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84  n setembro De 2011 n  PESQUISA FAPESP 187

Resistência civile dilemas da cultuRa

Pesqus exprs fs psçã eeu regme mr O

conceito de resistência cultural oi uma espéciede guarda-chuva comum da produção artística ecultural das oposições ao regime militar brasileiro.Abrigou uma série de matizes e composições cujadinâmica ainda hoje demanda pesquisa e defniçõesmais precisas. Depois de vários estudos sobre as ar-ticulações e paradoxos entre engajamento político e

indústria cultural, sobretudo nos campos da música populare da produção audiovisual, o historiador Marcos Napolitano,proessor da Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Huma-nas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), acaba dedeender sua tese de livre-docência sobre as políticas culturaisnascidas ou desenvolvidas no seio dessa cultura de oposição

durante o período mais característico do ciclo autoritário.A tese tem o título de Coração civil: arte, resistência e lutasculturais durante o regime militar brasileiro (1964-1968) eresultou de um projeto de pesquisa realizado com o apoiodo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científco e Tec-nológico (CNPq). A expressão “coração civil” já havia sidousada pelo autor em seus estudos sobre a MPB para aludira um sentimento de oposição que permeava a produçãocultural, hegemonicamente de esquerda, assim como suaruição e valorização por uma classe média escolarizada. Osdilemas e contradições da cultura, principalmente das obrasartísticas, expressavam “também os dilemas e contradiçõesdessa mesma resistência civil”.

Márcio Ferrari

[ ciência Política ]

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PESQUISA FAPESP 187  n setembro De 2011 n 85 

Em seu novo estudo, Napolitano analisa as políticas eações culturais de quatro correntes da resistência cultural aoregime: comunistas (aí entendidos os intelectuais ligados aoPartido Comunista Brasileiro – PCB), católicos, liberais e mo-vimentos contraculturais. O autor trabalhou como hipótesecentral com a percepção de que uma aliança estratégica entreliberais e comunistas produziu o conceito dominante de resis-tência cultural, que entrou em confito com os movimentosligados à Igreja Católica e as tendências contraculturais.

As duas últimas tendências, ainda que muito desseme-lhantes em vários sentidos, tinham em comum uma posturaradicalmente crítica em relação a alguns pilares da culturatradicional de esquerda. Napolitano destaca, sobretudo, entre

esses pilares, a participação do artista de oposição no grandemercado produtor de bens simbólicos, a estética realista apoia-da numa “hierarquia cultural legitimada pelas instituições” eo “papel do intelectual como mediador central da cultura”. Oprimeiro ponto oi ilustrado, e já na época intensamente dis-cutido, pela migração de dramaturgos ligados ao PCB (comoDias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho) para a Rede Globo, noinício dos anos 1970. E as duas outras instâncias de confitodiziam respeito à questão crucial de como alar em nome dasclasses populares e se isso era possível e legítimo. Napolitanosublinha que, nesse aspecto, as críticas ormuladas pela es-querda católica e a contracultura eram bastante dierentes.Enquanto a primeira deendia “uma cultura basista, amadora

Artistas durante

manifestação

contra a ditadura

arquivo O Gl

ObO

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e comunitária”, a última propunha“uma cultura sectária, experimental etransgressora”. Ambas procuravam sedistanciar, ou pelo menos os questionar,dos espaços e instituições convencio-nais de produção e consumo cultural.

Exemplos disso oram o teatro de peri-eria, o cinema marginal e certa eiçãodo tropicalismo, que arontavam o bomgosto e a arte conceitual, exercida orados circuitos de galerias e museus.

Napolitano vê seu estudo, em par-te, como uma retomada de temas“bem estabelecidos pela historio-

grafa da cultura brasileira”, mas comum importante elemento novo. “Agrande lacuna, na minha opinião, é otema das políticas culturais ligadas à

nova esquerda, ormada por socialistasdemocráticos, dissidências leninistas,movimentos sociais de base, esquerdacatólica, entre outros”, diz o historiador.“O que z no meu trabalho oi, basica-mente, cotejar as análises já propostascom novas ontes e novas perspectivas,analisando sobretudo a visão e o papelda cultura para cada grande grupo ideo-lógico da oposição ao regime.” Entre osintelectuais que se dedicaram ao estudodas lutas culturais entre comunistas econtracultura, Napolitano cita Roberto

Schwarz, Heloisa Buarque de Hollanda eCelso Favaretto. O estudo dos liberais, aíentendidos “os grupos ligados aos em-presários da cultura e da imprensa”, oi,lembra ele, mapeado por autores queanalisaram a indústria cultural, comoRenato Ortiz e Sergio Miceli.

Nos trabalhos que vem realizandodesde pelo menos seu doutorado, com atese Seguindo a canção: engajamento po-lítico e indústria cultural na trajetória damúsica popular brasileira – 1959/1969  (publicada em livro pela Annablume/

FAPESP em 2001), Napolitano ressal-ta também a importância da obra Embusca do povo brasileiro (editora Record,2000), do historiador Marcelo Riden-ti, em explorar a relação entre cultura,ideologia e política. O livro estuda oimaginário de artistas e intelectuais deesquerda embasados nas classes mé-dias, principalmente nos anos 1960. Oautor caracteriza esse imaginário comoperpassado por uma categoria super-dimensionada do “povo”, sendo umamaniestação tardia do “romantismo

revolucionário”. “Tratava-se de umaaposta nas possibilidades da revoluçãobrasileira, que permitiria realizar as po-tencialidades de um povo e de uma na-ção”, diz Ridenti, proessor da Unicampe coordenador de Ciências Humanas eSociais da FAPESP. “Recuperavam-se asrepresentações da mistura do branco,do negro e do índio na constituiçãoda brasilidade, tão caras, por exemplo,ao pensamento de Gilberto Freyre. Sóque agora não mais no sentido de jus-ticar a ordem social existente, mas de

A cultura na

passeata dos

100 mil (acima);

ao lado, ensaio

da peçaRoda-viva

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questioná-la. O Brasil não seria aindao país da integração entre as raças, daharmonia e da elicidade do povo por-que isso estaria interditado pelo poderdo latiúndio, do imperialismo e, nolimite, do capital.”

Nesse contexto, as questões estra-

tégicas das propostas de políticacultural que Napolitano estudou

em sua tese de livre-docência – baseadoexclusivamente em ontes textuais deépoca – têm como ponto de reerênciaincontornável “as ‘rentes culturais’ deresistência, quase sempre deendidaspelos comunistas, com o apoio de seto-res liberais em alguns momentos”. “Essaaliança estava pautada por um conceitode cultura brasileira e ação cultural queoi questionado pelos grupos contra-culturais e, sob outra ótica, pela nova

esquerda, que a partir de 1980 se aglu-tinaria no PT”, diz Napolitano.

Pela importante presença dos qua-dros ligados ao PCB na vida culturalbrasileira, o estudo da produção in-telectual do período militar não po-de prescindir de um recuo às décadasanteriores. Se o partido, nas palavrasdo sociólogo Rodrigo Czajka, “não ti-nha importância decisória desde 1947,quando oi posto na clandestinidade”,houve uma reconguração da linha derente intelectual na década seguinte,quando o comunismo internacionalpassava por uma crise, “e esses intelec-tuais e artistas iniciaram um processode inserção em diversos espaços daprodução cultural brasileira”.

Miceli, proessor titular do Depar-tamento de Ciências Sociais da FFLCH-USP e autor de obras clássicas comoIntelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), vê a cooptação pelo po-der como uma constante histórica nacultura do país. “Ao contrário do que

se passou na Argentina e no Chile, oregime militar brasileiro não desmon-tou os alicerces institucionais da vidaintelectual, como a universidade públi-ca, o sistema editorial, as entidades cor-porativas etc.”, diz ele. “Por outro lado,a esquerda intelectual, mesmo no mo-mento mais diícil da repressão, jamaisperdeu sua condição de legitimidade,de árbitro em matéria cultural.”

Czajka, que é proessor da Uni-versidade Federal do Vale do Jequi-tinhonha e Mucuri (MG), dedicou

folhaPress

Ao contrário dasditaduras do Chile

e Argentina, a

brasileira não

desmontou alicerces

da vida cultural e

intelectual do país

várias pressões do PCB para que a re-

vista osse integrada ao conjunto depublicações do partido e que o próprioeditor era fliado à agremiação, masnunca revelou isso publicamente.

Àmedida que o regime militar avan-çou, a questão da indústria culturalganhou peso nos debates no in-

terior da cultura de oposição. “Tentodemonstrar que o problema já estavacolocado desde o fnal dos anos 60, masé inegável que a indústria cultural deuum salto qualitativo na direção de um‘sistema’ durante a década seguinte”,observa Napolitano. “O regime militarpromoveu um processo de moderniza-ção autoritária da sociedade brasileira”,diz Ridenti, que ressalta o papel duplodo Estado, como censor e incentivadorda cultura (via, por exemplo, o supor-te ofcial da Embraflme ao cinema,muitas vezes a cineastas de esquerda).“Foi nesse período que se estabeleceua Rede Globo, com incentivos do re-gime, colocando a questão da identi-

dade cultural nacional no âmbito domercado de bens simbólicos.” Napoli-tano não encara essa progressão comouma derrota do ideário de esquerda.“Se havia uma pressão por vezes res-tritiva sobre os produtores e artistas,não podemos esquecer que a chave da‘resistência’ também angariava públicosou consolidava tendências de mercado.Por outro lado, a cultura de oposiçãoteve um papel ormador, uma espéciede educação cívica e sentimental, sobreamplos setores da população.” n

sua tese de mestrado na Unicamp aoestudo da atuação de Ênio Silveira àrente da editora Civilização Brasileirae principalmente da Revista Civiliza-ção Brasileira, no qual pretendeu ex-plorar a complexidade da hegemonia

intelectual da esquerda nos anos 1960.“Ênio reunia em si dois aspectos apa-rentemente contraditórios: militânciae mercado”, diz o sociólogo. “Deste bi-nômio surgem outras questões quesuscitam, por exemplo, a aproximaçãodo PCB de novas ormas de visibili-dade pública. E o mercado, por suavez, acolheu novas linguagens e pos-sibilitou a emergência de novos ato-res sociais.” Como dados adicionaisda ambiguidade da posição da revista,Czajka lembra que Silveira resistiu a