o ensino da escrita, do cálculo e da doutrina religiosa nas escolas de primeiras letras...abreu

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  • O ensino da escrita, da leitura, do clculo e da doutrina religiosa nas escolas de primeiras letras da provncia de Gois no sculo XIX

    sandra Elaine aires de abreu1

    Resumo:analisando as fontes existentes e a produo historiogrfica educacional goiana, estabeleceu-se como objetivo deste artigo analisar a atividade docente a partir das prescries legais, bem como evidenciar as aes colocadas em prtica pelos professores no exerccio do magistrio que no foram previstas de forma explcita pela legislao. o perodo delimitado para a pesquisa o que ocorre entre 1835 e 1893. o processo de institucionalizao da instruo primria esteve diretamente relacionado com a extenso da demanda social pela aquisio das habilidades de ler, escrever, contar e rezar.

    Palavras-chave:instruo primria; ensino da leitura; ensino da escrita; ensino do clculo; ensino da doutrina religiosa.

    * doutora em educao pela Pontifcia universidade catlica (Puc) de so Paulo e mestre em educao pela universidade Federal de Gois (uFG). Professora da universidade Estadual de Gois (uEG) e centro universitrio de anpolis (uniE-vanglica).

  • The teaching of reading, calculus and religious doctrine in the schools of

    primary education of the province of Gois in the 19th century

    sandra Elaine aires de abreu

    Abstract:Based on the analysis of existing sources and educational historiographic production in Gois, the aim of this article is to analyse teaching pratices from the standpoint of legal prescription and to emphasize the actions praticsed by teachers in their teaching activies wich were not explicitly mentioned in the legislation. the research refers to the period from 1835 to 1893. the process of institutionalization of the primary education was straightly related to the social demand for the acquisition of the skills of reading, writing, counting, and praying.

    Keywords:primary education; reading instruction; teaching of calculus; teaching of religious doctrine.

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    Introduo

    com a lei n. 13, de 1835, o governo provincial definiu um conjunto de regras para a organizao das escolas de primeiras letras em Gois, dentre as quais destacamos o funcionamento das escolas, tempos e es-paos escolares, os contedos curriculares, o modo de ensinar, avaliar e punir os discentes. o esforo visvel para cumprir tal lei pode ser verifi-cado no movimento de elaborao de vrios regulamentos de instruo, resoluo e atos com o objetivo de unificar a estrutura e o funcionamento da organizao escolar na provncia.

    os regulamentos de instruo pblica constituram um projeto do governo provincial para as escolas de primeiras letras em Gois. Eles regulavam a vida das e nas escolas, cuidando de mincias relativas estrutura, ao funcionamento e ao cotidiano escolar; o tipo de instruo a ser desenvolvida no interior da escola, e o modo de organizar, instruir, disciplinar e sancionar promoes de alunos.

    o objetivo deste artigo analisar a atividade docente a partir dessas prescries legais, bem como evidenciar as aes colocadas em prtica pelos professores1 no exerccio do magistrio que no foram previstas de forma explcita pela legislao.

    Para tanto privilegiamos como fonte para esta anlise os relatrios dos presidentes da provncia e a legislao educacional. a anlise dessas fontes exigiu algumas indagaes, tais como: o que so os relatrios presidenciais? como e por quem foram escritos? a que ou a quem se destinaram? No que se refere legislao educacional indagamos: quem a produziu? Que papel cumpriu no processo de constituio da instruo pblica? Que objetivos e finalidades estabeleceu? Que influncia teve na

    1. a anlise da legislao educacional mostrou que caractersticas como idade, nacio-nalidade, f religiosa, comprovada morigerao (boa conduta), sade definiam o perfil daquele que poderia ingressar na carreira docente, ao mesmo tempo em que indicavam quem no poderia ingressar nessa carreira profissional. com base nesse perfil pode-se dizer que, na provncia de Gois, o professor seria mais um agente disseminador da mentalidade moralizante do que um difusor de conhecimento. a habilitao do professor no passava necessariamente pela formao em Escola Normal, mas pela aprovao em concurso ou nomeao.

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    materializao da prtica pedaggica? Por que se decretaram apenas uma lei e vrios regulamentos? o que se pretendeu instituir com a produo e o uso desses instrumentos legais? Essa legislao educacional pode ser considerada um projeto do governo provincial para a instruo pblica em Gois? a legislao produzida foi um modo de o Poder Executivo intervir na questo educacional? Essa interveno do Poder Executivo expressa a tentativa de unificar os procedimentos dos professores e dos alunos? Havia a necessidade de unificao dos procedimentos no coti-diano escolar?

    a utilizao somente dos relatrios presidenciais e legislao no permitiu o entendimento e a compresso da constituio da instruo primria em Gois no sculo XiX, por isso ampliamos as fontes de pesquisa. a progressiva regulamentao da instruo pblica inaugurou uma srie de registros manuscritos em livros de registros e uma profuso de papis manuscritos avulsos. assim, uma vasta documentao avulsa manuscrita, que englobava atestados emitidos pelos inspetores de ensino aos professores primrios, recibos dos professores primrios relativos aos pagamentos dos seus vencimentos, ofcios, mapas de aula, relatrio de professor, termos de posse de juramento de professor, termos de exames de alunos entre outros, foi utilizada para a elaborao deste texto.

    os registros dos professores em seus mapas de aulas e os exerccios discentes foram fontes importantes, uma vez que os exerccios dos alu-nos e os mapas das aulas so dispositivos que mostram aquilo que eles aprenderam e como aprenderam ou fracassaram em ensinar.

    tambm inclumos relatos de ex-alunos que freqentaram as escolas de primeiras letras da provncia de Gois nas ltimas dcadas do sculo XiX e nas duas primeiras dcadas do sculo XX, uma vez que conside-ramos a possibilidade de uma aparente perenidade das prticas escolares do perodo imperial durante a Primeira Repblica.

    O processo ensino-aprendizagem

    O professor estabelece a disciplina na aula e cria um ambiente alfabetizador

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    a legislao educacional em Gois, no sculo XiX, estabeleceu que fazia parte da prtica pedaggica dos professores das escolas de primei-ras letras manter a disciplina e a ordem durante a aula (Regulamento..., 1869; Regulamento..., 1887).

    a disciplina era um dos grandes desafios dos professores das escolas de primeiras letras goianas porque eles ensinavam pelo mtodo indivi-dual2. dessa forma enquanto dedicavam alguns minutos a um aluno, os outros ficavam ociosos, sem a vigilncia do professor, o que ocasionava a indisciplina. os alunos tambm se encontravam em diferentes estgios de adiantamento, dificultando ainda mais o trabalho do professor. cabia ao docente criar os mecanismos para estabelecer a ordem e a disciplina na sala de aula.

    segundo Foucault (2004), a primeira grande operao da discipli-na criar quadros vivos, isto , transformar multides confusas em multiplicidades organizadas para impor uma ordem; para tanto, devem-se dividir e classificar os grupos, bem como criar e dividir os espaos. a criao e a diviso do espao permitem a fixao e a circulao dos grupos, estabelecendo ligaes operatrias e garantindo a obedincia dos indivduos. Na escola, ao determinar os lugares individuais, faz-se funcionar [...] o espao escolar como uma mquina de ensinar, mas tambm de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (p. 126).

    a anlise dos mapas de diversas aulas de instruo primria da provncia goiana permitiu-nos perceber que os professores das escolas de primeiras letras dividiam os alunos em grupos, segundo o nvel de adiantamento de cada um na escrita, na leitura, no clculo e na doutrina religiosa. Eles eram classificados segundo sua maior ou menor apli-

    2. Na segunda metade do sculo XiX houve a inteno, do presidente da provncia, antonio candido da cruz Machado, de adotar um novo mtodo de ensino (o simultneo) (Relatrio..., 1855). Entretanto, no havia na provncia professores habilitados para aplic-lo e as rendas provinciais tambm eram insuficientes para adquirir todos os utenslios exigidos para a adoo dessa metodologia (Relatrio..., 1857). Nos relatrios dos presidentes da provncia que se seguem a partir de 1859, h referncia utilizao do mtodo do ensino individual na maioria das instituies de ensino primrio da provncia, com exceo da escola masculina da capital da provncia, que ensinava pelo mtodo simultneo.

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    cao, inteligncia e moralidade. com essa operao, os professores transformavam as salas de aula em uma multiplicidade organizada; a aula passava a ser composta de vrias classes. Vrias classes de ensino de escrita, de leitura, de clculo e de doutrina religiosa.

    observando o mapa da aula primria do arraial de santa Maria, de 8 de abril de 1864, elaborado pelo professor vitalcio Joaquim antonio cardoso, verificamos que havia 37 alunos na sua aula, que foram ma-triculados entre 1862 e 1863. No houve nenhuma matrcula no ano de 1864, pelo menos at o ms de abril. os alunos tinham idade entre 8 e 22 anos (Mapa da aula primria do arraial de santa Maria..., 1864).

    os alunos foram divididos, classificados e agrupados de diversas formas. o critrio utilizado pelo professor para a organizao da aula era o contedo a ser desenvolvido e o conhecimento que cada aluno tinha em relao ao contedo previsto na legislao educacional, bem como a moralidade e a aplicao.

    a classificao mais abrangente feita pelo professor em relao ao grupo de alunos foi a que se referia moralidade do aluno. classificou-os em dois grupos: os dos comportados e o dos inaplicveis. dois alunos do grupo dos comportados foram qualificados tambm como rudes3 (idem).

    Quanto diviso dos alunos, no que se refere ao ensino da leitura, da escrita, do clculo e da doutrina religiosa, verificamos que, em relao ao ensino da leitura, os alunos foram divididos em quatro classes: a dos que sabiam ler (20 alunos); a dos que liam soletrando (sete alunos); a dos que liam nomes soletrados (cinco alunos); e a dos que liam slabas (cinco alunos) (idem).

    No que dizia respeito diviso dos alunos, referente ao ensino da escrita, estes foram divididos em quatro classes: a dos que escreviam

    3. Rude ou rudo aquele que tem falta de saber (Pinto, 1832, p. 119); sem instruo, ignorante (Ferreira, 1988, p. 579). No contexto em questo, a palavra rude aplicada ao aluno com dificuldade de aprendizagem, conforme estava expresso no art. 10 do Regulamento de 1835: se algum menino apparecer to rude, que no deixe esperana de aprender, o Professor far saber ao delegado, para este dar ao Presidente da Provincia, que mandando proceder aos exames necessrios, e circunstanciadamente informado, resolver a tal respeito, como for justo.

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    (16 alunos); a dos que escreviam o alfabeto (dez alunos); a dos que es-creviam bastardo (nove alunos); e a dos que no sabiam escrever (dois alunos) (idem).

    Em relao ao ensino das matemticas, os alunos foram divididos em vrias classes: a dos que sabiam diminuir (trs alunos), somar (trs alunos), dividir (nove alunos), multiplicar (seis alunos), contar at as pro-pores (um aluno), contar at (palavra ilegvel) (dois alunos) (idem).

    Por fim, no que se refere ao ensino religioso, no havia no mapa de aula do professor nenhuma anotao quanto ao ensino da doutrina crist, apesar de o Regulamento de 1856, ainda vigente em 1864, estabelecer que na instruo primria se ensinaria catecismo, os dogmas fundamentais da religio e da doutrina crist e as principais oraes (idem).

    com base na anlise do mapa geral da escola pblica do sexo masculino da parquia de anicuns, de 30 de dezembro de 1864, regida pelo professor interino Vicente Ferreira Ramos de azevedo, verificamos que havia 29 alunos em sua aula, matriculados entre 1862 e 1864. os alunos tinham idade entre 6 e 22 anos (Mapa geral da aula pblica de anicuns..., 1865).

    os alunos foram divididos, classificados e agrupados pelo profes-sor de forma semelhante utilizada pelo professor da escola de santa Maria. o professor da escola de anicuns classificou os alunos quanto inteligncia, aplicao e moralidade. No quesito inteligncia, os alunos foram divididos em dois grupos: o dos que tinham inteligncia (19 alunos) e os que tinham pouca inteligncia (dez alunos); no aspecto aplicao, os alunos foram divididos em trs grupos: os dos que eram aplicados (14 alunos), os que tinham pouca aplicao (14 alunos) e o dos que no eram aplicados (um aluno). No que se refere moralidade, todos os alunos foram avaliados positivamente (idem).

    sobre o ensino de leitura, escrita, clculo e doutrina religiosa, apenas um aluno foi classificado pelo professor de anicuns em estado comple-to, ou seja, sabia ler, escrever, fazer as quatro operaes de aritmtica e dominava a doutrina religiosa. a respeito do ensino de leitura, Vicente Ferreira Ramos de azevedo dividiu os em quatro classes: a dos que sa-biam ler (12 alunos); a dos que liam slabas (14 alunos); a dos que liam nomes (dois alunos) e a dos liam sofrivelmente (um aluno). No que

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    tange ao ensino da escrita os estudantes foram agrupados em trs classes: a dos que escreviam bem (um aluno); a dos que escreviam mal (16 alunos) e a dos que escreviam sofrivelmente (seis alunos) (idem).

    Em relao ao ensino das matemticas, os alunos foram divididos pelo professor Vicente Ferreira em quatro classes: a dos que sabiam somar e diminuir (quatro alunos), somar (um aluno), a dos que sabiam trs operaes (seis alunos) e a dos que sabiam quatro operaes (trs alunos) (idem).

    Por fim, quanto ao ensino religioso, o professor dividiu a sala em duas classes: as do que sabiam doutrina (dez alunos) e a dos que sabiam pouco sobre o assunto (dois alunos) (idem).

    alm de dividir os alunos em classes, era necessrio organiz-los no espao escolar, isto , definir o lugar que cada um ocuparia na sala de aula. Por isso, o professor tinha de distribuir e dividir o espao com rigor para romper as comunicaes perigosas (indisciplina) e criar um ambiente til e propcio aprendizagem. Era prtica entre os professores primrios em Gois separar as classes de alunos por bancos, ou seja, a cada nvel de adiantamento havia um banco em determinado local da sala de aula onde os alunos deveriam posicionar-se. dessa forma, o pro-fessor codificava o espao escolar. Havia lugares determinados para os alunos de todas as classes, de modo que todos da mesma classe fossem colocados sempre no mesmo lugar.

    o relato de um ex-aluno da escola pblica de primeiras letras de Meiaponte descreve a organizao do salo de aulas do mestre Joa-quim4: [...] direita, o banco dos burros e o banquinho do pote; o banco da janela; o banco da cabeceira da mesa grande do centro; esquerda, o banco dos adiantados e o banco dos decuries (Jayme, 1971, p. 226).

    apesar de os relatrios dos presidentes da provncia de Gois in-dicarem a larga utilizao do mtodo de ensino individual nas escolas de primeiras letras goiana, o relato do ex-aluno demonstrou que havia tambm a utilizao do mtodo misto por algum professor.

    4. Joaquim Propcio de Pina, o Mestre Joaquim foi professor da escola de primeiras letras do sexo masculino de Meiaponte de 1896 a 1918

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    o inspetor paroquial5 Joo Francisco de azevedo, do arraial de cam-pinas, ao visitar, em 14 de dezembro de 1867, a aula pblica do arraial regida pelo professor Francisco de Paula siqueira, para a realizao do exame de suficincia dos alunos, relatou no termo de exame o seguinte: [...] achemos a [escola] [...] afrequentada com 18 allumnos, epassando a examinalos segundo a ordem dos bancos achou-se que no so os do abc como os outros que to bem liam syllabas, ath o banco onde existiam os quatro munitores [...] (termo de exame de alunos de aula pblica..., 1867, grifos nossos).

    determinando os lugares individuais em sala de aula, o professor conseguia, assim, criar um ambiente pedaggico, adequado ao ensino, passando a ter controle sobre os alunos e sobre o processo de ensino-aprendizagem, alm de conter a indisciplina.

    O currculo das escolas de primeiras letras e o ensino da escrita, da leitura, do clculo, da doutrina religiosa e de outros contedos

    o currculo das escolas de primeiras letras goianas foi definido pelo governo provincial pela lei n. 13, de 1835, e depois alterado pelos regulamentos de instruo que se seguiram lei, bem como resolues e atos durante todo o sculo XiX. a organizao curricular das escolas primrias estabelecia, entre outras coisas, a finalidade do ensino prim-rio, os contedos a serem ministrados, a avaliao escolar, as punies discentes e o calendrio escolar.

    a finalidade do ensino ministrado nas escolas de primeiras letras era a educao literria, moral e religiosa das classes pobres (ato n. 26, de

    5. com a Reforma da augusto Pereira da cunha (regulamento de 1856) criou-se a inspetoria-Geral de instruo Pblica e estabeleceu que a inspeo escolar seria feita pelo presidente da provncia, pelo inspetor-geral de instruo pblica e pelos inspetores paroquiais. o presidente da provncia tratava do assunto da instruo diretamente com o inspetor-geral e este com os inspetores paroquiais. Estes ltimos mantinham contato direto como os professores e transmitiam ao inspetor-geral todas as informaes inerentes ao trabalho docente. somente na dcada de 1880 que a legislao educacional colocou no pice da hierarquia da inspeo escolar o inspetor-geral de instruo Pblica.

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    8 de janeiro 1862). Posteriormente, passou a ser o desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais das crianas (Regulamento de instruo da Provncia de Gois, 1884; Regulamento de instruo da Provncia de Gois, 1887). Para atingir tais finalidades, estabeleceu-se um currculo no qual vigoravam as primeiras letras, com forte teor religioso.

    apesar de o contedo curricular ter sofrido vrias alteraes ao longo do sculo XiX, com o acrscimo de disciplinas, o que observamos foi que, na prtica, o contedo ministrado pelos professores resumiu-se ao ensino da leitura, escrita, das quatro operaes aritmticas e da doutrina crist. o registro dos professores nos mapas de aulas sobre o contedo ensinado aos alunos e os relatos dos presidentes da provncia e de ex-alunos das escolas de primeiras permitem-nos fazer tal afirmao.

    Rosentina santanna e silva, ex-aluna de mestra inhola6, fez o seguinte relato: Escola modestssima, onde os alunos aprendiam a ler, escrever e contar e, treinados em clculos mentais, dali saiam preparados, aptos para a vida prtica ou para ingressarem no Liceu (apud Brito, 1982, p. 105). Jos Rodrigues Jardim, por sua vez, afirmou: [...] nestas aulas se [ensinam] ler, escrever, as quatro operaes de contas e a doutrina christ (Relatrio..., 1835, p. 7).

    outro relato, do presidente da provncia, Francisco Janurio da Gama cerqueira, traz o seguinte comentrio: limitadssimo o ensino que se d nas nossas escolas. Nellas, com poucas excepes, os meninos aprendem apenas a ler e escrever e a fazer as quatro operaes fundamen-tais da arithmetica, e, o que peior , tudo isso muito mal quasi sempre (Relatrio..., 1858, p. 5).

    J o vice-presidente Francisco Ferreira dos santos azevedo criticava o currculo ministrado pelos professores, dizendo que eles ficavam em um nvel to elementar que os alunos saam da escola sem ter nenhum conhecimento ou noo de seus deveres: [...] presentemente nossos Mestres de Primeiras Letras nada mais fazem, do que ensinar a ler e escrever, de sorte que quando hum menino sahe da Escolla ignora os

    6. Pacifica Josefina de castro, Mestra inhola, exerceu o magistrio na cidade de Gois entre 1869 e 1929.

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    conhecimentos os mais triviaes, e os seos prprios deveres [...] (Rela-trio..., 1843, p. 8).

    outro administrador da provncia, Jose de assiz Mascarenhas, tambm critica o contedo ministrado nas escolas primrias e sugere outros que deviam ser trabalhados pelos professores nas aulas: [...] [o] que se costuma dar nas escolas, ler, escrever, contar, doutrina christ; demais alguma cousa se precisa, he necessario inspirar nos meninos os princpios de Moral, o amor ao trabalho, o horror a preguia [...] (Relatrio..., 1845, p. 7).

    Para Jos Vieira do couto Magalhes, o currculo vivido/praticado nas escolas de primeiras letras em Gois deixava a desejar em vrios aspectos, entre eles, o fato de o professor no ministrar nas aulas todo o contedo prescrito pela legislao. alm do mais, na sua opinio, o pouco que se ministrava era ensinado de forma insatisfatria.

    Vejamos as palavras do referido presidente da provncia:

    a instruco Primaria comprehende actualmente a leitura e a escripta; as regras elementares darithmetica; a theoria e pratica das quatro operaes sobre nmeros inteiros, fraes ordinrias e decimaes, e propores; os sys-temas mais usados de pesos e medidas; a grammatica da lingoa nacional; o cathelicismo [sic], explicaes sobre os dogmas fundamentaes da Religio e doutrina christ, e as principaes oraes. consta para o sexo feminino das mesmas matrias com pequena alterao, devendo ainda as professoras ensinar as matrias indispensveis a economia domestica.

    de tudo isso infelizmente mal se ensina a ler, escrever e a pratica das quatro operaes sobre nmeros inteiros, e isto no decurso de quatro e mais annos [Relatrio..., 1863, p. 5, grifos nossos].

    Fulgncio Firmino simes sugeriu, por sua vez, que o contedo mi-nistrado nas escolas de primeiras letras ultrapassasse o ensino da leitura, da escrita, do clculo e da doutrina religiosa.

    a escola no pode ser a casa em que a creana va conhecer materialmente as letras do alphabeto, ligar e decorar assyllabas.

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    preciso substituir a cre ana-machina pela creana-gente.a intelligencia como o leo, que dorme; despertemol-a que ella desen-

    volver suas foras e dominar o tempo e o espao.o mestre precisa conhecer as faculdades intellectivas para despertal-as,

    isto , precisa saber [Relatrio..., 1888, p. 11].

    a anlise dos registros dos professores nos mapas das aulas e de alguns exerccios de alunos, em comparao com os contedos de ensi-no estabelecidos pela legislao educacional, confirma que, na prtica, o ensino se limitou escrita, leitura, ao clculo e doutrina religiosa. tambm analisamos a forma utilizada pelos professores para o ensino-aprendizagem desses contedos curriculares.

    O ensino da escrita

    o contedo do ensino da escrita nas escolas de primeiras letras estabelecido pela legislao educacional, no perodo entre 1835 e 1887, pode ser verificado no Quadro 1.

    o Quadro 1 indica, portanto, que o contedo do ensino da escrita se resumiu ao ensino da gramtica e da escrita da lngua portuguesa.

    o processo de ensino-aprendizagem da escrita nas escolas de pri-meiras letras em Gois, no sculo XiX, inclua exerccios de debuxo, caligrafia, e a cpia dos traslados. segundo Roger chartier, [...] a cpia [] o procedimento [...] situado no cerne do ensino dos mestres de escrita [...] grafadas mo, as linhas de exemplos que seus alunos devem imitar [...] (2002, p. 88). Verificamos esse procedimento no ensino da escrita nas escolas goianas oitocentistas.

    aos alunos que se iniciavam no aprendizado da escrita destinavam-se os exerccios de debuxo, que consistiam em cobrir suavemente as letras traadas a lpis pelo professor. o exerccio era repetido vrias vezes pelo aluno at que ele automatizasse a escrita das letras do alfabeto e de frases.

    aos alunos mais adiantados no ensino da escrita eram oferecidos os traslados. assim como no debuxo, o traslado era repetido vrias vezes; s era modificado quando o aluno reproduzisse com perfeio o modelo fornecido.

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    Quadro 1 contedo do ensino da escrita nas escolas primrias masculinas e femininas em Gois, entre 1835 e 1887

    LEGisLaoEscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas

    1o Grau 2o Grau 1o Grau

    Lei n. 13, de 1835 Escrever

    Escrever, gramtica da lngua nacional

    Escrever, ortografia e prosdia

    Resoluo n. 14, de 1846

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNasEscrever, noes mais gerais da lngua nacional

    Regulamento de 1856

    EscoLas MascuLiNas FEMiNiNasEscrita, gramtica da lngua nacional

    Regulamento de 1869 Escrita, gramtica portuguesa

    Regulamento de 1884

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o Grau 2o Grau

    Escrita e noes de gramtica Escrita e noes de gramtica

    Regulamento de 1886

    EscoLas MascuLiNas FEMiNiNasElementar: escrever a lngua portuguesaEfetivas:1 Entrncia: escrever a lngua portuguesa2 Entrncia: escrita da lngua portuguesa e gramtica3 Entrncia: gramtica, escrita e composio da lngua portuguesa

    Regulamento de 1887

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o Grau 2o Grau

    Escrita corrente e noes de gramtica

    Escrita corrente e noes de gramtica, gramtica da lngua nacional e anlise gramatical e lgica

    Escrita corrente e noes de gramtica

    Escrita corrente e noes de gramtica, gramtica da lngua nacional e anlise gramatical e lgica

    os modelos de traslados dados pelos professores aos alunos para que eles fizessem a cpia incluam lies educativas com contedos de moral civil ou religiosa. assim, alm da prtica de caligrafia, a cpia dos traslados inculcava nos alunos conhecimentos educativos moralistas.

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    Na falta de compndios, os professores utilizavam cartas, recibos e atestados como modelos de traslados.

    concomitantemente ao aprendizado das letras do alfabeto, os alunos tambm aprendiam a escrever os nmeros arbicos.

    a documentao localizada permite dizer que os professores das escolas de primeiras letras ensinavam a escrever e a gramtica da lngua nacional. Mas os exerccios escolares s possibilitam descrever o processo de ensino-aprendizagem da escrita.

    Na tentativa de descrever o processo de ensino-aprendizagem da escrita nas escolas de primeiras letras em Gois, analisamos uma colec-o de escriptas (exerccios escolares) dos alunos da escola de primeiras letras do sexo masculino do arraial de corumb, em 18417, e da escola masculina de Porto imperial, de 1868.

    a coleco de escriptas permitiu identificar alguns procedimentos utilizados pelo professor para o ensino da escrita e tambm constatar que os alunos estavam em diferentes estgios de desenvolvimento na escrita.

    Para efeito de anlise, classificamos esses diferentes estgios de desenvolvimento na escrita em trs grupos denominados de primeiro, segundo e terceiro nveis de escrita, referente aos exerccios da escola de corumb. adotamos como critrio para diferenci-los o tipo de exer-ccio feito pelo aluno; a forma como era preparado o papel almao para a escrita, e o lugar no papel almao, j preparado pelo professor, onde se escreviam as frases.

    Nos exerccios analisados, o professor utilizou como modelo para a cpia e caligrafia as frases que se seguem:

    7. a colleco de escriptas dos alunos da escola de primeiras letras do sexo masculino de corumb foi encontrada costurada (amarrada com um cordo) em um livro de registro da igreja catlica. as folhas estavam grudadas ou coladas umas s outras, formando uma espcie de capa dura para o livro de registros. ao serem descola-das, descobriu-se que eram exerccios de alunos da escola primria de corumb. Essas informaes foram obtidas no instituto de Pesquisas e Estudos Histricos do Brasil central, da sociedade Goiana de cultura, rgo da universidade catlica de Gois.

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    Frase1:Quandonohaprudenciaahonraeasriquezassovan-tagens bem pouco seguras.

    Frase2:Lenhaverdemalseassendequemdormemuitopoucoseaprende.

    Frase3:Considerahumahoraantesdefallareumdiaantesdeprometter. Promessas aceleradas so comumente acompanhadas de arrependimento.

    Frase4:Maispodehumafavoravelventuradoqueumvigilantecuidado. Mais pode huma hora de felicidade do que um sculo de diligencia. Mais vence avidencia de um destino do que a fora de um dicuro.

    o professor da escola de corumb preparava o papel almao para que o aluno fizesse o treino da escrita, de acordo com o nvel de desen-volvimento de cada discpulo.

    Para os alunos do primeiro e do segundo nveis de adiantamento, o papel almao era preparado da mesma forma, isto , metade do papel almao era dobrado em quatro partes. Nessas partes do papel, o professor traava as pautas a lpis. Eram linhas retas paralelas com entrelinhas reservadas escrita, de mais ou menos meio centmetro para as letras minsculas e de um centmetro para as letras maisculas.

    No primeiro nvel de aprendizagem, o aluno fazia o debuxo das letras do alfabeto, dos nmeros arbicos e de seu nome. Para o treino desse exerccio, utilizava metade do papel almao dobrado em quatro partes. Na colleco de escriptas dos alunos da escola do arraial de corumb, h exerccios de dois alunos no primeiro nvel de desenvol-vimento da escrita.

    os exerccios dos alunos consistiam no debuxo das letras do alfabeto e dos nmeros arbicos, da seguinte forma: a b c d e f g h i l m n o p q r s t u v x z y 1 2 3 4 5 a B c d E F G H i L M N o P Q R s t u X Z Y 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10. a esses exerccios, seguia-se o nome do aluno. No alfabeto minsculo no havia a letra j, e no alfabeto maisculo no havia a letra J nem a letra V.

    a repetio era parte importante da aprendizagem da escrita. Verifi-camos que o aluno Miguel da costa abrantes repetiu o exerccio quatro

  • 28 revista brasileira de histria da educao n 18 set./dez. 2008

    vezes e Joo Fleury de campos fez o mesmo exerccio oito vezes.No exerccio feito pelo aluno Joo Fleury de campos possvel

    verificar que, medida que ele foi repetindo a tarefa, sua letra foi melho-rando. Nos primeiros exerccios, a letra aparece trmula e o aluno cobre o seu nome com muita dificuldade, pois, mesmo sendo um debuxo, no possvel compreender o seu segundo nome, Fleury. depois de ser repetido vrias vezes o mesmo exerccio, o trao da letra vai ficando mais firme, e o aluno consegue escrever o nome de forma legvel. isso indica que os alunos que se estavam iniciando no processo de aprendizagem tinham mais facilidade em debuxar as letras do alfabeto separadamente e maior dificuldade em faz-lo quando se tratava de uma palavra, pois a ligao de uma letra com outra era uma habilidade mais difcil para os alunos principiantes e requeria treino.

    No segundo nvel de aprendizagem o aluno fazia a cpia de frases. a anlise dos exerccios dos alunos, nesse nvel de aprendizagem da escrita, revelou que ele iniciava a cpia de frases quando j conseguia escrever as palavras de forma legvel e com o trao firme, no sendo mais necessrio fazer o debuxo. o exerccio era repetido vrias vezes at que o aluno reproduzisse com perfeio o traslado. o mesmo tipo de exerccio era repetido pelos alunos durante alguns dias.

    o exerccio consistia na cpia de uma frase e encerrava-se escrevendo o local (da escola) e a data. s vezes, era finalizado com a assinatura do aluno, como pode ser observado na transcrio do exerccio que se segue:

    Mais pode huma favoravel ventura do que um vigilante cuidado. Mais pode huma hora de felicidade do que um sculo dediligencia. Mais vence avidencia de um destino do que a fora de um dicuro. corumb 8 de Junho de 1841.

    de V. discpulo obdeJoo da costa abrantes [coleo de escritas dos alunos..., 1841].

    a frase Quando no ha prudencia a honra e as riquezas so van-tagens bem pouco seguras. corumb 14 de Junho de 1841. de V. s. discpulo obde e cro (idem) foi repetida pelo aluno cinco vezes (duas vezes no dia 8 de junho de 1841; duas vezes no dia 11 de junho e uma

  • o ensino da escrita, da leitura... 29

    vez no dia 14 de junho). No dia 14 de junho de 1841, o mesmo aluno passou a copiar a frase Lenha verde mal se assende quem dorme muito pouco se aprende. corumb 14 de Junho de 1841. de V. s. discpulo obde (idem).

    Nos exerccios, aparece a cpia feita pelo aluno Joo da costa abrantes da seguinte frase: Mais pode uma favoravel ventura, do que hum vigilante cuidado. Mais pode huma hora de felicidade do que um sculo corumb 5 de Junho de 1841. de V. s. discpulo obde. Joo da costa (idem). o exerccio foi repetido duas vezes no dia 5 e duas vezes no dia 8 de junho de 1841.

    outro exerccio traz a cpia do aluno Joo do Nascimento Evange-lista da frase a seguir: Quando no ha prudencia a honra e as riquezas so vantagens bem pouco seguras. corumb 7 de Maio de 1841. de V. s. discpulo obde e cro (idem). o exerccio foi repetido seis vezes: uma vez no dia 7 de maio, duas vezes no dia 11, uma vez no dia 12, uma vez no dia 13 e uma vez no dia 20 de maio de 1841.

    tambm no material por ns consultado, encontramos o exerccio do estudante samuel Gonsalves de arajo, que consistia na cpia da frase: Mais pode huma favoravel ventura do que um vigilante cuidado. corumb 22 de maro de 1841. samuel Gonsalves (idem). as cpias datam dos dias 15 e 22 de maro de 1841. Esse aluno, ao que tudo indica, estava em um processo de transio do segundo para o terceiro nvel de desenvolvimento da escrita, pois h exerccios dele tanto no segundo quanto no terceiro nvel de escrita. No dia 22 de maro, ele fez dois exerccios um no papel preparado para o segundo nvel e outro no papel preparado para o terceiro nvel de escrita , como se o professor estivesse indicando uma forma mais simples de escrever e outra mais elaborada.

    o professor da aula do arraial do corumb utilizou as quatro frases mencionadas anteriormente como modelo no segundo nvel de aprendiza-gem da escrita. H vrios exerccios, alguns com a assinatura do aluno e outros no. como uma das habilidades que o aluno deveria adquirir com o exerccio da cpia era reproduzir o talhe da letra que serviu de modelo, no possvel afirmar se os vrios exerccios sem assinaturas eram do mesmo estudante ou de vrios. No entanto, pode-se perceber que, nessa

  • 30 revista brasileira de histria da educao n 18 set./dez. 2008

    fase, o aluno repetia vrias vezes o mesmo exerccio, isto , a mesma frase. depois que ele j conseguia reproduzir as frases com perfeio, passava ao terceiro nvel de desenvolvimento da escrita. Para tal exer-ccio, o professor utilizou as mesmas frases j empregadas no segundo nvel de desenvolvimento da escrita. o que diferenciava o exerccio do segundo nvel para o terceiro que, neste ltimo, o exerccio iniciava com o cabealho (identificando a aula), depois a frase, e encerrava com o local (da escola) e a data. s vezes, o aluno assinava o nome.

    Nesse nvel de aprendizagem, usava-se a metade do papel almao, dobrado ao meio, no qual o professor traava a lpis uma linha vertical do lado esquerdo do papel para fazer a margem, delimitando onde o aluno deveria iniciar a escrita. No alto da folha, traavam-se duas linhas retas paralelas, com entrelinhas de mais ou menos meio centmetro destinadas ao cabealho, onde se escrevia apenas o nome do local da escola. abaixo da linha destinada ao cabealho, a mais ou menos uns cinco centmetros, eram traadas linhas paralelas, com entrelinhas de aproximadamente meio centmetro e um centmetro e meio a dois centmetros de distncia uma da outra, destinadas cpia do traslado.

    Em tal estgio de desenvolvimento da escrita, o aluno fazia o exerc-cio de forma mais elaborada. as frases a serem copiadas tinham lugares definidos na folha de papel. ao traar as linhas e as margens no papel para o exerccio da escrita, o professor codificava o espao do papel a ser utilizado, estabelecia o lugar para o incio da escrita (cabealho), meio (frases) e fim (local, data e assinatura do aluno). o aluno, nesse momento da escrita, j traava a letra de forma legvel e firme e conseguia reproduzir o modelo do traslado com perfeio.

    o exerccio que se segue foi escrito duas vezes na mesma folha um ao lado do outro. No exerccio escrito do lado esquerdo da folha, logo abaixo do cabealho est escrito Minha; no exerccio escrito no lado direito da folha, logo abaixo do cabealho est escrito Julgo iguaiz. isso permite afirmar que um exerccio foi escrito pelo professor para servir de modelo para o aluno. o outro foi a cpia feita pelo aluno, que reproduziu o traslado com perfeio, por isso, o professor fez a observao de que julgava iguais o modelo e a cpia.

  • o ensino da escrita, da leitura... 31

    aula Pblica do arraial de corumb

    Julgo iguaiz

    Mais pode huma favoravel ventura do que um vigilante cuidado. Mais pode huma hora de felicidade do que um sculo dediligencia. Mais vence avidencia de um

    corumb 9 de Junho de 1841. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 [idem].

    H tambm o exerccio realizado nos dias 19, 20 e 22 de maio de 1841, o que indica que foi repetido trs vezes pelo mesmo aluno.

    aula Publica do arraial de corumb

    considera huma hora antes de fallar e um dia antes de prometter. Promes-sas aceleradas so comumente acompanhadas de arrependimento. corumb 19 de Maio de 1841.

    de V. s. discpulo obediente e criado [idem].

    Manuseando uma coleco de escriptas dos alunos da escola pri-mria do sexo masculino de Porto imperial, de 1868, regida pelo professor olmpio dias Furtado, verificamos que os exerccios foram realizados por alunos que j sabiam escrever perfeitamente. Esses trabalhos foram enviados ao inspetor-geral de instruo Pblica, em cumprimento determinao presidencial de 18 de julho de 18668.

    8. o presidente da provncia, Ferreira Frana, sentindo a necessidade de ser informado de como os professores de primeiras letras cumpriam seus deveres e se os alunos estavam ou no tendo algum aproveitamento nas aulas, enviou ao inspetor-geral de instruo Pblica um ofcio de 18 de julho de 1866, ordenando aos inspetores pa-roquiais que determinassem o seguinte aos professores: no incio de cada ms, eles deveriam apresentar a relao dos alunos matriculados, mencionando o nmero de faltas que tiveram no ms e uma coleo de escrita dos alunos. Esses papis deveriam ser enviados pelos professores aos inspetores paroquiais, por meio de um ofcio di-rigido ao inspetor-geral de instruo informando de forma circunstanciada o estado de sua aula e o progresso de seus alunos. os inspetores paroquiais cobriam o ofcio

  • 32 revista brasileira de histria da educao n 18 set./dez. 2008

    os exerccios foram feitos em folha de papel almao inteira, e o professor no traou nenhuma linha para margem ou entrelinhas para escrita. o exerccio era composto por cabealho, texto e assinatura do aluno. o aluno Francisco dias Furtado (filho do professor) fez um texto maior, e o aluno Jos Rodrigues Pedreira um texto menor.

    o exerccio de Jos Rodrigues Pedreira o que se segue:

    aula Publica 28 Janeiro de 1868

    Hum menino he digno de compaixo quando no escuta os prudentes conselho de seos Paes, enem quer seguir o exemplo das pessoas virtuozas.

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22aBcdEFGHiKLMNoPQRstuZd. Vs discpulo mto obde e cro.

    Joze Rodrigues Pedreira [Exerccio do aluno Jos Rodrigues Pedreira..., 1867].

    o exerccio do aluno Francisco dias Furtado o seguinte:

    directoria das Rendas Provinciaes de Goyaz 23 de Julho 68

    o director Geral da administrao da Fazenda da Provincia de Goyaz ordena ao snr administrador da Recebedoria da cidade de Porto imperial que pague ao Professor da escola de ensino primrio da povoao de Pedro affono Manoel Rodrigues da silva Brazileiro os seos ordenados vensidos de 1o de Julho de 1865 em diante e tambm os que forem vencendo exigindo no acto detrs pagamentos e os respectivos recibos.

    aBcdEFGHJLMNoPQRstuFrancisco dias Furtado [Exerccio do aluno Francisco dias Furtado..., 1867].

    do professor com outro de sua autoria, comunicando ao inspetor-geral o nmero de vezes que visitaram a escola e informando sobre o estado da escola e o modo como os professores estavam desempenhando o magistrio (Relatrio..., 1867).

  • o ensino da escrita, da leitura... 33

    a anlise desses exerccios revela que os alunos estavam em um estgio de desenvolvimento da escrita acima do terceiro nvel de escrita dos alunos de corumb, pois j no precisavam das margens delimita-doras traadas pelo professor para saber onde iniciar a escrita no papel. isso demonstra que j sabiam escrever, utilizando o papel adequadamente e respeitando a margem para o incio da escrita, mesmo ela no estando indicada no papel.

    o exerccio do aluno Francisco dias Furtado tambm comprova que, por falta de compndios, os professores se utilizavam de cartas, recibos e atestados, entre outros, como material didtico para servir de modelo aos alunos.

    Quanto ao ensino da gramtica, verificamos um registro concernente matria no mapa geral dos alunos da Escola Pblica de instruo Pblica da Freguesia de so Jos do duro, de 1869, regida pelo professor Joaquim Pereira de sousa (Mapa geral..., 1869). Entretanto, no encontramos nenhum documento que permitisse analisar como o professor ensinava a gramtica nas escolas de primeiras letras.

    O ensino da leitura e outros contedos curriculares

    o contedo do ensino da leitura nas escolas de primeiras letras estabelecido pela legislao educacional, no perodo entre 1835 e 1887, pode ser verificado no Quadro 2, que se segue:

    Nas aulas de leitura, difundiam-se conhecimentos gerais e de for-mao cvico-religioso-moral. a leitura constitua-se de recitativos de provrbios e mximas. as autoridades educacionais introduziram nos programas das escolas de primeiras letras conversao e leituras morais e exemplificao das virtudes comparativamente com os vcios, visando levar o aluno a pr a moral em ao pela observao individual dos caracteres, pela aplicao inteligente da disciplina escolar como meio educativo, pelo incessante apelo ao sentimento e juzo prprio do alu-no, pelo desenvolvimento dos preceitos e superties grosseiras e pelo ensinamento tirado dos fatos observados pelo prprio aluno (decreto n. 26, de 23 de dezembro de 1893, Programa de Ensino da Reforma Jos igncio Xavier Brito, apud silva, 1975, p. 152).

  • 34 revista brasileira de histria da educao n 18 set./dez. 2008

    Quadro 2 contedo do ensino de leitura nas escolas primrias masculinas e femininas em Gois, entre 1835 e 1887

    LEGisLao EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o Grau

    Lei n. 13, de 1835 Ler Ler Ler

    Resoluo n. 14, de 1846

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNasLer. Preferncia para da leitura a constituio do imprio e da histria do Brasil

    Regulamento de 1856

    EscoLas MascuLiNas FEMiNiNasLeitura

    Regulamento de 1869 Leitura

    Regulamento de 1884

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o Grau 2o GrauLeitura Leitura

    Regulamento de 1886

    EscoLas MascuLiNas FEMiNiNasElementar: lerEfetivas:1a Entrncia: ler2a Entrncia: leitura3a Entrncia: no faz nenhuma referncia sobre o ensino da leitura

    Regulamento de 1887

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o Grau 2o GrauLeitura Leitura

    o contedo de histria e geografia do Brasil, previsto na legislao educacional e expresso no Quadro 2, no se consubstanciou na distri-buio das disciplinas em divises estanques, com livros especficos para cada ramo do conhecimento. tais contedos estavam contidos nos livros de leitura, isto , os livros de leitura traziam, na forma de lies dialogadas, noes de histria, geografia do Brasil, cincias naturais, aritmtica, civilidade e instruo moral e cvica. Por isso, nos mapas das aulas pblicas da instruo primria no h nenhuma anotao dos professores sobre tais contedos, tampouco sobre o contedo de deveres domsticos, economia domstica e trabalhos de agulhas. No entanto, nos exames anuais, as alunas eram avaliadas em trabalhos de agulha.

  • o ensino da escrita, da leitura... 35

    Quadro 3 outros contedos do ensino das escolas primrias masculinas e femininas em Gois, entre 1835 e 1887

    LEGisLaoEscoLas

    MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas

    1o Grau 2o Grau 1o GrauLei n. 13, de 1835

    Noes gerais dos deveres domsticos

    Regulamento de 1856

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas

    Economia domsticaRegulamento de 1869 trabalhos de agulhas

    Regulamento de 1884

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas

    1o Grau 2o Grau 1o Grau 2o Grau

    Noes de histria e geografia do Brasil

    Economia domstica

    Noes de histria e geografia do Brasil, trabalhos de agulhas e economia domstica

    Regulamento de 1886

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas

    Elementar: Elementar: trabalhos de agulhaEfetivas:1a Entrncia:

    Efetivas:1a Entrncia: trabalhos de agulhas

    2a Entrncia: 2a Entrncia: trabalhos de agulhas 3a Entrncia: histria do Brasil

    3a Entrncia: histria do Brasil e trabalhos de agulhas

    Regulamento de 1887

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o Grau 2o Grau

    Histria e geografia do Brasil, com especialidade na/da provncia de Gois

    trabalhos de agulhas

    Histria e geografia do Brasil, com especialidade na/da provncia de Gois e trabalhos de agulha

    os professores das escolas de primeiras letras em Gois, durante o sculo XiX, ensinavam a leitura pelo mtodo sinttico. Esse mtodo

  • 36 revista brasileira de histria da educao n 18 set./dez. 2008

    apresentava duas subdivises: a soletrao e a silabao. Pelo mtodo de soletrao, iniciava-se o estudo pelas letras do alfabeto, depois as slabas e, em seguida, as palavras e finalmente as sentenas. Pelo mtodo da silabao, comeava-se pelo ensino das slabas e, a partir da, seguia-se o mesmo procedimento do mtodo sinttico por soletrao (silva, 1975; carvalho, 1998).

    Em Gois, durante o perodo estudado (1835-1893), verificamos que os professores adotaram o mtodo sinttico por soletrao. a anlise de diversos mapas das aulas pblicas de vrios professores permite fazer essa afirmao, com certa margem de segurana, porque nesses mapas, no campo destinado ao registro do gro de instruco do alumno na atualidade, temos as seguintes anotaes: L alphabeto ou l abc; l syllabas, l cartas de nomes, l soletrado, l soffrivelmente, l e l bem. isso indica uma seqncia progressiva do ensino da leitura, primeiro do alfabeto, depois as slabas e, em seguida, as cartas de nomes. Por fim, a leitura corrente das sentenas.

    Nas escolas em Gois, ensinava-se a leitura por meio de caracteres impressos e manuscritos. Para a leitura dos manuscritos, utilizavam-se cartas e abc tambm denominados de silabrios, ou cartilhas manus-critas feitas pelos professores. Na falta de cartilha impressa, usavam-se cadernos e livros impressos em letras manuscritas. o objetivo da leitura de cartas escrita mo era familiarizar o aluno com os diferentes tipos de letras. Pois, a pessoa que no soubesse ler diferentes tipos de letras era sem dvida considerada uma pessoa de pouca leitura, que entrou para e escola e no aprendeu nada (silva, 1975).

    silva (1975) preleciona como deveria ser o uso dos livros de leitura:

    a leitura do Primeiro Livro vinha, logo a seguir, da carta de aBc, quando a criana se mostrasse apta nos exerccios de alfabetizao. do Primeiro, passava-se ao segundo Livro, deste ao terceiro e assim, suces-sivamente, at o Quinto. Findo este, estaria terminado o curso primrio, pois, at os primeiros decnios do sculo atual, [sculo XX] o rendimento escolar media-se pela capacitao na leitura, aquilatando-a pelo livro que o aluno estivesse lendo. Na transferncia de um livro a outro, dispensavam-se, geralmente, as provas, exames ou quaisquer atribuio de notas. a opinio

  • o ensino da escrita, da leitura... 37

    do professor e o seu critrio eram suficientes. Esta sistemtica, somada ao valor que se atribua aos exerccios de leitura, aplicada em relao ao nvel cultural de algum [p. 149].

    Entretanto, os estudos sobre os usos de livros de leitura no sculo XiX demonstram que eram poucos os livros de leitura graduada, mais raros ainda os que atingiam o 5 livro.

    o relato de cora coralina, sobre as aulas de leitura na escola de mes-tra silvina9 na cidade de Gois, menciona apenas o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto livro de leitura de ablio cezar Borges:

    [...]Lia alto lies de rotina:o velho abecedrio,lio salteada.aprendia a soletrar.Vinham depois:Primeiro, segundo,terceiro e quarto livros do erudito pedagogoablio cezar Borges Baro de Macabas.E as mximas sapientes do Marqus de Marica [coralina, 2003, pp. 61-62].

    Na escola pblica de Bomfim, regida pela professora Luiza catarina Leal, havia apenas um livro: histria de Simo de Nantua, que passava de aluno para aluno. cada aluno lia um trecho das lies de simo de Nantua, que diziam, por exemplo: pedra que gira no ajunta musgo; s verdadeiramente pobre quem deseja mais do que tem; a ociosidade e a

    9. silvina Ermalinda Xavier de Brito, mestra silvina, foi nomeada professora da aula feminina de primeiras letras da capital da provncia em 1866 (Correio Official de Goyaz, 4 maio 1866). segundo o relato de cora coralina no final do sculo XiX ela ainda exercia o magistrio, uma vez que a poetisa nasceu em 1889, e provavelmente freqentou a escola de mestra silvina na segunda metade dos anos 90 do sculo XiX.

  • 38 revista brasileira de histria da educao n 18 set./dez. 2008

    preguia so os males da sade e da felicidade; o trabalho cura a misria, e a economia impede que ela volte (apud silva, 1975, p. 152).

    a anlise dos mapas das escolas pblicas da provncia de Gois, durante todo o perodo imperial, possibilitou verificar que, apesar das alteraes estabelecidas para o ensino da leitura, no houve uma ruptura na forma de organizar a sala de aula para esse ensino. os professores, em diferentes momentos histricos e diferentes localidades da provn-cia, estabeleciam a mesma prtica, ou seja, dividiam as aulas em vrias classes, de acordo com os variados estgios de desenvolvimento da leitura dos alunos.

    o mapa trimensal de 1o de fevereiro a 30 de abril de 1856, da Escola de instruo Primria de 1o grau da vila de traras, regida pelo professor Joo lvares da silva, revela que dos 23 alunos matriculados um sabia o alfabeto; trs as slabas; sete alunos liam cartas de nomes; quatro alunos liam soletrado, e oito sabiam ler (Mapa trimestral..., 1856). Nessa aula, havia cinco classes de ensino de leitura.

    o mapa geral dos alunos da escola pblica do sexo masculino da parquia de anicuns, regida pelo professor interino Vicente Ferreira Ramos de azevedo, datado de 30 de dezembro de 1864, revela que a aula era composta por 29 alunos e estes encontravam-se em diferentes estgios no desenvolvimento da leitura. um aluno foi classificado em estado completo, ou seja, sabia ler, escrever, fazer as quatro operaes de aritmtica e dominava a doutrina crist. Quatorze alunos liam slabas, dois liam cartas de nomes, um lia sofrivelmente e onze alunos sabiam ler (Mapa geral da aula pblica de anicuns..., 1865). Pelo mapa mensal de setembro de 1885 dos alunos da aula pblica da freguesia de Nossa senhora do Rosrio da Barra, municpio de Gois, regida pelo professor interino Luiz Francisco Gonzaga, constata-se que, naquele ano, havia 11 alunos, dos quais um lia, seis liam cartilha, trs liam cartas de nomes e um lia bem (Mapa mensal da aula pblica..., set. 1885).

    O ensino de aritmtica

    o Quadro 4 indica o contedo de aritmtica estabelecido pela legis-lao educacional em Gois, no perodo entre 1835 e 1887.

  • o ensino da escrita, da leitura... 39

    Quadro 4 contedo do ensino de aritmtica nas escolas primrias masculinas e femininas em Gois, entre 1835 e 1887

    LEGisLao EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o Grau

    Lei n. 13, de 1835

    Prtica das quatro operaes aritmticas

    aritmtica at as propores

    Prtica das quatro operaes aritmticas

    Resoluo n.14, de 1846

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNas

    Quatro operaes de aritmtica, fraes decimais, propores

    Regulamento de 1856

    EscoLas MascuLiNas FEMiNiNasRegras elementares da aritmtica, teoria e prtica das quatro operaes sobre os nmeros inteiros, fraes ordinrias e decimais e as propores e os sistemas mais usuais de pesos e medidas

    Regulamento de 1869

    aritmtica, compreendendo o sistema de pesos e medidas adotado no imprio

    Regulamento de 1884

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNas

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNas

    1o Grau 2o Grauaritmtica, operaes de nmeros inteiros, fracionrios, sistemas decimais, sistema legal de pesos e medidas

    aritmtica, operaes de nmeros inteiros, fracionrios, sistemas decimais, sistema legal de pesos e medidas, aritmtica at regra de trs simples

    Regulamento de 1886

    EscoLas MascuLiNas FEMiNiNasElementar: tabuada, prtica das quatro operaes sobre nmeros inteiros, pesos e medidas mtricasEfetivas:1a Entrncia: tabuada, prtica das quatro operaes sobre nmeros inteiros, decimais e fracionrios e sistema mtrico2a Entrncia: tabuada, prtica das quatro operaes sobre nmeros inteiros, decimais e fracionrios e complexos, regra de trs e juros simples e sistema mtrico3a Entrncia: aritmtica e metrologia

    Regulamento de 1887

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNas

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNas

    1o Grau 2o Grauaritmtica, teoria e prtica at os decimais, sistema mtrico decimal

    aritmtica, teoria e prtica at os decimais, sistema mtrico decimal, aritmtica terica e prtica at a regra de trs simples

  • 40 revista brasileira de histria da educao n 18 set./dez. 2008

    o passo inicial do ensino da aritmtica era a aprendizagem isolada dos nmeros, concomitantemente com os primeiros exerccios da escrita, como mostramos anteriormente. aps a aprendizagem dos nmeros e da sua escrita, passava-se ao estudo da tabuada, que era cantada em coro; aps esse estudo, seguia-se o ensino das quatro operaes aritmticas. as operaes aritmticas eram feitas nas lousas.

    a aprendizagem da tabuada dava-se cantando em coro, como j dis-semos, com o ritmo do canto acompanhado pelo movimento compassado das pernas. a sonoridade do canto da tabuada, na regio de santa Luzia, era para a tabuada de somar: um e um dois; dois e dois quatro; trs e trs seis (silva, 1975, p. 169); para a tabuada de multiplicar: trs vez nada, nada; trs vez um, trs; trs vez dois, seis; trs vez trs, nove, nos fora nada (idem, ibidem). Na escola de Bomfim, o canto da tabuada tinha outro ritmo: tabuada de somar: um e um dois, um e dois trs, um e trs quatro (idem, ibidem).

    as aulas de aritmtica eram marcadas pelo argumento10. as escolas de Gois, de modo geral, destinavam os dias de quarta-feira e sbado para o argumento.

    segundo cora coralina (2003, pp. 62-63), na escola de mestra silvina:

    No se usava quadro-negro.as contas se faziam em pequenas lousasindividuais[...]tinha dia certo de argumento[...]cantava-se em coro a velha tabuada.

    10. [...] Por argumento entendia-se o processo de verificao da aprendizagem do rendimento escolar, em geral. [...] o argumento [...] no era nada mais do que [...] sabatinas ou provas semanais de verificao da aprendizagem. a fora total ou importncia do argumento concentrava-se nas lies de tabuada que, tomadas em salteado, se aprendiam cantando em coro [...] (silva, 1975, p. 167, grifos no original).

  • o ensino da escrita, da leitura... 41

    Rosentina santanna e silva relembra as aulas de aritmtica na escola de mestra inhola, relatando que:

    a tabuada nos sbados, no segundo perodo das aulas, era cantada em coro em altas vozes. [...]

    No horrio da matemtica, ouvia-se de longe a repetio em coro: 2 e 1 trs, 2 e 2 quatro, 2 e 3 cinco, e, assim por diante, cantado por dezenas de crianas [apud Brito, 1982, pp. 105-108].

    Na escola de mestre Joaquim, na cidade de Meiaponte, os dias de argumento seguiam a mesma sistemtica das escolas anteriormente mencionadas: s quartas e sbados, argumento: cinco vezes cinco? oito vezes nove? (Jayme, 1971, p. 227).

    Quanto ao ensino das quatro operaes aritmticas, a documentao localizada indica que ele era ministrado em sala de aula, mas no apre-senta indcios suficientes para descrever como os professores ensinavam essas operaes.

    O ensino de doutrina religiosa

    o Quadro 5 apresenta o contedo de doutrina religiosa estabelecida pela legislao educacional em Gois, no perodo entre 1835 e 1887.

    o ensino religioso englobava a doutrina crist, noes gerais dos de-veres morais e religiosos e catecismo. Nos mapas das aulas, os professores registravam apenas se os alunos sabiam ou no doutrina religiosa e, s vezes, especificavam se os estudantes dominavam ou no o catecismo.

    o presidente da provncia, Francisco Janurio da Gama cerqueira, em um relatrio de 1858, critica a educao religiosa ministrada nas es-colas primrias, dizendo: toda educao religiosa consiste no decrar, muitas vezes materialmente, um compendiosinho de doutrina christ (Relatrio..., 1858, p. 5).

    segundo cora coralina, na escola de mestra silvina, no tempo em que foi aluna, o ensino de doutrina crist era ministrado pelo frei Germano.

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    Quadro 5 contedo do ensino de doutrina religiosa nas escolas primrias masculinas e femininas em Gois, entre 1835 e 1887

    LEGisLao EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o GrauLei n. 13, de 1835 doutrina crist

    Noes gerais dos deveres religiosos

    doutrina crist, noes gerais dos deveres morais e religiosos

    Resoluo n. 14, de 1846

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNasPrincpios de moral crist e doutrina da religio catlica apostlica romana

    Regulamento de 1856

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNascatecismo e explicaes sobre os dogmas fundamentais da religio e doutrina crist e as principais oraes

    Regulamento de 1869 doutrina crist

    Regulamento de 1884

    EscoLas MascuLiNas EscoLas FEMiNiNas1o Grau 2o Grau 1o Grau 2o Grauinstruo moral e religiosa

    Regulamento de 1886

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNasElementar: catecismoEfetivas:1a Entrncia: catecismo2a Entrncia: catecismo3a Entrncia: catecismo e histria bblica

    Regulamento de 1887

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNas

    EscoLas MascuLiNas E FEMiNiNas

    1o Grau 2o GrauEducao religiosa e doutrina crist

    Educao religiosa e doutrina crist, catecismo

    um dia - inda me lembro: [Frei Germano]apareceu sem avisarna escolinha [...]da Mestra silvina [...]Muito manso,muito humilde,se fazendo de pequenino,

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    props Mestraem dia certo da semana, ensinar a doutrina meninada.

    cinqenta anos decorridos,guardo na lembranasua figura austera,[...]E as lies aprendidasdo pequeno catecismo.como prmio de aplicaoconservo daquele tempo,recebido de suas mos,uma antiga Histria sagradae uns santinhos que me tm validona aflio [2003, pp. 58-59].

    conforme o relato de Rosentina santanna e silva, na escola de mestra inhola, a instruo religiosa ficava a cargo de frei Germano. Este, durante as aulas, costumava perguntar s crianas se elas queriam ir para o cu ou para o inferno. Quando algum aluno mais ousado respondia que queria ir para o inferno, [...] Frei Germano arregalava os grandes olhos e fazia um gesto de desaprovao [...] (apud Brito, 1982, p. 106).

    Mestra inhola exigia dos alunos a prtica dos deveres religiosos. Na aula, os estudantes rezavam todos os dias, no incio e no fim do perodo escolar, e cantavam cnticos religiosos. todos sabiam de cor os deveres dos cristos: os dez Mandamentos da Lei de deus, os dogmas da f, os pecados mortais e os venais, os vcios capitais e muitas outras obrigaes impostas pelo catolicismo (silva apud Brito, 1982, p. 106).

    de acordo com Rosentina santanna e silva (apud Brito, 1982, p. 106), mestra inhola preparava a cada ano a primeira comunho dos alunos em sua escola. durante muitos anos, frei Germano foi quem celebrou a solenidade da primeira eucaristia dos alunos de mestra inhola.

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    Na escola masculina de Meiaponte, regida pelo mestre Joaquim, o ensino da doutrina religiosa era ministrado todos os dias, nos final das aulas. o professor encerrava a aula com oraes, segundo o relato de um ex-aluno da escola. sada das aulas, depois da orao (Bendito e louvado seja o ss. sacramento etc...) [...] (Jayme, 1971, p. 227).

    Concluso

    sabemos que h um espao das aes autorizadas/prescritas institucio-nalmente e um espao das aes investidas pelos docentes as dinmicas pessoais, o espao de ao que cada docente se autoriza que definido pelos seus gestos, atitudes, palavras e registros produzidos de seus atos.

    os critrios das escolhas pedaggicas dizem respeito ao que cada docente avalia como satisfatrio ou racionalmente realizvel em sua classe ou sala de aula. uma forma de selecionar os meios de ensinar mais eficazes e cmodos.

    Nesses termos, esta pesquisa possibilitou-nos evidenciar algumas aes colocadas em prtica pelos professores no exerccio do magistrio que no foram previstas de forma explcita pela legislao para o ensino da leitura, escrita, clculo e doutrina religiosa.

    Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas pelos professores de primeiras letras da provncia de Gois (falta de material didtico, o que os obrigava a improvisar; ausncia de formao para o magistrio; baixos vencimentos; alunos pouco assduos; prdios escolares inadequados, entre outros problemas) eles conseguiam manter a ordem e a disciplina em sala de aula e fazer com que seus alunos aprendessem a escrever, ler, calcular e adquirir noes de doutrina religiosa.

    Referncias bibliogrficas

    1. Livros, captulos de livros e artigos

    Bretas, G. F. histria da instruo pblica em Gois. Goinia: Cegraf-uFG, 1991. (col. documentos Goianos, 21.)

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    Brito, c. c. s. de. A mulher, a histria e Gois. 2. ed. Goinia: s.ed., 1982.

    Carvalho, s. a. s. de. O ensino da leitura e da escrita: o imaginrio republicano (1890-1920). dissertao (Mestrado em Educao) Programa de Ps-Graduao em Educao: Histria e Filosofia da Educao, Pontifcia universidade catlica de so Paulo, so Paulo, 1998.

    Chartier, R. Os desafios da escrita. trad. Fulvia M. L. Moretto. so Paulo:Unesp, 2002.Coralina, c. Poemas dos becos de Gois e estrias mais. 21. ed. so Paulo: Global, 2003.

    ferreira, a. B. de H. Dicionrio Aurlio bsico da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

    foUCaUlt, M. Vigiar e punir: nascimento da priso. trad. Raquel Ramalhete. 29. ed. Petrpolis: Vozes, 2004.

    Jayme, J. Esboo histrico de Pirenpolis. Ed. pstuma. Goinia: Ed. da uFG, 1971.

    pinto, L. M. da s. Diccionario da lngua brasileira. 1832. Ed. fascsimilada. Goinia: sociedade Goiana de cultura/instituto de Pesquisas e Estudos Histricos do Brasil central/centro de cultura Goiana, 1996.

    siLVa, N. R. de a. Tradio e renovao educacional em Gois. Goinia: oriente, 1975.

    2. Legislao

    regUlamento de instruo da Provncia de Gois, 1884. ato n. 3.397, 9 abr. 1884. arquivo Histrico Estadual de Goinia. caixa: Regulamentos.

    regUlamento de instruo da Provncia de Gois, 1886. ato, 2 abr. 1886. arquivo His-trico Estadual de Goinia. caixa: Regulamentos.

    regUlamento de instruo da Provncia de Gois, 1887. ato n. 4.148, 11 fev. 1887. arquivo Histrico Estadual de Goinia. caixa: Regulamentos.

    2.1. Livro da Lei Goyana de1835 a 1860 e colleco das Leis da Provincia de Goyaz de 1861 a 1888

    acto n. 26, 1862. declara obrigatrio o ensino de instruo pblica. Colleco das Leis da Provincia de Goyaz. Goyaz: typographia Provincial, t. 28, 1863.

    Lei n. 13, 1835. Primeira Lei Goiana de instruo Pblica. Livro da Lei Goyana. Meya-ponte: typographia Provincial, t. 1, 1835.

    Regulamento de instruo Pblica e Particular da Provncia de Gois, 1869. Colleco das Leis da Provincia de Goyaz. 1869. Goyaz: typographia Provincial. t. 35.

    Resoluo n. 14, 1846. altera a lei n. 13 de 1835. Livro da Lei Goyana. Goyaz: typo-graphia Provincial, t. 12, 1846.

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    3. Relatrios

    relatrio do presidente da provncia de Gois, Jos Rodrigues Jardim. 1835. apre-sentado assemblea Legislativa e Goyaz na sesso ordinria de 1835. Meyaponte: typographia Provincial, 1835. disponvel em: . acesso em: 20 jan. 2003.relatrio do vice-presidente da provncia de Gois, Francisco Ferreira dos santos azevedo. discurso com que o Vice-Presidente da Provincia de Goyaz fez a abertura da 1a sesso ordinria da 5a legislatura da assemblea Provincial em 1843. Goyaz: typographia Provincial. disponvel em: . acesso em: 20 jan. 2003.relatrio do presidente da provncia de Gois, Jose de assiz Mascarenhas.1845. apre-sentado assemblea Legislativa de Goyaz na sessa ordinria de 1845. typographia Provincial de Goyaz. sociedade Goiana de cultura. instituto de Pesquisas e Estudos Histricos do Brasil central. centro de cultura Goiana. Relatrios dos governos Provncia de Goyaz de 1845-1849: relatrios polticos, administrativos, econmicos, religiosos etc. Goinia: Ed. da ucG, 1996. (col. Memrias Goianas, 4.)relatrio do presidente da provncia de Gois, Joo Bonifcio Gomes de siqueira, 1857.

    relatrio do presidente da provncia de Gois, Francisco Janurio da Gama cerqueira. 1858. apresentado assemblea Legislativa de Goyaz na sesso ordinria de 1858. typographia Goyazense. sociedade Goiana de cultura. instituto de Pesquisas e Estudos Histricos do Brasil central. centro de cultura Goiana. Relatrios dos governos da Provncia de Goyaz de 1856-1859: relatrios polticos, administrativos, econmicos, religiosos etc. Goinia: Ed. da ucG, 1997. (col. Memrias Goianas, 7.)relatrio do presidente da provncia de Gois, Jose Vieira couto de Magalhes. 1864. apresentado assemblea Legislativa de Goyaz na entrega da Presidncia da mesma a Joo Bonifcio Gomes de siqueira. Goyaz: typographia Provincial. sociedade Goiana de cultura. instituto de Pesquisas e Estudos Histricos do Brasil central. centro de cultura Goiana. Relatrios dos governos Provncia de Goyaz de 1864-1870: relatrios polticos, administrativos, econmicos, religiosos etc. Goinia: Ed. da ucG, 1998. (col. Memrias Goianas, 10.)relatrio do presidente da provncia de Gois, augusto Ferreira Frana. 1867. apresentado assemblea Legislativa de Goyaz na entrega da Presidncia da mesma a Joo Bonifcio de siqueira em 29 de abril de 1867. Goyaz: typographia Provin-cial. sociedade Goiana de cultura. instituto de Pesquisas e Estudos Histricos do Brasil central. centro de cultura Goiana. Relatrios dos governos Provncia de Goyaz de 1864-1870: relatrios polticos, administrativos, econmicos, religiosos etc. Goinia: Ed. da ucG, 1998. (col. Memrias Goianas, 10.)

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    relatrio do presidente da provncia de Gois, Fulgncio Firmino simes. 1888. apresentado assembla Legislativa de Goyaz na entrega da Presidncia da mesma ao 2o Vice-Presidente Brigadeiro Felicssimo do Esprito santo. 1888. Goyaz: tipo-graphia Provincial. sociedade Goiana de cultura. instituto de Pesquisas e Estudos Histricos do Brasil central. centro de cultura Goiana. Relatrios dos governos Provncia de Goyaz de 1882-1889: relatrios polticos, administrativos, econmicos, religiosos etc. Goinia: Ed. da ucG, 2001. (col. Memrias Goianas, 14.)

    4. Documentos manuscritos

    4.1. documentos manuscritos avulsos do arquivo Histrico Estadual de Goinia

    ano: 1856 caixa: 116

    Mapa trimensal de 1o de fevereiro a 30 de abril de 1856, da escola p-blica de 1o grau, da vila de traras, regida pelo professor Joo lvares da silva.

    ano: 1864 caixa: 157

    Mapa da aula primria do arraial da santa Maria, regida pelo professor vitalcio, Joaquim antonio cardoso, em 8 de abril de 1864.

    ano: 1865 caixa: 163

    Mapa geral da aula pblica de anicuns, regida pelo professor, Vicente Ferreira Ramos de azevedo, em 30 de dezembro de 1864.

    ano: 1867 caixa: 178

    Exerccio do aluno Jos Rodrigues Pedreira, da aula pblica de Porto imperial, regida pelo professor olympio dias Furtado.

    Exerccio do aluno Francisco dias Furtado, da aula pblica de Porto imperial, regida pelo professor olympio dias Furtado.

    termo de exame de alunos da aula pblica do arraial de campinas, em 14 de dezembro de 1867.

    ano: 1869 caixa: 188

    Mapa geral dos alunos da Escola Pblica de instruo Pblica da Fre-guesia de so Jos do duro, regida pelo professor Joaquim Pereira de sousa, 1869.

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    caixa: Municpio de Buenolndia/Barra: 1850-1891

    Mapa mensal da aula pblica da freguesia de Nossa senhora do Rosrio da Barra, do ms de abril de 1885.

    Mapa mensal da aula pblica da freguesia de Nossa senhora do Rosrio da Barra, do ms de maro de 1885.

    Mapa mensal da aula pblica da freguesia de Nossa senhora do Rosrio da Barra, do ms de maio de 1885.

    Mapa mensal da aula pblica da freguesia de Nossa senhora do Rosrio da Barra, do ms de setembro de 1885.

    4.2. documento manuscrito avulso do instituto de Pesquisa e Estudos Histricos do Brasil central

    coleo de escritas dos alunos da aula pblica de corumb, de 1841.

    4.3. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

    Regulamento de instruo Primria, 1856.

    Endereo para correspondncia:sandra Elaine aires de abreu

    Rua Pedro Brs de Queirs, 60Jundia anpolis-Go

    cEP 75110-780E-mail: [email protected]

    Recebido em: 26 jun. 2007 aprovado em: 1 out. 2007