parto natural, normal e humanizado  termos polissemicos (1)

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215 PARTO NATURAL, NORMAL E HUMANIZADO: termos polissêmicos a Ivete Lourdes DUTRA b Dagmar Estermann MEYER c RESUMO Trata-se de uma pesquisa qualitativa que discute a polissemia dos termos parto natural, normal e huma- nizado. Analisa na perspectiva da teorização cultural contemporânea e dos estudos de gênero, o Programa de Humanização do Parto e do Nascimento e os conteúdos de entrevistas realizadas com profissionais da medici- na e da enfermagem que atuam em um hospital no interior do Rio Grande do Sul. O artigo destaca e explora con- vergências, ambigüidades, sobreposições e conflitos entre as três tipologias de parto, indicando polissemias e borramentos de fronteiras entre os termos e no interior de cada um deles que incidem sobre a assistência pres- tada. Descritores: Parto normal. Parto humanizado. Cultura. Identidade de gênero. Política de saúde. RESUMEN Se trata de una investigación cualitativa que discute la polisemia de los términos parto natural, normal y humanizado. Analiza la perspectiva de la teorización cultural contemporánea y de los Estudios de Género, el Programa de Humanización del Parto y del nacimiento y de los contenidos de entrevistas semiestructuradas realizadas con profesionales de medicina y de enfermería que se desempeñan en un hospital escuela en el in- terior de Rio Grande do Sul, Brasil. El presente artículo destaca y aprovecha las convergencias, ambigüeda- des, superposiciones y conflictos entre las tres tipologías de parto, indicando polisemias y la supresión de fron- teras entre los términos y en el interior de cada uno de ellos que inciden sobre la asistencia que se presta. Descriptores: Parto normal. Parto humanizado. Cultura. Identidad de género. Política de salud. Titulo: Parto natural, normal y humanizado: términos polisémicos. ABSTRACT This qualitative investigation discusses homonymy of the terms natural, normal, and friendly childbirth and their effects on childbirth care. Under the perspective of the contemporary cultural theories and gender studies, the Program for Humanizing labor and delivery are analyzed, based on the contents of semi-structured interviews with physicians and nurses of a training hospital in the state of Rio Grande do Sul, Brazil. This article highlights and explores convergences, ambiguities, overlaps, and conflicts among these three delivery types, indicating poly- semies, and blurring of boundaries among terms and inside each term, which influence care. Description: Natural childbirth. Humanizing delivery. Culture. Gender identity. Health policy. Title: Natural, normal, and friendly childbirth: homonymous terms. a Este artigo é parte da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2005. b Mestre em Enfermagem. Docente do Curso de Graduação em Enfermagem na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Coordenadora do Curso de Especialização em Enfermagem Obstétrica da UCS. c Doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. Pesquisadora com bolsa de produtividade em Pesquisa CNPq e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (GEERGE) na mesma instituição. Orientadora da dissertação. Dutra IL, Meyer DE. Natural, normal, and friendly childbirth: homo- nymous terms [abstract]. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28 (2):215. Dutra IL, Meyer DE. Parto natural, normal y humanizado: términos polisémicos [resumen]. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28(2): 215. ARTIGO ORIGINAL Dutra IL, Meyer DE. Parto natural, normal e humanizado: termos polissêmicos. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28(2):215-22.

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PARTO NATURAL, NORMAL E HUMANIZADO:termos polissêmicosa

Ivete Lourdes DUTRAb

Dagmar Estermann MEYERc

RESUMO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que discute a polissemia dos termos parto natural, normal e huma-nizado. Analisa na perspectiva da teorização cultural contemporânea e dos estudos de gênero, o Programa deHumanização do Parto e do Nascimento e os conteúdos de entrevistas realizadas com profissionais da medici-na e da enfermagem que atuam em um hospital no interior do Rio Grande do Sul. O artigo destaca e explora con-vergências, ambigüidades, sobreposições e conflitos entre as três tipologias de parto, indicando polissemias eborramentos de fronteiras entre os termos e no interior de cada um deles que incidem sobre a assistência pres-tada.

Descritores: Parto normal. Parto humanizado. Cultura. Identidade de gênero. Política de saúde.

RESUMEN

Se trata de una investigación cualitativa que discute la polisemia de los términos parto natural, normaly humanizado. Analiza la perspectiva de la teorización cultural contemporánea y de los Estudios de Género, elPrograma de Humanización del Parto y del nacimiento y de los contenidos de entrevistas semiestructuradasrealizadas con profesionales de medicina y de enfermería que se desempeñan en un hospital escuela en el in-terior de Rio Grande do Sul, Brasil. El presente artículo destaca y aprovecha las convergencias, ambigüeda-des, superposiciones y conflictos entre las tres tipologías de parto, indicando polisemias y la supresión de fron-teras entre los términos y en el interior de cada uno de ellos que inciden sobre la asistencia que se presta.

Descriptores: Parto normal. Parto humanizado. Cultura. Identidad de género. Política de salud.Titulo: Parto natural, normal y humanizado: términos polisémicos.

ABSTRACT

This qualitative investigation discusses homonymy of the terms natural, normal, and friendly childbirthand their effects on childbirth care. Under the perspective of the contemporary cultural theories and gender studies,the Program for Humanizing labor and delivery are analyzed, based on the contents of semi-structured interviewswith physicians and nurses of a training hospital in the state of Rio Grande do Sul, Brazil. This article highlightsand explores convergences, ambiguities, overlaps, and conflicts among these three delivery types, indicating poly-semies, and blurring of boundaries among terms and inside each term, which influence care.

Description: Natural childbirth. Humanizing delivery. Culture. Gender identity. Health policy.Title: Natural, normal, and friendly childbirth: homonymous terms.

a Este artigo é parte da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em Enfermagem da Escola de Enfermagem daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2005.

b Mestre em Enfermagem. Docente do Curso de Graduação em Enfermagem na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Coordenadora do Cursode Especialização em Enfermagem Obstétrica da UCS.

c Doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. Pesquisadora com bolsa de produtividade em Pesquisa CNPq eintegrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (GEERGE) na mesma instituição. Orientadora da dissertação.

Dutra IL, Meyer DE. Natural, normal, and friendly childbirth: homo-nymous terms [abstract]. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28(2):215.

Dutra IL, Meyer DE. Parto natural, normal y humanizado: términospolisémicos [resumen]. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28(2):215.

ARTIGOORIGINAL

Dutra IL, Meyer DE. Parto natural, normal e humanizado: termospolissêmicos. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28(2):215-22.

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1 INTRODUÇÃO

O presente artigo desdobra-se de uma dis-sertação de Mestrado(1) em que se discutiu a polis-semia dos termos parto natural, normal e huma-nizado e seus efeitos sobre a atenção ao parto, naperspectiva da teorização cultural contemporâneae dos Estudos de Gênero, tomando como referên-cia o Programa de Humanização do Parto e do Nas-cimento(2), preconizado pelo Ministério da Saúde,e falas de profissionais de saúde. O interesse em dis-cutir essa temática tem relação com o fato de quequestões relacionadas aos eventos de gestação eparturição vêm sendo debatidas amplamente na so-ciedade brasileira por organizações governamen-tais, não governamentais, profissionais de saúde eusuários(as), entre outros segmentos sociais, inclu-sive na mídia. Dentre as tantas interfaces dessesdebates, as significações atribuídas aos termos: par-to natural, normal e humanizado ainda são poucodiscutidas e o fato de que a literatura médica estri-to senso dedica pouco espaço para essa discus-são, torna relevante a reflexão e compreensão detais concepções, pois são elas que embasam osmodelos de atenção.

Em nossa perspectiva, a atenção dispensadaàs mulheres no processo gestacional, trabalho departo e puerpério reflete as formas de pensar e deagir delineadas nos diferentes modelos de forma-ção e legitimados nas diferentes culturas, visto quecada sociedade e, dentro dela, cada grupo cultural,constrói e modifica suas próprias formas de vivere organizar a vida, levando em conta seus sabe-res, suas crenças, seus legados confessos e não-confessos. Com essa abordagem indica-se, pois,que a incursão por alguns dos significados comu-mente atribuídos a esses termos não remetia, aoobjetivo de chegar a um único sentido ou, ainda, aosentido verdadeiro e mais correto de cada um de-les. Pelo contrário, pretendia-se chamar a aten-ção para a multiplicidade de sentidos que cada umdeles carrega com o intuito de encaminhar parauma reflexão acerca dos efeitos dessa multiplica-ção. Em um contexto em que a inclusão ou não doaparato técnico-científico, por exemplo, é um dosaspectos que pode qualificar um tipo de parto comonormal e outro como natural, caracterizando polí-ticas que hoje investem na chamada humanizaçãodos processos de parturição. A noção de culturaque assumimos nesse trabalho remete “[...] ao

conjunto de saberes e práticas implicado com aprodução de determinados tipos de sujeitos, umcampo de luta em que ‘novas’ práticas são inventa-das e ‘velhas’ práticas são revitalizadas [...]”(3:377).Assumir essa abordagem conceitual possibilita ar-gumentar que os processos de significação do par-to e do nascimento se articulam, de maneira con-flituosa e em rede, como um conjunto de saberes epráticas que emergem: (a) de estudos científicos naárea da saúde; (b) de saberes, crenças e tradiçõesque instituem ou assumem uma dada natureza fe-minina; (c) de interesses políticos de organismosinternacionais e governamentais, como a Organi-zação Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério daSaúde; (d) de movimentos sociais, como o feminis-mo e os movimentos da desmedicalização do par-to e do nascimento; (e) de interesses econômicos degrupos e instituições diversas (os hospitais, os gru-pos corporativos de profissionais, a indústria far-macêutica), dentre outros.

Essa rede de significação, atravessada edimensionada por relações de poder de alcancedistinto, está implicada na produção de um deter-minado consenso sobre formas de sentir e de viveros processos reprodutivos. E é nessa conexão coma discussão de uma das dimensões da reproduçãohumana que se tornou produtivo trabalhar, tam-bém, com o conceito de gênero uma vez que eleimplica em assumir que as diferenças percebidasentre homens e mulheres são culturalmente cons-truídas e não biologicamente determinadas. Essaarticulação conceitual permitiu pensar que deter-minados significados de parto são pensados e ver-balizados por determinados sujeitos, num determi-nado contexto, e que esse processo de significação,sempre aberto e inacabado, explica as convergên-cias e, sobretudo, as divergências, as sobreposiçõese as ambigüidades que foram se evidenciando nocontexto investigado.

2 METODOLOGIA

A investigação realizada é de natureza quali-tativa, do tipo estudo de caso(4). Os procedimentosde investigação envolveram a análise de conteúdode documentos(2) e entrevistas semi-estruturadasrealizadas com o conjunto de médicos(as) e enfer-meiras que atuavam no Centro Obstétrico de umHospital Universitário de grande porte, localizadono interior do Rio Grande do Sul. Este se vincula a

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uma universidade privada e está voltado para aassistência, o ensino e a pesquisa, atendendo so-mente usuárias(os) do Sistema Único de Saúde(SUS). A pesquisa foi avaliada e aprovada peloComitê de Pesquisa da referida Universidade. Fo-ram considerados informantes todas as enfermei-ras e os(as) médicos(as) do setor, totalizando 14médicos(as) e cinco enfermeiras. A escolha desses(as) profissionais foi feita considerando-se as res-pectivas habilidades e competências que o nível su-perior lhes confere para a atenção às mulheres noprocesso de parturição.

A análise de conteúdo foi sistematizada emunidades de significação(4) discutidas ao longo detrês seções. Neste artigo apresentamos a primeiraseção, na qual se discutiram os significados atribu-ídos aos diferentes tipos de parto.

3 DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS SIGNIFICA-DOS ATRIBUÍDOS AOS TIPOS DE PARTO

Sentidos múltiplos e conflituosos, vinculadosaos termos em foco, emergiram de nossas análisese é isto que abordamos nas seções a seguir.

3.1 Parto natural

A expressão parto natural foi utilizadapelos(as) profissionais de cinco modos predomi-nantes.

3.1.1 Parto natural como sinônimo de parto semintervenção técnica e medicamentosa

Foi possível perceber um consenso entremédicos(as) e enfermeiras de que o parto natural,em síntese, significa respeitar a natureza fisiológi-ca da mulher. Essa compreensão desdobra-se emdois movimentos distintos no contexto prático:para alguns(algumas), ela implica uma significa-tiva redução na utilização de intervenções técni-cas e medicamentosas; para outros(as), ela supõeausência dessas intervenções, como se pode vernos excertos de fala registrados a seguir:

O natural é aquele onde eu tenho a menorintervenção possível (Participante 10).

Parto natural é aquele em que não se lançamão de nenhum tipo de medicação (Parti-cipante 4).

Essas concepções, além de convergirem comalgumas das definições encontradas nos documen-tos norteadores da prática, condizem com recomen-dações feitas ao parto normal em documento publi-cado em 1986(5). Segundo esse documento, as con-dutas que são claramente úteis e que deveriam serrecomendadas para o parto normal incluem: “nãoutilizar método invasivo nem métodos farmacoló-gicos para alívio da dor durante o trabalho de par-to, e sim métodos como massagens e técnicas derelaxamento”(5:2). Entretanto, o que se observa já nes-se documento é uma sobreposição dos significa-dos de normal e natural, ambos significando não-intervenção e essa compreensão se legitima, tam-bém, em estudos de importantes autores(as) quediscutem o parto e o nascimento definindo-os comoprocessos inerentes à existência e à vida humanano qual, apenas em alguns casos, há necessidadede intervir(6).

3.1.2 Parto natural como sinônimo de parto normal

A discussão acima realizada delineia, pois,algumas sobreposições e distanciamentos entre ostermos: parto natural e parto normal, que podem servisualizadas nas falas como:

Normal é o que for mais natural por viavaginal. O que for com menos interven-ção possível e o mais natural possível po-de ser considerado normal (Participan-te 1).

O parto natural é um parto normal, enten-de? (Participante 14).

Expressa-se, aqui, o entendimento de que oparto normal não comporta intervenções, e é nes-se sentido que ele se torna sinônimo de natural. Noentanto, os termos “parto natural” e “parto normal”não devem ser tomados como sinônimos, uma vezque o primeiro seria realizado em casa e pratica-mente não comportaria intervenções de quem oassiste, enquanto que, no parto vaginal normal, os(as) profissionais encontram satisfação median-te a utilização de intervenções técnicas, indicati-vas de sua arte obstétrica(7). Enfatiza-se, nessesestudos, que cada tipo de parto está fortementeinfluenciado por um modelo de atenção e atraves-sado por alguns interesses, já discutidos anterior-mente.

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3.1.3 Parto natural como sinônimo de parto hu-manizado

O que se apresenta nesta unidade é a con-vergência ou sobreposição entre os termos natu-ral e humanizado, num contexto em que humani-zação é entendida como não intervenção o que épossível conferir a seguir e será explorado em se-ção posterior:

Natural diferencia, aí, para mim... Commenos intervenções e mais próximo doparto humanizado. Daí seria o parto assis-tido pela enfermeira e pelo médico. Commenos intervenção possível, com mais res-peito à privacidade da paciente, com maisrespeito humano, com mais respeito àsnecessidades individuais de cada pacien-te (Participante 3).

3.1.4 Parto natural como um evento que faz parte danatureza da mulher

O sentido de parto natural na fala abaixocitada remete a uma dada “natureza” feminina, en-tendida e orientada pela biologia anatômica e fisio-lógica, independentemente da cultura onde a mu-lher está inserida. E, nesse sentido, incorpora umadicotomização entre o que se entende por cultura enatureza sem dar-se conta de que “nós construímosdeterminadas coisas como natureza e outras comocultura”(8:377) e não nos damos conta de que somos– ao mesmo tempo e de forma indissociável – natu-reza e cultura.

O natural... é natural porque é via baixa.A criança vai nascer assim, sem interven-ção maior do médico. É por isso que ele sechama natural. Não tem como a gente di-vidir isso (Participante 13).

O parto é um evento fisiológico de termi-nação de uma gravidez, quer dizer isso aí.E a mulher, ela é preparada, a natureza afez preparada para isso, e tudo leva quetenha isso... (Participante 14).

Esse discurso assume uma dada essênciabiológica feminina que se caracteriza pela capaci-dade natural de gerar e parir. Tal entendimento fazparte da construção discursiva da medicina desdeo século XVII no empenho em estabelecer e jus-

tificar as diferenças entre o masculino e o femini-no tomando como referência o corpo biológico. Acondição biológica que dá sustentação às distin-ções masculino e feminino encaminhava as mulhe-res para o exercício da maternidade, vista como ca-pacidade biológica natural desvinculada das cons-truções culturais prevalecendo, dessa forma, osaspectos que reduzem o gênero ao sexo. Esse pres-suposto, atualizado na fala da profissional, reafir-ma a dificuldade de entender que aquilo que sedefine como sendo as “diferenças que importam”,quando se trata de definir o feminino e o masculi-no, é culturalmente produzido e que esse processoposiciona a mulher em determinados espaços elugares devido a sua anatomia e fisiologia.

3.1.5 Parto natural como sinônimo de parto domi-ciliar

A concepção de parto natural como sinôni-mo de parto domiciliar não se caracterizaria comoambigüidade, se considerarmos que os partos rea-lizados no domicílio não se utilizam das tecnologiase medicações que temos disponíveis nos centrosobstétricos; entretanto isso não significa, necessa-riamente, a ausência de uso de outras tecnologias,nesse espaço. O participante a seguir entende par-to natural como sinônimo de parto domiciliar, e decerta forma, sem intervenção técnica e medica-mentosa.

Parto natural, bom eu vivi uma experiên-cia... e recebemos uma ligação de umapessoa que uma mulher estava em traba-lho de parto. Propus-me a ir até a residên-cia. Cheguei, com toda aquela ansieda-de profissional e ela já tava no períodoexpulsivo. Senti-me até mal por chegarassim... Tava todo aquele cenário tranqüi-lo sabe... e a coisa acontecia... a criançanasceu bem. Daí que eu vi o quanto a gen-te é intervencionista. Foi uma experiên-cia maravilhosa (Participante1).

Por outro lado, assegura que “[...] como qual-quer ação, o parto é também uma construção social.É preciso, portanto, aprender a parir”(9:489) sinalizaque nem mesmo o parto natural é tão natural assimuma vez que, independentemente do local onde eleé realizado, há aspectos nele e dele aprendidos nacultura, com o objetivo de facilitar o processo de

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parturição. Há, portanto, uma certa ambigüidadeno enunciado do profissional ao assegurar que nãose faz intervenção.

3.2 Parto normal

Ao mesmo tempo em que o termo parto nor-mal foi abordado como sinônimo de parto naturaltanto por alguns profissionais, quanto por estudio-sos e em alguns dos documentos analisados, ele foiutilizado, também, pela maioria dos(as) profissio-nais, com dois significados prevalentes e interde-pendentes: o entendimento de parto normal comosinônimo de um parto com intervenções medica-mentosas e técnicas associadas a regulamento ins-titucional e, ao mesmo tempo, como sinônimo deato médico.

A discussão se amplia com o argumento atualdo que tem sido chamado de parto normal noscentros de atenção, o chamado parto dirigido, aque-le que rotineiramente é conduzido pelo técnico,com a mulher imobilizada ou semi-imobilizada,privada de alimentos e líquidos via oral, com admi-nistração injetável de ocitocina para o encurtamen-to do trabalho de parto, em posição litotômica noperíodo expulsivo, seguindo normalmente a rotinade episiotomia e episiorrafia e com eventual usode fórceps(10). Nesse sentido, normal diz respeitoà norma, regulando e prescrevendo os modos co-mo elas (as mulheres) devem ou não se portar noscentros obstétricos. Essa noção normativa pro-duz um pressuposto de que os(as) profissionaisdevam executar o parto a partir do que as normasditam. Possivelmente, tais discursos produzemsujeitos fixados em posições essencializadas nointerior de processos de trabalhos, já incorpora-dos como naturais, bastante distante da perspec-tiva que enfatiza a dimensão da construção his-tórico-cultural. Partindo desse pressuposto, des-consideram-se as marcas pessoais e culturais queinscrevem as mulheres em determinado tempo elugar:

No parto normal, a paciente chega e seinterna. São feitos os procedimentos nor-mais: a tricotomia quando necessário, oenema. O enema é feito praticamente emtodas as pacientes. Em relação ao atendi-mento técnico, a episiotomia é pratica-mente feita de rotina (Participante 7).

As intervenções tomadas aqui pelo profis-sional como normais, realizadas no cotidiano detrabalho, estão naturalizadas a partir de uma con-cepção medicalizada e intervencionista. Condu-tas prejudiciais ou ineficazes devem ser elimina-das, pois se distanciam da concepção de partonormal(6). Ao explicitar como é operacionalizada aatenção ao parto normal, o profissional indica umaprática que contempla a atenção centrada na téc-nica, e não nas mulheres, como pode ser conferi-do também na fala a seguir:

Talvez fique, para mim, mais forte aqueleparto tradicional, normal, hospitalar, va-ginal. Posição litotômica, feito pelo médi-co, na maioria das vezes... Com bastanteintervenção e uso de medicações (Partici-pante 3).

Delineia-se, nessa fala, a hegemonia médi-ca na assistência ao parto e nascimento, que seinstituiu a partir dos avanços científicos e do do-mínio das tecnologias leve-duras e duras, as quais,possivelmente, propiciaram a construção da con-cepção atual de parto normal, distante do que édefendido na literatura(6). Essa hegemonia se ex-pressa, também, na fala a seguir:

Temos aqui uma equipe, com um profis-sional médico contratado que é a autori-dade máxima em parto e cesárea e detémo conhecimento [...]. Tem um ditado quediz: Deus no céu e o médico na terra. Re-sumidamente, é isso [...] (Participante 16).

Alguns (algumas) profissionais, ao se coloca-rem como autoridades máximas, remetem à cons-trução cultural e histórica dessa área de conheci-mento e apontam para as implicações dos saberese das disputas entre as duas profissões, medicinae enfermagem. Imbricadas nesse processo, estãoàs relações de gênero e de saber/poder da obstetrí-cia, particularmente na forma como essas se mani-festam nas práticas de atenção ao parto compreen-dido e defendido pela categoria médica como atomédico. Das concepções de poder apontadas pe-los (as) profissionais advêm uma visão unilateral,em que as enfermeiras, em sua relação com os mé-dicos, se apresentam como se fossem profissio-nais desprovidas de poder. Contrapondo-se a estavisão, discutem-se atualmente as relações de po-

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der como práticas constitutivas do trabalho da ca-tegoria de enfermeiros(as) e questiona-se forte-mente a idéia de que tais profissionais são mes-mo desprovidas de poder. Nesse sentido, é possí-vel pensar que as disputas estabelecidas entreas duas categorias (médicos(as) e enfermeiros-(as) contribuem para acentuar as já desiguais re-lações entre profissionais e usuárias, sendo queessas últimas, raramente, manifestam conheci-mento de seus direitos.

Olha, parto normal... entende-se como oparto vaginal, a posição habitual de o nenênascer. Uma mesa ginecológica, porque éuma posição que dá tranqüilidade e dá se-gurança para o obstetra (Participante 16).

Essa fala define o parto normal como àque-le que “dá tranqüilidade ao médico”, posicionando-o como agente da ação. Nesse sentido, a obstetríciaproduziu determinados modos de parir que, de cer-ta forma, dão mesmo mais segurança para o(a)técnico(a). Foi assim que aprendeu o exercício daprofissão e sua segurança está no domínio da téc-nica.

É possível pensar, ainda, que nesse modelo asmulheres acabam convivendo com graus eleva-dos de conformidade em termos de posicionamen-tos políticos e transferem ao(a) técnico(a) a respon-sabilidade pela escolha do tipo de intervenção e pe-lo sucesso do parto. Isso acontece a partir da con-cepção de que o parto normal, tomado como sinô-nimo de um ato médico sugere a valorização domodelo que contempla o poder/saber e o quererdo(a) profissional, como o que segue:

Eu acho que tem uma coisa de condutaindividual, apesar de que estar trabalhan-do num serviço de referência SUS, que éorganizado através de uma rotina... Tu ésmuito autônomo aqui; então, tu acabasdefinindo condutas. Se o plantão é teu, tuvais definir condutas (Participante 9).

A partir desses enunciados, reafirma-se, nes-se modelo, o poder ainda muito centralizado nafigura do(a) médico(a) e a não-inclusão de outrosprofissionais no desenvolvimento de um trabalhode equipe. Destacamos aqui os distanciamentosentre os discursos oficiais, as contribuições advin-das dos referenciais utilizados nesta investigação

e as práticas que se manifestaram no campo in-vestigado.

3.3 Parto humanizado

Ao mapear as expressões mais relevantesque circulavam no contexto investigado acerca doparto humanizado foi possível constatar três dife-rentes desdobramentos a seguir elencados.

3.3.1 Parto humanizado como sinônimo de con-versar mais com a mulher e permitir a entra-da de um familiar

Esses dois aspectos – conversar, isto é, ori-entar e dar atenção às mulheres, e permitir o in-gresso de um acompanhante no pré-parto – des-tacaram-se durante as entrevistas e foram toma-dos como sinônimo de parto humanizado, sugerin-do uma visão estreita e reducionista do termo hu-manizar. A presença do familiar e a orientação àsmulheres são dois aspectos que fazem parte doconjunto de condutas que darão o significado àHumanização do Parto e do Nascimento(2), assegu-rados como um direito das mulheres.

Com a humanização, houve um incremen-to no lado do cuidado, da orientação comas pacientes, da participação do esposo eda família. A gente conversa bastante, hojeem dia, sobre o que está acontecendo. Euacho que está melhor (Participante 19).

Enquanto o profissional relaciona uma “me-lhora” na atenção prestada a partir da implanta-ção da Política, outros(as) apontam para o distan-ciamento ou a ausência de avanços, a começar pe-la inexistência de práticas dialógicas entre equipes(médicos(as) e enfermeiras) e entre profissionaise parturientes. O conflito parece estar estabeleci-do entre o que o documento oficial enfatiza sobre ahumanização e o que se operacionaliza no proces-so de atenção:

Para humanização, eu vejo alguma teo-ria e pouca prática. O mínimo... Às vezes,quase nada... A partir do momento em queeu vejo rotineiramente residente... Aquelemédico que está fazendo um exame de to-que. Introduzindo os dedos na vagina damulher, tirando, jogando a luva no lixo evirando as costas sem dizer nada para a

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paciente, por que fez, o que está aconte-cendo, como vai ser... Não sinalizandonada para a equipe que está do lado pa-ra que, juntos, a gente possa interagir damelhor forma possível. Isso é a coisa maisdistante de um parto humanizado. É au-mentar a tensão da paciente, o medo e, as-sim, a possibilidade de mais intervenção,de mais distócia. Isso se distancia muitodo parto humanizado (Participante 3).

A fala contextualiza um cenário onde a aten-ção prestada às mulheres é gerenciada por pres-supostos marcadamente técnicos e biológicos e,novamente, retoma as questões de poder centrali-zado em determinados modos de ser e de agir ca-racterizados como sendo médicos ao discutir asinterfaces das relações médico(a)/enfermeira(o)/usuário(a). Esse mesmo depoimento indica, tam-bém, como os corpos das mulheres grávidas vêmsendo freqüentemente “invadidos” sem consenti-mento, sob o olhar refinado de um conhecimentopreso à materialidade biológica de um corpo des-conectado de uma história e de uma cultura queproduzem sua identificação. Isso é particularmen-te importante se considerarmos que o corpo femi-nino, nos centros obstétricos, vem sendo acessa-do freqüentemente em sua dimensão biológica: anatureza feminina de dispor-se a parir e tornar-seobjeto das rotinas institucionais e das ações dosprofissionais de saúde.

3.3.2 Parto humanizado como sinônimo de partonormal e parto natural

Essa concepção reaparece com desdobra-mentos diferentes sinalizando compreensões ge-neralistas, englobando as diferentes tipologias departo ao mesmo tempo em que profissionais ten-tam diferenciar os tipos de parto. Isso vai ao en-contro dos documentos oficiais que, de algumaforma, usam essas três definições de parto comosendo coisas diferentes e, em alguns aspectos,conflitantes. Os(as) profissionais, ao mesmo tem-po em que fazem um esforço para apontar dife-renças entre os tipos de parto, assumem que um éigual ao outro e, na medida em que natural e nor-mal passam a ser iguais a humanizado, estão tam-bém construindo a noção de que todo parto, se nãoé natural e não é normal, é desumanizado. Essasconcepções podem ser conferidas a seguir:

Tem parto normal que é o parto huma-nizado, e, para mim, é tudo junto [...]. Tunão vais separar... parto humanizado doparto normal é a mesma coisa. O partonormal deve ser humanizado, e o natu-ral... ele é natural porque é via baixa ea criança vai nascer (Participante 13).

Sugere, então, uma certa sobreposição entreuma tipologia e outra, o que favorece que se pro-blematizem os sentidos agregados à noção de hu-manizado. Para alguns(algumas) profissionaisentrevistados(as), o parto humanizado distingue-se como um tipo particular de parto; para outros(as), constitui um atributo inerente a todos os ti-pos de parto. Isso faz uma grande diferença nocotidiano dos serviços de saúde, pois implica mu-danças substanciais nas formas de abordagens.

3.3.3 Parto humanizado como conjunto de açõespresentes em qualquer tipo de parto

A concepção de humanização é ampla e sig-nificativa, na medida em que defende a necessi-dade de convocar e comprometer a todos – gesto-res(as), trabalhadores(as) e usuários(as) – em umpacto democrático e coletivo, na direção de pro-duzir saúde e construir sujeitos. Para isso, assegu-ram-se a troca e a construção de saberes perma-nentemente, a necessidade de trabalho em equi-pes e o fortalecimento de vínculos(11). Muito pró-ximo a esse entendimento, aparece à concepçãode humanização:

Quando tu estás falando em parto hu-manizado, tu estás falando de uma coi-sa mais profunda do que só humanizar oparto. Tu estás humanizando a relação en-fermeiro/paciente ou médico/paciente.É a mudança de paradigma, não é meiadúzia de norminhas... (Participante 11).

A afirmação do profissional registra que nãosão políticas ou normas que modificam um pa-radigma e que a noção de que um atendimentohumanizado deve estar presente na construçãode relações intraequipe. Porém a trama de possi-bilidades e limites vai para além, por depender dacultura, dos interesses institucionais, econômicos,políticos, de disputas entre categorias profissio-nais, de condições de trabalho, entre outros.

Dutra IL, Meyer DE. Parto natural, normal e humanizado: termospolissêmicos. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28(2):63-70.

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4 CONCLUSÕES

Este estudo identificou uma polissemia atri-buída às diferentes tipologias de parto, com des-dobramentos também no interior de cada uma de-las. No entanto, foi relevante um achado como fiocondutor entre as interfaces de parto discutido.Independentemente da tipologia, o entendimentode que o parto é considerado um ato médico. Foipossível, também, constatar alguns tencionamen-tos e conflitos existentes entre a proposta de hu-manização, a concepção dos(as) profissionais e oque realmente acontece no processo de atenção.Isso se manifestou nas entrevistas de duas for-mas igualmente problemáticas: a concepção de queas mulheres estão aptas biologicamente para darà luz e devem fazê-lo a qualquer custo e a concep-ção que preconiza a incorporação acrítica das ro-tinas e da norma na execução dos procedimen-tos para que o(a) profissional realize o parto e amulher possa, então, dar à luz como coadjuvantedo processo. Essa polissemia é indicativa de quea efetivação de mudanças no modelo de atençãovigente parece exigir muito mais do que Progra-mas e Políticas, o que não significa dizer que elasnão sejam importantes. E, nesse sentido, a incor-poração de abordagens culturais em estudos co-mo este pode contribuir para problematizar signi-ficados que parecem estar dados e, ao mesmotempo, para resignificar o parto como um eventocultural e político.

REFERÊNCIAS

1 Dutra IL. Parto natural, normal e humanizado: a po-lissemia dos termos e seus efeitos sobre a atenção aoparto [dissertação de Mestrado em Enfermagem]. Por-to Alegre: Escola de Enfermagem, Universidade Fe-deral do Rio Grande do Sul; 2005. 145 f.

2 Ministério da Saúde (BR). Programa Humanizaçãodo Parto: humanização no pré-natal e nascimento [pá-gina na Internet]. Brasília (DF); 2002 [citado 2003 jul 6].

Disponível em: http://saude.gov.br/sps/areastecnicas/mulher.htm.

3 Meyer DEE. As mamas como constituintes da ma-ternidade: uma história do passado. In: MercadoFJ, Gastaldo D, Calderón C. Paradigmas y diseñosde la investigación cualitativa en salud. Guadalaja-ra: Universidad de Guadalajara; 2002. p. 375-401.

4 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisaqualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2000.

5 Recomendações da OMS no atendimento ao partonormal [página na Internet]. [s. l.]: Amigas do Parto;1986 [citado 2003 jul 6]. Disponível em: http://www.amigasdoparto.com.br/oms.html.

6 Odent M. A cientificação do amor. 2ª ed. rev. atual.Florianópolis: Saint Germain; 2002.

7 Sebastiani M. Parto natural y parto vaginal ¿sonuna misma cosa? [página na Internet]. [s. l.]: OBGYN.net Latina; [200-?] [citado 2003 mar 15]. Disponívelem: http://latina. obgyn.net/sp/articles/Setiembre/%C2%BFPARTO%20NATURAL%20Y%20PARTO%20VAGINAL%20SON%20UNA%20MISMA%20COSA.htm.

8 Adelman M, Grossi MP. Entre a psicanálise e a teoriapolítica: um diálogo com Jane Flax. Revista EstudosFeministas 2002;10(2):371-88.

9 Tornquist CS. Armadilhas da Nova Era: natureza ematernidade no ideário da humanização do parto.Revista Estudos Feministas 2002;10(2):483-92.

10 Diniz CSG. Entre a técnica e os direitos humanos:possibilidades e limites da humanização da assistên-cia ao parto [tese de Doutorado em Medicina Pre-ventiva]. São Paulo: Universidade de São Paulo;2001. 254 f.

11 Ministério da Saúde (BR), Secretaria Executiva,Núcleo Técnico da Política Nacional de Humani-zação. Humaniza SUS: política nacional de huma-nização. Brasília (DF); 2003.

Recebido em: 20/09/2006Aprovado em: 28/12/2006

Endereço da autora/Author´s address:Ivete Lourdes DutraRua Luiza Fragonese Zati, 1210, Fátima95.043-380, Caxias do Sul, RSE-mail: [email protected]

Dutra IL, Meyer DE. Parto natural, normal e humanizado: termospolissêmicos. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28(2):215-22.