-ções que se estabelece na sociedade contemporânea, em um primeiroplano, com base na liberalização do comércio e da maior integraçãodas economias à economia mundial, em um segundo plano, em cadasociedade específica, as mudanças estruturais decorrem de seus pro-cessos de reestruturação produtiva e de reterritorialização. Na dimen-são do mercado de trabalho representa os processo de destruição, adap-tação e redefinição das: relações de produção; processos de trabalho;formas de inserção de trabalho; relações e contratos de trabalho; e con-teúdo das ocupações. Esses processos societários transformam e cons-troem a sociedade contemporânea, e indicam um duplo efeito: de umlado, corroem ou tornam inadequadas determinadas práticas ou insti-tuições sociais, pelos custos diretos ou indiretos envolvidos, ou perdade sua funcionalidade ou de legitimidade política; de outro, consti-tuem, adaptam e definem normas, procedimentos e instituições. O Pro-cesso de Informalidade implica dessa maneira construção ou adaptaçãode regras consuetudinárias ou jurídicas no mercado de trabalho consoan-tes com três dimensões concretas do momento contemporâneo, ou seja,econômica, social e política (Cacciamali, 2001; Cacciamali, 2000).

6. Argumentos teóricos e exemplos sobre os aspectos positivos dadescentralização nas negociações coletivas podem ser encontrados nocampo da saúde e segurança do trabalho, conforme Cacciamali eSandoval, 2001.

7. As alterações nas relações de emprego podem ser analisadas me-diante tipologia exposta em Cacciamali (2001). Essa tipologia expõeas modificações que podem ser verificadas nas regras contratuais re-ferentes aos principais componentes do contrato de trabalho assalaria-do, bem como nas práticas de contratação, na mudança dos períodosde acumulação fordista para aquele de acumulação flexível e maiorinternacionalização das economias.

8. Em muitos países a legislação vem sendo modificada, dilatando oprazo de duração desse tipo de contrato, que em geral é de 12 meses,podendo ser renovado. No Peru, por exemplo, o prazo é de 36 meses,podendo perdurar até 5 anos.

9. No Brasil, ao contrário, desde os anos 80, o emprego assalariadosem registro apresenta crescimento superior ao do total de ocupados, erepresenta, no ano de 2000, nas seis maiores áreas Metropolitanas cer-ca de 28% do total da ocupação.

10. Setor informal, conforme enunciado em nota anterior, é uma cate-goria que representa o conjunto de atividades econômicas organiza-das sob a forma de trabalho por conta própria ou de microempresa,conforme apresentado em inúmeros trabalhos e referendado pela OIT(1993). Sobre a dinâmica do setor informal, veja-se por exemplo,Cacciamali, 1983 e 2000.

11. Destaca-se que o objetivo da construção desses indicadores não éauferir com precisão as perdas de receita à Seguridade Social Pública,mas apontar a ordem de grandeza entre valor de contribuição e núme-ro de contribuintes com relação aos seus valores potenciais.

12. Entre as principais modalidades de emprego flexíveis, pode-se citaros seguintes tipos de contrato: em tempo parcial (número de horas infe-rior ao padrão nacional); temporário (contrato por duração de tempo de-terminado para obter uma quantidade de produtos ou serviços estabeleci-dos, incluindo-se o trabalho organizado por agência de trabalho temporá-rio); terceirizado (contratação realizada exteriormente à empresa por meiode subcontratação ou intermediação de uma firma); eventual (de caráterirregular ou intermitente); capacitação ou aprendizagem (inclui uma com-binação de emprego e capacitação profissional); sazonal (intermitente du-rante uma época do ano). Esta tipologia foi adaptada com base em Ozaki(2000) e encontra-se desenvolvida em Cacciamali, 2001.

13. Critérios de justiça salarial são construídos socialmente, como tam-bém compreendem componentes subjetivos; entretanto, essa denomi-nação é utilizada, neste trabalho, no âmbito da área de conhecimentoda teoria econômica, na qual a percepção do empregado é influencia-da por seu grupo de referência: como os outros membros do grupo sãotratados e como sua posição relativa é salvaguardada ou reduzida(Simon, 1991; Kahneman et alii, 1986).

14. Refere-se aqui aos assalariados que não possuem contrato de tra-balho registrado e aos trabalhadores do setor informal.

15. A taxa de desconto intertemporal para as decisões de renda dascamadas mais pobres é elevada. Este comportamento verifica-se tam-bém nas decisões de educação, treinamento e habitação entre outras.

16. Debate recente sobre o grau de desigualdade na distribuição derenda no Brasil pode ser encontrado em Henriques, 2000, a interpreta-ção da desigualdade desde os anos 60 em Cacciamali, 2001.

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D

REGIME AUTOMOTIVO BRASILEIROnegociações internacionais

epois de encerrada a Rodada Uruguai do GATT(Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e formali-zada a criação da OMC (Organização Mundial

flito comercial internacional (pós-OMC) em que o paísobteve ganhos expressivos, capacitando os negociadoresinternacionais para os casos que se sucederam (Embraer-Bombardier; patentes); (2) discute um problema domésti-co institucional ao relevar o papel do Congresso Nacio-nal nas negociações internacionais; e (3) evidencia comoo resultado da negociação internacional depende, em gran-de medida, da capacidade negociadora do país.

Do ponto de vista teórico, o caso da negociação do RAé uma aplicação livre do modelo dos Jogos de Dois Ní-veis (JDN) de Robert Putnam (1988; 1993). Putnam tra-balha com o pressuposto de que toda negociação interna-cional envolve uma dimensão doméstica. Essa dimensão,do ponto de vista conceitual, resulta em um win-set (umacoalizão vencedora que se articula no plano doméstico)que estabelece os limites para o negociador do país atuarno contexto internacional com os demais negociadores querepresentam seus respectivos países (suas coalizões). Anegociação empreendida entre o negociador internacio-nal e a sua coalizão doméstica, Putnam chama de Nível 1.Ao momento do negociador barganhar suas possibilida-des de ganhos com os outros negociadores internacionais,Putnam dá o nome de Nível 2.

do Comércio) em 1995, o Brasil passou à condição de pro-tagonista de vários e importantes conflitos comerciais compaíses desenvolvidos. Essa nova condição se deve ao fatode o Brasil ter empreendido reformas importantes em suaestrutura de comércio exterior, resultado da abertura desua economia a partir do final dos anos 80.

O presente artigo trata de um estudo de caso que en-volveu a negociação do regime automotivo brasileiro (RA).Como se sabe, esse instrumento de política setorial foiobjeto de questionamento por vários países desenvolvi-dos no âmbito da OMC – Organização Mundial do Co-mércio entre 1996 e 1998. O questionamento obrigou ogoverno brasileiro a negociar, evitando assim que a aber-tura de um panel no Órgão de Solução de Controvérsias(OSC) da OMC fosse consumada. Ao mesmo tempo, ga-rantiu o ingresso de Investimentos Diretos (IED) ao mer-cado brasileiro, através de empresas transnacionais (TNCs)produtoras de veículos automotores.

O estudo do RA brasileiro se justifica em razão de trêsfatores: (1) para o Brasil, trata-se do primeiro grande con-

Resumo: No âmbito das negociações relativas à agenda de comércio exterior recente do Brasil, destaca-se adisputa que envolveu o regime automotivo brasileiro, tanto no conflito com a Argentina, como na relação comos países desenvolvidos na OMC. O resultado dessa negociação permitiu a atração de investimentos diretos eevitou a abertura de um processo contra o país no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.Palavras-chave: regime automotivo; Mercosul; OMC.

Abstract: The outcome of the dispute between the Brazilian automotive industry and Argentina, as well aswith developed countries of the World Trade Organization, was a significant event in Brazil’s foreign tradehistory. The resolution of this conflict resulted in the attraction of direct investment and prevented a suit frombeing brought against Brazil in the WTO´s Dispute Settlement Body.Key words: automotive industry; Mercosul; WTO.

JOÃO PAULO CÂNDIA VEIGA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(2): 76-81, 2002

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REGIME AUTOMOTIVO BRASILEIRO: NEGOCIAÇÕES INTERNACIONAIS

Para Putnam, o resultado da negociação internacional,entre os níveis 1 e 2, se dá em função (1) da capacidadedo negociador em “criar” uma situação cooperativa parao acordo existir, seja utilizando-se de seu mandato domés-tico para extrair vantagens dos outros negociadores, sejaexagerando suas exigências para alargar os limites esta-belecidos pela coalização doméstica interessada em queo acordo seja efetivado; e (2) em razão do papel ratifica-dor das instituições domésticas, reconhecendo assim osganhos auferidos pelos supostos beneficiários do acordointernacional dentro do país de sua jurisdição. Em paísesde regime democrático, é o Congresso Nacional que temo poder ratificador.

O ARGUMENTO

Parte da literatura que explora empiricamente o mode-lo proposto por Putnam concede extrema relevância ao pa-pel do legislador porque é ele que, em última instância,vai definir e balizar as possibilidades de ganhos com a ne-gociação internacional (Milner, 1997; 1997a; Moravcsik,1993; 1997). O próprio Putnam admite a necessidade deconhecer o comportamento institucional do Legislativo por-que as possibilidades de cooperação internacional depen-dem, em última análise, do mandato negociador delegadopelo Congresso ao Executivo.

Veiga (1999) argumenta que em países que não têmtradição do poder legislativo em delegar ao executivo ummandato negociador estrito, amparado pela Constituiçãoe/ou por legislação comercial específica, as possibilida-des de cooperação internacional são realçadas pela capa-cidade política do negociador. O Congresso Nacional,mesmo tendo o poder de ratificar o resultado do acordointernacional, acaba abdicando de exercê-lo. Nesses ca-sos, o enquadramento geral da negociação internacional,como de suas possibilidades de ganhos para o país, é maisbem definida pelo negociador internacional.

Soares de Lima e Santos (2001) fazem a defesa de ummodelo político institucional de delegação que amplia aparticipação do Congresso Nacional e reduz o grau de li-berdade do negociador internacional. Nesse caso, a orga-nização do win-set doméstico se faria no âmbito do Con-gresso. Dessa forma, o negociador internacional seriaobrigado a discutir um acordo a partir de uma estrutura deganhos muito mais definida, conferindo-lhe um mandato apartir de limites mais precisos. A grande vantagem dessemodelo é inequívoca. Com uma coalizão “vencedora” maisprecisa, em possibilidades de ganhos e abrangência de in-

teresses envolvidos, o negociador internacional pode ex-plorar os limites de seu mandato para extrair vantagens (oureduzir perdas) com os demais negociadores.

O caso da negociação do RA é paradoxal. A fragilidadeinstitucional doméstica do Congresso brasileiro, consubs-tanciada na dificuldade de articulação entre o sistema polí-tico partidário e os interesses sociais expressos por meiode empresas, associações, sindicatos, etc., acabou por fa-vorecer a ação do negociador. Como as Medidas Provisó-rias (MPs) dos RAs1 eram reeditadas mês a mês, isso deumargem a que novos interesses se agregassem ao win-setdoméstico estabelecido, ampliando-o e fortalecendo-o aosolhos dos países contendores do Brasil. Quando esses paí-ses perceberam que o próprio presidente da República e acoalizão partidária que o sustentava precisavam acomodaresses interesses na estrutura de ganhos contemplada peloRA, o instrumento legal das MPs atuou como o “poder ra-tificador” do Congresso para criar um fato consumado.

Por fim, depois de discutir a variável institucional doJDN, é possível argumentar que o caso da negociação doRA brasileiro vai além do modelo proposto por Putnam.Se é verdade que o Brasil participou, simultaneamente,da negociação do RA com a Argentina e os países desen-volvidos na OMC, e que essas duas mesas de negociaçãoforam interdependentes – condicionavam-se mutuamen-te –, então é possível afirmar que se trata, na realidade,de um duplo JDN, um caso inédito na literatura empíricaacerca desse modelo.

O JOGO E SEUS RESULTADOS

A adoção do RA brasileiro, em junho de 1995, abriu,simultaneamente, duas mesas de negociação internacional.A primeira envolveu a negociação com o governo argenti-no no âmbito do Mercosul. A segunda tratou da negocia-ção entre o governo brasileiro e os países desenvolvidossob a disciplina multilateral de comércio, consubstancia-da nos Acordos do GATT/OMC de 1994.

Essa característica especial da negociação do RA torna aaplicação do modelo de Putnam mais complexa porque osdois JDN comunicam-se entre si. Tanto a negociação entreo governo brasileiro e os países em desenvolvimento na OMCatuou sobre o governo argentino no sentido de arrefecer suaspressões para que o Brasil retirasse alguns incentivos do RA,como a negociação do RA no âmbito do Mercosul acabou,de certa forma, determinando o resultado do jogo multilate-ral, com a aceitação final da política automotiva brasileirapelos países desenvolvidos reclamantes.

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Anteriormente, os contenciosos envolvendo a exporta-ção de gasolina (Brasil e Venezuela contra os EUA), os ca-sos do coco ralado (Brasil contra as Filipinas), do frango edo café solúvel (Brasil contra UE) não apresentaram essacaracterística. No caso da disputa pelo mercado de aerona-ves, o contencioso entre o Brasil e o Canadá ficou muitoconcentrado nos interesses corporativos, sem a possibilida-de de alargamento das coalizões domésticas tanto no Brasilquanto no Canadá. Esse é um dos fatores que explicam ademora na efetivação do acordo entre os dois países na OMC.Segundo o Ministro Lampreia, o caso Embraer-Bombardierfoi a maior “querela” comercial, o maior contencioso eco-nômico de que o Brasil já participou em sua história repu-blicana.2 No entanto, até o caso Embraer-Bombardier, anegociação do RA tinha sido o conflito que mais “tomou otempo dos negociadores brasileiros nos fóruns internacio-nais”, e será lembrado como o primeiro grande desafio doBrasil na OMC desde sua criação em 1995.3

A singularidade do caso é resultado não apenas da in-terdependência entre as mesas de negociação. Outro as-pecto importante refere-se à configuração assumida peloswin-sets domésticos, nos dois jogos em negociação. Em-bora os interlocutores domésticos fossem praticamente osmesmos nas duas mesas, a expectativa de ganhos, suaabrangência e a profundidade entre os atores não eramnecessariamente semelhantes.

Toma-se, como exemplo, o “núcleo duro” de apoio aoRA brasileiro, consubstanciado basicamente pelas mon-tadoras em operação no Brasil. O RA brasileiro era, decerta forma, uma “resposta” ao programa de incentivosargentino, pois as mesmas montadoras em operação noBrasil já desfrutavam de suas vantagens no país vizinho.Para as montadoras, sua expectativa de ganhos, resultadoda criação do RA, só estaria assegurada se a OMC acei-tasse a defesa apresentada pelo governo de que o regimebrasileiro era uma “extensão” do regime automotivo ar-gentino. Além disso, o RA era importante para conter odesequilíbrio do balanço de pagamentos.

Na negociação com a OMC e o Mercosul, pode-se trans-formar a negociação em um jogo, prever os possíveis re-sultados e deduzir, a partir deles, os ganhos e as perdasde cada win-set que embasa a coalizão de apoio aos go-vernos dos países desenvolvidos e argentino, em razão danegociação empreendida com o governo brasileiro:Não-acordo no Mercosul e na OMC – o RA seria elimina-do (ou modificado na sua essência) depois da abertura deum panel contra o Brasil; tanto as montadoras quanto os go-vernos brasileiro e argentino sairiam derrotados, com conse-

qüências negativas para a integração do setor automotivo noMercosul; a Argentina teria de (re)começar uma nova nego-ciação com o Brasil, com perdas relativas no que diz respei-to ao acesso de que já dispunha ao mercado brasileiro.

Não-acordo na OMC e acordo no Mercosul – O RAbrasileiro seria substituído pelo RA regional do bloco, comperdas para o governo, os Estados (os municípios) e asmontadoras que não teriam mais um instrumento de in-centivo; a Argentina sairia vencedora porque o seu RAbalizaria a negociação do futuro RA do Mercosul – legale reconhecido pela OMC –, diminuindo a capacidade doBrasil em atrair IED.

Acordo na OMC e não-acordo no Mercosul – O Brasil,os governos estaduais e as montadoras seriam vitoriosascom a legalidade do RA; a Argentina seria prejudicadaporque teria de aceitar os novos incentivos definidos peloCongresso Nacional brasileiro, desequilibrando as condi-ções de atração de IED entre os dois países.

Acordo nas duas mesas de negociação – o governo bra-sileiro e as montadoras saem ganhando no melhor resulta-do possível; ambos mantêm suas estruturas de ganhos in-tactas; no caso da Argentina, a legalidade internacional doRA traz problemas porque o volume de incentivos é maiordo que o previsto pelo RA argentino, além de o Brasil pas-sar a atrair mais IED em condições mais vantajosas.

Nota-se que dos quatro possíveis resultados, o melhorpara a Argentina é o Brasil perder a legalidade de seu RAna OMC. Como o RA brasileiro amplia os incentivos àsmontadoras que investirem no país, aumenta a capacida-de do Brasil em competir com a Argentina por IED. Logo,como as mesas de negociação são interdependentes, aposição do governo argentino é de dependência do go-verno brasileiro, condição que enfraquece sua posição nanegociação de Nível 2, mesmo dispondo de uma estruturade ganhos (win-set) doméstica mais abrangente, ou seja,politicamente mais forte. Por essa razão, a abertura deconsultas contra o Brasil na OMC paralisou as ações dogoverno argentino. Em primeiro lugar, o governo Menemteria de aguardar o resultado da negociação para vislum-brar por onde passaria a retomada da negociação do RAdo Mercosul com o Brasil. Ao mesmo tempo, Menem nãopoderia se juntar aos países desenvolvidos na OMC paraquestionar o instrumento setorial porque era sócio do Brasilno Mercosul.

Em todos os resultados acima, o negociador interna-cional argentino tem uma estreita margem de manobra paraa negociação no Nível 2, a partir de uma coalizão domés-

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tica extremamente ampla e com uma estrutura de ganhosmais positiva (abrangente) do que a do Brasil. Portanto,sua debilidade política não decorre de uma estrutura do-méstica de ganhos reduzida. Como, politicamente, nãopode ingressar com um pedido de consultas contra o Bra-sil na OMC, a Argentina dispõe apenas da pressão bilate-ral como instrumento político de barganha. À medida queo conflito desloca-se da esfera regional para o plano mul-tilateral, o governo argentino perde capacidade de influên-cia na negociação em Nível 2, paralisando assim o pro-cesso de convergência dos RAs brasileiro e argentino.

Por essa razão, a melhor estratégia do governo argen-tino sempre foi “fugir para frente”, ou seja, apressar a cons-tituição de instrumentos para a harmonização dos RAs afim de “anestesiar” a capacidade de atração de IED exer-cida pelo Brasil. Não foi por acaso que as principais rei-vindicações da Argentina na negociação do RA doMercosul tenham sido a manutenção de um índice de na-cionalização (obrigando as autopeças a produzir domes-ticamente) e a defesa de um Regime Comum de Investi-mentos, um “código de conduta” para assegurar umaconcorrência “justa” na captação de IED.4

Sabe-se, de antemão, que também existe um trade offna relação entre montadoras e os incentivos, de um lado,e entre os governos nacionais e as políticas de fomentosetorial, de outro. No primeiro deles, não é possível sepa-rar os incentivos concedidos às montadoras e os instru-mentos de alavancagem do IED, determinados pelo go-verno brasileiro, da necessária proteção tarifária ao(s)mercado(s) nacional/regional. Se cair o nível de proteção,os instrumentos de fomento perdem eficácia na capacida-de de atração de investimentos, enfraquecendo, por suavez, a demanda das montadoras por incentivos.

De outra forma, não é possível conceder às montadorasliberdade de ação doméstica/regional, através de incenti-vos, se ela não vier acompanhada de uma política setorialnacional/regional, ou seja, se não existirem os instrumen-tos que contemplem os interesses do(s) governo(s). Logo,as hipóteses que sugerem ganhos aos governos em detri-mento das montadoras não se sustentam porque o RA per-de sua capacidade de atrair IED. Se, ao contrário, as mon-tadoras domésticas perdem para os governos, a capacidadede atração do IED é mantida à custa de uma modificaçãodo win-set doméstico – as montadoras em operação no paíspassariam a ser importadoras, beneficiando-se das mesmasvantagens supostamente concedidas às newcomers.5

Em outras palavras, se a negociação Brasil-OMC en-volver, de fato, a eliminação de barreiras tarifárias e não-

tarifárias, parece impossível, simultaneamente, garantir àArgentina os ganhos da integração com o Brasil – o queexige a proteção ao mercado brasileiro –, e manter intac-tas as medidas do RA na OMC, impedindo assim os paí-ses desenvolvidos de melhorar o acesso de suas empresasao mercado brasileiro. Nesse caso, a posição argentina éainda mais difícil porque o governo não pode consolidara atração de IED com o enfraquecimento do Mercosul.

Os RAs (brasileiro e argentino) guardam, dessa forma,uma contradição: ao mesmo tempo que apontam a harmo-nização das regras para a indústria automobilística noMercosul, garantindo o acesso privilegiado ao mercadobrasileiro introduzem um elemento competitivo ao redi-recionar para o Brasil possíveis investimentos que seriamfeitos na Argentina.

Contudo, existe ainda outro trade off aparentementeinsuperável para a OMC aceitar os RAs brasileiros. Não épossível contemplar, simultaneamente, as montadoras quese beneficiam da proteção ao mercado brasileiro/Mercosule as newcomers, aquelas novas montadoras que vinhamprogressivamente melhorando o acesso ao mercado brasi-leiro sem, contudo, comprometerem-se com a produçãolocal. Ou o governo brasileiro mantinha o RA intacto emsua “essência”, garantindo o apoio das montadoras ao Bra-sil/Mercosul, ou abria o mercado às newcomers estreitan-do assim o seu win-set doméstico – as montadoras aquiinstaladas suspenderiam os investimentos anunciados epassariam a ser importadoras.

Se estiverem corretas as variáveis que condicionarama negociação internacional nessas duas “mesas”, em doisJDN simultâneos e interdependentes, como explicar o fimdo contencioso comercial entre o Brasil e os países de-senvolvidos, e a aceitação de seus dois RAs, editados pelogoverno brasileiro na forma de Medidas Provisórias, de-pois aprovadas pelo Congresso Nacional?

O resultado é inequívoco: o Brasil não só evitou a aber-tura de um panel na OMC, em um contexto internacionaladverso à execução de políticas setoriais, como garantiua continuidade da negociação do RA do Mercosul com aArgentina e, o mais importante, consolidou a capacidadedoméstica de atração de IED. Como explicar a vitória bra-sileira nas duas “mesas” de negociação internacional?

Seguindo o modelo de Putnam, verifica-se a existênciade algumas variáveis que explicam esse resultado: (1) oexercício da autonomia do negociador no que diz respei-to às suas atribuições exclusivas, especificamente em suahabilidade de negociar concessões, agindo assim direta-mente na estrutura de ganhos doméstica (win-set) dos

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outros negociadores, convertendo montadoras reclaman-tes em beneficiárias do RA; e (2) o aspecto institucionalda ratificação do acordo, isto é, da Medida Provisória queinstituiu o RA e que foi aprovada pelo Congresso Nacio-nal. Pode-se ver que a debilidade institucional do execu-tivo em legislar através de medidas provisórias parado-xalmente acabou por fortalecer a capacidade negociadorado governo brasileiro na negociação com os países de-senvolvidos (EUA, UE, Japão e Coréia do Sul).

CONCLUSÃO

A negociação do Brasil com os países desenvolvidosno âmbito da OMC foi iniciada com a edição da MedidaProvisória 1.024 em junho de 1995, e só terminou em 1997,depois que o negociador brasileiro constituiu o sistemade cotas de importação, remanejando-as, para que a UniãoEuropéia pudesse dispor do maior número delas.

No caso dos EUA, a negociação foi mais difícil e sófoi encerrada depois que o Brasil assinou um MOU(Memorandum of Understanding), nos mesmos moldesdaqueles já assinados pelo governo americano com o Ja-pão e a Coréia do Sul. Em ambos os casos, a negociaçãoexigiu do governo brasileiro uma grande capacidade deimprovisação política, através de medidas ad hoc (con-cessões), para garantir a atração de IED ao Brasil, semprebuscando diminuir o risco de um panel ser aberto contrao país. Ademais, desgastou-se com o governo argentinoao negociar, sempre de forma atabalhoada, medidas com-pensatórias que nunca eram devidamente consumadas.

O governo brasileiro conseguiu garantir a validade dasregras dos RAs no plano doméstico, acomodou as expec-tativas da Argentina quanto à continuidade dos ganhosadvindos da integração regional – mesmo em um ambien-te menos favorável à atração do IED por parte do país vi-zinho – e evitou a abertura de um panel contra o país, emum contexto internacional muito adverso à prática de po-líticas automotivas nacionais/regionais, em vista de ou-tros países em desenvolvimento terem recorrido do mes-mo expediente.

Em linhas gerais, essa experiência negociadora brasi-leira desmente a hipótese de que a disciplina jurídica mul-tilateral de comércio restringe, de forma categórica e ine-quívoca, a capacidade dos países membros da OMC deformular e executar políticas nacionais de fomento seto-rial. Em parte, isso se explica pelo phase out previsto tan-to no Acordo de TRIMs – Trade Reladed InvestimentMeasure quanto no Acordo de Subsídios e Medidas Com-

pensatórias. No caso da Argentina, assim como no doBrasil, os instrumentos de estímulo ao setor automotivodeveriam ter sido eliminados em 31 de dezembro de 1999,quando expiravam os RAs brasileiro e argentino.6 No casodo RA argentino, em 2001 a OMC prorrogou esse instru-mento por mais sete anos.

Do ponto de vista teórico, o caso da negociação do RAbrasileiro questiona a eficácia, em termos de ganhos parao país, do modelo “ratificador” ou “delegativo” exercidopelo Legislativo em acordos internacionais. De fato, casoo win-set doméstico seja realmente organizado no âmbitodo Congresso Nacional, o mandato do negociador inter-nacional passa a ser mais transparente, resultado da me-lhor precisão dos possíveis ganhos, a partir de consultas enegociação dos interesses envolvidos com a sociedade.No entanto, um mandato negociador mais estrito, articu-lado a partir de interesses mais precisos, pode engessar adinâmica negociadora e dificultar a cooperação interna-cional. Como resultado, se os ganhos concretos auferidospelo país forem o critério para a análise (e sua coalizãovencedora), a negociação internacional pode perder emeficiência e qualidade.

A negociação do RA brasileiro, embora seja um casomuito especial, releva a capacidade do negociador brasi-leiro em estabelecer concessões especiais aos países re-clamantes para evitar a abertura de um panel no OSC daOMC. No caso do Congresso Nacional, uma avaliaçãoapressada pode concluir que, na prática, o Legislativo bra-sileiro exerceu o seu poder de ratificação de um instru-mento setorial a partir de um modelo delegativo. Na rea-lidade, o comportamento do Congresso brasileiro foiabsolutamente casuístico, alargando os interesses benefi-ciados pelos RAs para atender elites regionais do Nordeste.O Executivo curvou-se à MP do novo regime automotivoporque precisava dos votos da bancada nordestina do PFLpara a aprovação da Emenda Constitucional que autori-zava a reeleição do Presidente da República. Os demaissegmentos da cadeia produtiva (autopeças, metalúrgicos,distribuidores, fornecedores de insumos e bens interme-diários), presentes na negociação do RA argentino em1991, permaneceram marginalizados da negociação dosRAs no Congresso brasileiro, como sempre estiveramdesde a edição da primeira MP em junho de 1995.

Na realidade, o negociador internacional brasileiro aca-bou por organizar o win-set doméstico do país, de formamuito concentrada, é verdade, nas montadoras de auto-veículos, deixando de lado o restante da cadeia produti-va. Ao mesmo tempo, essa parece ter sido a razão para

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que o acordo com a OMC pudesse trazer um resultadopositivo para o Brasil com a atração de um volume ex-pressivo de IED. A capacidade de “criação” política exer-cida pelo negociador brasileiro, através da concessão deum desconto nas cotas de importação de automóveis, éinversamente proporcional à capacidade de organizaçãode uma coalizão doméstica articulada, com interesses bemdistribuídos, no âmbito do Congresso. Dessa forma, o casodo RA automotivo sugere a existência de um trade off entreampliar a participação da sociedade nas negociações in-ternacionais e, ao mesmo tempo, conseguir que os seusresultados tragam benefícios concretos, e que tais benefí-cios sejam distribuídos de forma democrática e negocia-da entre os atores envolvidos. Esse é o desafio no mo-mento de se pensar o papel do Congresso Nacionalbrasileiro nas negociações internacionais.

NOTAS

Esse artigo é uma versão reduzida e modificada do Capítulo 7 da tesede doutorado do autor (Veiga, 1999).

1. O regime automotivo original e o regime automotivo para as regiõesNorte, Nordeste e Centro-Oeste.

2. Programa “Roda Viva”, TV Cultura, 30/08/99.

3. “Automóvel lidera debates”, Lívia Ferrari, Gazeta Mercantil,10/08/98.

4. Essa proposta evitaria que um país auferisse vantagem sobre o ou-tro por oferecer diferentes benefícios fiscais; “O Mercosul não estáestagnado, mas tem de resolver agora seus problemas, porque eles po-dem se tornar mais difíceis no futuro. Não podemos esperar as elei-ções no Brasil (1998) e na Argentina (1999) para avançar”, afirmouFelix Peña, sub-secretário de Comércio Exterior da Argentina; o as-sessor da Secretaria de Comércio Exterior, Miguel Cuervo, em entre-vista ao autor, afirmou que o “Código de Investimentos do Mercosul”era a principal reivindicação argentina, ao final do primeiro semestrede 1997 (Paris, 11/07/97).

5. Designação genérica para as montadoras recém-chegadas ao mercadobrasileiro através de importações. Quando o Ministro da Fazenda, CiroGomes, reduziu a tarifa de importação de automóveis para 20%, no finalde 1994, para conter a elevação dos preços, as montadoras argumentaramque essa medida, combinada à valorização cambial, fazia com que o país,na prática, não oferecesse qualquer proteção ao seu mercado doméstico.Nessa condição, “tanto faz importar ou produzir no Brasil, é o governoque precisa definir uma política”, afirmou Silvano Valentino, então pre-sidente da Anfavea, O Estado de S.Paulo, 29/10/94.

6. Outra possível explicação refere-se ao fato do RA brasileiro não tersido notificado a tempo à OMC. O contencioso entre o governo brasi-leiro e os países desenvolvidos na OMC teria sido evitado caso o go-

verno tivesse notificado à OMC (até março de 1995) o seu RA. Paraque isso ocorresse, era necessário que o programa estivesse em fun-cionamento desde junho de 1994. O prazo para a notificação dessasmedidas expirava no primeiro trimestre de 1995 e “poderiam ser re-gistrados apenas as medidas e instrumentos que estivessem em opera-ção antes do final de junho de 1994”, portanto, até seis meses antes doinício da entrada em vigor dos Acordos do GATT 1994 e de institu-cionalização e funcionamento da OMC (Mori, 1998:175).

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A

O BRASIL, SEUS SÓCIOSE SEUS NEGÓCIOS

discussão, neste artigo, sobre a inserção do Bra-sil na economia mundial pretende destacar, parti-cularmente, em que medida as novas regras de fun-

tituição” da economia mundial estabelecida no âmbito daOMC; na quarta, são abordados os mecanismos internos eexternos por meio dos quais as assimetrias nas relações in-ternacionais, geradas a partir dessa nova ordem, tendem ase aprofundar; e, finalmente, na quinta parte, se analisa bre-vemente o conjunto de negociações comerciais atualmenteem curso das quais o Brasil participa e que opções se colo-cam para o país no esforço de alcançar uma inserção inter-nacional mais vantajosa no contexto analisado.

A NOVA DINÂMICA DA ECONOMIA GLOBAL

O principal fenômeno que marca a etapa atual da eco-nomia mundial é o da globalização, processo através doqual os fluxos comerciais, financeiros e produtivos ocor-rem num plano que, até certo ponto, elidem as fronteirasnacionais e, portanto, os mecanismos tradicionais de con-trole dos Estados nacionais sobre a atividade econômicaem seus territórios.

Os principais agentes deste processo são as empresasmultinacionais, que respondem por aproximadamente umterço de toda a produção e por 60% das exportações mun-diais, sendo que metade desse fluxo ocorre interfirmas,

cionamento da economia mundial estabelecidas no âmbi-to da Organização Mundial de Comércio – OMC, bem comoas futuras obrigações advindas de uma eventual adesão doBrasil à Área de Livre Comércio das Américas – Alca,condicionam as perspectivas de desenvolvimento do país.

A tese central deste texto é que a adesão do Brasil àOMC, em que pese o interesse do país na manutenção eno fortalecimento de um sistema multilateral de comér-cio, trouxe, até o momento, mais encargos e obrigaçõesdo que benefícios. Do mesmo modo, a adesão do país àAlca, nos termos que os Estados Unidos tentam impor,representará um entrave a mais para o desenvolvimentosocial e econômico do Brasil.

Este artigo está dividido em cinco partes: na primeira, seanalisa a nova dinâmica da economia global, destacando-separticularmente o papel das empresas multinacionais nessenovo contexto; na segunda, discute-se o papel da OMC comofiadora da nova ordem global; na terceira, faz-se uma breveanálise da inserção do Brasil na nova divisão internacionaldo trabalho que se consolida sob a égide dessa nossa “Cons-

Resumo: O objetivo é discutir a questão da inserção do Brasil na economia mundial em um novo contextomarcado pelo fenômeno da globalização, pela constituição da Organização Mundial do Comércio – OMCcomo órgão de governança econômica global e pela proliferação dos blocos regionais de comércio.Palavras-chave: comércio; OMC; Alca; Mercosul; protecionismo.

Abstract: This article considers Brazil´s evolving role in a world economy marked by globalization, the creationof the World Trade Organization as an organ of global economic governance, and the proliferation of regionaltrading blocks.Key words: trade; WTO; FTAA; Mercosul; protectionism.

LUÍS ANTÔNIO PAULINO

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O BRASIL, SEUS SÓCIOS E SEUS NEGÓCIOS

ou seja, entre diferentes unidades de uma mesma empre-sa. Esse verdadeiro exército de ocupação da economiamundial é composto por cerca de 40 mil empresas e 250mil filiais espalhadas pelo mundo. O total de ativos dasfiliais estrangeiras correspondia, em 1999, a um valorequivalente a 60% do PIB mundial, bem acima dos 27%do começo dos anos 90 e dos 18% do início dos 80.

Se as multinacionais são os agentes principais do pro-cesso de globalização, o investimento direto estrangeiro éo combustível que alimenta essa rede que ocupa a econo-mia mundial. Esses fluxos, que em 1985 eram de US$ 50bilhões, saltaram, em 1990, para US$ 200 bilhões, em 1999já eram US$ 800 bilhões e, no final do ano 2000, corres-pondiam a cerca de US$ 1,3 trilhão (Lacerda, 17/05/01).

O investimento direto estrangeiro, por sua vez, ocorreatravés de diferentes modalidades, das quais as mais fre-qüentes, hoje, têm sido as aquisições, fusões e privatiza-ções. As razões para isso estão no baixo crescimento daeconomia mundial, o que abre mais espaço para transa-ções de permuta e transferência de propriedade de capitaldo que propriamente de criação de nova riqueza.

O Brasil tem se destacado nos últimos anos pela atra-ção de investimento direto estrangeiro, figurando, entreos países em desenvolvimento, apenas atrás da China. Em1990, o Brasil recebeu US$ 1 bilhão em investimento di-reto estrangeiro, em 1998 este montante havia saltado paraUS$ 30 bilhões e, entre 1998 e 2000, a média anual foi deUS$ 31,1 bilhões anuais, volume seis vezes maior que amédia registrada no período 1970 a 2000. Os setores pro-dutivos que hoje atraem o capital estrangeiro no Brasiltambém são outros. A participação da indústria no esto-que de investimentos diminuiu de 45,2%, em 1995, para11,2% no total acumulado entre 1998 e 2000, enquanto ado setor de serviços saltou de 37,3% para 76,3%, no mes-mo período. As fusões e aquisições chegaram a represen-tar 89,9% do montante de recursos que entraram no país,em 1998. Os setores de telecomunicações e de interme-diação financeira foram mais atraentes às aquisições porparte de capitais estrangeiros, representando, juntos, 37,8%dos investimentos estrangeiros diretos acumulados entre1998 e 2000 (Castro, 15 a 21/10/01).

Para o ano de 2001, é provável que esses fluxos de in-vestimento direto estrangeiro apresentem uma reduçãoexpressiva. A Conferência das Nações Unidas para o Co-mércio e Desenvolvimento (Unctad) divulgou recentemen-te o “World Investment Report” para 2001, apontando umaqueda de 40% no fluxo global de investimentos estran-geiros para este ano (Lacerda, 05/10/01).

A redução nesses fluxos está relacionada com a ten-dência recessiva da economia mundial que já vinha sedesenhando desde meados de 2000 e que poderá ser agra-vada em função do ataque terrorista nos Estados Unidos,em 11 de setembro de 2001, cujos desdobramentos noplano econômico mundial ainda não estão inteiramenteclaros. Considerando-se, entretanto, que uma questão fun-damental a condicionar as decisões de gasto e investimentoé o estado de confiança dos consumidores e investidorescom relação ao futuro, é de se esperar que as tendênciasrecessivas que já se esboçavam serão agravadas ainda maispelo grau de incerteza gerado pelos conflitos.

O PAPEL DA OMC

A nova dinâmica da economia global exige, no planoinstitucional, um ambiente cada vez mais desregulado, quepermita e garanta o livre fluxo de capitais e mercadoriasde acordo com a estratégia global dos grandes grupos quedominam a economia mundial. A reivindicação mais fre-qüente dos representantes das grandes corporações mul-tinacionais nos inúmeros fóruns internacionais convoca-dos para debater o tema expressa-se amiúde pelo termo“nivelar o campo de competição”.

A existência de diferentes normas e regulamentos naárea comercial, financeira, tributária, trabalhista e no re-gime de proteção à propriedade intelectual nos diversospaíses em que atuam, bem como a possibilidade que cadapaís possui de mudar as regras do jogo de acordo com assuas próprias conveniências e circunstâncias, constitui-se,para essas empresas, em elemento que aumenta o grau deincerteza normalmente associado às decisões de investi-mento (Marques Jr., 30/10/01).

Considerando-se que, de algum modo, todo o planeja-mento estratégico dessas grandes multinacionais está cir-cunscrito por um triângulo em cujos vértices podem sercolocados, respectivamente, os objetivos da empresa, agovernança e a governabilidade, é de se imaginar que acapacidade de organizar suas competências em função dosobjetivos a atingir (governança) está fortemente condicio-nada pela governabilidade, isto é, pela capacidade de con-trolar as diversas regras e fluxos que condicionam suasjogadas estratégicas.

Desse ponto de vista, a existência de regras e fluxosfora do campo de controle dessas empresas constitui umasituação percebida como problemática e evitável. A rei-vindicação de nivelar o campo de competição, por meioda padronização das regras no âmbito da OMC, torna-se,

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assim, a reivindicação mais relevante dos grandes atoreseconômicos globais.

Há, contudo, entre a taça e os lábios, inúmeros percal-ços. Da mesma forma que outras situações ideais prescri-tas pelo ideário liberal, como a livre concorrência, a ten-dência ao equilíbrio e o comportamento racional dosagentes econômicos, o nivelamento do campo de compe-tição reflete um desejo cujas condições objetivas de rea-lização dificilmente encontram-se na realidade.

As razões para isso são inúmeras. Aponta-se freqüente-mente a resistência dos países em desenvolvimento de abri-rem seus mercados e adotarem regras estáveis no tratamentodo capital estrangeiro. A verdade, no entanto, parece tervárias faces e cada um vê a que mais lhe convém. Enquan-to os países em desenvolvimento vêm dando grandes pas-sos no processo de abertura comercial e adaptação de suasregras econômicas aos padrões reivindicados pelas multi-nacionais, as nações desenvolvidas aceitam a padroniza-ção das regras desde que sejam as suas regras e nem mes-mo se entendem entre si, como ficou patente na malogradatentativa de lançamento de uma nova rodada de discussõesda Organização Mundial do Comércio – OMC, a que seriaa Rodada do Milênio, em Seattle, em 1999.

No entanto, por mais imperfeito que seja, esse novocampo de competição encontra-se muito menos obstruídodo que há alguns anos, pelo menos no que diz respeitoaos países em desenvolvimento, que foram obrigados aabandonar uma série de mecanismos de proteção a suasindústrias e produtores locais e abrir seus mercados à com-petição internacional.

Já os países desenvolvidos, escudados no argumentode que suas economias já eram bastante abertas aos flu-xos internacionais de mercadorias e capitais, pouco tive-ram de ceder para obter enormes concessões dos paísesem desenvolvimento. Além disso, naquilo que se compro-meteram a ceder, pouco fizeram de concreto. Tome-se,por exemplo, o Acordo de Têxteis e Vestuários celebra-dos na OMC, em 1994, segundo o qual os países desen-volvidos se comprometeram a eliminar gradualmente to-das a cotas que restringem as exportações dos países emdesenvolvimento em cerca de US$ 350 bilhões ao ano,até sua extinção completa em 31 de dezembro de 2004.Até agora, passados sete anos da assinatura do acordo,80% das cotas ainda estão vigendo. De 757 cotas, os EUAaboliram apenas 56, a UE apenas 52 de 219 e o Canadánão mais que 54 de 295 (Moreira, 01/11/01).

Embora pelas regras da OMC cada país teoricamentetenha um voto e cada voto tenha o mesmo peso, na prática

quem comanda o processo são as grandes potências comer-ciais. União Européia, Estados Unidos e Japão respondempor 60% das importações mundiais e suas empresas e con-sumidores gastam mais de US$ 3 trilhões anuais em produ-tos vindos do exterior. A história tem mostrado que, seja navigência do antigo Gatt, seja com a OMC, as regras de co-mércio mundial são ditadas por quem controla o acesso aosprincipais mercados e os demais países as aceitam porquenão podem deixar de fazê-lo (Moreira, 29/08/01).

Tome-se, por exemplo, a declaração ministerial pre-parada pelo presidente do conselho geral da OMC, StuartHarbinson, para lançar, no Catar, em novembro de 2001,uma nova rodada global de negociações globais. Ela re-flete de fato quem manda na OMC, uma vez que leva emconta pelo menos 80% das propostas apresentadas pelosEstados Unidos, 60% daquelas encaminhadas pela UniãoEuropéia e apenas 15% do que foi proposto pelo resto domundo (Moreira, 01/11/01).

Destaque-se, ainda, que diferentemente dos acordossobre comércio internacional celebrados no âmbito doGATT (General Agreement on Tariffs and Trande – Acor-do Geral sobre Tarifas e Comércio), a Rodada Uruguai(1986-1994), que culminou com a criação da Organiza-ção Mundial do Comércio – OMC, logrou colocar sob suaégide os mais diversos problemas econômicos contempo-râneos. Nas palavras de Renato Ruggiero, primeiro-dire-tor geral da OMC, a Organização Mundial do Comércio“é a Constituição de uma única economia global” (Folhade S.Paulo, 07/07/97). Através do uso da expressão “co-mércio e...” em todos os acordos celebrados, os mais di-versos problemas econômicos internacionais da atualida-de, como propriedade intelectual, investimentos, serviços,etc., foram colocados sob seu controle.

A criação da OMC representou, assim, um avanço emtermos de relações econômicas internacionais do que seconvencionou a chamar de “integração rasa” para a “inte-gração profunda”. Essa mudança de enfoque significouque, antes da OMC, os regimes regulatórios nacionais eramum dado a partir do qual se discutia a liberação comer-cial; com a OMC o que entra em discussão são os pró-prios regimes regulatórios nacionais.

INSERÇÃO DO BRASIL NA NOVA DIVISÃOINTERNACIONAL DO TRABALHO

Esse processo de globalização da economia, resumi-damente descrito até aqui, tem como conseqüência ime-diata a configuração de uma divisão internacional do tra-

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balho que, de certo modo, leva às últimas conseqüênciaso preceito bíblico segundo o qual “aos que tudo têm, tudoserá dado, e aos que nada têm, tudo será tirado”.

Tal fato ocorre, entre outros motivos, porque o pro-cesso de globalização, ao encurtar a dimensão espaço-tem-po dos fluxos internacionais de produção, comércio e ca-pital, exige uma eficiência muito maior dos participantesdesse jogo e expõe de maneira muito mais aguda a suafragilidade estrutural, não mais protegida pelas barreiraspolíticas e institucionais que caracterizam o jogo econô-mico mediado pelo Estado.

Nessas novas condições, as relações internacionais detroca do Brasil e outros países em desenvolvimento namesma condição, particularmente da América Latina, de-terioram-se nos últimos anos. O Brasil exporta um volumecada vez maior de mercadorias e obtém pela sua venda nomercado internacional um montante cada vez mais reduzi-do de recursos. Veja-se o caso do café: nos primeiros novemeses de 2001, as vendas brasileiras de café verde para oexterior chegaram a 14,3 milhões de sacas de 60 quilos,que representam um acréscimo de 26% em relação aomesmo período de 2000, porém a receita em dólares foi22,6% menor do que a anterior (Carvalho, 01/11/01).

Exportam-se mercadorias com cada vez menos valoragregado e importam-se produtos cada vez mais sofisti-cados. Enquanto o agrobusiness brasileiro gera um supe-rávit comercial de US$ 11 bilhões anuais, setores de pon-ta como o eletroeletrônico, máquinas e equipamentosmecânicos e químico perfazem um déficit acumulado deUS$ 15 bilhões ao ano (Lacerda, 18/06/01).

Segundo pesquisa realizada conjuntamente entre o Ins-tituto Brasileiro de Economia (Ibre), a Fundação GetúlioVargas (FGV-RJ) e a Sociedade Brasileira de Estudos deEmpresas Transnacionais e da Globalização Econômica(Sobeet), envolvendo importações e exportações de tec-nologia entre 1990 e 2000, no acumulado desses 11 anos,entendendo-se como tecnologia um rol variado de com-ponentes produtivos, que vai do fornecimento direto detecnologia industrial a licenças pelo uso de patentes, pas-sando por serviços de assistência técnica e implantaçãode projetos, o Brasil exportou menos de US$ 3 bilhões ecomprou no exterior cerca de US$ 11,5 bilhões (Kupfer,17/10/01).

A importação de componentes para a indústria de tele-comunicações superou, nos últimos quatro anos, a com-pra externa de derivados de petróleo. O crescimento dasempresas de telefonia fez com que o déficit comercial nosetor chegasse, em 2000, a U$ 6,4 bilhões. No mesmo

período, o saldo negativo da indústria de petróleo foi deUS$ 4,8 bilhões (Magnavita, 19/06/01).

Segundo estudo do Instituto de Estudos do Desenvol-vimento Industrial – Iedi, apenas 18% das exportaçõesbrasileiras representam uma combinação considerada óti-ma, ou seja, são feitas por setores nos quais o país ganhoucompetitividade e que, simultaneamente, apresentam de-manda crescente no comércio mundial. Segundo o referi-do estudo, “os setores nos quais o Brasil apresenta vanta-gem comparativa representam uma parcela muito menor(e decrescente) do comércio mundial (...) o que significaque o comércio mundial está mais voltado para produtosem que o Brasil não desenvolveu vantagem comparativa”(Rossi, 03/06/01).

Entre 60% e 65% das exportações brasileiras são de mer-cadorias básicas (commodities), produtos vendidos emgrandes quantidades, sem qualidade diferenciada. Seu preçooscila muito, dependendo do ritmo de produção e consu-mo internacionais. Depois dos atentados de 11 de setem-bro ao World Trade Center, por exemplo, o preço do pe-tróleo caiu 20% com expectativa de retração da economiamundial. O Brasil foi beneficiado pela redução do preçodo óleo, mas saiu perdendo no aço, alumínio, papel, celu-lose, café, soja, suco de laranja e outros produtos agríco-las. Em 18 meses, o preço do aço caiu 30%. A cotação doalumínio está num dos níveis mais baixos dos últimos dezanos. Desde 1957, o café não custava tão pouco. Os pre-ços agrícolas brasileiros atingiram, em outubro de 2001, acotação mais baixa em mais de uma década, com exceçãode três meses em 1992 e 1993 (Grinbaum, 21/10/01). Ilus-trativo dessa deterioração dos termos de troca é o fato deque, se os preços dessas commodities estivessem nos mes-mos níveis de 1997, as exportações brasileiras de 2001,que deveriam alcançar US$ 58 bilhões, poderiam renderUS$ 69 bilhões, ou seja, US$ 11 bilhões a mais.

Um outro fato que deve ser lembrado para demonstrara fragilidade da inserção brasileira nos fluxos internacio-nais de comércio é a alta concentração das exportações emalguns poucos produtos, para uns poucos países e em pou-cas empresas e Estados brasileiros. Segundo a Agência dePromoção de Exportações (Apex), dez itens representam35% de nossa pauta de exportação, dez países absorvem66% do total exportado pelo Brasil, 97 grupos empresa-riais são responsáveis por 53% do comércio externo na-cional e os Estados das regiões Sul e Sudeste detêm 80%das vendas externas brasileiras (Prado, 09/07/01).

A bem da verdade, essa crescente fragilidade da inser-ção comercial do Brasil não é resultado do nivelamento

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do campo de competição, mas sim do nivelamento da viade entrada de produtos e serviços nos países em desen-volvimento e da permanência de entraves e entulhos quese acumulam cada vez mais nas vias de saída.

O empobrecimento da pauta de exportação dos paísesem desenvolvimento como o Brasil não se deve apenas aofato de nossas empresas serem obrigadas a competir empé de igualdade com concorrentes com poder tecnológico,econômico e financeiro muito maior. Os países que domi-nam o comércio internacional e comandam o acesso aosprincipais mercados promovem uma abertura seletiva deseus mercados. Baixam ou mesmo eliminam tarifas e bar-reiras não tarifárias para produtos nos quais os países emdesenvolvimento não têm condições de competir ou quenão sejam politicamente sensíveis em seus países ou aindaque não tenham interesse ou condições de produzir, prin-cipalmente matérias-primas e insumos intensivos no usode energia ou que exijam processos de produção altamen-te poluidores. Impõem, contudo, barreiras elevadas paraprodutos mais elaborados que possam concorrer com suaprodução local, principalmente nos setores politicamentemais sensíveis, como a agricultura, nas indústrias decaden-tes e pouco competitivas mas com grande força política,como a siderúrgica, ou ainda naqueles segmentos que uti-lizam intensivamente mão-de-obra, como o setor têxtil.

Segundo estudo de Marta Reis Castilho, a média pon-derada das tarifas aplicadas pela UE aos exportadores doMercosul que se concentram em “produtos sensíveis” au-menta de forma expressiva em relação à média geral detarifas. No caso de produtos alimentícios, essa média sobede 8,4% para 32% e, para os produtos agrícolas, de 7,5%para 15,6%. O mesmo raciocínio é valido para as chama-das barreiras não-tarifárias. Do total das exportações doMercosul para a UE, cerca de 23% estão sujeitas a algumtipo de restrição. Esse percentual, entretanto, sobe para87,9% no caso de produtos alimentícios, para 98% em pele,couros e seus artigos e para 63,9% em ferro e aço (Canuto,16/10/01).

A evolução das exportações brasileiras no complexoda soja revela de forma exemplar a degradação da nossapauta de exportações em função da escalada tributária,processo através do qual os países ricos taxam com alí-quotas mais elevadas os produtos de maior valor agrega-do, enquanto liberam seus mercados para importação dematérias-primas que não produzem.

O Brasil já foi o principal exportador mundial de óleoe de farelo de soja, superando os EUA, principal produ-tor e consumidor mundial. Há cinco anos tínhamos capa-

cidade de esmagamento de 33 milhões de toneladas/anode soja em grão e industrializamos 21,6 milhões de tone-ladas, diante de uma safra de 26 milhões de toneladas.Mesmo com um crescimento da safra de soja da ordem de46% nesse período, a capacidade de esmagamento caiu15% e continuamos esmagando os mesmos 21,6 milhõesde toneladas, evidenciando um processo de desindustria-lização na agroindústria (Magalhães, 05/09/91).

A causa disso está no fato de que, enquanto a soja emgrão paga taxas de importação relativamente modestas,os derivados da soja de maior valor agregado pagam ta-xas muito superiores à média. No mercado dos EstadosUnidos, por exemplo, o óleo de soja é taxado em 19,1%,muito superior à tarifa média americana de 3% a 4%. AChina recorre a um sistema de cotas tarifárias para barrara importação de óleo e soja e aplica uma tarifa de 122%às importações extra-cota. A cotas não são liberadas e,assim, o óleo é taxado em 122%. Simultaneamente, a Chinaimporta montanhas de matéria-prima com uma tarifa deapenas 3%. A Índia, a maior importadora de óleos vege-tais, elevou a tarifa de importação três vezes nos últimos12 meses (Maggi, Lovatelli e Rodrigues, 11/06/01).

O caso do café não é menos exemplar. O Brasil expor-ta principalmente café verde, que é processado nos paísesde destino. Em 2000, dos 18 milhões de sacas exporta-das, 16 milhões foram dessa variedade (Carvalho, 01/11/01). A Alemanha, por exemplo, apesar de não plantar umúnico pé de café, já é o terceiro exportador mundial doproduto. Para conseguir tal façanha, libera a importaçãode grãos, que não produz, e, por meio de tarifas e outrasbarreiras não-tarifárias, dificulta a importação do cafésolúvel, de maior valor agregado.1 Desta forma, um sacode café verde importado a US$ 60 pode gerar para a eco-nomia local uma renda dezenas de vezes superior. Segun-do o economista inglês Jan Kregel, enquanto o Brasil ga-nha US$ 1 por quilo de café, a Alemanha, ao beneficiá-loe vendê-lo no mercado europeu, ganha US$ 12 por quilo(Steinbruch, 30/10/01).

O que ocorre com o couro não é muito diferente. O Brasilé grande produtor mundial de couro bovino, uma matéria-prima muito valorizada no mercado internacional. Cadaanimal abatido fornece uma peça de couro suficiente paraa produção de aproximadamente 25 sapatos. É mais inte-ressante e lucrativo exportar couro acabado ou calçado doque exportar couro cru ou semi-acabado. Para se ter umaidéia das diferenças, basta saber que uma peça de courocru custa cerca de US$ 10 no mercado internacional, en-quanto, a peça de “wet blue”, um couro semi-elaborado,

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sai por US$ 30. A peça do “crust”, um pouco mais elabo-rado, custa US$ 60 e a do couro acabado, US$ 70. Já os 25pares de calçados que podem ser feitos com essa peça decouro valem US$ 350, em média. Acontece que, nos últi-mos tempos, tem aumentado muito a exportação brasileirado “wet blue”, fazendo com que, em vez de se exportaremcalçados que renderiam US$ 350 por boi abatido e gera-riam milhares de empregos no Brasil, exporta-se cada vezmais o couro semi-elaborado, a US$ 30 por peça. Isso ocor-re porque a União Européia aplica uma taxa de 17% sobreos calçados importados e de 6,5% sobre o couro acabado.O “wet blue”, porém, entra na comunidade européia semnenhuma taxação. Estima-se que o Brasil estaria deixandode receber divisas de pelo menos US$ 400 milhões anuaispor causa dessa exportação de couro semi-acabado no lu-gar do produto acabado (Steinbruch, 11/07/00).

O resultado dessa inserção assimétrica da economiabrasileira no comércio mundial são a fragilidade e a vul-nerabilidade crescentes do país em uma conjuntura inter-nacional cada vez mais volátil.

A fragilidade externa da economia brasileira tem sidoainda agravada pela desnacionalização das empresas, queimplica crescentes remessas de lucros, além do pagamen-tos de juros, royalties, etc., o que provoca uma rigidez naconta de serviço em cerca de US$ 25 bilhões/ano.

Acrescente-se ainda que a maior parte do investimentodireto estrangeiro que tem ingressado no país destina-se àprodução de mercadorias e serviços voltados para o aten-dimento do mercado interno e não para exportação. Comoobservado anteriormente, a participação da indústria noestoque de investimentos diminuiu de 45,2%, em 1995,para 11,2% no total acumulado entre 1998 e 2000, en-quanto a do setor de serviços, voltado essencialmente parao mercado interno, saltou de 37,3% para 76,3%, no mes-mo período (Castro, 15 a 21/10/01).

RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS

As assimetrias nas relações de comércio do Brasil comos países desenvolvidos têm raízes profundas fincadas emdiferentes terrenos, sendo muitas delas em solo pátrio,resultado de nossa própria estratégia industrial e de co-mércio exterior. A especialização produtiva do Brasil naprodução de commodities e produtos de menor valor agre-gado não é propriamente uma imposição externa, muitoembora o fenômeno da escalada tributária e outras medi-das protecionistas dos países desenvolvidos contribuamsignificativamente para isso.

Trata-se, em última instância, de uma opção política eeconômica do próprio país. Enquanto no século XIX, osEstados Unidos, inspirados no pensamento nacionalista eantiliberal de Alexander Hamilton adotavam políticas pro-tecionistas em defesa de sua própria indústria nascente,no Brasil, as idéias liberais e livre-cambistas de AdamSmith faziam sucesso entre a elite agrária exportadora,divulgadas em primeira-mão pelo Visconde de Cairu.Idéias que preconizam para o Brasil a condição de um paísagrário, especializado na exportação de produtos agríco-las, sempre encontraram guarida entre as elites conserva-doras brasileiras e foram decisivas na formulação de nos-sa estratégia de desenvolvimento. Prova disso são a ferrenhaoposição enfrentada dentro e fora do governo pelos pio-neiros da industrialização no Brasil (Irineu Evangelista deSouza, o Barão de Mauá, Roberto Simonsen, DelmiroGouveia, entre outros) e a famosa polêmica que se tra-vou, em 1944, entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin,patrono dos liberais brasileiros, a propósito da vocaçãoagrária ou industrial do país (Draibe, 1985). Tais polêmi-cas, ainda que revestidas de novas roupagens, perduramaté os dias de hoje, como revela o debate recente entre ascorrentes liberal-desenvolvimentista e neoliberal dentrodo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.

O desempenho exportador da Embraer que, ao lado dacanadense Bombardier, é um dos dois mais importantes fa-bricante mundiais de jatos comerciais de médio porte, mos-tra que, quando se produzem mercadorias de alto valoragregado e demanda crescente no mercado mundial, as difi-culdades criadas pelas políticas protecionistas de outros paí-ses têm um peso relativamente menor em nossa capacidadede exportar, o que não quer dizer, naturalmente, que nãoexistam, haja vista as manobras do governo do Canadá paraimpedir o avanço da empresa brasileira no mercado mundial.

A pequena reação das exportações brasileiras mesmocom a desvalorização cambial de janeiro de 1999 mostraque a concorrência via preços no mercado mundial, paraum grande número de produtos, está em segundo plano.Para produtos mais sofisticados, de alto conteúdo tecno-lógico, o elemento central na concorrência não é o preço.Nas mercadorias cujo preço é o fator mais relevante – oque ocorre basicamente no mercado de commodities, noqual o Brasil especializou-se –, as barreiras tarifárias enão-tarifárias são utilizadas de forma intensiva, para pro-teção dos produtores locais dos países desenvolvidos, demodo que pouco resolve ser competitivo.

Tome-se, como exemplo, o açúcar. No Brasil, a pro-dução de uma tonelada de açúcar tem um custo de US$

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180. O produtor dos Estados Unidos gasta duas vezes emeia mais que o brasileiro, investindo US$ 450 para pro-duzir uma tonelada de açúcar a partir da beterraba. Já ocusto de produção na Europa é 394% superior ao brasi-leiro – a tonelada de açúcar produzido a partir da beterra-ba pelos europeus não sai por menos de US$ 710. Diantede tão gritante diferença de custos, seria de se esperar queo açúcar brasileiro tivesse entrada franqueada naquelesmercados. Não é, entretanto, o que ocorre. O acesso doproduto nacional é constrangido, quando não inviabiliza-do, por uma pesada política protecionista, que envolvedesde barreiras tarifárias até rígidos sistemas de cotas. OsEstados Unidos, por exemplo, precisaram importar, em2001, mais de 1,2 milhão de toneladas para cobrir suasnecessidades de consumo. As importações de açúcar bra-sileiro, porém, estão limitadas a uma cota de insignifican-tes 152 mil toneladas. Para ingressar no mercado euro-peu, o açúcar brasileiro paga uma taxa de US$ 367,67 atonelada, o que representa um ágio de 63% em relaçãoaos preços internacionais de uma tonelada de açúcar, si-tuados em US$ 225 (Gazeta Mercantil, 13/08/01).

Nos 50 anos decorridos desde a criação do Gatt, cujopropósito era o de liberalizar os fluxos de comércio inter-nacional praticamente interrompidos durante a SegundaGuerra Mundial, as tarifas de importação dos bens indus-triais caíram de uma média de 40% para os atuais 2%. Paraprodutos agrícolas, entretanto, as restrições não só nãocaíram na mesma proporção como, pelo contrário, em inú-meros casos aumentaram, inclusive depois da criação daOMC (Rossi, 21/10/01).

Um dos fatores restritivos para o aumento de nossasexportações encontra-se no fato de que cada vez mais nosespecializamos na produção de mercadorias que o mundonão quer comprar, ou melhor dizendo, cuja demanda éaltamente inelástica com relação tanto ao preço quanto àrenda. Nisso concordam analistas internos e externos.Jeffrey Sachs, proeminente economista de Harvard, ementrevista recente a uma revista brasileira, foi enfático:“O Brasil precisa urgentemente de uma estratégia de cres-cimento baseada em tecnologia. O país deve investir maisem pesquisa e desenvolvimento, em universidades e naatração de empresas de alta tecnologia, como as de semi-condutores (...) O Brasil precisa exportar para atingir aprosperidade. Não vendendo produtos agrícolas, mas, sim,de alta tecnologia. Se isso fosse feito, o país poderia real-mente dar um grande salto” (Salgado, 18/07/01). Eugê-nio Staub, empresário nacional do setor eletroeletrônico,presidente do Instituto de Estudos do Desenvolvimento

Industrial – Iedi, vai na mesma direção: “O problema ébasicamente o seguinte: O Brasil não está produzindo oque o mundo quer comprar” (Racy e Oliveira, 02/09/01).

Independentemente dos equívocos de política interna,as assimetrias existentes nas relações internacionais detroca do Brasil com o resto do mundo são decorrência dodesenvolvimento desigual do capitalismo mundial, em queos que estão sentados à mesa tentam a todo custo impedira chegada de novos comensais, quando muito atirando-lhes algumas migalhas. E o fato concreto é que a OMCpouco ou nada fez até agora para alterar esse status quo.Ao contrário, sua ação mais parece orientar-se na direçãode mantê-lo ad infinitum. O mesmo parece ser o sentidoque os Estados Unidos tentam imprimir à futura Alca, casonão encontrem maiores resistências dos demais parceiros.

A prova de que tal suspeita não é infundada está naquase total incapacidade da OMC de impedir que as eco-nomias desenvolvidas tomem as mais variadas medidasprotecionistas para defender seus mercados e, ao contrá-rio, na presteza com que agem contra os supostos desviosdos países em desenvolvimento quando estes supostamentefogem das regras acordadas. Ou ainda na tentativa de im-por como padrão mundial normas acordadas no âmbitoda OCDE, que congrega apenas os países desenvolvidos,como ocorreu recentemente em relação às regras de fi-nanciamento às exportações, que obrigaram o Brasil amodificar as regras do Proex, principalmente o mecanis-mo de financiamento que a Embraer vinha utilizando paraexportar aviões, e adaptá-la aos padrões dos países de-senvolvidos, quando se sabe que as condições de disponi-bilidade de capitais é totalmente diferente aqui e acolá.

Isso é mostrado de forma cristalina no relatório anualsobre “Barreiras aos Produtos e Serviços Brasileiros noMercado Norte-Americano”, preparado pela embaixadabrasileira em Washington. Segundo editorial do jornal OEstado de S.Paulo (05/10/01), a respeito do referido re-latório, “a afirmação, exaustivamente repetida, de que aeconomia americana é uma das mais abertas do mundo,com tarifas muito baixas, não serve para descrever o co-mércio com o Brasil. A média tarifária ou de equivalentetarifário, imposta aos 15 principais produtos brasileiros éde 45,6%, segundo levantamento da embaixada. Quandose consideram os produtos de maior peso na pauta, a eco-nomia brasileira é de fato mais aberta: a tarifa média apli-cada no Brasil aos 15 principais produtos americanos éde 14,3%, segundo o mesmo estudo”.

Note-se, ainda, que tais barreiras, no caso norte-ameri-cano, valem tanto para produtos agrícolas como para in-

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dustrializados. A área siderúrgica, por exemplo, é uma dasmais afetadas. De um consumo total de 119 milhões detoneladas/ano de produtos siderúrgicos, os EUA importam18 milhões de toneladas, o que eqüivale a 15% do consu-mo total. Do Brasil, os Estados Unidos importam apenas 3milhões de toneladas/ano ou 2,5% do seu consumo. Essaparticipação limitada da produção brasileira no mercadonorte-americano, em que pese a alta competitividade dasiderurgia nacional, deve-se ao protecionismo crescentedo governo dos Estados Unidos, que se traduz em acusa-ções infundadas de dumping e recorrente aplicação depenalidades cujo único objetivo é proteger a indústrianorte-americana do aço. Diante de novas demandas de pro-teção por parte da indústria norte-americana, o governoBush demandou à Comissão Internacional de Comércio(ITC), comissão do governo norte-americano encarrega-da de analisar questões comerciais, um novo estudo sobreeventuais danos causados ao setor por concorrentes es-trangeiros. Divulgado em 22 de outubro de 2001, o estu-do conclui que 12 dos 33 produtos siderúrgicos que o paíscompra do resto do mundo são subsidiados e sofrerão no-vas sobretaxas nos próximos meses (Vargas, 23/10/01).A decisão dos EUA de ampliar o protecionismo à indústriado aço provocou a ira de países exportadores em todo mun-do, uma vez que se sabe que seu único objetivo é protegeruma indústria sucateada e sem condições de competir comempresas mais modernas e competitivas localizadas não sóno Brasil como em outros países em desenvolvimento. Cadatonelada de bobinas laminadas a quente produzida pelassiderúrgicas norte-americanas tem um custo médio de US$260, enquanto o custo médio internacional é de US$ 180(Steinbruch, 30/10/01).

O protecionismo americano não se limita, contudo, aoaço. O açúcar já mencionado anteriormente paga US$338,70 por tonelada extra-cota, o tabaco, 350%, o etanol,2,5% mais US$ 0,52 por galão, o suco de laranja, US$0,785 por litro, e os produtos têxteis 38% ad valorem, maisUS$ 0,485 por quilo (Nassif, 05/10/01).

O governo americano aumentou, na década de 90, emquase 400% os subsídios concedidos aos produtores ru-rais dos Estados Unidos. Entre 1990 e 2000, a conta totalde subsídios agrícola nos Estados Unidos aumentou de US$6,5 bilhões para US$ 32,3 bilhões ao ano (Romero, 23/05/01). Em 26 de junho de 2001, a Câmara dos Deputa-dos dos Estados Unidos aprovou lei que prevê mais US$5,5 bilhões ao ano de auxílio aos produtores por causa dadepressão no preço das commodities. A lei prevê US$ 4,6bilhões em pagamentos para os produtores de grãos e ou-

tros 900 milhões para produtores de outras culturas, comoamendoim, hortifrutícolas e tabaco (O Estado de S.Paulo,24/10/01). A nova lei agrícola substituirá a lei aprovadaem 1996 e cuja vigência vai até setembro de 2002. Igno-rando o fato de que recentemente o Congresso americanoaprovou duas leis assegurando repasse médio anual à agri-cultura de US$ 17,5 bilhões para o período entre 2001 e2011, o projeto da nova lei agrícola agregará ainda maisrecursos para o setor. Apenas em novos programas degarantia de preço e renda ao produtor, a lei reserva US$50 bilhões para os próximos dez anos. Só na produção desoja, a ajuda do governo norte-americano passou de US$109 milhões, em 1992, para US$ 3,8 bilhões no final dosanos 90, mais da metade de todo o valor arrecadado comas exportações brasileiras do produto. Como resultado, aprodução americana de soja cresceu 30% (Chade, 24/07/01). O produtor de algodão americano recebe um subsí-dio de US$ 1.144,60 por tonelada, totalizando mais US$4 bilhões por ano (Maggi, 01/11/01).

A questão não se restringe, contudo, aos Estados Uni-dos. A própria OMC reconheceu no relatório divulgadono final de 2000 que as práticas protecionistas dos paísesdesenvolvidos, especialmente na agricultura, estão aumen-tando. Segundo o relatório, o apoio dos países desenvol-vidos à agricultura havia crescido 5,6% entre 1999 e 2000,atingindo o nível existente há uma década, quando a Ro-dada Uruguai estava em negociação. Segundo o relatório,a União Européia teria concedido 45% do total de subsí-dios aos agricultores, o Japão, 23% e os EUA, 21%(Abbott, 24/11/00). Para o conjunto dos países industria-lizados, os subsídios são da ordem de US$ 365 bilhõesanuais (Gazeta Mercantil, 23/05/01).

Estudo da própria OMC mostra que as cotas, outromecanismo de restrição de acesso aos mercados dos paí-ses desenvolvidos, aumentaram, ao invés de diminuir,como se poderia esperar da liberalização, ainda que tími-da, acertada na Rodada Uruguai. A União Européia (UE)pratica 85 cotas, seguida pelos Estados Unidos (54) eCanadá (21), enquanto o Brasil adota apenas uma, sobreingresso de pêras e maçãs (Gazeta Mercantil, 23/05/01).

As assimetrias nas relações internacionais de comér-cio revelam-se ainda em outros terrenos, como na aplica-ção discricionária da legislação antidumping, principal-mente por parte dos Estados Unidos, para proteger suaindústria local, cujo caso mais recente é a nova investidado governo Bush para proteger a indústria local de aço.

Nos anos 90, desde o início da vigência das decisõesda Rodada Uruguai que resultou na criação da OMC, os

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recursos dos países às medidas antidumping explodiram:foram registrados 37 casos, em 1995, e 1.218, entre 1995e 1999, dos quais 49% foram aplicados pelos países ricoscontra os países em desenvolvimento.

Nos Estados Unidos, o Anti-Dumping Act de 1916, aindaem vigor, viola os compromissos comerciais assumidos porWashington junto à OMC. Essa lei permite às própriascompanhias – e não só aos governos, como define o acor-do da OMC – abrir processos em tribunais americanoscontra importadores e produtores suspeitos de vender seusprodutos a preços anormalmente baixos no mercado nor-te-americano (Moreira, 31/05/01). Qualquer empresa quese sinta prejudicada pode solicitar ao ITC – Comissão deComércio Internacional –, uma espécie de tribunal que tema palavra final sobre denúncias de más práticas comerciais,como dumping e subsídios, a abertura de um processo deinvestigação contra empresas estrangeiras.

Além disso, a polêmica emenda Byrd, sancionada porClinton às vésperas das últimas eleições presidenciais nosEstados Unidos, determina que o dinheiro obtido pelogoverno norte-americano com a cobrança de taxasantidumping será destinado às empresas que abriram adenúncia e venceram o caso, o que evidentemente se cons-titui num incentivo adicional para as companhias norte-americanas abrirem mais processos antidumping contracompetidores estrangeiros. Não é para menos que, dosatuais 1.121 casos de medidas antidumping em vigor, 300foram aplicados pelos EUA.

Cabe ainda assinalar que um dos mais importantes acor-dos assinados por ocasião da criação da OMC, o Trips,sigla em inglês do Acordo de Propriedade Intelectual re-lacionada ao Comércio, beneficiou largamente os paísesdesenvolvidos em detrimento dos países em desenvolvi-mento. O próprio Banco Mundial recomendou recentemen-te, no relatório Perspectivas da Economia Mundial em2001, um novo equilíbrio no acordo para permitir aospaíses em desenvolvimento, principalmente os mais po-bres, o acesso a remédios e produtos essenciais ao desen-volvimento a preços competitivos (Chade, 01/11/01).

O estudo afirma que, na situação atual, se os países emdesenvolvimento tivessem que implementar totalmente oAcordo sobre Propriedade Intelectual – Trips, teriam quepagar US$ 20 bilhões a companhias no exterior por direi-tos de propriedade intelectual. Segundo o banco, a intro-dução desse tratado beneficiou principalmente os EstadosUnidos que, como sede de numerosas companhias deten-toras de patentes, obtiveram uma renda adicional líquidade US$ 19,1 bilhões por ano. A Alemanha teve um ganho

de US$ 6,7 bilhões por ano. No sentido oposto, a Coréiado Sul é o país com a maior transferência de recursos porcausa da importação líquida de tecnologia a um custo deUS$ 15,3 bilhões por ano. Outro país em desenvolvimen-to que paga alto pelo estoque de patentes é a China, comUS$ 5,1 bilhões. O Brasil paga ao exterior US$ 530 mi-lhões (Moreira, 01/11/01).

Até mesmo em tradicionais redutos do liberalismo eco-nômico o direito irrestrito sobre a propriedade intelectual vemsendo questionado. Em matéria publicada na edição de 14de abril último, a revista inglesa The Economist afirma que apropriedade do conhecimento não pode ser colocada nomesmo pé de igualdade que a propriedade de bens materiais,tangíveis. Isto porque, enquanto o consumo de um bem tan-gível por uma pessoa impede o consumo de outra (se eu usoum par de sapatos ninguém poderá usá-lo simultaneamente),tal não ocorre com o conhecimento, que pode ser partilhado,sem que ninguém fique privado de seu uso.

Um dos mais renomados defensores do livre-comércio in-ternacional, o professor da Universidade de Columbia,Jagdish Bhagwati, considera um absurdo a ênfase que a Or-ganização Mundial do Comércio – OMC vem dando à ques-tão da propriedade intelectual. Para ele, a proteção à pro-priedade intelectual que a OMC e os Estados Unidosdefendem tão ardorosamente não passa de um imposto queos países pobres pagam para usar o conhecimento dos ricos,portanto, uma transferência para as nações industrializadas.

Tudo isso revela como foi inoportuna, precipitada e sub-serviente a decisão brasileira em aceitar passivamente, em1994, a nova lei de patentes imposta pela OMC, sob pressãodos Estados Unidos e dos laboratórios multinacionais demedicamentos, inclusive com excrescências como o meca-nismo (chamado em inglês de pipe-line), que permitiu queas patentes fossem estendidas até para produtos que haviamsido inventados antes da aprovação da lei, como é o casodos remédios anti-aids que compõem os atuais coquetéis.

Países como a Índia, que se recusaram a aceitar as im-posições das multinacionais, estão produzindo tais medi-camentos a um custo que chega a ser 30 vezes inferior aocobrado pelas mutinacionais. Além disso, disputam comsuas empresas locais (Cipla e Hetero) um mercado de altatecnologia, como o de fármacos, e ainda se constituem naesperança de milhões de doentes no mundo que, não fos-sem essas empresas, dificilmente teriam acesso a medica-mentos a preços razoáveis.

De maneira geral, é possível considerar que os resultadosda Rodada Uruguai e a criação da OMC trouxeram maisbenefícios para as economias desenvolvidas do que para os

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países em desenvolvimento. Segundo o estudo do FMIintitulado “Acesso ao Mercado de Exportações dos Paísesem Desenvolvimento” até 2005, ano em que, em tese, todasas barreiras ao comércio negociadas durante a Rodada Uru-guai deverão ser eliminadas, os países industrializados con-tabilizarão um ganho total de US$ 146,2 bilhões em funçãoda liberalização ocorrida a partir de 1995. O ganho dos paí-ses em desenvolvimento será menor: US$ 108,1 bilhões.

OMC, ALCA E MERCOSUL

O Brasil encontra-se atualmente numa verdadeira encru-zilhada histórica no que diz respeito às suas relações inter-nacionais de comércio. Foram negociados, simultaneamen-te: a manutenção do Mercosul, fortemente ameaçado pelacrise da Argentina e pelas dificuldades de compatibilizaçãodos regimes cambiais do Brasil e da Argentina; o acordo delivre-comércio entre o Mercosul e a União Européia; a for-mação da Área de Livre Comércio das Américas – Alca; e apauta da próxima rodada de negociações comerciais daOMC. Das quatro, a manutenção do Mercosul e as negocia-ções no âmbito da OMC são as mais importantes, vindo emterceiro lugar o acordo de livre-comércio com a União Eu-ropéia e, por último, as negociações da Alca.

A prioridade máxima ao Mercosul justifica-se pelo fatode que este bloco comercial tem importância estratégicapara o Brasil e, com mais razão, para os demais parceirosdo bloco. Isoladamente, o Brasil – e muito menos Argen-tina, Paraguai ou Uruguai – teria as mínimas chances degarantir a efetiva inclusão, nas outras três negociações emcurso, dos problemas que consideram mais relevantes napauta de negociações. Mesmo que para a manutenção dobloco seja necessário promover recuos temporários no quediz respeito à construção da união aduaneira e do merca-do comum, a sua manutenção tem um sentido estratégico.

A importância, para o Brasil, das negociações no âm-bito da OMC também é evidente. A manutenção de umsistema multilateral de comércio aberto é o quadro insti-tucional que mais nos convém, dado que nossas relaçõescomerciais não estão concentradas com nenhum blococomercial ou país em particular. Além disso, há uma sériede questões relevantes de interesse para o Brasil, como aeliminação dos subsídios agrícolas, das cotas de importa-ção e do uso abusivo das medidas antidumping por partedos países desenvolvidos que dificilmente poderiam sernegociadas apenas no âmbito bilateral.

Como lembra Mark Jank, um dos maiores especialis-tas brasileiros em política comercial agrícola, esses temas

dificilmente serão eliminados no âmbito das Américas(Alca) e mesmo no futuro acordo entre Mercosul e UniãoEuropéia, mesmo porque, como afirma “EUA e Europasó pretendem discutir esses temas na esfera multilateral”(Puliti, 18/08/01). Além disso, em que pese o fato de asregras da OMC favorecerem claramente as economiasdesenvolvidas, como visto anteriormente, ainda assim, aexistência de um fórum multilateral para discussão dasquestões comerciais é melhor para os países em desen-volvimento do que ficar à mercê de negociações bilate-rais com as grandes potências comerciais.

Para economias emergentes, como a do Brasil, negocia-ções multilaterais são importantes por dois motivos: per-mitem maior equilíbrio na composição de interesses e tor-nam mais equitativa a solução de conflitos. Em estudorecente, Vera Thorstensen, assessora econômica da mis-são brasileira na OMC, afirma que o Brasil saiu-se bemem 85% das disputas que enfrentou na Organização Mun-dial do Comércio – OMC (Moreira, 01/11/01).

A terceira prioridade deveria ser costurar um acordo delivre-comércio com a União Européia. Além de significarum enorme fortalecimento do Mercosul, que firmar-se-ia de-finitivamente como pólo aglutinador da América do Sul,contribuindo sem dúvida, para a futura formação da Áreade Livre Comércio da América do Sul (Amercosul), permi-tiria ao país conduzir as negociações da Alca em condiçõesmuito mais favoráveis. Além disso, é importante lembrar queo Brasil tem na UE seu maior mercado de exportação.

Finalmente, deveriam vir as negociações da Área deLivre Comércio das Américas – Alca. Muito embora e atéporque de todas as negociações em curso a Alca é semdúvida a que produziria maiores impactos, negativos oupositivos, sobre a economia brasileira, sua negociação deveser cautelosa e sujeita a uma série de pré-condições.

Destaque-se, em primeiro lugar, que aderir de forma pre-cipitada à Alca significa assumir, definitivamente, a condi-ção de peão dos Estados Unidos no tabuleiro de xadrez dasrelações internacionais. Assim como o México é hoje um meroapêndice da economia americana, dificilmente o Brasil ob-teria um estatuto superior a este, caso aderisse à Alca nascondições atualmente estabelecidas pelos Estados Unidos.

Além do mais, se for negociada a adesão à Alca antesde serem consolidados plenamente o Mercosul e o acor-do de livre-comércio com a União Européia, fazê-lo de-pois será uma tarefa quase impossível, seja pela perda destatus e provável diluição do Mercosul na Alca, seja por-que eventuais acordos tornar-se-iam muito mais compli-cados. É preciso considerar ainda que, no quadro atual

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das negociações, os Estados Unidos não têm se mostradonem um pouco dispostos a abrir mão de sua política co-mercial protecionista para viabilizar o acordo.

Nessas condições, até Joseph Stiglitz, ex-economistachefe do Banco Mundial e ganhador do prêmio Nobel deeconomia em 2001, não tem dúvidas em aconselhar ospaíses da América Latina a não embarcar na Área de Li-vre Comércio das Américas, se os Estados Unidos nãoreduzirem ou eliminarem barreiras e programas como osde apoio à produção de commodities agrícolas.

Falando à agência Inter Press Service durante viagem aoEquador, Stiglitz foi taxativo: sem concessões dos EstadosUnidos, a Alca “não beneficiará as economias da AméricaLatina e do Caribe e, em vez disso, prolongará uma relaçãodesigual” (Sotero, 31/10/01). Fatos pouco animadores, comoo recente pronunciamento da Comissão de Comércio Inter-nacional (ITC) dos EUA a propósito das importações de açodo Brasil, tachando-se de danosas à siderúrgica norte-ame-ricana, não autorizam perspectivas otimistas quanto à dispo-sição norte-americana de abrir mão das políticas protecio-nistas que utilizam sempre que lhes convêm.

Finalmente, mas não menos importante, é preciso levarem conta que uma eventual adesão do Brasil à Alca semmaiores cuidados poderia significar a liquidação de gran-de parte do parque industrial brasileiro. Estudo recente daFiesp mostra que, com exceção de aviação, siderurgia equímicos, as demais cadeias de produção têm defasagemem relação às dos EUA em aspectos fundamentais e queempresas nacionais de inúmeros setores teriam dificulda-des para brigar no livre-comércio (Pereira, 24/09/01).

Ao se considerar que, atualmente, a futura Alca repre-senta, para o Brasil, 70% das exportações de manufatura-dos, uma adesão precipitada poderia significar a degra-dação definitiva de nossa pauta de exportações.

NOTAS

1. A Alemanha é, atualmente, o principal destino das exportações bra-sileiras de café, à frente inclusive dos Estados Unidos, que durantemuitos anos foram nosso principal mercado. Entre janeiro e agosto de2001 as exportações brasileiras de café verde para a Alemanha foramde 2,2 milhões de sacas ou 18% do volume exportado. O mercado ita-liano passou para o segundo lugar, no mesmo nível dos Estados Uni-dos, com 11%.

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LUÍS ANTÔNIO PAULINO: Engenheiro e Analista da Fundação Seade([email protected]).

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N

O ESTADO DE SÃO PAULO COMO UMATOR INTERNACIONAL

Resumo: Discussão da influência do cenário internacional sobre as decisões dos governos subnacionais e suaascensão como novos atores neste contexto. As informações apresentadas neste artigo resultaram da pesquisa“Gestão Pública Estratégica de Governos Subnacionais Frente aos Processos de Inserção Internacional e Inte-gração Latino-Americana”, que está sendo realizada pela Fundap, PUC-SP e Cedec, e analisam de que modo umgoverno subnacional reage aos efeitos e à nova realidade internacional, utilizando-se o caso de São Paulo.Palavras-chave: integração regional; governos subnacionais; organismos internacionais.

Abstract: A discussion of how the international scene affects the decisions of sub-national governments, andof their ascension as new actors within this context. The information presented in this article was extractedfrom a research project entitled “Strategic Public Strategies of Sub-national Governments Within the Contextof the Processes of Latin American Global Insertion and Integration,” currently being conducted by Fundap,(Foundation for Public Administration), PUC-SP (Catholic University of São Paulo) and Cedec. This articleexamines how sub-national governments react to changing realities at the international level, using thegovernment of the State of São Paulo as a case in point.Key words: regional integration; sub-national governments; international organizations.

KARINA L. PASQUARIELLO MARIANO

o final dos anos 50, Ernest B. Haas elaborou ummodelo teórico para analisar o processo deintegração na Europa. Seu estudo estava inseri-

interesse e envolvimento crescentes na sociedade, acarre-tando a participação de instâncias governamentais e ato-res que inicialmente ficaram marginalizados.

Conforme as decisões são tomadas e suas conseqüên-cias tornam-se mais evidentes, a integração é paulatina-mente incorporada na vida doméstica das nações envolvi-das, aproximando sua temática do cotidiano do cidadãocomum. Em contrapartida, o maior envolvimento da so-ciedade influencia a estrutura institucional do processo deintegração, pressionando-a para assimilar e se adequar àsmudanças e às novas demandas que surgem.

É nesse contexto que os Estados assumem grande im-portância para o desenvolvimento e legitimação da in-tegração. Entende-se que, para o avanço de uma experiên-cia de integração regional, é importante haver um maiorenvolvimento dos governos subnacionais nas negociaçõese na formulação das decisões.

Esta é a questão central da pesquisa “Gestão PúblicaEstratégica de Governos Subnacionais Frente aos Proces-sos de Inserção Internacional e Integração Latino-Ameri-cana”, que está sendo realizado pela Fundap (Fundaçãodo Desenvolvimento Administrativo), PUC/SP (PontifíciaUniversidade Católica) e Cedec (Centro de Estudos de

do numa perspectiva neofuncional, mas se tornou referên-cia para todas as demais correntes das relações interna-cionais que pensaram ou pensam o fenômeno do regiona-lismo.

O conceito fundamental no modelo de Haas é a noçãode spillover.1 Tendo como ponto de partida a iniciativaburocrático-estatal, o processo iria se “esparramando”(spillover) para a sociedade, criando uma dinâmica dereações, demandas e respostas. A idéia contida nesse con-ceito é que a integração, ao se aprofundar, mobiliza gru-pos de interesse existentes na sociedade contra ou a favordo processo. A sociedade não se limita apenas a respeitaros acordos feitos entre os governos, buscando formas demelhor intervir e participar das negociações. Esse inte-resse dinamiza o processo de integração, tornando-o me-nos dependente da vontade política dos governos.

Sem entrar na discussão sobre a validade ou as críticasfeitas a esse conceito, tal como foi formulado, deve-seconsiderar que sua idéia central ainda permanece válida:a integração regional, quando bem-sucedida, tende a criar

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O ESTADO DE SÃO PAULO COMO UM ATOR INTERNACIONAL

Cultura Contemporânea). Esta pesquisa procura compreen-der o modo como um governo subnacional reage diantedos efeitos e da nova realidade internacional, analisandoo caso do Estado de São Paulo. É reconhecido que oMercosul e outros organismos internacionais têm impactossobre essa instância governamental, influenciando de algummodo sua agenda interna e sua estrutura burocrática.

“No cenário internacional recente – marcado pelas ten-dências de globalização e de integração regional, assimcomo de democratização da gestão governamental –, é fatoque os governos subnacionais passaram a ter maior rele-vância, inserindo-se como atores também no campo dasrelações internacionais, haja vista as experiências dessesgovernos no processo de integração regional da UniãoEuropéia e da América Latina” (Fundap/Cedec/PUC,2000).

Essa ampliação na atuação dos governos subnacionaisocorre de diferentes modos (exercendo funções de coor-denação, articulação, negociação, mobilização e induçãodos agentes envolvidos no processo de integração regio-nal) e com intensidade variável. Os Estados do sul do País,devido à proximidade geográfica, sofrem de forma maisintensa os efeitos da integração regional e possuem maiornecessidade de adequação a esse novo desafio.

O governo subnacional é uma organização formal comlimites territoriais, população e funções definidos. Naperspectiva adotada pela referida pesquisa, o Estado éentendido como um conjunto de elementos interdepen-dentes, que integram e fazem a alocação de valores nasociedade. Ao mesmo tempo, é integrante de um sistemamais amplo, o nacional, que o limita e influencia nessafunção.

Em princípio, a esfera subnacional é um meio para queo sistema alcance suas finalidades e as defina. Seu objeti-vo é prestar serviços à população a qual se refere, mastambém incorpora tarefas que beneficiam o sistema fede-ral e geram produtos políticos.

No caso da política externa e da integração regional,agrega-se a esse cenário um outro elemento desconsideradoaté o momento: os governos subnacionais não são consi-derados pelo direito internacional público como atoresválidos desse sistema. Portanto, sua participação deve serrealizada por meio das instituições federais competentes.

Essa relação entre a esfera subnacional e a federal, notocante às questões da integração regional e da políticaexterna, em geral, está em construção no Brasil, emboraos Estados atuem nessa área e, principalmente, soframinfluências e pressões do cenário externo. Será analisada,

neste artigo, a forma como o Estado de São Paulo está seinserindo neste contexto internacional marcado pelos fe-nômenos da globalização e da regionalização, a partir de suarelação com o governo federal e os órgãos internacionais.

INFLUÊNCIAS DAS INSTITUIÇÕESINTERNACIONAIS NO ESTADO DESÃO PAULO2

Com o fim da guerra fria, no final dos anos 80, as análisesdas relações internacionais de certa forma entraram em “cri-se”, pois tiveram que adequar seus pressupostos a uma novarealidade ou ordenamento que ainda hoje não está bem defi-nido. O único consenso a que se chegou é o da importânciacrescente da esfera econômica na determinação dos relacio-namentos entre os Estados, fenômeno esse traduzido muitasvezes no conceito de globalização. Como afirma Fonseca Jr.(1994:70), “se existe alguma unanimidade entre os analistasdo sistema internacional, é a de que vivemos um momentode transição. O fim dramático e repentino da guerra fria obrigaa repensar a ordem política, os mecanismos de segurança ede solução de controvérsias, o papel dos organismos multi-laterais”.

Esse panorama difuso permitiu que a globalização setornasse um importante elemento explicativo do que ocorremundialmente, considerando-se especialmente seus efei-tos sobre os Estados e na redefinição da ordenação tradi-cional do sistema internacional, ao fortalecer o papel dasempresas multinacionais como atores relevantes em de-trimento dos governos, que estariam perdendo o controlesobre a circulação de capitais e investimentos.

Desta forma, seria vivenciado o surgimento de uma novaordem mundial baseada não mais na força e no poder dasnações, mas sim nas interações comerciais e financeirasque condicionariam os próprios interesses dos países e suasestratégias de ação. Para além disso, estar-se-ia viven-ciando a ascensão das localidades (cidades, regiões e es-tados) como centros de decisão na promoção do bem-es-tar social, de inserção internacional e do desenvolvimento(Castells, 1999).

Esse novo status tem reflexos diretos na relação des-sas localidades com o contexto nacional e o externo. Aslocalidades ganham importância na definição dos rumosda política externa dos países, porque a implementaçãodas decisões tende a ser cada vez mais descentralizada,assim como seus efeitos. Pode-se analisar esta nova situa-ção dentro de uma lógica como a do modelo de Putnam(1993) dos Two-Level Games (Jogos de Dois Níveis), em

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que toda atuação de um governo nacional no âmbito interna-cional envolve dois processos de negociação: um voltado paraos atores externos e outro para os domésticos.

O pressuposto dessa teoria é que os acordos e compro-missos assumidos internacionalmente necessitam de apoiointerno para serem efetivamente implantados. Nesse sen-tido, os governos são obrigados a negociar no plano na-cional para criar uma base de sustentação que permita essaimplementação. As relações externas de um país tornam-se muito mais dinâmicas e complexas porque supõem umdiálogo constante em duas frentes e a acomodação per-manente dos interesses em cada uma delas. Origina-se comisso uma relação de duplo sentido: as estratégias de umaesfera devem levar em conta as da outra.

Verifica-se esta simbiose entre o governo brasileiro eo Estado de São Paulo quando se consideram as relaçõescom alguns organismos internacionais: o Fundo Monetá-rio Internacional (FMI); o Banco Mundial (Bird); e oBanco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Fundo Monetário Internacional

O FMI negocia sempre diretamente com o governo fe-deral brasileiro, no entanto, verifica-se que os resultadosdessas negociações tiveram impactos diretos sobre osgovernos estaduais, especialmente o de São Paulo.

A relação do Brasil com o FMI passa necessariamentepor dois momentos: o de resistência diante das pressõesinternacionais sobre o governo federal que necessita re-correr ao FMI e deve se adequar às imposições desse ór-gão; e o de negociação e barganha com as demais esferasgovernamentais nacionais e os diferentes grupos de inte-resse que deverão participar da implementação dessasdecisões e sofrerão diretamente os seus impactos.

O Brasil entrou no FMI em 14 de julho de 1955, em-bora somente em 1958 tenha recebido o primeiro finan-ciamento dessa instituição. Era um financiamento a curtoprazo (de 12 a 18 meses) para países com problemas tem-porários na balança de pagamentos. Durante os anos 60 e70, os empréstimos do Brasil junto ao FMI foram feitossem a necessidade de programas de ajuste, e foram rarasas vezes que o Brasil precisou de programas mais rígidosque sugeriam alterações na sua política interna.

Essa situação alterou-se a partir da década de 80, quan-do o Brasil enfrentou uma forte crise, com aumento doendividamento externo, desvalorização da moeda em umcontexto externo de altas taxas de juros e encarecimentodo dólar, recessão em nível global e inflação crescente.

Os países da América Latina foram forçados a iniciar umprocesso de reestruturação de suas economias, para fazerfrente aos serviços da dívida e à nova realidade do merca-do internacional. Além dos problemas econômicos, essacrise acarretou desgastes sociais, principalmente o agra-vamento da pobreza e o aumento do desemprego.

A solução apresentada pelo sistema internacional apaíses como o Brasil,3 que haviam aplicado uma estraté-gia desenvolvimentista alternativa, para sua adequação ànova realidade econômica mundial era a aplicação de um“pacote de políticas econômicas” proposto pelas institui-ções multilaterais localizadas em Washington,4 como é ocaso do FMI, do Banco Mundial e do BID. Essas políti-cas enfatizavam a liberação dos fluxos comerciais, a atra-ção de investimentos externos, a desregulamentação daeconomia, a redução do papel do Estado, a renegociaçãoda dívida externa no âmbito do Plano Brady e a supervi-são, por parte dessas instituições internacionais, da apli-cação dessas políticas econômicas.

Essa crise na economia internacional fez com que mui-tos países em desenvolvimento, e entre eles o Brasil, apre-sentassem o risco de inadimplência e, conseqüentemente,procurassem, com mais freqüência, empréstimos do FMI.

Embora o Brasil tenha recorrido e negociado com o FMIao longo dos anos 80, foi somente no início da década se-guinte, durante a presidência de Fernando Collor de Mello,que o governo internalizou de fato na sua política econô-mica as recomendações dessa instituição, elaborando umplano econômico conforme o modelo do FMI, que mes-clava política monetária, liberalização do comércio e taxade câmbio flutuante. No entanto, tanto no período Collorcomo no de seu sucessor (Itamar Franco), o Brasil não con-seguiu cumprir com as determinações do Fundo, levandoa renegociações constantes e suspensão dos empréstimos.

Apenas no governo Fernando Henrique Cardoso o Paísiniciou um processo de mudanças aprovado pelo FMI e,conseqüentemente, as relações Brasil-FMI tornam-se maisestreitas e os investimentos maiores. Embora o FMI nãoproporcione financiamentos para os governos subnacio-nais, pois todos os seus empréstimos se direcionam para aUnião, os impactos dos acordos estendem-se aos Estadose municípios.

O que importa ao FMI é o ajuste fiscal que se concen-tra no âmbito federal. Aos Estados e municípios coubecontribuir com esse ajuste, reestruturando equilibra-damente seus débitos com o governo federal e colaboran-do com as leis da reforma administrativa. Com isso, osEstados foram, e ainda são, influenciados indiretamente

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pelas políticas adotadas pela União de acordo com as orien-tações do FMI.

O Estado de São Paulo, devido à sua importância eco-nômica, sentiu de forma intensa os efeitos dessa reestru-turação política federal. Na retrospectiva apresentada pelogoverno Mario Covas, publicada na Internet, a maior ta-refa desse Estado foi sanear o sistema financeiro e reor-ganizar a administração. Para isso foi privilegiada umapolítica de acabar com o déficit público, realizar priva-tizações e fazer um saneamento das empresas estatais. Emúltima análise, ocorreu uma reprodução, por parte do po-der público estadual, das ações do governo federal no sen-tido de acatar as sugestões de política econômica formu-ladas pelo FMI.

Banco Mundial

O Banco Mundial financia programas no Brasil desde1949, tendo aprovado 240 projetos até o final de 2000,com um custo total de US$ 23 bilhões para o País. Deve-se ressaltar, no entanto, que a partir da década de 80, oBanco passou a enfatizar a questão social, destinando paraisso cerca de 19% dos seus empréstimos.

Esse novo direcionamento na estratégia do Bird signi-ficou sobretudo mudanças nas diretrizes do Banco, numcontexto de forte crise nos países em desenvolvimento.Nessa conjuntura, o Brasil também modificou seuposicionamento perante os órgãos financeiros internacio-nais, passando a participar de forma mais intensa nos pro-gramas de estabilização propostos por essas instituições.Conseqüentemente, esses programas passaram a influen-ciar a política interna e a própria legislação brasileira.

Contudo, da mesma forma como ocorreu com o FMI,foi somente a partir dos anos 90 e, especialmente, após1995, que esse alinhamento em relação às determinaçõesdos órgãos internacionais foi incorporado no Brasil a umprograma interno de reforma da política econômica (pormeio de programas de privatizações, maior abertura eco-nômica, desregulamentação do mercado financeiro, redu-ção dos desequilíbrios dos gastos do setor público).

A partir desse momento, a relação Brasil-Banco Mun-dial tornou-se mais estreita, sendo que muitas diretrizesdessa instituição internacional passaram a influenciar áreasde atuação dos governos federal e estadual. Essa influên-cia concentrou-se nas políticas sociais, com destaque paraa questão educacional.

Do ponto de vista do Banco Mundial, a educação é extre-mamente importante para o desenvolvimento de um país,

sendo uma das principais armas para garantir eficiência noajuste estrutural e no combate à pobreza. O Brasil, em virtu-de da ligação com o Bird e da necessidade de promover ajustesna organização do Estado, vem adotando uma série de medi-das para o desenvolvimento da educação brasileira basean-do-se nas recomendações do Banco Mundial.

No Brasil, a partir da década de 90, os empréstimospara a educação aumentaram significativamente. Entre1987 e 1990 eram de 2%, enquanto de 1991 até 1994 pas-saram para 29% (Tommasi, 1996). Em 1998, um novoprograma baseado nas novas concepções do Banco foiaprovado pela primeira vez no Brasil e recebeu o nomede Fundescola, que na visão do Bird é um de seus proje-tos mais importantes.

Todas as ações educacionais do Banco Mundial noBrasil, em 1998, alcançaram o montante de US$ 1,13 bi-lhão, com o seguinte destino: Educação Básica para o Nor-deste II; Educação Básica para o Nordeste III; FundescolaI; e projetos diretamente ligados com os Estados de SãoPaulo, Paraná, Minas Gerais e mais o Terceiro Projeto deTecnologia e Ciência.

Em São Paulo, esse projeto educacional (elaborado em1999) seguiu as orientações do Bird, prevendo realizaçãode estudos, apresentação dos resultados em conferências eabrangendo as questões da infra-estrutura. O projeto rece-beu um investimento inicial do Banco Mundial de US$ 245milhões (o total investido pelo País é de US$ 605 milhões).

A saúde é outra área para a qual o Banco Mundial conce-deu investimentos. Em 1998, o Ministério da Saúde brasilei-ro recebeu US$ 165 milhões para continuar seu projeto decombate à Aids e doenças sexualmente transmissíveis. Éimportante destacar que esse projeto transfere as responsa-bilidades da União para os Estados e municípios, tendo im-pacto direto sobre seus programas de saúde.

Um outro setor que recebeu atenção do Bird foi o agrá-rio. Em 1997, o Banco concedeu um empréstimo de US$ 60milhões para o governo brasileiro, visando a promoção demelhorias nas pesquisas nessa área. No biênio 1998-99, con-tinuaram a existir projetos para a agricultura, mas esses fo-ram mais específicos, destinando-se a determinadas áreas doPaís, entre elas o Estado de São Paulo.

A relação mais direta entre o Banco Mundial e o Esta-do de São Paulo, no entanto, se dá por meio da Corpora-ção Financeira Internacional (CFI), uma das instituiçõesfinanciadoras do Bird, cuja função é criar condições paraos países em desenvolvimento expandirem os investimen-tos do setor privado. Seu foco de atuação é a regulamen-tação das leis para uma melhor eficiência do setor priva-

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do, a construção da infra-estrutura necessária para a in-serção do País no mercado internacional e a promoção dodesenvolvimento do setor bancário. O Brasil, participa daCFI desde 1958, tendo recebido 140 financiamentos, o quesignificou um investimento total de US$ 4,3 bilhões, emprojetos que tiveram um custo total para o Brasil de US$15 bilhões.

Como em São Paulo o setor privado é bastante forte,este Estado recebeu amplo investimento da CFI, sendo maisde US$ 3,5 bilhões, nos últimos cinco anos (de 1995 a2000), distribuídos pelos diferentes setores da economia.A educação recebeu aproximadamente 17,5% desse valor(US$ 615 milhões), seguida pelo setor de infra-estrutura,com quase 15% (US$ 523 milhões). Os setores de teleco-municações, financeiro e petroquímico captaram cerca de9% cada (US$ 310 milhões, US$ 330 milhões e US$ 315milhões, respectivamente). A área de saúde recebeu US$300 milhões (8,5%), e os demais setores ficaram, cada um,com 5% ou menos do total desses investimentos.

Os dados analisados e aqui apresentados demonstramque, a partir de 1996, os empréstimos aumentaram, cominvestimentos direcionados para as indústrias em geral eempresas dos setores de agroindústria e de infra-estrutu-ra. Em 1997, a CFI começou a investir também no siste-ma financeiro e na educação do Estado de São Paulo.

O governo de São Paulo, nesse contexto, viu-se força-do a promover algumas mudanças, no sentido de construiruma nova estratégia política que possibilitasse sua melhorinserção internacional e a atração de investimentos. Nocaso específico do Banco Mundial, essa consideração tor-na-se mais relevante quando se pondera que o Bird reali-za projetos diretamente para o Estado de São Paulo e quemesmo aqueles destinados à União acabaram promoven-do transformações neste Estado.

Banco Interamericano de Desenvolvimento

O BID foi criado em dezembro de 1959 como um ban-co regional de desenvolvimento, complementar às insti-tuições de Bretton Woods. Desde o início, a questão daintegração regional ocupou um lugar de destaque na es-tratégia dessa instituição, cujos objetivos são a promoçãodo investimento de capital público e privado na região, aproteção da economia dos países-membros, o estímulo paraa atração de capitais privados que possam contribuir como desenvolvimento da região e a assistência técnica paraelaboração, financiamento e execução de programas dedesenvolvimento.

Ao longo de sua história podem ser identificados trêsdirecionamentos nas políticas dessa instituição: durante adécada de 60, o BID privilegiou as atividades na área deeducação (especialmente para a população rural), de ser-viços básicos de saúde, de desenvolvimento de ciência etecnologia, de fortalecimento e criação de instituiçõespúblicas e privadas, de melhorias nas políticas econômi-cas e de desenvolvimento industrial e da infra-estruturabásica; nos anos 70 e 80, sua atenção voltou-se para asquestões de infra-estrutura; no final dos anos 80, esta po-sição alterou-se, marcando a década seguinte por umaorientação direcionada para a reestruturação das econo-mias latino-americanas.

Deve-se lembrar que o início da década de 90 foi mar-cado por um processo de abertura econômica dos países daAmérica Latina em relação ao mercado internacional. Esseprocesso teve apoio norte-americano e das instituições fi-nanceiras internacionais, que consideraram essa estratégiaa melhor maneira de contornar a crise dos anos 80. Nestecontexto, o apoio do BID tornou-se uma alternativa aos paí-ses da região para impulsionar o desenvolvimento dentrodessa nova política de reestruturação econômica.

Os financiamentos do BID para o Brasil na década de90 voltaram-se, na sua maioria, para os projetos de infra-estrutura. Isto ocorreu também em relação ao Estado deSão Paulo, pois, segundo a avaliação do Banco, o rápidocrescimento econômico desse Estado não foi acompanha-do pelo desenvolvimento de uma infra-estrutura adequa-da, gerando a necessidade de fortes investimentos nessesetor, como medida necessária para garantir seu cresci-mento contínuo.

Nesse sentido, o BID financiou no Estado de São Pauloos projetos de despoluição do rio Tietê, de modernizaçãoda Rodovia Fernão Dias que liga a capital paulista à capitalmineira, de modernização do sistema de trens metropolita-nos, das estradas que ligam São Paulo a Santa Catarina, dosistema de drenagem, das favelas, entre outros.

Alguns investimentos do BID para o governo federaltiveram repercussão direta nos governos subnacionais,como o programa de ajuste estatal (dentro da lógica depromover a reforma do Estado) que foi um projeto fede-ral, mas continha linhas específicas para promoção de re-formas estaduais, como o programa de administração fis-cal para os Estados. Ou então, projetos de infra-estruturanacional como o Gasoduto Bolívia-Brasil, que represen-tou para São Paulo a possibilidade de uma alternativaenergética para suas indústrias. Além disso, o BID deuassistência técnica ao projeto hidroviário Paraná-Paraguai,

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O ESTADO DE SÃO PAULO COMO UM ATOR INTERNACIONAL

que, embora não tenha beneficiado diretamente o Estadode São Paulo, teve repercussões positivas sobre o projetoda hidrovia Tietê-Paraná.

O BID está preocupado com a modernização do Esta-do de São Paulo, seja na sua infra-estrutura física e so-cial, seja na reforma do aparelho estatal, pois estes seriamos aspectos que permitiriam a esse Estado maior podercompetitivo no cenário internacional.

O ESTADO DE SÃO PAULO NO MERCOSUL5

Verificou-se, na pesquisa, a influência das instituiçõesinternacionais na atual política administrativa do Esta-do de São Paulo. Essa relação tem sido basicamente rea-tiva por parte do governo desse Estado, que procurouadequar-se às normas e às determinações desses orga-nismos para obter os financiamentos necessários para apromoção de seus programas sociais, de desenvolvimentoe infra-estrutura.

No entanto, supunha-se, no início da pesquisa, que essapostura poderia ser diferente em alguns casos, com o go-verno estadual tendo uma ação mais propositiva a fim deaumentar seus benefícios. O pressuposto era de que, nocaso específico do Mercosul, o governo do Estado de SãoPaulo poderia ter essa postura positiva devido ao grandeintercâmbio comercial com os demais países do bloco.

A pauta de exportações paulistas é bastante diver-sificada, destacando-se a participação significativa dossetores dinâmicos da indústria como o setor automotivo,o de máquinas e equipamentos e o setor químico. As ex-portações dos produtos da indústria química e conexas re-presentaram 7,79%, em 1996, e 7,71%, em 1997, das ex-portações do Estado; as de máquinas e aparelhos, materialelétrico, etc., corresponderam a 23,05% e 22,75% e as dematerial de transporte equivaleram a 15,58% e 20,70%.

Nota-se que os produtos mais sofisticados, com maiorutilização de capital, apresentam um grau de exportaçãopara o Mercosul de mais de 40%, enquanto os segmentosmais tradicionais da indústria, como alimentos e bebidas,calçados e metalurgia básica, correspondem a mais de 80%de vendas para outros países. Assim, os produtos commaior utilização de capital encontram melhor mercado nospaíses do Mercosul, que é o principal destino das expor-tações do Estado. Em 1998, a soma do valor das exporta-ções do Estado para os países do Bloco ficou em US$ 4.734milhões, superando em US$ 913 milhões as exportaçõespara os Estados Unidos, sendo este país o principal desti-no das exportações do Brasil.

A relevância do Estado de São Paulo neste comérciocom o Mercosul é verificada quando se considera a im-portância dos produtos industrializados na pauta de ex-portações brasileiras, que representam cerca de 94% parao Mercosul. Tendo em vista a característica industrialpaulista, que concentra grande parte do parque industrialdo País, imagina-se que haveria uma tendência por partede seu governo de buscar maximizar sua participação nessemercado regional.

Contrariamente ao que se imaginava – em virtude dascondições estruturais do Estado de São Paulo e do con-texto internacional favorável à emergência das unidadessubnacionais – a análise das atas das reuniões do Conse-lho Mercado Comum (CMC) e do Grupo Mercado Co-mum (GMC), juntamente com notícias de jornais, nãopermite identificar o Estado de São Paulo como atorsubnacional ativo no contexto do Mercosul, ou do gover-no estadual enquanto um possível interlocutor dos inte-resses paulistas.

Da mesma forma, no que se refere aos conflitos comer-ciais no Mercosul, o governo de São Paulo não apresen-tou um posicionamento de intervenção ou de acompanha-mento sistemático das negociações, mesmo quando osenvolvidos são setores importantes para a economia pau-lista, como é o caso do setor automotivo e do açúcar. Asnegociações geralmente têm sido realizadas entre os re-presentantes empresariais e o governo federal.

A perspectiva era identificar mudanças na formulaçãoda agenda política ou de adaptação organizacional dogoverno de São Paulo. Verificou-se que, pelo menos nosúltimos dez anos, a administração estadual paulista nãodesenvolveu atividades significativas com relação aoMercosul ou à integração latino-americana. Para um im-portante membro do governo paulista, o Mercosul é vistocomo uma experiência comercial que tem seu ponto cen-tral na ação das empresas privadas e o governo intervémpara resolver eventuais impasses (Fontana, 2000).

A partir destas considerações, constatou-se que o go-verno do Estado de São Paulo reúne as condições neces-sárias para despontar como um ator importante no con-texto regional e internacional, mas até o momento issoapenas tem se traduzido em potencial. A análise empíricaaponta em sentido contrário. É essa situação paradoxal queesta pesquisa pretende esclarecer, possibilitando compre-ender melhor a dinâmica da ascensão dos governos sub-nacionais no âmbito dos processos de integração regionale também no sistema internacional, além da configuraçãode cenários que tornam isso possível.

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LIMITAÇÕES DE UM ESTADO SUBNACIONALNAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

São vários os fatores que poderiam explicar o baixoenvolvimento do governo do Estado de São Paulo noMercosul e a sua postura mais reativa em relação às pres-sões internacionais. Neste último caso, os problemas eco-nômicos e sociais desse Estado fragilizam sua capacida-de de responder ou formular estratégias de forma autônomaa esses desafios. Ao mesmo tempo, as fontes para a ob-tenção dos recursos condicionam suas alternativas.

Quando o financiamento é repassado pelo governo fe-deral, a negociação tende a se direcionar para a adequa-ção às políticas de reforma e reajuste implementadas nes-sa esfera e, na sua maioria, em conformidade com asrecomendações das instituições internacionais. Nos casosem que o financiamento é obtido diretamente junto aosorganismos internacionais, essas adequações estão incor-poradas nos próprios termos das negociações.

No que se refere à integração regional, pode-se dizerque o problema central encontra-se na forma como osgovernos subnacionais relacionam-se com o governo fe-deral no tocante à formulação da política externa brasi-leira. Tradicionalmente, esta concentra-se no Ministériodas Relações Exteriores (MRE), que possui pouca inter-locução com os governos estaduais, embora esteja bus-cando alterar essa situação com a criação da Assessoria eRelações Federativas, instalando escritórios em algunsEstados, entre eles no de São Paulo.

Essa falta de interlocução, no entanto, não afetou odesempenho dos setores produtivos paulistas que apresen-taram um bom aproveitamento das oportunidades de ne-gócio no Mercosul. O governo de São Paulo não foi pres-sionado a intervir de forma mais direta nas negociaçõesrelativas à integração, não sentindo necessidade de criarmecanismos e canais de participação apropriados na es-trutura institucional desse processo.

Até o momento, o governo brasileiro não reconheceuos Estados como atores internacionais, fato este que temlimitado a sua intervenção no Mercosul, com exceçãodos casos de ação judicial nos momentos de conflito, mas,ainda assim, a intervenção estadual ocorre de forma mar-ginal.

O Estado subnacional não pode ser tratado como umator interno apenas porque possui capacidade decisóriainstitucionalizada sob o território a que se refere. Na ver-dade, possui para a esfera subnacional, em princípio, asmesmas atribuições de um Estado federal. Ou seja, aco-

moda os diferentes interesses e, a partir deles, busca defi-nir seus objetivos e negociar com os demais atores.

As noções de vulnerabilidade e sensibilidade provenien-tes da teoria da interdependência (Keohane e Nye, 1989)ajudam a traçar a situação de um governo subnacional.Sua ascensão é um fenômeno recente e sua capacidade paralidar com as questões externas está em processo de de-senvolvimento.

Os governos subnacionais são muito vulneráveis nosprocessos de integração regional porque não possuem po-der decisório direto para lidar com seus efeitos. Quandoum Estado é prejudicado por uma política adotada noMercosul, por exemplo, tem que se reportar à estruturado governo federal para conseguir alguma compensação,ou adaptar-se para minimizar suas perdas, o que nem sem-pre é viável. Uma forma de enfrentar essa tendência é acriação de mecanismos decisórios ou estruturas capazesde representar os interesses subnacionais e influir tantono interior do Estado nacional quanto no âmbito da inte-gração regional.

Um exemplo disso seria a última reforma constitucio-nal argentina, que permitiu às províncias negociarem acor-dos internacionais, desde que não entrem em contradiçãocom os compromissos assumidos pelo Estado nacional,ou então como no caso do Estado de Otawa, Canadá, quetem ascendido enquanto ator internacional, principalmentedevido à sua importância econômica, comercial e tecno-lógica para o país.

Outra opção é a criação, dentro da estrutura da inte-gração, de espaços formais de participação dos Estados,e mais especificamente de seus representantes governa-mentais, tal como ocorre na União Européia com o Co-mitê das Regiões. Sendo o mais recente órgão criado noâmbito da experiência européia, tornou-se necessárioquando a integração alcançou o estágio de desenvolvi-mento de uma união econômica. Isto não implica afir-mar que, numa integração intergovernamental, como é ocaso do Mercosul, os interesses subnacionais não sãoainda relevantes para o seu avanço. Porém, pode-sedirecionar a análise no sentido inverso, de saber se estesinteresses estão se tornando relevantes a ponto de indi-car se o processo caminha para a criação de instituiçõessupranacionais.

Este princípio supõe que as diferentes esferas de po-der, e entre elas a estrutura regional, possuem capacida-de de aplicar suas decisões. Sua aplicação é válida naEuropa porque há supranacionalidade, o que não ocorreno Mercosul. A lógica de negociação, neste caso, está

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O ESTADO DE SÃO PAULO COMO UM ATOR INTERNACIONAL

mais próxima da Teoria dos Two Level Games, em queos Estados negociam entre si e com os seus respectivosatores internos. Sendo assim, o Estado de São Paulo nãonecessita participar diretamente das negociações relati-vas ao Mercosul porque sua intervenção se dá no planodoméstico. Porém, esta é uma situação que aumenta suavulnerabilidade.

No mesmo sentido, alguns itens levantados por Keohanee Nye (1981) a respeito da ascensão dos atores transna-cionais também podem ser aplicados aos governos sub-nacionais como forma de análise empírica: relacionamen-to com as estruturas políticas nacionais, regionais etransnacionais; alterações na percepção e nas atitudes dosformuladores governamentais; possíveis relações de depen-dência ou interdependência criadas; modificações organi-zacionais no sentido de criar novas estruturas ou formasde influência; e ascensão de setores no âmbito subnacionalcom capacidade de desenvolver alternativas de inserçãopróprias.

À medida que a integração se expande, com o avançodas negociações, o governo subnacional busca alternati-vas para influenciar o processo, seja formalmente, atra-vés de sua adaptação organizacional à nova situação e dautilização dos mecanismos decisórios institucionalizadosno nível nacional, seja informalmente, por meio da cria-ção de canais de influência em setores governamentaisou privados diretamente envolvidos com o processo deintegração.

Esta questão levanta um outro problema: os interessesrelativos ao processo de integração não são encaminha-dos aos governos estaduais, mas diretamente aos órgãosfederais que participam das negociações do Mercosul epossuem capacidade real de influenciar as decisões. Aosgovernos subnacionais podem ser encaminhadas as deman-das daqueles negativamente afetados, que buscam na es-fera subnacional as compensações que não receberam dogoverno federal.

Enquanto os impactos negativos do Mercosul foremdifusos e localizados, o governo do Estado de São Paulotende a manter a sua atual postura de não participar demaneira mais ativa no processo de integração. Contudo, anova lógica internacional, marcada pela ascensão das lo-calidades, exigirá dos governos estaduais estratégias es-pecíficas e bem definidas de inserção internacional.

NOTAS

1. O termo spillover não possui uma tradução teórica específica e, porisso, será sempre usado em inglês; seu significado está ligado à idéiade “derramamento”, de algo que se inicia num determinado ponto e“transborda”.

2. Esta parte do texto contou com a colaboração de Maíra JunqueiraNeves.

3. A política de substituição de importações gerou no Brasil, durante adécada de 70, o chamado “milagre econômico”, baseado na concepçãocepalina de que o protecionismo promoveria o desenvolvimento indus-trial e tornaria o país autônomo em relação ao mercado internacional.Apesar da promoção efetiva do desenvolvimento do parque industrialbrasileiro, de forma geral este não acompanhou os níveis de competiti-vidade existentes no mercado mundial, representando hoje um sinal dasua fragilidade diante da competição externa e, em certos casos, umacomodamento resultante das garantias e auxílios do protecionismo.

4. Daí ter-se chamado este conjunto de políticas de “Consenso deWashington”.

5. Esta parte do texto contou com a colaboração de Carolina Gil San-tos e Ricardo Glöe Mendes.

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KARINA L. PASQUARIELLO MARIANO: Cientista política, Pesquisadorado Cedec ([email protected]).

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A INFINDÁVEL GUERRA AMERICANABrasil, EUA e o narcotráfico no continente

Resumo: Os discursos governamentais nas Américas investem, em uníssono, em uma política de combate aotráfico e ao uso de substâncias ilegais. Na esteira do consenso político e econômico atual, o combate ao narco-tráfico alinha posturas repressivas em todo o continente. Este artigo trata do diálogo existente entre oproibicionismo brasileiro e norte-americano, acompanhando matizes históricos e práticas contemporâneas.Palavras-chave: narcotráfico; proibicionismo; política externa norte-americana.

Abstract: The governments of North, South and Central America are unanimous in their strong anti-drug po-licies. Hemispheric consensus currently exists in both the political and economic spheres, in favor of a harshapproach to combating narcotrafficking. This article attempts to examine the relationship between the Brazilianand American versions of prohibitionism, placing it in its historical context and reviewing contemporaryapproaches.Key words: narcotraffic; prohibitionism; United States foreign policy.

THIAGO M. S. RODRIGUES

É preciso encontrar a guerra: ela é a cifra da paz.

Michel Foucault

cial” que não causa tamanha celeuma. Trata-se, justamente,da unanimidade em torno da urgência em se combater otráfico de drogas nos países da região. Amparada em las-tros morais, escorando-se também em saberes médico-sanitários, a luta contra o narcotráfico é acionada politi-camente quando o próprio tráfico de drogas é içado aoposto de maior antígeno a “infectar” e “corromper” a vidasocial e institucional dos Estados neodemocráticos. Onarcotráfico, considerado o amálgama que congrega epatrocina diversas manifestações da criminalidade orga-nizada, passa a ser alvo de Estados que não discutem tão-só a internacionalização de suas economias, mas que in-vestem no enrijecimento harmônico das políticas derepressão à produção, tráfico e consumo de drogas.1

Dentro de um campo vasto como este que cerca o nar-cotráfico, este artigo propõe um foco bem definido e que,de modo explícito, nega pretensões normativas ou entraem disputas por supremacias cognitivas. Diante de ques-tões referentes à constituição de blocos econômicos regio-nais ou continentais e de outras discussões que recebemfeições supranacionais,2 cabe lançar um olhar, ainda queparcial, sobre a postura brasileira no que concerne tantoao combate estatal ao tráfico quanto às atividades levadas

consenso democrático – que irmana práticas po-líticas e discursos governamentais no conti-nente americano da passagem do século XX ao

XXI – dialoga com outro tema de unívoca concordância:o combate ao narcotráfico. Presente nos mais diversos am-bientes diplomático-administrativos continentais, a discus-são sobre a “guerra às drogas” assume posição de desta-que nas agendas dos Estados americanos, tanto no planodas políticas de segurança nacionais quanto nas de segu-rança coletiva. A preocupação maior do discurso políticoamericano contemporâneo, a manutenção da democracia,emerge umbilicalmente relacionada a fatores tão condi-cionantes quanto vagos, como o “fortalecimento das ins-tituições”, a “defesa dos direitos humanos” e a “libe-ralização dos fluxos comerciais e financeiros”. Conquantotais matérias causem debates por vezes acirrados entregrupos econômicos, governos e setores sociais das Amé-ricas, há outro ponto vinculado à “manutenção da paz so-

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a cabo por empresas narcotraficantes no Brasil e sobre osveios de comunicação entre o proibicionismo dos Esta-dos Unidos e a postura repressora brasileira, lançando mão,para tanto, de uma breve análise genealógica do tráfico edas leis antidrogas brasileiras e norte-americanas.

ECOS NO PRESENTE

Nos anos iniciais do século XX, os brados moralistasque se faziam ouvir nos Estados Unidos desde meados doséculo anterior passam a reverberar nas altas esferas polí-ticas estadunidenses. O puritanismo organizado norte-americano3 conseguira, então, levar seus homens às ins-tâncias representativas, ao tempo em que as práticasgovernamentais do Estado aceleravam a marcha das me-didas de controle social com base no rastreamento de há-bitos e na disciplinarização de condutas. Apesar do cres-cimento dos movimentos sociais proibicionistas, o cenárioprivilegiado para os primeiros passos repressivos do Es-tado norte-americano não foi o ambiente político domés-tico, mas o teatro das negociações diplomáticas. O go-verno dos Estados Unidos logra seus êxitos iniciais nocontrole de drogas nas reuniões internacionais que con-voca. A primeira, realizada em Xangai, em 1909, não chegaa elaborar determinações impositivas aos países signatá-rios (países que contavam com fortes indústrias farmacêu-ticas e com monopólios comerciais na Ásia, Inglaterra eAlemanha), mas constrange essas mesmas potências in-ternacionais que, ao contrário dos EUA, interessavam-sepelo lucrativo mercado do uso hedonista do ópio e seusderivados.4

A próxima conferência patrocinada pelos Estados Uni-dos aconteceu em Haia, Holanda, em dezembro de 1911.O documento, assinado em janeiro de 1912, satisfez osdiplomatas estadunidenses ao fixar determinações espe-cíficas que obrigavam os Estados signatários a coibir, emseus territórios, todo uso de opiáceos e cocaína que nãoatendessem recomendações médicas. Limites científicos,provenientes do saber médico que se construía então e queganhava legitimidade pela chancela estatal, parametrandoe justificando a necessidade de se proibir o “uso indis-criminado” de substâncias “alteradoras do comportamen-to”. Importante destacar o fato de que ao defender medi-das severas de controle no plano internacional, o governoestadunidense não estava defendendo uma interna-cionalização de sua lei nacional. Pelo contrário, não ha-via no ordenamento interno norte-americano lei semelhanteao Tratado de Haia; o que de fato ocorreu foi a utilização

pelo governo norte-americano de uma tática depois recor-rente que consistiu em usar normas acordadas internacio-nalmente como instrumento para pressionar reformas le-gais internas. No momento em que o acordo de Haia eraassinado, transitava pelo Congresso norte-americano umaproposta de lei que previa não mais a mera fiscalizaçãoestatal, mas a efetiva proibição do livre consumo deopiáceos e cocaína. O cumprimento do acordo internacio-nal só poderia dar-se com a adequação do código internoestadunidense, o que afinal ocorreu em 1914 com a pro-mulgação da Harrison Act.5

As resistências das alas políticas liberais, calcadas naidéia de que o uso de drogas era questão de foro íntimo,vão sendo minadas ao longo da década de 10 até que, em1919, a antiga reivindicação proibicionista (a supressãodo álcool) cristaliza-se em lei federal. A 18a Emenda àConstituição proibia a produção, transporte, importaçãoe exportação de bebidas alcoólicas em todos os Estadosda federação. A década seguinte principia com um gigan-tesco mercado ilegal criado pela Lei Seca, circundado porcircuitos clandestinos relacionados a outras drogas proi-bidas como a cocaína. O aparato burocrático-repressivocresce desmesuradamente para tentar dar conta das ativi-dades ilegais e de pessoas (negros e imigrantes chineses,mexicanos, irlandeses e italianos) lançadas nesses ambien-tes de marginalidade. No plano internacional, os EUAmantêm a postura de enunciadores de políticas repressi-vas que são, em linhas gerais, tomadas como base dos tra-tados internacionais firmados desde então.

Ao sul, o Brasil deste início de século também assistiaa emergência e a complexificação de códigos sanitáriosdestinados à profilaxia e à higienização sociais. O Códi-go Sanitário da República, editado em 1890, preocupava-se com a disciplinarização do espaço urbano o que equi-valia, entre outras medidas, à remodelagem das cidadessegundo padrões europeus e à imunização compulsória dapopulação. O tema do controle de substâncias psicoativasentrava tangencialmente na pauta sanitária, e a venda e ouso desses produtos não eram, até a década de 10, passí-veis de qualquer controle estatal. Havia a condenaçãopública do uso de drogas por jornais conservadores e gru-pos moralistas como a Loja Cruzeiro do Sul; contudo, aprática da intoxicação foi tolerada enquanto fez parte domundo dos prostíbulos chics freqüentados pelos jovensfilhos da oligarquia da República Velha. No início da dé-cada de 20, contudo, a situação modificara-se. De um lado,o Brasil havia-se comprometido na Convenção de Haia afortalecer o controle sobre opiáceos e cocaína, o que de

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fato nunca fizera; de outro, os “vícios elegantes” dos ra-pazes finos logo perderam a aura romântica perante osolhos governamentais ao se disseminarem entre as “clas-ses perigosas”, ou seja, entre negros, pardos, imigrantes etoda a plebe urbana nacional (Carneiro, 1993). Assim, em1921, surge a primeira lei restritiva na utilização de ópio,morfina, heroína e cocaína no Brasil. Seguindo o modelode Haia (preconizado pelos Estados Unidos), a lei brasi-leira previa punição para todo tipo de utilização dessassubstâncias que não seguisse prescrições médicas. O Bra-sil compareceria a todas as outras convenções plenipo-tenciárias sobre controle de drogas, assinando acordos ereformando seu ordenamento interno mediante ratificaçãodos compromissos internacionais.

Estar alinhado às determinações acordadas nos encon-tros internacionais significava, em larga medida, estar sin-tonizado com a postura proibicionista defendida pelosEstados Unidos; postura que se pautava pela proibição totalà livre produção, circulação e consumo de substânciaspsicoativas e pela repressão cerrada aos segmentos sociaisassociados (em parte pela prática, em parte pelo discursogovernamental) ao tráfico de drogas. Se os encontros in-ternacionais dos anos 1920 e 1930 foram ciceroneados pelaLiga das Nações, após a Segunda Grande Guerra tais reu-niões continuaram a se dar no âmbito da Organização dasNações Unidas (com seus organismos especializados),sempre contando com a incitação estadunidense. O Bra-sil, assíduo freqüentador dessas reuniões, pauta o ritmode suas sucessivas reformas legais na matéria, seguindoas determinações acordadas nesses encontros. O procedi-mento de ratificação de tratados, ato de incorporação deum acordo internacional ao ordenamento legal nacional,foi instrumento primordial utilizado para atualizar as dis-posições vigentes no País, incrementando o corponormativo e, conseqüentemente, fornecendo ao Estadomaiores artifícios para acionar de maneira ainda mais en-fática os aparatos de coerção ao tráfico e, em particular,aos traficantes.

Pode-se ilustrar essa postura brasileira, calcada na ló-gica da reforma interna motivada por acordos externos,por meio de dois exemplos: o Decreto-Lei n. 891 – 1938,editado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, sofisticavaas determinações antidrogas vigentes no País desde a leide 1921, baseando-se nos documentos assinados nas con-venções de Genebra de 1931 e 1936;6 a reforma da lei sobretóxicos de 1967 deu-se na esteira da incorporação aoordenamento jurídico brasileiro da Convenção Única so-bre Entorpecentes, o mais completo documento proibi-

cionista de abrangência internacional assinado na sede daONU em 1961.7 O moto contínuo das reformas prosse-gue com a edição da Lei de Tóxicos, Lei n. 6.386 – 1976,compilação e ampliação de determinações anteriores e que,com alguns ajustes posteriores, permanece em vigor noBrasil ainda que esteja na iminência de ser reescrita sobmoldes mais contemporâneos.8

MORROS E SELVAS: RASTROS

Alguns assaltos a bancos muito bem executados fi-zeram com que circulasse na imprensa carioca, emmeados de 1981, a sugestão de que, após a anistia polí-tica, as guerrilhas urbanas haviam-se rearticulado. Osensacionalismo midiático cede ao peso de constataçãoainda mais alarmante: não era a contestação armada queressurgia, mas o crime comum que anunciava sua trans-formação. A Lei de Segurança Nacional de 1968 haviaequiparado sob a mesma tipificação assaltantes e se-qüestradores comuns e guerrilheiros urbanos, dupla ten-tativa do governo militar em desqualificar os atos daesquerda e de capturar sob uma lei de exceção pessoasprovenientes das “classes marginais e perigosas”. Iso-lados em uma mesma ala da penitenciária de segurançamáxima da Ilha Grande, assaltantes comuns e guerri-lheiros urbanos partilharam saberes. Anistiados no go-verno Geisel, os guerrilheiros deixam a Ilha Grande,em 1975. A anistia, todavia, não é tão geral e irrestritaa ponto de liberar criminosos comuns (ainda que eleshajam sido condenados pela mesma lei dos “perdoa-dos”). Os que permanecem encarcerados usam táticasde organização aprendidas com os guerrilheiros parasobreviver às outras facções que dominam o complexocarcerário. Organizam um grupo de autodefesa chama-do Falange Vermelha, mas que pouco depois seria de-finitivamente batizado de Comando Vermelho.

No começo dos anos 80, o Comando Vermelho con-quista o circuito penitenciário do Estado do Rio de Ja-neiro e ganha as ruas após inúmeras fugas de filiados.Grupos de assalto a bancos são formados por antigosassaltantes presos pela Lei de Segurança Nacional e que,de novo em liberdade, tentaram atualizar a prática comconhecimentos acumulados na partilha de saberes daIlha Grande. A fase dos assaltos a bancos, contudo, éefêmera. O Comando Vermelho, organizado no siste-ma carcerário e nos morros cariocas, passaria logo aoutro negócio, mais rentável e, então, em franca expan-são: o tráfico de drogas.

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O aumento da demanda por cocaína nos Estados Uni-dos e Europa, na passagem dos anos 70 para os 80, poten-cializara o tráfico de drogas nos países andinos, transfor-mando um negócio ilegal ainda de proporções modestasem grande empreitada empresarial. Na Colômbia, despon-tam grupos que, por acumularem tradição em práticas ile-gais (tráfico de maconha, esmeraldas, seqüestros e con-trabando), detêm os contatos e conexões fundamentais parasintetizar a cocaína e transportá-la aos centros consumi-dores (estadunidenses, europeus e latino-americanos).Essas empresas narcotraficantes, como a de Pablo Escobare a dos irmãos Rodríguez Orejuela, concentram em suasmãos a fase da transformação da pasta-base em cocaínapura e da venda de grandes carregamentos da droga paraatacadistas internacionais. A pasta-base, etapa inicial daprodução de cocaína (quando as folhas de coca sãomaceradas e tratadas com produtos químicos até formaruma massa), era naquele momento produzida sobretudona Bolívia e no Peru, países com áreas de tradicional cul-tivo da coca que, com a emergência do negócio do tráficoilegal, passaram a produzir excedentes destinados ao nar-cotráfico. Nessa cartografia do narcotráfico latino-ameri-cano do começo dos anos 80, o Brasil desponta como rotafundamental para o escoamento da cocaína, com suas re-giões selvagens como locus privilegiado para centros deapoio logístico e com sua indústria química como forne-cedora de insumos necessários ao fabrico da cocaína.

O mercado da cocaína apresentava-se como umaampulheta deitada,9 e as bases povoadas por, em um ex-tremo, grupos em disputa pela fase inicial da transforma-ção das folhas de coca em pasta-base e noutro pelo sem-número de organizações que, em disputa cotidiana eviolenta, competem pelos territórios varejistas. A estreitapassagem da ampulheta representaria justamente a fase detransformação da pasta-base em cloridrato de cocaína,etapa dominada por poucas empresas ilegais. Aplicandoa reflexão de Krauthausen e Sarmiento (1991) sobre aeconomia ilegal do tráfico à imagem acima apresentada,o gargalo da ampulheta representaria o setor oligopólico,constituído pelos poderosos grupos ilegais como o deEscobar, que evitam embates diretos entre si, dominam oconhecimento sobre as redes de distribuição internacio-nais e mantêm fortes laços simbióticos com o Estado esuas instituições; as bases da ampulheta ilustrariam, por seulado, os setores competitivos do mercado da droga, ambien-tes nos quais os embates são violentos e constantes.

O Comando Vermelho apresenta-se, então, como umaorganização inserida nessa dinâmica internacional do nar-

cotráfico, ocupando lugar de destaque no setor competi-tivo brasileiro, ao disputar e, de fato, dominar, o varejodo mercado de drogas no Rio de Janeiro da década de80. Organização que fixa sua autoridade nas favelascariocas conjugando assistencialismo e coerção, fórmu-la maquiavélica da manutenção do poder que aliaadmiração, respeito, dependência e medo. As áreas do-minadas por chefes ligados ao Comando Vermelho tor-naram-se alvéolos de autoridade; autoridade exercidapelo “dono do morro” que impõe suas próprias normas etáticas de disciplinarização da população local. Comoum “Estado-caricatura”, o morro dominado pelo Coman-do Vermelho exibia manifestações próprias de gestão daconduta dos indivíduos.

O Estado brasileiro declara guerra ao Comando Ver-melho: constrói a prisão Bangu Um especialmente pararecolher traficantes, como José Carlos dos Reis Encina, oEscadinha, ataca pontos de venda de drogas, sobe morrose com isso logra sustentar um conflito diário que mata sol-dados de ambos os lados, além da população favelada, semarranhar o tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro,muito menos os circuitos da economia internacional dotráfico que perpassam o território nacional. De fato, osesforços do governo brasileiro em combater o tráfico in-dustrial dos anos 80 (iniciativas que já despontam na se-qüência de acordos celebrados nos anos 70 com os Esta-dos limítrofes da região amazônica)10 acertavam o passoda política nacional antidrogas perante o novo cenário darepressão internacional ao narcotráfico.

No momento em que o Comando Vermelho crescia noRio de Janeiro, o governo norte-americano passava a fo-calizar o tráfico de drogas de maneira ainda mais incisi-va, transformando-o em “grande inimigo dos EUA”. Em1986, o presidente estadunidense Ronald Reagan edita aNational Security Decision Directive on Narcotics andNational Security (NSDD-221), documento no qual ogoverno norte-americano “oficializa sua percepção de quea principal ameaça aos Estados Unidos e ao hemisférioocidental passara a residir na simbiose entre terrorismode esquerda e narcotráfico, (...) a NSDD-221 ‘diagnosti-cava’ o problema da ‘narco-subversão’ e expunha a ne-cessidade imperiosa de que os Estados Unidos de defen-dessem (e defendessem o continente) da grande trama‘narcoterrorista’” (Rodrigues, 2001:215). Se desviaria emdemasia da discussão atentar para as intrincadas relaçõesdos Estados Unidos e o “narcopatrocínio” às guerrilhasde direita na América Central nestes mesmos anos, contu-do, o que cabe frisar é o deslocamento da doutrina de se-

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gurança nacional norte-americana que se desenha com adeclaração de Reagan. A justificativa maior para a inter-venção estadunidense na América Latina iniciava ummovimento que reporia no lugar do “combate ao comu-nismo” uma outra urgência. Quando fuzileiros navais nor-te-americanos ocupam a Cidade do Panamá e capturam oentão presidente da república panamenha, Manuel Noriega,a acusação que pesava sobre ele já não era ‘conspiração co-munista’, recorrente incriminação da guerra fria, mas umcrime de nova ordem: “conspiração por tráfico de drogas”.

A abdução de Noriega é retrato de um momento no qualo proibicionismo norte-americano havia recobrado fôle-go. A Convenção de Viena, celebrada em 1988, atualiza-ra a Convenção Única de 1961, encorpando as obrigaçõesrepressivas dos Estados signatários (entre eles o Brasil).A continuidade do governo republicano em Washington,encabeçado por George Bush, garantia a manutenção dadiplomacia antidrogas, mas também, inaugurava nova fasena qual os EUA esforçaram-se em militarizar o combateao narcotráfico no continente. Nas conferências presiden-ciais de Cartagena (1990) e San Antonio (1992), Bushpropôs a seus colegas do México, Peru, Bolívia, Colôm-bia, Equador e Venezuela, que apoiassem a formação deuma força militar transnacional, coordenada pelos Esta-dos Unidos, destinada a combater o narcotráfico no con-tinente. Ao sugerir um exército formado por militares detodos os países envolvidos, a proposta de Bush tentavaquebrar resistências dos presidentes latino-americanos eda opinião pública norte-americana. De um lado, uma forçamista escamotearia a ingerência estadunidense, de outro,a partilha das responsabilidades militares não pareceriaaos cidadãos norte-americanos que seus filhos seriam lan-çados em um “novo Vietnã”. A estratégia, contudo, não ébem-sucedida; a força antidrogas continental não é formada,mas o investimento na idéia de repartir funções no combateao narcotráfico permanece em novo período de ampliaçãoda repressão em tempos de consenso continental.

CONTROLE: REFORMAS E FLUXOS SIDERAIS

Em 1990, o governo brasileiro propõe a criação do Sis-tema de Proteção da Amazônia (Sipam), projeto que in-corporava ao tradicional discurso da segurança nacionala questão da segurança ecológica (defesa do patrimôniobiológico). O Sipam seria o coordenador de políticas es-tatais para a região amazônica, ao concentrar a análise dedados obtidos pelo cruzamento de imagens captadas porsensoriamento remoto. A estrutura operacional idealiza-

da para o Sipam foi o Sistema de Vigilância da Amazônia(Sivam), constituído por uma rede de satélites, radaresfixos e computadores integrados por tecnologia de pontaem telecomunicações. A região amazônica, vazio históri-co de autoridade estatal, passaria a ser alvo de uma novamodalidade de controle territorial: a teledetecção.

Os objetivos declarados do Sivam são o monitoramentoda região amazônica para a proteção ambiental (identifi-cação de áreas de desmatamento, previsões meteoro-lógicas, monitoramento dos recursos hídricos e das rique-zas do solo) e para a coerção das atividades clandestinas(extração de madeiras protegidas, contrabando defármacos, garimpos ilegais e, em especial, ao tráfico dedrogas).11 Idealizado para controle ostensivo da Amazô-nia brasileira, o Sivam seria apenas a quarta etapa do Pro-jeto Cindacta12 se o monitoramento da região amazônicanão envolvesse questões políticas e estratégicas importan-tes como a vigilância ambiental (biotecnologia), a repres-são ao narcotráfico e a possibilidade de concretização daposse definitiva do Estado brasileiro sobre um imenso ter-ritório que sempre esteve por ser de fato conquistado. Aproposta do Sivam evidenciou que, no pensamento sobretemas de segurança nacional, a importância geopolíticahistoricamente conferida à região do Prata (disputa porhegemonia regional com a Argentina) desloca-se para aAmazônia num momento em que o discurso ecológicoprega a internacionalização da floresta tropical e que onarcotráfico apresenta ameaças à soberania tradicional (deforma direta, pela ocupação de espaços vazios de poderestatal e, indiretamente, pelo temor constante de uma in-tervenção norte-americana supostamente direcionada àguerra às drogas).

A vigilância desde o espaço sideral desenha-se, então,como técnica de gestão do território e dos indivíduos empermanente ação ainda que imperceptível. Das tentativasde ocupação e controle da Amazônia legal, que pode re-montar às expedições de Rondon, à criação da zona fran-ca de Manaus nos anos 60, à construção da Transama-zônica nos 70 e ao projeto Calha Norte, dos 80, o Sivam13

surge como nova tentativa de apossamento da vastidãoamazônica amparada na “premente necessidade” em secontrolar os fluxos de atividades ilícitas na região. Apósas polêmicas em torno da licitação para a compra dos ra-dares e das disputas sobre o manejo das informações sigi-losas que seriam geradas pelo sistema de vigilância, ogerenciamento de dados do Sivam é transferido, em 1995,para o Ministério da Aeronáutica, militarizando, sem sub-terfúgios, o projeto.14 Com previsão inicial para estar em

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A INFINDÁVEL GUERRA AMERICANA: BRASIL, EUA E O NARCOTRÁFICO...

operação parcial em 1998, o Sivam não deve rastrear aplanície amazônica antes de 2002.

Além do rastreamento de ilegalidades proposto peloSivam, a década de 90 foi profícua, no que concerne aocombate ao narcotráfico, em tentativas de expurgo leva-das a cabo nos meios políticos brasileiros. Em 1991, umaComissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é formada noCongresso Nacional para investigar a suposta participa-ção de deputados e juízes com o tráfico de drogas. Gran-des chefes não são desmascarados, redes internacionaisnão são desarticuladas, mas um parlamentar é cassado:Jabes Rabelo, deputado federal pelo Acre foi destituídodo cargo por manter, segundo a Comissão, relações comtraficantes de seu Estado natal. O Acre entra de novo nocircuito das acusações parlamentares em 1996, quando odeputado e policial militar, Hildebrando Pascoal é acusa-do de comandar um grupo de extermínio a serviço de tra-ficantes acreanos. Na esteira das investigações sobre oenvolvimento do ex-governador do Acre Oleir Cameli(1995-1998) com o narcotráfico, chega-se novamente aonome de Pascoal. Uma nova comissão de inquérito abertaem abril de 1999, conhecida como CPI do Narcotráfico,aponta Pascoal como líder de um grupo de traficantes comconexões no Brasil, Bolívia e Peru. O deputado é cassadoe preso em seguida. A “meta-inquisição” das comissõesparlamentares torna público o fato de que o Brasil nãopoderia mais ser tomado como um passivo “corredor deexportação” para a cocaína andina, mas que, ao contrá-rio, contava efetivamente com centros consumidores im-portantes, redes de distribuição de drogas e uma intrincadaconexão entre políticos, na esfera federal e estadual, juízes,roubos de cargas e caminhões e tráfico de cocaína e ma-conha. Constatações suficientes para soar o alarme de ter-ror da opinião pública e o sensacionalismo da mídia; am-biente propício para movimentar a ciranda das reformas.Em 1998, o Decreto no 2.632 emenda a Lei de Tóxicos de1976, criando a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad),órgão ligado ao poder Executivo, que deveria coordenaras ações de combate ao tráfico e prevenção ao consumode drogas no Brasil; em 1999, pouco após o término daCPI do Narcotráfico, a Senad coordena, com as forçasarmadas e a Polícia Federal, a Operação Mandacaru, queao custo de 4 milhões de dólares prendeu camponeses equeimou plantações no chamado polígono da maconhaem Pernambuco; no primeiro semestre de 2000, o gover-no federal, impelido pelo aumento dos índices decriminalidade no País, cria o Plano Nacional de Seguran-ça Pública, tentativa de federalizar o combate ao crime,

com o repasse de 1,5 bilhão de dólares para os Estadosaté 2002 (em adição ao plano, o Estado brasileiro cria oSubsistema de Inteligência vinculado à Agência Brasilei-ra de Inteligência (Abin), encarregada de centralizar asanálises de informações estratégicas).15

A “identificação” de parlamentares traficantes, juízesconiventes e consumidores em abundância justifica que oEstado proibicionista brasileiro acione dispositivos repres-sivos que, por sua vez, são atualizados por reformas le-gais e institucionais que zunem no mesmo diapasão doconcerto internacional antidrogas.

CONTROLE: ANTIGOS ALVOS E GRILHÕES

Jogral (Neo)liberal

Em um congresso patrocinado, em 1989, peloInternational Institute for Economy, centro de pesquisasediado em Washington, o economista John Williamsonapresentou um paper no qual afirmava haver, nas esferasadministrativas norte-americanas e nos organismos finan-ceiros internacionais (Fundo Monetário Internacional eBanco Mundial), uma impressionante coincidência nasrecomendações formuladas ou pensadas para a AméricaLatina. Pontos como o equilíbrio e austeridade fiscais,reforma previdenciária, corte nos gastos públicos,privatização de empresas estatais, estabilização mone-tária, desregulamentação dos mercados financeiros e detrabalho, eram conselhos recorrentes dirigidos aos gover-nos latino-americanos, fato que fez com que Williamsonidentificasse um “consenso de Washington”, que nada maisera do que a extrema convergência das diretrizes macro emicroeconômicas destinadas aos países americanos. Asistematização operada por Williamson agradou as insti-tuições em consenso e tornou-se uma espécie de cartilhaa reger as reformas econômicas tomadas em uníssono pe-los Estados latino-americanos como única via para o de-senvolvimento de sociedades soltas no redemoinho dacompetitividade global.

Jogral Democrático

Realizada em Miami, entre os dias 09 e 11 de dezem-bro de 1994, a primeira Cúpula das Américas foi uma ini-ciativa do governo de Bill Clinton que reuniu chefes deEstado de todo o continente (excetuando-se Cuba) paradiscutir um futuro de bonança para as nações americanas.O documento final, chamado Pacto para o desenvolvimento

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e a prosperidade: democracia, livre-comércio e desenvol-vimento sustentável nas Américas,16 é um compêndio deintenções que passam pela discussão acerca do papel damulher nas sociedades, da proteção do meio ambiente paraas gerações futuras, da erradicação da pobreza, da prospe-ridade por meio da liberdade comercial (lançando o proje-to da Alca), da defesa dos direitos humanos, entre outrasgeneralidades. No tópico “Plano de ação” há um subitemintitulado “A luta contra o problema das drogas ilícitas edelitos conexos”, em que o texto investe em dois argumen-tos básicos: de início conclama os Estados do continente aaumentarem a fiscalização sobre transações financeirassuspeitas (e somente as “suspeitas”, para o bem do livrefluxo de capitais) e a unirem esforços na interceptação dasredes de lavagem de dinheiro; em seguida, o documentoexorta que as nações americanas promovam ações coor-denadas para destruir organizações do tráfico, substituircultivos ilícitos por culturas alternativas, tratar dos “adic-tos”, controlar a circulação de insumos químicos e incen-tivar encontros e acordos internacionais sobre controle desubstâncias psicoativas (Arnaud, 1996:439).

Dando o tom a essas metas, está a idéia de que “os pro-blemas das drogas ilícitas (...) levantam graves ameaçaspara as sociedades, as economias de livre mercado e asinstituições democráticas do hemisfério (...) o uso de dro-gas impõe enormes custos sociais e as organizações cri-minosas põe em perigo a segurança de nosso povo atra-vés da corrupção, da intimidação e da violência” (Arnaud,1996:438). O grande “flagelo” moral, social e sanitário dasdrogas assume, assim, o caráter de “flagelo político” ao rela-cionar diretamente à existência do narcotráfico (em seus com-ponentes “violência” e “corrupção”) à fragilização das so-ciedades americanas e suas incipientes democracias.

Incorporada ao tema da manutenção da democracia nocontinente, a questão do combate ao tráfico de drogasganha positividade como peça da grande unanimidadepresente na uniformização dos valores políticos, morais esociais nas Américas. Para assumir, contudo, essa quali-dade de liga consensual, o discurso da “guerra às drogas”deve transmutar-se uma vez mais. A ênfase na militariza-ção unilateral de George Bush mostrou-se contraprodu-cente, talvez por ser explícita demais; desse modo, umareadequação programática fazia-se necessária. O própriodocumento da Cúpula das Américas nos dá sinais da polí-tica desenvolvida pelo governo Clinton ao sustentar que“frente a todos os problemas (relacionados às drogas) énecessário um enfoque integrado que inclua o respeito àsoberania nacional (...) por esse motivo, requer-se uma es-

tratégia hemisférica ampla e coordenada para reduzir oconsumo e a produção de estupefacientes”. No lugar damilitarização de Bush, Clinton propõe a “responsabilida-de compartida”, tática hábil que ao mesmo tempo eleva ocombate ao narcotráfico ao topo da agenda continental enacional dos Estados americanos.

Todos os Estados são enredados no esforço de comba-te a um “perigo que concerne e pertence a todos” e queexige “movimentos sincronizados”. O próprio Plano Co-lômbia espelha essa pequena metamorfose de prática ediscurso ao prever um aporte de 7,5 bilhões de dólarespara combate ao narcotráfico (combate apresentado comoa soma de iniciativas militares e ajuda econômica ao cam-pesinato), dos quais 1,3 bilhão de dólares provêm dos EUAe o restante reparte-se entre recursos do governo colom-biano, da União Européia, do Japão e de outros organis-mos internacionais. O envio de instrutores militaresestadunidenses e a venda de equipamento bélico norte-americano entram de roldão numa iniciativa de “caráteramplo” e que se aninha na nova idéia de partilha de res-ponsabilidades.17 O Plano Colômbia ativa, também, ogoverno brasileiro que, declarando receio de que o com-bate ao narcotráfico no país vizinho force o deslocamen-to de laboratórios de refino de cocaína e de acampamen-tos de traficantes para a Amazônia Legal, montou umaoperação (a Cobra, de Colômbia/Brasil), ação conjuntada Polícia Federal, Forças Armadas e Agência Brasileirade Inteligência que iniciou, no final de 2000, a montagemde acampamentos ao longo da fronteira colombiana. Alémdo Sivam, patrulha sideral da Amazônia, o combate aonarcotráfico inspira a ocupação tradicional da selva tro-pical, num projeto com orçamento previsto em 6 milhõesde dólares até 2003.

A aura intervencionista estadunidense esmorece ao tem-po em que a política antidrogas norte-americana conquis-ta uma importante vitória: os Estados latino-americanostomam como suas as linhas gerais da política repressivade Washington, reproduzindo no local uma postura proi-bicionista que perde as feições norte-americanas para tor-nar-se continental. Essa incorporação das diretrizesantidrogas (agora não mais estadunidenses, mas america-nas), todavia, não é de maneira alguma desprovida depositividades para os governos americanos. Pelo contrá-rio, a aceitação da agenda norte-americana e as modifica-ções legais levadas a cabo para tanto, incrementam, sig-nificativamente, a capacidade governamental em intervirna sociedade em busca dos “facínoras negociantes de ve-nenos proibidos”. Há, de fato, uma sobreposição entre os

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que são capturados pelas forças de segurança dos Estadosantidrogas e lançados nas engrenagens do sistema peni-tenciário e os tradicionais segmentos sociais tidos como“perigosos” e “desviantes”. Situação que não revela pro-priamente uma novidade, uma vez que repressão ao tráfi-co recaiu desde princípios do século XX sobre “incon-troláveis marginais”, quer eles fossem chineses e mexicanosnos EUA, quer fossem negros e mestiços no Brasil. O cres-cimento do número de pessoas encarceradas na Europa enos Estados Unidos, nos últimos decênios do século XX,característica que emerge como “tática de contenção” àmassa de “novos pobres” dos ex-welfare states, utilizacomo instrumento para a captura desses “alvos instabi-lizadores”, justamente, a perseguição às drogas. Uma aná-lise atenta das estatísticas de países da União Européia edos Estados Unidos18 não tardaria em apresentar correla-ções diretas entre o avanço da penalização sobre a popu-lação pobre ou “desassistida” e o aumento das condena-ções relacionadas às drogas ilícitas. Mesmo em países quenunca contaram com uma malha de assistência social, comoo Brasil, o recrudescimento das medidas punitivas e douso do encarceramento como medida correcional privile-giadas acompanha a paranóia da segurança pública quealimenta o temor social e os clamores por tolerância zero(Wacquant, 2001).

Na esteira da defesa de novas verdades, “nortes” a seseguir e aspirar, o combate ao narcotráfico surge comoponto nevrálgico no qual residem ameaças à ordem e àprosperidade do planeta. Este início do século XXI, tãofértil em novas utopias requentadas como a do GrandeEstado pluralista (projetado no modelo europeu) e a dapanacéia do mercado livre redentor, assiste ao investimentoque a comunidade de Estados faz na manutenção do ex-purgo à diferença, ao desvio, à alteridade. Nesse ambien-te “transnacionalizado”, alimenta-se a existência de uminimigo também volátil e sem pátria. O narcotráfico, filho-te de uma ilegalidade que gera positividades incalculáveispara o lado legal da economia global, é crime de seu tempo.Nos fluxos de capital do livre mercado mundial circulam osbilhões de narcodólares; os satélites que vigiam avionetasorbitam ao lado dos que transferem fortunas arrecadadas notráfico; as armas que combatem as organizações narco-traficantes também as equipam; e os negociadores de drogascapturados no Brasil são mais semelhantes aos norte-ameri-canos e europeus do que em geral se pensa. Transitamos,assim, em um jogo de similitudes e quase-coincidências, emtempos nos quais a hegemonia dos consensos também setraduz em eficazes estratégias de controle social.

NOTAS

1. No momento em que se elabora esta reflexão, assiste-se aos ataquesanglo-americanos ao regime afegão do Taleban, em represália aos atosterroristas de setembro em Nova Iorque e Washington. Desde o inícioda campanha contra os talebans, emergiram na imprensa informaçõesque vinculavam o patrocínio ao regime extremista, e mesmo às supos-tas ações do saudita Osama bin Laden, ao tráfico de heroína e ópio. Adiscussão pormenorizada sobre o tráfico na Ásia Central e suas cone-xões com o financiamento de insurreições locais se deslocaria da in-vestigação no campo americano, foco do presente artigo. Todavia, éimportante notar que a associação entre ‘terrorismo islâmico’ e narco-tráfico é útil aos discursos governamentais proibicionistas enquantoatrelagem entre dois “males ao Ocidente”; dois “flagelos” que mere-cem ser extirpados do mundo pelas cruzadas (“contra o terror” e “con-tra as drogas”); cruzadas que são, vale lembrar, guerras santas cristãs.Estas reflexões, num momento posterior, serão aprofundadas.

2. Faz-se referência aqui à existência de corpos de idéias que se disse-minam pelo globo no final do século XX e que criam redes de conver-gência de opiniões, posturas e demandas em torno de temas que seinternacionalizam. A defesa dos direitos humanos, da democracia comovalor político máximo, do patrimônio ecológico, dos direitos das mi-norias, entre outros, são, pois, “regimes internacionais” que encadeiamvisões de mundo e constroem valores que se universalizam como “ver-dades sãs para a humanidade”.

3. No começo do século XX diversas agremiações puritanas estavamativas nos Estados Unidos reivindicando do Estado medidas coerciti-vas em relação aos “vícios e degenerações sociais”, identificados, ba-sicamente, na tríade jogo-álcool-luxúria. São exemplos dessas associa-ções a Anti-saloon League, fundada em 1893, o Proibition Party, de1869, e a Sociedade para a Supressão do Vício, de 1873 (McAllister,2000 e Rodrigues, 2001).

4. Segundo autores como McAllister (2000), Passetti (1991) e Labrousse(2000), a Conferência de Xangai não pode ser entendida sem se com-putar como a postura proibicionista dos EUA contribuía para os inte-resses comerciais norte-americanos na Ásia. A região estava, no co-meço do século XX, sob domínio político e econômico de potênciaseuropéias, principalmente da Inglaterra; domínio que se exercia, emlarga medida, no comércio de ópio. Atacar o tráfico de ópio era, então,uma tática (que não deixava de estar amparada em preceitos morais)para minar um dos pilares do colonialismo europeu no continente.

5. A Harrison Narcotic Act foi a primeira lei de controle efetivo doEstado sobre drogas editada nos Estados Unidos. Assim, caberia a ór-gãos especiais do Estado a avaliação do potencial medicinal de qual-quer substância, ato que levaria ao seu consumo controlado (por meiode receitas médicas obrigatórias) ou proibição expressa.

6. Houve, no período entreguerras, três reuniões plenipotenciárias, sobrecontrole de drogas, celebradas em Genebra sob os auspícios da Ligadas Nações e patrocínio dos EUA: a primeira em 1925, a segunda em1931 e a última em 1936. Os dois primeiros encontros produziramdocumentos que complexificavam as estruturas internacionais de re-gistro sobre o comércio legal de drogas controladas (a parcela destina-da ao “uso terapêutico”) e que exortavam os signatários a construir emseus países instituições repressivas e burocráticas nos moldes estadu-nidenses. A convenção de 1936 foi a primeira específica sobre repres-são ao tráfico internacional de drogas; nela a delegação norte-ameri-cana comandada pelo chefe do combate às drogas nos Estados Uni-dos, Harry Anslinger (1892-1975), exigiu a total criminalização docomércio internacional de substâncias psicoativas (ópio, opiáceos ecocaína). Diante da resistência de países produtores, a delegação esta-dunidense não assina o documento final, enfraquecendo definitivamentea aplicabilidade do tratado.

7. A Convenção Única de 1961 aglutinava acordos anteriores, amplia-va o alcance das medidas de controle das drogas ilegais e burocratiza-va a estrutura regulatória internacional, além de ditar listas de drogas

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proibidas. O Brasil, signatário do tratado, incorpora suas determina-ções em 1964 pelo Decreto no 54.216 de 27 de agosto de 1964.

8. Um projeto de reforma da Lei de Tóxicos transita pelo CongressoNacional, contando com amplo apoio das bancadas governistas e deoposição, e alimentando, uma vez mais, o fluxo das readequações le-gais e dos pequenos reajustes repressivos.

9. Imagem utilizada por Gugliotta (1995).

10. Na segunda metade da década de 70, o governo brasileiro celebrou“Convênios de Assistência Recíproca para a Repressão do Tráfico Ilí-cito de Drogas que Produzem Dependência” com Peru (1975), Bolívia(1977) e Venezuela (1977). Os textos, idênticos em seus termos, sãomanifestações de intenção e comprometimento dos Estados em estrei-tarem os laços de cooperação bilateral e reforçarem o combate ao trá-fico e uso de drogas proibidas em seus próprios territórios.

11. Documento da Presidência da República, 1994, citado por Brigagão(1996:53).

12. O Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo(Cindacta) é um projeto desenvolvido desde 1981 pelo Ministério daAeronáutica para o monitoramento do espaço aéreo brasileiro. Trêsetapas do Cindacta estão em funcionamento, rastreando as regiões Sul,Sudeste e Centro-Oeste do País.

13. A estrutura do Sivam previa instalação de três centros regionais(em Manaus, Belém e Porto Velho), circundados de subcentrosoperacionais responsáveis pelo gerenciamento dos dados e das ima-gens captadas. Por sua vez, estes centros estariam conectados ao Cen-tro de Coordenação Geral, locado em Brasília com a Secretaria deAssuntos Estratégicos.

14. O governo brasileiro divulga, em 1993, que não haveria licita-ção pública para escolher o consórcio responsável pelo projeto. Aconvocação para o Sivam foi distribuída pelas embaixadas emBrasília, resultando em 12 propostas para fornecimento de equipa-mentos para o projeto. Como a questão do monopólio do controledas informações estratégicas apresentava-se como cerne das preo-cupações estatais, a empresa Esca, de capital brasileiro, foi esco-lhida de antemão para ser a gerenciadora nacional do Sivam. Ana-lisadas as propostas, restaram dois consórcios em disputa: o grupoRaytheon, dos Estados Unidos, e o Thomsom/Alcatel, da França.Começa, então, uma disputa diplomática envolvendo representan-tes dos governos francês e norte-americano que culmina na denún-cia, por parte da CIA, de que o consórcio francês havia subornadoaltos funcionários do governo brasileiro. O mal-estar diplomáticogerado, não impediu a vitória do grupo Raytheon, com o projetoorçado em 1,4 bilhão de dólares. Além dos centros regionais pre-vistos; o projeto aprovado prevê a instalação de 14 radares fixos,oito móveis (aéreo-transportados em aviões Embraer de fabricaçãobrasileira), além da elaboração de um software específico para ocruzamento de informações e imagens captadas por diversos satéli-tes artificiais.

O sigilo que envolveu a contratação da Raytheon, a ausência de con-corrência pública e de transparência na divulgação das informaçõessobre o Sivam por parte do governo, as suspeitas de ingerência norte-americana (pressões diplomáticas a favor do consórcio estaduniden-se) e a obtusidade quanto ao gerenciamento de informações estratégi-cas levantaram suspeitas sobre a lisura do projeto, causando acaloradapolêmica na opinião pública e nos círculos políticos da capital fede-ral. Em 1995, veio o afastamento da Esca de suas funções demantenedora nacional do Sivam, ao se descobrir que nove funcioná-rios da Comissão de Implantação do Sistema de Controle do EspaçoAéreo (órgão do Ministério da Aeronáutica envolvido na implantaçãodo projeto) estavam ligados à Esca como funcionários ou prestadoresde serviço. A crise política gerada com tal revelação quase obriga opresidente Fernando Henrique Cardoso a cancelar o contrato com aRaytheon. A solução para o impasse foi o deslocamento da função deoperador nacional da tecnologia fornecida pela Raytheon para o Mi-nistério da Aeronáutica.

15. A polêmica em torno da Abin centra-se no fato de que a esquerdabrasileira teme a rearticulação do Sistema de Inteligência (SNI) operantena ditadura militar (1964-1985). Contudo, a Abin sustenta um discur-so “democrático” segundo o qual serão combatidos os novos “inimi-gos nacionais”: o crime e a violência (podendo ler, nas entrelinhas,narcotráfico).

16. Texto na íntegra em Arnaud (1996:427-461)

17. Isto sem entrar na espinhosa questão levantada pelas Forças Ar-madas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de LibertaçãoNacional (ELN), guerrilhas marxistas do país, de que o Plano Colôm-bia seria uma escusa para paramentar o exército colombiano, fortale-cendo uma futura ofensiva contra os insurretos.

18. Análises acuradas sobre a relação entre o crescimento de condena-ções relacionadas às drogas ilegais e a procedência social e étnica des-tes condenados podem ser encontradas em Christie (1998), Minhoto(2000), Szasz (1992) e Wacquant (2001).

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A

MIGRAÇÕES INTERNACIONAISos blocos regionais e a mobilidade mundial

de mão-de-obra

formação de blocos regionais como Nafta, UniãoEuropéia e Mercosul, trouxe consigo a atualiza-ção de problemas historicamente associados a flu-

Aqui, ressalta-se o notável aumento das migrações intere intrafronteiras registrado nos últimos anos,1 com mu-danças no perfil do imigrante, ainda que a centralidadedo trabalho continue predominando.

Neste particular, registra-se o crescimento da oferta deempregos no setor das TIC (Tecnologias da Informação eda Comunicação) que tem desencadeado novas situaçõesque transbordam para o debate político, lançando questõesquanto aos meios de consecução de projetos de desenvol-vimento concebidos pelos governos de diferentes nações.

Sob a força das circunstâncias – após os atentados ter-roristas que atingiram os Estados Unidos no último 11 desetembro –, um aspecto referente às migrações internacio-nais ganhou destaque na discussão e encaminhamento deações nos Estados Unidos e em diferentes partes do mun-do; trata-se do reforço da segurança de fronteiras, quemesmo antes do referido atentado terrorista aos EstadosUnidos, já suscitava agudos debates em parlamentos na-cionais e fóruns internacionais – ainda que, percebido atéentão, por uma óptica com predominância orientada pelocálculo econômico.

Concomitante a esses, o debate no campo dos direitoshumanos, nos últimos anos, veio repondo questões sobre

xos migratórios que ao longo do século XX, mesmo queepisodicamente estiveram presentes nas agendas políticasde um número significativo de países.

Nos últimos anos, o debate em torno de problemasatinentes a imigração ganhou fóruns próprios, como a Con-ferência Internacional sobre População e Desenvolvimentorealizada na cidade do Cairo em 1994, por iniciativa do Fun-do de População das Nações Unidas, e o Encontro Europeuda Organização Internacional do Trabalho organizado nasede de Genebra da OIT, entre 12 e 15 de dezembro de 2000.Nestes fóruns, as questões tratadas encontram suas raízes emproblemas clássicos que envolvem migrações internacionais;entretanto, elas vêm escapando às formas tradicionais deconcepção e condução de ações dos governos nessa área.

Têm-se que, a cada momento, as questões lançadas peladinâmica das migrações internacionais ganham novos con-tornos e dimensões, avançando para além das esferas maisdiretamente e imediatamente implicadas pelas transforma-ções econômicas e políticas que agitaram o mundo desdeo final dos anos 80.

Resumo: As migrações internacionais nos últimos anos, ganhou nova dinâmica expressou-se, devido à forma-ção de blocos regionais e as transformações tecnológicas por que passam a produção e comercialização debens e serviços com a globalização, configurando novo estágio da mobilidade mundial de mão-de-obra.Palavras-chave: mobilidade mundial; migrações internacionais; consenso social.

Abstract: In recent years, international migration trends have changed in nature, most notably due to the formationof regional blocks and the technological transformations affecting the production and sale of goods and services,defining a new era in the worldwide mobility of labor.Key words: worldwide mobility; international migration; social consensus.

ARNALDO FRANCISCO CARDOSO

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MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS: OS BLOCOS REGIONAIS E A MOBILIDADE MUNDIAL...

diversidade étnica, proteção de minorias e o crescimentodo tráfico de pessoas pelo mundo; referente ao tráfico, foraobjeto de declarações públicas do Secretário de Estado dosEstados Unidos, Colin Powell, por ocasião da conclusão edivulgação do primeiro Relatório Anual de Tráfico de Pes-soas do Departamento de Estado dos Estados Unidos, emjulho de 2001. Em matéria publicada pelo jornal The NewYork Times (13/07/2001) tem-se que: “A CIA estima quepelo menos 700 mil pessoas são traficadas entre países acada ano; esta estimativa também mostrou que entre 45 e50 mil destas pessoas são traficadas para os Estados Uni-dos”; estes dados geraram a seguinte declaração de ColinPowell: “É incompreensível que o tráfico de seres huma-nos esteja ocorrendo no século 21, algo incompreensívelmas real, muito real.” (O futuro próximo se lhe apresenta-ria, causando ainda maior estupefação.).

O recrudescimento de conflitos raciais em diferentespaíses, desde muito, vem toldando os cenários mais otimistastraçados para o século recém-inaugurado. Quanto ao papelque as migrações internacionais vêm ocupando no contex-to da globalização, faz-se forçoso lembrar, períodos comoaquele entre os anos de 1960 e a eclosão da crise do petró-leo de 1973, quando países como Inglaterra, Alemanha eem menor escala a França, atendendo a demanda de ummomento de crescimento econômico, promoveram grandesações visando a entrada de mão-de-obra estrangeira em seusterritórios. Hoje vivem nesses países, as segundas e tercei-ras gerações desses imigrantes dos anos 60, o que suscitasituações em torno de questões ainda mal resolvidas, tantopelos governos quanto pelas sociedades que os atraíram ehoje os repelem. É dessa época – quando a Alemanha “con-vidou” milhares de imigrantes turcos para trabalhar em soloalemão – a representativa frase atribuída ao escritor MaxFrisch: “Importamos mão-de-obra, recebemos seres huma-nos”. A experiência vem retificando-a.

Até pouco antes do último 11 de setembro, a concomi-tância de propostas de anistia à imigrantes ilegais (cha-mados “indocumentados”), reforço dos investimentos emsegurança de fronteiras e carência de mão-de-obra (quali-ficada e não-qualificada) configurando-se em ameaça aestabilidade econômica de diferentes países, apontava paraum descompasso ou desarticulação entre diferentes inicia-tivas, causando aturdimento e minando tentativas maisousadas de um entendimento concatenado da situação dasmigrações internacionais, estimulando, assim, análisesfragmentadas e um pernicioso relativismo.

Numa perspectiva econômica, tem-se que, uma das fa-ces da globalização é a dinamização da mobilidade mun-

dial de mão-de-obra, destinando alguns países a ser terrade imigração e lançando-os numa concorrência interna-cional por mão-de-obra qualificada.

Ao mesmo tempo, proliferam deslocamentos clandes-tinos de pessoas que, transpondo fronteiras nacionais,abrem espaços mediante precárias práticas e ações con-duzidas por atores imanentemente marginais, que operamvia “redes” interagindo com os que buscam resistir ao fa-talismo da exclusão de um mundo próspero ao qual nãoestão convidados a participar. As transformações em cursono mundo vieram redesenhando-o, criando uma nova car-tografia pautada por uma geografia econômica, cujos con-trastes fazem-se mais nítidos.

Quando fronteiras nacionais flexibilizam-se em favorde blocos regionais, novos muros projetam-se alhures. Os15 quilômetros de mar que separam o norte do Marrocosda Espanha passa a ser o equivalente europeu do rio Gran-de, que se constitui em obstáculo aos imigrantes ilegaismexicanos em alcançar o solo norte-americano. Os 686quilômetros de fronteira entre a pobre Romênia e aMoldávia (ex-integrante da URSS) adquire status de fron-teira oriental da União Européia, bem como a Turquiapassa a ser percebida por muitos como um portal para azona de prosperidade da UE.

Em seu interior, espreitam-os as insurgências e remi-niscências de caráter identitário, enquanto nas vizinhan-ças desses blocos, agudizam-se ressentimentos históri-cos e conflitos que, ao avolumarem-se, transbordam deseu âmbito doméstico, adquirindo potencial instabilizadorde contextos regionais e até mesmo da própria ordemmundial.

Os problemas concernentes às diferentes situações deimigração no mundo contemporâneo apontam para a ne-cessidade de mudanças na concepção e condução de polí-ticas governamentais e das leis que tratam da imigração edo estrangeiro, passando por aspectos jurídicos (desde aentrada do imigrante em solo estrangeiro, manutenção dalegalidade de sua condição de estrangeiro no país, pas-sando pela situação de estrangeiros legais condenados pordiferentes crimes cometidos no país anfitrião),2 até ques-tões em que o papel atribuído ao imigrante no contextoeconômico-político do país que o recebe, reflita as condi-ções de integração social deste no país anfitrião, passan-do por uma necessária reflexão de governos e sociedades(destaque aos países conhecidos como “países-destino deimigração”) quanto ao tipo de consenso social almejadopela sociedade anfitriã e quanto à disposição do estran-geiro que nela ingressa.3

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Quanto as migrações internacionais, ainda é reduzido onúmero de pesquisas e publicações voltadas às novas dimen-sões dos fluxos migratórios e os desafios que se nos colo-cam. Importantes iniciativas têm ganho impulso nos últimosanos, e a própria imprensa internacional vem aos poucosampliando os espaços destinados às temáticas da imigração.

A compreensão do fenômeno das migrações internacio-nais em nossos dias, passa necessariamente, por um ma-peamento dos atuais países-destino de imigração – em suacondição relativa aos blocos regionais que integram –, edas principais situações de migração.

De semelhante exercício, pode-se extrair elementos quese constituam em ferramenta para uma crítica às formas tra-dicionais de condução e implementação de políticas migra-tórias por parte dos governos nacionais, inquirindo – quan-do menos – quanto à sua racionalidade e ao seu alcance,diante de erros grosseiros do passado, re-orientar as açõesque implicam aumento do intercâmbio entre povos, cultu-ras e civilizações, de forma a salientar os riscos contidosem um soterramento dessas pelo dínamo da economia denações que se encontram no topo do capitalismo avançado.

OS ESTADOS UNIDOS – PRINCIPAL PAÍS-DESTINO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

O Setor de Alta Tecnologia nos Estados Unidos e osImigrantes Superqualificados

A demanda por mão-de-obra qualificada – destacada-mente no setor das tecnologias de informação e comuni-cação (TIC) – nos países de economia avançada, tem cres-cido a taxas médias de 8% ao ano, como indicou relatóriodivulgado em dezembro de 2000, pela OIT.

No relatório citado, projeta-se para o ano de 2003 umnúmero de 12,3 milhões de empregos no setor das TIC –contra 9 milhões computados no ano de 1998. Esses nú-meros, mais que euforia, causam preocupação, pois prog-nosticam uma agravante carência de mão-de-obra espe-cializada no mundo.

Os Estados Unidos e os principais países membros daUnião Européia vêm implementando medidas para o enfren-tamento do problema, que se revela mais crítico no caso daEuropa. As duas formas clássicas de lidar com a escassez demão-de-obra têm alternado entre: formação e imigração.

A opção de um governo pela imigração como forma deenfrentamento da falta de mão-de-obra, costuma sustentar-senuma avaliação pragmática de eficiência e rapidez no tratodo problema, desconsiderando outras dimensões da questão.

Para o país cedente de mão-de-obra qualificada, a per-da é evidente, uma vez que se opera uma drenagem detrabalho qualificado. (A Bulgária veio a ser um caso no-tório de perda de capital humano, com profissionais for-mados pelas instituições estatais de ensino “exportados”para países europeus de economia mais avançada, ao lon-go da década de 90).

O Estado da Califórnia, na costa oeste dos EstadosUnidos, abriga as principais empresas de tecnologia dainformação e comunicação dos Estados Unidos, e do mun-do. No ano de 2000 o PIB dessa região atingiu a cifra deUS$ 1,33 trilhão que, se projetado no ranking dos PIBsdas principais nações do mundo, ocuparia uma quintaposição. A Califórnia possui uma população de 33,9 mi-lhões de habitantes, e a renda anual por morador é de US$39,2 mil, conforme divulgações parciais do censo norte-americano de 2000.

Esta região tem-se tornado importante pólo de atra-ção de especialistas e “jovens talentos” e tem dinamiza-do o mercado de mão-de-obra superqualificada, causan-do inquietação nas principais economias do mundoglobalizado.

O tipo de visto concedido aos trabalhadores estran-geiros superqualificados que chegam aos Estados Uni-dos, é o visto denominado H-1B, concedido para umemprego específico, sem previsão de promoções ou mu-danças que impliquem uma ascensão na carreira – casoocorra, a tramitação burocrática tem de ser reiniciada.Esses vistos tem duração de 6 anos que, uma vez expira-do, o Serviço de Imigração deve avaliar a concessão ounão do green card.

Os Estados Unidos vêm admitindo, anualmente, cercade 195 mil novos trabalhadores H-1B. Cerca de 57% detodos os H-1B estão sendo concedidos para imigrantesprovenientes da Índia e da China. Um controle de cotasde green cards deve ser revisto pelo Congresso, em quepropõe-se que as cotas não aproveitadas por pequenospaíses possam ser transferidas para países maiores e commaior demanda por vistos.

Diversas questões decorrentes das relações entre essesprofissionais estrangeiros, seus empregadores e os sindi-catos norte-americanos, têm feito com que três agênciasde Estado – Departamento do Trabalho, Departamento deEstado e o Serviço de Imigração e Naturalização – envol-vidas na administração do programa de recepção dessesimigrantes, vejam-se embrenhados num cipoal de regrasque a cada dia tem tornado mais difícil a fiscalização des-sas complexas relações.

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Atualmente, existem nos Estados Unidos, 420 mil in-divíduos com vistos H-1B prestes a expirar, aguardandoser expedidos seus green cards – documento este que lhesdá o direito de residir e trabalhar naquele país. Entre es-ses imigrantes, os que não receberem uma renovação devisto de um ano, podem se ver forçados a deixar o país.Se um trabalhador H-1B ficar desempregado por mais de10 dias, ele está “fora do status” e pode receber a ordemde deixar o país imediatamente.

São contratantes de H-1Bs, empresas da área de tecno-logia como a Microsoft, Intel, e grandes consultorias comoa Goldman Sachs, Merril Lynch, Deloitte Consulting eErnst & Young.

O demorado processo de obtenção do green card fazcom que os trabalhadores H-1B fiquem vulneráveis aoabuso e à exploração, além do grau de ansiedade que aco-mete esses profissionais, fazendo com que muitos defi-nam sua situação como “vivendo num limbo” sem saberque país devem chamar de lar. Sabem que os EstadosUnidos vivem um momento em que precisam da mão-de-obra de estrangeiros, que entram no país por meio de pro-cessos legais, mas sentem-se marginalizados em relaçãoà sociedade norte-americana.

A esses empregados também é vedada a aspiração –estimulada entre os norte-americanos – de realizarem seu“espírito empreendedor” tornando-se um empresário, poispara os portadores do visto H-1B é condição para sua per-manência nos Estados Unidos o vínculo empregatício queexpressa a “tutela” do empregador sobre o empregado.

A liberdade outrora sedutora, revela-se então dotadade menos brilho, questão que fora bem sintetizada nosseguintes termos: “os Estados Unidos, como país de des-tino das migrações internacionais, têm como um dosingredientes intrínsecos a sua auto-representação como aterra das oportunidades, representação essa amplamenteassentada nos pressupostos da competição individual. Osuposto que está por trás da competição individual, porsua vez, é o da igualdade de oportunidades” (Salles, 1995).

Os trabalhadores sindicalizados – minoria no setor detecnologias –, e os profissionais norte-americanos do se-tor reconhecem no programa de recepção de imigrantescom vistos H-1B um ardil para o aumento de lucros –mantendo os salários reprimidos – e os sindicatos apon-tam também para a facilidade de dispensar esses traba-lhadores estrangeiros quando não forem mais necessários.

É pouco conhecido o lado escuro das empresas pro-pulsoras da Nova Economia, localizadas no Vale do Silí-cio: trabalhadores pouco qualificados, contratados como

temporários, trabalhando longas jornadas, montando eembalando impressoras e outros equipamentos é uma parteda realidade, desconhecida por aqueles que acompanhamos índices da bolsa Nasdaq.

Das batalhas encampadas pelos sindicatos do setor, re-sultaram apenas a elevação das despesas para os empresá-rios na contratação dos trabalhadores com vistos H-1B, eum aumento colossal da burocracia que já gerou uma novamodalidade de serviços oferecidos por escritórios em WallStreet: a assessoria em contratação de profissionais H1-B.

Um dos talentosos detentores de visto H1-B foi o jovemfinlandês de 31 anos, Linus Torvalds – que obteve recen-temente seu green card – criador do sistema operacionalLinux. O Linux – software livre – tem sido uma poderosaarma do governo norte-americano contra a ameaça de mo-nopólio representada pelo Windows – software proprietá-rio – da poderosa Microsoft. Em disputa judicial recenteenvolvendo o governo dos Estados Unidos e a Microsoft, opresidente Bush ameaçou substituir todos os softwares daadministração pública norte-americana pelo Linux, usandoassim o poder de compra do governo para estimular o de-senvolvimento da concorrência no setor.

Sobre o perfil desses trabalhadores superqualificados são,em sua maioria, jovens, com títulos de mestrado, provenien-tes das melhores universidades de seus países, atraídos porsalários superiores ao que ganhariam em sua terra natal.

Países como o Canadá vêm agilizando seus processosde recepção de mão-de-obra qualificada, facilitando aaquisição de vistos de residência permanente para essestrabalhadores superqualificados. A Austrália e a NovaZelândia vêm adotando políticas similares.

O Serviço de Imigração e Naturalização dos EstadosUnidos, atentos à competição e à percepção de como oaumento do número dos trabalhadores do setor das TICtornou-se um elemento de política nacional para muitospaíses, veio orientando suas ações buscando garantir a essepaís posição de destaque. No presente momento, não setem ainda condições de avaliar os impactos do último 11de setembro sobre estas ações do INS dos Estados Uni-dos, nem tampouco, sobre outros países dependentes demão-de-obra superqualificada estrangeira.

Mexicanos nos Estados Unidos. Braços ou Cidadãos?

A fronteira dos Estados Unidos com o México consti-tui-se em permanente fonte de preocupação na pauta deimigração para o governo norte-americano. Desde a cria-ção do Nafta, ampliou-se o intercâmbio entre mexicanos e

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americanos; um dos notáveis reflexos foi o enriquecimen-to do norte do México, sem que isso se traduzisse em estí-mulo à permanência do mexicano em solo nacional. As-sim, concomitante à liberalização da circulação de bens,incrementou-se as restrições ao trânsito de pessoas entreos dois países.4

O recurso de reforçar a vigilância sobre as fronteirasainda é o mais adotado pelos governos, embora seus re-sultados estejam sempre aquém do esperado. Os EstadosUnidos, por exemplo, gastaram em 2000 cerca de US$ 2bilhões em sua fronteira com o México, reforçando o con-tingente policial e as tecnologias empregadas. No entan-to, o número de mexicanos que trabalham ilegalmente nosEstados Unidos em 2001 atingiu cifras recordes.

À medida que se reforçam os mecanismos de contro-le das fronteiras, formam-se novas “redes”, desafiandoos obstáculos legais. Ganha destaque a ação dos“coyotes” (homens que se especializam em burlar oscontroles da fronteira e facilitar a entrada de imigrantesilegais no país-destino). No ano de 2000, registrou-se amorte de 491 mexicanos no espaço fronteiriço entre osEstados Unidos e o México. Cada imigrante ilegal paga– antecipado – aos “coyotes” algo em torno de US$ 2.500pelos seus “serviços”.

Estatísticas recentes apontam que a população de ori-gem mexicana que vive nos Estados Unidos é de 20,6 mi-lhões de pessoas dos quais até 5 milhões estão ilegalmen-te. Por mais paradoxal que possa parecer, empresáriosamericanos têm cruzado a fronteira em busca de emprega-dos. Diante de prognósticos alarmistas de uma “mexica-nização” dos Estados Unidos, o pragmatismo parece es-tar-se sobrepondo ao preconceito. Sobre o papel que asempresas exercem nesse cenário, encontramos assim for-mulado por Ianni (1996:4): “Jogando com as convergên-cias e os antagonismos entre nacionalismo, regionalismo eglobalismo, encontram-se as empresas, corporações e con-glomerados transnacionais. Tecem a globalização desdecima, em conformidade com a dinâmica dos interesses queexpressam ou simbolizam. Desenham as mais diversas car-tografias do mundo, planejadas segundo as suas políticasde produção e comercialização, preservação e conquistade mercados, indução de decisões governamentais emâmbito nacional, regional e mundial.”

A mão-de-obra mexicana faz-se presente em diferen-tes setores da economia dos Estados Unidos, da agricul-tura à construção civil, passando pelo processamento dealimentos e até mesmo ocupando cargos em empresas dealta tecnologia.

As remessas de dinheiro para o país natal, de mexica-nos que trabalham nos Estados Unidos, somou no primei-ro trimestre de 2001 a cifra de US$ 2,1 bilhões, sendoimportantíssima fonte de renda do México.

No fim de junho de 2001, Estados Unidos e Méxicoapresentaram o Plano de Ação para a Cooperação sobreSegurança Fronteiriça, segundo o qual, cabe às autorida-des norte-americanas revisar as operações de controle nafronteira e às autoridades mexicanas, demover a popula-ção da idéia de cruzá-la.

O presidente Vicente Fox comprometeu-se com as au-toridades norte-americanas em aumentar o controle sobrea sua fronteira meridional, visando conter a entrada demigrantes através das fronteiras com Guatemala e Belize,que serve de porta de entrada de latino-americanos e ou-tros, das mais variadas procedências, passando pelo Mé-xico e que tem como país-destino os Estados Unidos. Dessefluxo resultou a deportação feita pelo México, de mais de150 mil estrangeiros no ano de 2000. Estima-se que umem cada quatro ilegais são detidos.

O senador Phil Gramm (republicano, Estado do Texas)é o autor de um plano para receber mexicanos convida-dos para trabalhar. Segundo sua proposta, o governo ame-ricano estipularia uma cota para a entrada de mexicanosem busca de trabalho. Depois de selecionados por um me-canismo binacional, eles receberiam um visto especial de“guest worker” – válido por um ano e renovável por atéduas vezes –, após esse período, o mexicano seria“desconvidado” e mandado de volta.

Phil Gramm é opositor da proposta de anistia de 3 mi-lhões de mexicanos ilegais, desenvolvida pela equipe doSecretário de Estado Colin Powell e do Procurador Geralda República John Ashcroft, por considerá-la “uma re-compensa à infratores da lei” e em matéria publicada nojornal The New York Times (15/07/2001) afirmou que qual-quer programa de anistia só será aprovado sobre o seu “frioe inerte cadáver político”. Ressalte-se que essas posiçõessó vieram por reforçar-se após o último 11 de setembro; odiretor do Serviço de Imigração e Naturalização (INS) dosEstados Unidos, James Ziglar, sofre cada vez mais pres-são dos grupos conservadores do Congresso, a fim de en-durecer a política de imigração.

Latinização dos Estados Unidosou Capacidade de Assimilação?

A divulgação parcial do Censo 2000 dos Estados Uni-dos, em meados de 2001, alarmou parte da população nor-

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te-americana, pois revelou que a presença hispânica nosEstados Unidos cresceu 57,9% na última década – de 22,4milhões em 1990 para 35,3 milhões em 2000.

O Departamento de Educação dos Estados Unidos es-tima que em 2001 o número de jovens matriculados nosegundo grau no país girou em torno de 13,3 milhões, dosquais um quarto estudaram espanhol.

A questão do estudo de idiomas nos Estados Unidos fezcom que se realizasse uma audiência no Senado america-no no final do ano de 2000, contando com a presença deprofessores de idiomas à agentes da CIA, onde expôs-seaos membros do Comitê de Assuntos Governamentais que“os norte-americanos monoglotas estão mal preparados paralidar com diversos assuntos, de guerra ao comércio e espio-nagem internacional” (USA Today, 09/05/2001).

As escolas particulares, que ensinam o idioma espa-nhol, têm proliferado nos Estados Unidos. Sam Slick, fun-dador da Command Spanish, a maior empresa dos Esta-dos Unidos voltada ao ensino do idioma espanhol nasempresas, declarou à mesma edição já citada do jornal USAToday: “Não há nada de estrangeiro em relação ao espa-nhol, hoje em dia. Trata-se do segundo idioma dos Esta-dos Unidos”. A Command Spanish fornece materiais paradiversas faculdades, empresas e até mesmo orgãos oficiaisdo Estado como, por exemplo, o Centro de Justiça Crimi-nal do Alabama.

O presidente dos Estados Unidos George W. Bush de-monstrou assimilação da realidade quando nos primeirosdias de maio de 2001, fez seu primeiro discurso de rádioem inglês e espanhol.

Na segunda semana de julho de 2001, numa cerimôniaem Ellis Island, o presidente Bush declarou: “Os EstadosUnidos sempre foram uma nação hospitaleira [...] Nósrecebemos de braços abertos não-somente os imigrantescomo também seus talentos, seus valores e seus estilos devida” (The New York Times, 15/07/2001).

Se o que orienta as ações do presidente Bush, no to-cante à imigração – em especial de latinos –, são as con-tingências de uma conjuntura macroeconômica, uma per-cepção do papel dos Estados Unidos no continenteamericano, ou um mero pragmatismo eleitoral, é algo queo conjunto de ações, ao longo de seu governo, poderá re-velar. No pleito de 2000, Bush teve um terço dos votos dacomunidade latina; ampliar essa margem pode ser-lhedecisivo para uma futura tentativa de reeleição. É consen-sual a avaliação de que nenhum candidato à presidênciados Estados Unidos pode desprezar a força que o eleito-rado de origem hispânica representa num pleito america-

no. No entanto, coloca-se ainda como incógnita a ampli-tude dos reflexos do atentado terrorista sofrido pelos Es-tados Unidos, no ânimo dos norte-americanos diante deentrangeiros de modo geral.

A sedução do mero cálculo eleitoral, quanto aos votosde origem latina, pode tirar de foco uma gama de proble-mas que, potencializados pelo fermentar do tempo, venhaa adquirir contornos críticos.

Abordando aspectos da delicada questão das políticasmigratórias, o professor Lélio Mármora (1996:55-6), daUniversidade de Buenos Aires, aponta que: “As políticasmigratórias são parte das políticas públicas e, portanto,corresponde ao governo de cada Estado tomar as decisõesbásicas para defini-las e poder aplicá-las. A específica edeterminada percepção que o Estado tenha das migraçõesserá o fundamento para a elaboração dessas políticas e seuconseqüente plano de ação.[...] Mas o problema se colo-ca ao se tentar falar do Estado como um bloco em suapercepção e ação política frente a esse fenômeno.”

Educação nos Estados Unidos: A Carência de Profes-sores Norte-Americanos – No tocante à imigração e aárea da educação nos Estados Unidos, merece nota o cres-cente aumento do número de contratações de professoresestrangeiros para os colégios norte-americanos, em faceda carência de professores nativos.

Em matéria publicada no jornal The New York Times(23/05/2001), destaca-se que: “Em Palm Beach, Flórida,representantes das escolas estão planejando uma viagemcoletiva para as Filipinas no final deste mês. Em NovaYork, o conselho municipal de educação organizou e di-vulgou amplamente uma procura por professores austría-cos. O sistema educacional de Chicago contratou neste ano71 professores vindos de 28 países, entre eles China, Fran-ça e Hungria.

Representantes do município de Houston foram a Mos-cou e voltaram com onze professores. Educadores deFulton, Ga., já realizaram viagens para a África do Sul,Austrália e Nova Zelândia. Uma viagem para a Jamaicafoi agendada. [...] Em 2000 foram recrutados 1.300 pro-fessores vindos de 35 países, e encaminhados para esco-las de oito estados americanos. No ano letivo de 2001/02estima-se que chegarão mais 1.800 ou 2.000 professores.”

Um dos fatores, em geral, apontados para a explicaçãoda baixíssima oferta de profissionais norte-americanosnesta área, é em relação a pouca atratividade dos saláriospagos aos professores, considerando as exigências de umacarreira na área educacional; e isso tem levado à crescen-

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te demanda por professores estrangeiros, para manuten-ção dos quadros docentes nos Estados Unidos.

Ainda que o fenômeno da imigração seja quase indis-sociável da própria história dos Estados Unidos – desta-cadamente durante o século XX –, o que se pode observarno presente, quanto a relação: trabalho e mão-de-obraestrangeira nos Estados Unidos, é a potencialidade desta,em projetar questões sobre a prática da democracia vivi-da nos Estados Unidos, sobretudo no tocante aos valoresque animam seus diferentes cidadãos, o que nos leva aconsiderar supostos riscos à manutenção de um mínimoconsenso social, tão difícil e ao mesmo tempo necessário,em sociedades com elevado grau de complexidade e ele-vada diferenciação entre seus integrantes.

Outro aspecto significativo, da relação migrações in-ternacionais e ensino nos Estados Unidos, diz respeito aocontingente de estudantes estrangeiros matriculados nasuniversidades norte-americanas. Dados do ano acadêmi-co 1999-2000 apontam que 514.723 estudaram nos Esta-dos Unidos, trazendo para o país algo em torno de US$12,3 bilhões. Especialistas em ensino apontam que as uni-versidades norte-americanas são enormemente fortaleci-das pela diversidade existente em seus campi, constituin-do-se assim em elemento indispensável à manutenção daexcelência de diversas instituições. Os países que maisremetem estudantes aos Estados Unidos são, respectiva-mente, China, Japão e Índia.

Logo após os acontecimentos do último 11 de setem-bro, importantes jornais deram destaque ao fato de entreos suspeitos seqüestradores dos aviões lançados contra astorres do W.T.C. e do Pentágono encontravam-se: HaniHanjour, que entrou no país alegando intenções de estu-dar inglês numa universidade em San Francisco, mas nuncafoi às aulas; e Walled Alsheri, formou-se em ciência ae-ronáutica, em 1997, na Universidade Aeronáutica Embry-Riddle, na Flórida.

É evidente que esses casos sequer podem representarum número em estatísticas, mas para a opinião pública, aexceção pode servir à regra.

UNIÃO EUROPÉIA E OS DIFERENTESCONTEXTOS DE IMIGRAÇÃO ENTRESEUS PAÍSES MEMBROS

Desafios da Imigração na Alemanha

A exemplo de outros países de economia avançada, aAlemanha vem-se lançando na concorrência internacio-

nal por mão-de-obra qualificada, entretanto, enfrenta di-ficuldades nessa seara.

Desde o balanço realizado em março/2001, após setemeses da entrada em vigor (agosto/2000) do “plano deurgência” visando recrutar 10 mil especialistas estrangei-ros em informática (a meta inicial era de 30 mil) – comobjetivo de combater a carência de mão-de-obra no cam-po das tecnologias de informação e comunicação (TIC) –,acirrou-se o debate na Alemanha em torno da questão daimigração. O balanço da operação apontou que apenas5.533 pessoas haviam-se beneficiado dos “vistos de tra-balho” oferecidos pelo programa do governo.

Enquanto a Federação Alemã da Indústria (BDA) acre-ditava que a meta de 10 mil contratações poderia vir a seratingida em poucos meses, para muitos analistas, o resul-tado dos sete meses de vigência do programa serviu comoindicador de que a economia alemã mostra-se menosatraente que suas concorrentes britânica e americana nomercado internacional do trabalho.

Os “vistos de trabalho” alemães têm o prazo máximode validade de cinco anos, mas mudanças vêm sendo ana-lisadas; uma delas é a ampliação para seis anos do “vistode trabalho” e redução dos atuais oito anos para seis anosde residência – de modo a coincidirem os prazos – comorequisito para a concessão do passaporte alemão. Os trâ-mites para a concessão desses vistos vêm sendo amplamentesimplificados, podendo ser expedidos num prazo de umasemana.

A Bundesanstalt für Arbeit – agência do governo ale-mão que lida com assuntos referentes ao emprego – vemenfrentando duras críticas perante a incômoda cifra de 4milhões de desempregados na Alemanha e as medidas defacilitação da contratação de estrangeiros. Note-se, no en-tanto, que apenas assalariados altamente qualificados sãocontemplados com as facilidades para esse tipo de “vistode trabalho”, e um dos parâmetros é um salário mínimo anualde 100 mil marcos (em torno de US$ 50 mil).

Na verdade, o debate em torno da imigração ganhoumaior vulto quando, em 24 de fevereiro de 2000, ochanceler alemão Gerhard Schröeder propôs que as fron-teiras do país fossem abertas para especialistas em infor-mática provenientes de países não pertencentes à UniãoEuropéia.

O secretário-geral do Partido Social-Democrata (SPD)Franz Müntefering salientou, na ocasião, o caráter palia-tivo da proposta, expressando sua posição de modo que,mais que procurar talentos pelo mundo afora, deve-se es-timular a formação profissional dos que já vivem em ter-

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ritório alemão (incluindo-se entre os alemães, os estran-geiros já naturalizados, ou com vistos de residência per-manente).

Uma comissão formada pelo Ministério do Interior queagrega representantes dos setores político, sindical e eco-nômico tem-se reunido para estudar as questões implica-das numa reforma das leis sobre a imigração. Esta comis-são tem enfrentado questões delicadas para a Alemanha,pois encontram-se realçadas por imperativos como o en-velhecimento da população e o atual atrelamento do de-senvolvimento econômico ao domínio das novas tecnolo-gias.

Após meses de trabalho, essa comissão recomendou,em seu relatório de julho de 2001, a abertura para con-cessão de 50 mil “vistos de trabalho” por ano, para imi-grantes altamente qualificados, abrangendo cinco seto-res – inclusive cargos administrativos –, lançando-seefetivamente na concorrência internacional pelas melho-res cabeças.

Ainda que cercado por um grande tabu, a idéia de queestrangeiros façam parte do futuro, de longo prazo, daAlemanha parece inevitável. A história da imigração naAlemanha nos remete a diferentes contextos, como o dosanos 60 com os turcos, recebidos como “trabalhadoresconvidados” (Gastarbeiter) e que terminaram conseguin-do licenças de residência e ficando no país.

Estatísticas e análises demográficas recentes da Ale-manha apontam que, se o índice atual de natalidade semantiver, a população alemã, em poucas décadas, sofreráum expressivo decréscimo.

No entanto, concomitante ao atual empenho do gover-no alemão em atrair mão-de-obra qualificada de países nãopertencentes a União Européia, um relatório publicado emmeados de 2001, da Comissão contra o Racismo e a Into-lerância do Conselho da Europa, aponta um aumento de59% no número de crimes racistas ocorridos na Alema-nha no ano de 2000.

Alemães da Construção Civil Emigrando para Paísesda União Européia – Uma novidade nas migrações in-ternacionais tem sido a contratação de alemães da parteoriental – ex-comunista, onde as taxas de desemprego ul-trapassam os 20% – por países como Holanda, Irlanda,Inglaterra.

Para citar apenas um destes países-destino, temos o casoda Holanda, que nos últimos anos baixou sua taxa de de-semprego para números próximos de 2%. A Randstad –uma das maiores agências de contratação de mão-de-obra

da Holanda – vem participando das atuais feiras de tra-balho realizadas em Leipzig e em Chemnitz, disputandotrabalhadores de fábricas e do setor de construção. Nes-tas mesmas feiras, agências irlandesas têm buscado tra-balhadores com maior especialização, para trabalhar emcentrais telefônicas, enquanto países como a Islândia dis-põem de centenas de vagas para a agricultura e setor deconstruções.

Ainda que sob realidades variadas, o histórico des-sas migrações encontra-se balizado pela centralidadedo trabalho como motivador desses deslocamentos.Contudo, sob um pragmatismo que impregna as açõesdos diversos atores envolvidos nas atuais questões mi-gratórias, ocultam-se as intrincadas situações em queesses estrangeiros deparam-se ao chegar nos países aque se destinam.

São ainda incipientes as ações governamentais de su-porte aos estrangeiros “convidados” a trabalhar nessespaíses com carência de mão-de-obra.

Para os trabalhadores do setor de construção na Holandaoferece-se um salário de cerca de US$ 1.200, moradiagratuita – dividida com outros quatro ou cinco trabalha-dores – e suas famílias permanecem na Alemanha.

O desemprego na Alemanha encontra-se em cerca de 8%na parte ocidental e por volta de 18% na parte oriental.

Os recrutadores estrangeiros que buscam pedreiros ecarpinteiros na parte oriental da Alemanha, buscam tam-bém soldadores, jardineiros, empacotadores e construto-res de rodas de moinhos.

Essas transformações no mundo do trabalho vêm cau-sando entre os alemães particular desconforto. A penúriade mão-de-obra qualificada e a “exportação de braços”para os países vizinhos evidencia a fragilidade de uma auto-imagem que se construiu calcada em visões de uma pre-tensa superioridade alemã.

Inglaterra entre Cérebros e Braços,e seu Estoque de Imigrantes

O que vem configurando a atuação da Inglaterra emquestões de imigração não difere muito dos outros paísesmembros da União Européia. Ações governamentais deestímulo à permanência de “cérebros” em solo britânico eà formação de jovens5 nas áreas tecnológicas das univer-sidades do país, bem como o empenho na atração de mão-de-obra superqualificada vinda de países estrangeiros –rivalizando com os Estados Unidos –, paralelamente aocontrole rigoroso da entrada de estrangeiros via portos e

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aeroportos do país, sintetizam a postura do governo in-glês diante dos novos fluxos migratórios que caracterizamos anos recentes.

No entanto, o que tem despertado a preocupação dasautoridades inglesas é o aumento dos conflitos raciais emdiversas localidades da Inglaterra.

Entre os mais violentos desses conflitos, destacam-seaqueles ocorridos entre os meses de maio e julho de 2001,nas cidades de Bradford, Burnley e Oldham, localizadasno norte da Inglaterra. Estas cidades caracterizam-se pelaperigosa confluência de elevados índices de desemprego– acima da média nacional de 4,6% – e alta concentraçãode moradores de origem estrangeira – no caso, asiáticos(indianos, paquistaneses e bengaleses). (Ressalte-se quea situação descrita a seguir fora registrada antes dos aten-tados terroristas aos Estados Unidos, o que se crê que taiscontextos podem ter ganho novos componentes de tensão.)

Bradford tem uma população de 468 mil habitantes, dosquais 15% são de origem asiática; A população de Burnleyé de 91 mil habitantes com 10% de imigrantes asiáticos, eOldham tem 219 mil habitantes, com 11% de sua popula-ção de origem asiática.

Esses imigrantes chegaram à Inglaterra nos anos 60,estimulados pelo governo britânico, para suprir a falta demão-de-obra no norte do país, cuja indústria têxtil pros-perava. Hoje, seus filhos enfrentam a pobreza e a falta deempregos gerados pela decadência dessa indústria no meiodos anos 80. Entre os jovens asiáticos, o índice de desem-prego é de 40%. O problema da falta de trabalho tambématinge diretamente os jovens da comunidade branca – cercade 25% estão sem emprego.

O isolamento – fruto de equivocadas ações governamen-tais – e o preconceito que atinge comunidades de imigran-tes no norte da Inglaterra, associados ao alto índice dedesemprego dessas regiões do país, têm culminado nosenfrentamentos de jovens filhos de imigrantes indianos,paquistaneses e bengaleses e jovens ingleses, brancos.

Manningham, bairro localizado na cidade de Bradford,é quase que exclusivamente habitado por paquistaneses eoutros imigrantes asiáticos, onde a língua mais falada é ourdu – língua oficial do Paquistão –, usada em todas assinalizações do comércio local. Nesse bairro a integraçãoentre imigrantes e britânicos é quase inexistente e as pou-cas relações são geralmente tensas.

Em entrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo(15/07/2001), o líder da Frente Nacional, Terry Blackham,respondendo à pergunta sobre qual a posição da FrenteNacional diante das comunidades de estrangeiros que vi-

vem na Inglaterra, disse: “Queremos que todos os não-brancos sejam mandados de volta para seus países. Essagente é responsável por todos os problemas enfrentadospelo Reino Unido atualmente. O povo britânico precisareagir e se livrar dessa gente, antes que a situação pioreainda mais”.

Nas eleições parlamentares de junho de 2001 na Ingla-terra, o Partido Nacional Britânico e a Frente Nacionalobtiveram cerca de 1% da votação total; em cidades comoOldham, o inglês Nick Griffin, formado em direito pelaUniversidade de Cambridge, obteve 16,4% dos votos doseleitores de sua cidade.

A Espanha e a Intolerânciadiante da Crescente Imigração

A Espanha vem experimentando nos últimos anos umconsistente crescimento econômico acompanhado de re-dução de taxas de desemprego, o que vem lhe conferindopapel de relevo nos debates no interior da União Européia.

O que vem toldando essa prosperidade são os gravíssi-mos episódios gerados pela retomada das ações terroris-tas do grupo separatista ETA, voltando a estampar-se nacena pública espanhola. Crescem também os problemasrelacionados a imigração ilegal – em particular aquelaassociada à prostituição – que vem preocupando a Espanhae seus países vizinhos.

Um dos focos de preocupação é Ceuta, um enclaveespanhol na costa norte da África e o Estreito de Gibraltarpois, vem adquirindo crescente espaço na rota da imigra-ção ilegal para a Espanha. Por esta região, entram imi-grantes procedentes da África subsaariana, de Serra Leoa,Nigéria, Senegal, Mali, Guiné, Gana e também Marrocos.O percurso feito pelos imigrantes, de seus países de ori-gem à fronteira da Espanha, chega a durar até um ano,atravessando desertos e mares. Toda a costa sul da Espanhavem-se mostrando vulnerável à entrada de imigrantes ile-gais, tornando-se alvo de pressões dos países membrosda União Européia.

Respondendo ao aumento do número de imigrantes queentraram ilegalmente na União Européia – estima-se em500 mil pessoas, só no ano de 2000 –, a Espanha deteve15 mil imigrantes ilegais no mesmo ano de 2000 (númeroquatro vezes superior ao do ano de 1999), dos quais 20%são procedentes da África subsaariana.

O jornal espanhol El País (27/01/2001) divulgou partedos dados da pesquisa desenvolvida pelo Centro de Pes-quisas Sociológicas (CIS) com base no ano de 2000, em

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que, no tocante a percepção interna do problema da imi-gração ilegal na Espanha, aponta que, concomitante aoaumento da satisfação da população espanhola com o de-sempenho econômico do país, cresceu a intolerância doespanhol diante da presença do imigrante em seu país,chegando a 48,6% dos entrevistados.

A mesma pesquisa revela que 85,5% dos entrevistadosacreditam que o número de imigrantes aumentará nos pró-ximos anos. O relatório desenvolvido pelo CIS, conden-sando estes e outros dados sobre o assunto, foi encami-nhado ao Secretário de Estado para as Relações com asCortes, Jorge Fernández.

Já os resultados da pesquisa nacional, realizada pelo Ins-tituto da Juventude na Espanha com jovens entre 15 e 29anos, divulgou em seu Informe Juventude na Espanha 2000que, perguntados sobre o aumento de imigrantes no país, 30%dos jovens responderam que a imigração “é prejudicial emnível racial”, e consideram que ela traz “efeitos negativosna moral e nos costumes dos espanhóis”.

Imigração Ilegal e Prostituição na Espanha – Pesqui-sas realizadas por ONGs como a Médicos do Mundo –que anualmente produz um relatório que, entre outras es-tatísticas, apresenta aquelas referentes a imigração e pros-tituição na Espanha –, divulgadas pelo jornal espanhol ElPaís (01/12/2000), apontam que 63,2% das prostitutas naEspanha são estrangeiras (69% provenientes da Áfricanegra, 20,5% da América Latina, 8,2% da Europa), fenô-meno que vem ganhando contornos mais nítidos desde osmeados da década de 90. Números como estes apresenta-dos pela ONG Médicos do Mundo são partilhados, porexemplo, com a Chefatura Superior de Polícia de Madri,uma vez que a Secretaria de Estado para a Imigração ca-rece de estudos sobre o assunto.

A Espanha vem-se constituindo, nos últimos anos, nãosó em destino, mas via de passagem de imigrantes parapaíses como: Alemanha, Itália e Holanda, entre outros daUnião Européia.

Pela predominância das nigerianas entre as imigrantesque trabalham em redes de prostituição em Madri, sabe-se que entram ilegalmente no país por intermédio de “re-des” que atuam na Espanha e que cobram dessas jovenspela trajetória de 3.400 quilômetros e pela transposiçãode obstáculos que as separam de seus locais de origem e opaís-destino, uma importância que chega a US$ 40 mil,que serão pagos parceladamente, por meio da retenção damaior parte dos ganhos provenientes dos “serviços” des-sas jovens, conforme contrato firmado; o que vem sendo

tratado pelas autoridades policiais espanholas como “trá-fico de escravas sexuais”.

Romênia e Turquia – Fronteiras da União Européia?

Condicionante ao pleito da Romênia para integrar-se àUnião Européia está a exigência de Bruxelas de um maiorcontrole sobre a fronteira da Romêmia com a Moldávia(ex-integrante da URSS), visando conter a crescente en-trada de imigrantes clandestinos provenientes de Bangla-desh, Afeganistão, Índia, China, Iraque e Irã, entre outros.

A fronteira da Romênia com a Moldávia, que se esten-de por 686 quilômetros, passou a ser percebida como afronteira oriental da União Européia e tornou-se alvo decrescente atenção das autoridades da UE. No entanto, estafronteira não se encontra equipada para os desafios quese lhe apresentam.

A exemplo do que se passa na extensão de outras al-mejadas fronteiras, as “redes” que se organizam em soloromeno e em outros pontos da rota de imigração clandes-tina, desenvolvem ardilosos esquemas, com recursos quemuitas vezes superam os destinados pelas autoridadesnacionais à vigilância dessas fronteiras.

Autoridades romenas reivindicam apoio financeiro elogístico da União Européia para reforço de suas frontei-ras, alegando não dispor de recursos para os investimen-tos que se fazem necessários, uma vez que enfrentam gra-víssimos problemas de migração interna, que agravam-sea cada dia pela falta de recursos para equacioná-los – casomais notório é o das chamadas “crianças das trevas”, umcontingente que beira o número de 5 mil crianças, viven-do nos esgotos da capital Bucareste, provenientes de pro-víncias e aldeias rurais do interior do país.

A Turquia também desponta entre as fronteiras queseparam os pobres do cobiçado espaço compreendidopela União Européia. O número de imigrantes ilegais cap-turados na Turquia aumentou de 28.439 em 1997 para47.518 em 1999 e só nos primeiros seis meses de 2000já contavam 40.245 capturados, e a maior parte deporta-da. Estima-se que milhares de outros imigrantes não sãocapturados.

Em Istambul – como apontou matéria publicada no jor-nal The New York Times ( 25/12/2000) –, encontra-se comrazoável facilidade passaportes falsos vendidos por pre-ços que variam de US$ 250 (iraniano) à US$ 14.000 (nor-te-americano com a foto do comprador). Um passaportedo Irã oferece viagens sem necessidade de visto para aBósnia, donde pode-se encontrar uma “vaga” em cami-

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nhões de carga que passam por Sarajevo e chegam à Áus-tria. (O fato da crescente prática de falsificação de passa-portes, desde os atentados terroristas de 11 de setembroaos Estados Unidos, passou a merecer atenção especial,nas investigações em curso.)

Irlanda, Holanda, Itália – Atração, Repulsão

A Irlanda que desde a década passada vem sendo umadas economias que mais cresce na Europa, também vemmarcando presença na disputa por mão-de-obra estrangei-ra. Antes, um dos países mais pobres da Europa, a Irlandaagora se tornou um gigantesco centro de serviços – demodo destacado nas telecomunicações – para empresaseuropéias e americanas. Seus emissários enviados às fei-ras de trabalho que acontecem na Alemanha e outros paí-ses da UE, são dos mais exigentes, e a cada dia ampliam-se as vagas disponíveis ao trabalhador estrangeiro.

A Holanda também vive um momento de busca por mão-de-obra, desde trabalhadores pouco especializados atéaqueles altamente qualificados. Os números do desempre-go na Holanda, conforme estatísticas do governo, encon-tram-se em 2,6% da população ativa, o que eqüivale a apro-ximadamente 181 mil pessoas; taxa que desde os anos 80só veio melhorando, até atingir o presente resultado.

Com o problema agora vivido da falta de mão-de-obrana Holanda, empresas e federações sindicais têm desen-volvido as mais criativas campanhas para a contrataçãode novos funcionários, entre holandeses e estrangeiros.

Já a situação da Itália – que conta com 1,5 milhão deimigrantes legais (2,5% de sua população total) –, no atualmomento das migrações internacionais e da formação dosblocos regionais, centra suas atenções no norte do país, ondea demanda cada vez maior de mão-de-obra estrangeira vemdesencadeando reações de protesto entre os italianos quan-to a “implantação” de outras culturas em seu território.

É preocupante pelo que tem de sintomático o fato de,em pesquisas de opinião, encontrar-se persistentementeassociada à reclamação de insegurança, o aumento donúmero de imigrantes no país.

Nesse contexto, um dos partidos da coalizão de centro-direita que governa o país – a Liga do Norte – propôs umprojeto de lei transformando em delito a “permanência clan-destina em território italiano”; a Força Itália do premiêSilvio Berlusconi, é apoiada pela Liga Norte (LN) e a Alian-ça Nacional (AN), e caracterizam-se na questão da imi-gração, por posições claramente xenófobas. (Declaraçõesdo premiê Silvio Berlusconi, logo após os atentados terro-

ristas de 11 de setembro aos Estados Unidos, reforçaramtal percepção, ao declarar ser a civilização ocidental supe-rior às demais.)

Um dos empenhos da Itália em tempos de União Euro-péia tem sido a tentativa de conter e restringir a chamada“unificação familiar” em solo italiano, que faz com quemais e mais imigrantes entrem em seu território (encontrode parentes que ficaram e aqueles que partiram e hoje in-tentam retornar à Itália, com cônjuges e filhos nascidosno estrangeiro, além de outros familiares). Outra das fon-tes de preocupação do governo italiano são os imigrantesprovenientes dos países do leste europeu.

O ministro italiano das Reformas Institucionais UmbertoBossi – líder da LN –, chegou a propor a construção de ummuro de 260 quilômetros de comprimento separando onordeste da Itália da fronteira com a Eslovênia, visando,assim, impedir a imigração por esta fronteira. Propostascomo esta, redigidas por lideranças políticas e autorida-des governamentais, são eloqüentes sinais do ânimo dasautoridades que conduzem o presente processo de forma-ção dos blocos regionais e do quão obsoletas mostram-seas ferramentais com as quais redesenham o mundo.

NOTAS FINAIS

Como neste “mapeamento” deixou-se de apresentar ocontexto das migrações internacionais entre os paísesmembros do Mercosul, uma vez que se buscou centrar nosprincipais países-destino de imigração no âmbito das mi-grações internacionais, e entre os países do Mercosul6 nãose encontra nenhum país com este perfil, apresentam-se,a seguir, algumas notas sobre a situação do Brasil no qua-dro das migrações internacionais.

Em particular ao Brasil, verifica-se nas últimas duasdécadas, sensíveis mudanças quanto a posição do país noquadro das migrações internacionais; de tradicional terrade imigração, o país vem figurando entre aqueles quecedem mão-de-obra para o exterior.

O contexto da estagnação econômica brasileira que ca-racterizou a década de 80 – chamada “década perdida” –foi o estopim para a emigração brasileira, que ganhou novofôlego na entrada da década de 90, com a abertura econô-mica e o descrédito em relação as conquistas da redemo-cratização – leia-se crise do governo Collor.

Dados recentes, na revista Veja (18/07/2001:94), apon-tam que o número de brasileiros que vivem em países doexterior aproxima-se da cifra de 2 milhões de pessoas, comos cinco principais países-destino e o número destes emi-

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grantes, respectivamente: Estados Unidos (800.000),Paraguai (455.000), Japão (254.000), Alemanha (60.000)e Portugal (52.000). Estes cinco países concentram maisde 80% dos emigrados brasileiros.

Sendo os Estados Unidos o principal destino tambémdos imigrantes brasileiros, um dos locais para onde se des-tinaram um a cada três brasileiros que migraram para estepaís, foi a região de Boston, no Estado de Massachusetts.Das pesquisas desenvolvidas por Teresa Salles (1995:98-9),verifica-se que: “Essa região tem recebido imigrantes devárias partes do Brasil, mas é, sem dúvida, o fluxo migra-tório Governador Valadares-Boston aquele que se estabe-leceu mais fortemente naquela região dos Estados Unidos.Outra marca importante desse fluxo migratório de brasi-leiros é que ele é constituído sobretudo de trabalhadoresque se integram no chamado mercado de trabalho secun-dário. [...] Os empregos no mercado de trabalho secundá-rio são aqueles que requerem pequeno ou nenhum treino,estão na mais baixa escala de salários, oferecem pouca ouquase nenhuma oportunidade de mobilidade e são carac-terizados pelo rápido turnover.”

Quanto a situação dos brasileiros em outras cidades dosEstados Unidos para as quais costumam se destinar, comoNova York, não difere sensivelmente do verificado emBoston. Estes brasileiros, em sua maioria, procedentes dosEstados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Es-pírito Santo e Goiás, são jovens, classe média e com es-colaridade de nível médio.

Os números mais recentes disponíveis apontam que,entre os anos de 1990 e 1997, apenas 44.216 brasileirosreceberam o green card.

Com relação ao segundo país em número de brasilei-ros emigrados – o Paraguai – o histórico dessa migraçãoremonta aos anos 1960-70, e passa por políticas de estí-mulo ao desenvolvimento da região fronteiriça daquelepaís e o barateamento de terras naquela região, adquiri-das por pequenos e médios agricultores da região sul doBrasil. Nos anos recentes, nota-se novos contornos nessefluxo, com pessoas sem posses e emprego no Brasil, emi-grando para trabalhar nas fazendas dos atuais colonos“brasiguaios”.

A presença dos brasileiros nas principais cidades dolado paraguaio da fronteira entre os dois países é marcan-te, chegando a ser maioria, como na cidade de San Albertoonde, dos 23 mil habitantes, 80% são descendentes debrasileiros.

Ao mesmo tempo que é exaltado o progresso promovi-do pelos colonos brasileiros nessas terras, os conflitos com

a população nativa agudiza-se misturando componenteseconômicos, políticos e raciais. Nessas cidades limítrofes,a fronteira é quase indistinta, configurando-se em zona decomércio recíproco. Prolifera também o contrabando, eganha espaço o narcotráfico. A vigilância das fronteiras éprecária.

Após os atentados terroristas de 11 de setembro sofri-do pelos Estados Unidos, essa fronteira passou a ser ob-jeto de preocupação de autoridades nacionais e internacio-nais, pela facilidade de trânsito entre os três paíseslimítrofes. Cogita-se a presença de membros de redes cri-minosas, incluindo-se entre estes, grupos terroristas.

Outro grupo de emigrados brasileiros que ganharamvisibilidade, é o dos dekassegui – descendentes de japo-neses que migraram para o Japão. Atraídos por saláriosbem superiores aos que poderiam ganhar em solo brasi-leiro e iludidos por uma frágil afinidade construída poruma ascendência que muitas das vezes não legou-lhesmais que traços fenotípicos e um conjunto de palavrasdo idioma japonês que, pronunciadas, revelam, sobretu-do, a distância deles em relação ao Japão dos dias atuais.Estes imigrantes enfrentam em solo japonês longas jor-nadas de trabalho, moradias precárias e o preconceitoque os condenam à solidão ou aos guetos de brasileirosem igual situação.

Sobre brasileiros em países da Europa Ocidental im-portantes trabalhos vem sendo desenvolvidos por diferen-tes pesquisadores brasileiros (Bógus, 1995:111-21).

NOTAS

1. Sobre os Estados Unidos – principal país-destino de imigração –,dados parciais do Censo norte-americano de 2000, já divulgados pelagrande imprensa, mostram que, dos 30,5 milhões de habitantes do paísnascidos no exterior, 13,3 milhões (44%) chegaram aos Estados Uni-dos nos anos 90. No mesmo censo, aponta-se que 38% da populaçãode Nova York é de não-americanos.

2. Em 28/06/2001, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinouque imigrantes não podem permanecer detidos indefinidamente apóso cumprimento de sentenças a que tenham sido condenados, por faltade um lugar para serem deportados. A corte decidiu em favor de KestutisZadvydas – nascido num campo de refugiados na Europa em 1948 – eKim Ho Ma – nascido no Camboja em 1977, migrado para os EstadosUnidos com 2 anos de idade. Essa decisão afeta cerca de 3 mil imi-grantes em situações semelhantes, nas prisões norte-americanas.

3. Destaca-se o caso dos afegãos que vivem nos Estados Unidos e que,desde o atentado terrorista de 11 de setembro aos Estados Unidos, di-videm-se entre apoiar ou não um combate ao Taleban. Invocado comoum dos pilares da cultura afegã – o “Nanai wati”, que os obriga a darguarida a quem lhes pede, manifestando, assim, o valor da hospitali-dade para os afegãos –, constrange-os quanto a entrega do principalsuspeito de ser o mentor do atentado, Osama bin Laden, saudita refu-giado no Afeganistão.

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4. O presidente do México, Vicente Fox, chegou a manifestar o desejode que houvesse, entre os países do Nafta, livre circulação de pessoas,como ocorre na União Européia, mas a idéia, na ocasião, contou compouquíssimo respaldo no Congresso americano.

5. No bojo de um conjunto de medidas, o Ministério da Indústria e doComércio da Inglaterra anunciou, recentemente, a disposição de sub-vencionar com US$ 6 milhões anuais, um número inicial de 50 espe-cialistas em ciências básicas, visando mantê-los ligados aos laborató-rios e universidades públicas do país, desenvolvendo tecnologias deponta e contribuindo na formação de novos talentos, nas classes dasuniversidades britânicas.

6. Ainda é reduzidíssimo o número de estudos de novos fluxos migra-tórios entre os países do Cone Sul. Registre-se a recente publicação deCanta, América Sem Fronteiras! de autoria de Margherita Bonassi,tratando de imigrantes latino-americanos no Brasil.

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ARNALDO FRANCISCO CARDOSO: Sociólogo, Professor de RelaçõesInternacionais da UniFMU.