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SONETOS 2015 E s p ó l i o l i t e r á r i o Ricardo Cunha Costa

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SONETOS 2015

E s p ó l i o l i t e r á r i o

Ricardo Cunha Costa

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_________________________________________________________ COSTA, Ricardo Cunha. 1976 - ...

SONETOS 2015 - Espólio literário. / Ricardo Cunha, Belo Horizonte, MG : Editora Pena Fiel, 2016.

pp. 67 – (Coleção Espólio Literário) ISBN .... 1. Poesia em língua portuguesa

__________________________________________________________

Licença Creative Commons: permitir a cópia, distribuição e execução da obra, desde

que lhe sejam atribuídos os devidos créditos.

Pedidos: [email protected]

Fale conosco: 55 031 9 8865 4981 Página: http://ricardopoet.blogspot.com.br/

Impresso no Brasil

Primavera de 2016

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À GUISA DE PREFÁCIO

As páginas seguintes apresentam a reunião dos sonetos escritos ao

longo do ano de 2015. Até aí, nenhuma surpresa: O título é claro

quanto a isso. Todavia, senti necessário prefaciar este livro na

esperança de proporcionar algum apoio ao leitor que empreende a

interpretação das linhas dispersas por este opúsculo. E a primeira

advertência é justamente essa, ou seja, trata-se de um opúsculo;

uma pequena obra. Tendo em vista a economia de papel e tinta, a

diagramação reúne dois sonetos por página, o que nos permitiu

imprimi-lo como um livreto barato, ainda que com uma fonte

sofrivelmente pequena e monótona. Peço que me perdoe a

avareza, mas os tempos que correm não permitem as velhas

comodidades a que os leitores de poesia estavam acostumados.

Não, este não é um belo códice protegidos por encadernações

austeras e letras douradas... Tampouco as folhas em papel-bíblia

ou ornadas por alguma diagramação sofisticada mais ilustrações

em água-forte de quando em quando. Infelizmente, se os sonetos

quedarem ruins aos olhos do leitor, este não terá sequer o consolo

de ornar sua estante com letras tão humildes. Sem embargo, é

deste modo que o presente opúsculo se oferece aos olhos do

leitor: Um humilde livro de versos.

Não deve o leitor procurar um fio condutor além do recorte

temporal que orienta a reunião dos poemas. Se acaso encontrar

algo que sugira um enredo ou vaga evolução de estados de espírito

do autor ao longo dos dias do ano, advirto que dispus os poemas

em ordem alfabética e não cronológica. Não há possibilidade,

portanto, de se aferir o que quer que seja a partir de uma leitura

linear, isto é, da primeira à última página. Aliás, desencorajo o

leitor a se propor qualquer outra linha consciente de leitura: Não

será de grande valia... Escrevo isso, na esperança de tornar mais

fluida a leitura e ainda em respeito à sensibilidade do leitor

Acredito que o poema — enquanto obra-de-arte, ao menos — não

deva carecer de qualquer informação exterior ao mesmo para ser

lido, sob pena de não ser interpretável sem as muletas de notas e

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SONETOS 2015 Ricardo Cunha Costa

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mais notas explicativas. Penso que seria substimar o leitor ao

direcionar-lhe a leitura por meio de notas. De qualquer forma,

qualquer dificuldade de leitura é actulmente sanada com facilidade

com a consulta de ferramentas de busca. Ilustrar ou comentar uma

obra limita a capacidade do leitor em pesquisar assuntos ou

aprofundar conceitos mencionados pelo texto poético. Como se vê,

assim como desejo que respeitem a minha inteligência, tento

respeitar a inteligência de todos.

O prazer que a leitura oferece é tanto maior quanto mais direta for

sua apreciação. Confesso ao leitor que não tenho qualquer outra

ambição a publicação desses sonetos senão de proporcionar um

modesto prazer intelectual. Prometer ou pretender mais do que

isso seria, ao meu ver, uma ilusão perigosa. Poemas não têm valia

enquanto fonte de conhecimentos ou registros fidedignos. São

antes impressões condensadas na mente expressas em versos

apenas pela conveniência do autor. Não têm qualquer valor

metafísico, filosófico ou científico... A única vantagem que me

ocorre agora em se ler algo tão caprichoso quanto uma reunião de

sonetos como a que se tem nas mãos é que o leitor nada perde em

abandonar sua leitura pela metade, haja vista que não se tem um

enredo, uma síntese ou sequer uma conclusão para ser cotejada ao

final da obra.

É com essa ideia rasteira e despretenciosa que ratifico ao leitor o

convite de empreender sua leitura, sublinarmente feito desde a

capa... Sim, leia-o! Leia o livro com seus cento e vinte e sete

sonetos! Ou senão, se calhar enfadonho, pince os sonetos ao léu

ou do modo que lhe aprover.

Nada me dará mais prazer que lhe agradar.

É isso.

Ricardo Cunha Costa, o autor.

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Para Mariana, Maria Eduarda e Bárbara Maria,

as “Três Marias”.

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A CAVALEIRO Gritava: —‖Aqui-d‘El-Rey! Aqui-d‘El-Rey!!!‖— Para a guarnição no alto do baluarte, Como se lhe alertasse d‘outra parte Pronta para atacá-los: —‖Acorrei!‖. No entanto, a fortaleza e sua grei Há muito abandonaram o estandarte... Visto que só silêncio ora comparte Cada pedra em ruína que encontrei. Galgo-lhe a esplanada que, vazia, Creram inexpugnável algum dia, Chegando com esforço ao revelim. Lá me apresento para outra vigia, Na esperança que a aurora traga a mim Por outra perspectiva, um outro fim. Betim - 03 06 2015

A ENXURRADA

D‘aqui a uns dois mil dias e alguns anos, Talvez possam lavar toda essa lama As chuvas mais as lágrimas ao drama De ver a nossa terra em mão de insanos. Resta agora tão-só contar os danos... E enterrar soterrados p‘la derrama Do minério elevado sobre a trama De mentiras, de engodos e de enganos. Até onde o barreiro há-de chegar? O que mais que precisa acontecer? Quanto de chuva e lágrimas a urrar?!... Há mais perguntas por se responder Que respostas que possam explicar Uma história impossível de esquecer. Betim - 10 11 2015

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À MEIA LUZ

Cheirava a almiscarado e cigarrilha. Interessante, mas... Assim-assim... Não sei que se dirá ela de mim Ou da lua que em cheio nos maravilha. Vê-la tagarelar bem peralvilha, Convenceu-me não ser de todo ruim Deixar-me enlanguescer, ainda e enfim, Se, a despeito de nós, a lua brilha. Fosse como fosse, era noite clara. Pude notar-lhe ao rosto uma luz rara, Enquanto o seu perfume me instigava. Então, tudo era mais belo do que era... Nem soube diferir n‘esta quimera Quem, de facto, a mulher que ali estava. Betim - 29 01 2015

À PRIMEIRA VISTA

Sim, eu quero te amar como se minha Fosses por toda a vida, muito embora Só te conheça há pouco mais d‘uma hora E sequer estivesses cá sozinha... Chegando aqui, sequer sei porque vinha. Mas confesso que já quero ir embora Para, insolitamente, vermos lá fora Se à minha boca a tua se avizinha. Se dissesse que te amo não mentiria, Mesmo sem saber teu nome ou quem és: Cuido que o Amor é cego ou vê de viés! E deixo-me levar pela ousadia, No avanço temerário onde o revés Se oculta em luz de plena fantasia. Betim - 08 02 2015

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À SUA ESPERA

Talvez por louco; ou sim, talvez por denso Eu me sinta capaz d‘uma verdade, Que lhe fale — além-factos e à vontade — Conquanto nos revele o pouco senso... Ou ainda ela me acuse por pretenso Iluminador de sombras onde a idade Pesa-me sob encargos a humildade, Face à morte com seu instante imenso. Afinal, o que é mesmo que se quer? Talvez jamais consiga o que quiser, Se as palavras disserem que a quero. Ou não... Nada mais há que não se veja! Postulo o mesmo fim que ela deseja, Quando insone, através da noite, a espero. Betim - 01 12 2015

À SUA MANEIRA

Há muitos anos eu tento entendê-la... Cogito quanto pensa e quanto sente E, sobretudo, se ela finge ou mente, Em face de qualquer conduta d‘ela. O que ela faz ou diz pouco revela D‘aquilo que de facto tem em mente. Às vezes chego a achar, estranhamente, Que para mim se quer mais cruel que bela! Verdade, mas verdade verdadeira, É aquela que fala ao coração, Ciente que todos têm sua razão. Daí eu me preocupar sobremaneira, Por quem vê toda humana relação, Senão interessante, interesseira... Betim - 11 06 2015

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A VIÚVA

À mulher que ele amou quando era jovem, Deu metade de tudo: Quase nada... A casa que deixou inacabada E os filhos que hoje pouco se comovem. O resto é silêncio... Águas que se movem Mais velas que se acendem desde a entrada. Quando, à hora incerta d‘uma vida errada, Se ignora que empecilhos nos demovem. Não lhe deixou o amor, há muito findo. Tampouco as alegrias do que é lindo Nas lembranças que ainda ela mantém. Sim o imenso vazio ao coração, Cujo amor viu morrer na solidão, Até pagar vintém sobre vintém. Betim - 28 08 2015

ABOIO

Fala a língua dos bichos quem os ouve: Junta-os no campo; leva-os ao curral. Sua voz não é sua, é ancestral. Vem dos antigos, gente que aqui houve. Quem à hora cante — ―Êh boi!‖ — quem a Deus louve, Tange as reses e a si no matagal. Quando a invernada faz vir afinal O orvalho da neblina qual lhe aprouve. O córrego da várzea corre frio Onde a estrada de chão para à porteira, Pois lua e estrelas vão para o vazio. Através da manhã levanta a poeira Enquanto o boi responde já tardio À sua melopeia de feira a feira. Betim - 24 10 2015

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ABRACADABRA

Embora sussurrasse em teus ouvidos As mágicas palavras dos encantos, Ignoro se se abriram a acalantos Ou a uma curiosidade dos sentidos. Com certeza há mistérios insabidos Onde habitam amores sacrossantos Quando de profundíssimos recantos, Despertam por uns sons bem escolhidos. Senão, não haveria o inusitado Encontro das humanas fantasias Que costumam alguns chamar de fado. Tampouco inenarráveis alegrias... Posto que, para além de certo e errado, As boas noites trazem os bons dias. Betim - 17 12 2015

ÁGUA-FURTADA

Aquela casa tem uma janela Que nunca vi aberta, muito embora O sol forte do lado cá de fora E a sua arquitetura a mim tão bela.

Tantas vezes olhei fixo para ela E nunca vi pessoa, antes ou agora. Entanto, inopinadamente, me apavora Vê-la sempre fechada feito cela.

O que esconde por seus vãos mais obscuros Ninguém lhe saberá intramuros, Porquanto inescrutáveis sós segredos.

Compreendo se esconder o que for feio, Mas a penumbra feita ao meu anseio São antes ignorâncias só de medo.

Betim - 01 02 2015

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ALMÍSCAR

Perfumara antiquíssimos narizes E agora é para mim feito um cheiro meu. Essência da presença que sou eu, Embora familiar nas meretrizes. Extraído de bichos infelizes, Cuja morte algo bom ofereceu, Um vapor volatiza o aroma seu Bem distinto ao de flores e raízes. Morena pele com baço reflexo, Na qual tenho espalhado generoso, Preparando-me o espírito ora ao gozo. Pois, de facto, recende a pele a sexo, Que se adivinha aos óleos essenciais, Quando suavizo o toque mais e mais... Betim - 19 08 2015

ALTERNATIVAS

Ou já não há temor no amor que, afeito, Eu ofereço além do entendimento. Ou ocorre prescindir até de intento Vendo-me perdedor de qualquer jeito... Não penso mais fugir qual tenho feito De tão vasto e insondável sentimento. Mas me convém tomar conhecimento Do que, malgrado belo, é imperfeito.

Desnudara esperanças tão tamanhas E horas, antes remotas que estranhas, A revolver no chão raízes d‘erva.

Apenas para expor toda a emoção, Que bate desvairado o coração Que por extremo amor tanto me enerva.

Belo Horizonte - 01 04 2015

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ALVÍSSARAS!

Acontece que a vida se conta em anos, Mas, a felicidade, não... De instantes É tudo quanto gozam os amantes, Voltando logo após a seus enganos.

Bonito é ver os dois a fazer planos No afã de perpetuarem o riso antes Que venham lhes turvar, extravagantes, Os velhos dissabores tão humanos.

Por isso, desconfio se algo bom Vêm pôr os corações fora do tom, N‘uma batida forte e acelerada.

Compreendo, todavia, o querer bem Que, apesar dos pesares, sempre tem Alguma maravilha enamorada. Betim - 19 11 2015

ALVORAÇADO

Quando o coração teima em bater forte, À flor da pele corre sangue quente E os olhos cobiçosos, simplesmente, Buscam os olhos d‘ela para a corte. Se um olhar tão gentil mais a conforte, Aproximem-se até que, frente a frente, Tenham, de coração como de mente, Algo que afaste as sombras já da morte. Porque um encantamento assim é raro E traz novas promessas para a vida, Malgrado um dia o amor se torne amaro. E se enfim, olhos nos olhos, eu a beijo Sei que tanto alvoroço não se olvida, Tampouco se perdoa o que desejo...

Betim – 16 12 2015

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AMOR POR AMOR

Eu te amo porque eu te amo, nada mais... Não há porque te amar senão amar, Se em teus olhos os meus têm seu lugar, Ao vislumbrar-te em dons espirituais.

Somos o que sonhamos, ademais, Vivendo quanto ousara eu te sonhar, Através da existência, fui te achar, Antes de não querer nada jamais. Porque amo, vivo só de sobreaviso, Na ânsia de que ao momento mais preciso Irias, com certeza, aparecer. Ou porventura não me fora a vida A jornada confusa e inadvertida Até o mais profundo no meu ser? Betim - 31 03 2015

ANACRÔNICO

Tenho vivido fora da era em que vivo. Pelo esplendor d‘algum século d‘ouro Ou à espera do Reino porvindouro, Buscando-me à tristeza um lenitivo.

Às vezes, com alguém de vulto privo De sua companhia e imorredouro Verso, que ao me olvidar qualquer desdouro Traz para meus escritos um motivo.

Sei que escrevo para um tempo já findo, Mas meus olhos insistem no que é lindo, Ainda que minha época eu ignore.

Assim, busco os versos que ninguém Crê que ainda se escreva, pois, a quem Que como eu, obstinado, rememore.

Betim - 24 09 2015

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ANDARILHOS

Eu não sei a que vimos. É, não sei... Só sei que estou aqui e tão-somente Atravesso à cidade, indiferente, Sem já me importar por onde andei.

Só mais um tipo só, sem rei nem grei, Que segue a sua vida em vão e em frente. Passo despercebido em meio à gente Costumada a andar sob obtusa lei.

Nós, multidões seguindo sós destinos, Vivemos ignorando os desatinos Sem objetividade ou objetivos;

Mas vamos todos por essa avenida E, ainda que a cuidar da própria vida, Talvez não estejamos sequer vivos.

Betim - 13 01 2015

ANO BOM

Sombreira castanheira à beira praia, Onde a brisa do mar nos beija a testa. Deixar-me estar ali é o que resta Após ter me acabado na gandaia... Mas quedo enmimesmado de tocaia A ver-lhe, em desalinho, sair da festa Prudente, ela me vê e me contesta, Enquanto curto a sua curta saia. —‖Vem, achega-te!‖— Eufórico eu lhe digo —‖É bom rever enfim um rosto amigo, Mesmo perto demais do coração...‖. Ela ri, mas se vai: Pernas ligeiras A contemplar mais fogos e fogueiras N‘outras tépidas noites de verão. Vila Velha - 01 01 2015

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AO PARTIRES

Toma meus olhos. Vês como te vejo? És tão intempestiva quanto linda! Já não sei que dirás, agora e ainda, Para eu me dissuadir de meu desejo. Porque te amar é tudo quanto almejo. E, mesmo que não mais de ti advinda, Resta esta esperança enfim infinda, Oculta à gentileza d‘um gracejo: — ―Aonde quer que tu vás, vai em paz. O que quer que faças, faze-o com amor‖. — Ao que, acenas feliz como te apraz... Sabendo que te levo aonde eu for, Lembra-te que és amada, às horas más, E entende que és querida, face à dor. Betim - 14 04 2015

APOTEOSE

Aconteceu de olhar porta entreaberta, Embora parecesse estar fechada. O que dava aos de fora ideia errada Ou ao menos impressão um tanto incerta. Porém, quem se lançou à descoberta Do que havia por trás d‘aquela entrada Consegue atravessar ampla portada Para mais adentrar, constante e alerta. No interior, um altíssimo vestíbulo Onde volutas vindas d‘um turíbulo Espalhavam perfumes divinais. E alta luz desde o zênite constrói Já a perfeita ambiência em que o herói Irrompe para a glória de imortais! Betim – 06 12 2015

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ARQUITETURAL

Enquanto os dias correm para o nada Ou para outro mistério que se oculta, Arquiteto, embora a mente estulta, Obras à catedral inacabada. Desde saída, tive a estrela errada. A poesia, porém, minh‘alma indulta De quanto essa má língua ainda insulta A tantos transeuntes pela estrada. Sobre alicerces alheios edifico Ciente que me faria muito rico Se servisse aos senhores d‘essa terra. Sem embargo, consigo obter uns cobres Por recobrir o teto dos mais pobres Com um olhar que à vida mais se aferra. Betim - 07 02 2015

ARRABALDE

Saiamos sós estrada afora rumo À serra que nos veda os horizontes. A ver a imensidão atrás dos montes: Longe!... Além!... Aonde não costumo... Há-que se ampliar o olhar: Cabeça a prumo E pé na pista! Mas não te amedrontes, Se acaso as horas pesam nossas frontes E mil milhas em versos te resumo. Não fosse o coração tão insensato, Seguirmos passo a passo, mão a mão, Sequer nos levaria a outra ilusão. Pois, apesar de não ter sido grato (Não o suficiente, acho...), o panorama Se oferece belíssimo a quem ama. Bonfim - 22 04 2015

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ARREDORES

Minha cidade é grande, cinza e cheia... Às vezes, eu me canso d‘estar n‘ela! Por isso me debruço na janela A ver as soledades que a alma anseia. Se rodo ao seu redor, em cada aldeia Revisito a paragem mais singela E amo quanto a distância me revela, Que sequer cuido se é bonita ou feia. Apenas chão de estrada e panoramas, Mais um céu que me azula longe os montes E o vale a se cobrir de verdes ramas. Volto co‘os olhos fartos de horizontes Certo de que eles ardem como chamas À luz do sol extremo em alvas frontes. Juatuba - 21 02 2015

AS APARÊNCIAS

É sempre sobre um tipo de pessoas: As mais belas e ricas que as demais... Vivendo as vidas mais excepcionais Ou que outros consideram muito boas. Reis — embora de insólitas coroas — São, senão mesmo reis, ao menos reais! Por se reconhecerem especiais, Logo, merecedores de mais loas... Mas eu, precocemente envelhecido, Não serei mais o poeta desvalido A cantar as douradas excelências. Não. Antes cantar suas misérias Enquanto garatujo as frontes sérias, Por levar mais verdade às consciências. Betim - 07 07 2015

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SONETOS 2015 Ricardo Cunha Costa

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ÀS GARGALHADAS

Súbito abre a janela, acende a luz E solta uma sonora gargalhada... A si, jamais a vi; não sei de nada, A não ser da silhueta de ombros nus.

Imagino-a morena; sonho azuis Seus olhos que não veem na madrugada A mim, que a escuto rir despreocupada E amo essa alegria a  que me induz.

Gargalhar desdenhosa noite afora D‘uma forma tão linda e àquela hora Fora um inusitado e só flagrante.

Diverte-me pensar que era feliz E não via bem diante do nariz Alguém a ouvir-lhe o riso contagiante.

Betim - 20 10 2015

ÀS MATINAS

Se não fossem os frutos de amanhã, Lamentaria até a chuva de hoje... Com efeito, se o tempo urge, a hora foge! E madruga o dia antes da manhã. Cedo ou tarde virá a aurora vã A fim-de que cada um se desaloje. Conquiste — seja césar; seja doge — Quem o sol já encontra em pleno afã. Em verdade, mui pouco se aproveita D‘essa luz que apresenta a estrada estreita Na qual é mais seguro caminhar, Se a jornada inicia com dia ido... Oxalá eu consiga, destemido, Um novo alvorecer sempre alcançar! Betim - 11 05 2015

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SONETOS 2015 Ricardo Cunha Costa

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AS SIRENAS E O NAUTA

Como alvas nuvens já quarando ao sol, Veem-nas repousar sobre os abrolhos: Virgens de vestes alvas; claros olhos... Onde, no meio do oceano, o exíguo atol. Conquanto a embarcação perca o farol, Navega entre arrecifes, entre escolhos! Segue rumo ao naufrágio e seus restolhos À maneira d‘um peixe preso ao anzol. Fosse qual fosse ao nauta seu desfecho, Ele não teme o mal que em si pressente, Buscando amor ou morte, indiferente. Suas vozes se calam n‘esse trecho... Não se sabe o que têm a dar, apenas Recebem-no nos braços as sirenas. Belo Horizonte - 31 05 2015

ASTERISMOS

Tendo o dedo apontado para estrelas, Ligo os pontos de amplas constelações. Ao quê, recordo deuses e explosões Para, enfim, ver o quanto me são belas.

Longe as observo — ora estas; ora aquelas — Sem buscar outras vãs explicações, Senão as qu‘eu descrevo aos corações Por amorosamente conhecê-las.

Sim, falar d‘amor é falar do fado... Se estrelas põem pessoas lado a lado Que após vão se afastando pelo olvido.

Contudo, continuam reluzindo Na certeza que apenas o que é lindo Pudera me alegrar de ter vivido.

Betim - 17 01 2015

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SONETOS 2015 Ricardo Cunha Costa

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ATLANTES

Gigantescos pilares elevados Até tocar a abóbada do céu... E a mente devaneia, perdida ao léu, Diante d‘eternos olhos extenuados. O mundo que sustentam, esforçados, O tenho andado já de deu em déu. Porém névoas, à guisa de alvo véu, Se me ocultam os rostos tão cansados. Contemplá-los é ver o quanto o mito Compreende da verdade do maldito, Cuja imensa obra é antes um castigo. Contudo, não ignoro a sua soberba: Mesmo face à derrota mais acerba, Permanecem de pé face ao inimigo! Betim - 25 03 2015

AUTODEFINIÇÕES

A felicidade é algo ao futuro D‘um pretérito bem mais-que-perfeito. O amor é algo a sentir, não um conceito. E o sexo é um carinho, ora inseguro... A vida é um período em que perduro. A morte, quando insólito me deito. O corpo é meu ser onde o teu estreito, Mas a alma é onde eterno eu te procuro.

Eu? Defino-me como um amador, Alguém que tão-somente por amor Faz tudo quanto há para se fazer.

Senão, sei-me uma sombra de quem sou... Mas caibo todo n‘um verso, a saber: — ―Aquele que na vida imenso amou‖. Betim - 29 03 2015

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SONETOS 2015 Ricardo Cunha Costa

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AVE CANORA

Cortaram as suas asas a que cante E a voz conte da dor de não mais voar. Ave canora!... Sim, do que mais chamar, Senão quem por mais triste, mais encante? Talvez seja de facto emocionante Ouvir, enternecido, o seu cantar. Sem que haja porque mais se lamentar D‘uma beleza assim de mim bem diante. Mas era uma dor tão completa aquela, Que me paralisou, embora bela, Para além de qualquer vã maravilha. Porque, enfim, sua dor era minha dor E as asas que cortaram em favor Fazem d‘arte uma espécie de armadilha. Betim - 04 10 2015

AZÁFAMA

Nada senão cansaços fora o dia, Perdido em excessivos afazeres. Não soube hoje d‘amores nem prazeres; Sequer alguma mínima alegria... Passo apressado p‘la rua vazia Tão alheio à beleza das mulheres, Quanto de seus mistérios e misteres, Como não desejasse companhia. Chegado em casa, nada já percebo. Abro a garrafa e não sei o que bebo, N‘um gesto maquinal, indiferente. Restara-me tão-só a noite e as estrelas Mais um silêncio insólito a envolvê-las Para o ócio me fazer de novo gente. Betim - 28 01 2015

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BARCO À DERIVA

Perdidos já o leme e a vela, corro Os olhos pelo oceano a ver o abismo Onde aprecio em meio ao cataclismo Das ondas no convés o forte jorro. Vem somente um petrel em meu socorro E pouco pôde diante do que cismo: A tempestade, extremo paroxismo, Por milhas à deriva e em vão percorro. Não tenho muito tempo... Já a quilha Deixará de sulcar as ondas altas, Que se elevaram contra as minhas faltas. Castigo ou não, resta a maravilha De saber quanto pode o mar ou a sorte Ao me levar, contudo, até a morte. Betim - 15 12 2015

BATALHA

Ela passou por mim — já nem sei quando — Após me atravessou como se a um rio Terá sido amor? Tive apenas frio... E ao partir parecia estar chorando. Eu só me lembro d‘ela me ensinando A amar entre o destino e o desvario. Não pôde ainda um silvo d‘assobio Marcar o lento adágio então nefando. É... Não pôde. Não pude!... Foi em vão Que escutei as razões do coração Para de novo andar só e sem sorte. Àquela melodia, entanto, eu sigo. Como ao sopro tenaz d‘um fole antigo Marchasse na neblina para a morte. Betim - 26 11 2015

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BELAMENTE

Amar, embora há tempos me proponha: — ―Melhor ter companhia à companheira!‖ — Assim a minha máxima primeira Da qual não tenho orgulho nem vergonha. Decerto uma história a ti bisonha, Onde muita histeria faz fronteira... Conquanto seja já d‘outra maneira, Quando o meu coração contigo sonha. Não te quero amar por seres amável, Sim porque quando fores algo odiável Consiga eu ver em ti a minha amada. Caso contrário, tu és uma amiga. Outra cuja beleza se bendiga, Por ser mais admirável que admirada. Betim - 10 02 2015

BULHUFAS!...

Nada de nada. Nada nem nadinha. Só o zero absoluto; o grito mudo A ecoar pelo vazio após o entrudo Sem que houvesse pessoa ora vizinha.

Era coisa nenhuma o que lhe vinha Sentir por dentro ao peito já desnudo. Se está fora de si e a par de tudo, Quando apenas tristeza se adivinha...

É terça gorda? Não: quarta de cinzas... Nem o coração, até então indômito, Age se o corpo esvai-se vão em vômito.

Até o céu, pesado em nuvens cinzas, — Enquanto à solidão mais nada evoca — Parece lhe esmagar a cabeça oca!... Betim - 17 02 2015

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CABELINHAS

As árvores imensas recobertas De finos cipós verdes sobre os galhos, Em extensas planícies que espantalhos Guardam pretensamente sempre alertas,

Vejo, a par de memórias tão incertas, Redimindo-me enfim dos passos falhos. Qual eu fosse empreender doze trabalhos Embora sem promessas, sem ofertas...

Porquanto, agora-aqui, ando feliz Comigo mesmo e com tudo o que fiz, Por saber contemplar tal maravilha.

Se cuido ver em árvores cipós Capazes de mostrar um pouco a nós O quanto o inusitado se partilha.

Lorena - 25 04 2015

CAFUNÉ

Enquanto escuto o som de tua voz Acalentar-me o sono para o sonho, Esqueço que estivera tão tristonho, Tendo extrema saudade por algoz.

Pois, solitários, não estamos sós: Aceitar nosso fado, embora bisonho, É algo de que não me envergonho, Porque somos metades vãs de nós...

Em teu carinho, eu tenho quanto sou. Por um pouco do que és, eis que me dou Para profundamente ser tocado.

Não apenas com mãos ou suaves sons, Sim por inexplicáveis outros dons, Que põem o coração tão serenado.

Betim - 30 01 2015

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CALOROSA

Abraça-me! Abre os braços aos abraços Há tanto que esperando te envolver. Deixa-me, ao te tocar, enternecer Porquanto me reténs os olhos baços.

Para o bem ou não, toma-me em teus braços, Sob pena de jamais acontecer... E, entregues à alegria, ousemos ser Apenas dois ladeando breves passos.

Sigamos o caminho à nossa frente Antes que se me torne indiferente, Que houvesse sol ou chuva por onde ando.

E esqueça n‘um instante o mal passado, Quando em teus braços eu, aconchegado, Cuide senão de ti cá me abraçando.

Betim - 26 01 2015

CÁRMICO

Talvez mereça exacto o que me aconteceu: Cada desastre, cada azar, cada tristeza... Pode ser que seja algo em minha natureza Ou extrema realidade àquele que fui eu. Confesso que, por fim, amar foi erro meu. Lutei co‘o coração, deixando a alma indefesa; E pus toda a alegria em ter a chama acesa Enquanto um vento frio a ela toda envolveu... O que fiz, bem ou mal, foi tudo por amor. Antes pedir ―desculpa‖ a pedir ‖por favor‖ E melhor se seguir ousados que hesitantes. Se fracasso, contudo, é por ter sido alguém, Que coragem se quis para olhar mais além Ao se elevar por sobre os ombros de gigantes! Betim - 03 12 2015

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CARTOMANCIA

Põe as cartas na mesa para mim E dize-me: que vês? O que há comigo? Compreendo ser eu meu grande inimigo, Contudo, não me sinto bem assim... Se nem um dois de paus souber, enfim, Onde a rainha de copas em perigo Me pôs pelo ás de espadas que persigo, Certo somente d‘outro triste fim, Nada me mostrará o que preciso! Condenado a ser um indeciso, Hesitando entre o já não ser e o nada. Faça-me algum sentido o que não faz E que possa eu, destarte, estar em paz Diante da minha sorte ali lançada. Betim - 06 03 2015

CATASTRÓFICO

Aprendi a aceitar o amor tal-qual Costumam aceitar fatalidades. O amor me é uma d‘essas novidades Que a mim, via de regra, acabam mal. Já a paixão é quase sempre igual: Há tanto anseio de obter felicidades, Que não mais que outra feira de vaidades Mostra-se o coração em seu caudal. Mas como tão imensas esperanças, Face às mais detestáveis experiências, Podem nos arrastar a outras andanças?!? Decerto enganarão as aparências, Enquanto se embaraçam as lembranças, N‘um encontro de duas sós consciências... Contagem - 20 02 2015

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CHÃO DE FÁBRICA

Agregando valores ao produto, A partir d‘uns erráticos insumos, Entregar novos itens aos consumos Enquanto nosso chão resta poluto. Mas as operações que ora executo Extraem d‘esta bagaça os suprassumos, Porquanto entre resíduos, pós e fumos Computam toneladas d‘ouro bruto... Essa riqueza imensa que contemplo É toda ela levada para o templo Onde modernos ídolos se adora. Não obstante, é a força de trabalho Cuja oferta, define quanto eu valho E o lugar que no mundo ocupo agora. Betim - 03 10 2015

CLAROBSCURO

Há mais amor que dor por essa vida, Basta à gente saber olhar para ela. Até uma hora triste assim, mais bela Se tornará se for bem dividida. Melhor uma alegria imerecida Que outra tristeza tão só quanto aquela... Eu prefiro a manhã que se revela A qualquer ilusão obscurecida. Tudo muda conforme a luz lançada. Se olharmos bem profundo para o nada, Talvez vejamos quanto há para ver. Por isso tenho andado junto ao abismo; Certo que, escuridão ou cataclismo, Estarei pronto para quanto houver. Betim - 19 03 2015

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COEVOS - a geração milenarista

Vivi em meio a gênios e a imbecis A alegre sucessão entre os milênios. Àquela época, actuava em sós proscênios A me monologar uns sonhos vis... Era decerto um hábito infeliz — Bem coisa de imbecis, outrora gênios — Brilhando em filamentos tungstênios As ideias que fantásticas eu quis. Seriam poemas só ou profecia Tudo quanto d‘amor eu me dizia? Ou tão-somente ouvi que quis ouvir?... Gênio ou não, comparti com eles anos, Porém, sobremaneira, os meus enganos Por juntos, à mesma época, existir. Betim – 05 01 2015

COLONIAL

Abro a janela e acima dos telhados Vejo às torres pináculos agudos. Brancas, a igreja e as casas onde escudos Vêm nos rememorar antepassados. Corro os olhos por uns beirais ornados Com quadros de madeira então desnudos Como se a apresentar, de alpendres mudos, A aurora silenciosa a enamorados. Se a vida for, de facto, um sopro apenas — Que em paixões e misérias tão pequenas Passa como se não houvesse havido... — Restem belos vestígios d‘ela ao menos, Tornando os lugares mais amenos Como estas velhas vilas me têm sido Bonfim - 20 04 2015

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COMPARTILHAR

Era um lago coberto de aguapés Dos quais se vê brotar flores violáceas E ainda as chuvas d‘ouro de altas cássias Choronas sobre as águas das marés. Não te lastimes, flor, por quem és! Se por verdes veredas jasmináceas Eleve mais meu canto com audácias Por tais flores me lembrarem teu aloés. Inclina o vento taboas pelos pauis Enquanto mais se espelham céus azuis Sobre tão sereníssima paisagem. Queria que comigo ora estivesses Para que visses quanto te pareces Mais bela que a beleza d‘essa imagem. Esmeraldas - 19 12 2015

CONFISSÕES

Às vezes, sozinho, eu penso em voz alta, Falando comigo mesmo sobre tudo. Jamais considerei fazer-me mudo Por julgarem-me a mente louca, incauta... E quando, em solidão, eu sinto falta D‘alguém que se interesse se me iludo, Eu me abro o coração, enfim desnudo Onde um solo de oboé ou doce flauta. Na escuridão da noite, enmimesmado, Algum consolo a mim tenho encontrado Face às contradições de cada dia. Pois, mesmo que me julguem n‘outros termos, Cuido que eu me falar em locais ermos Torna mais leve quanto me angustia. Betim - 23 02 2015

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CONSANGUÍNEO

Coube a mim, meu irmão e minhas filhas Transmitir pelo gene  o antigo fado D´haver o rosto em sardas salpicado Por oriundos das mais remotas ilhas. E embora existam mesmo outras famílias Nas quais isso também é observado, Percebo que se tem compartilhado Só entre nós estranhas maravilhas: Tímidos, mas de máximo pudor, Falamos bem pouco e pouco temos Para falar senão quando em extremos. De silêncio e solidão o nosso humor, Que, dir-se-ia, ter alma de ilhéus Quem cujo sangue traz o mar e os céus. Betim - 10 09 2015

CRIOULOS

No Brasil, quase todos; quase tudo... D‘uma crioula mistura nossa gente. Mas considero ser isto excelente, Por nos ter mais diversos, sobretudo. A estes que aqui nascemos eu aludo: Nós, os miscigenados tão-somente. Continuando a brincar promiscuamente Pelo mais desvairado e vão entrudo. Convém o puro sangue a bons cavalos E a cachorros quiçá; jamais a humanos, Visto nada a linhagem sem regalos. É bem de rir, não fosse pelos danos, Que fazem da fidalguia e seus vassalos Há muito o mais absurdo dos enganos. Betim - 29 05 2015

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DE AMOR E ÓDIO

Eu não gosto de quem ama odiar; Que gosta de pensar o pior de mim E não vê os próprios erros. Sim: Que incapaz de se pôr no meu lugar! Por infelicidade, odeia amar Para prevalecer sempre no fim Em seu amor perfeito — ou coisa assim — Onde só receber e jamais dar. Querer (sendo odiável!...) ter amor É semelhante ao rei cujo favor Se obtém mediante crimes e delitos. D‘extremos, ama tanto quanto odeia, Enquanto ressentida me rodeia Com mais uns impropérios esquisitos... Betim - 04 01 2015

DE PARTIDA

De tudo o que restou, não vejo nada, Que valha sequer para pôr no fogo. Querer foi um engano; amar, um jogo. Mas isso tudo é já fava contada.

Diante d‘uma tragédia anunciada, Não me soube estratego ou pedagogo... Tão-só testemunhando o ocaso! Logo, Já não tenho mais nada além da estrada.

Atravesso as extensas serranias Certo de que a distância tem a paz, Que ora tão perto não me sei capaz.

Onde as mais ricas horas; os bons dias Serão se o coração e a mente sãos, Quando tiver meu fado em minhas mãos.

Betim - 28 03 2015

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DESABAFO

Palavra após palavra eu escutei Tudo o que carecias de dizer. Ouvi o que não fiz por merecer E até aquilo qu‘eu jamais sonhei. Decerto o coração é como um rei, Cujo país ninguém logra conhecer. Mas, quando a mágoa explode, o que fazer? Senão juntar os cacos que catei?... Caminho em derredor e me contemplo Nas antigas ruínas d‘algum templo, Onde um dia habitou ignoto deus. E vejo que razões são só razões, Que a despeito de doutas opiniões Não calam os extremos berros teus. Betim - 29 11 2015

DESAPARECIDA

Mas súbito eu me viro e não a vejo... Partiu ou somente saiu de perto? Busquei tanto, entre audaz e boquiaberto, Que sequer dissimulo outro bocejo. Sim, já me canso até do que desejo E me quedou oculto sob o incerto: Atrás de cada porta que hei aberto, Ignoro se aproveito ou não o ensejo. Giro outra vez a roda da fortuna, Aguardando que o fado afinal se una Às insensatas vozes da esperança. Tudo isso muito pouco me conforta Se, inadvertidamente, ela abre a porta E sorri sem nenhuma desconfiança.

Contagem - 06 04 2015

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DESAPONTAMENTO

Ao me decepcionar além da conta, Pude entender de facto o que o perdão Nos custa quando a mágoa ao coração Dilacerara face à imensa afronta. Pouco adiantará a resposta pronta Que outros mais sábios têm como lição: Reduzido à patética visão De pessoa que súbito desmonta. Finjo não ver os mortos que passam Ou perceber o quanto se embaraçam Tão somente d‘estar a mim tão perto. —‖Eles que se enterrem!‖— Só, repito o Cristo — ―Diferente das sombras, eu existo E vi quanto um amigo é algo incerto...‖.

Betim - 18 05 2015

DESISTENTE

Um dia o coração nos diz: ―Sossega!‖, Cansado de bater como de amar. É quando a gente deixa de esperar Que qualquer coisa valha tanta entrega. Passa a cuidar da vida igual da adega, Isto é, a encher garrafas tão-só de ar! Para pateticamente especular Outra verdade que há tempos se nega: Considerando os prós e os contras onde E quando a exuberância bem se esconde Atrás de mais fumaças de ilusão, Uma vez ou outra a gente desanima. Diante da total perda de autoestima, Enfim se abandonando à solidão. Betim - 13 06 2015

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DESVARIO

Beija-me! Até que canse de teus beijos... Por horas e horas sê apenas minha, Tal como uma tragédia se adivinha Àquele que ousa ter esses desejos.

Toca-me... Faz vibrar-me feito arpejos D‘uma viola que suave se acarinha. Mais agradar um ao outro nos convinha, Pois entregues já sem medos ou pejos.

Cheira a saliva, sangue, suor e gala A pele nua em pelo enfim liberta Das roupas espalhadas pela sala.

E, embora a imensa urgência que desperta, Saboreio ‗inda o olor que o corpo exala, Feliz recebedor de linda oferta.

Betim - 17 09 2015

DEUTERAGONISTA

Em diálogo estreito, vai comigo Aquele que me ajuda a expor os factos. Mostrando-os, n‘outro olhar, bem mais exactos, Quando esclarece se eu me contradigo. Há n‘esse companheiro o que persigo Da insólita memória de meus actos. Visto que ele me guarde ainda intactos Velhos recordos com seu zelo amigo. Convivendo um conflito respeitoso, Aprendi a apreciar-lhe o espirituoso De seu vão pessimismo ensimesmado: — ―Desejo longa vida ao opositor, Cuja contestação dá mais valor A tudo quanto temos conversado!‖. Betim – 28 05 2015

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DEVASTADO

Lamento minhas filhas que jamais Verão o rio — espelho d‘água aos céus — Onde se dissipavam níveos véus Das antigas florestas das Gerais. Perdidas estão para nunca mais Outras manhãs que guardo por troféus. Pouco importa hoje quem serão os réus De vítimas que sequer se ouve os ais: A torrente varreu toda a floresta Indo boiar no remanso d‘uma curva Co‘os peixes buscando ar à margem d‘esta... Triste, toda a Natura ali se encurva. De modo que a esta altura apenas resta Aprender a ser peixe n‘água turva! Betim - 15 11 2015

DOMÍNIOS

Ter, mas se deixar possuir pela posse, O faz ser dominado, não dono. Os dias só repetem o abandono Como se um traste inútil ele fosse. E não era... Pois, muito embora endosse Com seu contínuo zelo o alheio engano, Sabe, em última análise, haver dano Sob aquela esperança outrora doce. Liberdade. Ser livre de verdade É não se submeter a outra vontade Que não a própria. Nunca de tiranos! Porque quem lhes tolera urros ignavos Percebe o coração e a mente escravos Enquanto baldos passam os seus anos. Belo Horizonte - 20 01 2015

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ENTARDECER

E quando cai a tarde ao fim do dia, Eu sento e sinto o vento no meu rosto Levar toda a tensão; todo o desgosto, Para longe d‘olhar que, todavia, Relembra no horizonte a travessia Em trajetória ao extremo do sol posto. Inabalavelmente, ali me encosto Ante a contemplação de quanto via. Não há porque negar; o fim vem vindo. O tempo passa e com ele eu — passando — Sigo meu fado triste-embora-lindo. Tudo por causa do vento mais brando Depois d‘um dia tão longo enfim findo: — ―Meu Deus! É d‘isto qu‘eu estou falando...‖. Betim – 16 01 2015

ESCARCÉUS

Para quem sempre fez assim tão pouco De flores e de poemas quanto da hora, Nada te custa ouvir-me noite afora Até acontecer d‘eu ficar rouco. Parado em teu portão passo por louco, Conquanto não me deixes ir embora... Não creio que te divirta ver-me agora Ou que ames o dramático tampouco. Contudo, estás aqui: espumando ódios! ‗Inda a ver e rever os episódios Que advogas em justiça do que sentes. Berra! Se isso te deixa algo melhor, Mas não me faças mais pouco do amor Com tanta raiva e dor, rangendo os dentes... Betim – 09 02 2015

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ESCRACHOS

Enquanto ela se ri, eu só me ofendo... De facto, é um humor bem peculiar Esse que sempre a leva a gargalhar, Não importando se o outro está sofrendo. Pode parecer cruel, mas eu entendo: Tanta alegria chega a incomodar! Embora perversa ou fora de lugar, Cuja razão humilha convencendo. Sim, ela está certa. Mas o quanto? E a ponto de causar tal desencanto Tão-só por ter errado? Por humano?... Percebo o riso fácil não tão fútil, À medida que a dor se torna inútil. Então eu rio junto, salvo engano. Betim - 25 05 2015

ESCULACHO

Ao contrário do qu’eu imaginava, Quem é do bem não é tão bom assim... O lado que se escolhe diz de mim Apenas com quem eu melhor me dava.

Sim, sou mestiço; crioulo. Gente brava! Que mata e morre anônima no fim. Sou o que se sustenta, ora e outrossim. P‘ra todos os efeitos, pouco errava.

Mas quem repreende não quer nem saber: Certo de si, humilha a vil pessoa Em cujo erro urra até não mais poder.

Faz pena capital de falta à toa!... Quem nos acusa e julga já aos berros A pôr nos pelourinhos de hoje, a ferros!

Betim – 12 12 2015

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ESPELHO D’ÁGUA

É belo, onde o palácio alto se espelha — O modo como o narciso se debruça Ao vento, em divertida escaramuça, Sobre as águas d‘alguma história velha. Alvo leque à corola tão vermelha, Suas pétalas têm algo que aguça O olhar face à memória se esmiúça A verdade que em tudo lhe assemelha. Passeio pelo jardim que não possuo, Muito embora me veja em quanto vejo Refletir-se à luz vã do meu desejo. De sorte que a beleza que usufruo Me dá, portanto, tudo que preciso Ao me espelhar palácio, luz, narciso... Betim - 19 02 2015

ESTADO DE COISAS

Enfim, a situação é a seguinte: Se, caminhando à beira d‘um abismo, Olhasse e visse além-mim o egoísmo D‘outra voz misteriosa de pedinte. Talvez, inopinado, eu não me minte Ou deixe de anunciar-me o cataclismo À luz do lusco-fusco, enquanto cismo Sobre ilusões do vão século vinte... O facto é que é assim mesmo. Contudo, Enquanto ando sozinho, pouco ajudo A realizar o mundo ao meu redor. Vivo como se alheio e enmimesmado. E acho que me tornei o homem errado: Qual sentinela, sempre pronto ao pior. Betim - 15 08 2015

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ESTAPAFÚRDIA

À medida que os anos passam, penso O quanto de ambição a alma padece. Pois quanto mais se tem, mais se carece; Onde um vazio mais e mais imenso... Ainda que pareça algo pretenso E falso o desprover-se de interesse, Considero que menos se enriquece Quem vive de futuros, sempre tenso. A roda da fortuna faz girar A engrenagem do mundo até parar E ser impulsionada novamente. Sem embargo, com toda essa ansiedade Nada se usufruirá na realidade, Se exaustos tanto braços quanto mente. Betim - 05 06 2015

ESTE AMOR

Por vezes amo qual eu não amasse; Como se não sentisse isso que sinto. E finjo não amar, ou melhor, minto P‘ra não verem amor em minha face.

Ainda que eu d‘amor não me calasse, Antes falasse, ao menos, mais sucinto! Ao invés de feito cego em labirinto Por qualquer vã saída eu palmilhasse...

Contudo, eu amo. Eu te amo sem razão, Sem esperança e até sem ilusão De que um dia esse amor faça sentido.

Sim, eu te amo... A despeito de que me ames. E, ignorando dos sábios os ditames, Mais saberes no amor tenho vivido.

Betim - 24 03 2015

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F a P FACE A FACE

Não ignoro que tu sejas tão linda, Conquanto não entendas o que sinto... Amar alguém é algo bem distinto De não saber o que se quer ainda. Quando em tua honra minha taça brinda Ou minha pena escreve quanto minto, Rescaldo cinzas vãs ao fogo extinto Onde toda a paixão decerto finda. Mas te digo enfático, olho no olho, Que se ora a solidão por fim escolho Não é por não te amar ou te querer. Sim porque me deixaste já sozinho; Há tanto tão carente de carinho, Face à inútil beleza de mulher. Betim - 13 02 2015

FOLHA CAÍDA

Costuma-se dizer que jamais cai Uma folha sequer por sobre o chão Sem assim lhe ordenar a santa mão D‘Aquele a quem Jesus chamou de Pai. De facto, aonde tudo ainda vai Senão já com alguma permissão? Sei seguir na completa escuridão Sem saber se o porvir logo me trai... Ignoro o que acontece a além de mim. Mas se o próximo passo for meu fim, Que seja em direção d‘alguém que me ama. Se Deus quiser, um dia d‘esses caio Como se o brilho tão fugaz d‘um raio Ou outra folha pousando pela grama. Betim - 04 10 2015

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FONTE DAS LETRAS

Dizem tornar-se poeta se em Pirene — Onde a Pégasso achou Belerofonte...— Aquele que ao beber a água da fonte Ousar fazer do vão algo perene. E a despeito que o século o condene À obscuridade só que tem à fronte, Impávido, alçará voo ao alto monte Em que os deuses mantêm a ordem solene. Deveras, deverás por sonhador Vencer um mau destino pelo ardor Feito antes de inocência que de astúcia. Porque tu, tal como eu, te queres poeta E água de que bebemos é repleta Dos arrebóis banhados de luz fúcsia. Betim - 01 12 2015

FRIAGEM

É bom ficar ao sol num dia frio, Esquecido de tudo e me aquecendo. Estico no meu ponche algum remendo, Que de pura impaciência ora desfio. Após tiritar horas, desconfio De tudo o que já ia me esquecendo... Como se enigmas qu‘eu jamais desvendo, Embora fosse o sol tão luzidio. Mas os meus pés ainda estão molhados E me enregelam como se dos ossos Um frio d‘arrepiar pelos costados. Então: coriza, tosse e chás insossos... Quando se faz mais rubro outro arrebol, Traz memória do frio o ardor do sol! Betim - 13 05 2015

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FULO!

Para de reclamar de mim comigo. Acabou: Não sou mais problema teu! Se sou mesmo tão ruim, porque sempre eu Tenho-de te amparar e dar abrigo? Quando todos se foram, fui-te amigo. Mas olha, agora, para quem te acolheu: Nem metade de quem fora! Pigmeu E, inopinadamente, em vão perigo... Toma um gole de tua fúria e dorme. Sonha com teus sequazes a haver-te a ira E admira, por fim, meu olhar disforme. É o máximo que posso, ou a mentira De dizer que eu, malgrado me conforme, Te deixei antes que outro mal me fira. Betim – 05 01 2015

GRUPIARA

O rio desce cheio rolando seixos Em águas tão turvas de cachoeira. Acima do lajedo uma outra leira É juntada feito obra de desleixos. Ranchos a levantar barreando feixos Onde o ouro de aluvião jaz quase à beira. E a lavra é amontoar a cascalheira De pedra sobre pedra entre apetrechos. Fôssemos bamburrar ou não, eu fui! Quando, no meio do mato, houve garimpo: Às catas, lama  suja em ouro limpo. Justo o mais miserável, mais possui... Eram montes de pedra logo ali, Cuja extrema riqueza então vivi. Bonfim - 21 04 2015

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IDAS E VINDAS

Se quiseres que eu fique, não me mandes Ir embora assim como quase nada Tivesses feito p‘ra eu seguir a estrada Para após anos; para além dos Andes!...

Se fores me deixar, já não andes Como quem não quer sair do lugar, Na esperança vã d‘eu ir te encontrar N‘uma distância que há tempos expandes.

Se não sabes que queres, não me queiras À sombra de improváveis castanheiras Defronte à tua casa te esperando.

Senão, tudo o que tens é tão-só ira... Esta que tantas vezes me ferira E que me faz partir de quando em quando.

Betim - 05 02 2015

IMISCÍVEIS

Tuas pupilas lembram bem dois óleos D‘uma solução com cores distintas: O verde e o mel translúcidos me pintas, Resplandecendo a luz dos belos olhos. Essências vegetais, álcoois, petróleos... Cujas almas reluzem tão sucintas! Prescindirá o amor de quaisquer tintas Além das que me miras se d‘entreolhos. De facto, basta a gente se entreolhar, Que a esperança e a beleza têm lugar N‘estes dois tons tão claros te luzindo. Mas mesmo nítidos líquidos imiscíveis Não têm a luz de tais cores incríveis Que sustentas em teu olhar mais lindo.

Betim – 29 05 2015

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ÍMPIO E IMPIO

Por todo o mal que já tu me fizeste E toda a esperança sã que me roubaste, Admiro-me de quem tu te tornaste Por bem saber quem foste e d‘onde vieste. Acuso-te de agir com fúria agreste — Após do alto poder tomares a haste — Contra tudo que outrora apresentaste E àqueles que, jurando, defendeste. O que virá agora depois d‘isto? Guardaste para mim outro desgosto?... Ou me surpreenderás co‘o jamais visto?! Alguém tão perigoso, por suposto, Não devia sequer saber que existo... Ao menos me poupar de ver seu rosto! Betim – 10 12 2015

INDOS

Alexandre marchou contra elefantes Após atravessar o grande Rio... Fora o primeiro grego ao desafio De enfrentar os hindus beligerantes.

Dizem que a sua fama chegou antes E os deuses anunciaram com céu bravio. À furiosa manada, um olhar frio Lançou onde as falanges são triunfantes.

Após, frente ao inimigo, se impressiona... Tamanho o destemor face à derrota, Que até aliança àquele proporciona!

Isto tornara mais digna de nota A história que entrando para a História Lembra quão relativa é a vitória...

Betim - 31 12 2015

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INVERDADES

Não me contive a lágrima ou o soluço Face à sua maldade antes oculta... A antiga candura ora à mente insulta, Tamanha a dor a qual eu me debruço. Enfim desmistifico, sem embuço, O fado que um mau astro dificulta: Agindo feito criança, embora adulta, Ela embaralha os factos que esmiúço! Talvez tenhamos, fúteis ambos, vindo Sem que se saiba ao certo se é já findo Ou se há apenas algo muito errado. Mas fica a decepção, a ira e a tristeza. Mesmo porque, nem ela saiu ilesa, Embora o coração apaziguado. Betim - 28 03 2015

IRRITADIÇO

Eu tenho estado a ponto de explodir, Por há tempos andar exausto e insone. Seguidamente, inquiro o telefone Como buscando oráculo ao devir...

Paro e penso no quanto sei sentir: Embora esse pesar não me abandone, Percebo inútil que outro rei destrone Tão-só para que o caos possa me vir.

Quando dei por mim, era madrugada. Os meus olhos olhavam para o nada, Enquanto a mente em vão não se refaz.

Pois sigo sem saber o que fazer, Tudo desconhecendo ora, a não ser, De que preciso d‘um pouco de paz.

Betim - 26 03 2015

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JOVENS, LINDOS E LOUCOS

É sim... Deve haver algo muito forte Capaz de atrair olhares e atenções. Deve ser fantasia de emoções Já limítrofes entre a vida e a morte.

São amadores? Fazem por esporte? Tão-somente conquistam corações... Sempre a renovar suas ilusões De que extremo prazer os reconforte.

Não. Eles são românticos... São sós Olhando bem nos olhos d‘esse algoz, Que os encara, lunático, no espelho.

E sorriem... Em face do perplexo Como se a debochar de amor e sexo Os seus sanguíneos mil tons de vermelho.

Contagem - 17 07 2015

LÁPIDES

Do nascer e morrer, a data e o local... Eis a quanto resumem nossas vidas! De facto, pouco importa como vividas Ou do que realizaram no final.

Este foi pai; aquela, espiritual: Ao menos são em suas despedidas, Entrementes lembradas e esquecidas As existências entre o bem e o mal.

Em saudades eternas descansaram, Enquanto esperam quantos os choraram Virem descer também junto aos seus ossos.

E as pedras que no campo registrando Seus nomes que existiram onde e quando, Pacientemente, até serem os nossos.

Betim - 01 03 2015

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LÍTOTES

Não detesto os teus beijos. Com certeza, Detestável seria não mais tê-los! Nem tampouco desdenho os teus cabelos Ou outro aspecto de tua áurea beleza.

Não posso me queixar já de estranheza Se bem me acostumei a olhos tão belos, Jamais me desgostado em entendê-los E embora me conheças a tristeza...

Tu não morres d‘amores de ser bela, Tal-qual não amo ter-me tagarela Em contraste a tão tímida figura.

Sabendo que te odeio fazer tão triste, Silencio ao teu lado quanto existe Para não te turvar ora a candura.

Betim - 02 03 2015

LOCOMOTIVA

Um trem distante apita na noite alta. Súbito me recorda, simplesmente, Alguém, algum lugar ou algo à mente, Que apenas d‘eu pensar me sobressalta. Fez ver à minha volta a minha falta, Enquanto madrugava inconsequente. Pois, a máquina bruta e semovente Como cinema por meus olhos salta: Afinal, o que mesmo me motiva A essa altura da vida? Que promessas Têm força face a noites vãs como essas? Não sei... Ainda assim, locomotiva Seja minh‘alma ao afã só d‘avançar; Atravessando sertão, neblina e luar. Betim - 10 01 2015

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LONGE

— ―Deixa-me partir, tão-só eu te peço. Eu preciso ir para longe, deixa! Onde não possa ouvir qualquer queixa Ou mesmo esse amor vão que te confesso. ― E quando for seguro o meu regresso, Como se ramalhete que se enfeixa, Junte os meus versos à guisa de deixa Àquela de quem ora me despeço: —‖Por quem és, moça linda, eu te suplico Deixa-me partir, mesmo menos rico Que o só que só pernoita sob a ponte. ― ―Para, à manhã seguinte, esteja eu diante Da estrada que me leva então, errante, No afã de vislumbrar outro horizonte. ― Betim - 08 03 2015

LUAR SANGUÍNEO

Sombra da Terra sobre a lua no céu Que assim obscurecida se avermelha. Pois sua luz opaca o luar espelha Como d‘uma fornalha o fogaréu. Envolta em nuvens, tão lúgubre véu Lembra histórias d‘alguma dona velha, Que, co‘os olhos saltados e de esguelha, Antevia a tragédia longe e ao léu. Àquela hora, era quase madrugada. Da lua apocalíptica eclipsada Um presságio partia exacto a mim: Tão certa quanto a morte, a solidão Havia de sangrar-me o coração, Conquanto me ilumine a lua enfim. Betim - 27 09 2015

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LUSCO-FUSCO

A partir da duodécima hora, quando O sol por trás das serras vai se pondo E ao crepúsculo zoa o marimbondo Alegre porque o dia se acabando. Então à passarada vejo em bando N‘uma algazarra vã a que respondo A rir como se rir um luar redondo Eu fizesse surgir enquanto ando. Talvez desencontrasse o extremo, aonde Eu ia enmimesmado e só, ainda Certo de que a alegria se me esconde. Mas — exacto por isso! — fosse linda Essa aura lilás por quanto me sonde, Porque em melancolia o dia finda... Betim - 03 09 2015

MAL DO SÉCULO

Não me interessam dúvidas burguesas Tampouco rebeliões de carbonários. Sim atravessar noites junto a vários Boêmios que poetando em toscas mesas.

Por vir compartilhar rimas inglesas, Entre belas polacas e canários, Reencontremos a angústia, perdulários! Perdidas já, uma a uma, as vãs certezas...

Saborear, sobretudo, o verde absinto, Cujo doce ritual de seus vapores Faz percorrer em sonho um labirinto.

N‘um desperdício pródigo de vidas, Seguir amando vícios onde dores Permitam-me o prazer por pervertidas.

Betim - 13 10 2015

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MALABARES

Bolas, argolas, claves, fogos, diábolos... Vindo e indo, d‘uma mão à outra, pelo ar. Têm me mesmerizado só de olhar, Como o êxtase dos santos nos retábulos. Se a memória carece de vocábulos, A poesia haverá-de me encontrar Cada palavra e, exacto, o seu lugar, Pois necessita o espírito de pábulos. Dito e feito: Eis o ritmo, o metro e a rima, Tendo-me por geral matéria-prima Malabares que orbitam feito eléctrons! Senão, que se mergulhe ‘inda mais fundo, A vislumbrar até no mar profundo Mais que a vida dos plânctons ou dos séctons... Betim – 02 06 2015

MAR DOCE

Há um rio tão grande quanto o mar, Que me atravessa a terra, no interior. Não sei onde começa, nem se o maior Que tem no mundo p‘ra se navegar. O que sei é que n‘ele têm lugar Vidas vividas só com sangue e suor: Sempre amores e mortes no calor De emoções impossíveis de domar. Essa imensidão d‘água é o horizonte Que, inopinado, tenho em minha fronte N‘uma navegação lenta e imutável. Oxalá eu ainda chegue aonde Longe a nuvem escura se me esconde E encontre em meio às águas o inefável. Betim - 05 07 2015

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MEMORIAL

De primeiro, isso tudo era só mato. Tinha aroeiras, ipês, pés de pequi... Vinha de longe gente até aqui A se banhar nos poços do regato.

Por caminhos de roça, algo insensato Permitiram fazer, porém, de ti: Terra nua e indivisa eu conheci; Tens, hoje, um insólito retrato.

Lugar denominado ―Bandeirinhas‖, De cujas povoações circunvizinhas Fora o retiro ameno e prazeroso.

Não te esqueças, oh chão, as horas minhas! Malgrado ora te exponham, arenoso, Sei te rememorar maravilhoso.

Betim - 08 04 2015

MEDICANTE

Não valha eu nem sequer o angu que como, Se algum angu tivesse p‘ra comer... Sou pequeno demais para me ver: Sempre como o mais ínfimo me tomo. Hoje, ainda menor que o cromossomo Gerado em mim bem antes d‘eu nascer. Ninguém já notará quando eu morrer. Porém, sigo a viver sem saber como. Apenas faço quanto for preciso, Permanecendo então de sobreaviso À espera de oportunas novidades. Pois, engordo co‘as sobras dos felizes Enquanto lhes oculto as cicatrizes E apregoo minhas sós necessidades... Betim - 07 08 2015

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MERDÁCEO

Escatológico... Era escatológico O desabafo solto após tal merda. E o coração, exausto já de perda, Rende-se a um arrazoado quase ilógico. Considerara o estado patológico Mais a memória estranha ou mesmo lerda Com que, miseramente, ele sempre herda A escuridão d‘um surto psicológico. Soca o ar vazio; chuta pedras; grita... Acreditando ser enfim maldita A sua estrada já desde a saída. Mas enquanto pragueja, alterado, Percebe na imundície tanto enfado; Tanta desilusão diante da vida... Betim - 14 01 2015

METRÔMANO

Segue a música um tempo em pulsação Como se juntos — vozes e instrumento — Soando firmes em cada vão momento, Viessem de dentro d‘um só coração.

Tudo graças ao pêndulo... Bordão Cujo compasso traz, em si, o intento, Que busca repetir um sentimento Onde o alegre ou o vivaz tem expressão.

A mim, que escuto, fica a maravilha Impregnada tão-só d‘humanidade. No rastro do andamento em sua trilha.

Perpassava ritmada outra verdade, Quando em conjunto, súbito e enfim, brilha A luz do artista em sua só vontade.

Betim - 03 02 2015

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MINHA LINDA

És toda negra luz sobre as pupilas, Que brilham cobiçosas por te olhar. Meus olhos em teus olhos têm lugar, Quando a essência de tua alma destilas.

Contigo as noites passam mais tranquilas... — Não há escuridão sob teu luar! — Teus olhos os meus olhos vêm lumiar, Pelo ardor que em luz pura me cintilas.

Tendo tido a alegria de te ver, Não pode mais qualquer tristeza ainda Tampouco desencanto pode haver.

Visto que me chegaste tão bem-vinda, Que embora quanto possa acontecer És, e sempre serás, a minha linda.

Betim - 21 12 2015

MONTE PARNASO

Já não se sabe como começou, Mas quem lá vive vive a fazer versos... Que após recolhe em códices dispersos Ou lírico os declama qual pensou.

Apolo e as musas com as quais me dou Têm em certames poetas sempre imersos, Concebendo estes ou outros universos Do alto d‘este monte onde estou e sou.

Dá pena ver tão bons e honestos poetas, Que em grande conta têm os versos seus, Se entretendo, entretanto, igual sandeus.

Conquanto na metrópole, repletas, As ruas ensurdecem toda a gente, Sempre de poetas tão indiferente...

Belo Horizonte – 15 10 2005

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MORMAÇO

O calor que aproxima o chuvaréu Traz um sol escaldante à húmida tarde. Exposta, se amorena a pele que arde A ponto de exsudar-me quase incréu. Bom aroma de mangas vindo ao léu Avança em vento sul sem muito alarde. Embora a nuvem negra me acovarde, Atravessando imensa todo o céu. Logo começam troar negrume adentro Uns roncos estupendos qual bombardas, Já em cuja violência eu me concentro. Todavia, por minhas faces pardas O sangue corre quente desde dentro Pleno d‘esse langor das horas tardas. Betim - 06 12 2015

O AUTOCRATA

Quem manda, manda porque obedecido É. Governa, sem dúvida ou engano, Fortalecido pelo intento humano D‘haver ordem em torno do escolhido. Quer por Deus; quer por homens concedido, O poder o reveste, ano após ano, Impondo o seu juízo soberano A conduzir o povo ao prometido. Absoluto: Não-súbdito a controle, Submete tudo e todos ao redor, Senão por mor de amor, pelo temor!... Por fim, deixa a coroa à sua prole, Certo de celebrarem seu legado E como um grande homem ser lembrado. Betim – 24 02 2015

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O BARQUEIRO

Aquele que morreu antes de nós, Sabe onde se atravessa o largo rio: Alvas névoas nas águas onde o frio Enregela até a alma e embarga a voz. Dizem que esquecimento há logo após Se alcançar a outra margem quando o fio Da vida for cortado ao desvario, Que ainda assanha às parcas vãs e sós. São poucos — muito poucos — os que viram E após voltaram para nos contar Da luz esbranquiçada do lugar. Pois, quantos do barqueiro já ouviram Guardam o óbolo para a travessia, A lhe pagar a viagem algum dia.

Contagem - 28 08 2015

O ESCRIBA

Compete ao escriba, além d‘estar no mundo, Documentá-lo em páginas escritas. Pois, glórias e misérias infinitas Já se perdem no olvido mais profundo. Contando em caracteres quão fecundo É de histórias o Deus dos israelitas Ou leis, actos de reis, obras benditas... Ao afã testamental d‘um moribundo. Tudo devidamente registrado Ao interesse curioso do futuro, Bem como à permanência do passado. Mas é quem vive a vida e após a escreve Exacto o que mais claro vê no obscuro, O que lhe deixa o fardo algo mais leve. Betim - 25 10 2015

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O QUADRILÁTERO

Planalto de surreais ondulações Feitas de itabirito, gnaisse e terra. Onde houve ouro... E profundo ainda encerra A grandeza de nossos corações.

Alto mirar os longes e os sertões Enquanto se conquista o cume à serra. Caminho a íngreme trilha em que se aferra O pé ao chão; a vida às emoções...

Por isso, poeira e lágrimas nos olhos Pondo um brilho mais forte nos olhares A ver tanta beleza em sós lugares.

E surpreender estrelas lá aos molhos! Quando, à noite, eu me deito n‘um lajedo, Sonhando sem dormir até bem cedo.

Brumadinho - 25 02 2015

O SUICIDA

A vida desgraçada que tiveste Talvez sequer mereça algumas linhas Pois, quer sejam alheias; quer sejam minhas Mal disfarçam os males d‘uma peste.

A verdade é que quanto aqui viveste Serve de alerta às almas mais sozinhas. E, as misérias que n‘elas adivinhas, Fazem de ti exemplo hoje inconteste.

Porque és o que serão se como tu Viverem suas vidas na esperança De enfrentar os mais vis a peito nu.

Não obstante, revês macabra dança De ti com tua sombra onde o tabu D‘aquele que no abismo enfim se lança.

Betim - 28 10 2015

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ÓPTIMA

Caminho sobre as pedras venerandas E ouço o silvo dos séculos no vento... A lua, em luz de etéreo encantamento, Abre damas-da-noite entre lavandas. Linda, ela me vem com censuras brandas, Mas cheias de gentileza e sentimento. A fim-de que n‘um único momento Incorporasse ao tempo outras varandas. Não foram os silentes plenilúnios, Nem tampouco os não poucos infortúnios, Que nos uniram para além do fado. Sim as inolvidáveis experiências Compartilhadas entre irreverências, Ao nos reconhecermos lado a lado. Bonfim - 20 04 2015

ORQUIDÁRIO

Quem se cultiva dúvidas e anseios Lança sementes sós no coração, Que encontram solo fértil se a emoção O conduz já sem fins ou sequer meios.

Beleza de se ver co‘os olhos cheios, Tocada em imperiosa sensação A ponto de lhe dar falsa impressão De ter-se um porto com barcos alheios...

Meteu-se com azares e perfídias, Embora houvesse ornado com orquídeas Seus amores ao longo d‘essa vida.

E as vê por seu jardim imaginário, Dando aos dias aspecto belo e vário Face à cada ilusão enternecida.

Betim - 01 01 2015

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PERFEIÇÃO

Nem que todas as tantas maravilhas Que existem n‘esta muito breve vida Trouxessem-me alegria desmedida Mãos dadas a ilusões tão maltrapilhas...

Ou ainda, se buscando as armadilhas Da memória nas sombras escondida, Entrasse n‘uma barca de partida Para as Afortunadas e outras ilhas....

Talvez lograsse ter a perfeição Que vivi ao tocares minha mão E quando te toquei a mão de volta.

Porém, tão inocente cumprimento Não basta a me dar entendimento D‘aura em que te percebo sempre envolta.

Betim - 22 12 2015

PODER SEM PUDOR

A despeito dos nomes tão pomposos E das palavras sempre tão sensatas, Nada mascara mais, nem as bravatas Ditas como ao pleno êxtase dos gozos.

De facto, estes são tempos perigosos... Com prodigalidade de magnatas, Sabem se revestir d‘ouros e pratas, Ainda que a verdade os torne odiosos.

Renúncia e impedimento lado a lado Têm sido especulados sem que ainda Se vislumbre o futuro do passado.

E é com máxima audácia que um nos brinda: —‖À angústia do estertor desarvorado Que, inopinadamente, à vida finda!...‖

Betim - 13 10 2015

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POMERANOS

Recordo uma fazenda avarandada E extensos cafezais ainda em flor, Onde oito filhos vi, desde o menor, Postados nos degraus d‘alguma escada. Tinham cabeça loura e arredondada Um por um mais o pai, cujo primor Era ir adivinhar do alpendre o humor De quem lhes vinha longe pela estrada. As mulheres, porém, de lindas tranças Emoldurando suas faces brancas, Enquanto me sorriam sempre francas. Imagem na parede das lembranças, Assim essa família e essa fazenda Trago de coração sem que eu entenda. Betim - 09 09 2015

POR DESDITA

O que quero dizer é que não disse Isto que, sem querer ou não, eu digo. Pois, querendo-me amado, fiz-me amigo E, embora não dissesse, não desdisse. Se caio enmimesmado na mesmice De não querer dizer o que desdigo, Me nego e me renego não sem perigo De te dizer exacto outra tolice. O que disse é que não quis te dizer O que queria, pois, por te querer Não disse, tolamente, o que queria. Periga eu te negar já sem saber O que se diga sem sabedoria A quem eu nunca nada negaria. Betim - 06 02 2015

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PORQUÊS

Por que eu não posso ser apenas eu? Por que tenho-de ser mais um igual?... Sou quem se quer além de bem e mal Não cristão, muçulmano e nem ateu! Por que eu não posso ter só o que é meu? Por que devo fazer algo normal?! Se entre ser e ter sei-me eu, afinal, Outro que a luz das letras conheceu. Por que não escrever a vida? Por quê?!? Não há melhor motivo p‘ra escrever Que na escrita um motivo p‘ra viver. Da vida que escrevi, sei o porquê; Do escrito que vivi, tenho o motivo: Vivo o que escrevo e escrevo porque vivo. Betim - 20 10 2015

QUESTIÚNCULAS

Eu me pergunto sem saber por quê. Mas me respondo mesmo que ninguém Concorde co‘as verdades mais além Dos limites que o sábio, entanto, crê. Muito do que se sabe não se lê Em livro algum escrito por alguém! Até porque, é mais fácil outro amém Que interpretar exacto o que o olho vê. São pequenas questões e grandes erros D‘uma sabedoria qu‘eu aos berros Proclamava a despeito de louvores. O que me interessa é especular... E quanto de verdade eu encontrar Faça-me um escritor entre escritores.

Betim - 16 11 2015

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QUINTESSÊNCIA

Os olhos, duas  amêndoas, paro olhando... Eu te vejo através, tão transparente, Que de toda a memória se ressente  Quem traz em seu olhar um ardor brando. Embora eu me exaspere vez em quando Por quanto a realidade nos desmente, Tudo o que ideei de ti é tão-somente Verdade para mim porque te amando. Tal-e-qual da matéria diluída, Destilo a vaporosa essência tua E após a sinto densa em minha vida. Mas te tocarei a alma quando, nua, Me esperares a alguma hora insabida N‘uma alcova banhada d‘alva lua. Betim - 16 09 2015

RASOS D’ÁGUA

Há aquelas que não se têm glamores, Sem cuidar mais de modas ou de modos. Dizem ter conhecido os homens todos E saberem de seus receios e suores. São mulheres de força entre as melhores, Tão insensíveis a ouros quanto a lodos Por já experienciado maus engodos E terem visto os mais duros furores. Têm a pele morena, olhos escuros, Mas mirada severa e até ingrácil A mascarar-lhe a vida nada fácil. E sorriem... Apesar dos anos duros E das incompreensões e toda a mágoa. Deixando-me seus olhos rasos d‘água. Betim - 12 11 2015

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RUÍNAS

Não há ninguém feliz ao meu redor. Talvez por isso eu deva já partir. Deixá-la para enfim se descobrir: Não mais a proteger com meu amor. Mas, o que é isso? Faça-me um favor! Se nada mais fará ninguém sorrir, Por que eu tenha de ainda a divertir? Não sou Deus p‘ra fazer feliz quem for... Sou apenas um homem... Um humano! Não salvo mais pessoa do abandono Quer seja todo mundo; quer ninguém... Apenas sigo a estrada pela sombra, Certo de que a ruína que se escombra Vai logo desabar em mim também. Betim - 25 11 2015

SALAMALEQUE

Estás em mente, lábios, coração... Como o sol da manhã ao vir me acalma, Atravessa as janelas de minh‘alma E me abre as portas sãs da percepção. Tu, que saúdo bem-vinda, és ou não Aquela cuja luz merece a palma? Sê como o amanhecer: Em áurea agalma Me amalgamas o belo à admiração! Se de facto encontrei graça aos teus olhos, Acerca-te de mim e  propicia A riqueza de tua companhia... Certa como franqueaste os vis ferrolhos Da torre remotíssima que habito, Vieste trazer luz! Luz desde o infinito!... Betim - 08 06 2015

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SAUDADE, LUAR, TESÃO...

O que leva às pessoas a insistir N‘essa aventura inglória que é a vida? Deve haver outra luz ora insabida Que explique ‘inda a esperança no porvir. Tudo o que sei é quanto ouso exprimir Com minha língua rude e estremecida, Onde a poesia impõe-me em sua lida Palavras das quais não ouso prescindir. Deste modo ‖saudade‖, ―luar‖, ―tesão‖... Que alhures dizem ser sem tradução Àquele que de longe ou mal me lê. Aliás, escrevo um tanto indiferente Ao que há-de me entender futura gente Quando perde o conceito e seu porquê. Belo Horizonte - 21 11 2015

SENSACIONAL

Se conheci alguém muito especial E não soube dizer a ela o quanto, Penso que me assevero d‘esse encanto Tão-somente se houver encanto igual. De minha parte, sei sensacional A pessoa que mostra sem espanto A face em face quer de riso ou pranto E crê na vida além do bem e mal. É, sim, sensacional! Pois sensações Não mentem quando puras explosões De si para o outro como bem apraz. Porque o que sinto e faço o outro sentir Transforma ainda a essência do existir, Como se mor sentido d‘alma audaz. Betim – 14 12 2005

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SERVENTIA

Acho que esse amor não serve para mim... Não me sei carcereiro em forma alguma! Tudo o que prende sempre me costuma Em terminar bem mal quando no fim.

Para que serve o amor a nós, enfim? Senão deitar na cama que se arruma... Deixando as marcas vãs do que consuma A necessidade óbvia a que te vim.

Sim! Eu, honestamente, vim por isto. Certo de que, pensando bem, existo. Porém, parto tão-logo me sacio.

E se, apesar de tudo, me quiseres, Te amarei como amei outras mulheres Para depois partir no amplo vazio.

Betim - 03 12 2015

SONILÓQUIO

Costumava a falar durante o sono Os mais inconfessáveis dos segredos... Esse era justamente um de seus medos, Como da própria voz não fosse dono. Quando no profundíssimo abandono, Balbucia uns insólitos enredos. Sobretudo, prazeres... Dias ledos Que ele se rememora em triste outono. Os amores ao longo d‘uma vida Vêm visitá-lo ao leito seu à medida Que o corpo, inexorável, envelhece. Mas, em sonhos, revive cada lance De ventura que ainda algum romance À flor de sua pele permanece. Betim - 08 08 2015

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SUBTERFÚGIOS

Necessito d‘haver outro artifício Capaz de te envolver sem te tocar. Algo que na ilusão tenha lugar, Mas semelhante a algum ócio ou vício.

Verdade construída, um edifício Alicerçado sobre a ideia de amar. De cujos pavimentos possa olhar Toda a perspectiva desde o início.

Queria que quisesses o que quero. Por isso, tenho feito com esmero Frases tão amorosas quanto ambíguas.

É que o amor contradiz até o certo: Melhor que me acompanhes mais de perto, A veres nossas horas sempre exíguas...

Betim - 23 05 2015

TEATRO DO MUNDO

Caminham pelo palco as personagens, Cujas histórias têm qualquer lugar. São tipos instigantes, bons de olhar, Por conta das insólitas visagens. De vez em quando mudam as paisagens Que dão fundo a quem for encenar Um fingimento certo de se errar, Visto que verdadeiras malandragens. São tão bem colocados seus diálogos, Que aqueles que ora os veem se veem análogos, Se alegrias e angústias na berlinda... Tudo do sentimento nos é oriundo. De vera, assim no teatro; assim no mundo, Nos pede a vida aplausos quando finda. Contagem - 06 06 2015

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TESAURO

Entre tantas palavras, que se escolha A que possa expressar de modo exacto O sentido que encontro a além do facto, Para após registrar n‘alguma folha. Dest‘arte, do vernáculo eu recolha Aqui e ali um verso por contacto Com escritas ou falas cujo impacto Oculto em entrelinhas se me olha. Isto é escrever. Nada se proponha Sem que antes se alicerce todo o estilo Seja ao que se vê; seja ao que se sonha. Mais que um verbete, faça-me intranquilo Cada palavra quando em verso as ponha, Certo de que d‘esse afã me rejubilo. Betim - 14 09 2015

TRANSTORNADO

Eu te amo, muito embora não devesse Amar alguém que há tanto já não me ama. Dia após dia, víamos qual chama O amor se apagar sem que eu o soubesse. Viver sem ti, nem vida me parece. É só contar as horas para a cama... Aonde o sono não vem, pois, o drama Se me repete à boca em triste prece. Tenho te amado andando por tormentas Que, pesadas e grossas sobre a pele, Caem enquanto a amargura vã me impele. Enfim, a dor e a fúria, ultraviolentas, No sonho de te amar — essa ilusão! — Tornam-se tudo que há no coração. Betim - 12 03 2015

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ULTRAMARINO OLHAR

Serão meus olhos ou és assim: Radiante? Eu não entendo... D‘onde vem tal brilho?... Somente um mito explica se, andarilho, T‘encontro contra a luz por um instante!... Sim, terrível e belo é estar diante D‘esse fogo furtado d‘algum filho De deuses ou de herói seguindo o trilho D‘uma estrela cadente e fulgurante. Só sei que teu olhar tem adentrado Por minha mais profunda escuridão, Iluminando a noite de meu fado. Porque tudo o que sinto é gratidão Ao descobrir-te o azul mais extremado... Serão teus olhos ou é meu coração? Betim - 07 08 2015

ULTRARRELIGIOSO

―Havemos-de colher‖, argumenta o hino Que ouço a plenos pulmões d‘uma capela, Ao passar pensativo e só por ela, Às sombras d‘um ocaso vespertino. Tenho ouvido cantar desde menino Promessas e esperanças como aquela, Atento a tudo quanto nos revela, N‘esse mundo dos homens, o divino. O que me causa espécie, todavia, É ver que todos nós, dia mais dia, Veremos o que quer que haja a se ver. Como, portanto, posso algo colher? Sim, o que resta é tão-só amar os seus, Quem viver e morrer pensando em Deus... Betim - 19 01 2015

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URBANAUTA

Vou à cidade. Vou aonde todos Se cruzam seus caminhos d‘existir. Passando um outro dia entre ir-e-vir, Apesar dos pesares, dos engodos... Oxalá veja, d‘este e d‘outros modos, O quanto o quotidiano há-de reunir, Em torno de esperanças de porvir, Os capazes de indômitos denodos. Mas, por via de regra, esteja atento Para todo e qualquer discernimento Que eu logre obter ao longo do meu dia. Até que, sem querer ou por querer, Encontre n‘uma esquina vã qualquer A verdade e a beleza que intuía. Belo Horizonte - 01 05 2015

VEROSSIMILHANÇA

Por enquanto transito inopinado Entre extremos de sonho e realidade. Nada do que percebo é de verdade, Mas tampouco é de todo imaginado. Rir das mentiras que eu tenho contado — Ou senão d‘essa falsa insanidade... — Pretendem permitir-me a liberdade De contar as desgraças do meu fado. De facto, o que escrevo é como o que vivo, Pois ambos se confundem no que sou, Figurando um semblante pensativo. É vida que se espelha aonde vou, No enredo que prescinde de motivo Ou na estrela que nunca me brilhou. Betim - 18 06 2015

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WATERLOO

Enquanto os batalhões da artilharia Manobram seus canhões contra trincheiras O inimigo recua mais fileiras Certo que um outro flanco se abriria.

Em vão contra os quadrados irrompia Uma tropa após outra nas fronteiras. Desguarnecidas armas e bandeiras, Pouco pôde a veloz cavalaria.

Uma a uma as posições foram perdidas Quando, n‘algumas horas, dez mil vidas Tombam ante um silente marechal.

Inescrutável sua voz de comando: Do exército fizera só um bando E da extensa planície, um funeral...

Betim - 08 08 2015