maría v snyder 01 poison study

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D D o o c c e e V V e e n n e e n n o o María V. Snyder Serie Study, 01

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Page 1: María v snyder 01 poison study

DDooccee VVeenneennoo MMaarrííaa VV.. SSnnyyddeerr

SSeerriiee SSttuuddyy,, 0011

Page 2: María v snyder 01 poison study

PPeessqquuiissaa:: JJoo SSllaavviicc

TTrraadduuççããoo :: LLeenniirriiaa SSaannttooss

RReevviissããoo:: LLiieeggee MMaattooss

FFoorrmmaattaaççããoo:: GGrraaccoo

SSéérriiee SSttuuddyy

11 -- DDooccee vveenneennoo

22 –– DDooccee mmaaggiiaa

33 –– DDooccee ffooggoo

SSéérriiee eemm rreevviissããoo ccoomm oo GGrruuppoo RReevviissõõeess ee TTrraadduuççõõeess RRSS && RRTTSS

Page 3: María v snyder 01 poison study

CCoommeennttáárriioo ddaa rreevviissoorraa

GGoosstteeii ddaa hhiissttóórriiaa,, éé eennvvoollvveennttee ee aa ggeennttee ffiiccaa eessppeerraannddoo oo pprróóxxiimmoo

ppaassssoo qquuee eellaa vvaaii ddaarr,, aa pprróóxxiimmaa ccooiissaa qquuee vvaaii aaccoonntteecceerr ccoomm eellaa,, mmaass oo

mmoocciinnhhoo nnããoo éé ttããoo aappaaiixxoonnaannttee ddee pprriimmeeiirraa,, eellee ppaarreeccee mmeeiioo ccaarrrraassccoo nnoo

iinníícciioo,, ee tteemm ppoouuccaass cceennaass ddee bbeeiijjoo.. MMaass éé uummaa hhiissttóórriiaa bbeemm ffaasscciinnaannttee..

LLiieeggee MMaattooss

Page 4: María v snyder 01 poison study

SSiinnooppssee::

Quando estava prestes a ser executada por assassinato, Yelena recebeu uma oferta

extraordinária. Iria comer as iguarias mais deliciosas, viver em um palácio... E correria o risco

de ser assassinada por alguém que tentou matar o comandante de Ixia.

Foi assim que Yelena escolheu se tornar uma provadora de comida. Mas o chefe da

segurança não quis deixar nada ao acaso e decidiu lhe dar de comer Pó de Mariposa...

Yelena precisa ter doses do antídoto diariamente, mas o tempo passa e aumenta a agonia de

morrer por causa do veneno.

Yelena, ao tentar fugir desse dilema começa a passar por desastres. Os rebeldes

planejando se aproveitar da Ixia, e Yelena adquire poderes mágicos que não pode controlar.

Sua vida fica em perigo novamente, então tem que tomar uma decisão mais uma vez, mas

desta vez de conseqüências inesperadas...

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Capítulo 1

Envolta em uma escuridão que me abraçava como um sudário, não tinha nada que

pudesse me distrair de minhas lembranças, vivas imagens que me assaltavam em qualquer

lugar que vagasse minha mente.

Junto a tal negrume, eu recordava ardentes chamas que lambiam meu rosto.

Embora tivessem amarrado minhas mãos a um poste que me cravava com força nas costas,

eu tinha conseguido escapar daquele violento ataque.

O fogo se apartou de mim antes que pudesse me queimar a pele, mas não sem

que me chamuscassem sobrancelhas e pestanas.

—Apaga as chamas! —tinha ordenado uma arruda voz de homem.

Eu soprei com força através dos ressecados lábios. Abrasada pelo fogo e o medo,

tinha perdido toda umidade na boca e os dentes me irradiavam calor como se os tivessem

estado cozinhando em um forno.

—Idiota — amaldiçoou o homem— Não com a boca. Utiliza a mente. Apaga as

chamas com o poder de sua mente.

Fechei os olhos e tratei de centrar meus pensamentos na extinção daquele inferno.

Estava disposta a fazer algo, por muito irracional que pudesse parecer, para conseguir que

aquele homem se detivesse.

— Te esforce um pouco mais.

Uma vez mais, notei como o calor se aproximava de meu rosto. Apesar de que

tinha as pálpebras fechadas, notei como a brilhante luz me cegava.

— Prendam o cabelo — ordenou uma voz diferente. Aquela parecia mais jovem e

mais ansiosa que a do outro, esse homem deveria animá-la. Deixe a mim, pai.

Um intenso medo sacudiu todo meu corpo ao reconhecer aquela voz. Tratei de

soltar as ligaduras que me sujeitavam, consumida em um revolto de sensações, enquanto

meus pensamentos se transformavam em um zumbido. Aquele ruído surdo que me saía da

garganta se foi fazendo cada vez mais forte, até que conseguiu invadir toda a sala e apagar

as chamas.

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O estrondo metálico da fechadura me tirou daquela lembrança de pesadelo. Uma

mortiça luz começou a atravessar a escuridão e viajou ao longo da parede à medida que a

porta se abria. Tanta luz me fez mal aos olhos. Apertei-os com força e me encolhi em um

rincão.

— Te mova rato, ou tiraremos o látego1!

Dois guardiões das masmorras me engancharam uma cadeia ao colar de metal

que tinha ao redor do pescoço e me obrigaram a me pôr de pé. Eu dava um tropeção e senti

uma aguda dor ao redor da garganta. Enquanto me punha de pé sobre minhas trementes

pernas, os guardiões me encadearam as mãos às costas e me puseram uns grilhões nos pés.

Apartei os olhos da cegadora luz da tocha enquanto eles me conduziam pelo

corredor principal das masmorras. Um ar rançoso me golpeou o rosto. Com os pés nus,

avançava pisando em atoleiros de imundícies que preferia não identificar.

Sem fazer caso dos gritos e os gemidos dos outros prisioneiros, os guardiões nem

sequer se alteraram. Eu, pelo contrário, sentia que me detinha o coração com cada palavra.

—Ho, ho, ho... vão pendurar a alguém.

—Crash! Crack! Então, quão último tenha comido te escorrega pelas pernas.

—Um rato menos que alimentar.

—Me levem! Levem-me! Eu também quero morrer.

Detivemo-nos. Através dos olhos meio fechados vi uma escada. Ao realizar o

esforço de colocar o pé sobre o primeiro degrau, tropecei com as cadeias e caí. Os guardiões

me levantaram. As duras bordas dos degraus de pedra me tiraram pedaços da carne, me

levantando a pele de braços e pernas. Depois de que me fizeram passar por duas grossas

portas de metal, jogaram-me no chão. Os raios do sol me feriram os olhos. Fechei-os tão forte

como pude a tempo das lágrimas começarem a rolar pelas bochechas. Era a primeira vez que

via a luz do sol em muitos meses.

Chegou minha hora, pensei. Presa do pânico. Entretanto, o fato de saber que

minha execução terminaria com minha miserável existência nas masmorras me tranqüilizou.

Uma vez mais, me obrigaram a pôr-me de pé. Então, às cegas, segui os guardiões. O corpo

me ardia pelas picadas dos insetos e por dormir sobre a palha suja. Empestada de ratos.

Como só me davam uma pequena ração de água, não a desperdiçava em me lavar.

1 Açoite ou chicote de cordas ou correias

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Quando os olhos me ajustaram à luz, olhei ao meu redor. As paredes estavam

nuas, sem os fabulosos adornos dourados nem as elaboradas tapeçarias com os que me

haviam descrito os principais corredores do castelo. O frio chão de pedra estava muito gasto

no centro. Certamente, avançávamos pelos corredores ocultos que só utilizavam serventes e

guardas. Quando passamos por diante de duas janelas abertas, olhei por elas com uma fome

que nenhum alimento poderia satisfazer. O brilhante verde esmeralda da erva me feria os

olhos. As árvores se cobriam com capas de folhas. As flores emolduravam os atalhos e

adornavam os vasos de barro. A brisa fresca cheirava como um muito caro perfume e a

aspirei com vontade. Depois dos fedores ácidos de excrementos e de meu próprio aroma

corporal, o sabor do ar era como um sorvo de bom vinho. Sua calidez me acariciava a pele,

um contato muito tranqüilizador comparado com a constante umidade da fria masmorra.

Supunha que o verão estava começando, o que significava que tinha estado

encerrada naquela cela durante cinco estações. Só me tinha faltado uma para cumprir um ano

inteiro. Parecia um período de tempo muito longo para alguém a quem se ia executar.

Esgotada pelo esforço de ter que andar com os pés encadeados, conduziram-me

por fim a um espaçoso gabinete. As paredes estavam cobertas de mapas do território da Ixia

e das terras colindantes. Sobre o chão se acumulavam tantos livros que resultava quase

impossível caminhar em linha reta. A sala se iluminava com velas cuja diferente longitude

indicava suas horas de uso. Uma enorme mesa, coberta por completo de documentos e

rodeada por meia dúzia de cadeiras, ocupava o centro da sala. Ao lado oposto do gabinete se

via um homem sentado frente a um escritório. As suas costas, uma janela totalmente aberta,

pela qual atravessava uma brisa que lhe revolvia ligeiramente o longo cabelo.

Eu pus-me a tremer, o que fez com que as cadeias tilintassem. Por isso tinha

podido ouvir das conversações que se produziam entre as masmorras, eu tinha deduzido que

se levava aos prisioneiros ante um oficial para que confessassem seus delitos antes que ser

pendurados.

O homem ia embelezado com umas calças e uma camisa de cor negra. Esta última

tinha bordados dois diamantes vermelhos no pescoço. Aquele uniforme correspondia ao dos

conselheiros do Comandante. O rosto pálido daquele oficial carecia por completo de

expressão. Enquanto aqueles olhos de safira me observavam, pareceram surpreender-se do

que viam.

De repente, fui consciente de meu aspecto. Olhei-me, o puído vestido vermelho da

prisão e os sujos pés nus, endurecidos de amarelados calos. A pele suja se revelava através

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dos farrapos do fino tecido. Meu comprido cabelo negro caía em gordurentas meadas.

Empapada de suor, senti com todo rigor o peso de época como prisioneira.

—Uma mulher? A seguinte prisioneira que vai se executar é uma mulher? —

perguntou aquele homem com voz gélida.

O meu corpo tremeu ao ouvir que ele pronunciava a palavra executar em voz alta.

A calma que me havia possuído até então me abandonou. Se os guardiões não me tivessem

estado sujeitando, eu teria desmoronado sobre o chão para pedir clemência. Os guardiões

atormentavam a todos os que mostravam debilidade.

O homem se atirou do negro cabelo.

—Deveria ter tomado mais tempo para ler seu relatório — disse, fazendo um gesto

com a mão dirigido aos guardiões— Podem partir.

Quando os guardiões saíram, indicou-me que me aproximasse da cadeira que

havia diante do escritório. Com cada um de meus movimentos o ruído das algemas ressonou

na sala.

O oficial abriu uma pasta e examinou as páginas.

—Yelena, hoje poderia ser seu dia de sorte — disse.

Afoguei um comentário sarcástico. Durante minha estadia nas masmorras tinha

aprendido a não replicar. Em vez disso, inclinei a cabeça para evitar o contato visual com

aquele homem.

Ele guardou silêncio durante um momento.

— Com boas maneiras e respeitosa. Está começando a me parecer uma boa

candidata.

A pesar da desordem que reinava no gabinete, o escritório estava muito ordenado.

Além de minha pasta e de alguns utensílios de escritura, sobre a mesa só havia duas

pequenas estátuas negras adornadas de reluzente prata, umas panteras esculpidas com

incrível perfeição.

—Te julgou e te tem culpado do assassinato do Reyad, o único filho do general

Brazell. Isso explica por que Brazell esteve aqui esta semana e por que se mostrou tão

interessado no calendário de execuções — disse o oficial, falando mais consigo mesmo que

comigo.

Ao ouvir o nome do Brazell, o medo se apoderou de mim. Animou-me o fato de

recordar que, muito em breve, estaria fora de seu alcance para sempre.

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O exército do território da Ixia tinha adquirido o poder fazia menos de uma geração,

mas o regime tinha produzido leis muito estritas que se denominavam o Código do

Comportamento. Durante tempos de paz, que, apesar de estar sob o poder militar, era a

constante, uma conduta adequada não permitia matar a ninguém. Se uma pessoa cometia um

assassinato, o castigo era a execução. A autodefesa ou a morte acidental não se

consideravam desculpas aceitáveis. Se decidia-se que era culpado, o assassino era enviado

a uma das masmorras do Comandante à espera de uma execução pública na forca.

—Suponho que vais dizer-me que a sentença foi injusta. Que lhe tenderam uma

armadilha ou que o matou em defesa própria — disse ele, recostando-se na cadeira, como

esperando com uma esgotada paciência.

—Não, senhor — sussurrei. Aquilo foi tudo o que pude dizer pela inatividade de

minhas cordas vocais — Eu o matei.

O homem se incorporou em sua poltrona e me olhou com dureza. Então, lançou

uma gargalhada.

—Isto poderia resultar muito melhor do que eu tinha planejado Yelena. Ofereço-te

uma eleição. Pode ser executada ou te converter na nova provadora de comida do

Comandante Ambrose. Seu último provador faleceu recentemente e precisamos ocupar a

vacante.

Eu o olhei boquiaberta. O coração me saltava no peito. Aquele homem devia estar

brincando. Certamente estava rindo de mim. Que maneira de divertir-se! Ver como a

esperança e a alegria se desenhavam no rosto do prisioneiro e logo as fazer pedaços

enviando-o a soga2. Eu decidi seguir o jogo.

— Só um inepto rechaçaria esse trabalho — pungente com um pouco mais de

força naquela ocasião.

— Bom, o posto é vitalício. O adestramento pode ser letal, depois de tudo, como se

podem identificar os venenos na comida do Comandante se não se conhecer seu sabor? —

perguntou, sem esperar resposta — Terá uma habitação no castelo para que possa dormir,

mas a maior parte do dia estará com o Comandante. Não há dias livres. Não terá nem marido

nem filhos. Alguns prisioneiros preferiram que os executassem. Ao menos, assim sabem

exatamente quando vão morrer em vez de perguntar-se constantemente se for ser com o

seguinte bocado — concluiu, apertando os dentes com um selvagem sorriso no rosto.

2 cordas de couro, com que se prende o animal em campo aberto

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Falava a sério. Senti que tremia todo o meu corpo. Uma oportunidade para viver!

Servir ao Comandante era melhor que as masmorras e imensamente melhor que a soga.

Uma série de perguntas me ocorreu imediatamente. Eu era uma assassina confessa, como

podiam confiar em mim? O que poderia me impedir de matar ao Comandante ou escapar?

— Quem prova agora a comida do Comandante? — perguntei-lhe, temendo que se

realizassem as outras perguntas me enviariam ao cadafalso.

— Eu. Encontro-me ansioso por encontrar um substituto. Além disso, o Código de

Comportamento especifica que se deve oferecer o trabalho a uma pessoa cuja vida está

sentenciada.

Incapaz de seguir sentada pus-me de pé e caminhei com muita dificuldade pelo

gabinete, arrastando minhas cadeias. Os mapas das paredes mostravam posições militares

estratégicas. Os títulos dos livros tinham que ver com a segurança e com técnicas de

espionagem. O estado e a quantidade das velas sugeriam uma pessoa que trabalhava até

altas horas da noite. Voltei-me de novo para olhar ao homem que ia embelezado com o

uniforme de conselheiro de guerra. Tinha que ser Valek, o chefe da segurança pessoal do

Comandante e o líder do imenso vigamento da inteligência do território da Ixia.

— O que devo lhe dizer ao verdugo? — pergunto-me Valek.

— Que não sou uma inepta.

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Capítulo 2

Valek fechou a pasta. Dirigiu-se à porta com um passo tão elegante e ligeiro como

o do tigre de neve quando atravessa uma magra capa de gelo. Os guardiões, que o

esperavam no corredor, quadraram-se ante ele quando a porta se abriu. Valek falou com eles

e os dois homens assentiram. Um dos guardiões se dirigiu a mim. Eu o olhei horrorizada.

Retornar à masmorra não tinha formado parte da oferta do Valek. Poderia escapar? Examinei

o gabinete. O guardião fez que eu desse a volta e tirou os grilhões e as cadeias que me

tinham acompanhado desde que me prenderam.

Sobre as bonecas ensangüentadas tinha duas marcas com a pele em carne viva.

Toquei o meu pescoço, sentindo por fim a pele onde estava acostumada haver metal. Notei

algo pegajoso nos dedos. Era sangue. A prova procurei a cadeira. O fato de estar liberada do

peso das cadeias me produziu uma estranha sensação. Sentia-me como se fora a me

deprimir ou a sair flutuando. Respirei profundamente até que passou a sensação de

debilidade.

Quando recuperei a compostura, precavi-me que Valek voltava a estar junto a seu

escritório e que estava servindo duas taças. Uma porta aberta de um pequeno armário

mostrava garrafas de estranhas formas e multicoloridas. Valek colocou a garrafa que tinha a

mão no interior do armário e fechou a porta com chave.

— Enquanto esperamos a Margg, pensei que te viria bem tomar uma taça — disse,

me entregando uma delicada taça de estanho que continha um líquido de cor âmbar. Então,

levantou a que ele tinha entre os dedos e realizou um brinde. — Pela Yelena, nossa última

provadora de comida. Que sua vida seja mais larga que a de seu predecessor — comentou.

Eu detive minha taça ao bordo dos lábios. —Tranqüila. É um brinde típico nestes casos. Eu

dava um comprido gole da bebida. O suave líquido me queimou um pouco ao deslizar-se pela

garganta. Durante um instante, acreditei que o estômago ia me revelar. Aquela era a primeira

vez que tomava algo que não fora água. Em seguida, me tranqüilizei.

Antes que eu pudesse lhe perguntar o que lhe tinha ocorrido exatamente ao anterior provador

de comida, Valek me pediu que identificasse os ingredientes da bebida. Depois de tomar uma

porção menor, repliquei:

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— Pêssegos adoçados com mel.

— Bem. Agora, dá outro gole. Nesta ocasião, deixa que o líquido se deslize pela

garganta antes de tragá-lo. Eu fiz o que ele tinha pedido e me surpreendi ao captar um ligeiro

aroma cítrico.

— Laranja?

— Assim é. Agora, faz gargarejos.

— Gargarejos? — perguntei. Ele assentiu. Sentindo-me como uma idiota, fiz

gargarejos com o resto de minha bebida. Então, estive a ponto de cuspi-la.

— Laranjas podres!

A pele que havia ao redor dos olhos do Valek se enrugou quando ele soltou uma

gargalhada. Tinha um rosto forte, anguloso, como se alguém o tivesse esculpido de uma folha

de metal. Entretanto, suavizava-se muito quando sorria. Entregou-me sua taça e me pediu

que repetisse o experimento.

Com certa trepidação, tomei um sorvo e, uma vez mais, detectei o suave aroma a

laranjas. Preparei-me para o sabor rançoso e fiz gargarejos com a bebida do Valek. Senti-me

aliviada ao ver que os gargarejos só contribuíam a acrescentar a essência de laranja.

—Melhor? —perguntou-me Valek enquanto tomava a taça vazia.

—Sim.

Ele tomou assento e abriu minha pasta uma vez mais. Tomou a pluma e, enquanto

escrevia, seguiu conversando comigo.

— Acaba de tomar sua primeira lição na prova de comida. Sua bebida estava

enfeitada com um veneno chamado Pó de Mariposa. O meu não. O único modo de detectar o

Pó de Mariposa em um líquido é fazendo gargarejos. Esse sabor a laranjas podres que

notaste era o veneno.

— É letal? — perguntei, me pondo de pé.

— Uma dose o suficientemente grande poderia te matar em dois dias. Os sintomas

não se notam até o segundo dia, mas, para então, já é muito tarde.

— É letal a dose que eu tomei? —quis saber, contendo o fôlego.

— É obvio — Se não, não teria podido saborear o veneno. Senti náuseas no

estômago e comecei a dar arcadas. Tratei de me conter para não ter que me enfrentar à

indignidade de vomitar sobre o escritório do Valek.

Valek levantou o olhar dos papéis e estudou meu rosto.

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—Adverti-te que o adestramento seria perigoso, mas eu não te daria um veneno ao

que seu corpo tivesse que enfrentar-se enquanto sofre de má nutrição. O Pó de Mariposa tem

um antídoto — acrescentou, me mostrando um pequeno vidro que continha um líquido

branco.

Voltei a me desmoronar sobre minha cadeira e suspirei. Então, notei que o rosto do

Valek tinha recuperado sua aparência pétrea. Compreendi que não me tinha

devotado o antídoto.

—Em resposta à pergunta que não perguntaste, mas que deveria ter feito, assim —

disse, me mostrando o pequeno vidro — é como evitamos que o provador do Comandante

escape.

Eu o olhei fixamente, tratando de compreender as implicações daquelas palavras.

— Yelena, confessaste um assassinato. Seríamos uns néscios ao permitir que

servisse ao Comandante sem garantias. Os guardas vigiam ao Comandante a todo o

momento, por isso não é muito provável que pudesse te aproximar dele com uma arma. Para

o resto dos modos de vingança, utilizamos o Pó de Mariposa — afirmou Valek, tomando o

vidro com o antídoto e fazendo girar o líquido à luz do sol — Necessita uma dose diária disto

para seguir com vida. O antídoto evita que o veneno lhe mate. Enquanto te apresente todas

as manhãs em meu gabinete, dar-te-ei o antídoto. Se não te apresentar ante mim uma

manhã, estará morta ao dia seguinte. Se cometer um delito ou um ato de traição, enviará às

masmorras até que o veneno acabe contigo. Asseguro-te que eu trataria de evitar esse

destino se estivesse em seu lugar. O veneno causa dores de estômago muito fortes e vômitos

incontroláveis.

Antes que eu pudesse assimilar por completo a situação em que me encontrava,

Valek olhou por cima de mim. Eu dava a volta e vi uma mulher muito robusta que, vestida com

o uniforme de ama de chaves, acabava de entrar pela porta. Valek a apresentou como Margg,

a pessoa que se ocuparia de minhas necessidades básicas. Margg voltou a sair pela porta,

esperando que eu a seguisse.

Eu olhei uma vez mais o vidro que Valek tinha deixado sobre o escritório.

—Retorna a este gabinete amanhã pela manhã. Margg te indicará.

Evidentemente, aquilo tinha sido uma despedida, mas eu me detive na porta.

Apesar das muitas perguntas que se amontoavam nos lábios, decidi tragar isso. Pesavam-me

como pedras no estômago quando fechei a porta e saí correndo atrás de Margg, quem não se

dignou a me esperar.

Page 14: María v snyder 01 poison study

Margg não diminuiu o passo. Eu comecei a ofegar pelo esforço de alcançá-la.

Tratei de recordar os corredores que atravessávamos, mas me rendi muito em breve e centrei

minha atenção em Margg, sua larga saia negra parecia flutuar sobre o chão. O uniforme das

amas de chaves incluía um avental branco e uma camisa negra. O avental incluía duas filas

verticais de pequenos rombos vermelhos que se conectavam em seus extremos. Quando

Margg por fim se deteve, diante dos banhos, eu tive que me sentar no chão. A cabeça não

deixava de me dar voltas.

— Empresta — comentou Margg, enrugando o rosto. Então, indicou ao lado mais

afastado dos banhos de um modo que indicava que estava acostumada a que a obedecesse

— Lave-Te duas vezes e logo te enxágüe trarei um uniforme. Então abandonou a sala.

O incrível desejo de tornar um banho me proporcionou uma energia que não

acreditava ter. Com força, despojei-me do uniforme da prisão e me dirigi a toda velocidade à

zona de lavagem. A água quente começou a cair em cascata quando abri o conduto que tinha

por cima da cabeça. O castelo do Comandante estava equipado com tanques de água quente

que estavam localizados um piso por cima dos banhos, um luxo que nem sequer a

extravagante casa solariega do Brazell tinha.

Permaneci de pé um comprido tempo, esperando erradicar assim de minha cabeça

todo pensamento de venenos. Obedientemente lavei o corpo e o cabelo duas vezes. O

pescoço, as bonecas e os tornozelos me ardiam com o sabão, mas não me importou.

Esfreguei e esfreguei os pontos de sujeira que se via em minha pele, me detendo só quando

me precavia de que eram hematomas.

Sentia-me completamente alheia ao corpo que havia baixo aquela cascata. A dor e

a humilhação de ser presa e encerrada tinham sido infligidas ao meu corpo, mas minha alma

o tinha abandonado durante os dois últimos anos que tinha vivido na mansão do Brazell. De

repente, apresentou-se ante mim uma imagem do filho do Brazell. O formoso rosto do Reyad

distorcido pela ira. Dava um passo atrás, levantando instintivamente as mãos para me

proteger dele. A imagem desapareceu, mas eu fiquei tremendo.

Custou-me um grande esforço me envolver e me secar com uma toalha. Tratei de

me centrar em procurar um pente em vez de nas feias lembranças que despertava em mim o

rosto de Reyad.

Apesar de que estava limpo, meu enredado cabelo resistia ao pente. Enquanto

tratava de encontrar um par de tesouras, de soslaio vi que havia alguém mais nos banheiros.

Olhei-o. O que parecia um cadáver me devolveu o olhar. Os olhos verdes eram os únicos

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sinais de vida naquele desajeitado rosto. Umas pernas magras como paus pareciam

incapazes de sustentar o resto do corpo.

Quando reconheci de quem se tratava, senti a gélida quebra de onda do medo. Era

eu. Apartei os olhos do espelho, dado que não tinha desejos de comprovar os estragos que

tinham causado as masmorras. Covarde, pensei. Então, com decisão, voltei a me olhar.

Mentalmente, tratei de religar meu corpo e meu espírito. Por que acreditava que minha alma

retornaria se meu corpo seguia sem ser meu? Pertencia-lhe à Comandante Ambrose, para

que ele pudesse utilizá-lo como ferramenta para filtrar e provar venenos. Apartei o olhar.

Com o pente, comecei a me arrancar os nós de cabelo. Quando consegui alisá-lo, penteei-me

com uma singela trança ao longo das costas.

Não fazia muito tempo que quão único tinha desejado era ter um uniforme limpo

antes que me executassem e, naqueles momentos, estava desfrutando dos famosos banhos

quentes do Comandante.

—Já está bom — rugiu Margg, me tirando de meu devaneio — Aqui tem seus

uniformes. Veste-te.

O rosto da ama de chaves irradiava desaprovação. Enquanto me secava, sentia

sua impaciência. Junto com os objetos interiores, o uniforme do provador de comida consistia

em umas calças negras, um largo cinturão de cetim vermelho e uma camisa de cetim

vermelho com uma linha de rombos negros unidos os uns aos outros sobre as mangas.

Evidentemente, as roupas estavam pensadas para um homem. Eu, que estava mal nutrida e

que media pouco mais de metro e meio, parecia uma menina disfarçada com a roupa de seu

pai. Rodeei-me a cintura três vezes com o cinturão e arregacei as mangas e as pernas da

calça. Margg lançou um bufo.

—Valek só me disse que te desse de comer e que te mostrasse sua habitação,

mas acredito que passaremos primeiro pela costureira — disse Margg. Enquanto abria a

porta, franziu os lábios — Também necessitará umas botas.

Eu segui Margg Obedientemente, como se fosse um cachorrinho perdido à

costureira. Dilana pôs-se a rir ao ver meu aspecto. Tinha o rosto oval e um cabelo loiro e

encaracolado que lhe emoldurava o rosto como se tratasse de um halo. Os olhos cor mel e

umas largas pestanas acrescentavam sua beleza.

— As moças de estábulo levam às mesmas calças e as donzelas da cozinha as

camisas vermelhas — disse quando conseguiu sossegar as risadas. Então, arreganhou a

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Margg por não ter acontecido o tempo suficiente para me encontrar um uniforme algo melhor.

Margg franziu ainda mais os lábios.

Como me tratava mais como se fora uma avó em vez de uma moça, os cuidados

de Dilana me emocionaram. Imaginei que poderíamos ser amigas. Senti desejos de me sentir

perto dela. Depois de anotar minhas medidas. Dilana rebuscou entre os montões de

roupagens vermelhas, negros e brancos que tinha por toda a estadia.

Todos os que trabalhavam na Ixia deviam levar uniforme. Os serventes e guardiões

do castelo do Comandante levavam uma variedade de roupas de cor vermelha, negro e

branco, adornadas com rombos nas mangas das camisas ou nas calças. Os conselheiros e

os oficiais de maior graduação normalmente iam completamente vestidos de negro com

pequenos rombos vermelhos bordados no pescoço para mostrar sua fila. O sistema de

uniforme se estabeleceu quando o Comandante se fez com o poder para que todo mundo

soubesse com apenas uma olhada com quem estava tratando.

O vermelho e o negro eram as cores do Comandante Ambrose. O território da Ixia

se viu separado em oito Distritos Militares, cada um dos quais estava governado por um

general. Os uniformes dos oito distritos eram idênticos aos do Comandante à exceção da cor.

Um ama de chaves que fora vestida de negro com pequenos rombos morados no avental

pertencia ao Distrito Militar 3 ou DM-3.

—Acredito que estas roupas lhe sentarão melhor — disse Dilana, me entregando

vários objetos ao tempo que me indicava a intimidade de um biombo que havia ao outro lado

da sala.

Enquanto estava me trocando, ouvi que a costureira dizia:

—Necessitará umas botas.

Embelezada já com meu novo uniforme e me sentindo menos ridícula, recolhi o

velho uniforme e o dava a Dilana.

—Estas roupas deveram pertencer ao Oscove, o antigo provador de comida —

comentou Dilana. Uma expressão de tristeza se apoderou de seu rosto. Então, sacudiu a

cabeça como se queria livrar-se de um pensamento pouco desejado.

Todas minhas fantasias de amizade me abandonaram repentinamente. Acabava de

compreender que ser amiga do provador do Comandante representava um grande risco

emocional. Senti uma grande amargura interior. Uma profunda sensação de solidão se

apoderou de mim ao pensar em Mai e Carra, que ainda viviam na casa solariega do Brazell.

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Então, Dilana me conduziu a uma cadeira. Depois de ajoelhar-se no chão, colocou-

me umas meias três-quartos e um par de botas. Estas estavam fabricadas de uma suave pele

negra. Chegavam-me até meia perna, onde a pele se dobrava para baixo. Dilana colocou as

pernas das calças de minhas calças nas botas e me ajudou a me pôr de pé.

Não tinha levado classe alguma de calçado desde fazia muito tempo, por isso

esperei que me roçassem. Entretanto, as botas se acomodavam a meus pés perfeitamente.

Sorri a Dilana. Aquelas eram os melhores calçados que tinha levado nunca.

Dilana me devolveu o sorriso e disse:

—Sempre sei escolher a talha do calçado adequado sem ter que medir.

—Pois te equivocou nas do pobre Rand, mas ele está muito apaixonado por ti para

queixar-se. Agora vai coxeando pela cozinha — replicou Margg.

—Não lhe faça caso — me disse Dilana— Margg, acaso não tem trabalho que

fazer? Parte daqui ou me meterei em suas habitações e te cortarei todas as saias —

acrescentou, nos empurrando para a porta com bom humor.

Margg me levou ao comilão dos serventes e me serviu pequenas porções de sopa

e pão. A sopa estava divina. Depois de terminar, pedi mais.

—Não. Muita comida ficaria doente — foi sua resposta. A contra gosto, deixei meu

prato sobre a mesa e segui Margg à minha habitação— Esteja disposta para começar a

trabalhar à saída do sol.

Uma vez mais, observei como se afastava.

Minha pequena habitação continha uma estreita cama, com um único colchão

manchado sobre um somier de metal, um singelo escritório de madeira e uma cadeira, um

urinol, um armário, um abajur de azeite, uma pequena estufa de madeira e uma janela

fechada à cal e canto. As paredes cinza eram de pedra e careciam de algum adorno. Provei o

colchão. Era muito duro, mas supunha uma grande melhora comparado com minha

masmorra. Não obstante, encontrei-me um pouco desiludida.

Não havia nada na habitação que sugerisse comodidade. Com a mente cheia das

imagens do rosto pétreo do Valek e da censura das palavras do Margg, desejei com todas

minhas forças ter um travesseiro ou uma manta. Sentia-me como uma menina perdida, que

ansiava algo que abraçar, algo suave que não terminasse me fazendo dano.

Depois de pendurar o resto de meu uniforme no armário, aproximei-me da janela.

Tinha um batente o suficientemente amplo para poder sentar-se. As venezianas estavam

fechadas, mas os fechos estavam no interior. Com mãos trementes, abri-os de par em par. A

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repentina luz me fez piscar. Protegi meus olhos e observei a cena que se desenvolvia ante

mim com incredulidade. Estava no primeiro piso do castelo! Não o estou acostumada, estava

a pouco mais de metro e meio mais abaixo.

Entre minha habitação e os estábulos estavam os canis do Comande e o pátio de

exercícios para os cavalos. Aos moços de estábulo e aos preparadores dos cães não lhes

importaria que eu me escapasse. Poderia me deixar cair sem esforço algum e partir.

Resultava muito tentador, à exceção de que estaria morta em dois dias. Talvez em outra

ocasião, quando dois dias de liberdade compensassem o preço que terei que pagar por eles.

Ao menos podia ter esperança.

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Capítulo 3

O látego de Reyad me rasgou a pele, me cortando a carne com uma profunda dor.

— se mova — me ordenou.

Eu tratei de esquivá-lo sem consegui-lo, dado que me impedia uma corda que tinha

atada à boneca e que ancorava a um poste que havia no centro da habitação.

— Te mova mais rápido! Segue te movendo! —gritava Reyad.

O látego estalava uma e outra vez. Rasgada a camisa que eu levava posta não me

oferecia amparo alguma da ardência do corpo. De repente, uma fresca e tranqüilizadora voz

penetrou em meu cérebro.

—Parte — sussurrou — Envia a mente a um lugar longínquo, a um lugar quente e

acolhedor. Deixe ir...

A sedosa voz não pertencia nem ao Reyad nem ao Brazell. A um salvador, talvez?

Uma maneira muito fácil de escapar à tortura, tentadora, mas decidi esperar outra

oportunidade. Decidida, concentrei-me em evitar o látego. Quando o esgotamento me

reclamou, meu corpo começou a vibrar de modo próprio. Como um colibri fora de controle,

comecei a dar voltas pela habitação, tratando de evitar o látego.

Despertei na escuridão, empapada de suor. O enrugado uniforme me rodeava com

força ao corpo. A vibração de meus sonhos se viu substituída por um tamborilar, antes de

ficar adormecida, tinha trancado a porta com a cadeira para impedir que alguém pudesse

entrar. A cadeira se agitava com cada golpe.

—Estou acordada — gritei. O tamborilar cessou. Quando abri, vi que Margg franzia

o cenho com um abajur nas mãos. Apressei-me a trocar de uniforme e me reuni com ela no

corredor — Acreditava que havia dito quando saísse o sol.

—Já saiu o sol — respondeu ela com desaprovação.

Segui Margg através do labirinto dos corredores do castelo à medida que o dia

começava a clarear. Minha habitação estava orientada a oeste, o que me impedia de ver o sol

da manhã. Margg apagou o abajur justo quando o aroma de uns pasteizinhos doces começou

a encher o ar.

Aspirando com força, perguntei com voz esperançada e quase suplicante:

—Leva-me a tomar o café da manhã?

—Não. Valek te dará de comer.

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A imagem de um café da manhã enfeitado com veneno fez maravilhas na hora de

me tirar o apetite. O estômago me esticou ao recordar o Pó de Mariposa do Valek. Quando

chegamos a seu gabinete, tinha-me convencido de que estava a ponto de me desmoronar,

derrotada pelo veneno se não recebia logo o antídoto.

Quando entrei na sala, Valek estava colocando uns pratos de fumegante comida.

Tinha limpado uma parte do escritório e os papéis se amontoavam em desordenadas pilhas.

Indicou-me uma cadeira. Eu tomei assento, procurando na mesa o pequeno vidro do antídoto.

—Espero que você...

Valek estudou atentamente meu rosto. Eu lhe devolvi o olhar, tratando de não me

acovardar baixo aquele escrutínio.

—Resulta surpreendente a diferença que podem supor um banho e um uniforme —

acrescentou, mordiscando com gesto ausente uma parte de bacon — Terei que recordá-lo.

Poderia me resultar útil no futuro — acrescentou. Então, colocou dois pratos de uma mescla

de presunto e ovos ante mim— Comecemos.

Sentindo-me um pouco enjoada e avermelhada, eu lhe espetei:

—Preferiria começar com o antídoto.

Outra larga pausa por parte do Valek fez que me reanimasse em meu assento.

—Não deveria sentir ainda nenhum sintoma. Não chegarão até primeiras horas da

tarde.

Apesar de tudo, encolheu-se de ombros e se dirigiu ao armário. Com uma pipeta,

extraiu a medida exata do líquido branco de uma grande garrafa e logo voltou a guardar sob

chave o antídoto no armário. Deveu resultar evidente o interesse que me produzia o lugar

onde guardava a chave porque Valek utilizou um gesto da mão para fazê-la desaparecer.

Continuando, entregou-me a pipeta e se sentou no lado oposto da mesa.

— Beba-lhe isso para que possamos começar com as classes de hoje — disse.

Esvaziei o conteúdo da pipeta na boca com um gesto de repugnância ante o

amargo sabor. Então, Valek me tirou a pipeta da mão e a trocou por uma jarra de cor azul.

—Cheira isto.

A jarra continha um pó branco, que parecia açúcar, mas que cheirava a madeira de

rosa. Então, Valek assinalou os dois pratos que tinha colocado frente a mim e me pediu que

escolhesse o que tinha sido envenenado. Olisque é a comida como um cão que procurava a

sua presa. Do prato da esquerda emanava um ligeiro aroma de madeira de rosa.

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—Bem. Se notares esse aroma na comida do Comandante, rechaça-a

imediatamente. Esse veneno se chama Tigtus e um único grão pode matar em menos de uma

hora — me explicou Valek, apartando a comida envenenada— Agora, tome seu café da

manhã — acrescentou, indicando o outro prato— Necessitará forças.

Passei-me o resto do dia cheirando venenos até que a cabeça começou a me dar

voltas. A multidão de nomes e aromas começou a me confundir, por isso pedi ao Valek papel,

pluma e tinta. Ele deu um coice.

—Não sei por que não faz mais que me surpreender. Teria que ter recordado que o

general Brazell se ocupa da educação de seus órfãos — disse. Valek entregou uma

caderneta de papel, uma pluma e tinta— Leva isso a sua habitação. Já trabalhamos

bastante por hoje.

Em silêncio, amaldiçoei-me por haver recordado ao Valek por que eu ia ser a seguinte pessoa

em ser executada. O duro e implacável olhar do Valek revelava seus pensamentos. Depois de

que Brazell me recolhesse das ruas, alimentasse-me e me educasse, eu tinha pago sua

caridade comigo assassinando a seu único filho. Sabia que Valek jamais acreditaria a verdade

sobre o Brazell e Reyad.

O orfanato do general Brazell era objeto do ridículo por parte do resto dos generais.

Pensavam que Brazell se abrandou depois da revolução na Ixia fazia quinze anos. Aquela

imagem convinha ao Brazell. O fato de que o considerassem como um benfeitor provocava

que pudesse continuar sem que ninguém o questionasse com sua administração do Distrito

Militar 5.

Ao chegar à porta do gabinete do Valek duvidei. Pela primeira vez, dava-me conta

das três complexas fechaduras que havia na porta. Permaneci ali, as tocando brandamente,

até que Valek me perguntou:

—E agora o que?

—Não sei onde está minha habitação.

—Pergunta à primeira ama de chaves ou à primeira donzela que te encontre —

disse ele, como se estivesse falando com uma menina atrasada— Dava que está na asa

oeste dos serventes, na planta baixa. Mostrar-lhe-ão isso.

A donzela com a que me encontrei era muito mais faladora que Margg, e eu me

aproveitei plenamente de sua boa natureza. Acompanhou-me à lavanderia para que me

dessem lençóis para minha cama. Então, eu fiz que me mostrasse onde estavam os banhos e

a habitação da costureira. Algum dia, os uniformes de Dilana me poderiam vir muito bem.

Page 22: María v snyder 01 poison study

Uma vez em minha habitação, abri as venezianas para deixar que entrasse a luz

do sol, que estava começando a ficar no horizonte. Sentei-me frente a meu escritório e

escrevi notas detalhadas sobre o que tinha aprendido aquele dia, junto com um mapa muito

pouco exato da asa dos serventes. Considerei sair a explorar um pouco mais o castelo, mas

decidi que Valek tinha razão. Precisava recuperar forças. Já teria tempo de sair a explorar

mais tarde.

Durante as seguintes duas semanas o adestramento prosseguiu de um modo tão

similar ao primeiro dia que me deixei cair na rotina. Depois de quatorze dias de cheirar

venenos, descobri que meu sentido do olfato se desenvolveu muito. Então, Valek decidiu que

eu estava preparada para começar a saborear venenos.

—Começarei com o mais mortal — disse — Se não morre com este, outros

tampouco lhe matarão. Não quero desperdiçar todo meu tempo te adestrando para ver que

termina morrendo — acrescentou. Então, colocou uma garrafa vermelha em cima do

escritório— É muito desagradável. Afeta ao corpo imediatamente — comentou. Os olhos lhe

iluminaram enquanto admirava o veneno— Chama-se “Tomemos uma taça, meu amor” ou

“Meu amor” para abreviar, porque este veneno foi utilizado ao longo da história por algemas

sem coração — me explicou, enquanto servia duas gotas do veneno em uma fumegante

taça— Uma dose maior te mataria irremediavelmente. Com uma menor, existe a

possibilidade de que sobreviva, mas terá alucinações, voltar-te-á paranóica e se sentirá

completamente desorientada durante os próximos dias.

—Valek, por que tenho que provar “Meu amor” se tiver imediatos resultados? Não é

precisamente esse o trabalho de um provador de comida? Eu provo a comida do

Comandante, caio-me ao chão e morro. Fim da história.

Tratei de passear pelo gabinete, mas não fazia mais que me tropeçar com os

montões de livros. Cheia de frustração, dava-lhe uma patada a dois montões e os esparramei

pelo chão. O olhar de Valek me atravessou, me arrebatando a estranha sensação de

satisfação que eu tinha obtido daquela patada.

—O trabalho de um provador de comida é muito mais complexo que isso — me

explicou Valek, apartando o cabelo do rosto — O fato de ser capaz de identificar que veneno

se esconde na comida do Comandante pode me conduzir ao envenenador — afirmou, me

entregando a taça — Embora só tenha um décimo de segundo de vida para poder gritar o

nome do veneno, isso poderia reduzir bastante a lista de suspeitos. Por exemplo, só há um

número muito limitado de assassinos que poderiam utilizar o “Meu amor”. O veneno se

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prepara em Sitia, as terras do sul. Antes que os militares assumissem o poder, resultava fácil

consegui-lo. Agora, com o fechamento da fronteira sul, só há um punhado de pessoas que

tenham o suficiente dinheiro para poder comprá-lo ilegalmente.

Valek se dirigiu ao montão de livros que eu tinha esparramado pelo chão e

começou a recolhê-los. Seus movimentos eram tão graciosos que me perguntei se teria sido

bailarino. Entretanto, suas palavras me sugeriam que seus fluidos gestos eram os de um

assassino muito preparado.

—Yelena, seu trabalho é muito importante. Por isso passo tanto tempo te

adestrando. Um assassino ardiloso pode observar a um provador de comidas durante dias

para descobrir seus costumes. Por exemplo, poderia dar o caso de que o provador sempre

corte uma parte de carne do lado esquerdo ou que não remova jamais uma bebida. Alguns

venenos se inundam no fundo das taças. Se o provador só beber da parte superior, o

assassino sabe perfeitamente onde colocar o veneno para acabar com sua vítima — concluiu,

terminando também de colocar os livros — Quando beber o veneno, Margg te levará a seu

quarto e se ocupará de ti. Eu darei a ela sua dose diária do antídoto do Pó de Mariposa.

Eu observei a fumegante taça e tomei entre as mãos. O calor que emanava dela

me esquentou os dedos. Quando Margg entrou na sala, pareceu-me que era como se o

verdugo tivesse terminado de colocar a soga e se dispusera a atirar da alavanca.

Deveria me sentar ou me tombar? Olhei a meu redor e não vi nada. Senti um

formigamento nos braços e me dava conta de que tinha estado contendo a respiração. Então,

levantei a taça e, depois de realizar um gesto a modo de saudação militar, tomei seu

conteúdo. — Maçãs amargas — disse.

Valek assentiu. Só ficou tempo de voltar a colocar a taça sobre a mesa. Então, meu

mundo começou a desmoronar-se. O corpo do Margg parecia ondular-se para mim. Sua

cabeça se voltou enorme e começaram a lhe brotar flores das conchas dos olhos. Um instante

mais tarde, seu corpo ocupou todo o gabinete ao tempo que lhe encolhia a cabeça.

Senti movimento. As paredes cinza tinham braços e pernas com os que tratavam

de me agarrar, de me utilizar em sua luta contra o chão. De debaixo de meus pés surgiam

espíritos de cor cinza que pareciam significar a liberdade. Tratei de apartar a aquela coisa em

que se converteu Margg, mas ela me envolvia, me colocando os dedos nos ouvidos e me

golpeando a cabeça.

Page 24: María v snyder 01 poison study

—Assassina — sussurrava — Zorra rasteira. Provavelmente lhe degolou enquanto

dormia. O modo mais fácil de matar. Desfrutou vendo como o sangue ia empapando os

lençóis? Não é mais que um rato.

Agarrei a aquela voz, tratando de evitar que seguisse falando, mas se converteu

em dois soldados de brinquedo verdes e negros que me agarraram com força.

— Morrerá do veneno. Se não, lhes podem ficar isso — disse o que parecia ser

Margg aos soldados.

Eles empurraram a um escuro poço. Inundei-me em sua escuridão.

O fedor a vômito e a excrementos saudou quando recuperei a consciência. Eram

os inconfundíveis aromas das masmorras. Incorporei-me, perguntando como tinha retornado

a minha antiga cela. As náuseas reclamaram minha atenção. Às pressas, procurei a

escarradeira e me encontrei com a pata de metal da cama, a que me aferrei enquanto umas

secas arcadas convulsionavam meu corpo. Quando cessaram, apoiei-me contra a parede,

agradecida de estar no chão de minha habitação e não de volta às masmorras. As camas

eram um luxo que não se incluía nas habitações subterrâneas.

Depois de reunir a força necessária para me levantar, localizei e acendi meu

abajur. Tinha o rosto coberto de vômito seco. As calças e a camisa estavam completamente

empapadas e fediam. Os conteúdos líquidos de meu corpo se reuniram em um atoleiro sobre

o chão.

“Efetivamente, Margg se ocupou que mim”, pensei com sarcasmo. Ao menos, tinha

sido prática. Se me tivesse convexo na cama, teria quebrado o colchão.

Dava as graças ao destino por ter sobrevivido ao veneno e por haver despertado

em meio da noite. Incapaz de suportar o uniforme empapado nem um minuto mais, dirigi-me

para os banhos.

A minha volta, umas vozes me detiveram antes que alcançasse o corredor que

conduzia a minha habitação. Apaguei meu abajur com um rápido movimento e apareci pela

esquina. Diante de minha porta havia dois soldados. A suave luz da lanterna que levavam

refletia o verde e o negro de seus uniformes. Eram as cores do Brazell.

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Capítulo 4

—Crê que deveríamos comprovar se estiver morta? —perguntou um dos soldados

do Brazell. Tinha o abajur contra a porta de minha habitação.

—Não. Essa ama de chaves vem a vê-la todas as manhãs e lhe dá uma poção. Já

nos inteiraremos logo. Além disso, aí dentro fede — respondeu o outro soldado, agitando uma

mão diante do nariz.

—Sim. Se esse aroma não nos tirar as vontades, o fato de ter que tirá-la esse

uniforme cheio de vômito faria vomitar a qualquer homem. Embora... Poderíamos levá-la aos

banhos, lavá-la e nos divertir um pouco com ela antes que morra — comentou o soldado que

levava o abajur.

—Não. Alguém poderia nos ver. Se sobreviver, teremos tempo de sobra para lhe

tirar o uniforme. Será como abrir um presente e te asseguro que será muito mais entretido

quando estiver acordada — repôs o segundo com uma expressão lasciva no rosto.

Os dois soldados puseram-se a rir e puseram-se a andar. Muito em breve, tinham

desaparecido. Eu me aferrei à parede e me perguntei se o que acabava de ver tinha sido real.

Estaria tendo ainda alucinações paranóicas? Sentia a cabeça como se a tivesse tido muito

tempo em uma tina de água. Além disso, meu corpo não tinha deixado de experimentar em

nenhum momento enjôos e náuseas.

Passou muito tempo desde que partiram os soldados até que eu consegui reunir o

valor de retornar a minha habitação. Abri a porta de par em par e iluminei a estadia com o

abajur, me assegurando de que a luz chegava a todos os rincões e debaixo da cama. O único

que me atacou foi um fedor azedo e desagradável. Entre arcadas, consegui abrir as

venezianas e assim poder respirar baforadas de ar fresco e purificador.

Olhei o desagradável atoleiro que havia no chão. Quão último desejava era ter que

limpar tudo aquilo, mas sabia que não poderia dormir enquanto tivesse que respirar aquele

desagradável aroma. Depois de procurar e reunir alguns úteis de limpeza e ter que me deter

pelas náuseas que sentia de vez em quando, consegui limpar o chão sem me deprimir.

Esgotada, tombei-me por fim na cama. O colchão parecia cheio de vultos. Dava-me

a volta, esperando encontrar uma postura mais cômoda. E se retornassem os soldados do

Brazell? Dormindo na cama, eu seria uma presa fácil. Tinha-me lavado, por isso não haveria

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necessidade de me levar aos banhos. A habitação cheirava a desinfetante e me tinha

esquecido trancar a porta com a cadeira.

Minha imaginação jogou asas, representando ante meus olhos uma nítida cena de

mim atada à cama, indefesa enquanto os soldados me despiam lentamente para incrementar

sua antecipação e saborear meu temor. As paredes de minha habitação pareceram cobrar

vida. Sem poder me conter, saí ao corredor, quase esperando me encontrar com os soldados

do Brazell frente a minha porta. Entretanto, o corredor estava escuro e deserto.

Quando tratei de voltar a entrar em minha habitação, senti-me como se alguém me

apertasse um travesseiro contra o rosto. Não podia atravessar a soleira. Minha habitação me

parecia uma armadilha. Seria o efeito da paranóia que provocava o “Meu amor” ou meu

próprio sentido comum? A indecisão me manteve na porta até que o estômago começou a me

grunhir. Guiada por minha própria fome, fui em busca de comida.

Esperando encontrar a cozinha vazia, levei uma grande desilusão ao ver um

homem muito alto, embelezado com um uniforme branco com dois diamantes negros no

peitilho da camisa. Estava murmurando para si enquanto examinava os fornos. A perna

esquerda não lhe dobrava. Tratei de sair sem que ele me visse, mas não o consegui.

—Está me procurando? —perguntou-me.

—Não! — disse eu — Estava... Estava procurando algo de comer — respondi.

O homem franziu o cenho e apoiou seu peso sobre a perna boa enquanto estudava

meu uniforme. Pensei que era muito magro para ser cozinheiro, mas levava o uniforme

correspondente e, além disso, só um cozinheiro estaria levantado tão cedo. Tinha uma beleza

sutil, com olhos marrons claros e cabelo da mesma cor. Perguntei-me se seria Rand, o

homem de quem Margg tinha falado com relação à Dilana.

—Te sirva você mesma — disse me assinalando duas barras de pão recém tiradas

do forno — Acabo de ganhar o salário de uma semana graças a ti.

—Perdoe, mas, como é isso possível? — perguntei, enquanto cortava uma boa

parte de pão.

—É a nova provadora de comida, não? — quis saber. Eu assenti— Todo mundo

sabe que Valek te deu uma dose de “Meu amor”. Eu apostei o salário de uma semana a que

você sobreviveria — acrescentou, enquanto tirava de trás barras de pão de um dos fornos—

Foi um grande risco, dado que você é a provadora mais magra e miúda das que nunca houve.

Quase todo mundo apostou a que não sobreviveria, inclusive Margg. O cozinheiro começou a

rebuscar em um dos armários.

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—Toda — acrescentou, me entregando uma parte de manteiga— Agora, preparar-

te-ei uns pasteizinhos doces.

Então, tirou o resto dos ingredientes e começou a mesclá-los.

—Quantos mais houve? —perguntei entre bocado e bocado de pão com manteiga.

Com as mãos em constante movimento, o cozinheiro respondeu:

—Cinco, desde que o Comandante Ambrose leva no poder. Ao Valek adora os

venenos. Envenenou a muitos dos inimigos do Comandante e gosta de seguir praticando. Já

sabe, pôr a prova aos provadores da comida do Comandante de vez em quando, para

assegurar-se de que não se relaxaram muito.

As palavras do cozinheiro me provocaram um calafrio pelas costas. Senti-me como

se meu corpo se liquidificou e vertido em um daqueles gigantes bules. Eu só era um punhado

de ingredientes que mesclar, cozinhar e utilizar. Quando o cozinheiro verteu a mescla na

churrasqueira ardendo, o sangue me chispou ao uníssono dos pasteizinhos.

—Pobre Oscove... Jamais gozou das simpatias do Valek. Punha-o a prova

constantemente até que ele já não pôde seguir agüentando a pressão. A causa oficial de sua

morte foi o suicídio, mas eu acredito que Valek o matou.

Volta. Observei como o cozinheiro dava a volta distraidamente aos pasteizinhos

com um giro de boneca. Meus músculos pareciam tremer em sincronia com o som que os

pasteizinhos produziam ao cozinhar-se.

Eu estava preocupada com o Brazell quando um mau passo com o Valek poderia...

Volta. Eu teria desaparecido. Provavelmente teria um par de venenos reservados se por

acaso decidia substituir ao provador. Olhei por cima do ombro e imaginei ao Valek entrando

na cozinha para me envenenar o café da manhã. Nem sequer podia desfrutar de meu bate-

papo com um cozinheiro sem que me recordasse que o fato de saborear comida que poderia

ter sido envenenada não era o único perigo de meu novo trabalho.

O cozinheiro entregou um prato cheio de pasteizinhos doces, tirou três barras de

pão do forno e voltou a encher os moldes de massa. Aqueles pasteizinhos me pareciam uma

delícia tal que os devorei apesar da estranha sensação que tinha no estômago.

—Oscove era meu amigo. Era o melhor provador de comida que o Comandante

teve jamais. Estava acostumado a vir a minha cozinha todas as manhãs depois de tomar o

café da manhã para me ajudar a inventar novas receitas. Tenho que manter meus pratos

interessantes, porque se não o Comandante começará a procurar um novo cozinheiro. Sabe

ao que me refiro?

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Eu assenti e me limpei a manteiga que tinha no queixo. Então, o cozinheiro

estendeu a mão.

—Meu nome é Rand.

—Yelena — disse eu, estreitando-lhe a mão.

Detive-me junto a uma janela aberta quando me dirigia ao gabinete do Valek. O sol

estava saindo por cima das montanhas da Alma, ao leste do castelo. As cores do céu

pareciam uma pintura danificada, como se um menino tivesse vertido água sobre um tecido.

Eu deixei que meus olhos gozassem com aquela vibrante amostra de vida e inalei o ar fresco

da manhã. Todas as flores tinham florescido e muito em breve a fresca brisa da manhã se

esquentaria até resultar mais cômoda. A estação cálida estava começando. Os dias de

cansativo calor e noites úmidas estavam ainda por chegar. Eu levava quinze dias estudando

com o Valek antes que ele me administrasse “Meu amor”. Me perguntei quanto tempo teria

estado inconsciente.

Separei-me da janela e me dirigi ao despacho do Valek. Cheguei à porta justo

quando ele partia.

—Yelena! Conseguiste-o! —disse com um sorriso— Aconteceram três dias.

Estava começando a me preocupar.

Eu estudei atentamente seu rosto. Sua alegria parecia sincera.

—Onde está Margg? —perguntou-me.

—Não a vi —respondi. “Felizmente”. —Nesse caso, necessita seu antídoto —disse

Valek, enquanto retornava junto ao armário.

Quando traguei o líquido, Valek se dirigiu uma vez mais para a porta. Quando viu

que eu não o seguia, fez-me uma indicação.

—Tenho que provar o café da manhã do Comandante —disse, apertando o

passo— Além disso, já vai sendo hora de que conheça o comandante e veja como se deve

provar a comida.

Saímos por fim ao corredor principal do castelo. Valek não se alterou, mas eu

tropecei e afoguei um grito. As famosas tapeçarias da era do Rei estavam rasgadas e

manchadas de pintura negra. No orfanato do Brazell, nos tinha ensinado que cada tapeçaria

representava uma província do antigo reino e que contava sua história. Naqueles momentos,

apesar de estar destroçados, falavam poderosamente sobre o mandato do Comandante.

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O desdém que este sentia pela opulência, os excessos e as injustiças do anterior

chefe do estado e de sua família era bem conhecido por todos os rincões da Ixia. Da

monarquia até o mandato militar, as mudanças na Ixia tinham sido radicais. Enquanto que

alguns cidadãos aceitavam de bom grado às singelas, mas estritas regras do Código de

Comportamento, outros se rebelavam e se negavam a levar uniforme, não pediam permissão

para viajar e escapavam ao sul.

Segundo o delito que se cometesse, o castigo se correspondia exatamente com o

estipulado no Código. O fato de não levar uniforme supunha dois dias encadeado

completamente nu na praça da cidade. Não importava que o acusado tivesse uma boa razão

para isso. O castigo era sempre o mesmo. Tampouco serviam de nada os subornos nem as

influências de amigos. Segundo o Comandante, terei que viver segundo o Código ou pagarei

às conseqüências.

Apartei os olhos das tapeçarias a tempo para ver como Valek desaparecia através

de uma porta decorada com uma intrincada decoração de pedra. Pelo contrário, pesada-a

porta de madeira, pendurava, completamente estilhaçada, das dobradiças, embora ainda se

distinguisse a formosa talha que se realizou na madeira. Sem dúvida, aquela porta tinha sido

outra vítima da mudança de regime. Outro aviso das intenções do Comandante.

Depois de franquear a soleira da porta, detive-me completamente atônita. Aquele

era o salão do trono. Em seu interior havia numerosas mesas ocupadas por numerosos

conselheiros e oficiais militares de todos os Distritos Militares do Território. A sala vibrava com

atividade.

Resultava difícil distinguir a ninguém naquele mar de gente. Ao final, consegui ver o

Valek antes que atravessasse uma porta aberta que havia ao fundo da sala. Demorei alguns

instantes em encontrar o modo de atravessar as mesas. Quando cheguei à porta, ouvi que

um homem se queixava de que os pasteizinhos doces estavam frios.

O Comandante Ambrose estava sentado detrás de um escritório de madeira muito

singelo. Seu escritório era muito austero em comparação com o do Valek e carecia de

elementos decorativos pessoais. O único objeto da sala que não tinha um propósito concreto

era uma estátua do tamanho de uma mão que mostrava um tigre de neve. Os olhos do felino

reluziam graças à prata e umas brilhantes bolinhas do mesmo metal se estendiam pelas

poderosas costas da besta.

O uniforme do Comandante Brazell tinha um corte imaculado e era idêntico ao do

Valek, à exceção que os rombos que tinha no pescoço eram diamantes de verdade e reluziam

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sob a luz da manhã. O cabelo negro do Comandante estava começando a cobrir-se de cinza

e era tão curto que a parte superior ficava de ponta.

Nas salas de aula do Brazell, eu tinha aprendido que o Comandante evitava as

aparições públicas e que se pintasse seu retrato. Quanto menos pessoas conhecessem seu

aspecto, menos possibilidades tinha que o assassinassem. Alguns acreditavam que era um

paranóico, mas eu era da opinião de que, dado que tinha adquirido o poder utilizando a

assassinos e guerra suja, simplesmente se mostrava realista.

Aquele homem não se parecia em nada ao Comandante que eu me tinha

imaginado: grosso, com barba e carregado de medalhas e armas. Era um homem magro,

bem barbeado e com rasgos delicados.

—Comandante, esta é Yelena, sua nova provadora de comida — disse Valek, me

fazendo entrar na sala.

Os olhos amendoados do Comandante se cruzaram com meus. Seu olhar tinha a

acuidade da ponta de uma espada e me senti completamente imobilizada por ele. Quando

olhou ao Valek, respirei aliviada.

—Por isso esteve rugindo Brazell, esperava que esta mulher respirasse fogo —

disse o Comandante.

Para ouvir que nomeava ao Brazell, estiquei-me. Se o general começava a queixar-

se ao Comandante, poderia voltar a ser candidata à forca.

—Brazell é um néscio — respondeu Valek— Queria o drama de uma execução

pública para a assassina de seu filho. Eu, pessoalmente, me teria ocupado dela

imediatamente. Teria tido pleno direito — acrescentou, enquanto provava o chá do

Comandante e observava os pasteizinhos— Além disso, o Código de Comportamento

estipula claramente que o seguinte réu que vá ser executado se converte no novo provador e

Brazell foi um de seus autores —explicou. Cortou o pastelzinho pelo centro e tomou uma

parte, que se meteu na boca. Continuando, fez a mesma com uma parte dos laterais—

Tenha — concluiu, oferecendo ao Comandante o prato.

—Não falta razão ao Brazell — disse o Comandante. Então, tomou seu chá e

observou o líquido — Quando vai começar? Estou-me cansando da comida fria.

—uns quantos dias mais.

—Bem — replicou o Comandante. Então, voltou a dirigir-se a mim— Quero que

chegue com minha comida e a prove com rapidez. Não quero ter que estar te buscando.

Compreendido?

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—Sim, senhor — respondi.

—Valek, estou perdendo peso por sua culpa. O almoço é na sala de Guerra. Não

chegue tarde.

—Sim, senhor — afirmou Valek. Então, dirigiu-se para a porta. Eu o segui. Uma

vez mais, tivemos que sortear as mesas para poder encontrar a saída. Quando Valek se

deteve para conversar com outro conselheiro, eu olhei para ao redor de mim. Um punhado

dos conselheiros do Comandante eram mulheres e notei que haviam duas capitãs e uma

coronel. Aquele novo papel da mulher era um dos benefícios da mudança de regime. O

Comandante atribuía os postos apoiando-se na preparação e na inteligência, não no sexo.

Enquanto que a monarquia tinha preferido que o papel da mulher se limitasse ao de donzelas,

ajudantes de cozinha e esposa, o Comandante lhes dava a liberdade de escolher o que

queriam fazer. Algumas mulheres preferiam as anteriores ocupações, enquanto que outras

aproveitavam a oportunidade de ser algo diferente.

Quando por fim chegamos ao gabinete do Valek, Margg estava limpando os

montões de papéis que haviam sobre a mesa. Pareceu-me como se estivesse passando mais

tempo lendo os papéis que os ordenando. Não se tinha dado conta Valek? Perguntei-me o

que Margg faria para ele além de limpar.

Margg se voltou a olhar ao Valek com um agradável gesto no rosto, mas, assim

que ele não pôde vê-la dedicou um gesto de desprezo. Certamente devia ter perdido muito

dinheiro por minha sobrevivência. Apesar de tudo, sorri. Quando viu que Valek se dava a

volta, controlou a desagradável expressão de seu rosto.

—Yelena, parece esgotada. Faz-me sentir cansado com apenas te olhar. Vá

descansar. Retorna depois do almoço e prosseguiremos com seu adestramento.

Em realidade, não me sentia cansada, mas aquela sugestão me pareceu uma

excelente ideia. Não obstante, quando comecei a percorrer os corredores para me dirigir a

minha habitação, o cansaço começou a apoderar-se de mim. Tanto me custava andar que me

encontrei com dois dos soldados do Brazell sem que pudesse evitá-lo.

—Olhe Wren! Encontrei um rato! —exclamou um dos guardas, me agarrando pela

boneca.

—Me alegro por ti — respondeu o tal Wren — Vamos mostrar-lhe sua captura ao

general Brazell.

— O general não gosta dos ratos vivos. Em especial este.

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O soldado me sacudiu com força. A dor se estendeu rapidamente pelo braço,

ombro e pescoço. Presa do pânico, olhei por toda parte para ver se encontrava ajuda: O

corredor estava completamente deserto.

—É certo, prefere que os esfolem vivos.

Já tinha escutado mais que suficiente. Fiz o que qualquer rato tivesse feito. Mordi a

mão do soldado até que notei o sabor do sangue. Entre gritos e maldições do soldado,

aproveitei o fator surpresa para escapar. Atirei com força de meu braço e pus-me a correr.

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Capítulo 5

Estava a pouca distância dos soldados do Brazell quando estes se recuperaram da

surpresa e começaram a me perseguir. Ao estar completamente aterrorizada e livre de armas,

tinha uma ligeira vantagem sobre eles, mas sabia que não duraria. O esforço já me estava

passando fatura.

Os corredores estavam misteriosamente vazios. Desgraçadamente, embora me

encontrasse com alguém, não estava segura de que fossem ajudar-me nem de que

pudessem fazê-lo. Como um rato, minha única esperança de poder escapar era encontrar um

buraco no que me esconder.

Corria sem plano algum. Só me importava manter à dianteira que tinha com os

soldados. Muito em breve deixei de reconhecer onde estava.

A luz se ia fazendo cada vez mais tênue. Meus passos levantavam pó do chão.

Tinha-me dirigido a uma parte desabitada do castelo, um lugar perfeito para um assassinato

silencioso. Silencioso porque não ficaria ar nos pulmões para poder gritar. Girei à direita e me

introduzi em um corredor que estava sumido na mais profunda escuridão. Como,

momentaneamente, tinha perdido de vista aos soldados, empurrei a primeira porta que

encontrei. Esta se abriu um pouco e logo se entupiu por completo. O oco resultante era o

suficientemente grande para que me entrasse o corpo, mas não a cabeça. Para ouvir que os

soldados se aproximavam, lancei-me contra a porta. Moveu-se um pouco mais, o suficiente

para me permitir acesso à escura habitação. Então, caí ao chão.

Os soldados encontraram a porta. Horrorizada, observei como tratavam de abri-la.

O oco começou a fazer-se cada vez maior. Examinei a habitação quando os olhos se

acostumaram à escuridão. A sala estava amontoada de tapetes, talher de barris vazios e

sacos de grão podres. Sob uma janela, havia um montão de tapetes.

A porta se abriu um pouco mais antes de entupir-se de novo. Eu me pus de pé e

amontoei os barris em cima dos tapetes. Com dificuldade, subi a eles e alcancei a janela.

Então, descobri que era muito pequena para que eu pudesse atravessá-la.

A porta rangeu. Com o cotovelo, rompi o cristal da janela e, depois de retirar as

partes de cristal, joguei-os no chão. O braço começou a cobrir-se me de sangue. Sem me

preocupar com a dor, baixei-me rapidamente e me apertei com força contra a parede que

havia junto à porta. Então, esforcei-me por controlar minha agitada respiração. Com um forte

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grunhido, a porta se deteve poucos centímetros de meu rosto quando os soldados entraram

na habitação.

—Olhe pela janela. Eu cobrirei a porta — disse o chamado Wren.

Compreendi que meu plano não ia funcionar. Wren bloqueava minha única maneira

de escapar. A janela rota só conseguiria atrasar o inevitável.

—É muito pequena. Segue aqui — afirmou o outro soldado.

A respiração me acelerou em rápidos intentos por tomar ar. Estava em uma

ratoeira. Meus pensamentos começaram a tecer um matagal de imagens. Aferrei-me à porta

para não cair. Um ronrono começou a escapar da garganta. Resultava-me impossível contê-

lo. Esforçar-me por fazê-lo só parecia provocar que soasse com mais força.

Saí de detrás da porta. Apesar de todo o ruído que estava fazendo, os soldados

nem sequer se voltaram para me olhar. Pareciam completamente imóveis.

Meus pulmões tratavam de tomar ar. Quando estava a ponto de me deprimir, o

som cessou. Ainda seguia ressonando na sala, mas não provinha de mim.

Os soldados seguiram sem mover-se. Depois de respirar profundamente várias

vezes, saí correndo da habitação. Não ia perder tempo tratando de compreender. O ronrono

me seguia enquanto punha-se a correr pelo caminho que me tinha levado até ali.

Aquele estranho zumbido cessou assim que comecei a ver outras pessoas nos

corredores. Todos me olhavam de modo estranho, por isso compreendi que meu aspecto

devia ser espantoso. Obriguei-me a deixar de correr e a tratar de me acalmar.

A garganta ardia e tinha o uniforme manchado. O cotovelo doía muito e tinha os

dedos manchados de sangue. Ao me olhar, compreendi que me tinha talhado ao tratar de

retirar os cristais. Então, vi o sangue no chão.

Dava-me a volta e vi que havia gotas pelo chão, indicando o caminho que tinha

tomado. Levei-me os braços ao peito, mas já era muito tarde. Tinha deixado um rastro de

sangue e certamente os soldados do Brazell, que eram como cães de presa, estariam me

seguindo. De fato, acabavam de dar a volta à esquina e tinham tomado o corredor no que me

encontrava.

Como sabia que qualquer movimento brusco lhes chamaria a atenção, reuni-me

com um grupo de criados, esperando passar despercebida entre eles. Quando cheguei a uma

esquina, arrisquei-me a olhar por cima do ombro. Os guardas estavam no lugar exato no que

terminava o rastro de sangue. Wren fazia gestos como se estivesse discutindo com seus

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companheiros. Eu dava a volta à esquina sem que se fixassem em mim. Então, encontrei-me

com o Valek.

—Yelena! O que te ocorreu? —perguntou-me, me agarrando pelo braço.

Eu fiz um gesto de dor e ele me soltou.

—Eu... caí... sobre uns cristais quebrados — menti — Ia lavar-me.

Quando tratei de seguir com meu caminho, Valek me agarrou pelo ombro e fez que

desse a volta.

—Necessita que veja um médico.

—Eu... Está bem — disse, tratando de seguir com meu caminho.

—O médico está por aqui — replicou Valek, me obrigando a dar a volta e a tomar o

corredor em direção para os soldados.

Eu tinha esperado que não me vissem, mas, quando passamos a seu lado,

sorriram e começaram a caminhar detrás de nós.

Eu olhei ao Valek. Não havia expressão alguma em seu rosto, mas esticou ainda

mais a mão com que me agarrava pelo nomeio. Acaso conduzia a algum lugar escondido no

que os três pudessem me matar? Deveria tratar de escapar? Entretanto, se Valek me queria

morta, só tinha que negar-se a me dar o antídoto para o Pó de Mariposa.

Quando o corredor ficou deserto, Valek me soltou e se deu a volta para olhar aos

soldados. Eu fiquei perto dele.

—Perdeste-lhes? —perguntou-lhes.

—Não, senhor — respondeu Wren— Só queremos reclamar a nossa prisioneira —

acrescentou, tratando de me agarrar.

—Sua prisioneira? —replicou Valek, cortando o ar com uma gélida voz de aço.

Os soldados se olharam o um ao outro completamente incrédulos. Valek não tinha

armas. Os dois intercambiaram um arrogante sorriso. Certamente, Rand o cozinheiro

apostaria o salário de um mês a que os dois soldados ganhariam aquela discussão.

—Em realidade, é a prisioneira do general Brazell, senhor. Agora, se não lhe

importar... —disse Wren, fazendo um gesto ao Valek para que se apartasse.

— Digam a seu chefe que o Valek não gosta que se persiga a sua nova pupila por

todo o castelo. E que eu gostaria que a deixasse em paz.

Os guardas voltaram a olhar-se. Eu estava começando a suspeitar que

compartilhavam um único cérebro. Imediatamente, adotaram uma postura mais ofensiva.

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—Nos ordenou que levemos a garota ao general. Não quer mensagens — replicou

Wren, tirando-a espada da vagem.

Ao ver seu companheiro, o segundo soldado tirou também sua arma. Wren voltou a

lhe pedir ao Valek que se fizesse a um lado. O que poderia fazer Valek ao ver-se enfrentado

com duas espadas? O que eu pensava fazer era pôr-se a correr, assim que me preparei para

fugir.

A mão direita do Valek ficou em movimento. Realizou um rápido gesto, como se

tivesse saudado militarmente aos dois soldados. Antes que os homens pudessem reagir,

colocou-se entre eles, muito perto para que pudessem utilizar as espadas. Então, agachou-

se, pôs as mãos sobre o chão e se deu a volta. Com as pernas, realizou um molinete que deu

com os ossos dos dois soldados sobre o chão. Os dois caíram entre o estrondo do metal

contra o chão e ficaram completamente imóveis.

Atônita, observei como Valek se separava de seus inimigos. Contou em voz muito

baixa. Quando chegou a dez, inclinou-se sobre cada um dos homens e retirou um pequeno

dardo dos pescoços de ambos.

—Não é um modo muito limpo de lutar, mas chego tarde para almoçar.

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Capítulo 6

Por cima dos corpos dos dois soldados, Valek tomou o braço e o examinou.

—Não é tão grave como parece. Sobreviverá. Primeiro, iremos ver a Comandante

e depois ao médico.

Valek me conduziu apressadamente através do castelo. O braço tinha começado a

doer bastante, por isso comecei a ficar atrás. Além disso, a perspectiva de me encontrar com

o Comandante me impedia de caminhar. Ir ver o médico e tomar um banho quente resultava

sem dúvida muito mais atraente.

Entramos em uma espaçosa sala redonda que servia como sala de Guerra do

Comandante. Umas esbeltas vidraças decoravam as paredes do chão até o teto. O crisol de

cores me fez sentir como uma peonza. Tão enjoada estava que teria cansado ao chão se não

tivesse sido porque algo me cravou sobre o chão.

Uma larga mesa de madeira ocupava o centro da sala. À cabeça da mesma,

protegido por dois soldados, estava o Comandante. Tinha o cenho franzido em um gesto de

irritação. A seu lado, havia uma bandeja de comida intacta. Junto a ele, estavam sentados

três de seus generais. Dois deles estavam ocupados comendo enquanto o garfo do terceiro

parecia haver-se detido no ar. Centrei-me na mão. Os nódulos estavam brancos pela raiva. A

contra gosto, enfrentei ao olhar do general Brazell.

Este desceu por fim o garfo. Tinha o rosto muito tenso. Eu era o branco de sua ira,

e, como um coelho surpreso no claro de um bosque, sentia-me muito assustada para me

mover.

—Valek... —começou o Comandante Ambrose.

—Chegou tarde — terminou Valek— Sei. Sofremos uma ligeira briga —

acrescentou, fazendo que me aproximasse um pouco mais.

Intrigados, os outros dois generais deixaram de comer. Eu me ruborizei e

experimentei um profundo desejo de sair fugindo. Como não tinha tido contato com oficiais de

alta fila, reconheci aos generais por seus uniformes. Minha viagem às masmorras do

Comandante tinha sido a primeira vez que atravessava os limites do DM-5. De fato, durante

os dez primeiros anos de minha vida no orfanato do Brazell, só tinha visto sua família e a ele

em contadas ocasiões.

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Desgraçadamente, depois de cumprir os dezesseis anos, a imagem do Brazell e de

seu filho Reyad se converteu em meu pesadelo diário. Ao princípio, senti-me adulada pela

atenção de meu benfeitor. Com seu cabelo cinza, seu rosto agradável e seu ar de

respeitabilidade representava para mim a imagem perfeita da figura paterna. Brazell me disse

que eu era a mais linda de seus meninos “adotados” e pediu minha ajuda em alguns

experimentos. É obvio, eu me mostrei encantada de poder participar.

A lembrança da ingênua e agradecida que eu tinha me mostrado me provocava

náuseas. Isso tinha sido fazia três anos. Eu tinha sido um cachorrinho que não fazia mais que

menear a cauda ao escutar a voz de seu amo.

Tive que sofrer durante dois anos. Minha mente tratava de esquecer as

lembranças. Olhei ao Brazell sentado à mesa do Comandante. Tinha os lábios muito

apertados e a mandíbula lhe tremia. Quase não podia conter seu ódio. Muito tênue, o

fantasma de Reyad apareceu detrás de seu pai. Tinha um profundo corte aberto na garganta,

de que jorrava abundante sangue que lhe manchava a camisola. Não deixava de recordar um

conto que dizia que as vítimas de um assassinato não cessavam de acossar a seus

assassinos até que concluem sua vingança.

Esfreguei os olhos. Via alguém mais a aquele espectro? Se era assim, ocultavam-

no muito bem. Olhei ao Valek. Perseguiriam-lhe os fantasmas? Se aquela velha história era

certa, ele deveria estar acossado por eles.

Apesar de tudo, não lamentava o fato. O único que me arrependia era de não ter

tido o valor de matar ao Brazell quando tive a oportunidade. Desde não ter podido salvar a

minhas irmãs e irmãos do orfanato do horror que lhes esperava ao cumprir os dezesseis.

Desde não ter podido advertir a Mai e a Carra nem de ajudá-las a escapar.

A voz do Comandante me obrigou a me centrar na sala.

—Uma briga, Valek? —perguntou, com o tom que utilizaria um pai indulgente—

Quantos mortos?

—Nenhum. Não podia justificar a morte de uns soldados só porque obedeciam as

ordens do Brazell de caçar e assassinar à nova provadora de sua comida Comandante. Além

disso, não eram muito preparados. De fato, parece-me que ela estava a ponto de lhes dar um

desdobro quando se encontrou comigo. Menos mal que não pôde fazê-lo, porque se não,

jamais me teria informado do ocorrido.

O Comandante me observou durante um instante antes de centrar-se no Brazell.

Aquilo lhe bastou ao general. Levantou-se de um salto e começou a gritar.

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—Essa mulher deveria estar morta! Quero-a morta! Matou a meu filho!

—Mas o Código de Comportamento... —recordou-lhe Valek.

—Ao diabo com o Código. Sou um general. Ela matou ao filho de um general e

está aqui...

A emoção lhe impediu de seguir falando. Os dedos lhe tremiam como se quisesse

me agarrar pelo pescoço e me estrangular. O fantasma do Reyad flutuava detrás de seu pai,

com um sorriso nos lábios.

—Para mim, que esta mulher siga com vida representa uma desonra. Um insulto —

prosseguiu Brazell — Adestrem a outro prisioneiro. Quero-a morta!

Instintivamente, escondi-me detrás do Valek. Os outros generais assentiam e

indicavam sua aprovação. Eu me sentia muito aterrorizada para olhar ao Comandante.

—Tem razão — disse este, sem emoção alguma na voz.

—Jamais nos desviamos do que diz o Código de Comportamento — replicou

Valek— Se começarmos agora, sentaremos precedente. Além disso, teremos terminado com

a melhor provadora de comida que nunca tivemos. Quase terminei de adestrá-la —

acrescentou, indicando a bandeja de comida do Comandante.

Eu apareci um pouco para ver a expressão que se desenhava no rosto do

Comandante. Enquanto considerava o raciocínio do Valek, parecia pensativo. Eu cruzei meus

braços e, sem poder evitá-lo, cravei-me as unhas na carne.

Brazell, sentindo que o Comandante trocava de parecer, aproximou-se dele.

—É boa porque eu a eduquei. Não me posso acreditar que vás escutar a este

ladrão mentiroso e intrigante... —disse. Deteve-se imediatamente. Sabia que havia dito muito.

Tinha insultado ao Valek e inclusive eu tinha compreendido o muito que o Comandante

apreciava seu conselheiro.

—Brazell, deixa em paz a minha provadora de comida.

Eu respirei aliviada.

Brazell tratou de replicar, mas o Comandante o silenciou.

—É uma ordem. Constrói sua nova fábrica. Considera que tem minha aprovação —

disse.

Acaso valia mais uma fábrica nova que minha morte?

Todo mundo esperou em silêncio a resposta do Brazell. Ele me lançou um olhar

envenenado. O fantasma do Reyad sorriu e eu deduzi que aquela permissão era muito

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importante para o Brazell. Certamente, estava pensando que poderia construir sua fábrica

primeiro e me matar depois. Sabia perfeitamente onde me encontrar.

Brazell se levantou e partiu da sala sem dizer uma palavra mais. O divertido

fantasma se despediu de mim pronunciando em silêncio as palavras “Já nos veremos”. Então,

seguiu a seu pai.

Quando os outros generais começaram a protestar pela concessão daquela

permissão, o Comandante escutou seus argumentos em silêncio. Como momentaneamente

se esqueceram de mim, estudei-os a ambos. Seus uniformes eram parecidos com os do

Comandante, à exceção de que levavam jaquetas negras com botões de ouro. Em vez de

diamantes de verdade no pescoço, cada um tinha cinco rombos bordados sobre o peito

esquerdo. Não havia medalha alguma que decorasse seus uniformes.

Os rombos do general que tinham sentado perto do Comandante eram azuis. Era o

general Hazal, que estava a cargo do Distrito Militar 6, ao oeste do Brazell. Os do general

Tesso eram chapeados, que indicavam o DM-4, que ficava ao norte do Brazell. Se um distrito

planejava um grande projeto, como o era construir uma nova fábrica ou criar mais terras de

cultivo, requeria-se a permissão do Comandante. Para os projetos de menor importância,

como instalar um novo forno em uma tahona ou construir uma casa, só se necessitava a

aprovação do general do distrito. A maioria dos generais tinha pessoal que se ocupava da

tramitação das novas permissões.

Resultava evidente pelas queixas dos dois generais que a permissão do Brazell

ainda estava em seu processo inicial. Dito processo terminava com a assinatura do

Comandante, embora este tinha o poder de acelerar os trâmites.

Tinha-nos ensinado o Código de Comportamento no orfanato qualquer que

desejasse ter a honra de realizar recados na cidade tinha que memorizar e recitar o Código à

perfeição antes que lhe concedesse tal privilégio. Além de ler e escrever, a educação que eu

tinha recebido do Brazell tinha incluído também matemática e a história da mudança de

regime da Ixia. Desde dita mudança de poder, todo mundo tinha direito a receber educação.

Esta tinha deixado de ser privilégio dos homens das classes acomodadas.

Não obstante, minha educação deu um giro à pior quando comecei a “ajudar” ao

Brazell. As lembranças ameaçaram me afligindo. A pele parecia haver me esticado. Pus-se a

tremer e me obriguei a retornar ao presente. Os generais tinham deixado de replicar a decisão

do Comandante. Valek estava provando a comida fria do Comandante para aproximar-lhe

depois.

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—Suas preocupações ficam cotadas, mas minha ordem segue em pé — disse o

Comandante. Então, voltou-se para o Valek— Espero que esta moça seja digna de todos os

elogios que tem feito dela. Um engano e terá que preparar o seu substituto antes de te buscar

um novo destino. Pode partir.

Valek me agarrou pelo braço e me tirou da sala. Quando fechou a porta, voltou-se

para me olhar. Seu rosto parecia uma máscara de porcelana.

—Yelena...

—Não diga nada. Não me ameace nem trate de me intimidar. Já tive bastante com

o Brazell. Esforçarei-me tudo o que possa por ser a melhor e porque eu gosto da idéia de

seguir com vida. Além disso, não quero lhe dar ao Brazell a satisfação de lombriga morta.

Dito isto, separei-me dele. Valek me seguiu. Quando chegamos a uma intercessão,

ele me agarrou pelo cotovelo. Ouvi que pronunciava a palavra “médico” e me guiava à

esquerda. Sem voltar a olhá-lo, deixei que me levasse à enfermaria.

Levaram-me ao lado de uma mesa. Dali, contemplei o uniforme do médico, que era

tudo branco. A única nota de cor eram dois pequenos rombos vermelhos no pescoço. Estava

tão fatigada que demorei algum tempo em me dar conta de que se tratava de uma mulher.

Depois de lançar um grunhido, tombei-me na mesa.

Quando a mulher partiu para ir recolher o que necessitava, Valek me disse:

—Porei guardas na porta, se por acaso Brazell trocar de opinião.

Antes de partir da enfermaria, vi que falava com a médica. Ela assentiu e me olhou.

Retornou a meu lado com uma bandeja cheia de instrumental médico, que incluía uma jarra

de uma substância que parecia geléia. Ela esfregou meus braços com álcool, fazendo que as

feridas ardessem. Mordi o lábio para não gritar.

—São todas superficiais, à exceção desta — disse, me assinalando o cotovelo com

o que tinha quebrado o cristal— Terei que selar esta ferida.

—Selá-la?

A doutora tomou a jarra de geléia.

— Relaxe. É um novo método para tratar as lacerações profundas. Utilizamos esta

cola para selar a pele. Quando a ferida cicatriza, o corpo o absorve — me explicou. Então,

tirou uma boa quantidade do ungüento com os dedos e o aplicou ao corte.

Eu fiz um gesto de dor. Ela me beliscou a pele, unindo com força os borde da

ferida. As lágrimas começaram a me rodar pelas bochechas.

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—Inventou-o o cozinheiro do Comandante. Não há efeitos secundários e sabe

muito bem no chá.

—Rand? —perguntei, surpreendida.

Ela assentiu. Sem me soltar a pele, disse-me:

—Terá que levar uma atadura durante uns dias e evitar que o corte molhe.

Então, começou a soprar sobre a geléia para que se secasse. Quando terminou,

enfaixou-me o braço.

—Valek quer que fique aqui esta noite. Trarei-te o jantar para que possa

descansar.

Eu acreditava que comer ia custar um grande esforço, mas, quando a doutora me

levou a comida, dava-me conta de que estava morta de fome. Não obstante, um sabor

estranho no chá me tirou imediatamente o apetite.

Alguém tinha envenenado meu chá.

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Capítulo 7

Fiz um sinal à doutora com a mão.

—Há algo em meu chá — gritei. Estava começando a me sentir um pouco

enjoada— Chama o Valek.

Talvez ele tivesse um antídoto.

A mulher me olhou com uns enormes olhos pardos. Tinha o rosto comprido e

magro e o cabelo muito curto.

—É uma pílula para dormir. Ordens do Valek — respondeu.

Deixei escapar um suspiro. Sentia-me melhor. A doutora me dedicou um olhar

divertido antes de partir. Como já não tinha apetite algum, apartei a comida. Não necessitava

pílulas para dormir que me ajudassem a me render ao esgotamento que tinha terminado com

todas minhas forças.

Quando despertei à manhã seguinte, vi um vulto branco aos pés de minha cama.

Movia-se. Pisquei até que consegui centrar a imagem. Era a doutora.

—Passaste boa noite?

—Sim — respondi. De fato, tinha sido primeira em muito tempo sem pesadelos.

Não obstante, sentia a cabeça como se tivessem enchido de lã. Além disso, o

gosto amargo que sentia na boca não pressagiava uma boa manhã.

A doutora examinou a vendagem e, depois de lançar um som que não significava

nada, disse-me que o café da manhã demoraria um momento.

Enquanto esperava, examinei a enfermaria. A sala retangular tinha doze camas,

seis a cada lado. Os lençóis de cada uma delas estavam tensas como a corda de um arco. A

ordem e a precisão que reinava na sala me incomodavam. Sentia-me como uma cama

revolta. Já não podia controlar nem minha alma nem meu corpo nem meu mundo. Angustiada

rodeada por tanta ordem que me incomodava. Senti um desejo irrefreável de saltar em cima

das camas para desfazê-las.

Eu estava na mais afastada da porta. Continuando, havia duas camas vazias entre

mim e os outros três pacientes, que dormiam placidamente. Não tinha ninguém com quem

falar. As paredes careciam por completo de decoração. De fato, as de minha cela tinham sido

mais interessantes. Ao menos, na enfermaria cheirava melhor. Respirei profundamente. Notei

o duro aroma do álcool misturado com o do desinfetante, tão diferente do ar fétido das

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masmorras. Muito melhor. Ou não? Havia outro aroma misturado. Voltei a aspirar e me dava

conta de que o amargo aroma do medo emanava de mim.

Não deveria ter sobrevivido ao dia anterior. Os soldados do Brazell me tinham

encurralada. Não havia escapatória. Entretanto, um estranho zumbido que surgiu de minha

garganta me tinha salvado.

Tratei de evitar pensar que aquele som era um velho amigo meu, mas as

lembranças resultavam implacáveis. Depois de examinar os três anos anteriores, obriguei-me

a me concentrar no momento no que tinha começado a notar aquele zumbido. Os dois

primeiros meses dos experimentos do Brazell se limitaram a pôr a prova meus reflexos. Quão

rápido era capaz de esquivar uma bola ou me agachar sob um pau. Tudo tinha resultado

bastante inofensivo até que a bola se transformou em uma faca e o pau em uma espada.

O coração começou a pulsar com força. Com a mão suarenta, toquei uma cicatriz

que tinha no pescoço. “Não sinto nada”, disse-me, apartando as mãos como se assim

pudesse afastar também o medo.

O que veio depois? Provas de força e resistência. Tarefas singelas nas que se

levantavam pesos, que depois se converteram em pedras que terei que sustentar por cima da

cabeça, primeiro durante minutos e logo durante horas. Se a pedra caía antes que o tempo

terminasse, vinham as chicotadas. Depois, veio o de agarrar-se a cadeias que penduravam

do teto, sustentando o peso a centímetros por cima do chão.

Foi então quando começou o zumbido. Eu tinha solto as cadeias muito logo em

muitas ocasiões, o que provocava a ira do Reyad. Então, ele me obrigou a sair a uma janela,

que estava situada a seis metros do chão. Ali, disse-me que devia me sujeitar ao batente com

as mãos.

—Tentemo-lo de novo — disse Reyad— Agora que há muito mais que perder,

talvez dure a hora inteira.

Eu tinha os braços debilitados por me haver passado o dia pendurando das

cadeias e os dedos úmidos de suor. Os músculos tremiam de fadiga. Tive medo. Quando os

dedos escorregaram do batente, comecei a uivar como um recém-nascido. O uivo se

transformou em substância. Pareceu expandir-se, me acariciar a pele por todos os lados.

Sentia-me como se descansasse em um quente lago de água.

Continuando, vi-me sentada no chão. Olhei para a janela e vi que Reyad me

observava atônito. Tinha o cabelo revolto. Encantado, atirou-me um beijo. O único modo no

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que eu poderia ter sobrevivido tinha que ter sido graças à magia. Não. Tinha que ter sido por

umas estranhas correntes de ar que tinham me levado até o chão. Não pela magia.

A palavra magia estava proibida na Ixia desde que o Comandante Ambrose tinha

assumido o poder. Tratou-se aos magos como se fossem uma praga de mosquitos. Tinha-

lhes caçado, apanhado e exterminado. Qualquer sugestão de que alguém tinha poderes

mágicos era uma sentença de morte. A única oportunidade de sobreviver era escapar a Sitia.

Para me distrair das lembranças, contei as gretas que havia no teto. Tinha chegado a

cinqüenta e seis quando Valek apareceu na enfermaria.

Levava uma bandeja de comida em uma mão e uma pasta na outra. Examinei a

omelete com certa suspeita.

—O que tem? —perguntei— Mais pílulas para dormir? Ou acaso um novo

veneno? O que há sobre me dar algo que me faça sentir bem, para variar?

—O que te parece melhor para te manter com vida? —replicou ele. Incorporei-me

na cama e me ofereceu a pipeta com meu antídoto. Então, colocou-me a bandeja no regaço—

Já não necessita pílulas para dormir. A doutora há me dito que notou o sabor ontem à noite —

acrescentou com uma nota de aprovação na voz— Saboreia seu café da manhã e me diga

se permitiria que o Comandante tomasse.

Valek não tinha exagerado quando me disse que eu não tinha dias livres. Suspirei

e cheirei a omelete. Não notei nada estranho. Cortei a omelete em quartos e examinei cada

um deles. Então, tomei um pouquinho de cada seção e coloquei um por um na boca,

mastigando cuidadosamente. Traguei e esperei para ver se tinham algum gosto estranho.

Então, cheirei o chá e o movi com uma colher antes de lhe dar um sorvo. Antes de tragá-lo,

notei um sabor doce.

—A menos que o Comandante não goste de mel no chá, eu não rechaçaria este

café da manhã.

—Então, come-o.

Duvidei. Acaso estava Valek tratando de me enganar? A menos que tivesse

utilizado um veneno que eu não tinha aprendido, o café da manhã estava limpo. Comi-o todo

e logo bebi o chá enquanto Valek me observava.

—Não esteve mal — disse— Hoje... Não houve venenos.

Um dos doutores levou outra bandeja ao Valek. Aquela tinha quatro taças brancas

com uma líquida cor azeitona que cheirava a hortelã.

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—Quero repassar contigo algumas técnicas. Cada uma destas taças contém uma

infusão de hortelã. Saboreia uma delas.

Agarrei a mais próxima e dava um sorvo. Um entristecedor sabor a hortelã alagou

meus papilas gustativas, tanto que me engasguei. Valek sorriu.

—Notas algo mais?

Eu tomei outro sorvo, mas a hortelã era o sabor predominante. —Não.

—Muito bem. Agora, belisque o nariz e prova de novo.

Depois de fazer certo malabarismo com o braço que tinha enfaixado, consegui

tomar o chá com o nariz tampado. Maravilhei-me ante o sabor que notava.

—É doce. Nada de memora — disse. Como minha voz soava ridícula, soltei-me o

nariz. Imediatamente, o sabor a hortelã eclipsou todo o resto.

—Correto. Agora prova com os outros. A seguinte taça escondia um sabor azedo.

A terceira é amarga e a última salgado.

—Esta técnica funciona para qualquer outra comida ou bebida. Quando se bloqueia

o sentido do olfato, todos outros aromas desaparecem, à exceção do doce, do amargo, do

azedo e do salgado. Alguns venenos podem reconhecer-se só por um desses quatro sabores

— disse Valek. Então, examinou a pasta que tinha na mão— Aqui tem uma boa completa de

todos os venenos humanos e seus distintos sabores para que a memorize. Há cinqüenta e

dois venenos conhecidos.

Examinei o inventário de venenos. Alguns já os conhecia. “Meu amor” encabeçava

a boa. Aquela contagem me teria evitado dores de cabeça, náuseas, enjôos e paranóias.

—Por que não me deu esta boa em vez de me fazer saborear o “Meu amor”?

—E o que é o que se pode aprender de uma boa? O Kattsgut sabe doce. Como

exatamente? Doce como o mel? Como uma maçã? Há diferentes níveis de doçura e o único

modo de aprendê-los é saboreando-os pessoalmente. A única razão pela que te dou esta boa

é porque o Comandante quer que se ponha a trabalhar o antes possível. Só porque não vás

saborear estes venenos agora não significa que não vás fazer o no futuro. Memoriza-a.

Quando o médico te dê alta, porei a prova seus conhecimentos. Se passar, poderá começar a

trabalhar.

—E se fracasso?

—Então, começarei a adestrar a um novo provador.

A voz de Valek ressonou monótona, sem emoção, mas o significado das palavras

fez que me detivesse o coração.

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—Brazell estará duas semanas mais no castelo. Tem mais assuntos dos que

ocupar-se. Não posso te ter vigiada todo o dia, por isso Margg te está preparando uma

habitação nas minhas. Retornarei mais tarde para ver quando o médico vai dar alta.

Observei como Valek se dirigia à porta. O fazia de um modo equilibrado e atlético.

Sacudi a cabeça. Pensar no Valek era quão pior eu poderia fazer. Em vez disso, centrei-me

na boa de venenos. Alegrou-me ver que a caligrafia resultava legível, por isso comecei a

estudar.

Quase não me dava conta do momento que a doutora se aproximou para ver como tinha o

braço. Deveu haver-se levado a bandeja com as taças, porque esta tinha desaparecido de

meu regaço. Tinha-me concentrado tanto que me sobressaltei profundamente quando me

colocaram sob o nariz um prato com um bolo redondo.

O braço que sustentava aquele prato era o do Rand. Tinha um alegre sorriso no

rosto.

—Olhe o que consegui te trazer apesar da doutora! Venha, comete-o antes que ela

retorne.

A quente sobremesa cheirava a canela. A calda de açúcar caía pelos lados,

provocando que me pegassem os dedos. Examinei cuidadosamente o bolo, tratando de

encontrar algum aroma estranho. Um pequeno bocado revelou múltiplas capas de massa e

canela.

—Meu deus, Yelena. Acaso pensa que sou capaz de havê-lo envenenado? —

perguntou Rand, muito ofendido.

Aquilo era exatamente o que tinha estado pensando, mas não queria admiti-lo

diante do Rand. Os motivos de sua visita resultavam algo escuro. Parecia amável e simpático,

mas podia ser que seguisse molesto pelo ocorrido a seu amigo Oscove, o anterior provador.

Não obstante, podia ser um aliado potencial.

A quem melhor poderia ter a meu lado? Ao Rand, o cozinheiro, cuja comida estaria

provando diariamente ou ao Valek, o assassino, que tinha a desagradável tendência a

envenenar minhas comidas?

—Deformação profissional — respondi. Ele grunhiu. Ainda parecia molesto. Dava

um bocado maior ao bolo— Maravilhoso — acrescentei, apelando a seu ego para que me

desse outra oportunidade.

—A que sim? —replicou ele, mais contente— É minha última criação. Entretanto,

está-me custando lhe encontrar nome. É obvio, não o diga à doutora. Não gosta que seus

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pacientes comam nada mais que uma papa que ela prepara. Diz que essa papa beneficia a

cura. É obvio que produz seu efeito! Sabem tão mal que todo mundo quer partir quanto antes

para poder tomar uma comida decente. Bom, como te encontra? —acrescentou, inclinando-se

sobre mim para que não pudessem lhe escutar o resto dos pacientes.

Voltei a sentir certa cautela. Por que tinha que lhe importar a ele?

—Acaso tornaste a realizar uma aposta?

—Sempre estamos apostando — admitiu— As apostas e as intrigas é quão único

fazemos os criados. O que outra coisa se pode fazer? Deveria ter visto a comoção e as

apostas que tiveram lugar quando viram que lhe perseguiam os gorilas do Brazell.

Ninguém veio me ajudar — disse, um pouco afligida— Os corredores estavam

completamente desertos.

—Isso teria sido implicar-se em uma situação que não nos afeta diretamente. Os

criados jamais fazem algo assim. Somos como baratas na escuridão. Se brilhar uma luz... puf!

Evaporamo-nos — acrescentou, estalando os dedos para dar ênfase a suas palavras.

Eu me senti como a barata a que sempre surpreendia a luz.

—Bom — prosseguiu — Todas as apostas foram em seu contrário. A maioria

perdeu muito dinheiro enquanto que só uns poucos... ganharam muitos.

—E, dado que você está aqui, suponho que você foi dos que ganharam.

—Yelena — disse ele com um sorriso — Eu sempre vou apostar por ti. É como um

dos cães do Comandante. Pequeno, ladrador, um cão ao que ninguém lhe emprestaria

atenção, mas, que quando remói, não solta sua presa facilmente.

—Se envenenar a carne do cão, este não voltará a incomodar.

—Problemas? —perguntou Rand com tom preocupado.

Surpreendida de que os canais de fofoca do castelo não tivessem começado a

realizar apostas sobre a prova do Valek, duvidei. Ao Rand gostava de muito falar e poderia

me colocar em uma confusão.

—Não. É que isto de ser a provadora da comida...

Rand assentiu, aparentemente satisfeito com a explicação. Passou-se o resto da

tarde alternando as lembranças do Oscove com as possíveis novas receitas. Quando Valek

chegou, deixou de falar, empalideceu e partiu com a desculpa de que tinha que comprovar

como ia o jantar. Valek o observou atentamente enquanto saía da enfermaria.

—O que estava fazendo aqui?

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A expressão de seu rosto era neutra, mas a atitude de seu corpo mostrava que

estava zangado. Escolhendo as palavras com muito cuidado, expliquei-lhe que Rand tinha ido

visitar-me.

—Quando o conheceu?

—Depois de que me recuperei de “Meu amor” fui procurar comida e me encontrei

com o Rand na cozinha.

—Tome cuidado com o que diz em sua presença. Não te pode confiar nele. Eu não

lhe teria confirmado em seu posto, mas o Comandante insistiu em que ficasse. É um gênio na

cozinha, uma espécie de protegido. Começou a cozinhar para o Rei quando era muito jovem.

Valek me observava com frios olhos. Talvez aquela fosse a razão pelo que não tinha sentido

simpatia pelo Oscove. Compreendi que ser amiga de alguém que tinha sido leal ao Rei

poderia me ocasionar problemas. Entretanto, consentir que Valek me colocasse medo...

Olhei-o fixamente, tanto que consegui que ele apartasse o olhar. Senti-me jubilosa. Ao fim lhe

tinha ganho uma vez.

—Dar-lhe-ão alta amanhã pela manhã — me informou Valek— Te Arrume e te

apresente em meu gabinete para realizar sua prova. Embora passe, não acreditarei que

esteja preparada, mas o Comandante me ordenou que esteja disponível na hora de comer. É

um atalho — acrescentou, meneando a cabeça — E eu não gosto dos atalhos.

—Por quê? Assim não terá que seguir te pondo em perigo — repliquei, me

arrependendo em seguida de ter pronunciado aquelas palavras.

—Em minha experiência, os atalhos normalmente conduzem à morte.

—É isso o que ocorreu a meu predecessor? — Perguntei, incapaz de aguentar a

curiosidade. Confirmaria ou negaria Valek às teorias do Rand?

—Oscove? Não tinha estômago para isto.

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Capítulo 8

Quando despertei à manhã seguinte, ainda tinha a boa de venenos do Valek na

mão. Estive repassando o inventário de venenos até que a doutora me deu alta.

Enquanto me dirigia à porta, meus machucados músculos protestavam com cada

movimento. Deveria haver me sentido contente por poder abandonar a enfermaria, mas me

sentia muito nervosa. Parecia que tinha um camundongo vivo no estômago, que não fazia

mais que me mordiscar por dentro para conseguir escapar.

Os guardas que estavam postados nas portas da enfermaria me assustaram.

Entretanto, não foram embelezados com as cores do Brazell. Então, recordei que Valek havia

dito que estariam ali para me proteger até que eu me apresentasse em seu gabinete.

Olhei ao meu redor para averiguar onde estava, mas não tinha nem idéia de que

caminho tomar para ir a minha habitação. Levava dezoito dias vivendo no castelo, mas ainda

não estava segura de sua disposição interna. Além disso, desconhecia como era sua forma

exterior, dado que jamais o tinha visto por fora.

A carruagem da prisão tinha me levado ao castelo e, é obvio, este carecia de

janelas. Só tinha uns pequenos buracos pelos que eu tinha me negado a olhar para não

parecer um animal enjaulado, portanto, não ficou mais remédio que pedir aos soldados que

me indicassem o caminho. Eles me guiaram sem palavras. Levava um diante e outro detrás e

só me permitiram entrar em meu quarto depois que o primeiro se assegurou de que era um

lugar seguro.

Meu uniforme seguia no armário tal e como eu o tinha deixado, mas alguém tinha

estado folheando meu jornal. Em vez de estar na gaveta da mesa, onde eu o tinha guardado,

jazia aberto sobre esta. Alguém tinha estado lendo as notas que tinha estado realizando sobre

os venenos. Senti uma dura e fria sensação.

Imediatamente, suspeitei do Valek. Ele era o suficientemente ousado para registrar

meus papéis pessoais. Provavelmente até tinha decidido que era seu dever assegurar-se de

que não estava tramando nada. Depois de tudo, eu só era uma provadora de comida. Não

tinha direito a nenhuma classe de intimidade. Tomei meu jornal e meu uniforme e saí de

minha habitação. Então, dirigi aos banhos. Os guardas esperaram no exterior enquanto

tomava um banho. Tomei meu tempo. Valek e sua prova poderiam esperar. Não ia obedecer

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suas ordens como um cordeiro. Quando por fim cheguei ao gabinete do Valek, cortei todo

comentário que ele pudesse fazer lhe perguntando:

—Onde está minha prova?

Um gesto de diversão lhe desenhou no rosto. Levantou-se e, com um dramático

gesto, mostrou-me duas filas de comida e bebidas sobre a mesa.

—Só um destes artigos não está envenenado. Encontra-o. Então, come ou bebe o

que tenha elegido.

Provei-os um por um. Cheirei, fiz gargarejos, tampei-me o nariz, dava pequenos bocados,

cuspi... A maior parte das comidas resultava muito insípida, por isso resultava muito fácil

descobrir o veneno. Pelo contrário, as bebidas de frutas mascaravam o veneno.

Quando terminei, voltei-me para o Valek.

—É um canalha. Estão todas envenenadas.

—Está segura?

—É obvio. Eu não comeria nem beberia nada do que há sobre essa mesa.

Valek se dirigiu à mesa com rosto pétreo.

—Sinto muito, Yelena. Falhaste.

Senti que a alma caía aos pés. O camundongo pareceu ressuscitar e começou de

novo a me fazer buracos nas tripas. Voltei a examinar a mesa. O que tinha passado por cima?

Nada. Eu estava no certo. Desafiei ao Valek para que me demonstrasse que me

tinha equivocado. Sem duvidá-lo, ele levantou uma taça.

—Esta não está envenenada.

—Beba. Repliquei-lhe. Recordava perfeitamente aquela taça. Estava enfeitada com

um veneno amargo.

A mão do Valek tremeu um pouco. Deu um sorvo. Talvez eu tivesse me

equivocado. Talvez tenha sido a taça do lado... Valek olhou aos meus olhos enquanto fazia

que o líquido lhe percorresse a língua. Então, cuspiu-o.

Eu queria saltar, gritar de alegria, dançar a seu redor. Em vez disso, disse:

—Veneno de amoras.

—Assim é — admitiu, sem deixar de examinar a taça que tinha na mão e o resto da

comida.

—Aprovei?

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Sem deixar de parecer distraído, assentiu. Então, dirigiu-se a seu escritório e,

brandamente, deixou a taça sobre sua superfície. Sacudindo a cabeça, tomou uns papéis

para voltar a deixá-los sobre a mesa sem ler.

—Teria que haver imaginado que trataria de me enganar.

O tom esquentado de minha voz fez que Valek me olhasse. Então, desejei ter

guardado silêncio.

—Está muito acesa e isto não tem nada que ver com a prova. Te explique.

—Explicar? Por que tenho eu que explicar nada? Talvez você deveria me explicar a

mim por que teve que ler meu jornal.

—Seu jornal? —repetiu Valek, atônito— Eu não tenho lido nada teu, mas, se o

tivesse feito, teria estado em meu direito.

—Por quê?

Valek me olhou com incredulidade. Abriu a boca e a fechou várias vezes antes de

poder pôr voz a seus pensamentos.

—Yelena, confessou ter cometido um assassinato. De fato, surpreenderam-lhe

sentada escarranchada sobre o corpo do Reyad com uma faca ensanguentada na mão.

Procurei um motivo em seu expediente. Não encontrei nada. Tão somente que te tinha

negado a responder a todas as perguntas. Dado que não conheço os motivos que tem para

matar, não sei se voltará a fazê-lo ou o que poderia te provocar a fazê-lo. Como obedeço

fielmente o Código de Comportamento, tive que te oferecer o posto de nova provadora. Vais

estar muito perto do Comandante diariamente. Até que possa confiar em ti, estarei te

vigiando.

Minha ira se foi apagando. Por que ia esperar que Valek confiasse em mim quando

eu não confiava nele? Recuperei a compostura.

—Como posso ganhar sua confiança?

—Me dizendo por que matou ao Reyad.

—Ainda não está preparado para acreditar.

Valek apartou o olhar. Eu cobri a boca com a mão. Por que tinha tido que utilizar a

palavra “preparado”? Sorte uma palavra implicava que algum dia poderia me acreditar, algo

que só podia ser um desejo por minha parte.

—Tem razão — disse ele.

—Bem — repliquei eu depois de um comprido silêncio— Aprovei seu exame. Quero

meu antídoto. Valek preparou imediatamente uma dose e me entregou.

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—Agora o que? —quis saber.

—O almoço. Chegaremos tarde — respondeu, me fazendo sair a toda pressa pela

porta. Enquanto avançávamos, tomei o líquido esbranquiçado.

Enquanto nos aproximávamos da sala do trono, começou a escutar o som de muitas

vozes. Dois dos conselheiros do Comandante estavam discutindo. Oficiais e soldados se

formavam redemoinhos detrás dos dois conselheiros. O Comandante estava apoiado contra

um escritório próximo, escutando atentamente.

O grupo discutia o melhor modo de localizar e capturar a um fugitivo. Um dos

bandos insistia em uma boa quantidade de soldados e cães, enquanto que o outro afirmava

que serviria com um grupo dos melhores soldados. A força bruta contra a inteligência.

O intercâmbio, apesar de estar desenvolvendo-se em voz muito alta, não era irado.

Todos pareciam bastante relaxados. Dava por sentado que aquela classe de debate era muito

comum, mas me perguntei se o fugitivo seria uma pessoa real ou só parte de um exercício

hipotético.

Valek se aproximou do Comandante. Eu me coloquei atrás deles. O debate fez que

me pusesse a tremer porque não pude evitar imaginar como o pobre diabo ao que queria

caçar. Imaginei correndo pelos bosques, sem fôlego, incapaz de entrar em uma cidade

porque um rosto novo alertaria aos soldados de patrulha, soldados aborrecidos cujo único

trabalho era observar e que conheciam todos os habitantes da cidade.

Todos os cidadãos da Ixia tinham um trabalho em concreto. Depois da mudança de

regime, todo mundo tinha uma ocupação atribuída. Permitia-se que os cidadãos passassem a

viver a uma cidade diferente e inclusive a outro Distrito Militar, mas se necessitavam papéis

para fazê-lo, a aprovação do supervisor e provas de que se tinha uma ocupação na nova

direção. Sem tais documentos, todo cidadão que se encontrasse no bairro equivocado

poderia ser detido. Podiam-se visitar outros distritos, mas só quando se tivessem os papéis

correspondentes e se mostrassem aos soldados a sua chegada.

Enquanto trabalhava para o Brazell e Reyad, tinha pensado obsessivamente na

fuga. Pensar na liberdade era melhor que fazê-lo sobre minha vida como rato de laboratório.

Sem família nem amigos que me ocultassem, as terras do sul eram minha melhor opção,

assumindo que pudesse atravessar a bem protegida fronteira.

Tinha imaginado elaboradas fantasias nas que me escapava a Sitia, encontrava uma

família adotiva e o amor. Era um lixo troca e sentimental, mas supunha meu elixir. Todos os

dias, quando começavam os experimentos, centrava minha mente em Sitia, onde poderia

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encontrar cores brilhantes, gestos carinhosos e calor. Conseguia suportar os experimentos do

Reyad com aquelas imagens em mente.

Entretanto, embora me tivesse dado a oportunidade de escapar, não sei se a tivesse

aceito. Embora não recordava nada de minha família biológica, sim que tinha uma família

vivendo naquele casarão. Os outros órfãos. Minhas irmãs. Meus irmãos. Aprendia com eles,

jogava com eles e cuidava deles. Como podia abandoná-los? Não podia suportar pensar que

Mai ou Carra pudessem ocupar meu lugar.

Mordi o dedo até que notei o sabor do sangue. Isto me fez retornar ao presente.

Tinha escapado do Brazell. Ele partiria do castelo dentro de duas semanas e retornaria a sua

casa, provavelmente para começar a seguinte ronda de experimentos com um rato de

laboratório diferente. Sofri por ela, fora quem fora. Brazell era brutal. Esperavam-lhe

momentos muito duros. Não obstante, ao menos a tinha liberado do Reyad.

Apartei a mão da boca e examinei a dentada. Não era muito profundo, por isso não

deixaria cicatriz. Risquei com um dedo a rede de pequenas cicatrizes semicirculares que me

cobriam os nódulos e os dedos. Quando levantei o olhar, vi que Valek estava me observando.

Rapidamente, ocultei as mãos atrás das costas.

O Comandante levantou a mão. O silêncio se fez em um instante.

—Enumerastes uns motivos excelentes em ambos os bandos. Poremos suas teorias

à prova. Duas equipes — disse, assinalando aos dois oradores principais— Vós dois serão

os capitães. Formem suas equipes e organizem um plano de ataque. Recrutem a todos os

que necessitem. Valek proporcionará um fugitivo entre um de seus homens. Têm quinze dias

para preparar tudo.

O ruído se acrescentou quando o Comandante se dirigiu a seu escritório, seguido

pelo Valek e por mim. Foi Valek o que fechou a porta.

—Ainda lhe preocupa que Marrok escapasse a Sitia? —perguntou-lhe.

—Sim. Foi uma perseguição nefasta. Marrok devia saber que você estava no DM-8.

Deveria adestrar a um par de protegidos.

Valek o olhou fingindo horror.

—Então, eu não seria indispensável — comentou.

O Comandante sorriu e me olhou.

—Bom, com esta moça tinha razão. Ela superou sua prova. Vem aqui, jovenzinha —

acrescentou. Eu obedeci, apesar dos amalucados batimentos do coração de meu coração—

Como a provadora oficial de minha comida, apresentar-te ante mim com meu café da manhã.

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Eu te darei o itinerário diário e esperarei que esteja presente em cada comida. Não aceitarei

atrasos. Compreendido?

—Sim, senhor.

—Parece muito frágil, Valek. Está seguro de que serve para isto?

—Sim, senhor.

Apesar de tudo, o Comandante não parecia estar convencido

—Muito bem. Dado que não almocei, Valek, você me acompanhará durante um

jantar. Yelena, você começará a trabalhar amanhã.

—Sim, senhor — dissemos Valek e eu em uníssono. Então, partimo-nos do

despacho.

Retornamos ao gabinete do Valek para recolher meu uniforme e meu jornal. Então,

Valek acompanhou a suas habitações, que estavam situadas na parte central do castelo.

Enquanto percorríamos os corredores, notei que havia uma série de zonas mais claras nas

paredes, o que me levou a pensar que se deviam ter desprendido todos os quadros. Ocorreu-

me que o estilo funcional e austero do Comandante lhe tinha arrebatado ao castelo seu

caráter. Quão único ficava era a pedra morta com o único fim de resultar útil.

Eu era muito jovem para recordar como tinha sido a vida antes da mudança de

regime, mas no orfanato do Brazell tinham ensinado que a monarquia era corrupta e que os

cidadãos não estavam contentes. A mudança de regime tinha sido precisamente isso. Não se

podia chamar guerra. A maioria dos soldados do Rei tinham jurado lealdade ao Comandante.

Enojava-lhes que todas as ascensões se apoiassem em subornos ou em vínculos de sangue

em vez de no trabalho duro e a perícia. As ordens de executar a pessoas por delitos muito

pequenos só porque um membro da elite se sentia ultrajado não caía bem entre os homens.

O Comandante tinha incluído as mulheres em sua causa e estas se converteram em

excelentes espiões. Valek assassinou aos principais protetores do Rei. Quando este tratou de

elevar um exército para enfrentar-se ao do Comandante, não teve ninguém que o defendesse.

O Comandante capturou o castelo sem derramamento de sangue. A maior parte dos nobres

já tinha morrido e o resto tinha escapado a Sitia.

Valek e eu chegamos por fim frente a um par de imponentes leva de madeira,

flanqueadas por dois soldados. Valek lhes informou que deveriam me franquear o acesso tal e

como eu necessitasse. Entramos em um pequeno saguão com duas portas. Valek abriu a da

direita e me explicou que a outra conduzia às habitações do Comandante.

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As habitações do Valek eram muito grandes. Depois do escuro corredor,

surpreendeu-me a luminosidade do salão. Janelas tão finas como as raias de um tigre

permitiam que entrasse a luz a torrentes. Havia livros por toda parte, além de pedras e cristais

multicoloridos. Também se distinguiam pequenas estátuas de animais e flores, adornadas

com prata. Resultavam muito delicadas e detalhadas e se pareciam com as panteras que

tinha visto no gabinete do Valek. Constituíam o único elemento decorativo da sala.

Das paredes pendurava uma considerável coleção de armas. Algumas eram velhas

e estavam cobertas de pó, o que indicava que não tinham sido utilizadas desde fazia anos.

Pelo contrário, outras brilhavam. Uma faca comprida e fina ainda tinha sangue na folha.

Aquela visão me fez tremer. Perguntei-me quem teria estado ao outro lado daquela folha.

À esquerda da entrada havia uma escada e três portas à direita do salão. Valek

assinalou a primeira.

—Essa habitação será tua até que Brazell parta do castelo. Sugiro-te que descanse

um pouco — disse.

Então, tomou três livros de uma mesa— Eu retornarei mais tarde. Não saia. Trarei-

te o jantar. Quando eu tenha partido, fecha com chave a porta. Aqui deve estar a salvo.

“A salvo”, pensei, enquanto fechava o ferrolho. Jamais poderia me sentir a salvo ali.

Qualquer que soubesse como forçar uma fechadura, poderia entrar, agarrar uma arma e

acabar comigo. Examinei as espadas que penduravam da parede e suspirei com alívio.

Estavam bem asseguradas sobre a parede. Atirei com força uma maçã, só para me certificar.

A desordem que havia ao redor de minha porta era mais do que havia junto às

outras duas. Quando entrei, descobri por que. Sobre o chão, havia marcas de caixas sobre a

poeirenta superfície do chão. O mesmo pó se adivinhava sobre a cama, a escrivaninha e o

escritório. Evidentemente, aquela habitação tinha sido utilizada como armazém. Em vez de

limpá-la, Margg se tinha limitado a mover as caixas, considerando assim seu trabalho feito.

O mínimo trabalho que realizava era uma indicação muito clara da grande antipatia

que sentia por mim. Talvez fosse melhor evitar sua companhia no futuro. A roupa da cama

estava muito suja e cheirava a mofo por toda parte. Espirrei. Havia uma pequena janela, que

abri depois de brigar com as venezianas. Os móveis estavam realizados com cara madeira de

ébano. Intrincadas talhas de folhas e parras adornavam as patas das cadeiras e as gavetas.

Quando limpei o pó da cabeceira, descobri uma delicada cena de um jardim, cheio de flores e

mariposas.

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Depois de tirar os lençóis sujos da cama, tombei-me no colchão. Então, a

impressão que eu tinha de Margg como uma mulher resmungona mas inofensiva se esfumou

por completo. Acabava de ver uma mensagem que tinha sido escrito sobre o pó do escritório.

Dizia: “Assassina. A forca te espera”.

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Capítulo 9

Levantei-me de um salto da cama. Imediatamente, a mensagem desapareceu, mas

eu não me senti nada melhor. O medo me assaltava o coração imaginando uma situação

terrível atrás de outra. Estava Margg me advertindo ou me ameaçando? Estava pensando

recuperar o dinheiro que tinha perdido apostando contra mim me entregando aos gorilas do

Brazell por uma quantidade?

Por que me ia advertir? Tranqüilizei-me. Uma vez mais, minha reação tinha sido

exagerada. Por isso tinha visto e ouvido de Margg, sua mensagem respondia tão somente à

satisfação de me assustar. Uma pequena vingança por ter que trabalhar mais por minha

culpa. Decidi que seria melhor que não soubesse que eu tinha visto aquela infantil nota ou

que me havia sentido assustada por ela. Pensando-o bem, estava segura de que tinha sido

ela que tinha lido meu jornal e que o tinha deixado aberto sobre o escritório só para me

zangar.

Valek tinha sugerido que descansasse, mas estava muito nervosa. Fui ao salão. A

nota de Margg tinha recordado que não baixasse a guarda e que não confiasse em ninguém.

Então, minhas preocupações se reduziriam à comida do Comandante e a evitar ao Brazell.

Oxalá fora tão singelo ou eu fora tão forte... Talvez Reyad e Brazell tivessem

arrebatado a ingenuidade e a confiança cega em outros, mas, no mais profundo de meu ser,

ainda me aferrava à esperança de encontrar um amigo. Até um rato necessita a companhia

de outros ratos.

Desgraçadamente, naqueles momentos, minha prioridade era seguir viva ao dia

seguinte, mas algum dia trataria de encontrar um modo de escapar. O conhecimento supunha

poder, por isso eu precisava me sentar, escutar e aprender tudo o que pudesse.

Decidi examinar os livros e papéis do Valek. Encontrei um par de textos sobre

venenos que me interessaram, mas seus conteúdos tinham haver principalmente com o

assassinato e a intriga. Alguns dos livros estavam escritos em uma linguagem arcaica que eu

não era capaz de decifrar. Ou era um colecionador, ou tinha roubado aqueles livros da

biblioteca do Rei.

De repente, ao pé da escada, encontrei um diagrama da distribuição do castelo.

Por fim algo que podia ser de utilidade. Decidi deixar para outro momento a inspeção das

habitações da planta de cima. Fui por meu jornal. Como o mapa estava à vista de todos, não

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acreditava que Valek se incomodasse. Provavelmente, alegrar-se-ia de que não tivesse que

lhe pedir indicações constantemente. Limpei uma parte do sofá, pus-me cômoda e comecei a

copiar o mapa.

Despertei muito sobressaltada. O jornal caiu ao chão. Pisquei e examinei o salão à

luz das velas. Então, vi Valek, que estava acendendo os abajures do salão um a um. Tinha

estado sonhando com ratos, mas, decididamente, Valek não era um como eu. Era bem mais

um felino e não um corrente. Bem mais um tigre de neve. O depredador mais eficaz de todo o

território da Ixia. De um branco puro, o tigre de neve era como dois cães enormes juntos.

Rápido, ágil e letal, o tigre de neve matava a sua presa antes que esta suspeitasse que

houvesse perigo. Permaneciam principalmente no norte, onde as neves eram perpétuas, mas

aventuravam-se ao sul quando a comida escasseava. Ninguém na história da Ixia tinha

conseguido matar a um tigre de neve. O felino cheirava, ouvia ou via o caçador antes que

este pudesse aproximar-se suficientemente para feri-lo. Partiam com a rapidez do raio quando

ouviam que se esticava a mola de suspensão. Quão único os habitantes do norte podiam

fazer era alimentá-los, esperando mantê-los assim afastados das zonas povoadas. Depois de

acender o último abajur, Valek se voltou para me olhar.

—Tem algo de mal na sua habitação? —disse, tomando uma bandeja e me

entregando.

—Não. É que não podia dormir.

—Já vejo — replicou ele com ironia— Sinto que seu jantar esteja frio —

acrescentou, assinalando a bandeja— Entretive-me.

Depois de comprovar automaticamente se havia venenos, tomei um par de

colheradas. Então, olhei ao Valek para ver se ele se ofendeu pelo gesto. Não era assim. Entre

bocado e bocado, perguntei ao Valek se alguém tinha a chave de suas habitações.

—Só o Comandante e Margg. Ajudar-te-á isso a dormir melhor?

—É Margg sua ama de chaves pessoal? —perguntei-lhe sem responder.

—A minha e a do Comandante. Queríamos a alguém em quem pudéssemos

confiar. Ela estava conosco antes da mudança de regime, por isso sua lealdade está além de

toda dúvida — comentou Valek, sentando-se ao escritório— Lembra-te de quando esteve na

sala de guerra?

—Sim — respondi, um pouco confundida pela mudança de tema.

—Havia três generais na sala. Ao Brazell já o conhecia, mas, pode identificar aos

outros dois?

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—Tesso e Hazal — respondi, orgulhosa de recordá-lo.

—Pode descrevê-los? Me dizer sua cor de cabelo, o de seus olhos?

—Não — admiti — Acredito que o general Tesso tinha barba.

—Identificou-os por seus uniformes e não lhes olhou o rosto, equivoco-me?

—Não.

—Isso me tinha parecido. Esse é o problema dos uniformes. Faz que as pessoas

se voltem vagas. Um guarda vê o uniforme de uma ama de chaves e dá por sentado que essa

pessoa deve estar no castelo. Resulta muito fácil que alguém penetre, razão pela qual o

Comandante se rodeia sempre de pessoas de confiança. E a razão pela que Margg é a única

ama de chaves a que se permite limpar as habitações e o despacho do Comandante e meus.

—Por que não despedistes todos os serventes do castelo e utilizastes a sua gente?

—Nosso exército está composto principalmente por soldados. Os civis são

conselheiros ou ocupam outros postos de importância. Alguns dos serventes do Rei já

estavam em nossa boa de nomes e os outros pagamos o dobro do que ganhavam com o Rei.

Os criados bem pagos estão contentes.

—Tem um salário todo mundo dentro do castelo?

—Sim.

—Inclui isso à provadora de comida?

—Não.

—Por que não? —insisti, apesar de que não me tinha passado pela cabeça

reclamar um salário até que Valek falou de dinheiro.

—À provadora de comidas lhe paga por antecipado. Quanto crê que vale sua vida?

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Capítulo 10

Como não esperava resposta alguma, Valek se dirigiu a seu escritório.

Em realidade, tinha razão. Terminei a comida e quando me dispunha a partir a meu

dormitório, Valek voltou a centrar sua atenção em mim.

—O que compraria com o dinheiro?

Uma boa de objetos saiu de minha boca, me surpreendendo a mim mesma.

—Uma escova para o cabelo, camisolas e gastaria uma parte no festival.

Queria uma camisola porque estava cansada de dormir com o uniforme. Não me

atrevia a dormir em roupa interior por medo a ter que sair correndo para salvar a vida em meio

da noite. Além disso, o festival do fogo que se celebrava todos os anos se aproximava. Para

mim, era como uma espécie de aniversário. Durante o anterior, tinha matado ao Reyad.

Embora o comandante tivesse proibido toda forma de religião, promocionava os

festivais como uma maneira de aumentar a moral. Só se permitiam dois.

Durante o último festival de gelo, eu estava nas masmorras e perdi todos os

acontecimentos. O festival de gelo sempre se celebrava durante a estação fria, quando não

se podia fazer nada mais que acurralar-se ao lado do fogo e realizar artesanatos. Cada

cidade organizava seu próprio festival.

Pelo contrário, o festival de fogo era um enorme carnaval que viajava de cidade em

cidade durante a estação calorosa. O festival começava no norte, onde a estação cálida só

durava umas poucas semanas, e logo ia descendo para o sul.

Tradicionalmente, organizavam-se atuações e concursos para as celebrações, que

duravam uma semana, no interior do castelo. Eu esperava que me permitisse assistir. Valek

tinha indicado que continuaria me ensinando pelas tardes, mas, o resto do tempo entre as

comidas tinha sido, até o momento, só meu.

Sempre tinha me encantado ir ao festival de fogo. Brazell estava acostumado a dar

uma pequena quantidade de dinheiro aos meninos de seu orfanato para que pudessem ir

todos os anos. Era o acontecimento mais esperado na casa. Praticávamos todo o ano para

poder participar dos concursos e assim poder economizar o dinheiro da entrada.

A prática voz do Valek me tirou de meus pensamentos.

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—A costureira pode te dar algumas camisolas. De fato, lhe deveria haver dado

isso com seus uniformes. Quanto ao resto, terá que se arrumar com o que possa encontrar.

As palavras do Valek me devolveram à realidade de minha vida, em que não se

incluía o festival de fogo. Talvez pudesse vê-lo, mas não poderia saborear o frango picante ou

o vinho.

Com um suspiro, recolhi meu jornal e parti a minha habitação. Uma brisa cálida e

seca me acariciou o rosto. Limpei o resto do pó, mas tão somente apaguei a metade da

mensagem de Margg. Em certo modo, ela tinha razão. A soga me esperava. Meu futuro não

incluía uma vida normal. Sua mensagem me serviria como aviso de que não podia me

acomodar muito.

Ou o danificava tudo e me substituíam em meu posto como provadora de comida

ou ia frustrar um intento de assassinato com minha própria morte. Talvez, tecnicamente, não

morreria porque me rompesse o pescoço, mas a turbadora imagem da soga me perseguiria

para sempre.

À manhã seguinte, detive-me frente à oficina de Dilana. Ela estava sentada em um

raio de sol, cantarolando e costurando. Os cachos dourados de seu cabelo reluziam. Como

não queria incomodá-la, dava a volta para partir.

—Yelena? —chamou-me. Eu voltei a aparecer — Deus santo, moça. Entra. Você

sempre é bem-vinda — disse. Deixou sua costura e indicou uma cadeira ao lado da sua para

que me sentasse— Está tão magra como meu fio mais fino. Sente-se. Deixa que te traga

algo de comer.

Meus protestos não impediram que me trouxesse uma grande fatia de pão com

manteiga.

—Meu Rand me envia uma barra de pão de mel todas as manhãs — disse. Os

olhos lhe brilhavam de afeto.

Sabia que ela não retrocederia em seu empenho até que tomasse um bocado.

Como não queria ferir seus sentimentos, tratei de não provar o pão como se estivesse

procurando um veneno. Só quando me viu a boca encher se sentiu satisfeita.

—No que posso te ajudar? —perguntou-me. Entre bocado e bocado, pedi-lhe uma

camisola— Meu Deus! Como pude esquecer? Pobrezinha. Rapidamente, levantou-se e ficou

a percorrer a habitação, reunindo uma boa coleção.

—Dilana, só necessito umas poucas coisas.

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—Por que não vieste antes? Margg deveria ter dito algo — comentou Dilana muito

desgostada.

—Margg...

Interrompi-me em seguida. Desconhecia a opinião que Dilana tinha sobre ela.

—Margg é uma velha má, resmungona e ressentida — disse, me deixando muito

surpreendida — Sente uma antipatia imediata por qualquer um que seja novo. Basicamente é

um pesadelo para todo mundo.

—Entretanto, foi muito amável contigo.

—Acossou-me durante semanas quando cheguei aqui. Então, decidi colocar mão

em seu armário e lhe apertar todas as saias. Demorou duas semanas de desconforto físico

para dar-se conta do que tinha ocorrido.

Margg não sabe costurar, assim teve que tragar-se de seu orgulho e me pedir

ajuda. Após, tratou-me com respeito. Desgraçadamente, você é seu novo objetivo —

acrescentou, me agarrando a mão — Entretanto, não deixe que isso te afete. Se Margg se

mostrar desagradável, selo também você com ela. Quando vir que não é uma presa fácil,

perderá o interesse.

Custava-me acreditar que aquela mulher tão encantada fora capaz de ter feito algo

assim. Entregou um bom montão de camisolas e acrescentou uma seleção de brilhantes

cintas.

—Para o festival, querida minha — me explicou, como resposta a minha

perplexidade — Para acrescentar a beleza de seu formoso cabelo escuro.

—Encontraste já a quem vai fazer de fugitivo para o exercício? —perguntou- o

Comandante ao Valek, quando este chegou a seu escritório para o almoço.

Eu estava provando a comida do Comandante quando Valek, uma vez mais,

destruiu minha tentativa sensação de bem-estar. Levava dez dias trabalhando como

provadora oficial da comida do Comandante e tinha deixado de contrair-se meu estômago

cada vez que estava a seu lado.

—Sim, conheço a pessoa perfeita para o trabalho — respondeu Valek, sentando-se

em frente do Comandante.

—Quem?

—Yelena.

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—Como? —exclamei, deixando em evidência minha dissimulação na hora de

escutar a conversação.

—lhe explique — lhe ordenou o Comandante.

Valek sorriu, como se já tivesse sabido o que ia dizer lhe o Comandante.

—Meus soldados estão preparados para evitar que os capturem. Escolher a um

deles não seria justo para os perseguidores. Portanto, necessitamos uma pessoa que não

esteja versada na arte da evasão, mas que seja o suficientemente inteligente para

proporcionar desafio ao exercício — disse, ficando de pé— O fugitivo necessita um incentivo

para que a busca seja boa, mas deve retornar ao castelo. Não podemos utilizar um prisioneiro

de verdade e nenhum dos criados tem imaginação. Então, me ocorreu que poderia ser

Yelena. É inteligente — acrescentou, me assinalando — Terá um incentivo para que sua

atuação seja boa e um incentivo para retornar.

—Incentivos? —perguntou o Comandante, franzindo o cenho.

—Como provadora de comida não recebe remuneração alguma. Entretanto, por

este trabalho, e por outros similares no futuro, poderá receber um salário. Quanto mais tempo

consiga evadir sua captura, mais alto será seu salário. Quanto ao incentivo para retornar,

deveria resultar evidente.

Para mim o era. A dose diária do antídoto de Pó de Mariposa me mantinha com

vida. Se não retornava ao castelo à manhã seguinte, estariam procurando um cadáver.

—E se me nego? —perguntei ao Valek.

—O pedirei a um dos soldados, mas me sentirei muito desiludido. Teria acreditado

que você gostaria de ter um desafio.

—Talvez eu não...

—Basta já — disse o Comandante, com voz tensa— É uma loucura, Valek.

—Disso se trata. Um soldado realizaria movimentos previsíveis. Ela é uma

desconhecida.

—Talvez você possa adivinhar os movimentos de nosso fugitivo, mas as pessoas

que vão participar do exercício não são tão rápidas. Espero encontrar a alguém a quem se

possa adestrar como ajudante teu. Sei o que está esperando, mas não acredito que vá

ocorrer em um futuro próximo. Necessitamos a alguém já. Valek, por te nega constantemente

as minhas ordens de adestrar um ajudante?

—Por que, até agora, estive em desacordo com as pessoas que escolheste.

Quando aparecer o candidato adequado, os esforços por lhe adestrar merecerão a pena.

Page 65: María v snyder 01 poison study

O Comandante olhou a bandeja que eu tinha entre as mãos. Tomou a comida e me

ordenou que fosse lhe buscar um chá. É obvio, tratava-se de uma desculpa para livrar-se de

mim enquanto os dois discutiam. Eu me mostrei encantada de cumprir seus desejos.

De caminho à cozinha, considerei a possibilidade de ser a fugitiva do Valek. Minha

primeira reação tinha sido negativa. Não necessitava mais problemas. Entretanto, à medida

que considerava o desafio, junto com a possibilidade de ganhar um dinheiro, o exercício

começou a parecer uma excelente oportunidade. Quando cheguei à cozinha, esperei de todo

coração que Valek se saísse com a sua. Em especial, estaria fora do castelo durante um dia

e, além disso, qualquer técnica que pudesse aprender sendo fugitivo me poderia vir muito

bem no futuro.

—Ocorre algo com o almoço? —perguntou Rand, aproximando-se

precipitadamente.

—Não. O Comandante quer um chá.

O alívio suavizou os rasgos de Rand. Perguntei-me por que estava tão preocupado

porque o almoço não tivesse podido resultar completamente satisfatório. Decidi que seu ego

se refletia em suas criações culinárias. Rand jamais serviria uma comida de qualidade inferior.

Devia haver algo mais entre o Comandante e ele. Como não estava segura de que a relação

que tinha com ele me desse direito a lhe fazer perguntas pessoais e inclusive algo delicadas,

contive a língua.

Conhecia Rand fazia quase duas semanas, mas ainda não tinha terminado de

saber como era. Seu estado de ânimo trocava de uma vez para outra. Gostava de falar.

Dominava a maioria das conversações e só fazia umas quantas perguntas pessoais.

—Dado que está aqui — disse, tirando um bolo branco da despensa —, importar-

te-ia provar isto? Me dê sua opinião.

Cortou-me uma fatia do bolo. Ia adornado com nata e as capas de bolacha de

baunilha estavam separadas por uma mescla de amoras e nata. Como sempre, tratei de

mascarar que meu primeiro bocado sempre ia procurando venenos.

—É uma boa combinação de sabores — disse.

—Não é perfeito, mas não sei assinalar o problema.

—Acredito que a nata é muito doce — disse, dando outro bocado — Além disso, a

bolacha está um pouco seca.

—Voltarei a tentá-lo. Vais vir esta noite?

—Por quê?

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—Necessito uma opinião perita. Com esse bolo vou participar do concurso de

confeitaria do festival de fogo. Vai você?

—Não estou segura — respondi. Quando mencionei o festival, Valek não havia dito

que eu não pudesse ir.

—Vamos uns quantos dos que trabalhamos na cozinha. Você pode vir conosco se

quiser.

—Obrigado. Já lhes direi isso.

Enquanto retornava ao despacho do Comandante, me ocorreu um pensamento

muito desagradável. Eu estava perto do Valek porque Brazell estava ainda no castelo. De

fato, permaneceria ali até depois do festival. Se eu fazia de fugitiva, o que ocorreria se Brazell

se inteirava? E se me encontrasse por acaso no festival?

Depois de chegar à conclusão de que era muito mais seguro ficar dentro dos muros

do castelo até que Brazell partisse, decidi declinar tanto a oferta do Valek como a do Rand.

Entretanto, quando cheguei com o chá ao despacho, Valek já tinha ganho a discussão. Disse-

me os incentivos que receberia antes que eu pudesse dizer uma palavra. A soma por

permanecer livre durante um dia inteiro era considerável.

—O exercício terá lugar durante o festival de fogo. É um período muito ocupado

para os soldados. Deveríamos pospô-lo até mais tarde? —perguntou-lhe Valek ao

Comandante.

—Não. A agitação acrescentada incrementará o nível de dificuldade de nossos

perseguidores.

—Bom, Yelena, isso tão somente te dá uns dias para te preparar. É o justo dado

que alguns prisioneiros planejam um modo de escapar enquanto que outros vêem uma

oportunidade e a aproveitam. Interessa-te o desafio? —perguntou-me Valek.

—Sim — disse antes que pudesse pronunciar a palavra “não”— Com a condição

de que não se de relatório ao Brazell de minha participação.

—Não te parece que o fato de que te tenha atribuído seu alojamento em minhas

habitações pessoais é indicativo de que me preocupa seu bem-estar? —replicou Valek.

Naquele momento, compreendi que o tinha insultado.

Quando ofendi ao Rand, apressei-me em lhe apresentar minhas desculpas.

Entretanto, com o Valek, tratei de pensar em outro comentário que pudesse zangá-lo ainda

mais. Desgraçadamente, não pude encontrar nenhum com a suficiente rapidez.

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—Falando do Brazell — comentou o Comandante — Deu-me um presente. Uma

nova sobremesa que inventou seu cozinheiro. Pensou que eu gostaria.

O Comandante Ambrose nos mostrou uma caixa de madeira cheia de grossos

quadrados de cor marrom, colocados uns em cima dos outros como se fossem tijolos. Tinham

um aspecto suave e brilhante, mas parecia que tinham sido cortados com uma faca pouco

afiada, dado que os borde estavam rasgados e se descamavam.

Valek tomou uma parte e o cheirou.

—Espero que não tenha provado nenhum.

—Até para o Brazell, resulta muito descarado que estivessem envenenados, mas

não, não os provei.

Valek me entregou a caixa.

—Yelena, escolhe uns quantos ao azar e prova-os.

Selecionei quatro. Cada um deles tinha o tamanho da unha de meu dedo polegar e

os quatro me entravam perfeitamente na palma da mão. Se não me houvessem dito que se

tratava de uma sobremesa, provavelmente haveria dito que eram partes de cera. Uma de

minhas unhas deixou um rastro na parte superior de um dos cubos e os dedos resultavam

algo gordurento depois de tocá-los. Duvidei. Eram do Brazell e eu não recordava que seu

cozinheiro tivesse sido especialmente imaginativo. Deixei a um lado meus temores. Não

ficava eleição. Como pareciam de cera, pensei que teriam esse sabor. Mordi um dos cubos,

esperando que se desfizera entre os dentes. Deveu ser a expressão de meu rosto o que

provocou a expressão de pânico no rosto do Comandante, dado que não disse nada. As

sensações que me produziu aquela sobremesa me envolveram por completo.

Em vez de desfazer-se, a sobremesa se desfez e me cobriu a língua com uma

cascata de sabores. Doce, amargo, a frutos secos e a fruta fresca. Alguém se produziu detrás

de outro. Justo quando podia notar um, voltava a saboreá-los todos. Aquilo não se parecia

com nada do que eu tivesse podido provar antes. Quase sem me dar conta, os quatro cubos

desapareceram. Desejei provar mais.

—Incrível! O que é?

Valek e o Comandante intercambiaram olhares de assombro. Foi o Comandante o

que tomou a palavra.

—Brazell disse que se chamava “Crioulo”. Por quê? Acaso tem veneno?

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—Não. Não há venenos. É simplesmente... —disse, tratando de encontrar as

palavras adequadas para descrevê-lo, mas sem consegui-lo— Prove-o — acrescentei. Não

me ocorreu nada mais.

Observei o rosto do Comandante enquanto mordia um dos cubos. Abriu os olhos e

arqueou as sobrancelhas cheio de surpresa. Com a língua, lambeu-se os lábios, como se

estivesse tratando desesperadamente de absorver todo o sabor que havia neles.

Rapidamente, tomou outra parte.

—É doce. Diferente, mas eu não noto nada incrível ao respeito — comentou Valek,

limpando-os flocos marrons que tinha nos dedos.

Naquela ocasião, fui eu a que intercambiou um olhar com o Comandante. Ao

contrário do Valek, lhe gostava da boa cozinha. Reconhecia a excelência quando a

saboreava.

—Arrumado a que esse rato não dura nenhuma hora — murmurou Margg na

cozinha. Eu estava a ponto de entrar quando a ouvi— Darei-lhe cinqüenta a um a qualquer

que seja o suficientemente estúpido para pensar que esse rato durará todo o dia. E cem a um

ao imbecil que pense que não a vão apanhar. Depois de que Margg lançasse suas apostas, a

cozinha buliu com os sons das apostas.

Escutei com crescente horror. Margg não podia estar falando sobre mim. Por que

lhe ia ter contado Valek ao Margg do exercício? Todo o castelo se teria informado ao dia

seguinte, e, por conseguinte, Brazell.

—Aposto o salário de um mês a que Yelena permanece livre todo o dia —

ressonou a voz do Rand. O resto dos empregados da cozinha ficaram completamente em

silêncio.

Meus sentimentos passaram da traição ao orgulho. Estavam apostando sobre mim.

Não podia acreditar que Rand apostou o salário de todo um mês. Tinha mais confiança em

mim que eu mesma. A risada de Margg ressonou pelas paredes.

—Leva na cozinha muito tempo, Rand. O calor te cozeu o cérebro. Acredito que

está começando a gostar desse rato. É melhor que guarde as facas sob chave quando ela

está por aqui ou poderia...

—Muito bem, já basta — disse Rand— O jantar terminou. Todo mundo fora de

minha cozinha. Rapidamente voltei a sair ao corredor e parti. Dado que tinha prometido ao

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Rand que provaria seu bolo, retornei quando todos partiram. Rand estava sentado frente a

uma das mesas destroçando frutos secos. Sobre a mesa, havia uma porção do bolo.

Entregou-me o bolo sem dizer nada. Eu o provei.

—Muito melhor. A bolacha está muito suculenta. O que é que trocou? —perguntei-

lhe.

—Acrescentei um pouco de pudim à mescla.

Rand se mostrava muito calado, o que não era habitual nele. Não mencionou sua

aposta, nem eu estava disposta a perguntar.

Terminou de destroçar os frutos secos. Depois de recolhê-lo e limpá-lo tudo, disse-

me:

—É melhor que me vá dormir um pouco. Amanhã de noite vamos ao festival. Vais

vir?

—Quem vai? —perguntei. Não queria que Brazell danificasse a única diversão que

podia ter, mas se Margg ia também, não lhes acompanharia.

—Porter, Sammy, Liza e talvez Dilana — comentou Rand. Seus cansados olhos se

iluminaram ligeiramente ao mencionar o nome de Dilana— Por quê?

—A que hora partem?

—Depois do jantar. É o único momento que todo mundo está livre. O Comandante

sempre pede um jantar singelo na primeira noite do festival para que todos nós possamos

partir logo. Se quiser vir, te reúna conosco aqui amanhã.

Rand partiu a suas habitações, que estavam ao lado da cozinha. Eu retornei às do

Valek.

O escuro apartamento estava vazio. Fechei a porta com chave e, a provas,

procurei algo com o que acender os abajures. Enquanto o fazia, passei ao lado do escritório

do Valek e me fixei em um papel que havia em cima. Depois de olhar para ao redor para me

assegurar de que Valek não estava escondido entre as sombras, examinei a folha. Havia

nomes escritos, que logo tinham sido tachados. Meu nome estava em um círculo. Abaixo ele,

estava o comentário de que seria a fugitiva perfeita para o exercício.

Certamente assim era como Margg se inteirou. Recordei vê-la lendo os papéis do

despacho do Valek em outra ocasião. Dependendo do tempo que os papéis levassem ali,

poderia ser que ela soubesse desde fazia algum tempo. Aquela mulher ia conseguir que me

matassem. Se sobreviver o suficiente, teria que me encarar com ela. Desgraçadamente, teria

que esperar até que tivesse representado o papel de fugitivo para o Valek.

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Quanto a meu plano para escapar, examinei os livros do Valek. Recordava ter visto

alguns títulos apropriados. Por fim, encontrei dois sobre técnicas de perseguição e um sobre

as melhores maneiras de evitar uma captura. Ninguém havia dito que não podia investigar um

pouco. Tomei emprestados os livros e, depois de tomar um abajur, me retirei a minha

habitação. Estive lendo até que os olhos se nublaram da fadiga. Pus-me uma de minhas

novas camisolas, apaguei o abajur e me meti na cama.

Pouco mais tarde, despertei com a certeza de que havia alguém em minha

habitação. O medo se apoderou instantaneamente de mim. Uma sombra negra se equilibrou

sobre mim. Tirou-me da cama e me lançou contra a parede. Passaram vários segundos. Não

ocorreu nada mais. O ataque tinha parado, mas eu seguia imobilizada.

Os olhos se ajustaram à escuridão. Reconheci o rosto de meu atacante.

—Valek?

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Capítulo 11

O rosto de Valek, que estava a poucos centímetros do meu, parecia o de uma

estátua. Silencioso, frio e carente de sentimentos. A porta de minha habitação estava

entreaberta e nem sequer o tênue reflexo de um abajur que tinha acendido na sala dava a

seus olhos calidez alguma.

—Valek, o que ocorre?

Sem prévio aviso, soltou-me. Muito tarde, dava-me conta de que tinha tido

suspensa sobre o chão. Aterrissei a seus pés. Sem dizer nada mais, saiu de minha habitação.

Eu me pus de pé e consegui lhe atalhar no salão. Estava diante de seu escritório.

—Se isto for pelos livros... — disse, caso que poderia estar zangado comigo por ter

tomado emprestados seus manuais.

—Livros? Crê que isto tem que ver com livros? —replicou, cheio de assombro—

Fui um néscio. Todo este tempo admirei seu instinto de sobrevivência e sua inteligência, mas

agora... Ouvi que uns criados falavam sobre o fato de que você vai ser a fugitiva. Estavam

fazendo apostas. Como pudeste ser tão estúpida, tão indiscreta? Advirto-te que considerei te

matar agora para me economizar as moléstias de ter que procurar seu cadáver mais tarde.

—Eu não o hei dito a ninguém —afirmei — Como pode acreditar que poria em

perigo minha vida?

—E por que ia eu acreditar? A única outra pessoa que sabia era o Comandante.

—Bom, Valek, você é o professor de espiões. Não te parece que alguém poderia

ter escutado a conversação? Quem mais tem acesso a esta habitação? Tinha as notas à vista

de todos sobre o escritório. Se eu as vi só jogando uma olhada — acrescentei, antes que ele

pudesse replicar —, asseguro-te que suplicavam que qualquer que estivesse procurando

informação as inspecionasse.

—O que é o que está sugerindo? A quem acusa?

Valek franziu o cenho. O alarme lhe desenhou no rosto antes de ver-se substituído

por seu habitual gesto pétreo. Aquela expressão me revelou muitas coisas. Ou Valek tinha

estado tão convencido de que eu tinha estado mexericando com outros criados que não tinha

considerado outras opções ou não podia aceitar a possibilidade de que alguém tivesse

violado sua segurança. Por uma única vez, eu o tinha desequilibrado, embora só tivesse sido

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por um segundo. Algum dia, eu adoraria vê-lo a meus pés, tal e como eu tinha estado ante

ele.

—Tenho minhas suspeitas — respondi —, mas não vou acusar a ninguém sem

provas. É injusto. Além disso, quem ia acreditar-me?

—Ninguém.

Valek agarrou uma pedra cinza de seu escritório e me lançou isso.

Atônita, fiquei completamente imóvel quando a pedra passou junto a mim e se

estrelou contra o chão. Os pedaços nos que se converteram me salpicaram e caíram sobre o

chão.

—Exceto eu — acrescentou, sentando-se em sua cadeira— Acredito que suas

palavras estão começando a ter sentido e temos um espião. Seja quem é, temos que

encontrá-lo.

—Ou encontrá-la.

Valek franziu o cenho.

—Optamos pelo seguro e procuramos outro fugitivo? Talvez deveríamos cancelar o

exercício. Ou seguir como estava planejado. Assim, poderíamos animar a nosso espião a que

se manifestasse. Seja homem ou mulher.

—Não crê que Brazell viria por mim?

—Não. É muito cedo. Não acredito que Brazell tente te matar antes que tenha

terminado de construir sua fábrica e esta esteja funcionando. Quando conseguir o que quer,

as coisas voltarão a ficar interessantes.

—Ah, bom. Já quase não posso me manter acordada do muito que me aborreço —

comentei, com a voz cheia de sarcasmo. Só Valek poderia considerar como uma fascinante

diversão o fato de que tentassem me matar.

—A eleição é tua, Yelena.

O que eu queria não estava representado em nenhum das possibilidades que

Valek me oferecia. Eu preferiria estar em algum lugar no que minha vida não estivesse em

perigo. Onde não tivesse como chefe a um assassino e uma pessoa desconhecida estivesse

tentando me complicar ainda mais a vida. Minha eleição era a liberdade.

Suspirei. O mais seguro resultava o mais tentador, mas não resolveria nada. Tinha

aprendido que evitar os problemas não servia de nada. Meu impulso imediato era pôr-se a

correr e me esconder, o que só me conduziria a ficar em um rincão e dar paus de cego.

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Os resultados nem sempre eram favoráveis. Incomodava-me a falta de controle.

Meu instinto de sobrevivência parecia ter mente própria. Magia. A palavra flutuava em minha

mente. Não. Alguém já teria se dado conta. Alguém teria me delatado. Fá-lo-ia se essa

pessoa fosse Brazell? Ou Reyad?Sacudi a cabeça me desfazendo de tais pensamentos. Isso

ficou no passado. Tinha preocupações mais imediatas.

—Muito bem. Jogarei o anzol para ver que peixe sai, mas, quem vai sujeitar a

rede?

—Eu.

Deixei escapar o fôlego. A tensão que sentia no estômago se suavizou um pouco.

—Não troque seus planos — comentou Valek, tomando o papel no que estava

escrito meu nome— Eu me ocuparei de tudo — acrescentou, antes de queimá-lo com a

chama de um dos abajures— Deveria seguir ao festival de fogo amanhã de noite, a menos

que a lógica tenha feito rechaçar o convite do Rand e prefira ficar no castelo.

—Como há...?

Decidi não perguntar. Era bem conhecido por todos que não confiava no Rand, por

isso não me surpreenderia que tivesse um delator na cozinha.

Valek não havia dito que eu não pudesse ir. Tomei uma decisão.

—Vou. É um risco. E o que? Roda-me de riscos cada vez que provo o chá do

Comandante. Ao menos esta vez, talvez tenha a possibilidade de me divertir.

—Resulta difícil divertir-se no festival sem dinheiro — comentou Valek, enquanto

esmagava as brasas do papel com o pé.

—Consegui-lo-ei.

—Você gostaria de dispor de uma antecipação de seu salário como fugitiva?

—Não. Ganharei o dinheiro.

Não queria que Valek me fizesse favores. Não estava preparada para que ele me

tratasse bem. O fato de que Valek se suavizasse um pouco poderia destruir nossa tensa

relação, e não queria que esta trocasse. Além disso, ter bons pensamentos sobre o Valek

poderia resultar extremamente perigoso. Eu podia admirar sua habilidade e me sentir aliviada

quando ele estava a meu lado em uma briga. Mas que a um rato gostasse do gato? Essa

possibilidade só podia terminar de um modo. Com um rato morto.

—Como queira—repôs ele—, mas, se trocar de opinião, diga-me isso. E não se

preocupe pelos livros. Pode ler todos os que queira.

Dirigi-me a minha habitação e me detive junto à porta, com a mão sobre o pomo.

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—Obrigado — disse sem me voltar.

—Pelos livros?

—Não. Pelo oferecimento.

—De nada.

O castelo vibrava de atividade. Os criados sorridentes percorriam os corredores e

as risadas ressonavam nas paredes do castelo. Era o primeiro dia do festival de fogo e o

pessoal do castelo tinha muita pressa por completar suas tarefas para poder assistir à

cerimônia de inauguração. Sua alegria era contagiante e inclusive depois de uma noite de

insônia, voltava a me sentir como uma menina. Decidida a separar de mim a idéia de alguém

me espreitando no festival, permiti-me saborear a antecipação ante os acontecimentos da

noite. Durante a classe com o Valek me mostrei muito intranqüila. Felizmente, como Valek

compreendeu que não era capaz de me concentrar, decidiu terminar a sessão

antecipadamente.

Pouco depois, tomei um uniforme limpo e as cintas de cores que Dilana tinha me

dado e me dirigi aos banhos. Àquela hora do dia estavam vazios. Meti-me em uma das

banheiras e deixei que todos meus músculos se relaxassem.

Só abandonei a água quando a pele dos dedos começou a enrugar-se levava um

mês evitando o espelho, mas, naquele momento, a curiosidade pôde comigo e me olhei. Não

estava tão magra, embora precisasse ganhar algo mais de peso. Tinha as bochechas muito

enxutas e as costelas e os quadris se cravavam muito na pele. O que uma vez tinha sido uma

juba sem brilho e completamente indomável, brilhava. A cicatriz que tinha no cotovelo direito

tinha passado de ser vermelha brilhante a ter uma cor arroxeada muito profunda.

Traguei saliva e me olhei no espelho. Tinha retornado minha alma? Não. Em seu

lugar, vi o fantasma do Reyad flutuando detrás de mim. Entretanto, quando dava a volta, já

tinha partido. Perguntei-me o que queria de mim. Certamente vingança, mas, como se podia

enfrentar a um fantasma? Decidi não me preocupar a respeito disso aquela noite.

Pus-me um uniforme limpo e entrelacei as brilhantes cintas em meu cabelo,

deixando que as pontas caíssem além dos ombros e pendurassem pelas costas.

Quando me apresentei ante o Comandante para provar sua comida, esperava que

ele fizesse um comentário de desprezo sobre o pouco marcial daquele penteado. Quão único

notei foi que ele levantava a sobrancelha. Depois do jantar, voltei correndo à cozinha.

Page 75: María v snyder 01 poison study

Rand me saudou com um enorme sorriso. As donzelas ainda seguiam limpando,

por isso as ajudei para não estar ali sem fazer nada. Rand queria uma cozinha

completamente imaculada e só quando estava impoluta, as donzelas podiam partir.

Enquanto Rand trocava de uniforme, vi que um grupo de pessoas estava falando

enquanto o esperavam. De vez em quando, alguém olhava com cautela em minha direção.

Suprimi um suspiro e tratei de não consentir que sua atitude me preocupasse. Não podia as

culpar. Não era um segredo que eu tinha matado ao Reyad.

Do grupo, Porter era o maior. Estava a cargo dos canis do Comandante, outra

lembrança do Rei que ele tinha considerado muito valioso para prescindir dele. Rand era seu

único amigo e me tinha contado histórias sobre o Porter com um tom de voz bastante

incrédulo, mas os rumores de que Porter tinha vínculos mentais com os cães o tinham

convertido em um emparelha.

Parecia muito pouco normal o modo no que os cães lhe respondiam e lhe

compreendiam. Era quase mágico. A suspeita de que pudesse haver magia era suficiente

como para que todo mundo tratasse ao Porter como se tivesse uma enfermidade contagiosa.

De todos os modos, sua relação com os animais era muito útil. Algo que o Comandante

entesourava.

Sammy era o moço que fazia os recados ao Rand. Liza era uma calada mulher de

tão somente uns poucos anos mais que eu. Estava a cargo do inventário da despensa.

Parecia nervosa, mas suponho que falar com o Porter era melhor que estar perto de mim.

Quando Rand saiu de suas habitações, partimo-nos. Sammy pôs-se a correr diante

do grupo, muito excitado para permanecer a nosso lado durante muito tempo. Porter e Liza

seguiram com sua discussão, enquanto Rand e eu caminhávamos detrás.

O ar da noite resultava muito refrescante. Eu distinguia o limpo aroma da terra

molhada misturado com o aroma distante do bosque. Era a primeira vez que saía ao exterior

em quase um ano. Por isso, antes de atravessar os muros do castelo, voltei-me para olhar

atrás. Sem lua, resultava difícil ver os detalhes do castelo, à exceção de umas quantas

janelas iluminadas. Tudo parecia completamente deserto. Sim Valek estava nos seguindo,

não podia vê-lo.

Quando atravessamos a porta, uma brisa mais forte nos saudou. Caminhamos pelo

campo de erva que rodeava os muros do castelo. Não se permitia nenhum tipo de construção

a menos de um quarto de milha da fortaleza. A cidade, que se tinha chamado no passado

Page 76: María v snyder 01 poison study

Jewelstown em honra da Rainha, tinha passado a chamar-se Castletown depois da mudança

de regime.

As lojas do festival de fogo se colocaram nos campos que havia ao oeste do

Castletown.

—Não vai vir Dilana? —perguntei ao Rand.

—Já está ali. Esta tarde tiveram uma emergência. Quando os bailarinos abriram as

caixas com os disfarces, descobriram que algum animal tinha feito buracos nos objetos.

Chamaram a Dilana para que os ajudasse a remendá-los antes da cerimônia de inauguração.

Estou seguro de que o pânico que se apoderou deles nesses momentos deveu ser muito

divertido.

—Para ti, mas não para a pobre mulher que está a cargo dos disfarces.

—É certo.

—Onde está seu bolo?

—Sammy o levou esta manhã. O concurso de confeitaria tem lugar o primeiro dia

para que possam vender os bolos enquanto ainda estão tenros. Quero comprovar os

resultados. Como é que você não participa de nenhum dos concursos?

Uma pergunta muito singela. Uma de quão muitas eu tinha estado tratando de

evitar com certo êxito desde que Rand e eu nos fizemos amigos. Ao princípio, suspeitei que

seu interesse fosse obter informação para a seguinte ronda de apostas, mas terminei me

dando conta de que seu interesse era autêntico.

—Não tenho dinheiro para pagar a inscrição — disse. Era certo, embora não era a

história completa. Teria que confiar plenamente no Rand antes de lhe contar minha relação

com o festival de fogo.

—Não tem sentido que não paguem à provadora da comida do Comandante —

comentou Rand, com certo tom de indignação — Que melhor maneira de obter informação

sobre o Comandante que subornar à provadora? Estaria disposta a vender informação por

dinheiro? —acrescentou, depois de uma pequena pausa, me olhando com o rosto muito sério.

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Capítulo 12

Ao escutar a pergunta de Rand, pus-se a tremer. Estava me perguntando

simplesmente ou acaso estava tentando pagar para obter informação? Imaginei a reação do

Valek se descobrisse que eu tinha aceitado um suborno. Não ter dinheiro era melhor que

enfrentar a sua ira.

—Não, não o faria — respondi.

Rand lançou um grunhido. Caminhamos perdidos em um incômodo silêncio

durante um momento. Perguntei-me se Oscove, o anterior provador do Comandante, tinha

aceito dinheiro em troca de informação. Isso explicaria por que Valek não tinha sentido

simpatia alguma por ele e por que Rand suspeitava que Valek tivesse assassinado ao

Oscove.

—Se quiser, eu te pagarei a inscrição. Sua ajuda foi muito valiosa para mim e

certamente ganhei muito dinheiro graças a ti — comentou Rand.

—Obrigado, mas não estou preparada. Seria uma perda de dinheiro.

Além disso, estava decidida a desfrutar do festival sem dinheiro, só para

demonstrar ao Valek que podia fazer. Apesar de haver prometido mesmo que não o faria,

olhei por cima do ombro. Nada. Tratei de me convencer de que não ver o Valek só podia

significar algo bom. Se eu podia vê-lo, vê-lo-ia qualquer um. Entretanto, não podia esquecer a

estranha sensação de que, talvez, tinha decidido me deixar a minha sorte.

Sentia-me como se estivesse fazendo equilíbrios sobre um cabo, tentando não cair.

Não podia me proteger e me divertir ao mesmo tempo? Não sabia, mas estava decidida a

tentá-lo.

—Em que concurso teria participado? —quis saber Rand. Antes que eu pudesse

responder, agitou as mãos diante de mim— Não! Não me diga isso! Quero adivinhá-lo.

—Adiante — comentei com um sorriso.

—Vejamos. É miúda, magra e elegante. Bailarina?

—Volta a tentá-lo.

—Muito bem. Recorda a um passarinho, que deseja sentar-se em um batente

enquanto ninguém se aproxime muito. Um passarinho que canta. É cantante?

—Evidentemente, jamais me escutaste cantar. Acaso vais analisar minha

personalidade cada vez que diga algo?

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—Não. Cale-te. Estou tratando de pensar. Bom, tem uns dedos largos e finos.

Talvez te dês bem fiar.

—Equivoca-te.

—Cavaleiro?

—De verdade crê que eu me poderia permitir um cavalo? —perguntei,

surpreendida. Só os cidadãos muito ricos tinham cavalos para fazer esporte. No exército, só

os oficiais de mais alta graduação utilizavam cavalos. Também os conselheiros. Todos outros

foram caminhando.

—As pessoas que possuem cavalos de carreiras normalmente não os monta.

Contratam cavaleiros. Seu tamanho é perfeito, assim deixa de me olhar como se fora um

imbecil.

Quando chegamos à primeira das enormes tendas multicoloridas, nossa

conversação cessou. Vimo-nos envoltos na frenética atividade que nos assaltou ao entrar.

Quando eu era mais jovem, estava acostumada a desfrutar em meio daquele caos. Sempre

tinha acreditado que o nome do festival era perfeito, não só porque se celebrasse na estação

mais cálida, mas sim porque os sons e os aromas vibravam como se fossem quebras de onda

de calor, que provocavam que o sangue fervesse. Entretanto, depois de passar um ano em

uma masmorra, senti que sua força me golpeava como se tratasse de uma parede de tijolos.

Uma parede cujo morteiro ameaçava desmoronando-se pelo amontoado de sensações.

As tochas e as fogueiras ardiam por toda parte. Era como se, de repente, tivesse

se feito dia. As lojas de atuações e de competição estavam pulverizadas por toda parte, com

pequenos postos que se aferravam a elas como meninos às saias de suas mães. Havia algo,

desde gemas exóticas a palmatórias mata-moscas. O aroma da comida provocava que o meu

estômago protestasse ao passar por diante das churrasqueiras. Lamentei não ter jantado pela

pressa de chegar ao festival.

Havia gente por toda parte. Alguma vez, a maré humana nos empurrava para

diante e outras vezes nos detinha. Tínhamos perdido aos outros. De fato, se Rand não tivesse

entrelaçado seu braço com o meu provavelmente o teria perdido a ele também. Havia

distrações por toda parte. Eu teria gostado de ir escutar a música, mas Rand estava

interessado em conhecer os resultados do concurso de confeitaria.

Enquanto avançávamos, examinava os rostos das pessoas, procurando uniformes

verdes e negros apesar de que Valek havia dito que Brazell não representaria uma ameaça.

Apesar de tudo, pareceu-me prudente evitá-lo a ele e a seus soldados.

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Reunimo-nos por fim com o Porter e Liza em uma pequena loja com um aroma tão

doce que provocou que o estômago me doesse de fome. Estavam falando com um homem

com o uniforme de cozinheiro, mas se detiveram ao nos ver entrar. Imediatamente, todos

rodearam ao Rand e o felicitaram por ter conseguido o primeiro posto. O homem declarou que

Rand tinha quebrado o recorde do festival, ganhando cinco anos consecutivos.

Enquanto Rand examinava os bolos, eu perguntei ao homem quem tinha ganho no Distrito

Militar 5. Sentia curiosidade por ver se o cozinheiro do Brazell tinha ganho ali com seu

Crioulo. O homem franziu o cenho pela concentração.

—Ah, sim! Ganhou Branda, com um bolo de limão celestial. Por quê?

—Acreditava que o teria ganho o cozinheiro do general Brazell, Ving. Eu estava

acostumado a trabalhar em sua casa.

—Bom, Ving ganhou faz dois anos com um bolo de nata e agora participa todos os

anos com o mesmo, esperando voltar a ganhar.

Pareceu-me estranho que não tivesse participado com seu Crioulo. Entretanto,

antes que pudesse encontrar uma razão, Rand, cheio de júbilo, tirou-nos todos da loja. Queria

nos convidar a todos a uma taça de vinho para celebrar sua vitória.

Tomamos o vinho e seguimos percorrendo o festival. Em duas ocasiões, vi uma

mulher com uma expressão muito séria no rosto. Levava o cabelo negro recolhido na nuca e

levava o uniforme de falcoeira. Movia-se com a graça de alguém acostumado ao exercício

físico. A segunda vez que a vi, estava muito mais perto e consegui estabelecer contato visual

com ela. Entreabriu os olhos verdes esmeralda e me olhou descaradamente até que eu

apartei o olhar. Havia algo familiar naquela mulher. Demorei algum tempo em descobri-lo.

Recordava aos meninos que estavam a cargo do Brazell. Seus rasgos se pareciam

mais aos meus que à pele marfim da maioria dos habitantes do Território. A pele daquela

mulher era morena, não por efeito do sol, mas sim por uma pigmentação natural.

De repente, nosso grupo se viu empurrado por outro a uma loja. Era a dos

acrobatas, em que homens e mulheres embelezados com trajes de brilhantes cores

realizavam seus exercícios sobre camas elásticas, cabos e colchonetes. Todos estavam

tratando de superar a ronda de classificação. Vi como um homem realizava uma série de

maravilhosos exercícios no cabo. De soslaio, vi que Rand estava me observando. Tinha uma

expressão triunfante no rosto.

—O que? —perguntei-lhe.

—É acrobata!

Page 80: María v snyder 01 poison study

—Era-o.

—Não importa. Eu tinha razão! —exclamou, aplaudindo.

Sim me importava. Reyad tinha corrompido o mundo da acrobacia. Longe ficava o

tempo no que tinha sentido satisfação e gozo. Já não imaginava que pudesse obter satisfação

alguma.

Todos observavam aos participantes dos bancos. Os grunhidos de esforço, os

trajes empapados de suor e o tamborilar dos pés me fizeram desejar os dias quando o único

que me preocupava era encontrar o tempo necessário para praticar.

Quatro dos que residíamos no orfanato do Brazell nos tinham inclinado pela

acrobacia. Tínhamos conseguido ter uma zona de práticas detrás dos estábulos. Nossos

enganos nos enviavam contra a erva até que o capataz teve piedade de nossos machucados

corpos. Um dia, encontramos uma grosa capa de palha atapetando nossa zona de práticas.

Os professores do Brazell nos animavam a encontrar algo no que pudéssemos se

sobressair. Tinha-me fascinado o mundo da acrobacia do primeiro festival de fogo.

Apesar das horas de prática, falhei durante a ronda de classificação da primeira

competição em que participei. A desilusão foi grande, mas me curei isso com resolução. Ao

ano seguinte, consegui superar a ronda de classificação para cair na seguinte. Cada ano ia

avançando uma ronda mais até que, o ano antes que Brazell e Reyad me reclamassem como

rato de laboratório, cheguei a final.

Eles não me permitiam praticar acrobacias, mas isso não impediu que eu me

escapasse para poder fazê-lo. Desgraçadamente, Reyad me surpreendeu uma semana antes

do festival, quando retornou com antecipação de uma viagem. Estava tão concentrada que

não o vi montado em seu cavalo até que terminei meu exercício. Sua expressão, uma mescla

de ira e gozo, provocou que as gotas de suor me convertessem em cristais gelados.

Aquele ano me proibiu ir ao festival por ter desobedecido a suas ordens. Além

disso, como castigo adicional, cada tarde durante cinco noites, Reyad me obrigou a me

despir. Com um cruel sorriso no rosto, olhava-me fixamente enquanto eu tremia apesar do

calor da noite. Pendurava-me pesadas cadeias de um colar de metal que me colocava no

pescoço. As cadeias chegavam até as algemas que tinha colocado em bonecas e tornozelos.

Eu queria gritar, lhe golpear com os punhos, mas estava muito aterrada para lhe zangar ainda

mais. Com o rosto cheio de agradar ao ver meu medo e minha humilhação, obrigava-me a

realizar exercícios de acrobacia com um pequeno látego. Uma chicotada era minha

reprimenda por me mover muito lentamente. As cadeias golpeavam meu corpo com cada

Page 81: María v snyder 01 poison study

movimento. Seu peso provocava que cada cambalhota fora exaustiva. As algemas me

esfolavam as bonecas e os tornozelos. O sangue me corria por braços e pernas.

Quando Brazell participava dos experimentos, Reyad seguia meticulosamente as

ordens de seu pai. Entretanto, quando estava a sós comigo, os exercícios se voltavam mais

cruéis. Algumas vezes, convidava a seu amigo Mogkan para que o ajudasse e convertiam

meu inferno em um concurso para ver quem inventava o melhor modo de pôr a prova minha

resistência.

Eu temia constantemente que enfurecesse ao Reyad o suficiente como para que

ultrapassasse a linha que parecia ter esboçado. Apesar da tortura e a dor que me infligia,

jamais me violou. Por isso, eu dava cambalhotas e saltos com cadeias para evitar que ele

cruzasse essa linha.

O braço do Rand sobre os ombros me devolveu ao presente.

—Yelena, o que te passa? —perguntou, com os olhos cheios de preocupação—

Parecia como se estivesse tendo um pesadelo com os olhos abertos.

—Sinto muito.

—Não tem por que te desculpar comigo — disse, me entregando um bolo de

carne— Sammy nos trouxe isso.

Dava- as graças ao Sammy. Quando centrei minha atenção nele, abriu muito os

olhos e empalideceu. Então, apartou o olhar imediatamente. Sem pensar, dava um pequeno

bocado e provei cuidadosamente se por acaso havia veneno. Ao não encontrar nada,

comecei a comer pensando nas histórias que lhe teriam contado ao Sammy para que tivesse

tanto medo de mim. Os meninos da idade do Sammy normalmente desfrutam assustando-os

uns aos outros com contos de terror.

Nós estávamos acostumados a fazê-lo no orfanato, quando tinham apagado os

abajures e estávamos na cama esperando o sonho. Sussurrávamos histórias de monstros e

de maldições de magos, ou sobre os antigos alunos do orfanato, que simplesmente parecia

que desapareciam. Não nos dava explicação alguma de onde trabalhavam e jamais

encontrávamos a nenhum na cidade ou na casa. Portanto, criávamos horríveis explicações de

seu destino. Eu jogava muito menos aquelas noites, quando por fim podia descansar depois

de passar o dia com o Reyad. Ele me isolava os outros. Tinha-me tirado do dormitório das

garotas e me tinha instalado em uma habitação ao lado da sua. De noite, com o corpo

machucado e a alma humilhada, ficava acordada e recitava mentalmente aquelas histórias até

que dormia.

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—Yelena, podemos ir.

—Como?

—Se o espetáculo está te desgostando, vamos. Há uma dança do fogo

espetacular.

—Podemos ficar. Simplesmente... estava recordando. Entretanto, se vocês

preferem ver a dança de fogo, acompanhar-lhes-ei.

—Recordando? Deveu odiar ser acrobata.

—OH, não. Eu adorava.

Não dava mais explicações. A confusão que se refletiu no rosto do Rand me fazia

querer rir e chorar ao mesmo tempo. Como podia lhe explicar que não era a acrobacia o que

me desgostava, a não ser os acontecimentos que tinha desencadeado? O cruel castigo do

Reyad por praticá-la. Escapar para participar do festival ao ano seguinte, o que tinha

desembocado na morte do Reyad.

Pus-se a tremer. As lembranças do Reyad eram como uma armadilha que não

estava disposta a fazer saltar.

—Explicar-lhe-ei isso algum dia, Rand, mas, no momento, eu gostaria de ver a

dança de fogo.

Ele entrelaçou seu braço com o meu enquanto todos saíamos da loja. De repente,

um bêbado se tropeçou comigo, murmurou uma desculpa e me saudou com sua jarra de

cerveja. Ao tratar de fazer uma reverência, caiu a meus pés. Teria-me detido para ajudá-lo,

mas me distraiu o fogo. Senti que o ritmo da dança de fogo se apoderou de mim ao ver como

as bailarinas lançavam seus utensílios ardentes ao ar e entravam em sua loja. Assombrada

pelos intrincados movimentos das bailarinas, passei por cima do bêbado.

A excitação e a pressão da gente na entrada fez que me soltasse do Rand. Não me

preocupei até que me vi rodeada por quatro imensos homens. Dois deles, levavam uniformes

de ferreiro, enquanto que os outros dois os levavam de granjeiros. Desculpei-me e tratei de

deixá-los atrás, mas eles se apertaram mais contra mim, me apanhando.

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Capítulo 13

O terror se apoderou de mim. Estava metida em uma confusão. Gritei para pedir

ajuda, mas uma mão enluvada me tampou a boca. Ao morder o couro, notei o sabor da cinza,

mas não pude chegar à pele. Os ferreiros me agarraram pelos braços e me empurraram

enquanto que os granjeiros caminhavam diante, impedindo que ninguém me visse. De fato,

com o rebuliço que havia ao redor da loja, ninguém se deu conta de que estavam me

seqüestrando.

Resisti, arrastei os pés e peguei patadas. Eles jamais diminuíram o passo.

Afastaram-me das luzes e da segurança do festival. Estirei o pescoço para ver se encontrava

um modo de escapar, mas um dos ferreiros me bloqueou a visão. Tinha a espessa barba

cheia de fuligem, embora a metade estivesse chamuscada.

Detivemo-nos detrás de uma loja que estava às escuras. Os granjeiros se

apartaram e vi uma sombra que apartava o tecido.

—Dá-se dado conta alguém? Seguiu-lhes alguém? —perguntou a sombra, com voz

de mulher.

—Tudo saiu à perfeição. Todo mundo estava absorto nas bailarinas — disse o

ferreiro das luvas de couro.

—Bem. Matem-na agora mesmo — lhes ordenou a mulher.

O homem das luvas de couro tirou uma faca. Eu comecei de novo a resistir e

consegui me soltar durante um instante. Entretanto, os granjeiros imobilizaram meus braços

enquanto o da barba chamuscada me sujeitava as pernas. Tinham-me sujeita por cima do

chão o das luvas de couro levantou a arma.

—Nada de facas, idiota! Pensa em como ia se pôr tudo de sangue. Utiliza isto.

A mulher entregou ao ferreiro uma larga e fina cinta. Em um abrir e fechar de olhos,

a faca desapareceu e o homem colocou a cinta ao redor do meu pescoço.

—Nãaa... —gritei, mas meus protestos se cortaram junto com o fornecimento de ar.

O homem começou a apertar a corda. Uma intensa pressão me rodeava o

pescoço. Agitei os membros em vão. Notei uns pontos brancos diante dos olhos. Um débil

zumbido começou a escapar dos lábios. Muito fraco. O instinto de sobrevivência tinha me

salvado dos soldados do Brazell e das torturas do Reyad, mas era muito fraco naquela

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ocasião. Por cima do rugido do sangue que zumbia em minhas orelhas, ouvi o que a mulher

dizia.

—Depressa! Está começando a projetar! Quando estava a ponto de perder a

consciência, a voz de um bêbado disse;

—Me perdoem, senhores. Sabem onde podem me encher a jarra?

A pressão do pescoço aliviou um pouco quando o ferreiro tirou sua faca. Deixei que

meu corpo se relaxasse e senti que caía ao chão. Os outros três se colocaram diante de mim

para evitar que o intruso me visse. Eu comecei a tomar ar com desespero, mas o fiz com

cuidado, para que ninguém se desse conta de que ainda podia respirar.

Desde minha nova situação, vi que o ferreiro das luvas de couro se equilibrou

sobre o bêbado. O som do metal estalou no ar quando a faca se chocou contra a jarra de

metal do bêbado. Com um giro brusco da boneca, a jarra ficou em movimento. A faca voou

pelos ares, atravessando o tecido da loja. Então, o bêbado golpeou ao ferreiro com a jarra na

cabeça. O das luvas de couro se desmoronou sobre o chão.

Ao ver o ocorrido, os outros três entraram em ação. Os granjeiros agarraram ao

intruso pelos braços enquanto o da barba queimada lhe golpeava no rosto. Então, utilizando

aos granjeiros para apoiar seu peso, o bêbado levantou as duas pernas e rodeou o pescoço

de seu oponente com elas. Depois de um agudo rangido, o segundo ferreiro caiu também ao

chão.

Sem soltar a jarra, o bêbado golpeou a virilha de um dos granjeiros. Enquanto este

se dobrava pela dor, o bêbado levantou a jarra e lhe golpeou com força na cara. Continuando,

centrou-se no outro granjeiro e lhe esmagou o nariz com a jarra. Com o sangue lhe emanando

abundantemente, o granjeiro, presa da dor, soltou-o. Então, o bêbado lançou um segundo

golpe contra a têmpora do granjeiro. Este caiu ao chão sem emitir nem um só som.

A briga tinha durado segundos. A mulher não se moveu, sem deixar de olhar a

escaramuça. Então, olhei-a e a reconheci como a mulher de pele escura que tinha visto duas

vezes aquela noite. Perguntei-me o que faria ao ver que seus gorilas estavam inconscientes.

Como tinha recuperado um pouco as forças, considerei as possibilidades que tinha

de alcançar a faca antes que ela. O bêbado tinha o rosto coberto de sangue. A seus pés,

estavam os corpos dos quatro homens. Tratei de me pôr de pé. A mulher me olhou

repentinamente, como se tivesse esquecido de que eu estava ali. Então, começou a cantar.

Sua doce e melodiosa voz se meteu em minha cabeça. Dizia-me que relaxasse, que

tombasse, que estivesse quieta. Sem poder me negar, obedeci-a. Sentia-me como se

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estivessem me metendo na cama, me cobrindo com uma manta até o queixo. De repente, a

manta começou a cobrir a minha cabeça. Estava me afogando.

Resisti, me arranhando loucamente o rosto para me retirar aquela manta

imaginária. De repente, Valek apareceu diante de mim, gritando ao meu ouvido e me

sacudindo pelos ombros. Foi então que me dei conta de que ele era o bêbado. Quem, se não

ele, poderia ter ganho uma briga a quatro homens tão corpulentos com tão somente uma jarra

de cerveja?

—Recita mentalmente os venenos! —gritou. Não fiz conta. A relaxação foi

apoderando-se de mim. Deixei de lutar. Quão único queria fazer era me afundar naquela

escuridão e seguir a música...

—Recita! Agora! É uma ordem!

O costume me salvou. Sem pensá-lo, obedeci ao Valek. Comecei a repassar

mentalmente os nomes dos venenos. A música se deteve. A pressão que sentia no rosto se

aliviou. Pude voltar a respirar. Fiz-o ruidosamente.

—Segue recitando — me disse ele.

A mulher e a faca tinham desaparecido. Valek me obrigou a ficar de pé. Eu

cambaleei, mas ele me sujeitou, colocando uma mão no ombro. Eu a agarrei durante um

instante, tratando de reprimir a necessidade de arrojar, soluçando a seus braços. Tinha salvo

minha vida. Quando recuperei o equilíbrio, Valek se concentrou nos homens. Sabia que o da

barba queimada estava morto, mas não estava tão segura de outros.

—São suboas — disse Valek, com asco, enquanto tomava o pulso — Dois estão

vivos. Terei que levar eles ao castelo para interrogá-los.

—E a mulher? —coaxei. Resultava-me difícil falar.

—Foi-se.

—Vai procurá-la?

Valek me dedicou um estranho olhar.

—Yelena, é uma maga do sul. Apartei o olhar dela, assim já não há maneira

alguma de poder encontrá-la — explicou. Então, agarrou-me por braço e me conduziu para o

festival.

Eu não deixava de tremer enquanto que a comoção do ataque me percorria o

corpo. Demorei um momento em compreender as palavras do Valek.

—Uma maga? —perguntei— Acreditava que as tinham banido da Ixia.

—Embora não são bem-vindas, algumas vêm de visita.

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—Mas eu acreditava...

—Agora não. Explicarei-lhe isso mais tarde. Agora, quero que se reúna com o

Rand e seus amigos. Finge que não ocorreu nada. Duvido que o volte a tentar esta noite.

Valek e eu permanecemos nas sombras até que vimos ao Rand perto da loja das

acrobacias. Estavam me procurando e não deixavam de me chamar. Valek indicou que me

reunisse com meu amigo.

Eu só tinha dado um par de passos quando Valek me chamou.

—Yelena, espera.

Dava a volta. Ele indicou que me aproximasse. Quando o fiz, levantou a mão. Eu

dava um passo atrás, mas me recuperei e fiquei imóvel. Com muito cuidado, ele tirou a cinta

do pescoço e me entregou como se fosse uma serpente venenosa. Enojada, joguei-a no

chão.

O alívio que Rand mostrou, me pareceu exagerado. Eu duvidei. Por que tinha se

preocupado tanto? Para ele, eu simplesmente tinha me perdido. Quando ele se aproximou de

mim, notei o doce aroma do vinho.

—Yelena, onde estiveste?

Não tinha me dado conta de que ele tinha bebido tanto vinho. Aquilo podia explicar

por que havia se sentido tão desesperado por me encontrar. O álcool envenena a mente e

exagera as emoções.

—Havia muita gente na loja. Necessitava um pouco de ar — menti, não sem certa

angústia ao pronunciar a palavra “ar” quando acabavam de tentar me estrangular.

Voltei a olhar às sombras. Estava Valek ainda me observando ou partiu para

prender a aqueles homens? Onde estaria a mulher de pele escura? Antes tinha estado tão

contente de poder sair do castelo, mas naqueles momentos, não havia nada que desejasse

mais que retornar, sentir aqueles fortes muros ao redor de mim, voltar a estar na segurança

das habitações do Valek. Essa sim que era uma estranha combinação. Valek e a palavra

segurança na mesma frase...

Não tinha gostado de ter que mentir ao Rand. Depois de tudo, era meu amigo.

Talvez o único que se haveria sentido aborrecido por minha morte. Apesar de que tinha me

salvado a vida, estava segura de que Valek só se teria mostrado contrariado por ter que

adestrar a um novo provador.

Como a dança de fogo tinha terminado, o resto do grupo estava esperando fora da

loja. Dilana estava por fim com eles. Rand me soltou imediatamente e foi para ela. Dilana

Page 87: María v snyder 01 poison study

sorriu, lhe dizendo em brincadeira que foi perseguir à provadora quando tinha prometido

reunir-se com ela. Rand lhe suplicou que o perdoasse e lhe explicou que não podia permitir-

se me perder dado que eu lhe tinha ajudado a ganhar o concurso de confeitaria. Dilana pôs-

se a rir e abraçou ao Rand. De braços dados, os dois se dirigiram ao castelo.

Outros os seguimos. Encontrei-me a última da procissão, mas aquela vez tinha a

Liza como companheira.

—Não sei o que Rand vê em ti — me espetou.

Certamente, não era um modo muito amistoso de começar uma conversação.

—Como diz?

—Perdeu a dança de fogo por ir te buscar. Desde que você apareceu, a rotina da

cozinha desapareceu e todos os que trabalham nela estão transtornados.

—Do que está falando?

—Antes que você se apresentasse, os estados de ânimo do Rand eram

previsíveis. Mostrava-se alegre e contente quando Dilana estava contente e as apostas lhe

beneficiavam e áspero e hostil quando não era assim. Então... você se fez amiga dele. Rand

começa a grunhir a todo mundo sem motivo. Até ganhando muito dinheiro com suas apostas,

está deprimido. Resulta muito lhe frustrem. Chegamos à conclusão de que deve estar

tratando de tirar-lhe a Dilana. Queremos que o deixe em paz e que permaneça afastada da

cozinha.

Liza tinha escolhido o pior momento para aquela conversação. O fato de ter

escapado da morte fazia só um momento punha as coisas em perspectiva, mas a ira se

apoderou de mim. Agarrei-a pelo braço e atirei dele para que se voltasse para me olhar.

—Chegastes à conclusão? Certamente o poder mental de todos vocês não poderia

nem acender uma vela. A amizade que Rand e eu temos não é seu assunto, portanto, sugiro-

lhes que vocês repensem sua hipótese. Se houver um problema na cozinha, tratem de

solucioná-lo. Estão perdendo o tempo se queixando sobre mim.

Apartei-a bruscamente. Pela expressão de seu rosto, deduzi que Liza não se

esperou uma resposta tão fera.

“Pior para ela”, pensei, enquanto apertava o passo para me reunir com os outros. O

que queria que eu fizesse? Tinha assumido que eu deixaria obedientemente de falar com o

Rand só para que tudo fosse melhor na cozinha. Não ia consentir que descarregasse seus

problemas sobre mim. Já tinha bastante com meus, como por que poderia querer me matar

uma maga de Sitia.

Page 88: María v snyder 01 poison study

Já no castelo, despedi-me de Rand e da Dilana e dirigi-me às habitações do Valek.

Antes de entrar, pedi a um dos guardiões que examinasse o interior. Os intentos de

assassinato junto com uma imaginação desbocada me punham muito nervosa. Não me senti

segura até que Valek chegou, já perto da alvorada.

—Não dormiste? —perguntou-me. Um hematoma do tamanho de um punho

contrastava com sua pálida pele.

—Não, mas você tampouco.

—Eu posso dormir durante o dia. Você tem que provar a comida do Comandante

dentro de uma hora.

—Necessito respostas.

—A que perguntas? —perguntou-me Valek, enquanto começava a apagar os

abajures.

—Por que quer me matar uma maga do sul?

—Boa pergunta. Eu ia perguntar-te o mesmo.

—E como quer que eu saiba? —repliquei, cheia de frustração— Os soldados do

Brazell o entendo, mas uma maga... Eu não fui por aí, zangando às magas que me encontrei.

—É uma pena, dado que tem um verdadeiro talento para zangar às pessoas —

repôs Valek. Sentou-se em seu escritório e apoiou a cabeça entre as mãos— Uma maga do

sul, Yelena... Uma maga do sul com fila de professora... Sabe que só há quatro magas

professoras em Sitia? Quatro. E, da mudança de regime, permaneceram em Sitia. Em certas

ocasiões, mandam uma maga de menor importância para ver o que estamos fazendo. Até

agora, interceptamos a todos os espiões. O Comandante Ambrose não tolera a magia na Ixia.

Durante a época do Rei, aos magos lhes tinha considerado uma elite, lhes tratava

como se fossem membros da realeza e tinham tido muita influência com o Rei. Segundo a

história da mudança de regime, Valek os tinha assassinado a todos. Perguntei-me como,

dado que não tinha podido capturar à mulher daquela noite. Ele ficou de pé. Agarrou uma

pedra cinza. Enquanto a atirava de mão em mão, percorreu a sala. Como recordava as

práticas que tinha realizado com a última pedra que tomou, permaneci sentada no sofá, mas

levantei os pés do chão e levei os joelhos ao peito, esperando me converter no branco menor

possível.

—Para que os suboas tenham posto em perigo a uma de suas magas professoras,

a razão tem que ser... por que vão detrás de ti? —perguntou-me, sentando-se a meu lado—

Tratemos de raciociná-lo. Evidentemente, tem sangue do sul.

Page 89: María v snyder 01 poison study

—Como?

Jamais tinha pensado em minha família. Tinham-me encontrado nas ruas, sem

casa e Brazell me tinha acolhido. A única especulação que se produziu sobre meus pais tinha

sido sobre se estavam mortos ou simplesmente me tinham abandonado. Não tinha

lembranças de minha vida antes de chegar ao orfanato. Principalmente, havia-me sentido

agradecida de que Brazell me desse um teto. O fato de que Valek realizasse aquela

afirmação me surpreendeu.

—A cor de sua pele é algo mais escuro que o do nortista típico. Seus rasgos têm

influências do sul. Os olhos verdes são muito estranhos em nosso território, mas muito mais

comuns em Sitia. Asseguro-te que não é nada do que envergonhar-se — disse, interpretando

mal a expressão de meu rosto. Durante os tempos do Rei, a fronteira de Sitia estava aberta

para realizar intercâmbios comerciais. As pessoas se moviam livremente entre as regiões e os

matrimônios eram inevitáveis. Eu diria que você ficou atrás depois da mudança de regime,

quando a gente teve medo e fugiu ao sul antes que fechássemos a fronteira. Não sei o que

esperavam. Assassinatos em massa? Quão único fizemos foi lhe dar a todo mundo um

uniforme e um trabalho.

O meu pensamento dava voltas. Por que não havia sentido mais curiosidade por

minha família? Nem sequer sabia em que cidade tinham me encontrado. Todos os dias,

recordavam-nos quão afortunados fomos por ter roupa, comida, um teto, professores e

inclusive uma pequena quantidade de dinheiro a nossa disposição. Repetidamente nos havia

dito que muitos meninos órfãos não tinham tanta sorte como nós. Acaso nos estavam lavando

assim o cérebro?

—Duvido que fora um membro de sua família — comentou Valek, ficando de pé e

seguindo com seu passeio — Não quereriam te matar. Há algo mais, além do assassinato do

Reyad, que fizesse no passado? Foi testemunha de um crime? Escutou por acaso os planos

de uma rebelião? Algo assim?

—Não, nada.

—Então, temos que dar por sensato que isto tem que ver com o Reyad. Talvez ele

se relacionasse com os suboas e o fato de que você o matasse danificou seus planos. Talvez

estão planejando invadir Ixia ou acreditam que você sabe algo sobre este complô. Entretanto,

não tenho notícias de que Sitia queira nos atacar. Além disso, por que foram fazer-lo? Sitia

sabe que o Comandante deseja permanecer no norte e vice-versa. Pode que Brazell se

tornou mais imaginativo com a idade e tenha contratado a uns suboas para que te matem.

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Assim, poderia ver completo o desejo de ver-te morta sem implicar-se diretamente... Não. Isso

não tem sentido. Brazell teria contratado a uns delinqüentes. Não teria necessitado uma

maga. A menos que tenha vínculos que eu desconheço, o que resulta bastante duvidoso.

De repente, interrompeu-se como se lhe tivesse ocorrido algo repentinamente e me

olhou muito fixamente.

—O que?

—As magas poderiam vir ao norte para pôr a um dos seus a salvo. Entretanto, por

que foram matar-te? —perguntou, antes que eu pudesse dizer nada— A menos que fosse

uma Buscadora de Almas, não lhe quereriam morta. Bom, estou muito cansado para pensar.

Vou à cama — acrescentou, dirigindo-se às escadas.

Buscadora de Almas? Não tinha nem ideia do que poderia ser isso, mas tinha coisas mais

importantes das que me preocupar.

—Valek, meu antídoto.

—É obvio — respondeu, sem deixar de subir as escadas.

Enquanto ele estava acima, perguntei-me quantas vezes no futuro teria que pedir

meu antídoto. Saber que me mantinha viva me envenenava a mente tanto como o Pó de

Mariposa me envenenava o corpo.

À medida que foi clareando a manhã, pensei em minha cama com certo desejo.

Valek podia dormir, mas eu tinha que provar a comida do Comandante muito em breve.

Por fim baixou e me deu meu antídoto.

—Talvez hoje queira soltar o cabelo.

—Por quê? —perguntei, embora soubesse que as cintas estavam rasgadas e

cheias de nós.

—Para cobrir as marcas que tem no pescoço.

Antes de ir ao despacho do Comandante, fui correndo aos banhos. Tinha o tempo

suficiente para me lavar e me pôr um uniforme limpo antes de me apresentar ante ele. A cinta

de couro tinha deixado uma marca muito visível no pescoço, que resultava impossível cobrir

penteando-me como fosse.

De caminho ao despacho do Comandante, vi a Liza. Ela franziu os lábios e apartou

o olhar ao passar a meu lado. Outra pessoa a que tinha zangado. Lamentei lhe haver feito

branco de minha ira, mas não pensava em me desculpar, depois de tudo, tinha começado ela.

Page 91: María v snyder 01 poison study

A maioria das manhãs, o Comandante não me emprestava atenção quando

chegava. Eu provava seu café da manhã e logo escolhia uma parte de Crioulo para verificar

que ninguém o tinha envenenado durante a noite. Todas as manhãs, se me fazia a boca água

ao pensar na deliciosa sobremesa. O Comandante guardava com zelo seu estoque, e limitava

o consumo a uma parte depois de cada comida. Além disso, Rand havia me dito já tinha

pedido mais ao Brazell, junto com uma cópia da receita do Ving, seu cozinheiro.

Depois de colocar a comida na bandeja do Comandante, recolhia o horário diário e

partia sem intercambiar palavra com ele. Entretanto, aquela manhã, ele pediu que me

sentasse.

Tomei assento no bordo da cadeira. Sentia um pouco de medo, por isso entrelacei

os dedos para manter impassível o rosto.

—Valek me informou que ontem à noite teve um incidente. Preocupa-me outro

tento por te arrebatar a vida ponha em perigo nosso exercício. Quero que me convença de

que poderá te fazer de fugitivo sem que lhe matem. Segundo Valek, não o reconheceu

quando se tropeçou contigo.

Para ouvir aquelas palavras, fiquei boquiaberta, mas fechei a boca ao considerar

suas palavras. Ao Comandante não lhe bastaria uma explicação precipitada ou um argumento

ilógico. Além disso, acabava de proporcionar uma saída fácil. Por que tinha que arriscar o

pescoço por aquele exercício? Eu não tinha treinamento de espião. Não tinha podido

identificar ao Valek nem sequer quando sabia que ele estava me seguindo. Além disso, uns

misteriosos personagens tinham tentado me matar.

—Sou nova no jogo da caça e a busca. Para uma pessoa sem preparação, resulta

difícil reconhecer a ninguém em um festival tão cheio de gente. É como lhe pedir a um menino

que se ponha a correr quando acaba de aprender a andar. Nos bosques, resultasse-me mais

fácil dado que estarei sozinha e terei que evitar a todo mundo. Pode-se conseguir que essa

maga volte a fazer ato de presença, poderemos descobrir por que quer me matar. Além disso,

Valek me assegurou que ele me seguirá.

—Está bem. Procederemos como tínhamos planejado. Não espero que vá muito

longe, assim duvido que vejamos essa maga — disse o Comandante, pronunciando a palavra

como se lhe deixasse um mau sabor na boca— Entretanto, espero que mantenha a discrição

sobre todo este assunto. Considera-o uma ordem. Pode partir.

—Sim, senhor.

Page 92: María v snyder 01 poison study

Parti do despacho. Passei o resto do dia compilando e tomando emprestadas

coisas que podia necessitar para o exercício, que ia começar no dia seguinte ao romper o dia.

Fui à oficina da Dilana e à ferraria. Só mencionando o nome do Valek, produziu notáveis

resultados nos ferreiros, que se apressaram a me proporcionar tudo o que Valek necessitava.

Por sua parte, Dilana, que teria dado tudo o que lhe tivesse pedido, mostrou-se um

pouco desiludida quando lhe disse que só queria tomar emprestada uma mochila de couro.

—Fique com ela. Ninguém a reclamou. Leva aqui desde que eu comecei.

A fiz companhia enquanto remendava os uniformes. Contou-me as últimas intrigas

e insistiu em que devia comer mais.

Minha última parada foi a cozinha. Com a esperança de encontrar ao Rand a sós,

esperei até que o resto partiu. Rand estava de pé, trabalhando em seus menus. Cada

semana, o Comandante tinha que aprovar os menus antes que Rand os pudesse dar a Liza

para que esta se assegurasse de que todos os ingredientes estavam disponíveis.

—Tem melhor aspecto do que eu me sinto — disse Rand — Hoje não tenho nada

para que o prove. Não tive forças.

—Não importa — repliquei. Fixei-me na palidez de seu corpo e nas escuras

olheiras— Não te entreterei. Só preciso tomar emprestadas algumas costure.

—O que? —perguntou-me, mais interessado.

—Pão. E um pouco dessa cola que inventou. A doutora o utilizou para me selar um

corte do braço. É maravilhoso!

—A cola é uma das melhores receitas que inventei. Contou-te a doutora como o

descobri? Estava tratando de fazer um adesivo comestível para um enorme bolo de bodas de

dez pisos Y...

—Rand — disse, interrompendo-o— Eu adoraria escutar a história, mas prefiro

que me conte isso em outro momento. O dois deveria estar já dormindo.

—Sim, tem razão — replicou, me assinalando um montão de barras de pão —

Toma o que necessite.

Enquanto tomava o pão, Rand rebuscou em uma gaveta. Então, entregou um pote de cola

branca.

—Não é permanente. A cola permanecerá uma semana e logo se soltará. Algo

mais?

—Bom... Sim — sussurrei, sem saber se podia fazer minha petição, que era

precisamente a razão principal pela que queria estar a sós com o Rand.

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—O que?

—Necessito uma faca.

Rand voltou bruscamente a cabeça. Vi que lhe refletia uma faísca nos olhos

quando recordou como tinha matado ao Reyad. Vi que, mentalmente, sopesava nossa

recente amizade contra aquela petição tão pouco usual.

Esperava que me perguntasse por que necessitava uma faca. Não foi assim.

—Qual quer?

—A que mais dê medo.

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Capítulo 14

À manhã seguinte, dirigi-me à porta do sul justo quando o sol coroava as

montanhas da Alma. Muito em breve, os gloriosos raios do sol se estenderam pelo vale,

indicando assim o início do exercício do Comandante. O meu coração pulsava loucamente de

excitação e temor. Era uma estranha combinação de sentimentos, mas os dois aceleraram

meus passos. Quase não sentia o peso de minha mochila.

Tinha me preocupado que os artigos que levava na mochila pudessem considerar-

se como uma armadilha. Depois de pensá-lo muito, decidi que um prisioneiro que tem a

intenção de escapar guardaria algumas rações de pão e roubaria uma arma e outros objetos.

Além disso, ninguém havia dito que devia fugir sem nada.

Minha decisão por escapar tinha incrementado desde que me propuseram a idéia pela

primeira vez. Naquele momento, o dinheiro era simplesmente um estímulo. Queria demonstrar

ao Comandante que se equivocava. O Comandante, que acreditava que eu não chegaria

muito longe. O Comandante, ao que lhe preocupava que minha morte pusesse em perigo o

exercício. Antes de abandonar o castelo, detive-me um instante para vê-lo a luz do dia. Minha

primeira impressão foi que parecia ter sido construído por um menino. A base era retangular e

sustentava uma série de níveis superiores de quadrados, triângulos e cilindros, construídos

um em cima do outro sem tom nem som. O único intento por conseguir simetria eram as

magníficas torres que haviam em cada esquina do castelo. Estavam cobertas de muito belas

vidraças e pareciam estender-se até o céu.

O desenho tão pouco usual do castelo me intrigou. Eu teria gostado de observá-lo

de outro ângulo, mas Valek tinha dado instruções de que saísse do complexo à alvorada,

dado que só tinha uma hora de adiantamento sobre os outros. Valek tinha pedido uma de

minhas camisas para poder dar aos cães para que a farejassem. Quando eu lhe perguntei

quem provaria a comida do Comandante enquanto eu estivesse ausente, ele me deu uma

vaga resposta. Disse-me que tinha a outros preparados na arte do veneno que eram muito

valiosos para utilizar-se regularmente.

Ao contrário de mim.

A eleição da rota para o sul era uma eleição evidente, mas não a manteria muito

tempo. Esperava que os soldados dessem por certo que me dirigia diretamente à fronteira. O

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complexo do castelo estava no DM-6, bastante perto das terras do sul, com o DM-7 ao oeste

e o DM-5 ao leste. O antigo Rei, que tinha construído aquele complexo, preferia o bom tempo.

Como ia alternando entre andar e correr, muito em breve cheguei ao bosque das

Serpentes. A noite anterior, enquanto estudava alguns dos mapas do Valek, tinha-me dado

conta de que havia um bosque que rodeava Castletown por três lados.

Atravessei correndo o bosque, deixando um rastro muito evidente. Rompi ramos e

pisei com força a terra. Segui para o sul até que alcancei um pequeno arroio. A hora que tinha

de vantagem estava a ponto de terminar-se. Ajoelhei-me na água e tirei um punhado de barro,

deixando que a água escorresse entre meus dedos. Então, lubrifiquei o sedimento sobre a

cara e o pescoço. Como tinha recolhido o cabelo, pude esfregar o barro pela nuca e as

orelhas sem problemas. Esperava que os homens pensassem que tinha ajoelhado ali para

beber. Depois de deixar muitos rastros na borda do rio para que meus perseguidores

pensassem que tinha entrado na água. Então, voltei sobre meus passos até que encontrei

uma árvore. Com muito cuidado para não deixar rastros, tirei a mochila das costas e deixei

um dos objetos que tinha tomado emprestado dos ferreiros. Era um pequeno gancho de

metal. Atei-o a uma larga e magra corda que tinha dentro da mochila.

Com rapidez, tratei de enganchar o de um ramo, mas falhei. Frenética, voltei a

tentá-lo. Uma vez mais, não o consegui. Centrei-me em minha tarefa e voltei a provar sorte.

Consegui-o. Depois de me assegurar de que o gancho estava bem assegurado, atei o outro

lado do cabo à cintura e coloquei a mochila. Então, atirei da corda com ambas as mãos e

levantei meu peso do chão para me enganchar imediatamente à corda.

Fazia muito tempo da última vez que tinha escalado assim. Meus músculos se

queixaram pela larga inatividade. Quando cheguei ao alto, sentei-me escarranchado sobre o

ramo e voltei a guardar a corda e o gancho.

Soprava uma forte brisa do oeste. Como queria apartar do vento para que os cães

não captassem meu aroma, dirigi-me para o este, saltando de árvore em árvore. Por uma vez,

meu pequeno tamanho e minhas habilidades acrobáticas me reportaram um benefício.

Quando encontrei com uma árvore da espécie Cheketo, encontrei um lugar seguro

para apoiar minha mochila. Esta espécie de árvore é a maior das que crescem no bosque das

Serpentes. Tem uma folha de forma circular, com manchas marrons, que era perfeita para

minhas necessidades. Permaneci imóvel durante um momento, escutando. Não se ouvia

nada mais que o canto dos pássaros e o zumbido dos insetos. Detectei os débeis latidos dos

Page 96: María v snyder 01 poison study

cães, mas poderia que só se tratasse de minha imaginação. Não se via o Valek por nenhuma

parte. Entretanto, conhecendo-o, tinha que estar muito perto.

Tirei a cola do Rand e comecei a arrancar folhas da árvore. Quando tive

suficientes, tirei a camisa e comecei a pegar as folhas. Como me sentia nervosa por estar em

roupa interior, trabalhei com rapidez. Cobri a camisa, as calças, as botas e a mochila com as

folhas. Então, preguei uma folha enorme no cabelo e duas menores nas mãos, de modo que

os dedos seguissem tendo liberdade para mover-se. Sorri ao pensar no que diria Rand se me

visse caminhando com folhas na cabeça e nas mãos por todo o castelo.

Não tinha espelho, mas esperava haver camuflado adequadamente todo o corpo

de marrom e verde. Como estava muito nervosa para ficar em um lugar muito tempo, segui

avançando entre as árvores para o leste. O gancho e a corda me ajudaram em numerosas

ocasiões, embora às vezes tive que trocar de rumo para poder utilizar os ramos das árvores

mais adequadas. Não obstante, sabia que cedo ou tarde teria que me dirigir para o sul, dado

que ali era o único lugar no que um prisioneiro poderia encontrar segurança e asilo.

Sitia recebia com os braços abertos aos refugiados da Ixia. Seu governo tinha tido

uma excelente relação com o Rei, intercambiando especiarias exóticas, tecidos e

mantimentos por metais, pedras preciosas e carvão. Quando o Comandante deu por

concluídas as relações comerciais, Ixia perdeu muitos artigos de luxo enquanto que Sitia viu

como seus recursos se limitavam. Felizmente, os geólogos de Sitia tinham descoberto minas

nas montanhas Esmeralda, por isso, no momento, o território do sul parecia contentar-se

vigiando cautelosamente a seu vizinho do norte.

Muito em breve, encontrei-me com um atalho muito utilizado no meio do bosque.

Tinha profundos rastros de carretas. Deduzi que provavelmente se tratava da rota de

comércio que atravessava o país deste o oeste. Sentei-me sobre um enorme ramo para

pensar. Decidi que enquanto decidia aonde me dirigir, podia almoçar. Depois de um

momento, os relaxantes sons do bosque me fizeram adormecer.

—Vê algo? —disse uma voz masculina a meus pés, me tirando de meu torpor.

Muito assustada, agarrei ao ramo para não cair.

— Não! — replicou a voz de outro homem na distância. Parecia muito aborrecido.

Não tinha escutado latidos, por isso deduzi que devia ser a outra equipe, a menor.

Muito arrogante. Merecia que me encontrassem logo.

Supus que iam ordenar que descesse da árvore, mas não foi assim. Olhei para

baixo, mas não pude vê-los. Talvez eles tampouco tivessem me visto. Depois de um

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momento, dois homens surgiram de entre os matagais. Eles também levavam camuflagem

verde e marrom em suas roupas, embora em seu caso resultassem mais profissionais.

—foi uma estupidez vir para o leste. Certamente já chegou à fronteira do sul —

disse o da voz resmungona.

—Isso foi o que decidiram os dos cães, embora os cães de caça perderam o rastro

— replicou o outro.

Sorri. Tinha enganado aos cães. Ao menos, isso o tinha conseguido.

—Não vejo a lógica de ir ao leste —comentou o da voz resmungona.

—Não tem que ver nada. O capitão nos ordenou que fôssemos para o leste e nós

vamos para o leste. Parece pensar que essa mulher vai se dirigir ao DM-5. É um território que

lhe resulta familiar.

—E se não retornar? Outra estupidez o de utilizar à provadora de comida — se

queixou o da voz resmungona — É uma assassina.

—Isso não é nosso assunto, mas sim do Valek. Estou seguro de que se,

conseguisse escapar, ele se ocuparia dela.

Perguntei-me se Valek estaria escutando. Os dois sabíamos a razão pela que eu

não escaparia, mas encontrei aquele comentário muito instrutivo. Nem todo mundo sabia que

tinham me envenenado.

—Vamos. Temos que nos reunir com o capitão no lago. Ah, e não faça tanto ruído.

Os dois homens partiram, escondendo-se de novo entre os matagais. Esperei

pacientemente até que não notei atividade alguma. Os homens tinham decidido meu seguinte

movimento. O lago estava para o leste. Sem deixar os ramos das árvores, dirigi-me para o

sul.

Enquanto avançava, comecei a ter um estranho sentimento. De algum modo,

convenci-me de que os homens que eu tinha visto estavam me seguindo e que se

aproximavam cada vez mais. Senti um desejo irrefreável de avançar com mais rapidez.

Quando já não o pude suportar mais, deixei a um lado todas as precauções e desci das

árvores. Comecei a correr desesperadamente.

Quando cheguei a um pequeno claro, detive-me. O sentimento de pânico tinha

desaparecido. O flanco me doía muito. Deixei cair a mochila e me sentei no chão, tratando de

recuperar o fôlego. Amaldiçoei-me por me haver deixado levar pelo pânico.

—Bonito traje — me disse uma voz familiar. O medo me deu forças para me pôr de

pé.

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Não se via ninguém. Ainda. Abri a mochila e tirei a faca. O coração me dava saltos

incontrolados no peito. Examinava o bosque enquanto me movia em pequenos círculos,

procurando a voz da morte.

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Capítulo 15

Uma gargalhada me envolveu por completo.

—Sua arma não te servirá de nada. Poderia te convencer de que em realidade, o

que desejas é afundá-la em seu próprio coração em vez de no meu.

Vi-a do outro lado do claro. Ia embelezada com uma camisa de camuflagem de cor

verde, muito ampla e rodeada à cintura, junto com calças da mesma cor. A maga do sul

estava apoiada contra uma árvore, com os braços cruzados sobre o peito. Como esperava

que seus gorilas me atacassem em qualquer momento, segui bradando a faca.

—Tranquila — me disse a maga — Estamos sozinhas.

—E por que devo confiar em ti? A última vez que nos encontramos, ordenou que

me matassem. Inclusive lhes subministrou a cinta para que o fizessem

De repente, compreendi que ela não tinha necessitado absolutamente a aqueles

homens. Comecei a recitar nomes de venenos.

A maga pôs-se a rir.

—Isso não te servirá de nada. A única razão pela que te serviu a noite do festival

foi porque Valek estava ali — explicou. Então, aproximou-se um pouco mais. Eu agitei a faca

com gesto ameaçador— Yelena, te relaxe. Projetei-me em sua mente para te guiar até aqui.

Se te tivesse querido morta, te teria feito cair das árvores. Na Ixia, um acidente supõe menos

problemas que um assassinato. De fato, você sabe muito bem.

—E por que não tive um “acidente” no festival ou em outro momento?

—Preciso estar perto de ti. Faz falta muita energia para matar a alguém. Se for

possível, prefiro utilizar métodos mais mundanos. O festival foi a primeira vez que me pude

aproximar de ti sem que Valek estivesse perto. Ou isso tinha acreditado eu — acrescentou,

com certa frustração.

—E por que não matou ao Valek com sua magia durante o festival? Assim eu teria

sido uma presa mais fácil.

—A magia não funciona com o Valek. Olhe, não tenho tempo de lhe explicar isso

tudo. Valek chegará muito em breve, assim tenho que abreviar, Yelena. Estou aqui para te

fazer uma oferta.

—E o que poderia me oferecer? Tenho trabalho, roupa e um chefe pelo que morrer.

Que mais posso necessitar?

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—Asilo em Sitia — replicou ela— Para que possa aprender a controlar e utilizar

seu poder.

—Poder? Do que está falando?

—Venha já! Como é possível que não saiba? Utilizaste-o ao menos em duas

ocasiões no castelo.

A mente começou a me dar voltas. Estava falando de meu instinto de

sobrevivência. Aquele estranho zumbido que eu possuía quando minha vida estava a sério

perigo.

—Estava trabalhando muito perto quando o senti.

Quando compreendi que se tratava da provadora da comida do Comandante

Ambrose, compreendi que seria impossível te seqüestrar e te levar ao sul. Ou está com o

Valek ou ele anda perto. De fato, agora estou correndo um risco extraordinário. Entretanto,

resulta muito perigoso ter uma maga sem polir no norte. Surpreende-me que tenha durado

tanto tempo sem que lhe descubram. A única eleição que ficava era terminar contigo. Uma

tarefa que demonstrou ser mais difícil do que tinha acreditado em um princípio.

—Acaso crê que agora vou confiar em ti? Crê que vou seguir-te mansamente,

como se fosse um cordeiro a caminho do matadouro?

—Yelena, se não estivesse fazendo de fugitiva, o que te tirou do castelo e te

afastou do Valek, já estaria morta.

Não sabia se acreditá-la. O que podia ganhar ela mentindo? Por que tomar-se

tantas moléstias se podia me matar? Devia motivá-la algo mais.

—Não me crê. O que te parece uma pequena demonstração?

Senti que uma profunda dor me atravessava a mente como o relâmpago. Agarrei-

me a cabeça com as mãos e tratei de impedir o que me estava ocorrendo. Então, uma força

incontestável me golpeou na frente. Caí de costas sobre o chão e senti que a dor desaparecia

tão rápido como tinha chegado.

Apesar de que tinha os olhos cheios de lágrimas, olhei à maga. Vi que ela não se moveu. Não

havia me doído, ao menos fisicamente.

—Que diabos foi isso? —perguntei-lhe — Por que não utilizaste seus cânticos? —

acrescentei, enquanto me sentava.

—Cantei no festival porque estava tratando de ser amável. Isto foi um esforço para

te convencer de que, se te quisesse morta, não estaria perdendo o tempo falando contigo

nem esperaria até que estivesse em Sitia — afirmou. Então, inclinou a cabeça como se

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estivesse escutando— Valek se aproxima com rapidez. Dois homens o perseguem, mas eles

acreditam que perseguem a ti. Posso diminuir a marcha dos homens, mas não a do Valek.

Vais vir comigo?

—Não.

—Como diz? Acaso desfruta provando comida? —perguntou ela, atônita.

—Não, mas morrerei se vou contigo.

—E também se ficar.

—Correrei o risco.

Pus-me de pé e sacudi o pó da roupa. Então, recuperei minha faca. Não queria

explicar à maga o veneno. Para que lhe dar outra arma que podia utilizar contra mim? Se era

certo que tinha um vínculo mental comigo, averiguaria-o.

—Há antídotos — disse.

—Pode encontrar um antes da manhã?

—Não — admitiu ela — Necessitaríamos mais tempo. Nossos curandeiros

precisariam compreender onde se oculta o veneno. Poderia estar em seu sangue, em seus

músculos ou em qualquer parte. Além disso, precisariam saber como arbusto para poder

controlá-lo.

Quando se deu conta de que eu não compreendia nada, a maga prosseguiu com

sua explicação.

—A fonte de nosso poder, o que vós chamais magia, é como uma manta que

rodeia o mundo. Nossas mentes conectam com esta fonte e assim aumentam nossas

habilidades mágicas. Todo mundo tem o talento latente de ler a mente e influir no mundo

físico sem tocá-lo, mas nem todos têm a poder de conectar com a fonte de energia. Yelena,

não podemos consentir que seu poder esteja inverificado. Em vez de conectar simplesmente,

você absorve toda a energia que há a seu redor. Quando for mais velha, terá amassado tanto

poder que explodirá ou sairá ardendo. Isto não só mataria a ti, mas também danificaria a fonte

de poder em si mesmo, realizando um buraco na manta. Não podemos nos arriscar a que isto

ocorra e muito em breve será impossível te adestrar neste terreno. Por isso, não fica mais

eleição que te matar antes que alcance esse ponto.

—Quanto tempo fica?

—Um ano. Talvez um pouco mais se possa controlar. Depois disso, não

poderemos te ajudar. E lhe necessitamos, Yelena. Em Sitia não abundam as magas

poderosas.

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Rapidamente avaliei minhas opções. A demonstração de poder daquela maga me

tinha convencido de que eu seria uma estúpida se confiasse nela. Entretanto, se não a

acompanhava, mataria-me ali mesmo.

Decidi pospor o inevitável.

—Me dê um ano. Um ano para encontrar o antídoto, para encontrar o modo de

escapar a Sitia. Um ano no que não me preocuparei de que estejam planejando minha morte.

A maga olhou aos olhos. Parecia estar registrando minha mente, procurando uma

indicação de que eu a estava mentindo.

—Muito bem. Um ano. Prometo-lhe isso.

—Sei que quer terminar esta reunião com alguma classe de ameaça — lhe disse

— Talvez uma advertência. Faz-o. Estou acostumada. Não saberia como confrontar uma

conversação que não incluíra algo assim.

—Te faça a valente, mas sei que se desse outro passo para ti, molhar-te-ia as

calças.

—Com seu sangue — repliquei, brandindo a faca. De repente, dava-me conta de

que minha ameaça tinha divulgado muito ridícula. A maga pôs-se a rir. Aquela maneira de

liberar a tensão me fez sentir enjoada. Muito em breve comecei a rir e a chorar ao mesmo

tempo.

A maga recuperou a serenidade. Inclinou a cabeça e pareceu escutar de novo.

—Valek está muito perto. Devo ir.

—me diga uma coisa mais.

—O que?

—Como soube que eu seria a fugitiva? Pela magia?

—Não. Tenho fontes de informação que me resulta impossível revelar.

Eu assenti, mostrando minha compreensão. Tinha valido a pena tentá-lo.

—Tome cuidado, Yelena — me recomendou, enquanto desaparecia no bosque.

Dava-me conta de que nem sequer sabia o nome daquela mulher.

—Irys — acrescentou, me sussurrando mentalmente. Enquanto pensava em tudo o

que a maga me havia dito, dava-me conta de que tinha muito mais pergunta que lhe fazer,

todas elas muito mais importantes que quem lhe tinha dado a informação. Entretanto, como

sabia que já partira, reprimi o desejo de chamá-la. Em vez disso, deixei-me cair ao chão.

O corpo tremia violentamente quando coloquei a faca na mochila. Tirei a garrafa de

água e dava um comprido trago, desejando que o cantil estivesse cheio de algo um pouco

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mais forte. Precisava pensar antes que Valek e os dois homens chegassem onde eu estava.

Tirei a corda e o gancho e, uma vez mais, procurei uma árvore adequada para voltar a me

refugiar na cúpula do bosque. Sem deixar de avançar para o sul, repassei mentalmente toda a

informação que tinha recebido.

Quando cheguei a outro atalho do bosque, encontrei um lugar onde me acomodar

no ramo de uma das árvores. A maga tinha prometido um ano, mas eu não queria tentá-la

com um branco fácil. Podia trocar de opinião. Depois de tudo, como podia saber eu que as

magas eram pessoas de palavra?

Ela tinha afirmado que eu tinha poderes, uns poderes que eu sempre tinha

qualificado como um instinto de sobrevivência. Quando tinha me encontrado em situações

extremas, tinha sentido possuída. Era como se alguém mais capacitado de enfrentar à crise

tomasse temporalmente o controle de meu corpo, me resgatasse da morte e partisse depois.

Podia ser que meu poder fosse igual ao de Irys? Se for assim, devia manter em segredo

minha magia. Tinha que aprender a controlar meu poder de algum modo. Como? Resultava-

me impossível evitar situações nas que minha vida estivesse em perigo.

Como não tinha tempo de resolver aqueles complexos assuntos, decidi me centrar

no presente. Estudei o atalho que tinha a meus pés e notei que haviam pequenas árvores

crescendo no meio, como se estivessem tratando de arrebatar o atalho e voltar a uni-lo ao

bosque. Certamente, aquele devia ter sido um dos caminhos abandonados que se utilizavam

no comércio com Sitia.

Decidi esperar ao Valek. Ele me pediria uma explicação sobre meu encontro com a

maga e eu estava disposta a dar-lhe.

O único que me advertiu da chegada de Valek foi o ligeiro movimento de um ramo

por cima da minha. Levantei os olhos e o vi deslizando-se pelo ramo como uma serpente.

Deixou-se cair a meu lado sem fazer ruído. A camuflagem verde parecia a moda do dia. A do

Valek ia muito apertado ao corpo e contava com um capuz para cobrir o pescoço e o cabelo.

Tinha o rosto pintado de marrom e verde, o que provocava que o azul de seus olhos

ressaltasse ainda mais.

Observei meu improvisado traje. Algumas das folhas se estavam rompendo e meu

uniforme contava já com muitas rasgaduras das árvores. A próxima vez que pensasse fugir

pelo bosque, convenceria a Dilana para que me costurasse um traje como o do Valek.

—É incrível — me disse ele.

—Isso é bom ou mau?

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—Bom. Tinha dado por certo que lhes daria trabalho aos soldados e assim o tem

feito, mas jamais esperava isto — comentou, assinalando meu uniforme e as árvores — Além

disso, para rematá-lo tudo, encontrou-te com a maga e, de algum modo, conseguiu

sobreviver. Suponho que aquela era sua maneira de pedir uma explicação.

—Não sei o que ocorreu exatamente. Encontrou-me em um claro, depois de

percorrer o bosque como uma possessa. Ela estava me esperando. A única coisa que me

disse foi que tinha quebrado seus planos matando ao Reyad e logo notei uma forte dor me

esmagando a cabeça.

Como o ataque ainda estava muito recente, o horror do vivido me refletiu no rosto.

Se Valek suspeitava o que tinha ocorrido de verdade, eu jamais viveria o ano que a maga me

tinha concedido. Além disso, ao mencionar o nome do Reyad, apoiei uma das teorias do

Valek sobre a razão pela que a maga estava detrás de mim. Respirei profundamente.

—Comecei a recitar venenos e tratei de apartar a dor. Então, o ataque se deteve e

ela disse que você estava aproximando muito. Quando abri os olhos, já tinha desaparecido.

—Por que não me esperou no claro?

—Não sabia onde se foi. Sentia-me mais segura nas árvores, sabendo que você

poderia me encontrar.

Valek pensou durante um momento em minha explicação. Eu ocultei meu

nervosismo rebuscando em minha mochila. Depois de um instante, ele sorriu.

—Já demonstramos que o Comandante estava equivocado. Acreditava que lhe

apanhariam no meio da amanhã.

Eu sorri aliviada. Aproveitei o bom humor do Valek para perguntar:

—Por que odeia tanto o Comandante aos magos?

A expressão de felicidade desapareceu do rosto do Valek.

—Tem muitas razões. Eram amigos do Rei, aberrações da natureza que utilizavam

seu poder por razões complemente egoístas. Amassavam jóias e riquezas, curando aos

doentes tão somente se a família do moribundo lhes pagava uma soma de dinheiro

exorbitada. Os magos do Rei realizavam jogos mentais com todo mundo e adoravam

provocar o caos. O Comandante não quer ter nada haver com eles.

—Nem sequer utilizá-los em benefício próprio?

—O Comandante acredita que não se pode confiar nos magos, mas eu tenho uma

opinião um pouco dividida a respeito — comentou — Compreendo a opinião do Comandante

e acredito que matar a todos os magos do Rei foi uma boa estratégia, mas acredito que a

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nova geração deveria ser recrutada para nosso serviço de inteligência. O Comandante e eu

não estamos de acordo neste ponto e, apesar de meus raciocínios, ele há...

—O que?

—Ordenou que todos os que nasçam com poderes mágicos, embora seja em

quantidades mínimas, devem ser executados imediatamente.

Eu sabia da execução dos espiões do sul e dos magos da era do Rei, mas

imaginar a meninos arrancados dos braços de seus pais me fez conter a respiração. Sentia-

me completamente horrorizada.

—Pobres meninos...

—É algo brutal, mas nem tanto... A habilidade para conectar com a fonte de poder

não ocorre até depois da puberdade, mais ou menos à idade de dezesseis anos.

Normalmente, demora-se um ano em que alguém que não seja de sua família o note e os

delate. Então, ou escapam a Sitia ou eu os descubro.

Aquelas palavras tinham o peso de uma viga de madeira sobre meus ombros.

Custava-me respirar. Brazell me tinha recrutado à idade de dezesseis anos. Quando meu

instinto de sobrevivência começou a surgir, fez-o para me defender das torturas do general e

de seu filho. Acaso tratavam de provar minha magia? Por que não me delataram? Por que

não apareceu Valek?

Não sabia o que Brazell queria. Saber de meu poder só me reportava outra

maneira de morrer. Se Valek descobria minha magia, estava morta. Se não encontrava o

modo de ir sitia, estava morta. Se alguém envenenava a comida do Comandante, estava

morta. Se Brazell construía sua fábrica e retornava para procurar vingança pela morte de seu

filho, estava morta. Morta, morta, morta e morta. A morte às mãos do Pó de Mariposa me

estava começando a parecer atrativa. Era a única possibilidade em que eu podia escolher

quando, onde e como morria.

Teria-me deixado levar pela autocompaixão, mas me resultou impossível. Valek me

agarrou pelo braço e levou um dedo aos verdes lábios.

Escutei sons distantes de homens e cascos de cavalos. Muito em breve, vi mulas

que foram atirando de uns carros. A largura das carretas ocupava o caminho inteiro e as

arvorezinhas e os ramos de outras árvores golpeavam contra as rodas. Havia em total seis

carretas e seis homens que foram conversando entre eles enquanto viajavam.

Desde meu posto na árvore, vi que a primeira ia carregada com uns sacos que

poderiam estar cheios de farinha ou grão. A última levava umas estranhas vagens amarelas

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que tinham forma ovalada. O bosque das Serpentes parecia estar cheio de atividade aquele

dia.

Valek e eu permanecemos completamente imóveis até que as carretas passaram.

Quando desapareceram por fim, Valek me disse:

—Não te mova. Retornarei em seguida.

Ato seguido, atirou-se ao chão e seguiu à caravana.

Eu fiquei inquieta. Não deixava de me perguntar se os dois homens que seguiam

ao Valek me encontrariam antes que ele retornasse. O sol estava começando a desaparecer

pelo oeste e uma brisa fresca estava levando o calor do dia. Pouco a pouco, senti que as

forças me abandonavam. O exaustivo dia estava passando fatura. Pela primeira vez, a

possibilidade de passar uma noite a sós no bosque me assustou. Jamais teria imaginado que

estaria livre tanto tempo.

Por fim, Valek retornou e me indicou que descesse da árvore. Ao chegar a seu

lado, vi que tinha um pequeno saco, que me entregou. Em seu interior, havia cinco vagens

das que tínhamos visto na última carreta. Tirei uma e a observei. Teria uns vinte centímetros

de larga e era muito grosa no centro. Maravilhei-me da habilidade do Valek para roubá-las a

plena luz do dia de uma carreta em movimento.

—Como as conseguiste?

—É um segredo —respondeu ele com um sorriso— Em realidade, conseguir foi

fácil, mas tive que esperar a que os homens lhes dessem água às mulas para olhar nos

sacos.

Quando voltei a colocar a vagem no saco, vi que no fundo havia um montão de

calhaus marrons. Coloquei a mão e tirei um punhado. Pareciam grãos.

—O que é isto? —perguntei.

—São dos sacos —me explicou— Quero que as leve ao Comandante Ambrose.

Lhe diga que não sei o que são nem de onde vêm e que vou seguir à caravana para ver

aonde se dirigem.

—Acaso estão fazendo algo ilegal?

—Não estou seguro. Se estas vagens e grãos são de Sitia, então, sim. É ilegal

comercializar com o sul. O que sim sei é que esses homens não são comerciantes.

Estava a ponto de lhe perguntar como sabia. De repente, recordei as imagens dos

homens e o compreendi tudo.

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—Os uniformes não lhes estão bem —disse, ao recordar quão mau foram

vestidos— Pode que os tenham tomado emprestados ou que os tenham roubado.

—Certamente os terão roubado. Se for tomar emprestado um uniforme, tomaria a

moléstia de encontrar um que te sente bem. Yelena —disse Valek, depois de uma pausa—,

quero que encontre a esses dois homens que viu esta tarde e que lhe escoltem ao castelo.

Não quero que esteja sozinha. Se a maga pensa voltar a te atacar, terá que enfrentar-se com

dois mais e duvido que tenha forças suficientes. Não diga a ninguém como conseguiste evitar

aos soldados durante todo o dia, nem o da maga nem o da caravana. Entretanto, informa ao

Comandante tudo detalhadamente.

—E meu antídoto?

—O Comandante o tem à mão. Ele lhe dará isso. E não se preocupe por seus

incentivos. Ganhaste cada moeda. Quando retornar, assegurarei-me de que lhe dêem isso.

Agora, tenho que partir ou passarei o resto da noite tratando de alcançar a caravana.

—Valek, espera —disse.

Pela segunda vez, alguém estava a ponto de desaparecer antes de me explicar

tudo o que eu queria saber. Estava-me cansando.

—Como vou encontrar aos outros? Sem o sol, não poderei me orientar.

—Segue o atalho. Os soldados se dirigiam para o sudoeste.

Com isso, Valek partiu. Observei seus movimentos, que eram tão graciosos como

os de um cervo. Quando já não pude vê-lo, pisei com força os calhaus que havia sobre o

caminho. O crepúsculo roubava às árvores sua cor e a escuridão se apoderava de tudo. Uma

profunda intranqüilidade se apropriou de mim. Todos os ruídos me sobressaltavam e não

fazia mais que olhar por cima do ombro, desejando que Valek estivesse a meu lado.

Um grito atravessou o ar. Antes de que pudesse reagir, um enorme corpo se equilibrou sobre

mim e me jogou no chão.

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Capítulo 16

—Já te tenho! —exclamou um homem, sentando-se em cima de mim.

Apesar de ter o rosto esmagado contra as pedras e a boca cheia de terra,

reconheci a voz de um dos homens que tinha visto antes. Obrigou-me a colocar os braços à

costas e senti como alguém frite esposas de metal me rodeavam as bonecas.

—Não te parece um pouco excessivo, Janco? —perguntou-lhe seu companheiro.

Janco se levantou e me obrigou a me pôr de pé. Em meio daquela penumbra, vi

que o homem que me sujeitava era magro, com uma pequena cavanhaque. Tinha uma

profunda cicatriz na têmpora e lhe faltava a metade da orelha.

—Há-nos flanco muito encontrá-la. Não quero que escape —respondeu Janco.

Seu companheiro era aproximadamente da mesma idade, mas duas vezes mais

corpulento. Tinha uns grossos músculos e os olhos negros.

Eu quis sair fugindo. Era quase de noite e eu estava algemada com dois

desconhecidos. Logicamente, sabia que eram soldados do Comandante e que eram

profissionais, mas isso não me tranqüilizava por completo.

—Deixaste-nos em mau lugar —me disse Janco— Certamente todos os soldados

vão trocar de posto. Por sua culpa, todos teremos que limpar latrinas.

—Já basta, Janco —lhe disse seu companheiro— Nós não vamos ter que esfregar

chão. Encontramo-la. Além disso, olhe como vai vestida. Ninguém esperava que fora de

camuflagem, por isso nos há flanco tanto encontrá-la. Entretanto, o capitão vai se ficar de

pedra.

—Está já o capitão no castelo? —perguntei-lhe, tratando de empurrá-los a ir

naquela direção.

—Não. dirige-se ao sudoeste com o resto dos homens. Teremos que nos

apresentar ante ele.

Suspirei ao ver que haveria um atraso. Tinha esperado que a viagem de volta fora

rápido.

—E se envias ao Janco a procurar o capitão enquanto nos dirigimos ao castelo?

—Sinto muito, mas não nos permite nos separar. Temos que viajar de duplas. Não

há exceções.

—Como te chama? —perguntou Janco.

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—Yelena.

—Por que tem tantos desejos de retornar?

—Tenho medo da escuridão.

—Duvido-o —comentou o outro soldado, rindo— Janco, lhe tire as algemas. Não

vai se escapar. Janco duvidou.

—Tem minha palavra, Janco —prometi— Se me tira os grilhões, não sairei

fugindo.

Janco grunhiu, mas me tirou as algemas. Eu limpei a terra da cara.

—Obrigada.

Janco assentiu e assinalou a seu companheiro.

—Chama-se Ardenus.

—Ari, para abreviar —comentou este, estendendo a mão. Aquele gesto era uma

honra para mim. Se um soldado oferecia a mão, estava me reconhecendo como um igual. Eu

a estreitei com força e os três nos dirigimos ao sudoeste para encontrar a seu capitão.

A viagem ao castelo resultou quase cômico. Quase. Se meus doloridos músculos

não tivessem protestado a cada passo e se o esgotamento não me tivesse feito arrastar meu

corpo como se fora uma capa velha, me teria divertido.

Quando encontramos ao capitão de Janco e Ari, ele se mostrou furioso.

—Vá, vá, vá. Olhem o que encontraram nossos companheiros —comentou o

capitão Parffet. Era um homem calvo e suarento, que resultava velho para ser capitão.

Perguntei-me se sua atitude teria algo haver com a falta de ascensões.

—Supõe-se que tenho os melhores exploradores do exército do Comandante

Ambrose —lhes gritou Parffet ao Ari e ao Janco— Talvez possam nos ilustrar sobre que

procedimento utilizaram que lhes levou mais de dezessete horas encontrar a esta zorra.

Enquanto Parffet seguia gritando, eu dava a volta e contemplei ao resto da

unidade. Um par dos soldados parecia estar de acordo com seu capitão, outros pareciam

resignados, como se já estivessem acostumados a seus rabietas. O resto tinha uma

expressão aborrecida no rosto. Um homem, que tinha a cabeça completamente barbeada,

olhava-me com uma incômoda intensidade. Quando eu olhava para ele, desviava o olhar e se

centrava em seu capitão.

—Nix, lhe ponha os grilhões a essa zorra —ordenou Parffet— Já vejo que nossas

primadonna não se toma as moléstias de seguir os procedimentos habituais desta unidade.

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Enquanto Nix se aproximava de mim, procurei a oportunidade de me escapulir. A

promessa que tinha feito ao Janco só se aplicava se podia voltar sem algemas ao castelo. Ari,

pressentindo o que eu estava pensando, colocou uma mão sobre o ombro e me impediu de

me mover.

—Senhor, temos sua palavra de que não vai escapar —disse em minha defesa.

—Como se isso significasse algo —replicou Parffet, cuspindo no chão.

—Deu-me sua palavra —reiterou Ari, quase com um grunhido.

A contra gosto, Parffet permitiu aquela nova situação, mas pagou seu mau gênio

pondo ao resto dos soldados em formação. Assim, iniciamos uma rápida volta ao castelo.

Eu caminhava entre o Ari e Janco, como se fosse um prezado troféu. Ari me

explicou que o capitão não aceitava bem as surpresas e que havia se sentido muito frustrado

por ter que passar um dia completo no bosque me buscando.

—E feito de que lhe tenhamos encontrado nós não ajuda em nada. Nós não

formamos parte de sua unidade. Valek nos ordenou que o acompanhássemos —me explicou

Janco.

O estado de ânimo do Parffet piorou quando nos encontramos com a equipe que

contava com cães. Eu experimentei um momento de pânico quando os animais se

equilibraram sobre mim, mas logo resultou que o faziam só para me saudar e me lamber. Sua

alegria era contagiosa. Eu sorri e lhes arranhei nas orelhas. Deixei de fazê-lo só quando

Parffet franziu o cenho e pediu ordem.

Os cães não levavam colares. Porter, o funcionário de canil, formava parte da outra

equipe e os animais seguiam suas ordens sem pigarrear. A responsável da equipe dos cães

parecia desiludida de que os cães do Porter não me tivessem encontrado primeiro, mas

tomou com mais graça que o capitão do Parffet. apresentou-se e me disse que era a Capitã

Etta e caminhou um momento a meu lado para me fazer perguntas sobre minha “fuga”.

Eu me ative à verdade tudo o que foi possível. Quando surgiam perguntas sobre

onde tinha desaparecido meu rastro, menti. Expliquei que me tinha dirigido para o norte pela

água antes de tomar esta direção.

Etta sacudiu a cabeça.

—Estávamos tão convencidos de que te dirigiria para o sul... Parffet esteve no

certo ao dirigir-se ao leste.

—Ao final, queria me dirigir para o sul, é obvio, mas queria confundir aos cães

antes de fazê-lo.

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—Pois o conseguiste. O Comandante não se sentirá muito contente. Menos mal

que Ari e Janco lhe encontraram. Se tivesse permanecido fuga toda a noite, as duas equipes

teríamos cansado em desgraça.

Durante os últimos quilômetros de volta ao castelo, estava tão cansada que não me

fixava em nada. Concentrava minha energia em seguir me movendo. Quando por fim nos

detivemos, dava-me conta de que já tínhamos chegado ao castelo. Era mais de meia-noite.

Rapidamente, todos nos dirigimos à sala do trono. Ali, comprovamos que um abajur

aceso indicava que o Comandante estava ainda em seu escritório. Parffet e Etta

compartilharam um olhar de resignação antes de dirigir-se ao gabinete para informar ao

Comandante. Eu encontrei uma cadeira e me sentei nela. Muito em breve, os capitães

retornaram. O rosto do Parffet ia adornado com um profundo cenho, mas o da Etta não

mostrava emoção alguma. Disseram a suas unidades que podiam romper filas. Eu estava

tratando de encontrar forças para me pôr de pé quando Etta se aproximou e me ajudou.

—Obrigado.

—O Comandante espera seu relatório.

Eu assenti. Etta partiu com seus homens e eu me dirigi ao despacho. Ao chegar à

porta, duvidei.

—Entra — ordenou o Comandante.

Aproximei-me de seu escritório. Estava tão imóvel e impassível como sempre. Sem

poder evitá-lo, perguntei-me sua idade. Sua fila sugeria um homem amadurecido, mas sua

constituição e seu jovem rosto parecia indicar que estava mais perto dos quarenta anos. Uns

sete anos maior que Valek, se a estimativa que tinha feito sobre a idade deste era correta.

—Me informe.

Descrevi detalhadamente o que tinha feito ao longo de todo o dia, inclusive minha

fuga através das árvores e meu encontro com a maga. Dava-lhe a mesma versão que lhe

tinha relatado ao Valek. Concluí meu relatório lhe falando da caravana e do fato de que Valek

me tinha ordenado que retornasse. Esperei as perguntas do Comandante.

—Significa isso que Ari e Janco não lhe capturaram?

—Não, mas foram quão únicos estiveram perto de fazê-lo. Passaram perto de uma

árvore que eu tinha me escondido e estiveram seguindo ao Valek durante um tempo.

O Comandante guardou silêncio durante um momento. Seus olhos dourados

pareciam me transpassar enquanto eu lhe dava a informação.

—Onde estão os artigos que Valek te entregou?

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Abri a mochila e deixei as vagens e os grãos sobre o escritório. O Comandante

tomou a vagem e a examinou na mão. Então, agarrou um punhado de grãos e fez o mesmo.

Depois de observar uma, rompeu-a pela metade.

—Não são da Ixia. Devem ser de Sitia, Yelena. Leva-lhe isso e investiga um pouco.

Descobre o que são e onde crescem.

—Eu? —perguntei atônita. Tinha esperado que poderia me esquecer delas assim

que as entregasse à Comandante.

—Sim. Valek me recorda constantemente que não devo te subestimar e, uma vez

mais, demonstraste-me isso. O general Brazell te educou bem. Eu não gostaria que essa

educação se desperdiçasse.

Eu queria protestar, mas o Comandante me ordenou que partisse. Com um

suspiro, levei meu maltratado corpo aos banhos. Ali, tirei dolorosamente a roupa, lavei o barro

da cara e do pescoço e me inundei em uma fumegante banheira.

Ali, desfrutando da calidez da água, estirei meus doloridos músculos e tratei de

relaxar. Com a esperança de tirar a cola do cabelo, inundei a cabeça sob a água e me desfiz

o recolhido que levava. Deixei que os relaxantes sons da água me embalassem. De repente,

umas fortes mãos me agarraram pelos ombros. A boca e o nariz me encheram de água.

Tratei de me soltar e, efetivamente, as mãos se retiraram durante um segundo. Então,

comecei a me afundar. Instintivamente, agarrei a meu assaltante, mas, antes de que pudesse

fazer nada, este me tirou da água e me jogou no chão.

Imediatamente, pus-me de pé para me enfrentar a meu atacante. Vi que se tratava

de Margg, que tinha uma expressão de desgosto no rosto.

—Que diabos crê que está fazendo? —gritei-lhe.

—Salvando sua inútil vida —replicou ela.

—Como diz?

—Não se preocupe. Não desfrutei de nada com isso. De fato, me teria encantado

ver como te afogava, mas o Comandante me ordenou que viesse a me ocupar de suas

necessidades —disse a mulher, me arrojando uma toalha em cima— Talvez tenha enganado

ao Comandante e ao Valek e eles creem que é muito boa. Entretanto, como vai ser alguém

que fica dormido em uma banheira?

Tratei de pensar em um modo de lhe replicar, seguindo o conselho da Dilana.

Nada. Não me ocorria nada. Não fazia mais que pensar no fato de que talvez Margg acabava

de me salvar a vida.

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—Recordo-te que seguia ordens —me espetou Margg— Alguns inclusive

poderiam estar de acordo em que te salvar a vida foi além de meu dever. Não o esqueça,

rato.

Enquanto eu começava a me secar, deu-se a volta e partiu. Não sentia gratidão

alguma pelo fato de que Margg me tivesse salvado a vida, assumindo que isso fora o que

tinha feito. Talvez me tinha fundo primeiro para logo fingir que me salvava. Não lhe devia

nada. Recordei que me tinha deixado coberta de vômito quando tomei o “Meu amor” e se

negou a limpar minha habitação quando Valek me levou às suas, além de escrever uma

desagradável mensagem no pó. O pior de tudo era que, certamente, estava-lhe dando

informação sobre mim ao Brazell. Se tinha salvado de me afogar, só tinha compensado por

tantos desprezos, embora não por todos. Tal e como eu o via, ainda estava em dívida comigo.

O caminho de volta às habitações do Valek me pareceu interminável. Meus passos

só se viam animados por meu desejo de chegar à cama.

Durante os seguintes dias, caí em uma rotina. Provava as comidas do

Comandante, ia à biblioteca para investigar e dava um passeio pelo castelo. Meu dia como

fugitiva tinha provocado que sentisse falta do exterior. Se não podia subir nas árvores, ao

menos sim podia percorrer os jardins.

Utilizei o mapa que tinha copiado em meu jornal para encontrar a biblioteca. Estava

constituída por uma série de salas em distintos níveis, que estavam a transbordar de livros. O

aroma de pó e abandono flutuava por toda parte. Entristecia-me saber que aquela tremenda

fonte de informação se desperdiçava porque o Comandante desanimava aos seus de educar-

se além do que era necessário para seus trabalhos.

Dentro de sua estrutura militar, uma pessoa se preparava exclusivamente para seu

trabalho. Não se via bem o fato de aprender simplesmente pelo desejo de aprender. Quando

comprovei que a biblioteca era em realidade um lugar completamente esquecido por todos,

decidi levar ali as vagens e os grãos em vez de transportar os pesados livros a minha

habitação. Encontrei uma mesa ao lado de uma janela, pela que o sol entrava em torrentes.

Depois de limpar a mesa de pó, converti aquela zona em meu lugar de trabalho.

Cortei as vagens pela metade e descobri que estavam cheias de uma polpa

esbranquiçada e pegajosa. Depois de provar a polpa, comprovei que tinha um sabor doce,

algo cítrico e com um ponto amargo, como se estivesse começando a apodrecer-se. A polpa

continha umas sementes. Contei trinta e seis exatamente e notei que se pareciam com os

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grãos da caravana. Minha excitação diminuiu ao comparar os dois grãos contra a luz do sol. A

que tinha tirado da vagem era morada em vez de marrom e, quando a mordi, tive que cuspi-la

por seu sabor amargo. Não se parecia em nada ao sabor dos grãos marrons.

Depois de dar por certo que as vagens eram uma fruta e os grãos comestíveis, tirei

todos os livros de botânica que pude encontrar e os amontoei sobre a mesa. Então, voltei a

percorrer as estantes. Naquela ocasião, tirei todos os volumes que pude encontrar sobre

venenos. Um montão muito menor. Valek certamente levou os mais interessantes a seu

escritório. Em meu terceiro percurso pelas prateleiras, tratei de encontrar livros de magia.

Nada.

Vi que uma das prateleiras estava completamente vazia, uma raridade em uma

biblioteca que estava a transbordar. Perguntei-me se ali teriam estado os livros sobre magia.

Tendo em conta a opinião do Comandante sobre a magia, resultava lógico que tivesse

destruído toda a informação pertinente. Meu instinto me empurrou a olhar nas prateleiras

inferiores. Pensei que um livro podia ter escorrido da prateleira superior e ficar oculto baixo os

das prateleiras inferiores. Meus esforços se viram recompensados pelo descobrimento de um

magro volume titulado “Fontes de poderes mágicos”. Abracei o livro com força quando a

paranóia se apoderou de mim. Olhei a meu redor para me assegurar de que não havia

ninguém na biblioteca e escondi o livro em minha mochila. Pensava lê-lo mais tarde,

preferivelmente em meu dormitório com a porta fechada. Encantada com minha última

aquisição, procurei por toda parte até que encontrei uma cadeira que me resultasse cômoda.

Antes de levar isso a minha guarida, limpei-lhe o pó, sacudindo com força o veludo arroxeado.

Era a cadeira mais elegante que tinha visto no castelo e me perguntei quem a teria utilizado

antes de mim. Lhe teriam gostado ao Rei os livros? A considerável coleção parecia indicar

isso precisamente.

Passei muitas horas naquela cadeira, lendo os livros que tinha escolhido sem

encontrar nada. Ao menos, o tedioso trabalho se via dividido em pequenas sessões, obrigado

a que tinha que me ausentar para provar a comida do Comandante e por meus passeios

vespertinos pelo castelo.

Levava quatro dias realizando aquele exercício, mas aquela tarde, meu passeio

contava com um propósito. Procurei um lugar ao que se pudesse admirar esta porta, mas do

qual não pudessem as pessoas que passavam por ela.

Valek ainda não tinha retornado de sua missão e a semana de festejos pelo festival

de fogo tinha terminado também. Aquela mesma manhã, Rand tinha me informado que

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Brazell e seus soldados por fim partiam do castelo, por esta porta. O desejo de ver como

Brazell partia tinha levado a procurar o lugar perfeito. Efetivamente, a informação do Rand

resultou ser correta. Muito em breve me vi recompensada por um desfile de soldados vestidos

de verde e negro. Vi o Brazell sobre sua égua, cavalgando entre seus conselheiros. Enquanto

observava ao Brazell, o fantasma do Reyad apareceu a meu lado. Sorriu e se despediu de

seu pai com um gesto da mão. Um calafrio me percorreu as costas. De repente, uma mão

tocou o meu braço. O medo me provocou uma pequena convulsão.

—Menos mal que se vão —disse Ari.

Estava com o Janco ao outro lado da cerca. Os dois levavam as camisetas sem

mangas e as calças curtas com os que aos soldados gostava de treinar.

—Aposto algo que você está tão contente como nós de que se vão —comentou

Janco, enquanto secava o suor da cara com a parte inferior da camiseta.

—Assim é —admiti.

—Queremos te dar o obrigado, Yelena —afirmou Ari.

—Por que?

—O Comandante nos nomeou capitães. Disse que você falou muito bem de nós —

respondeu Janco.

Surpreendida e agradada de que o Comandante tivesse tido em conta minha

opinião, sorri.

—Agora, formamos parte da guarda de elite do Comandante —acrescentou com a

voz cheia de orgulho.

—Devemo-lhe uma. Quando necessitar ajuda, só tem que nos dizer. — o disse Ari.

Aquelas palavras me deram uma arriscada ideia. Talvez Brazell se partiu, mas

ainda seguia sendo uma ameaça.

—Necessito ajuda —disse.

Seus rostos refletiram uma expressão muito surpreendida.

—Para que? —perguntou Ari.

—Preciso aprender a me defender. Podem-me ensinar autodefesa e a dirigir uma

arma? —perguntei-lhes, sem saber se estava pedindo muito. Entretanto, se me diziam que

não, não tinha perdido nada. Ao menos o tinha tentado.

Ari e Janco se olharam.

—Que classe de arma? —quis saber Ari.

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Pensei rapidamente. Necessitava algo que fora o suficientemente pequeno para

poder levá-lo escondido no uniforme.

—Uma faca —respondi, sabendo que teria que devolver o que me tinha

emprestado Rand da cozinha.

Os dois homens intercambiaram mais gestos. Pareceu-me que Ari estava de

acordo, mas a idéia não parecia ser do gosto do Janco.

—Olhem —disse, sem poder suportá-lo mais— Se negarem, compreenderei. Não

quero lhes colocar em confusões e sei o que você, Janco, pensa de mim. Acredito que suas

palavras exatas foram: “é uma assassina”. Portanto, se a resposta for não, não me importará.

Os dois se olharam atônitos.

—Como...? —começou a perguntar Janco, antes de que Ari lhe interrompesse com

uma cotovelada no braço.

—Ouviu-nos no bosque, idiota. A que distância estava?

—A cinco ou seis metros.

—Maldita seja —comentou Ari, sacudindo a cabeça— Quem nos preocupa é

Valek. Se ele estiver de acordo, ensinaremo-lhe. De acordo?

—De acordo.

Ari e eu estreitamos as mãos. Quando me voltei para o Janco, ele parecia perdido

em seus pensamentos.

—Uma navalha! —exclamou, me agarrando a mão.

—Como? —perguntei.

—Uma navalha seria melhor que uma faca —explicou.

—E onde levaria eu essa navalha?

—Atada à coxa. Só tem que fazer um buraco no bolso de suas calças. Então, se

lhe atacarem, só tem que tirá-la, abri-la e terá uma arma a sua disposição.

—Estupendo! —gritei. Tão entusiasmada estava pela idéia de aprender a me

defender que me esqueceu a condição— Quando começamos?

—Bom, dado que Valek ainda não retornou —comentou Janco, acariciando-a

cavanhaque—, poderíamos começar com uns movimentos de autodefesa básicos. Não

acredito que haja nada que objetar a isso.

—São movimentos que poderia ter aprendido observando os treinamentos dos

soldados —acrescentou Ari, completamente de acordo com seu companheiro, decidiram-se

imediatamente.

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—Começaremos agora mesmo —disseram ao uníssono.

Capítulo 17

Ao lado dos dois enormes soldados, sentia-me como uma ameixa entre dois

melões. Comecei a ter minhas dúvidas. O fato de que eu pudesse me defender contra alguém

da corpulência do Ari parecia ridículo. Se ele quisesse, poderia me agarrar e me colocar em

cima do ombro sem que eu pudesse fazer nada a respeito.

—Muito bem, primeiro começaremos com um pouco de autodefesa —explicou

Ari— Não utilizaremos armas até que os movimentos básicos sejam instintivos. É melhor

lutar sem armas que com uma que não se saiba utilizar. Um oponente hábil te desarmaria

sem esforço e, nesse caso, seus problemas se multiplicariam. Não só lhe poderiam atacar,

mas também o estariam fazendo com sua própria arma.

Ari deixou a espada de treinamento que ainda levava na mão e olhou o campo de

práticas. A maioria dos soldados já partiram, mas ainda ficavam pequenos grupos

exercitando-se.

—Quais são seus pontos fortes? —perguntou Ari.

—Meus pontos fortes?

—O que te dá bem?

—Se correr com rapidez, é bom —comentou Janco, ao notar minha confusão.

—Bom... sou bastante flexível. Estava acostumado a ser acrobata.

—Perfeito. A coordenação e a agilidade são umas habilidades excelentes. Y...

Naquele momento, Ari me agarrou pela cintura e me atirou ao ar.

Minhas extremidades me falharam durante um instante antes de que meu instinto

entrasse em ação. Ainda no ar, coloquei o queixo e peguei braços e pernas a meu corpo.

Então, executei uma cambalhota para me alinhar e caí de pé, embora me custou um pouco

conservar o equilíbrio.

Um pouco zangada, voltei-me para o Ari. Antes de que eu pudesse pedir uma

explicação, ele me disse:

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—Outra vantagem de conhecer as técnicas acrobáticas é que se tem a habilidade

de cair sempre de pé. Essa tua manobra poderia significar a diferença entre a vida e a morte.

Não é verdade, Janco?

—Claro que ajuda —afirmou este.

Continuando, Janco e Ari dedicaram toda sua atenção a me mostrar como bloquear

murros e patadas. Quando terminamos, tinha os antebraços doloridos.

O exercício terminou quando outro soldado se aproximou. Tanto Ari como Janco

ficaram muito tensos ao ver que se tratava de Nix, o guarda da unidade do capitão Parffet.

Estava talher de suor, certamente pelo exercício.

—Que diabos creem que estão fazendo? —espetou a ambos.

—Quererá dizer, que diabos acreditam que estão fazendo, senhores? —corrigiu-lhe

Janco— Temos uma fila superiora ao teu. De fato, acredito que estaria bem que nos

saudasse.

—Perderão a ascensão quando seu chefe descubra que lhes associastes com uma

assassina —replicou Nix — A que descerebrado lhe ocorreu a ideia de ajudá-la a aperfeiçoar

suas técnicas de matar? Quando aparecer outro cadáver, os dois serão cúmplices.

Janco deu um passo ameaçador para o Nix, mas lhe deteve a mão do Ari.

—O que fazemos com nosso tempo livre não é teu assunto, Nix —lhe espetou Ari,

com tom ameaçador— Agora, por que não vai com o Parffet? Vi-o em direção às latrinas.

Muito em breve, necessitará-te para que lhe limpe o traseiro. Essa é a tarefa para a que está

mais qualificado. Apesar de que estava em inferioridade numérica, Nix não pôde resistir a

lançar uma pua antes de partir.

—Diz-se que essa mulher matou a seu benfeitor. Se estivesse em seu lugar,

tomaria cuidado com o pescoço.

Ari e Janco não perderam de vista ao Nix até que este abandonou o campo de

práticas. Então, voltaram-se para me olhar.

—Foi um bom começo —disse Ari, para terminar a classe— Nos vemos amanhã à

alvorada.

—E Nix? —perguntei.

—Não há problema. Eu posso me ocupar dele —replicou Ari.

—À alvorada tenho que ir provar a comida do Comandante —disse, enquanto me

perguntava se Nix não teria alguma outra razão, além do fato de que eu tivesse matado ao

Reyad, para me odiar tanto.

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—Então, justo depois.

—Para que?

—Os soldados correm ao redor do campo de treinamento para manter-se em forma

—disse Janco.

—Te una a eles —ordenou Ari— Dá ao menos cinco voltas, mais se puder. Iremos

incrementando o número até que possa fazê-lo conosco.

—Quantas voltas fazem vós?

—Cinqüenta.

Traguei saliva. Enquanto retornava ao castelo, pensei no trabalho e o tempo que

teria que dedicar a treinar. A autodefesa requeria o mesmo nível de compromisso que eu

tinha aplicado a minhas acrobacias. Não podia fazê-lo pela metade. Em seu momento, tinha

parecido uma boa ideia, mas, quanto mais o pensava, mais me dava conta de que não era

algo que se pudesse fazer a capricho.

Perguntei-me se não seria melhor utilizar o tempo para aprender sobre venenos e

magia. Ao final, nem todo o treinamento físico do mundo conseguiria me salvar dos poderes

mágicos do Irys.

Quando cheguei ao despacho do Comandante, já tinha decidido que não me viria

mal fazê-lo. Além da maga, tinha outros inimigos e o fato de ser capaz de me defender

poderia salvar a vida algum dia. O conhecimento, fora na forma que fora, poderia ser tão

eficaz como uma arma. Pouco depois de que eu cheguei, um dos tutores entrou no despacho,

arrastando pelo braço a uma menina. À idade de doze anos, atribuía-se a todos os meninos

uma profissão, dependendo de suas capacidades. Então, lhes enviava ao tutor

correspondente para que aprendessem a seu lado durante quatro anos.

O uniforme do tutor tinha rombos negros bordados no pescoço. A menina ia

embelezada com um singelo pulôver vermelho, que era o que vestiam os estudantes. Tinha

os olhos cheios de lágrimas. Supus que teria uns quinze anos.

—Qual é o problema, Beevan? —perguntou-lhe o Comandante.

—Esta menina desobediente é uma moléstia constante em minha classe.

—Em que sentido?

—É uma sabichona. Nega-se a resolver problemas Matemáticos à maneira

tradicional e tem as guelras de me corrigir diante de toda a classe.

—Por que está aqui?

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—Quero que lhe castigue. Que lhe dêem chicotadas, preferivelmente, e que se a

recoloque como faxineira.

Ao ouvir as palavras do tutor, a menina começou a chorar de novo, embora tratou

de manter a compostura.

O Comandante entrelaçou os dedos e ficou a pensar.

—Eu me ocuparei do tema —disse o Comandante, por fim— Pode te retirar.

Beevan duvidou durante um instante. Então, depois de abrir e fechar a boca em

várias ocasiões, partiu do despacho.

O Comandante se levantou e indicou que se aproximasse.

—Minha, qual é sua versão da história? —perguntou-lhe à moça.

—Me dão muito bem os números, senhor —respondeu a menina, com voz

tremente— Me aborrecia de resolver os problemas sempre ao modo do professor Beevan,

por isso inventei maneiras mais rápidas e interessantes. A ele não lhe dão bem os números,

senhor. Meu equívoco foi dizer seus enganos. Sinto-o muito, senhor. Por favor, não me faça

açoitar. Não o voltarei a fazer, senhor. Seguirei todas as indicações do professor Beevan —

sussurrou, enquanto abundantes lágrimas lhe caíam pelas bochechas.

—Não —respondeu o Comandante. O terror se apoderou da menina— Tranqüila,

moça. Yelena...

—Sim, senhor —disse.

—Vá ao conselheiro Watts.

—Sim, senhor.

Fui procurar ao Watts imediatamente. Tinha-o visto em uma ocasião. Era o

contável do Comandante, que tinha me dado o dinheiro que ganhei fazendo-me de fugitiva.

Estava trabalhando, mas me seguiu imediatamente ao despacho do Comandante.

—Watts, ainda necessita uma ajudante? —perguntou-lhe o Comandante.

—Sim, senhor —replicou Watts.

— Minha, tem um dia para demonstrar o que vale. Se não deixar assombrado ao

conselheiro Watts com suas habilidades matemáticas, terá que retornar à classe do Beevan.

Se o conseguir, o trabalho será teu. De acordo?

—Sim, senhor. Obrigado, senhor —disse Minha, com o rosto radiante, enquanto

seguia ao Watts.

Eu me maravilhei pela atitude do Comandante. O fato de mostrar-se compassivo e

de ter escutado a versão de Minha e de lhe haver dado uma oportunidade, era exatamente o

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oposto do que eu me tinha imaginado que ocorreria. Por que um homem de tanto poder ia se

tomar as moléstias de dar um passo assim? Tinha deslocado o risco de zangar ao Beevan e

ao coordenador. Por que queria apoiar a uma estudante?

Aquela noite, enquanto me dirigia com um livro de Botânica sob o braço às

habitações do Valek, perguntei-me quando deveria me mudar a minha antiga habitação.

Como Brazell já partiu, não havia razão lógica para ficar com o Valek. Entretanto, a

possibilidade de voltar para a pequena habitação, provocava-me um estranho vazio em meu

interior. Era o mesmo vazio que levava já sentindo a quatro dias.

Quando entrei nas habitações do Valek, tão somente me saudou uma fria

escuridão. Minha desilusão me surpreendeu e me dava conta de que o estava sentindo falta

de... Sacudi a cabeça ante tão estranho conceito. Eu? Senhora do Valek? Não podia me

permitir pensar algo assim.

Em vez disso, centrei-me em minha sobrevivência. Se queria descobrir o antídoto

para o Pó de Mariposa, a melhor ideia não era fazê-lo sentada no salão do Valek. É obvio, a

situação poderia trocar muito em breve. Quando Valek retornasse e se inteirasse de que

Brazell partiu, provavelmente me ordenaria que me retirasse.

Depois de acender os abajures, relaxei no sofá com o livro de Botânica. A Biologia

jamais tinha sido uma de minhas disciplinas favoritas e, muito em breve, notei que estava

pensando em outras coisas. Meus débeis esforços por me manter centrada se perderam em

meus pensamentos.

Um golpe surdo me chamou a atenção. Parecia que se tratava de um livro que

golpeava o chão. Olhei a meu redor, mas o meu ainda estava sobre o regaço. Olhei o salão

para ver se tinha desmoronado algum dos montões que Valek tinha sobre o chão. Em meio

de tanta desordem, não podia estar segura. Me ocorreu um pensamento que me pôs os

cabelos de ponta. Talvez o ruído tinha vindo decima. Talvez não tinha sido um livro a não ser

uma pessoa. Alguém que tinha entrado para esconder-se e esperar a que dormisse para

poder me matar. Incapaz de permanecer sentada, agarrei um abajur e parti a minha

habitação.

Minha mochila estava na escrivaninha. Rand ainda não tinha me pedido a faca, por

isso eu não a havia devolvido. Tirei-a e imediatamente recordei o conselho do Ari sobre

utilizar armas. Provavelmente era uma tolice levar a faca, mas me sentia muito mais tranqüila

com ela na mão. Armada daquela guisa, retornei ao salão e pensei no que fazer a seguir.

Aquela noite me resultaria impossível dormir até que tivesse registrado as habitações decima.

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A escuridão foi abrindo-se à medida que subia com meu pequeno abajur. As

escadas terminavam em um salão. Como na planta baixa, havia montões de livros, caixas e

móveis por toda parte. Esquivei-as com muito cuidado. O coração pulsava com força

enquanto iluminava os rincões escuros com o abajur, virtualmente esperando uma

emboscada.

O reflexo de uma luz fez que me escapasse um grito. Dava a volta e vi que só tinha

sido o brilho de meu próprio abajur sobre as altas janelas que adornavam a parede mais

longínqua.

À direita do salão, havia três habitações. Depois das examinar rapidamente,

comprovei que, à exceção de livros e caixas, estavam vazias.

À esquerda, havia um comprido corredor. No lado direito do mesmo, abriam-se

portas na parede de pedra. O corredor terminava com uma porta dupla de madeira. Sobre a

madeira de ébano, tinha esculpida uma cena de caça. Pela fina capa de pó branco sobre o

chão, supus que aquela era a entrada ao dormitório do Valek. O pó mostraria facilmente os

rastros de um intruso. Ao ver que o pó estava intacto, respirei mais tranqüila.

Sistematicamente, registrei o resto das habitações do corredor. Ao abrir a última,

surpreendeu-me muito o que vi, tanto que demorei um instante em compreender o que era.

Comparada com o resto, aquela habitação estava vazia. Havia uma larga mesa contra uma

das paredes, centrada sob uma janela. Sobre o chão, e ordenadas por seu tamanho, havia

pedras cinzas com raias brancas, quão mesmas tinha visto no salão e no gabinete do Valek.

Quando entrei, uma espessa capa de pó rangeu sob meus pés. Sobre a mesa

havia cinzéis, limas e uma pedra de amolar. Além disso, havia várias estátuas em diversos

estádios de criação entre as ferramentas. Compreendi que as pedras, quando se esculpiam e

se poliam, metamorfoseavam-se em uma pedra negra lustrosa e muito formosa e as raias

brancas em reluzente prata.

Deixei o abajur sobre a mesa e tomei uma mariposa, que já estava terminada.

Encaixava perfeitamente na palma de minha mão. Os detalhes eram tão deliciosos que

parecia que a mariposa podia pôr-se a voar em qualquer momento. Admirei também o resto

das estátuas. aplicou-se o mesmo cuidado de cada uma delas.

Animais, insetos e flores alinhavam a mesa. Aparentemente, a natureza era o tema

favorito do artista.

Assombrada, compreendi que o artista devia ser Valek. Tinha ante meus olhos uma

faceta da personalidade do Valek que jamais teria imaginado que existisse. Sentia-me como

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se me tivesse intrometido em seu segredo mais íntimo, como se tivesse descoberto que tinha

esposa e filhos vivendo ali acima em feliz reclusão. É obvio, tinha-me fixado nas estátuas que

Valek tinha em seu escritório e no tigre de neve que havia na mesa do despacho do

Comandante.

Um ruído de passos fez que me desse a volta. Uma sombra negra se abateu sobre

mim. Arrebatou-me a faca da mão e me aplicou isso contra o pescoço. Não obstante, o rosto

do Valek não mostrava ira, a não ser jocosidade.

—Estava farejando? —perguntou-me, dando um passo atrás.

Com certo esforço, fiz que o medo desaparecesse de mim e comecei a respirar

uma vez mais.

—Ouvi um ruído. Vim A...

—Investigar. Procurar um intruso é muito diferente de examinar estátuas —disse,

assinalando a mariposa que ainda tinha na mão— Estava farejando.

—Sim.

—Bem. A curiosidade é um rasgo digno de elogio. Já havia me perguntando quanto

tempo demoraria para subir aqui acima. Encontraste algo interessante?

Eu abri a mão e lhe mostrei a mariposa.

—É muito bonita.

—Esculpir a pedra me ajuda a pensar —comentou, encolhendo-se de ombros.

Coloquei a estátua sobre a mesa, embora sem soltá-la de tudo. Teria gostado de

examinar a à luz do dia. Agarrei o abajur e me dispus a sair da sala com o Valek.

—De verdade que escutei um ruído —insisti.

—Sei. Atirei um livro ao chão para ver o que faria. Entretanto, não esperava que

aparecesse com uma faca. É a que falta da cozinha?

—Denunciou Rand seu desaparecimento? —perguntei, me sentindo traída.

—Não, mas tem sentido ter sempre localizados as facas da cozinha para que,

quando desaparece um, ninguém se surpreenda se lhe atacam com ele —replicou ele, me

entregando a faca— Deveria devolvê-lo. As facas não lhe servirão de nada ante o calibre das

pessoas que vão atrás de ti.

Valek e eu baixamos as escadas. Levantei o livro de Botânica do sofá.

—O que lhe pareceram as vagens ao Comandante? —perguntou-me.

—Acredita que são de Sitia. Devolveu-me isso para que pudesse descobrir o que

são. Estive investigando um pouco na biblioteca —expliquei, lhe mostrando o livro.

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Valek me tirou isso e folheou as páginas.

—Encontraste algo?

—Ainda não.

—Seu comportamento como fugitiva deveu impressionar ao Comandante.

Normalmente, ele teria atribuído esta classe de tarefa a um de seus conselheiros.

As palavras do Valek me incomodaram. Não estava convencida de que pudesse

descobrir a origem das vagens e grãos. A idéia de lhe falhar ao Comandante me pôs doente.

Rapidamente, troquei de tema.

—Aonde se dirigia a caravana?

Valek guardou silêncio, sem saber o que dizer. Ao final, tomou a palavra.

—À nova fábrica do Brazell —disse. Se lhe tinha surpreso seu descobrimento, não

o demonstrou. Me ocorreu que, apesar de toda a discussão sobre a permissão do Brazell, não

sabia o que pensava fazer naquela fábrica.

—Do que é a fábrica?

—Supõe-se que vai ser um moinho de penso—respondeu Valek, me entregando o

livro— Não sei por que necessita essas vagens e grãos. Talvez sejam um ingrediente

secreto. Talvez se acrescentem ao penso para incrementar o fornecimento de leite das vacas.

Então, todos os granjeiros comprariam o penso do Brazell em vez de criar o seu próprio. Algo

assim. Ou talvez não. Não sou nenhum perito. Seja como for, designei a alguns de meus

homens para que vigiem a rota e se infiltrem na fábrica. Neste momento, necessitamos mais

informação.

—Brazell partiu do castelo esta mesma tarde.

—Encontrei-me com seu destacamento quando retornava. Melhor. Uma coisa

menos da que me preocupar.

Valek se dirigiu a seu escritório e começou a rebuscar entre seus papéis. Observei-

o de costas durante um instante, esperando. Ele não havia dito nada sobre o fato de que eu

tivesse que me mudar. Finalmente, encontrei o valor suficiente.

—Devo voltar para minha antiga habitação agora que Brazell se partiu?

Ao ver que Valek se detinha, contive o fôlego.

—Não —respondeu— Segue em perigo. Ainda não nos temos desfeito da maga.

Uma potente sensação de alívio se apoderou de mim, me alarmando ao mesmo

tempo. Por que queria permanecer a seu lado? Resultava algo perigoso, ilógico e, por isso me

parecia, o pior para mim. Ainda tinha o livro sobre magia escondido na mochila, que levava a

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todas partes porque temia que Valek o descobrisse. Maldita seja... Como se não tivesse já

bastante do que me preocupar... Não deveria sentir falta do Valek. Deveria me esforçar mais

por escapar. De fato, em vez de resolver o enigma dos grãos e as vagens, deveria sabotá-lo.

Não deveria admirar e respeitar ao Valek. Deveria, não deveria, deveria, não deveria...

—Como se desfaz.. hum...exatamente de uma maga? —perguntei-lhe.

—Já lhe hei isso dito —respondeu, voltando-se para me olhar.

—Mas seus poderes...

—Não têm efeito algum sobre mim. Quando me aproximo, sinto seu poder me

apertando e me fazendo vibrar a pele. Custa-me muito esforço, mas ao final termino

ganhando. Sempre.

—Quanto deve te aproximar? —perguntei. Valek estava no castelo nas duas

ocasiões nas que eu tinha utilizado a magia. Suspeitava de mim?

—Tenho que estar na mesma habitação —disse.

Um profundo alívio se apoderou de mim. Não sabia. Ao menos ainda.

—Por que não matou à maga do sul no festival?

—Yelena, eu não sou invencível. Resultou-me exaustivo derrotar a quatro homens

enquanto ela me fazia branco de seu poder. Não me teria servido de nada persegui-la.

—É magia o fato de ser resistente à magia? —quis saber.

—Não —respondeu. O rosto lhe endureceu de repente.

—E a faca? —perguntei, assinalando a arma que, pendurada da parede, ainda

tinha restos de sangue. O sangue reluzia sob a luz do abajur. Nas três semanas que eu

levava nas habitações do Valek, não se tinha secado. Valek se pôs-se a rir.

—Esse é a faca que utilizei para matar ao Rei. Era um mago. Quando sua magia

não pôde me deter lhe afundei essa faca no coração, amaldiçoou-me com seu último fôlego.

Resultou bastante melodramático. Desejou-me que me visse afligido pela culpa sobre seu

assassinato e que seu sangue me manchasse as mãos para sempre. Com minha peculiar

imunidade à magia, a maldição se dirigiu à faca em vez da mim —acrescentou, olhando a

parede da que penduravam as armas com gesto pensativo— É uma pena que tivesse que

perder minha adaga favorita, mas se converteu em um troféu muito bonito.

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Capítulo 18

Os meus pulmões ardiam. Completamente avermelhada e empapada de suor, ia

atrás do grupo principal de soldados. A garganta ardia com cada respiração. Era a quarta

volta que dava ao redor do castelo. Ficava uma. Depois de provar o café da manhã do

Comandante, dirigi-me aos barracões que havia ao nordeste. Quando vi que um grupo de

soldados passava correndo a meu lado, vi o Ari, que me saudou e me indicou que unisse a

eles. Preocupava-me que o resto dos militares se sentissem molestos por minha presença,

mas havia outras pessoas com os soldados, como criados, moços de estábulo e outros

trabalhadores do castelo.

As primeiras duas voltas me aceleraram o pulso e me deixaram sem fôlego. A dor

de pés me começou durante a terceira volta e começou a me percorrer as pernas durante a

quarta. Tudo o que me rodeava se esfumou até que quão único vi foi uma pequena parte de

terreno diante de mim. Quando, coxeando, cheguei a minha meta, terminou minha agonia.

Encontrei um grosso sebe e vomitei os pasteizinhos doces que tinha tomado aquela manhã.

Ao me incorporar, vi o Janco me mostrar os polegares de ambas as mãos para cima quando

passava a meu lado. Por sua parte, ele nem sequer tinha a decência de parecer cansado.

Além disso, ainda tinha seca a camiseta.

Enquanto limpava o vômito dos lábios, Ari se deteve meu lado.

—Campo de treinamento a dois. Até então —me disse.

—Mas...

Ari partiu antes de que eu pudesse terminar a frase. Quase não me tinha de pé, por

isso não podia imaginar fazendo mais esforços.

Aquela tarde, no campo de treinamento, Ari e Janco se apoiaram contra a cerca

enquanto observavam como dois homens brigavam com a espada. Os lutadores tinham

atraído a atenção de todos os presentes. Muito surpreendida, dava-me conta de que um deles

era Valek. Não o tinha visto desde aquela manhã cedo e tinha dado por sentado que estava

descansando depois de estar levantado até muito tarde a noite anterior.

Valek era como um líquido em movimento. Enquanto o observava, me ocorreu uma

única palavra: beleza. Seus movimentos tinham a velocidade e a cadência de uma complexa

dança. Em comparação, seu adversário parecia um bezerro recém-nascido, ao que lhe

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resultava impossível controlar braços e pernas. Os rápidos movimentos e os certeiros golpes

do Valek desarmaram a seu oponente imediatamente. Com a ponta da espada, Valek enviou

a seu derrotado oponente em direção a um pequeno grupo de homens. Então, indicou a outro

que atacasse.

—O que é o que está passando? —perguntei.

—O desafio do Valek.

—O que é isso?

—Valek declarou um desafio a todos os habitantes da Ixia. Se lhe derrotava com a

arma que o outro escolhesse ou mão à mão, o ganhador se converteria no segundo ao

mando —explicou Ari, que já estava encetado em combate com um terceiro homem— Lutar

com o Valek ao menos em uma ocasião é como uma espécie de graduação para os soldados,

embora, é obvio, pode-se tentar tantas vezes como a gente queira. Os capitães observam os

combates e encerravam aos soldados mais prometedores. Além disso, se consegue

impressionar ao Valek com as habilidades, talvez consiga que ele te ofereça um posto no

corpo do serviço de inteligência.

—Como foi a vós? —perguntei-lhes.

—Bem —respondeu Ari.

—Bem diz! —replicou Janco— Ari esteve a ponto de lhe derrotar. Valek se

mostrou muito contente, mas ao Ari não gosta de ser espião.

Seguimos observando. Ari e Janco realizavam comentários técnicos sobre as

diferentes briga, mas eu não podia apartar os olhos do Valek. Com os raios do sol refletindo-

se o na espada, desfez-se de dois homens mais. Dava-lhes com a parte plaina da espada

para que soubessem que tinha quebrado suas defesas sem derramar nenhuma gota de

sangue. O seguinte oponente lhe aproximou com uma faca.

—Má eleição —comentou Ari.

Valek deixou a espada e tirou a adaga da vagem. A briga terminou em dois

movimentos.

—Valek é um professor na briga de facas —comentou Janco.

A última pessoa que o desafiou era uma mulher. Alta e ágil, lhe aproximou

empunhando um comprido fortificação de madeira. Apresentou batalha ao Valek. Seu

combate durou mais que os anteriores. Ao fim, o fortificação da mulher se partiu em dois e se

terminou a luta. Enquanto a gente se dispersava, Valek começou a falar com a mulher.

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—É Maren —disse Ari— Se ela não passar a formar parte do corpo de inteligência,

deveria lhe pedir a ela que te ensine o manejo do fortificação. Como é tão miúda, daria-te algo

mais de defesa contra um atacante mais alto e forte.

—Entretanto, não se pode esconder um fortificação —comentei.

—No castelo não, mas se for dar um passeio pelos bosques, não chamaria a

atenção que levasse um.

Olhei ao Maren e considerei as possibilidades. Quereria ela me ajudar?

Provavelmente não.

Como se Ari me tivesse lido o pensamento, disse-me:

—Dado que muitas mulheres fracassam nas provas físicas, Maren sempre tenta as

ajudar. Agora, temos mais mulheres no exército graças a ela. Tratamos de conseguir que nos

ensine, os homens, mas não tem interesse por ajudar aos do sexo oposto.

—Entretanto, eu não sou uma recruta. Sou a provadora de comida do

Comandante. Por que ia perder seu tempo comigo? Eu poderia estar morta amanhã mesmo.

—Noto que está um pouco resmungona esta manhã —disse Janco alegremente—

Acaso tem feito muito exercício esta manhã?

—Cale-se —lhe espetei. Ele limitou-se a sorrir.

—Muito bem. Já basta. vamos começar.

Passei o resto da tarde aprendendo como dar um murro em alguém sem romper a

minha mão e praticando a técnica de patada adequada. Os meus nódulos se puseram

vermelhos brilhantes depois de golpear o saco de boxe uma e outra vez. Dominar a patada

era um desafio, dado que tinha tensos os músculos da coxa, o que impediam minha

flexibilidade.

Quando Ari me disse por fim que podia partir, dirigi meu machucado corpo para o

castelo.

—Até manhã —disse Janco, com um tom alegre na voz.

Ao me voltar para lhe dizer onde se podia colocar suas despedidas, encontrei-me

cara a cara com o Valek. Contive o fôlego. Ele nos tinha estado observando. Senti-me

envergonhada.

—Seus murros são muito lentos —comentou. Então, agarrou minha mão e

examinou os hematomas, que estavam começando a avermelhar— Ao menos, tem boa

técnica. Se levantar pesos enquanto treina, seus murros serão muito mais rápidos que sem

elas.

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—Posso continuar? —perguntei, cheia de incredulidade.

Valek não soltava a mão nem eu podia encontrar a força de retirá-la. A calidez do

contato me percorreu todo o corpo, fazendo que minhas dores desaparecessem

temporariamente. Ainda com a lembrança de sua demonstração física no pensamento, olhei-

lhe o rosto. Seus brilhantes e perigosos olhos azuis sempre tinham chamado minha atenção.

Tinha aprendido a ler suas expressões faciais como tática de sobrevivência, mas jamais o

tinha visto cuidadoso daquele modo. Era um estudo de contradições. O homem que era capaz

de esculpir delicadas estátuas era também capaz de desarmar a sete oponentes sem

começar a suar. Minha relação com o Valek parecia um passeio pela corda frouxa. Umas

vezes me sentia segura e equilibrada e outras insegura e instável.

—Acredito que é uma idéia excelente —disse— Como conseguiu que os gêmeos

de poder conseguissem te ajudar?

—Gêmeos de poder?

—Se combinasse a força do Ari com a velocidade do Janco, o resultado seria um

homem indestrutível, mas até agora, não pus a prova minha teoria já que não quiseram brigar

de uma vez só comigo. Ninguém me há dito nunca que não podia ter a duas pessoas como

segundos ao mando. Você não me vais delatar, verdade?

—Não.

Valek apertou minha mão e me soltou.

—Bem. Provavelmente sejam os melhores instrutores que poderia encontrar no

castelo. Como os conheceu?

—Foram os homens que me encontraram no bosque. O Comandante os ascendeu

e eu me aproveitei de sua gratidão —expliquei. A mão ainda vibrava onde ele havia tocado.

—É matreira e oportunista. Eu adoro —replicou ele, rindo.

Enquanto me acompanhava de retorno ao castelo, notei que estava de muito bom

humor, provavelmente a adrenalina por ter derrotado a tantos oponentes. Antes que

alcançássemos a entrada, deteve-se.

—Há um problema.

—Qual?

—Não deveria treinar tão à vista de todo o mundo. Este tipo de coisas corre como a

pólvora. Se Brazell se inteira e protesta, o Comandante te ordenará que o deixe. E fará que

suspeite. Por que não utiliza os armazéns que há no porão do castelo?

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Retomamos o caminho e entramos no castelo. Enquanto o percorríamos, Valek

permaneceu em silêncio. Eu me dirigi ao despacho do Comandante para provar sua comida e

ele me acompanhou.

—Ao mencionar ao Brazell, recordei que levo algum tempo querendo te perguntar

sobre esse Crioulo que tanto gosta o Comandante. Você gosta de seu sabor?

—Sim, parece-me uma sobremesa excelente —respondi.

—Se deixasse de tomá-lo, como se sentiria?

—Bom... —duvidei. Não estava segura de aonde se dirigia aquela conversação —

Verdadeiramente, sentiria-me desiludida. Estou desejando prová-lo todas as manhãs.

—Estiveste pensando antes no Crioulo alguma vez?

—Refere a um pouco parecido a um vício? —perguntei, compreendendo por fim

aonde ele queria chegar.

—Sim.

—Não acredito, mas...

—O que?

—Eu só o como uma vez ao dia. O Comandante toma uma parte depois de cada

comida. A que vem esta repentina preocupação?

—É tão somente um pressentimento. Poderia não ser nada —replicou Valek.

Guardou silêncio durante o resto do trajeto.

—Bem, Valek, alguma ascensão hoje? —perguntou-lhe o Comandante, assim que

entramos em seu escritório.

—Não, mas Maren é uma grande promessa. Desgraçadamente, não quer passar a

formar parte de meu serviço de inteligência nem ser minha segunda. Só quer me derrotar —

comentou Valek com um sorriso. Parecia encantado com o desafio.

—E pode fazê-lo? —quis saber o Comandante.

—Com tempo e o treinamento adequado, sim. É letal com sua fortificação. Só

precisa melhorar suas táticas.

—Então, o que podemos fazer com ela?

—Ascendê-la a general e retirar a algum desses velhas raposas. Viria a você bem

sangue novo nos postos de comando.

—Valek, você jamais compreendeste bem a estrutura miliar.

—Então, ascenda a tenente hoje, amanhã a capitão, a coronel o dia depois e a

general a seguir.

Page 131: María v snyder 01 poison study

—Aceitarei-o como sugestão. Algo mais?

Eu terminei de provar a comida e coloquei o prato diante do Comandante. Então,

dirigi-me para a porta.

antes de que pudesse partir, Valek me agarrou por braço.

—Eu gostaria de provar um experimento. Quero que Yelena prove o Crioulo cada

vez que você tome durante uma semana. À semana seguinte, eu o provarei. Quero ver se lhe

ocorre algo quando deixar de tomá-lo.

—Não —replicou o Comandante, levantando uma mão quando Valek quis

replicar— Admito sua preocupação, mas acredito que te equivoca.

—Faça-o por mim.

—Poderemos fazer seu experimento quando Rand consiga realizar a sobremesa

segundo a receita do general Brazell, de acordo?

—Sim, senhor.

—Bem. Quero que me acompanhe em uma reunião que tenho com o general

Kitvivan. Muito em breve chegará a estação fria e ele está começando a se preocupar com os

tigres de neve. Yelena —disse o Comandante, notando-se de repente em mim—, pode partir.

—Sim, senhor —repliquei.

Depois de parar nos banheiros para me lavar, fui à cozinha para tomar emprestado

um bol e um coador, que me levei a biblioteca. Como as quatro vagens que ficavam haviam

posto marrons e estavam começando a apodrecer-se, abri-as, tirei a polpa e as sementes,

passei-o tudo por um coador e o coloquei no bol. O aroma das sementes era tão forte que

decidi deixar o bol no batente da janela. Meu experimento não estava apoiado em provas

científicas. Só queria ver se a polpa fermentava. Talvez Brazell a estava utilizando para fazer

alguma classe de bebida alcoólica.

Meu estudo dos livros de Botânica ainda não tinha revelado nada útil. Os livros de

venenos, embora resultavam interessantes, não mencionavam o Pó de Mariposa. Em quatro

volumes diferentes sobre venenos, tinha descoberto que faltavam páginas. Valek

provavelmente as tinha tirado antecipando o interesse dos provadores pelo Pó de Mariposa.

Com um suspiro, empilhei os livros sobre minha mesa. Sabia que Valek estava em

uma reunião com o Comandante, por isso tirei o livro de magia de minha mochila. As letras

chapeadas da capa reluziam. Me fez um nó no estômago.

Abri o magro livro e comecei a ler uma discussão técnica sobre a origem do poder

de um mago. Como me resultava impossível compreender todas as descrições, cheguei à

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conclusão de que a fonte de poder cobria o mundo inteiro, fazendo que resultasse acessível

desde qualquer parte.

Os magos utilizavam seu poder de modos diferentes, dependendo de seus

talentos. Alguns eram capazes de mover objetos, enquanto que outros podiam ler o

pensamento e exercer influência sobre ele. Alguns só tinham uma capacidade, mas, quanto

mais forte fora o mago, mais podia fazer. Pus-se a tremer ante o fato de que Irys era capaz de

controlar minha mente.

Entretanto, os magos tinham que ter muito cuidado na hora de absorver poder.

Absorvendo muito ou utilizando-o mau, um mago poderia causar rupturas que podiam causar

um efeito em cadeia. Este efeito era capaz de concentrar o poder em certas zonas e deixar

outras sem nada.

O livro falava de um tempo no que um mago muito capitaboa tinha começado a

atirar da fonte de poder. Como era tão poderoso, podia controlar a manta sem causar uma

explosão. Entretanto, os outros magos ficaram ao descoberto. Como lhes tinha arrebatado

seu poder, uniram-se e partiram a procurar ao que o tinha roubado. Quando o encontraram, e

depois de uma batalha que deixou muitos mortos, mataram ele. Por fim, conseguiram que a

manta de poder recuperasse seu equilíbrio e retornasse à normalidade, mas isso demorou

mais de duzentos anos. Por fim, tinha compreendido o que Irys me explicou no bosque, e o

porquê se mostrava tão decidida a que eu recebesse preparação ou minha morte. Não

obstante, sentia-me um pouco desiludida de que o livro não contivera feitiços mágicos ou

conselhos. Tinha estado esperando uma resposta. Algo que me explicasse por que tinha o

poder, como utilizá-lo e, de passagem, como criar o antídoto do Pó de Mariposa.

Tinha-me equivocado. Parecia ser que a esperança, a felicidade e a liberdade não

eram para mim.

Mantive-me sentada em minha cadeira até que ficou o sol. Quando as pernas me

começaram a doer pela inatividade, pu-me de pé. Decidi que, se não era capaz de encontrar

o antídoto nos livros, faria-o de outro modo. Alguém tinha que saber algo. O Comandante

Ambrose tinha provadores de comida desde fazia quinze anos. Se ninguém podia me ajudar,

provaria outras maneiras. Talvez roubaria o antídoto ou trataria de averiguar como o

conseguia Valek.

Faltavam-me conhecimentos, mas estava disposta a aprender.

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À manhã seguinte, preparada naquela ocasião com o estômago vazio, reuni-me

com os soldados. Ari e Janco já estavam entre eles. Janco me dedicou um descarado sorriso.

Mais tarde, quando escutei uns pesados passos a minhas costas, dava por certo que Janco ia

fazer branco de uma de suas brincadeiras.

Apartei-me para que pudesse passar, mas o corredor se manteve me pisando os

talões. Voltei-me a tempo para ver como Nix estendia os braços e me pegava um forte

empurrão. Caí de bruços sobre o chão. Nix não se deteve. Passou correndo por cima de mim.

Pisou-me nas costelas e me deixou sem respiração.

Senti uma profunda dor por todo o peito. Tratei de recuperar o fôlego em posição

fetal. Quando o consegui, sentei-me. O grupo de soldados seguia com seu caminho.

Perguntei-me se alguém tinha sido testemunha do ocorrido.

Se estava tratando de me desanimar, equivocava-se. Nix só conseguia incrementar

minha resolução por aprender autodefesa para não ser vítima de valentões como ele.

Levantei-me e esperei que voltasse a passar, mas não retornou.

Ari se deteve meu lado.

—O que ocorreu?

—Nada —respondi. Nix, como Margg, era meu problema.

—Tem o rosto coberto de sangue.

—Tenho-me cansado —respondi, enquanto me limpava.

Antes de que pudesse seguir me interrogando, troquei de tema lhe dando algo

mais no que pensar. Repeti o conselho do Valek sobre o de ocultar minhas sessões de

treinamento. Ari esteve de acordo que aquilo era o mais prudente. Ofereceu-se a me

encontrar um lugar adequado.

—É Maren, verdade? —perguntei, enquanto tratava de tomar ar. Levava correndo

já uma semana e aquela manhã tinha preparado tudo para correr ao lado do Maren.

Ela me lançou um olhar de apreciação. Tinha o cabelo loiro recolhido em um

coque. Ombros fortes e musculosos e uma esbelta cintura provocavam que sua figura não

parecesse proporcional. Movia-se com atlética facilidade. Tive que me esforçar para lhe

manter o passo.

—E você é a Vomitona.

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Aquele insulto tinha um propósito. Interessava-lhe muito minha resposta. Se tivesse

querido desfazer-se de mim, faria seu comentário e teria apertado o passo, sem incomodar-se

a esperar uma reação.

—Chamaram-me coisas piores.

—Por que o faz?

—O que?

—Correr até que vomita.

—Me atribuíram cinco voltas e eu não gosto de falhar. Vi-te lutar com o Valek. Hão-

me dito que é a melhor com o fortificação e eu gostaria de aprender a utilizá-lo —disse, antes

de que o exercício me deixasse sem fôlego.

—Quem lhe há isso dito?

—Ari e Janco.

—São teus amigos?

—Sim.

—Já recordo. Eles foram os que lhe encontraram no bosque. Se rumoreia que lhe

estavam treinando para a luta, mas que você preferiste deixá-lo. Estão tratando de te colocar

comigo?

—O problema dos rumores é... —sussurrei, ofegando— .. que resulta difícil

discernir a verdade das mentiras.

—Por que ia eu a querer te dedicar meu tempo?

—Informação —respondi. Já tinha antecipado aquela pergunta.

—Sobre o que?

—Quer derrotar ao Valek, não? Pois veem a entrada a leste esta tarde as duas e

lhe direi —murmurei isso, com o último fôlego que ficava.

Como me resultava impossível seguir seu ritmo, detive-me. Ela seguiu adiante.

Perdi-a de vista em seguida.

Com o passar do resto da manhã, repassei a conversação mentalmente, tratando

de averiguar qual seria sua resposta. Às duas, dirigi-me à porta leste mordendo o lábio. Ari e

Janco faziam correr o rumor de que já não estavam me preparando. Eu tinha arriscado muito

sugerindo ao Maren que isto não era certo. Quando vi que se aproximava uma alta figura com

duas fortificações, tranqüilizei-me um pouco.

Maren se deteve quando me viu apoiada contra o muro. Antes de que pudesse

dizer nada, eu lhe disse:

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—Me siga.

Conduzi-a a um beco, no que nos esperavam Ari e Janco.

—Suponho que não me devo confiar nos rumores —comentou Maren.

—Não, mas há certos rumores que nós gostaríamos que seguissem como tais —

disse Ari, sem ocultar uma certa ameaça na voz.

—Muito bem, Vomitona —replicou Maren, sem lhe emprestar atenção— Qual é

sua informação? Espero que seja boa ou me vou.

—Bom, tal e a meu ver, os quatro nos podemos ajudar mutuamente. Ari, Janco e

eu queremos aprender como lutar com o fortificação. Você quer derrotar ao Valek. Se

trabalharmos juntos, todos poderemos alcançar nossos objetivos.

—Como vai ajudar a mim lhes ensinar em um enfrentamento com o Valek? —

perguntou Maren.

—Você é muito hábil com o fortificação, mas precisa melhorar suas táticas. Ari e

Janco lhe podem ajudar nesse sentido.

—Uma semana de treinamentos e a Vomitona acredita que é uma perita —disse

Maren ao Ari com voz incrédula. O permaneceu em silêncio.

—Eu não sou uma perita, mas Valek, sim.

—Ele há dito isso sobre mim? —perguntou Maren, com olhar incrédulo.

—Sim.

—Quer dizer, eu lhes ensino a lutar com o fortificação, Ari e Jan, táticas. Qual é sua

contribuição?

—Bom, eu poderia lhes ensinar um pouco de acrobacia e lhes ajudar a ter mais

flexibilidade e equilíbrio, o que resulta muito benéfico em uma luta.

—Vá —disse Janco, impressionado— Nisso tem razão. Além disso, um grupo de

treinamento de quatro é melhor que um de três.

Zangada, Maren olhou ao Janco. Ele sorriu docemente.

—Muito bem. Provarei-o temporariamente. Se não funcionar, os deixarei. Ah! E não

se preocupem. Talvez escute os rumores, mas não participo deles.

Quando nos demos as mãos para selar nosso acordo, minha apreensão se

dissipou. Mostramos a Maren o lugar no que levávamos uma semana nos reunindo.

—Muito acolhedor —comentou ela, quando lhe mostramos nossa sala de

treinamentos.

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Ari tinha encontrado um armazém abandonado no porão do castelo. Estava na asa

sudoeste do castelo, que estava abandonada. Duas janelas que havia perto do teto

proporcionavam suficiente luz para trabalhar.

Passamo-nos o resto do tempo praticando os conceitos básicos da luta com fortificação.

—Não está mau, Vomitona —me comentou Maren ao final da sessão— Vejo

potencial em ti.

Quando recolheu suas fortificações para partir, Ari lhe colocou uma mão no ombro.

—Chama-se Yelena. Se não querer chamá-la assim, então não retorne amanhã.

Vi minha própria expressão de surpresa refletida no rosto do Maren, mas ela se

recuperou com mais rapidez que eu. Assentiu secamente e estreitou a mão do Ari antes de

partir. Perguntei-me se voltaria a reunir-se conosco. Voltou para dia seguinte e seguiu

fazendo-o sem falta durante os dois meses seguintes. O tempo se foi fazendo mais fresco. As

árvores foram tingindo-se de tons laranjas e, ao final, as folhas caíram ao chão.

Minha investigação sobre as vagens se estancou por completo. Entretanto, ao

Valek não parecia lhe preocupar minha falta de progressos. Em ocasiões, observava-nos

enquanto treinávamos e realizava comentários e sugestões.

Nix seguiu me incomodando quando corria pelas manhãs. Atirava-me pedras,

cuspia-me e me punha a rasteira. Tive que trocar minha rotina para evitar me encontrar com

ele e comecei a correr pela parede exterior do castelo. Minhas habilidades defensivas

estavam ainda em fraldas e não me resultavam suficientes para um enfrentamento com o Nix.

Ao menos, não no momento.

Ao final da estação fresca, nossas sessões de treinamento terminavam com pôr-

do-sol. Na quase escuridão do crepúsculo, eu me dirigia uma noite aos banhos quando fixei

que havia uma sombra à porta. Imediatamente, pus-me em posição de ataque, embora não

sabia se teria que me defender nem se seria capaz de fazê-lo. A ampla figura de Margg saiu

de entre as sombras. Ao vê-la, relaxei-me um pouco.

—O que é que quer? —perguntei-lhe— Está fazendo outro recado para seu dono

como uma boa cachorrinha?

—É melhor que ser um rato em uma ratoeira.

Decidi deixá-la atrás. O intercâmbio de insultos, por muito agradável que pudesse

resultar, era uma perda de tempo.

—Gostaria ao rato um pouco de queijo? —perguntou-me.

—Como diz? —repliquei, me voltando para olhá-la.

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—Queijo. Dinheiro. Ouro. Aposto algo a que é a classe de rato que faria algo por

uma boa parte de queijo.

Capítulo 19

—E o que teria que fazer eu para obter essa parte de queijo? —perguntei-lhe.

Sabia! Margg era a que estava filtrando informação sobre mim e, depois de fazê-lo,

queria me utilizar. Por fim tinha provas.

—Tenho uma fonte que pagamento muito bem pela informação. É a situação

perfeita para um rato.

—Que classe de informação?

—Algo que possa escutar enquanto esteja no despacho do Comandante ou nas

habitações do Valek. Meu contato paga segundo a informação. Quanto mais suculenta seja,

maior é a parte de queijo.

—E como funciona? —insisti. Naqueles momentos, era a palavra do Margg contra

a minha. Necessitava provas que lhe pudesse mostrar ao Valek. Ser capaz de acusar ao

Margg e a sua fonte seria maravilhoso.

—Você me dá a informação e eu a passo. Eu recolho o dinheiro e lhe dou isso,

menos uma comissão de quinze por cento.

—E se supõe que tenho que acreditar que te limitaria a tomar quinze por cento de

um total que eu desconheço?

—Ou isso ou nada —replicou Margg, encolhendo-se de ombros— Eu diria que um

rato meio morto de fome se equilibraria sobre qualquer bocado, por pequeno que fora —

acrescentou. Então, começou a partir.

—E se fôssemos à fonte juntas? —sugeri— Seguiria recebendo sua comissão.

Margg se deteve em seco. A incerteza se apoderou dela.

—Terei que comprová-lo —disse, antes de desaparecer pelo corredor.

Fiquei no exterior dos banhos durante um momento, considerando a possibilidade

de segui-la durante um par de dias, mas decidi que não era boa idéia. Se seu contato não

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gostasse de minha sugestão, teria que colocar o rabo entre as pernas e suplicar outra

oportunidade. A Margg gostaria e muito! Então, seguiria-a. Lhe dizer ao Valek que era uma

traidora seria um verdadeiro prazer para mim.

A conversação com o Margg tinha consumido o tempo de que dispunha para me

dar um banho, por isso me dirigi ao despacho do Comandante. Quando cheguei, Sammy, que

realizava os recados para o Rand, estava no exterior da porta fechada com uma bandeja na

mão. No interior do despacho, ouviam-se umas vozes iradas.

—O que é o que acontece? —perguntei ao Sammy.

—Estão discutindo.

—Quem?

—O Comandante e Valek.

Tirei a bandeja ao Sammy. Não havia razão alguma para que os dois estivéssemos

ali.

—Parte. Estou segura de que Rand te necessita.

Sammy sorriu aliviado e partiu correndo. Sabendo que o Comandante não gostava

da comida fria, aproximei-me da porta esperando uma pausa na conversação. Então, pude

ouvir o Valek muito claramente

—O que te levou a trocar seu sucessor? —perguntava-lhe Valek.

A suave resposta do Comandante se perdeu ao passar pela porta de madeira.

—Nos quinze anos que faz que te conheço, jamais trocaste uma decisão —

prosseguiu Valek— Não se trata de um complô para descobrir a seu sucessor. Só quero

saber por que trocaste que opinião. Por que agora? A resposta do Comandante não foi do

gosto do Valek. Com um tom cheio de sarcasmo, respondeu:

—Sempre, senhor.

Valek abriu de repente a porta e eu entrei de cabeça no despacho. Ele levava uma

expressão glacial no rosto. Só seus olhos demonstravam sua fúria.

—Yelena, onde diabos estiveste? O Comandante está esperando seu jantar.

Como não esperava uma resposta, Valek atravessou com passo rápido o salão do

trono. Todos os pressentes se separaram de seu passo sem pigarrear.

A ira de Valek parecia extrema. Todos os habitantes da Ixia sabiam que um dos

oito generais tinha sido eleito como sucessor do Comandante. Como produto típico da

paranóia do Comandante, o nome permanecia em segredo. Cada general tinha um sobre que

continha uma peça de um quebra-cabeças. Quando o Comandante morrera, todos se

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reuniriam para montar o quebra-cabeças e revelar assim a mensagem. Para decifrar a nota

faria falta uma chave, que estava em poder do Valek. O general eleito teria então o apoio

incondicional do exército e do pessoal do Comandante.

A teoria que justificava tanto secretismo era que assim se evitaria que alguém

pudesse começar uma rebelião em apoio do eleito, dado que não se sabia quem era. O risco

era que o eleito fora pior que o Comandante.

Em minha opinião, uma mudança de herdeiro não afetaria à vida diária da Ixia. Como não se

sabia quem tinha sido eleito em primeiro lugar, a mudança não teria conseqüência alguma até

que o Comandante morrera.

Aproximei-me do escritório do Comandante. Estava lendo seus informes e parecia

pouco afetado pela ira do Valek. Provei rapidamente a comida. Ele me deu um obrigado e

deixou de me emprestar atenção.

Enquanto retornava aos banhos, perguntei-me se a informação que tinha escutado

conseguiria um bom preço do contato do Margg. Decidi conter minha curiosidade. Não tinha

desejo algum de cometer traição em troca de dinheiro e, conhecendo o Valek, não me cabia a

menor duvida de que ele o descobriria. Só por isso, tinha que demonstrar, acreditasse Margg

o que acreditasse, que eu não era nenhuma espiã.

Um comprido banho me relaxou profundamente. Ainda era cedo e, como me

pareceu que seria prudente evitar ao Valek durante um momento, decidi me passar pela

cozinha para jantar. Depois de me servir um pouco de carne assada e uma parte de pão,

levei-me o prato ao lugar no que trabalhava Rand. Encontrei um tamborete e me sentei à

mesa para comer.

—Enviou-te o Comandante? —perguntou-me Rand, de repente.

—Não. por que?

—Ving me enviou a receita do Crioulo faz dois dias. Pensava que o Comandante

se estaria questionando a respeito.

—Não me há dito nada.

Desde que o general partiu do castelo, tinha mandado dois grandes pacotes de

Crioulo para o Comandante, mas sem a receita. Como a quantidade recebida era muito

abundante, o Comandante lhe tinha dado ao Rand um pouco da sobremesa para que

experimentasse. Rand não se havia sentido desiludido. Com ele tinha experiente com novas

receitas e apresentações.

—Como vai com a receita? —perguntei-lhe.

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—Fatal. Quão único consigo é esta espécie de barro de mau sabor —respondeu,

me mostrando o conteúdo de um bol com uma colher— Nem sequer se solidifica. Talvez

você possa ver o que estou fazendo mal —acrescentou, me mostrando o papel.

Estudei a boa de ingredientes. Parecia uma receita normal, mas eu não era uma

perita em cozinha. Entretanto, o de saborear se converteu em meu forte. Tomei um pouco da

mescla e me coloquei isso na língua. Um sabor muito enjoativo me invadiu a boca. A textura

era similar a do crioulo, mas carecia do sabor a frutos secos, ligeiramente amargo, que

compensava a doçura extrema.

—Talvez a receita está mau. Ponha no lugar do Ving. O Comandante Ambrose

adora o Crioulo e você tem a única cópia da receita. A daria a alguém ou a utilizaria para

conseguir uma mudança de posto?

—O que posso fazer? Se não souber fazer Crioulo, o Comandante provavelmente

mandará a outro posto. Meu ego não o poderá suportar.

—Lhe diga ao Comandante que a receita está errada. Jogue a culpa no Ving de

sua incapacidade para fazer Crioulo.

Rand suspirou e esfregou o rosto com as mãos.

—Não posso suportar esta classe de pressão política. Nestes momentos, mataria

por uma taça de café, mas suponho que terei que me conformar com vinho —disse,

rebuscando em um armário e tirando uma garrafa e duas taças.

—Café?

—Você é muito jovem para te lembrar, mas antes da mudança de regime,

importávamos essa maravilhosa bebida de Sitia. Quando o Comandante fechou a fronteira,

perdemos uma boa interminável de artigos de luxo. De todos, ao que mais sinto falta de é o

café.

—E o mercado negro? —perguntei.

—Provavelmente está disponível, mas eu não poderia prepará-lo no castelo sem

que me descobrissem.

—Por que?

—Pelo aroma. O aroma rico e distintivo do café me delataria. O aroma de uma taça

de café pode estender-se facilmente por todo o castelo. Todas as manhãs, antes da mudança

de regime, despertava e tomava uma taça. O trabalho de minha mãe era moer os grãos e

encher as cafeteiras de água. É muito similar à preparação do chá, mas o sabor é superior.

Para ouvir a palavra “grãos” me sentei mais erguida na cadeira.

Page 141: María v snyder 01 poison study

—De que cor são os grãos de café?

—Marrons. por que?

—Nada, só curiosidade —respondi com um tom tranqüilo, embora a excitação se

deu procuração de mim.

Meus grãos misteriosos eram marrons e Brazell era o suficientemente adulto para

saber do café. Talvez sentia falta da bebida e pensava fabricá-la.

Meus esforços por fermentar a polpa da vagem tinham resultado em vão. Então,

tirei as sementes e as deixei ao sol, sobre o batente da janela. À medida que se foram

secando, ficavam marrons e se pareciam com os outros grãos que tinha encontrado Valek na

caravana. Entretanto, até minha conversação com o Rand, não tinha podido averiguar nada

mais.

— É doce o café? —perguntei.

—Não. É amargo. Minha mãe estava acostumada lhe acrescentar leite e açúcar,

mas eu gostava de sozinho.

Meus grãos eram amargos. Já não podia seguir sentada mais tempo. Tinha que

descobrir se Valek se lembrava do café. Sentia-me cômoda lhe perguntando ao Rand, dado

que não sabia se Valek quereria que ele soubesse o daquelas vagens. Depois de me

despedir do Rand, dirigi-me correndo às habitações do Valek. A minha chegada escutei o som

de livros que se fechavam. Valek andava como um louco pelo salão, dando patadas aos

montões de livros. Partes de pedra cobriam o chão por toda parte. De fato, tinha uma em

cada mão.

Morria de vontades por falar com ele do café, mas decidi esperar.

—O que é o que quer? —espetou-me.

Levava suportando o mau gênio do Valek desde fazia três dias. Como estava já

cansada de me esconder dele, decidi lhe abordar. Ele tomou assento frente a seu escritório,

de costas a mim.

—Talvez tenha descoberto o que são esses grãos —sussurrei.

Ele se deu a volta para me olhar. Sua ira parecia haver-se dissipado.

—De verdade? —perguntou, sem convicção alguma.

Eu dava um passo atrás. Sua indiferença me resultava mais aterradora que sua ira.

—Eu... Eu... estive falando com o Rand e ele me há dito que sentia falta do café.

Lembra-te você do café? É uma bebida do sul.

—Não.

Page 142: María v snyder 01 poison study

—Acredito que nossos grãos poderiam ser café. Se você não souber o que é o

café, talvez deveria mostra-los ao Rand, se te parecer bem.

—Adiante, compartilha suas idéias com o Rand, seu companheiro, seu melhor

amigo. É como ele —me espetou, cheio de frio sarcasmo.

—O que diz?

—Que faça o que queira. Não me importa —disse, antes de me dar as costas de

novo.

Dirigi a minha habitação e fechei a porta com chave. Repassei na semana anterior

e tratei de descobrir se tinha havido algo que explicasse a mudança que se produziu no

Valek. Não recordei nada. Quase não nos tínhamos falado e, até o momento, eu tinha

acreditado que sua ira ia dirigida ao Comandante.

Talvez tinha descoberto meu livro de magia. Talvez suspeitava que eu tinha

poderes. O medo substituiu à confusão. Tombei-me na cama e me pus a olhar a porta. Com

os nervos a flor de pele, esperei o ataque do Valek. Sabia que estava exagerando, mas não

podia evitá-lo. Não podia me esquecer do modo no que me tinha cuidadoso, como se já

estivesse morta.

Por fim chegou o alvorada. Passei aquele dia como um zumbi. Valek não me

emprestou atenção alguma. Esperei alguns dias antes de mostrar os grãos ao Rand. Ele

estava já de melhor humor. Tinha um grande sorriso no rosto e me saudou com um delicioso

pastelzinho de canela.

—Não tenho fome —disse.

—Leva vários dias sem comer. O que acontece? —perguntou-me Rand. Evitei a

resposta lhe perguntando pelo Crioulo— Seu plano funcionou. Disse-lhe ao Comandante que

Ving me tinha enviado mal a receita. Ele me disse que se ocuparia disso. Então, perguntou-

me se os empregados da cozinha trabalhavam bem ou se necessitava mais ajuda. Eu fiquei

olhando-o sem poder acreditá-lo porque me pareceu que me tinha equivocado de habitação.

Normalmente, o Comandante me recebia com suspeitas e me despedia com ameaças.

—Não me parece que tenha boa relação.

—Minha relação com o Comandante e com o Valek é tensa em seus melhores

momentos. No momento da mudança de regime, eu era bastante jovem e rebelde, por isso

provei tudo o que me ocorreu para realizar sabotagens. Servia-lhe ao Comandante leite

azedo, pão duro, verduras podres e inclusive carne crua. Nesse momento, eu só queria ser

uma moléstia para eles. Converteu-se em uma batalha de engenhos. O Comandante estava

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decidido a que eu cozinhasse para ele e eu a que me prendessem ou a que enviassem a

outro posto. Então, Valek converteu a minha mãe na provadora de comida do Comandante.

Isso foi antes de que criassem o maldito Código de Comportamento. Eu não podia suportar

que ela tivesse que provar o lixo que eu lhe preparava ao Comandante. Quando ocorreu o

inevitável, tratei de fugir, mas me detiveram muito perto da fronteira do sul —disse Rand,

esfregando joelho esquerdo— Me destroçaram a rótula, me deixando aleijado como se fosse

um maldito cavalo. Disseram-me que fariam o mesmo na outra perna se voltasse a escapar. E

aqui estou. Isso te demonstra o muito que troquei. O Comandante se mostra amável comigo e

eu estou contente. Antes sonhava envenenando-o, mas sempre tenho a debilidade de sentir

avaliação pelo que prova sua comida. Quando Oscove morreu, prometi-me que não voltaria a

fazê-lo. Falhei. Uma vez mais —acrescentou, antes de partir a suas habitações.

Inclinei-me sobre a mesa, lamentando que meu comentário tivesse feito mal ao

Rand. Compreendia o ocorrido da perspectiva do Rand, mas quando o pensava tudo do ponto

de vista do Valek, compreendia-o também. depois de tudo, seu trabalho era proteger ao

Comandante.

Os dois dias seguintes passaram envoltos na rotina. Quando Margg se materializou

uma tarde, depois de uma de minhas sessões de treinamento, para me informar de que se

organizou uma reunião com seu contato para a tarde do dia seguinte, fiquei atônita.

Não fazia mais que pensar em todas as possibilidades. Quem me acreditaria se

informava da reunião? Ninguém. Necessitava uma testemunha que pudesse atuar também

como protetor. Pensei no Ari, mas não queria que recaísse sobre ele suspeita alguma. Quanto

mais o pensava, mais me centrava em um único nome: Valek.

Temia me encontrar com ele. Não falávamos. Até o antídoto me dispensava isso

em silêncio. Entretanto, depois de provar o jantar do Comandante, decidi ir buscá-lo. Seu

escritório estava fechado, por isso procurei em suas habitações. Não estava no salão, mas

ouvi um ruído na planta de acima. Subi as escadas e vi que havia luz no estudo no que

esculpia suas pedras. O ruído da pedra de amolar me pôs os cabelos de ponta.

Quando estava a ponto de chamar, duvidei. Certamente, aquele era o pior momento para

incomodá-lo, mas tinha que me reunir com o contato do Margg ao dia seguinte. Não tinha

tempo a perder. Armei-me de coragem e chamei. Então, abri sem esperar a que ele

respondesse.

—O que quer? —perguntou-me, detendo-se em sua tarefa.

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—Recebi uma oferta. Alguém quer me pagar por lhe dar informação sobre o

Comandante. Rapidamente se deu a volta. Tinha o rosto médio oculto pelas sombras.

—E por que me diz isso?

—Pensei que você gostaria de investigar um pouco o assunto. Esta pessoa poderia

ser a que esteve filtrando informação sobre mim. Além disso, a espionagem é ilegal. Pensei

que talvez quereria prender o responsável ou filtrar informação falsa.

—De quem se trata? —perguntou Valek, por fim, depois de um comprido silencio—

E quando?

—Margg se aproximou e me disse que tinha um contato. Temos uma reunião

amanhã de noite —disse, estudando atentamente a expressão do Valek. Sentia-se surpreso

ou ferido pela traição do Margg? Não sabia. Averiguar o verdadeiro estado de ânimo do Valek

era como tratar de decifrar um idioma desconhecido.

—Muito bem. Procede. Eu te seguirei à reunião para ver com quem estamos

tratando. Começaremos lhe dando informação verdadeira para que te considere de confiar.

Talvez nos serviria o da mudança de sucessor do Comandante. É uma informação inofensiva

que, de todos os modos, fará-se pública. Já veremos então. Decidimos os detalhes.

Embora estava pondo minha vida em perigo, sentia-me contente. O Valek de

antigamente havia tornado. Entretanto, durante quanto tempo? Quando terminamos de

prepará-lo tudo, dava a volta para partir.

—Yelena.

Detive-me na soleira e olhei por cima do ombro.

—Uma vez me disse que ainda não estava preparado para acreditar na razão que

tinha tido para matar ao Reyad. Acreditarei-te agora.

—Entretanto, eu não estou preparada para dizer-lhe repliquei isso. Então, parti-me

da sala.

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Capítulo 20

Maldito seja Valek! Maldito seja! Levava quatro dias me ignorando e, de repente,

esperava que eu confiasse nele. Que admitisse um assassinato. Tinham detido à pessoa

adequada. Isso era o que lhe importava. Baixei as escadas me dirigi a minha habitação.

“Tenho que sair deste lugar”, pensei de repente, com repentina intensidade. Sentia um

profundo desejo de partir e de mandar a passeio ao antídoto. Fugir, fugir, fugir. Um tom

familiar. Já o tinha escutado antes quando estava com o Reyad. Lembranças que tinha

guardado debaixo de sete chaves ameaçavam voltando a emergir. Maldito Valek! Era culpa

dele que já não pudesse conter as lembranças.

Fechei a porta de minha habitação com chave. Quando dava a volta, vi o fantasma

do Reyad convexo em minha cama. Tinha a ferida do pescoço aberta e a camisola manchada

de sangue. Pelo contrário, seu loiro cabelo estava bem penteado, o bigode bem arrumado e

os olhos muito brilhantes.

—Fora —lhe ordenei, sem medo algum.

—Que classe de saudação é esse para um velho amigo? —perguntou Reyad.

Tomou um livro de venenos que tinha sobre minha mesinha de noite e começou a folheá-lo.

—Está morto —lhe disse — Não se supõe que deveria estar ardendo no fogo

eterno?

—É muito aplicada —disse, me mostrando o livro— Se tivesse se esforçado tanto

para mim, tudo teria sido muito diferente.

—Eu gosto de como saiu tudo.

—Envenenada, perseguida e vivendo com um psicopata. Não me parece que isso

seja uma boa vida. A morte tem suas vantagens. Assim posso contemplar sua miserável

existência. Deveria ter eleito o cadafalso, Yelena. Te teria economizado tempo.

—Fora —repeti, tratando de ignorar o tom de histeria que tinha na voz e o suor que

me corria pelas costas.

—Sabe que jamais chegará com vida a Sitia? É uma fracassada. Sempre o foste e

sempre o será. Aceita-o. Fracassou em todos os esforços que nós fizemos por te moldar.

Lembra-te? Lembra-te de quando por fim meu pai te deixou por impossível? Quando me

deixou que ficasse contigo?

Page 146: María v snyder 01 poison study

Recordava-o perfeitamente. Tinha sido a semana do festival de fogo. Reyad se

tinha mostrado tão preocupado pela visita do general Tesso, e em especial de sua filha, que

não se preocupou de mim. Dado que eu obedecia em tudo o que me dizia, tinha começado a

acreditar que tinha conseguido me submeter. Entretanto, o festival me tentou uma vez mais a

desobedecer. As surras e as humilhações do ano anterior eram insuficientes para me

desanimar aquele ano. Meu orgulho me impedia intimidada por ele. O festival de fogo era

parte de mim. O único momento no que podia saborear a liberdade. Embora fora durante uns

poucos instantes, valia a pena enfrentar às conseqüências.

Meu desafio me deu uma certa ousadia na hora de realizar minhas acrobacias.

Cheguei até a ronda final da competição, que estava programada para o último dia do festival.

Consegui preparar o traje que ia levar enquanto Reyad levava a Kanna, a filha do Tesso, e a

uns amigos, a uma partida de caça no campo.

Quando a competição começou, a loja se encheu de gente. Aquela noite, voei.

Meus pés pareciam não tocar o chão. Sentia-me como um pássaro, realizando piruetas por

puro prazer. Quando terminei meu exercício, os aplausos de todos os pressentes ressonaram

com força no peito. A alegria se apoderou de mim e sorri pela primeira vez em dois anos.

Permaneci no cenário para que o mestre de cerimônias me desse meu prêmio. Quando me

prendeu uma medalha no peito, que tinha gravada a competição em que se ganhou e o ano,

senti que era o momento mais importante de minha vida... seguido pelo pior. Vi que Reyad e

Kanna estavam me observando entre o público. Kanna sorria, mas a expressão do Reyad era

dura. Tratava de reprimir a ira que lhe escapava através dos lábios. Permaneci muito tempo

no vestuário, até que todo mundo se partiu. Havia duas saídas à loja, mas Reyad tinha

colocado seus guardas em ambas. Sabendo que Reyad me tiraria a medalha e a destruiria,

enterrei-a no chão.Tal e como esperava, Reyad me agarrou assim que saí. Levou-me

arrastando à casa e consultou a seu pai. O general se mostrou de acordo em que eu jamais

seria “uma dos seus”. Era muito independente, muito teimosa e muito insistente. Então,

entregou a seu filho. Já não haveria mais experimentos. Eu tinha fracassado. Aquela noite,

Reyad conseguiu controlar sua ira até que estivemos a sós em sua habitação. Entretanto,

quando fechou a porta, deu asas a sua ira com punhos e pés.

—Queria te matar por me haver desobedecido —disse o fantasma do Reyad,

deslizando-se por minha habitação— Planejava saboreá-lo durante um comprido período de

tempo, mas você ganhou. Devia fazer algum tempo que tinha a faca debaixo de meu colchão.

Page 147: María v snyder 01 poison study

Efetivamente, eu tinha roubado e escondido a faca um ano antes, quando Reyad

me pegou por praticar. Por que em sua cama? Não tinha nenhuma estratégia, simplesmente

uma terrível premonição de que, quando o necessitasse, seria na habitação do Reyad e não

na minha.

Sonhar com um assassinato tinha sido fácil. Cometê-lo era outra história. Embora

tinha suportado muita dor aquele ano, não tinha cruzado ainda a soleira da prudência. Até

aquela noite.

—O que foi o que te provocou? —perguntou-me o fantasma— Ou acaso estava

tonteando, como agora? Aprendendo a lutar! —exclamou entre risadas— Imagine te

enfrentando a um atacante. Não suportaria nem um assalto direto. Eu sei.

—Vá —lhe disse, tratando de não recordar o que ocorreu aquela noite. Tomei meu

livro de venenos e me tombei na cama, decidida a não lhe emprestar atenção. Enquanto lia,

desvanecia-se um pouco, mas recuperava entidade quando o olhava.

—Foi meu jornal a provocação que necessitou? —perguntou-me Reyad.

—Não.

A palavra me saiu sozinha da boca, me surpreendendo. Tinha-me convencido de

que seu jornal tinha sido a gota que tinha repleto dois anos de tortura. As dolorosas

lembranças surgiram com uma força que me deixou tremendo. Depois que recuperei o

conhecimento pela surra, encontrei-me tombada, completamente nua, sobre a cama do

Reyad. Mostrou-me seu jornal e me ordenou que o lesse, gozando com o horror crescente

que ia desenhando no rosto. Aquele jornal tinha cotadas todas as coisas nas que eu lhe tinha

ofendido nos dois anos que levava com ele. Cada vez que o desobedecia ou o zangava,

anotava-o, seguido de uma detalhada descrição de como ia castigar-me. Como Brazell já não

me necessitava para seus experimentos, Reyad não tinha limites. Suas inclinações sádicas e

sua profunda imaginação estavam escritas ali com todo detalhe. Quando começou a me

custar respirar, pensei em procurar a faca e me matar, mas a arma estava ao outro lado, perto

da cabeceira.

—Esta noite, começaremos com o castigo que aparece na página número um —

ronronou Reyad com antecipação, enquanto se dirigia a seu baú de “brinquedos”. Então, tirou

cadeias e outras ferramentas de tortura.

Com dedos trementes, voltei para a página número um. Ali se registrava que não o

tinha chamado senhor a primeira vez que o vi. Por lhe faltar ao respeito, adotaria uma postura

de submissão a quatro patas e logo me açoitaria. Ele me pediria que lhe chamasse senhor.

Page 148: María v snyder 01 poison study

Com cada chicotada, eu responderia com as palavras “Mais, senhor, por favor”. Durante a

subseqüente violação, chamaria-lhe “senhor” e lhe suplicaria que continuasse meu castigo.

O jornal me caiu das paralisadas mãos. Levantei-me imediatamente da cama, com

a intenção de encontrar a faca, mas Reyad, pensando que queria escapar, apanhou-me.

Minha resistência foi inútil. Obrigou-me a me pôr de joelhos e, depois de me apertar o rosto

contra o duro chão, encadeou-me as mãos atrás do pescoço.

A antecipação foi muito pior que o ato em si. Em certo modo, foi um consolo,

porque sabia o que esperar e quando terminaria. Representei minha parte, compreendendo

que se lhe negava o que queria, só o enfureceria mais.

Quando o horror cessou por fim, o sangue me cobria as costas e o interior das

coxas. Me encurralei ao bordo da cama de Reyad. Minha mente estava morta. Meu corpo

dolorido. Ele tinha os dedos em meu interior. “Onde sempre estaria”, conforme me sussurrou

enquanto se tombava a meu lado.

Aquela vez, a faca estava a meu alcance. Só pensava no suicídio. Então, Reyad

disse:

—Suponho que terei que começar um novo jornal.

Eu não respondi.

—Dado que você falhaste, terei que treinar a uma nova garota —acrescentou,

sentando-se na cama e me colocando mais os dedos— Te ponha de joelhos. Chegou a hora

para a página número dois.

—Não! —gritei— Não o fará!

Depois de rebuscar durante um segundo, tirei a faca e lhe fiz um corte na garganta.

Só era superficial, mas ele caiu de costas pela surpresa. Eu me sentei em cima dele e lhe

cortei mais profundamente. A folha da faca tocou osso. O sangue começou a salpicar por toda

parte. Senti uma cálida sensação de satisfação quando me dava conta de que já não podia

distinguir se o sangue que tinha entre as coxas era meu ou dele.

—Foi isso o que te provocou? O fato de que ia voltar a te violar? —perguntou-me o

fantasma do Reyad.

—Não. Foi pensar que foste torturar a outra menina do orfanato.

—Ah, sim... A suas amigas.

—A minhas irmãs —corrigi— Te matei por elas, mas deveria havê-lo feito por mim.

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Encurralei ao fantasma em um rincão e comecei a golpeá-lo, até sabendo que não

podia lhe fazer danifico. Ele jamais trocou a expressão paga de si mesmo de seu rosto, mas

eu segui golpeando-o até que se desvaneceu com os primeiros raios do alvorada.

Entre soluços, desmoronei-me no chão. Depois de um momento, dava-me conta de

que tinha os punhos cheios de sangre por ter estado golpeando as paredes. Sentia-me

esgotada e carente de emoções. E chegava tarde ao café da manhã do Comandante. Maldito

Valek!

—Disposta atenção —me disse Ari. Golpeou-me no estômago com uma faca de

madeira— Está morta. Hoje é a quarta vez. O que te passa?

—Falta de sono —respondi— O sinto.

Ari me indicou um banco que havia junto à parede. Sentamo-nos e observamos a

Maren e ao Janco, que estavam encetados em uma briga de fortificações. A velocidade do

Janco tinha superado a perícia do Maren. Ela estava de retirada, metendo-se em um rincão.

—É alta e magra, mas não vai ganhar —cantarolou Janco para enfurecer ao Maren

ainda mais, uma tática que já lhe tinha funcionado antes. Freqüentemente, sua ira lhe tinha

feito perder o controle.

Não obstante, aquela vez permaneceu tranqüila. Colocou a ponta de sua

fortificação entre os pés do Janco e saltou por cima dele, colocando-se o às costas. Então,

agarrou-o pelo pescoço até que ele admitiu sua derrota.Meu triste estado de ânimo melhorou

um pouco ao ver que ela utilizava algo que eu lhe tinha ensinado. A expressão de indignação

que se refletiu no rosto do Janco não tinha preço. Insistiu em que brigassem uma vez mais.

Enquanto o faziam, Ari e eu permanecemos no banco. Ari deveu notar que eu não tinha

forças para prosseguir com a classe.

—Ocorre-te algo —disse— O que é?

—Eu... Não sei. Crê que isto é uma perda de tempo? —perguntei-lhe, para não lhe

revelar a verdadeira causa de minha melancolia. Preocupava-me o que me havia dito o

fantasma do Reyad.

—Se acreditasse, não estaria aqui. Necessita isto, Yelena.

—Por que? Talvez eu morra antes de que tenha oportunidade de utilizá-lo.

—Em minha opinião, melhoraste muito em correr e em te esconder. Custou-te uma

semana reunir a coragem para falar com a Maren e, se fosse por ti, ainda te chamaria

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Vomitona. Tem que aprender a lutar pelo que quer. Se segue te preparando, a próxima vez

que alguém te insulte terá a segurança suficiente para que se trague suas palavras.

—Assim é como pensava me animar?

—Sim. Agora, deixa de procurar uma desculpa para deixar de treinar e confia em

mim. Que mais necessita?

A intensidade da voz do Ari me provocou um calafrio pelas costas. Acaso sabia o

que eu estava planejando ou o adivinhava? Minha intenção sempre tinha sido conseguir o

antídoto e fugir a Sitia. Entretanto, para poder fazê-lo, tinha que estar em boa condição física

e saber como me defender. Entretanto, estava evitando um detalhe muito importante: Valek.

Ele me seguiria a Sitia. O fato de cruzar a fronteira não me liberaria dele. Nem

sequer a magia do Irys podia me proteger. Consideraria minha captura como uma

responsabilidade pessoal. Isso era ao que tinha tanto medo. Centrava-me em meu

treinamento para não ter que me enfrentar ao dilema que temia que não poderia resolver.

Tinha que ampliar minha estratégia. Não só devia conseguir o antídoto, mas também me

ocupar do Valek sem ter que matá-lo. Duvidava que Ari tivesse a solução.

—Talvez possa derrotar ao Valek com esses golpes —dizia Janco ao Maren—

morreria de risada ao ver quão débeis som.

Maren permaneceu em silêncio, mas acrescentou o ritmo de seu ataque. Janco

deu um passo atrás.

Eu, por minha parte, seguia tratando de formar meu plano.

—Ari, pode me ensinar a forçar uma fechadura?

—Janco poderia —respondeu ele, depois de considerar minhas palavras durante

um instante.

—Janco?

—Parece um bom menino, mas era uma boa peça em sua infância. Quando se viu

metido em uma confusão, deram-lhe a opção de aboar-se no Exército ou ir ao cárcere. Agora,

é capitão. Sua principal vantagem é que ninguém acredita que fala a sério. Isso é

precisamente o que ele quer.

—Tratarei de recordá-lo-a próxima vez que não faça mais que me contar piadas

enquanto me dá golpes nas costelas.

Vi como Maren derrotava ao Janco pela segunda vez.

—Que ganhe três de cinco. Isso não me pode negar —disse Janco, incansável.

—Se seu ego lhe permite —replicou iMaren, encolhendo-se de ombros.

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Depois do treinamento, os quatro estávamos descansando em um banco quando

chegou Valek. Maren ficou de pé imediatamente, como se acreditasse que ele a encontrasse

ociosa era um delito. O resto mantivemos nossas posturas relaxadas. Resultava-me

fascinante ver as mudanças que se produziam em Maren quando Valek estava presente.

Sorria constantemente e tratava de cercar conversação com ele. A maioria das vezes que

vinha a nos ver, ela conseguia que se centrasse nela e se comportava como uma gata guia

de ruas com o macho dominante. Entretanto, naquela ocasião, Valek queria falar comigo. A

sós. Os outros partiram do armazém. Antes de partir, Maren me lançou um olhar de

desaprovação. Estava segura de que o pagaria ao dia seguinte, quando me enfrentasse com

ela.

—O que ocorre? —perguntei-lhe, ao ver que não deixava de passear de um lado a

outro— É por esta noite?

—Não. Para esta noite já estamos preparados. É pelo Comandante.

—O que lhe ocorre?

—Reuniu-se com alguém estranho esta semana?

—Estranho?

—Alguém a quem não conheça ou um conselheiro de outro distrito militar.

—Não que eu saiba. Por que?

—O Comandante Ambrose aceitou receber a uma delegação de Sitia.

—E isso é mau? —perguntei, confusa.

—Odeia aos suboas! Eles pediram uma reunião com ele todos os anos da

mudança de regime, e durante os últimos quinze anos, ele se negou a recebê-los. Esta vez,

vão chegar dentro de uma semana. Desde que você se converteu em sua provadora de

comida e chegou esse Crioulo, o Comandante se esteve comportando de um modo estranho.

Antes não estava seguro, mas agora já tenho dois fatos que o demonstram.

—Refere-te à mudança de sucessor e ao da delegação de Sitia?

—Exatamente.

Não sabia o que responder. A experiência que eu tinha tido com o Comandante

tinha sido completamente diferente do que tinha esperado de um ditador militar. Considerava

outras opções. Era firme, decidido e justo. Seu poder era evidente. Todas suas ordens se

cumpriam imediatamente. Levava a vida espartana que promulgava. Não havia medo em

seus conselheiros e oficiais, simplesmente uma inflexível lealdade e um imenso respeito. A

única história de horror que tinha escutado era a da mãe do Rand.

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—Consegui pegar uma quantidade de Crioulo. Está em nossa suíte —me disse

Valek— Quero que tome uma parte quando tomar o Comandante. Entretanto, não quero que

o diga a ninguém, nem sequer ao Comandante. É uma ordem.

—Sim, senhor —repliquei automaticamente. Não fazia mais que pensar em que

havia dito que a suíte era “nossa”. Lhe teria ouvido bem.

—Quanto à reunião com a Margg, não a biombos. Ali estarei.

—Devo-lhe dizer ao contato do Margg da delegação do sul?

—Não. Utiliza o de mudança do sucessor do Comandante. Já existe como rumor,

assim que você confirma-o.

Com isso, Valek saiu do armazém.

Se por acaso alguém descobria onde treinávamos, sempre escondia as armas e

retirava todos os restos visíveis de nossa presença ali. Então, saí e fechei a porta. De

caminho aos banhos, não fazia mais que pensar na reunião daquela noite. Estava tão

distraída que não me precavi do que acontecia diante de uma porta aberta. Uma raridade.

Naquela seção do castelo, a maioria das portas levavam a armazéns e estavam bem

fechadas. Notei um ligeiro movimento a minha esquerda. Umas mãos me agarraram o braço e

me atiraram ao interior. A porta se fechou de uma vez. Uma completa escuridão descendeu

sobre mim. Estava de cara contra uma parede. Como pude, dava a volta.

—Quieta —me disse uma voz masculina.

Tratei de dar uma patada ao dono daquela voz, mas falhei. Acendeu-se uma vela.

A fraca chama amarela se refletiu em uma larga folha chapeada. Aterrada, centrei-me no

rosto de meu atacante. Nix.

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Capítulo 21

—Por que? —perguntou Nix, enquanto colocava a vela sobre uma mesa— Porque

sou eu sempre o mais preparado?

Aproximou-se um pouco mais a mim. Tratei de lhe dar uma patada, mas ele me

impediu com facilidade.

—Por que não serviram que nada meus esforços por te desanimar? Talvez tinha

que falar mais claro —disse, me colocando a faca contra a garganta.

—Que problema tem? —espetei-lhe com a voz mais acalmada e neutro que pude

encontrar.

—Meu problema é que ninguém me vê como uma ameaça, mas sou mais

preparado que Ari, Janco e Maren. Inclusive sou mais preparado que Valek, verdade? —

perguntou-me. Quando viu que eu não respondia, acrescentou pressão à faca— Verdade?

Uma magra linha de dor me cruzou o pescoço.

—Sim —respondi. detrás do Nix, o fantasma do Reyad surgiu de repente, como

sempre com um arrogante sorriso no rosto.

—Meu chefe quer que deixe de treinar. Não me permite te matar. Uma pena. Estou

aqui só para te advertir.

—Parffet? E o que importa a ele?

—Nada. O único que lhe importa é que lhe ascenda, ao muito imbecil. Entretanto,

ao general Brazell lhe interessa muito seu novo passatempo.

Nix colocou a mão que tinha livre entre as pernas e apoiou seu corpo contra o meu.

Durante um segundo, o pânico se apoderou de mim e apagou todas as técnicas de

autodefesa de meu pensamento. Um suave zumbido começou a surgir no interior da cabeça,

mas o afoguei e o transformei em uma singela escala de notas musicais. A calma se

apoderou de mim. Diante de meus olhos, apareceram os movimentos de defesa pessoal.

Gemi e movi um pouco os quadris, abrindo as pernas.Nix sorriu.

—É a zorra que acreditava que foi. Agora, recorda, tem que ser castigada.

Uma de suas coxas substituiu à mão. Então, começou a atirar do cinturão.

Eu lhe coloquei um joelho entre as pernas e, continuando, golpeei-lhe com força a

virilha. Com um gemido de dor, Nix se dobrou sobre si mesmo. Agarrei a faca com ambas as

mãos para evitar que me cravasse mais na garganta. Ari sempre me havia dito que era

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melhor um corte nas mãos que no pescoço. Pensei em suas palavras enquanto suportava a

dor. Apartei a faca de mim e Nix caiu para trás.

—Zorra! —gritou.

Equilibrou-se sobre mim e tratou de me cortar com a faca. Eu fiz a um lado e, com

toda a força que pude reunir, golpeei-lhe no braço. A faca caiu ao chão. Então, agarrei-lhe o

braço e o retorci. Depois girei sobre mim mesma e lhe coloquei o ombro direito sob o

cotovelo. Então, com todas minhas forças, atirei da mão. Ouviu-se um golpe seco, que

indicava que eu tinha quebrado o braço ao Nix. Então, dava-lhe um par de murros no nariz. O

sangue começou a emanar com força. Enquanto ele perdia o equilíbrio, peguei-lhe uma

patada na rótula e a rompi também. Nix se desmoronou sobre o chão.

Continuando, pus-me a lhe dar patadas nas costelas como uma possessa. O

sangue me fervia. Os débeis intentos do soldado por me deter só me enfureciam mais.

Naquele estado, poderia havê-lo matado.

O fantasma do Reyad me animou a fazê-lo.

—Isso, Yelena —me animou — Mata a outro homem. Isso te levará a forca com

toda segurança.

Felizmente, aquelas palavras alcançaram a parte racional de meu cérebro e me

detive. Nix estava completamente imóvel. Ajoelhei a seu lado e tomei o pulso. Encontrei-o. O

alívio que senti se desvaneceu quando Nix me agarrou pelo cotovelo. Eu lancei um grito e lhe

dava um murro no rosto. Soltou-me rapidamente. Então, agarrei a faca do chão e pus-se a

correr, embora aquela vez não me fazia presa do medo.

Com rapidez, cheguei aos banhos. A aquelas horas do dia estavam vazios, por isso

escondi a faca do Nix sob uma das mesas de toalhas e comprovei o alcance de minhas

feridas em um espelho. O corte de pescoço tinha deixado de sangrar, mas os que tinha nas

Palmas das mãos pareciam sérios. Também tinha um brilho selvagem e irreconhecível nos

olhos.

Como tinha que provar o jantar do Comandante, decidi ir à enfermaria para que me

curassem.

A doutora me examinou rapidamente.

—Como...? —começou.

—Com um cristal quebrado —disse.

Ela assentiu em silêncio.

—Irei a por minhas ferramentas.

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Tombei-me na cama. Imediatamente, ela retornou com uma bandeja de

instrumental. Um pote da cola do Rand parecia desconjurado entre uns elementos tão

científicos. As mãos me doíam muito e temia a padre que a doutora fora a me fazer.

Naquele momento, Valek entrou na enfermaria.

—O que ocorreu? —perguntou-me.

Eu olhei à doutora. Como resposta, ela me agarrou a mão e começou a me limpar

a ferida.

—As feridas de cristais quebrados deixam lacerações —me disse— Estes cortes

tão limpos só podem ser de uma faca. Tenho que informar.

A doutora tinha informado ao Valek e ele não ia partir sem respostas. Com

resignação, olhei-o, esperando me distrair da dor que tinha nas mãos.

—Atacaram-me.

—Quem?

Olhei à doutora. Valek compreendeu.

—Poderia-nos desculpar um momento?

—Está bem —disse. Então, dirigiu-se ao escritório que tinha ao outro lado da

enfermaria.

—Quem? —repetiu Valek.

—Nix, um soldado da unidade do Parffet. Disse-me que trabalhava para o Brazell e

me advertiu que deixasse de me treinar.

—Matarei-o.

A intensidade da voz do Valek me surpreendeu e alarmou de uma vez.

—Não, não o fará. Utilizará-o. É um vínculo com o Brazell.

—Onde te atacou? —perguntou-me, depois de considerar minhas palavras.

—Em um armazém que estava a quatro ou cinco portas do de onde treinamos.

—Provavelmente, já não esteja ali. Enviarei a alguém aos barracões.

—Não, estará ali.

—Por que ?

—Se não esta no armazém, não terá chegado muito longe. Talvez seja melhor que

envie um par de homens.

—Entendo —comentou Valek — Significa isso que o treinamento progrediu

adequadamente?

—Melhor que esperado.

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Valek partiu da enfermaria. A doutora retornou a meu lado. Decidi que a próxima

vez me curaria eu sozinha para que não pudesse me trair. Ainda tinha um pote com o

ungüento do Rand em minha mochila. Não podia ser tão difícil limpar e selar uns cortes.

Quando terminou de me enfaixar as feridas, a doutora me disse que não me podia

molhar isso durante um dia, que não podia levantar peso algum ou escrever durante uma

semana. “Isso significa que tampouco poderei treinar durante um tempo”, pensei.

Naquele momento, entraram os homens do Valek. Jogaram no Nix sobre outra

cama. A doutora me olhou assombrada e se aproximou rapidamente ao Nix, o que me deu a

oportunidade perfeita para partir.

Dirigi-me rapidamente ao despacho do Comandante, mas Valek já se ocupou.

Fechou a porta e me impediu de entrar.

—Encontra ao Margg e cancela a reunião de esta noite. Então, retorna a nossa

suíte e descansa.

—Cancelá-la? por que? Resultaria suspeito. Porei-me umas luvas para cobrir as

vendagens. Agora faz bastante frio de noite e ninguém se fixará. Estou bem —acrescentei, ao

ver que ele não dizia nada.

—Deveria te olhar em um espelho —disse ele, rindo— Bem. Seguiremos tal e

como estava tudo planejado.

Detivemo-nos na porta do despacho do Valek.

—Tenho trabalho que terminar. Descansa e não se preocupe. Esta noite estarei

perto —prometeu.

—Valek?

—Sim?

—O que ocorrerá ao Nix?

—Curaremo-lo, ameaçaremo-lo com muitos anos nas masmorras se não cooperar

e, quando tiver terminado de nos ajudar, enviarei-o ao Distrito Militar 1. Parece-te bem ou crê

que deveria matá-lo?

O DM-1 era o mais frio e baldio da Ixia. A possibilidade de que Nix caísse presa de

um tigre de neve me provocou um sorriso no rosto.

—Parece-me bem. Se o tivesse querido morto, o teria feito eu mesma.

Valek se ergueu e me lançou um olhar muito significativo, uma combinação de

surpresa, diversão e cautela. Imediatamente, voltou a controlar suas emoções e voltou a me

mostrar o rosto pétreo de sempre.

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Depois de lhe dedicar um sorriso, parti-me. O descansar teria que esperar, dado

que primeiro tinha que fazer alguns recados. Em primeiro lugar, necessitava luvas e uma

capa, dado que naquela estação, as noites eram frias. Felizmente, Dilana seguia em sua

oficina. Conversei um momento com ela antes de lhe fazer minha petição.

—Meu deus —disse, soando como uma mãe preocupada— Não tem objetos para

o frio? —perguntou-me, enquanto rebuscava entre seus montões de roupa— Por que não

vieste antes?

—Até agora não as necessitei. Dilana, comporta-te como uma mãe com todos os

habitantes do castelo?

—Não, querida. Só com os que o necessitam.

—Obrigada —respondi com afeto.

Quando Dilana terminou, eu estava completamente equipada para o frio. Objetos

interiores de flanela, meias três-quartos de lã, botas mais pesadas... Deixei-o tudo em um

rincão e pedi a Dilana que pedisse que alguém levasse isso às habitações do Valek.

—Segue aí?

—No momento, sim. Entretanto, acredito que quando o todo se tranqüilize, voltarei

para minha antiga habitação.

Antes de partir, selecionei uma capa do montão e umas luvas e joguei sobre o

braço.

—Dá-me a sensação de que seguirá ali muito tempo.

—Por que?

—Acredito que Valek sente algo por ti. Jamais o vi interessar-se tanto por uma

provadora de comida. Normalmente, instrui-as e as deixa a seu ar. Se houvesse algum

problema, pediria a um de seus homens que se ocupasse. Jamais o faria pessoalmente. E

muito menos viver com ela!

—Está louca.

—De fato, jamais se interessou por uma mulher. Eu estava começando a suspeitar

que talvez preferia os homens, mas... agora temos à encantada e inteligente Yelena para que

faça pulsar o frio coração do Valek.

—Deveria sair desta oficina um pouco mais. Necessita ar fresco e uma dose de

realidade —repliquei. Sabia que não devia acreditar em nenhuma só das palavras da Dilana,

mas me resultava impossível controlar o estúpido sorriso que tinha desenhado no rosto.

A doce e melodiosa voz da Dilana me perseguiu até o corredor.

Page 158: María v snyder 01 poison study

—Sabe que tenho razão! —gritou.

Enquanto percorria os corredores, pensei que a única razão pela que Valek se

interessava por mim era porque eu era um enigma para ele. Quando acreditasse que tinha

todas as respostas sobre a maga do sul e Brazell, devolveria a meu quarto na asa dos

criados. Não podia me permitir outra coisa. Uma coisa era ter uma ligeiro teimosia que não

afetaria em nada meus planos e outra... Nem pensar. Pensar que ele sentia o mesmo por mim

seria desastroso. Portanto, tratei de me convencer de que Dilana tinha uma imaginação muito

ativa e de que se equivocava. Esforcei-me muito. Durante todo o caminho à cozinha, recordei-

me que Valek era cambiante e lhe exasperem, além de um assassino. Entretanto, por alguma

razão, não era capaz de apagar aquele estúpido sorriso de meu rosto.

Depois de deixar a capa sobre uma cadeira, servi-me o jantar. Rand terminou de

lhe dar a volta a seus leitões e foi sentar se a meu lado. A boca me fez água ante o aroma do

leitão assado.

—A que se deve isto? —perguntei-lhe. O porco assado era uma comida pouco

freqüente. Como requeria um dia inteiro para preparar-se, só se elaborava em ocasiões

especiais.

—Esta semana vêm a nos visitar os generais. Me pediram os pratos mais

especiais. Também me ordenou que devo preparar um festim para a semana que vem. Um

festim! Não tive que preparar um desde... Em realidade, jamais tivemos um desde que o

Comandante está ao mando...

—Crê que tem um minuto para lhe jogar uma olhada a isto? —perguntei-lhe,

tirando os grãos de um de meus bolsos. Os entreguei ao Rand. Tinha estado esperando a

oportunidade perfeita para fazê-lo, os encontrei em um velho armazém e me pareceu que

eram os grãos de café dos que falava.

—Não —disse depois de cheirá-los— Desgraçadamente, não. Não sei o que são.

Os grãos de café são mais suaves e redondos. Estes são ovalados e rugosos —acrescentou.

Então, mordeu um deles, cuspindo-o em seguida por seu sabor amargo— Jamais

vi nem cheirei algo assim. Onde os encontraste?

—No porão —respondi sem especificar. Sentia-me muito desiludida por não ter

podido resolver aquele enigma para o Comandante Ambrose.

Rand deveu notar minha frustração.

—É algo importante?

—Sim.

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—Vou ver o que te parece isto. Deixa-me isso aqui e, depois da festa, trabalharei

com eles.

—Que trabalhará?

—Provarei a moê-los ou a cozinhá-los. Os ingredientes podem trocar de sabor e

textura quando lhes dá calor. Poderiam converter-se em algo que sim reconhecesse.

—Não quero te incomodar...

—Tolices. Eu gosto dos desafios. Além disso, depois do festim, voltarei para minha

rotina diária. Isto me dará algo interessante no que trabalhar.

Jogou os grãos em um pote de cristal e o colocou em uma estante.

Estivemos conversando sobre o menu para o festim até que Rand teve que voltar a

dar voltas aos porcos. Decidi que tinha que partir, dado que a reunião com a Margg se

aproximava. Senti um ligeiro nervosismo ao me despedir de Rand.

Passei pelos banhos, com a intenção de recolher a faca de Nix, mas havia muita

gente. Talvez seria melhor ir à reunião sem armas. Poderia ser que me revistassem. Se

encontrassem uma arma, teria mais problemas. Margg tinha sua habitual expressão de

desagrado quando me reuni com ela na porta sul do castelo. Em silêncio, nos dirigimos ao

Castletown. Eu esperei que Valek não estivesse muito afastado, mas sabia bem que não

podia olhar por cima do ombro para me assegurar. Quando chegamos à cidade, Margg

conduziu a uma rua bastante afastada e se deteve diante de uma casa. Chamou duas vezes

à porta. Depois de uns instantes, a porta se abriu e uma mulher ruiva alta e de enorme nariz,

que ia embelezada com o uniforme de ventera, mostrou a cabeça. Olhou a Margg e assentiu.

Continuando, olhou-me e logo apareceu um pouco mais a cabeça para fazer o mesmo com

ambos os lados da rua. Por fim, aparentemente, satisfeita, abriu a porta por completo e nos

deixou passar. Ninguém intercambiou palavra alguma. Começamos a subir uma escada.

A mulher conduziu a uma habitação e se sentou a um escritório. Não nos ofereceu

assento algum, por isso Margg e eu continuamos de pé.

—A provadora de comida —disse com um sorriso de satisfação— Sabia que só

era questão de tempo que trabalhasse para mim.

—E quem é você?

—Pode me chamar Capitã Star —me informou. Como resposta, eu olhei seu

uniforme de ventera— Não formo parte do exército do Ambrose. Tenho o meu próprio.

Explicou-te Margg como trabalho?

—Sim.

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—Bem. Isto será um simples intercâmbio. Não é uma visita social. Eu não quero

intrigas nem falatórios. E não me pergunte nada sobre meu negócio nem sobre mim. Quão

único precisa saber é meu nome. De acordo?

—De acordo —afirmei para ganhar sua confiança.

—Bem. O que é o que tem?

—O Comandante trocou seu sucessor.

Star ficou imóvel ao escutar minhas palavras. Então, olhou a Margg, que pareceu

algo molesta de que eu fora portadora de notícias tão interessantes.

—E como sabe? —perguntou-me Star.

—Escutei uma conversação entre o Comandante e Valek.

—Ah, sim. Valek —disse a mulher—, por que vive em suas habitações?

—Isso não é assunto seu.

—E por que deveria eu confiar em ti?

—Porque Valek me mataria se soubesse que estive aqui. Sabe tão bem como eu.

Quanto vale minha informação?

Star abriu uma bolsa de veludo negro e tirou uma moeda de ouro. Arrojou-me isso

tal e como um homem lhe arrojaria um osso a um cão. Eu a agarrei no ar, contendo um

gemido. Os cortes das mãos me doíam muito.

—Seu quinze por cento —disse a Margg lhe lançando uma moeda de prata e uma

de cobre. Esta, que conhecia os costumes do Star, apanhou-as ao vôo— Algo mais? —

perguntou-me .

—No momento não.

—Quando tiver algo para mim, diga-lhe a Margg. Ela organizará outra reunião.

Em silêncio, segui a Margg ao exterior da casa. Justo quando estávamos

atravessando um beco, Valek saiu das sombras. Antes que eu pudesse reagir, atirou de mim

e me colocou por uma porta. Aquela aparição tão repentina me confundiu e me surpreendeu

de uma vez. Acreditava que esperaria um pouco antes de prender a Margg. Ela me tinha

seguido ao interior da casa e tinha um sorriso no rosto. Era uma expressão de prazer, o mais

afastado que me teria imaginado quando compreendesse que a tínhamos descoberto.

—Eu tinha razão, Valek. Vendeu o Comandante por uma moeda de ouro. Lhe

registre o bolso.

—Em realidade, Yelena veio falar comigo antes da reunião. Acreditava que ia

deixar-te a ti ao descoberto.

Page 161: María v snyder 01 poison study

O sorriso de satisfação desapareceu do rosto de Margg.

—Por que não me disse isso? —perguntou.

—Não tive tempo.

—Então, Margg não é a espiã? —quis saber, muito confusa.

—Não. Margg trabalha para mim. Estivemo-lhe dando ao Star informação

privilegiada para ver se descobríamos quem eram seus clientes. Star tinha insistido muito a

Margg para que implicasse a ti. Me pareceu uma boa oportunidade de pôr a prova sua

lealdade.

A ira se apoderou de mim. Como podia ter acreditado que eu podia trair ao

Comandante? Acaso não me conhecia? A ira, a desilusão e o alívio se apoderaram de meu

coração. Não fui capaz de pronunciar palavra alguma.

—Tinha esperado mandar a este rato às masmorras, que é onde deve estar —se

queixava Margg ao Valek— Apesar de tudo, segue sendo uma ameaça —concluiu, me dando

no braço com um dedo.

Eu reagi. Em um abrir e fechar de olhos, retorci-lhe o braço e o coloquei à costas.

Ela gritou quando eu lhe levantei a mão um pouco mais, obrigando-a a vencer-se para diante.

—Não sou um rato —lhe espetei— demonstrei minha lealdade. Agora, quero que

me deixe em paz. Já não quero mais mensagens desagradáveis no pó nem que siga

farejando em minhas coisas. Se não, a próxima vez, romperei-te o braço.

Soltei-a bruscamente e ela terminou no chão. Muito envergonhada, ficou de pé

imediatamente. Quando abria a boca para protestar, Valek o impediu.

—Bem dito, Yelena. Agora, Margg, pode partir.

Margg fechou a boca imediatamente e deu a volta. Imediatamente, partiu.

—Essa mulher não é nada simpática —falei.

—Não. Precisamente por isso eu gosto —replicou. Depois de comprovar que

Margg partiu, Valek seguiu falando— Yelena, vou te mostrar algo que não vai gostar, mas

que acredito que é importante que conheça.

—Sim? Como esta pequena prova de lealdade? —espetei-lhe, com a voz cheia de

sarcasmo.

—Já te adverti que punha a prova aos provadores de comida de vez em quando —

comentou. Antes de que eu pudesse responder, voltou a falar— Guarda silêncio e fique

detrás de mim.

Page 162: María v snyder 01 poison study

Voltamos a sair ao beco. Aproveitando as sombras, retornamos para a casa de

Star. Ali nos escondemos em uma entrada escura, não longe da porta.

—A pessoa que lhe esteve dando informação a Star vai chegar muito em breve —

me sussurrou Valek ao ouvido. Seus lábios me roçaram brandamente a bochecha, o que me

produziu umas sensações tão agradáveis que me distraíram do que havia dito.

Não compreendi o impacto das palavras do Valek até que vi uma solitária figura

baixando pela rua com passo irregular.

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Capítulo 22

Reconheci rapidamente aquela maneira de andar. O coração me encolheu ao ver

como Rand se aproximava coxeando à casa de Star. Igual a Margg, chamou duas vezes.

A mulher o deixou entrar sem duvidá-lo nem um momento. O ruído surdo que se

ouviu quando se fechava a porta se ecoou em meu peito.

—Outra prova? —perguntei ao Valek, com uma desesperada urgência— Está ele

trabalhando também para ti?

Entretanto, sabia a resposta a aquela pergunta muito antes de que Valek o

negasse com a cabeça. Sentia-me vazia, como se me tivessem arrebatado todos meus

sentimentos de um golpe. Era muito. Depois do fantasma do Reyad, o ataque do Nix e as

provas do Valek, já não me encontrava em disposição de superar outra prova. Limitei-me a

olhar ao Valek sem poder pensar, sentir ou desejar nada.

Valek me fez um gesto para que o seguisse. Eu obedeci. Demos um rodeio para

chegar à parte traseira da casa do Star. Então, entramos na casa que havia a sua esquerda e

subimos três pisos. O interior estava muito escuro e vazio à exceção da planta superior. Um

dos homens do Valek estava sentado sobre o chão, com as costas contra a parede. Deduzi

que ao outro lado da mesma se encontrava o estudo de Star. Escrevia algo em um livro,

utilizando só uma vela como iluminação.

A voz de Rand se escutava claramente. Com sinais manuais, Valek se comunicou

com o homem. Deu o caderno ao Valek e desapareceu escada abaixo. Valek se sentou no

mesmo lugar no que tinha estado o homem e eu fiz o mesmo a seu lado.

Não gostava nada escutar o que Rand tivesse que dizer, mas não tinha a força de

vontade para me negar. Valek assinalou os pequenos buracos que havia na parede. Eu

apareci. Quão único pude ver foi a parte traseira de um móvel. Supus então que os buracos

só serviam para escutar. Apoiei a frente contra a parede e fechei os olhos para escutar o que

Rand tivesse que dizer.

—Os generais vão vir esta semana. Não há nada novo além do fato de que o

Comandante pediu um festim para os tratar com atenção, o que indica que ocorre algo. Algo

importante. Entretanto, ainda não consegui averiguar do que se trata.

—Diga-me isso assim que possa —replicou Star— Talvez Yelena saiba o que está

passando.

Page 164: María v snyder 01 poison study

O coração se encolheu para ouvir meu nome. Queria escapar, mas o único que

pude fazer foi apertar mais a frente contra a parede.

—Duvido-o. Ela se surpreendeu muito quando eu lhe mencionei o festim, por isso

não lhe perguntei nada. Talvez saiba algo mais no fim de semana. Voltarei a tentá-lo.

—Não te incomode. O perguntarei eu mesma.

—A Yelena? —replicou Rand, atônito— Acaso trabalha para ti? Impossível. Não é

seu estilo.

—Acaso me está sugerindo que trabalha para o Valek? —perguntou a mulher,

alarmada. Muito angustiada, olhei ao Valek. Ele negou com a cabeça e me indicou com um

gesto que não me preocupasse.

—Não. É obvio que não —disse Rand— Simplesmente me surpreende, embora

não deveria ser assim. O dinheiro lhe vem muito bem. Além disso, quem sou eu para pensar

mal dela porque o tenha feito?

—Bom, não deveria estar pensando nela absolutamente. Tal e a meu ver, essa

mulher é algo descartável. A única preocupação que terei quando morra é quem vai substituí-

la e se poderei suborná-la antes que a ela.

—Star, uma vez mais, demonstraste-me que modo mais repugnante que, quanto

antes pague a dívida que tenho contigo, melhor. Quanto crédito vai dar pela informação de

esta noite?

—Duas moedas de prata. Anotarei-o em meu livro, mas não te servirá de muito.

—O que quer dizer?

—Não te deste conta ainda? Você jamais pagará sua dívida. Assim que esteja a

ponto de fazê-lo, meterá-te em outro buraco com suas apostas. É muito fraco. Deixa-te levar

muito por seus sentimentos. Faz-te viciado em seguida e carece de força de vontade.

—Ah, claro. Afirma ser uma maga. Acaso me tem lido o pensamento, capitã?

“Capatiã Star” Que graça! Se realmente tivesse poderes mágicos,Valek se teria ocupado de ti

faz já muito tempo. Sei que não é tão preparada como afirma ser...

Pesados passos ressonaram através da parede, o que indicou que Rand partia.

Fiquei atônita. Jamais antes tinha escutado ao Rand falar com sarcasmo e, mais

que isso, se Star era uma maga, eu poderia estar em sério perigo. A mente me dava voltas,

mas tudo resultava muito complexo para analisá-lo naquele momento.

—Não tenho que te ler o pensamento —lhe gritou Star— Quão único tenho que

fazer é repassar sua história, Rand. Tenho tudo ali.

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O silêncio se apoderou da sala. O único ruído que se ouvia no estudo de Star, era

o ruído de papéis. Valek ficou de pé e fez me levantar. Seu homem tinha retornado. Entregou-

lhe o caderno e começou a descer pelas escadas.

Segui Valek através das escuras ruas do Castletown. Mantínhamo-nos nas

sombras, evitando às patrulhas de soldados que controlavam o toque de silêncio. Quando

conseguimos sair da cidade, ele se relaxou um pouco mais e começou a caminhar a meu lado

pela estrada que conduzia ao castelo.

—Sinto-o —me disse— Sei que Rand era seu amigo. O fato de que utilizasse o

tempo passado foi como se me cravasse uma adaga entre as costelas.

—Quanto tempo faz que sabe? —perguntei-lhe.

—Levo três meses suspeitando-o, mas consegui as provas este mês.

—O que foi o que te deu a chave?

—Rand e seus empregados me ajudaram a preparar a prova de venenos pela que

eu te fiz passar. Ele permaneceu a meu lado enquanto envenenava a comida. Deixei a taça

do suco de pêssego em cima de meu escritório para não envenená-la. Era uma prova justa.

Depois, havia veneno de amoras na taça, mas eu não o joguei. Uma propriedade muito

interessante das amoras é que só se voltam venenosas quando se preparam em uma solução

especial de álcool e levedura e se cozinham com extremo cuidado. A maioria dos cozinheiros,

e certamente não seus ajudantes, não possuem o conhecimento nem a habilidade para

consegui-lo —acrescentou Valek, como se admirasse a habilidade do Rand para preparar o

veneno.

Compreender que Rand tinha tratado de me envenenar me deixou atônita. Senti

náuseas no estômago e tive que me aproximar do bordo da estrada para vomitar. Só quando

deixei de sentir as arcadas, notei que Valek estava a meu lado. Tinha-me agarrado a cintura

com um braço e tinha colocado uma fria mão sobre a frente.

—Obrigada —disse, depois de limpar o queixo com algumas folhas.

Com pernas trementes, deixei que Valek me conduzisse ao castelo. Se não tivesse

estado sustentando, haveria deitado no chão para poder dormir.

—Há mais. Quer ouvi-lo? —perguntou-me.

—Não —respondi. Entretanto, quando nos aproximávamos do castelo, me ocorreu

uma idéia muito desagradável— Me vendeu Rand no festival?

—Em certo modo.

—Essa não é resposta.

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—Os gorilas que lhe apanharam lhe esperaram perto da loja de confeitaria, por isso

suspeitei que Rand havia dito a Star que estariam ali. Entretanto, logo não te perdia de vista

em nenhum momento. Era como se te estivesse protegendo. Recorda o muito que se

desgostou quando não pôde te encontrar e o aliviado que se sentiu quando te viu sã e salva?

—Eu acreditava que estava bêbado.

—Suspeito que Rand participa de tudo isto muito a seu pesar. Quando ocorreu a

prova de venenos, quase não te conhecia. Imagino que se encontra em uma situação difícil.

Não quer te fazer dano, mas precisa pagar suas dívidas de jogo. Star tem uma organização

muito extensa, com muitos gorilas que estão dispostos a romper uns quantos ossos por seu

chefe. Faz-te isto sentir melhor?

—Não.

A reação que tinha produzido a traição do Rand me parecia extrema, mas não

podia evitá-lo. Não era a primeira vez que alguém me enganava nem seria a última. Brazell

tinha enganado. Eu o tinha querido como um pai e lhe tinha sido muito leal. Demorei quase

um ano, depois de suportar seus experimentos, em me dar conta do que era de verdade,

embora sempre tinha suspeitado que a devoção que eu sentia por ele não era correspondida.

Dado que jamais tinha dado razão alguma para pensar que me queria, tinha-me resultado

mais fácil suportar o ocorrido. A amizade do Rand, por outro lado, tinha-me parecido genuína.

Tinha começado a sentir como se por fim tivesse conseguido fazer um buraco na barricada de

pedras depois da que me protegia. Desgraçadamente, tinha me equivocado.

—Há algo mais que queira me dizer? —perguntei ao Valek, quando nos detivemos

a pouca distância da entrada do castelo— Acaso prepararam Ari e Janco o ataque do Nix?

Tem outra prova de lealdade na manga que queira me fazer? Talvez a próxima vez, falta.

Quando me advertiu que me poria a prova de vez em quando, pensei que falava sobre a

comida. Entretanto, parece que há mais de uma maneira de envenenar a uma pessoa.

—Todo mundo é eleito na vida. Algumas eleições são boas e outras más. Se quer

deixar de tomar decisões, você terá, mas não o faça pela metade. Não te refugie na

autocompaixão —replicou Valek— Não sei que horrores teve que viver nas masmorras antes

de vir conosco. Se tivesse que adivinhá-lo, diria que foram muito piores que o que tiveste que

descobrir esta noite. Talvez isso te ajude a pôr as coisas em perspectiva.

Com isso, entrou no castelo. Eu me apoiei contra o frio muro e apoiei a cabeça

sobre as duras pedras. Talvez se permanecesse ali tempo suficiente, o coração se

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converteria em um órgão de pedra. Então, as traições, as provas de lealdade e os venenos

não teriam efeito em mim. Entretanto, o frio da noite terminou por me fazer entrar.

—Faz força na chave, mas não muita. Tem que te esforçar com firmeza e

delicadeza de uma vez —me disse Janco.

Como as mãos ainda não tinham curado, coloquei torpemente a chave no buraco e

apliquei uma ligeira pressão.

—Agora, utiliza o punção de diamante para levantar a peça que ficou apanhada

pela pressão. Levanta-a até que se rompa —me ordenou.

—Até que se rompa?

—Bom, até que alcance seu alinhamento. Quando se mete uma chave em uma

fechadura, borde-os de metal levantam as peças correspondentes para que possa fazer girar

o cilindro e abrir a fechadura. Por isso, tem que ir levantando as peças móveis uma a uma

sem afrouxar a pressão.

Coloquei o punção na fechadura, por detrás da chave, e o fiz girar, levantando

cada uma das cinco peças móveis. Quando todas estiveram alinhadas, o cilindro se girou e a

porta se abriu.

—Muito bem! Yelena, aprende muito rápido. Espero que não vás utilizar isto para

cometer uma estupidez, verdade? Não irás nos meter em uma confusão?

—Não se preocupe. Eu sou quão única poderia meter-se em uma confusão.

Janco se relaxou. Eu me pus a praticar em outra fechadura. Estávamos no porão

do castelo, onde ninguém poderia nos surpreender. Tinham passado quatro dias da noite em

que me inteirei do Rand. Valek tinha ordenado que me comportasse tal e como se não tivesse

ocorrido nada. Queria descobrir até onde chegava a organização de Star antes de deixá-los

ao descoberto. Valek era um verdadeiro predador.

Sabia que não estava pronta para fingir que não tinha passado nada com o Rand,

por isso tinha estado evitando-o. Isto não me custou muito. O castelo estava cheio de

generais e de seus homens, o que provocava que todos os trabalhadores do castelo

estivessem muito ocupados, Rand entre eles.

Brazell era outra razão pela que me alegrava de não estar visível. Seus soldados

tinham infectado o castelo e me estava custando bastante me manter afastada deles.

Entretanto, não me importava me esconder nas habitações do Valek. Ele tinha roubado uma

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caixa de Crioulo e eu desfrutava tomando uma parte cada vez que provava a comida do

Comandante.

Ari, Janco e eu havíamos posposto nossas sessões de treinamento durante a visita

dos generais, mas eu tinha conseguido convencer ao Janco para que me ensinasse a forçar

fechaduras. A moeda de ouro que Star tinha me dado lhe pareceu um bom incentivo. Valek

havia dito que podia ficar com ela, dado que minha missão daquela noite tinha sido

extraordinária. Entretanto, seu constante peso no bolso tinha sido uma lembrança da traição

do Rand, por isso decidi me desprender dela.

—Esta última fechadura tem dez peças móveis. Se for capaz de abrir esta, poderá

fazê-lo com qualquer das fechaduras que há no castelo, à exceção das masmorras. Essas

são muito complicadas e, além disso, não podemos praticar com elas. Não vais precisar abrir

uma dessas, verdade? —perguntou-me Janco.

—Sinceramente espero que não.

—Bem.

Depois de vários intentos faltados, consegui abrir a fechadura.

—Agora, quão único precisa é praticar. Quanto menos demore para abri-lo, melhor.

Deixaria-te que tomasse emprestadas minhas ferramentas, mas nunca se sabe quando um

pode as necessitar —acrescentou com um brilho pícaro nos olhos—, mas... utilizei essa

moeda que me deu para comprar um jogo.

Entregou uma bolsa de tecido negro.

—Esse dinheiro era para ti.

—Bom, ficou-me muito inclusive depois de comprar isto —disse.

Então, tirou o que parecia um pau de cor marfim, tão largo como minha mão.

Estava decorado com um brilhante botão de prata e tinha uns símbolos de prata gravados em

um lado.

—O que é? —perguntei.

—Apura o botão.

Fiz o que ele me tinha pedido e me sobressaltei muito quando saiu uma brilhante

folha de aço. Era uma navalha automática.

—Obrigada, Janco —disse, muito surpreendida por meus presentes— Por que me

compraste estas coisas?

—Suponho que por um sentimento de culpabilidade.

—Culpabilidade? —repeti. Não era a resposta que esperava.

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—Porque foi uma assassina. Eu também fui um delinqüente, mas o superei e

ninguém me jogou isso em cara. Além disso, dá-me a sensação de que poderia necessitá-la.

Os soldados do Brazell estiveram lançando fanfarronadas sobre quem vai se encarregar da

assassina do Reyad. Têm uma grande imaginação e tudo o que impede que Ari os desafiasse

em um par de ocasiões. Dez contra um não é uma boa proporção, nem sequer para ele e

para mim.

—Manterei-me afastada deles.

—Bem. Bom, agora é melhor que vá. Tenho o turno de noite, mas, primeiro,

acompanharei a sua habitação.

—Não é necessário.

—Ari me mataria se não o fizesse.

Caminhamos juntos para a suíte do Valek. Quando demos a volta à esquina que

havia antes de chegar à porta principal, Janco se deteve em seco.

—Quase me tinha esquecido —disse, metendo-a mão no bolso de seu uniforme.

Tirou uma vagem para a navalha— Coloque isso ao redor da coxa direita. Lembre de fazer

um bom buraco no bolso das calças para que quando tirar a navalha não te enganche no

tecido.

Estava a ponto de partir quando o detive.

—Janco, o que significam estes símbolos? —perguntei, assinalando a manga da

navalha.

Janco sorriu.

—São velhos símbolos da batalha que utilizava o Rei quando enviava mensagens

e ordens em tempos de guerra. Não importava que o inimigo os interceptasse, porque

resultavam ininteligíveis para qualquer um que não soubesse como decifrá-los. Alguns dos

soldados seguem usando-os. Funcionam muito bem nos exercícios militares.

—E o que é o que dizem?

—É muito fácil, Yelena —disse ele com um amplo sorriso— Estou seguro de que

resolverá... cedo ou tarde —acrescentou. Tão brincalhão como sempre, Janco se pôs-se a rir.

—Vêem aqui para que possa te dar um murro.

—Eu adoraria te obedecer, querida minha —replicou ele, afastando-se de mim—,

mas chego tarde.

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Capítulo 23

Depois de guardar os presentes do Janco no bolso do uniforme, entrei na suíte do

Valek. Ele estava trabalhando em seu escritório, mas levantou a vista assim que eu entrei.

Deu-me a impressão de que estava me esperando.

—Onde estiveste? —perguntou-me.

—Com o Janco —respondi, embora sentiu saudades a pergunta. Valek jamais me

perguntava o que fazia com meu tempo livre enquanto chegasse a minhas obrigações durante

o dia.

—Fazendo o que? —insistiu com as mãos nos quadris.

A imagem cômica de um marido ciumento me assaltou o pensamento. Afoguei um

sorriso.

—Conversando sobre táticas de luta.

—OH... —sussurrou. Relaxou-se um pouco, mas se comportou de um modo

estranho, como se sentisse que se excedeu em sua reação e estivesse tratando de

dissimular— Bom, está bem, mas, de agora em diante, tenho que saber onde está em todo

momento. Além disso, sugiro-te que permaneça no castelo e que trate de passar

desapercebida durante um tempo. Os soldados do general Brazell puseram preço a sua

cabeça.

—Preço? —repeti muito assustada.

—Poderia ser só um rumor ou fanfarronadas de soldados bêbados, mas, até que

partam, quero que te proteja. Não desejo ter que adestrar a outro provador de comidas.

—Tomarei cuidado.

—Não. Seu zelo bordeará com a paranóia. Estará sempre rodeada de gente,

manterá-te em zonas bem iluminadas e te assegurará de que alguém te acompanhe sempre

que ir por corredores vazios a altas horas da noite. Compreendeste-me?

—Sim.

—Bem. A reunião do brandy dos generais se celebrará amanhã. Cada general trará

uma garrafa de seu melhor brandy para compartilhá-lo com outros enquanto falam dos

assuntos da Ixia até altas horas da noite. Você terá que provar a bebida do Comandante —

disse Valek. Então, mostrou-me uma caixa com oito garrafas. Continuando, tirou uma

pequena taça— Quero que prove cada brandy uma vez esta noite e ao menos duas amanhã

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para que estejamos seguros de como sabe cada um deles sem venenos. Cada garrafa está

etiquetada e se especifica o general que o trouxe.

Tomei uma ao azar. Era o brandy de cerejas do general Dinno, do DM-8. Tomei um

sorvo e o saboreei antes de tragá-lo, tratando de recordar seu sabor. O forte álcool me

queimou a garganta, me deixando um pequeno rastro de fogo no peito. O rosto me

avermelhou com o calor.

—Sugiro-te que cuspa o brandy depois de saboreá-lo para que não te embebede

—comentou Valek.

—Tem razão

Encontrei outra taça para poder cuspir e me pus a trabalhar com o resto das

garrafas.

No dia da reunião, provei as garrafas em duas ocasiões na suíte do Valek e,

continuando, pus-me a prova a mim mesma com uma terceira ronda. Só fiquei satisfeita

quando pude indicar só por seu sabor que garrafa pertencia a que general.

Aquela noite, esperei a que Valek viesse me buscar para me acompanhar à sala de

guerra. Chegou com seu uniforme de ornamento. Tinha galões vermelhos sobre os ombros e

uma grande quantidade de medalhas sobre o lado esquerdo do peito. Gotejava dignidade,

importância. Haveria-me sentido impressionada a não ser tivesse sido porque ele parecia

incômodo. Era como se sentisse como um menino ao que lhe obrigou a ficar suas melhores

roupas. Tampei-me a boca, mas não pude evitar que me escapasse a risada.

—Já basta. Tenho que me vestir assim uma vez ao ano e, por isso se refere, é

muito. Vamos?

Uni-me com ele na porta. O uniforme fazia ressaltar seu atlético corpo. Não pude

deixar de pensar quão magnífico estava com o uniforme.

—Está muito bonito — falei sem pensar. Então, ruborizei-me vivamente. Devia

haver tragado mais brandy do que tinha pensado.

—De verdade? —replicou. De repente, pareceu sentir-se mais cômodo e esboçou

um sorriso.

—Sim.

Chegamos à sala de guerra justo quando os generais se reuniam. As largas

vidraças refulgiam com os últimos raios do sol. Os criados percorriam nervosamente a sala,

colocando pratos de comida em cima da mesa. Todo o pessoal militar estava embelezado

Page 172: María v snyder 01 poison study

com o uniforme de ornamento. As medalhas e os botões reluziam. De vista, só conhecia três

generais. Deduzi quem eram outros pela cor de seus diamantes no uniforme negro. Examinei

cuidadosamente seus rostos, no caso de Valek me punha a prova mais tarde.

Brazell me olhou com desaprovação. A seu lado, estava o conselheiro Mogkan e

tremi ao ver como este me olhava. Quando Brazell e Reyad realizavam seus experimentos

comigo, Mogkan sempre estava perto. Sua presença, freqüentemente mais pressentida que

vista, tinha-me provocado violentos pesadelos. Os habituais conselheiros do Brazell não

estavam. Perguntei-me por que se teria levado ao Mogkan.

O Comandante se sentou à cabeceira da mesa. Seu uniforme era singelo e

elegante, com diamantes de verdade no pescoço. Os generais, flanqueados por seus

conselheiros, tomaram assento também. O lugar do Valek estava à direita do Comandante e

meu tamborete estava detrás deles, contra a parede. Sabia que a reunião duraria toda a noite

e me alegrava poder descansar as costas contra as pedras. Outra vantagem de minha

posição é que não estava em linha direta com o Brazell. Entretanto, embora podia evitar ver

seus olhares envenenados, não podia me esconder das do Mogkan.

O Comandante golpeou a mesa. Fez-se o silêncio.

—Antes que abordemos os temas estipulados —disse, assinalando a agenda que

todos dispunham—, tenho que realizar um anúncio de importância. Designei a um novo

sucessor. Um murmúrio se estendeu por toda a sala. Então, o Comandante se levantou e lhes

entregou um sobre selado a cada general. Em seu interior, estavam as oito peças do quebra-

cabeças codificado que revelava o nome do novo sucessor, quando se pudesse decifrar com

a chave do Valek.

A tensão se apalpava na sala. Sobre os rostos dos generais, adivinhava-se uma

maré de sentimentos: surpresa, ira, preocupação... Entretanto, a tensão foi aplacando-se

lentamente e passou quando o Comandante começou a reunião. O primeiro ponto da reunião

tinha que ver com o DM-1, seguido de cada distrito em ordem. Enquanto saboreavam a

garrafa de brandy do general Kitvivan, pressente-os falaram de tigres de neve e direitos

mineiros.

—Vamos, Kit. Já basta de falar de felinos. Lhes dê de comer como fazemos nós e

não lhe incomodarão —disse o general Chenzo, do DM-2.

—Lhes dar de comer para que fiquem fortes e comecem a procriar como coelhos?

Arruinaríamo-nos lhes dando carne —replicou Kitvivan.

Page 173: María v snyder 01 poison study

Meu interesse na reunião ia e vinha, dependendo do tema que se falasse. Depois

de um momento, comecei a me sentir sob os efeitos do brandy, dado que o protocolo ditava

que, naquele caso, devia tragá-lo. Os generais votaram sobre vários tópicos, mas o

Comandante sempre tinha o voto final. Principalmente, inclinava-se a favor da maioria.

Ninguém se atrevia a protestar quando não era assim.

O Comandante Ambrose tinha vivido no DM-3, lutando por viver com sua família

nas saias das montanhas da Alma. Entre as montanhas e a geleira, seu lar estava sobre uma

enorme mina de diamantes. Quando se encontrou o rico filão, o Rei reclamou todos os

diamantes e “permitiu” que a família do Comandante vivesse ali e trabalhasse nas minas. Ele

perdeu a muitos membros de sua família nas minas.

Como jovem que sofreu as injustiças da monarquia, Ambrose se instruiu a si

mesmo e começou a pregar sobre a reforma. Sua inteligência e persuasão lhe reportaram

muitos seguidores.

Voltei a me centrar na reunião quando os generais começaram a abordar os temas

do DM-5. O general Brazell provocou um revôo considerável. Em vez de repartir seu melhor

brandy, tirou uma bandeja que continha o que pareciam pequenas pedras marrons. Valek me

entregou uma. Era uma parte redonda do Crioulo. Antes de que os protestos sobre o fato de

ignorar a tradição se fizessem inconcebiveis, Brazell se levantou e convidou a todo mundo a

dar um bocado. Depois de um breve momento de silêncio, as exclamações de gozo encheram

a sala de guerra. O Crioulo estava cheio de brandy de morangos. Dava-lhe à Comandante o

sinal que indicava que podia tomá-lo para que eu pudesse saborear o resto de meu bocado. A

combinação do delicioso sabor do Crioulo com o brandy era algo divino. Rand se sentiria

muito aborrecido de que não lhe tivesse ocorrido a ele. Então, lamentei-me por me haver

causar pena do Rand, ao recordar que me tinha enganado. Depois de que os elogios se

sossegassem, Brazell anunciou que já tinha terminado de construir sua nova fábrica. Então,

seguiu falando de assuntos muito mais mundanos, como por exemplo de quanta lã se

tosquiou ou a colheita que se esperava obter das plantações.

O DM-5 produzia e tingia todo o fio da Ixia. Continuando, enviava-o ao DM-3 para

que o tecessem. O general Franis, que estava a cargo do DM-3 sacudiu a cabeça com

preocupação enquanto anotava as cifras do Brazell. Era o mais jovem dos generais.

Eu comecei a dormitar sobre meu tamborete e tive estranhos sonhos sobre brandy

e patrulhas fronteiriças. Então, as imagens se fizeram nítidas e brilhantes ao tempo que a

imagem de uma jovem vestida com peles brancas me assaltava o pensamento.

Page 174: María v snyder 01 poison study

Levantava uma lança no ar a modo de celebração. A seus pés, jazia um tigre de

neve. Então, tirou uma faca. Depois de fazer um corte na pele do animal, utilizou uma taça

para recolher o sangue que se derramava da ferida.

Enquanto bebia, uns riachos de cor avermelhada lhe derramavam pelo queixo.

Escutei claramente suas palavras.

—Ninguém conseguiu nunca esta façanha! Ninguém mais que eu.

Sua alegria me encheu o coração.

—Isso demonstra que sou uma jaqueta forte e ardilosa. Que tiraram minha

dignidade. Que sou um homem. Os homens não governarão nunca mais. Te converta em um

tigre de neve vivendo com tigres de neve e em um homem vivendo com homens.

A jaqueta girou o rosto. Ao princípio, pensei que era a irmã do Comandante, dado

que ambos compartilhavam os mesmos delicados rasgos e idêntico cabelo negro. Transmitia

segurança em si mesmo e poder. Quando me olhou, seus olhos amendoados me

atravessaram como uma lança. Quando me dava conta de que era o Comandante, despertei

sobressaltada. O coração me pulsava a toda velocidade e a cabeça me doía muito. Então,

dava-me conta de que Mogkan me estava olhando muito intensamente. Então, o conselheiro

sorriu de satisfação.

As razões que tinha o Comandante para odiar aos magos resultaram claras como a

água. Ele era uma mulher, mas com a profunda convicção de que tinha que ter nascido

homem. Aquele cruel destino o tinha feito carregar com uma mutação que tinha que superar e

o Comandante temia que um mago pudesse lhe arrancar seu segredo. “Tolices”, pensei,

enquanto tratava de me esquecer de tudo. Só porque tivesse sonhado com uma mulher não

significava que o Comandante o fora. Era uma tolice. Ou não?

Esfreguei meus olhos e olhei a meu redor para comprovar se alguém mais se deu

conta de que eu tinha adormecido. O Comandante tinha o olhar perdido na distância e Valek

estava sentado muito erguido e alerta, examinando a sala como se estivesse procurando algo

ou a alguém. O general Tesso tinha a palavra.Valek olhou ao Comandante e lhe golpeou no

braço, alarmado.

—O que lhe passa? —perguntou-lhe com urgência— Onde estava?

—Simplesmente recordava um passado muito longínquo —disse o Comandante

com voz pensativa— Resulta mais agradável que escutar os aborrecidos e detalhados

informem do general Tesso sobre a colheita de trigo do DM-4.

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Estudei os rasgos do Comandante, tratando de compará-los com os da mulher de

meu sonho.

Encaixavam perfeitamente, mas isso não significava nada. Os sonhos

tergiversavam a realidade e resultava fácil imaginar-se ao Comandante matando um tigre de

neve. O resto da reunião prosseguiu sem incidentes. Eu dormitava em meu tamborete de vez

em quando, já sem que me incomodassem sonhos desagradáveis. Quando o Comandante

tomou a palavra, despertei imediatamente.

—O último ponto, cavalheiros —anunciou— Uma delegação de Sitia pediu uma

reunião.

As vozes ressonaram por toda a sala. Os generais começaram a discutir,

retomando o debate e seus argumentos onde o tinham deixado. Falaram de antigos tratados

de comércio e discutiram sobre um eventual ataque a Sitia. Em vez de comercializar, por que

não arrebatar-lhe, queriam expandir seus distritos e contar com mais homens e recursos.

Assim, terminariam também com a preocupação de que fora Sitia a que terminasse atacando

a Ixia.

O Comandante permaneceu em silencio durante a discussão. Os generais

declararam sua opinião sobre a visita da delegação de Sitia. Os quatro generais do norte,

(Kitvivan, Chenzo, Franis e Diño) não queriam que esta se produzira. Pelo contrário, os quatro

do sul (Tesso, Rasmussen, Hazal e Brazell) estavam a favor.

O Comandante sacudiu a cabeça.

—Sei a opinião que têm sobre Sitia, mas os suboas preferem comercializar

conosco a nos atacar. Nós temos mais homens e metal, um fato do que eles são muito

conscientes. Atacar Sitia significaria perder muitas vidas humanas e gastar grandes

quantidades de dinheiro. Para que? Seus artigos de luxo não valem tanto. Eu estou contente

com a Ixia. Curamos a esta terra da enfermidade do Rei. Talvez meu sucessor queira mais.

Terão que esperar até então.

Um murmúrio se estendeu entre os generais. Brazell assentiu para mostrar seu

acordo.

—Eu já aceitei receber à delegação de Sitia —prosseguiu o general— Vão chegar

dentro de quatro dias. Têm até então para expressar suas preocupações específicas antes de

partir. Termina-se a reunião.

Então, o Comandante ficou de pé seguido de seu guarda-costas e do Valek e se

dispôs a partir. Valek me indicou que unisse a eles. Eu me pus de pé, mas o efeito do brandy

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que tinha tomado se apoderou por completo de mim. Com muita dificuldade, pude seguir aos

outros fora da sala. Uma explosão de vozes estalou a nossas costas quando a porta se

fechou.

—Isso deveria animar um pouco as coisas —comentou o Comandante com um

débil sorriso.

—Eu não lhe aconselharia que se tomasse suas férias no DM-8 este ano —disse

Valek, cheio de sarcasmo— O modo no que reagiu Dinno quando você anunciou a visita da

delegação do sul me faz pesar que adornaria sua casa da praia com aranhas de areia —

acrescentou, tremendo— Um modo terrível de morrer.

Eu senti um calafrio ao pensar nas letais arranhas, que eram do tamanho de cães

pequenos. Nossa procissão prosseguiu em silencio durante um momento enquanto nos

dirigíamos à suíte do Comandante. Eu andava com passo instável. Parecia-me que as

paredes de pedra se moviam e que eu era a que estava imóvel.

Frente à suíte do Comandante, Valek disse: —Eu também tomaria cuidado com o

Rasmussen. Não tomou muito bem as notícias da mudança de sucessor.

O Comandante abriu a porta. Eu consegui jogar uma olhada no interior de sua

suíte. O mesmo estilo espartano que decorava seu escritório e o resto do castelo. O que tinha

esperado? Talvez uma nota de cor ou um pouco mais feminina? Sacudi a cabeça para me

desprender de pensamentos tão absurdos.

—Tomarei cuidado com todo mundo, Valek. Já sabe —disse antes de fechar a

porta.

Ao entrar em nossa suíte, Valek tirou a jaqueta do uniforme e a jogou sobre o sofá.

Indicou-me uma cadeira e me disse:

—Sente-se. Temos que falar.

Eu obedeci e observei como Valek percorria a habitação com sua camiseta sem

mangas e umas favorecedoras calças. Imaginei que minhas mãos lhe ajudavam a desfazer-se

da tensão que se acumulava naqueles fortes músculos e quase estive a ponto de soltar a

gargalhada. O brandy fluía com força pelo sangue e me fazia perder o controle.

—Esta noite saíram mau duas coisas —disse.

—Venha já. Só dormitei durante um minuto —protestei.

—Não, não. Você levou bem —comentou, me olhando com surpresa— Me referia

à reunião. Aos generais. Em primeiro lugar, Brazell pareceu extremamente contente pela

mudança de sucessor e pela visita da delegação de Sitia. Ele sempre quis um tratado de

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comércio, mas habitualmente se mostra mais cauteloso. Em segundo lugar, havia um mago

na sala.

—Como? —perguntei, atônita. Acaso me tinha descoberto?

—Magia. Sutil, mas muito profissional. Só a senti em uma ocasião, mas não pude

averiguar de onde vinha. Entretanto, o mago tinha que estar na sala ou não o haveria sentido.

—Quando foi?

—Durante a aborrecida dissertação do Tesso sobre o trigo —comentou Valek, algo

mais depravado, como se o fato de falar do tema lhe ajudasse— Ao mesmo tempo que seus

roncos podiam escutar-se por toda a sala.

—Já —repliquei— Você estava tão rígido na reunião que pensei que tinha rigor

mortis.

Valek se pôs-se a rir.

—Duvido que você tivesse tido melhor aspecto se tivesse tido que estar sentada

com um incômodo uniforme toda a noite. Acredito que Dilana me pôs mais amido que de

costume. Por certo —acrescentou, em tom mais sério—, conhece conselheiro Mogkan?

Esteve te olhando quase toda a noite.

—Sim. Era o conselheiro principal do Reyad. Também caçavam juntos.

—Como é?

—A mesma classe de animália que Reyad e Nix —respondi, sem poder me conter.

Quando tampei a boca com as mãos, era já muito tarde.

Valek me observou durante um instante.

—Na reunião haviam vários conselheiros novos. Suponho que terei que investigá-

los um a um. Parece-me que temos um espião do sul com habilidades mágicas. Nunca se

acaba... —sussurrou, ao tempo que se deixava cair sobre o sofá, preso de um profundo

esgotamento.

—Se terminasse, ficaria sem trabalho.

Quase sem me dar conta, coloquei-me detrás dele e comecei a lhe dar uma

massagem nos ombros. O álcool feito dono de meus movimentos e a pequena seção de meu

cérebro que ainda se mantinha sóbria não podia fazer nada mais que gritar advertências

inúteis.

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Capítulo 24

Valek se esticou ao notar o contato. Acaso estava esperando que eu fora a lhe

estrangular? À medida que minhas mãos começaram a lhe massagear os músculos, foi

relaxando-se.

—O que faria se, de repente, o mundo fosse perfeito e não tivesse a ninguém a

quem espiar? —perguntei-lhe.

—Aborreceria-me —admitiu.

—Venha, sério. Teria que trocar de profissão.

—Não sei... Instrutor de armas?

—Não. É um mundo perfeito. Não se permitem as armas —disse, baixando as

mãos pelas costas— O que te parece um erudito? Tem lido todos estes livros, não? Ou

acaso os tem aqui para que lhes custe trabalho aos intrusos penetrar?

—Os livros me servem de muitos modos diferentes, mas duvido que sua sociedade

perfeita necessitasse um perito em assassinatos.

—Não —sussurrei, me detendo um instante— É obvio que não.

—O que te parece escultor? Poderia esculpir estátuas extravagantes. Poderíamos

redecorar o castelo e animá-lo um pouco. E você? O que faria você?

—Seria acrobata —respondi, enquanto lhe massageava a zona lombar.

—Acrobata! Bom, isso explica muitas coisas.

Excitada pelo contato com o esculpido corpo do Valek, deslizei-lhe as mãos para o

estômago. Ao diabo com o Reyad. O brandy me tinha depravado mais à frente do medo.

Comecei a desabotoar as calças do Valek.

Ele me agarrou com força as bonecas e me deteve as mãos.

—Yelena, está bebida —disse com voz rouca.

Soltou-me as mãos e ficou de pé. Eu permaneci sentada, observando com

surpresa que ele se inclinava sobre mim e tomava em braços. Sem dizer uma palavra, levou-

me a minha habitação e me tombou na cama.

—Dorme um pouco, Yelena —murmurou, antes de sair da habitação.

Enquanto observava a escuridão, o mundo dava voltas ao meu redor. Coloquei

uma mão sobre a parede que havia junto a minha cama para tranqüilizar meus pensamentos.

Já sabia. Valek não tinha mais interesse em mim que em meu trabalho como provadora de

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comidas. Tinha-me deixado apanhar pelas fofocas da Dilana e o ciúmes de Maren. A dor do

rechaço que sentia na alma era minha culpa.

Por que não tinha aprendido já? Em minha experiência, as pessoas se convertiam

em monstros. Brazell, Rand, a presença constante do Reyad... E Valek? transformaria-se em

um ou acaso o tinha feito já? Como Star havia dito, eu não deveria estar pensando nele

absolutamente, ao menos não como companheiro nem para encher o vazio de morte que me

ocupava o coração. Como se isso fora possível. Pus-se a rir. “te olhe, Yelena. É uma

provadora de comida que conversa com fantasmas”. Tinha que me sentir agradecida por

respirar, por seguir viva. Não deveria desejar mais que a liberdade em Sitia. Então poderia

encher o vazio. Decidi me esquecer de todo pensamento sentimental e me concentrar em

seguir viva.

O fato de escapar a Sitia romperia os vínculos com o Valek. Quando tivesse obtido

o antídoto do Pó de Mariposa, poderia pôr meus planos em movimento. Decidida, repassei

mentalmente o que tinha aprendido para forçar fechaduras e, por fim, adormeci.

Despertei uma hora antes da alvorada com uma terrível dor de cabeça. Tinha a

boca seca. Com muito cuidado, levantei-me da cama e cobri os ombros com uma manta.

Então, fui procurar algo de beber. Valek gostava da água fria e sempre tinha uma jarra no

balcão.

O frio ar da noite me limpou. Os muros do castelo reluziam por efeito do fantasmal

reflexo da lua cheia. Vi a jarra de metal. Tinha uma fina capa de gelo sobre a parte superior.

Rompi-a com o dedo e joguei a água diretamente à boca.

Quando inclinei a cabeça para tomar um segundo gole, notei um objeto com forma

de aranha negra que se aferrava à parede do castelo, por cima de minha cabeça. Com

crescente alarme, dava-me conta de que a forma descendia para mim. Não era uma aranha,

a não ser uma pessoa. Procurei um lugar no que me esconder, mas decidi que o intruso

certamente já tinha me visto. Pareceu-me que seria melhor me encerrar na suíte e procurar o

Valek. Entretanto, antes de que pudesse voltar a entrar no salão, duvidei. No interior, as

roupas negras do intruso resultariam difíceis de detectar. Desde que Janco me tinha ensinado

a forçar fechaduras, uma porta fechada já não me dava sensação de segurança. Depois de

me amaldiçoar por ter deixado minha navalha na habitação, dirigi-me ao lado mais afastado

do balcão com a jarra na mão.

O intruso salvou a distância que ficava saltando ao balcão. Algo em seus

movimentos me resultou familiar.

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—Valek?

Valek sorriu e tirou um par de óculos escuros. O resto de seu rosto estava

escondido depois de um capuz que lhe cobria por completo a cabeça e que formava parte de

uma rodeada malha corporal.

—O que está fazendo? —perguntei.

—Reconhecimento. Os generais revistam ficar levantados até tarde depois de que

o Comandante abandona a reunião do brandy. Por isso tive que esperar até que todo mundo

partiu à cama.

Valek entrou na suíte e tirou o capuz. Depois de acender o abajur que havia sobre

a mesa, tirou um papel de um bolso.

—Eu não gosto dos mistérios. Teria deixado que a identidade do sucessor do

Comandante permanecesse em segredo, tal e como o tenho feito durante quinze anos, mas a

oportunidade de esta noite resultava muito tentadora. Com oito generais bêbados dormindo a

Mona, poderia-me ter posto a dançar sobre suas camas sem que se inteirassem. Nem sequer

um deles tem imaginação. Vi que todos se metiam o sobre que lhes deu o Comandante em

sua maleta —acrescentou. Então, indicou-me que me aproximasse do escritório— Vêem, me

ajude a decifrar isto.

Entregou uma dura parte de papel, sobre o que tinha riscados uma série de

palavras e números. Tinha copiado as oito partes da mensagem cifrada do Comandante

entrando em cada um dos dormitórios dos generais. Perguntei-me por que confiava em mim,

mas, como sentia muita curiosidade, aproximei uma cadeira para lhe ajudar.

—Como rompeu o selo de cera? —perguntei.

—Um velho truque. O único que se precisa é uma faca afiada e uma pequena

chama. Agora, me leia o primeiro grupo de letras.

Escreveu-o e logo ordenou as letras até que teve criado a palavra “assedio”. Então,

abriu um livro e passou as páginas, que estavam cheias de símbolos como os que havia em

minha navalha. A página em que se deteve estava decorada com um enorme símbolo azul

que parecia uma estrela em meio de três círculos.

—O que é isso?

—O velho símbolo da batalha para a palavra “assedio”. O rei morto utilizava estes

símbolos para comunicar-se com seus capitães durante tempos de guerra. Criou-os faz

centenas de anos um grande estrategista. Leia o seguinte texto. Deveriam ser números.

Disse-lhe os números. Ele começou a contar as linhas do texto.

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Enquanto o fazia, me ocorreu que poderia utilizar aquele libero para decifrar a

mensagem de minha navalha. Nada de cedo ou tarde. Janco se surpreenderia.

Quando Valek alcançou um número, escreveu uma letra em uma página em

branco. Quando terminou de decifrar a mensagem, ficou completamente imóvel e conteve o

fôlego.

—Quem é? —perguntei, incapaz de esperar um momento mais.

Olhei-o. Estava cansado e parecia algo receoso.

—Darei-te uma pista. Quem se mostrou mais contente pela mudança? Que nome

não faz mais que sair nas situações mais estranhas?

O terror me abraçou como se fora uma capa. Se algo lhe ocorria ao Comandante,

Brazell estaria ao mando. Provavelmente, eu seria uma de suas prioridades. Certamente, não

viveria o suficiente para ser testemunha das mudanças que ele efetuaria na Ixia.

Valek compreendeu imediatamente o gesto de meu rosto.

—Assim é. Brazell.

Durante dois dias, o Comandante foi reunindo-se um a um com cada um dos

generais. Minhas breves e periódicas interrupções para provar a comida do Comandante

provocavam incômodos momentos de silêncio. A tensão era evidente no castelo, como o

eram as constantes brigas dos soldados dos generais. Ao terceiro dia, quando cheguei para

provar o café da manhã do Comandante, encontrei-o sumido em uma profunda conversação

com o Brazell e o conselheiro Mogkan. Os olhos do Comandante estavam frágeis e sua voz

era monótona.

—Fora daqui! —rugiu Brazell.

Mogkan me obrigou a sair à sala do trono.

—Espera aqui até que lhe chamemos —me ordenou.

Duvidei um instante, sem saber se devia obedecer aquela petição tão incomum. Se

me tivesse ordenado isso Valek ou o Comandante, não teria duvidado, mas me incomodava

obedecer ao Mogkan. Minhas preocupações se acrescentaram dado que tinha começado a

imaginar que Brazell tinha a intenção de assassinar ao Comandante. Estava a ponto de ir

procurar ao Valek quando ele mesmo entrou na sala do trono e, com uma expressão dura no

rosto, dirigiu-se ao despacho do Comandante.

Page 182: María v snyder 01 poison study

—O que está fazendo aqui? —perguntou-me—, não provaste o café da manhã do

Comandante?

—Me ordenou esperar. Está com o Brazell e Mogkan.

O medo se refletiu no rosto do Valek. Entrou no despacho e eu o segui. Mogkan

estava de pé atrás do Comandante, lhe apertando as têmporas com os dedos. Quando Valek

apareceu, Mogkan deu um passo atrás.

—Já verá, senhor, que este é um modo excelente de aliviar os dores de cabeça —

disse brandamente.

O rosto do Comandante recuperou de novo a animação.

—Obrigado, Mogkan —respondeu. Então, olhou com frieza ao Valek— O que é

tão importante?

—Tenho notícias preocupantes, senhor —respondeu Valek, lançando dardos com

o olhar ao Brazell e ao Mogkan— Gostaria das discutir com você em privado.

O Comandante programou a reunião para mais tarde e o general e o conselheiro

partiram.

—Yelena, prova o café da manhã do Comandante agora mesmo. —Em seguida.

Valek observou como eu provava o café da manhã com uma intensa expressão no

rosto que me pôs muito nervosa. Acaso acreditava que a comida estava envenenada? Provei

o chá e a omelete, mas não detectei nada estranho. Coloquei a bandeja sobre o escritório do

Comandante.

—Yelena, se tiver que voltar a tomar a comida fria, farei que lhe açoitem,

compreende-me? —espetou-me. A voz do Comandante carecia de paixão, mas a ameaça era

genuína.

—Sim, senhor —falei, sabendo que não serviria de nada me explicar.

—Pode partir.

Saí correndo do despacho, quase sem me fixar na incrível atividade da sala do

trono. De repente, notei que uma voz me sussurrava algo na cabeça. “Tem fome”.

Efetivamente, de repente me senti muito faminta, por isso me dirigi rapidamente à cozinha.

Quando dava a volta a uma esquina, encontrei-me com o conselheiro Mogkan.

Entrelaçou seu braço com o meu e guiou a uma parte isolada do castelo. Ir com ele parecia

algo natural, mas eu queria partir. Queria ter medo, terror, mas não podia experimentar

emoção alguma. Minha fome se dissipou. Senti-me satisfeita.

Page 183: María v snyder 01 poison study

Mogkan me levou a um corredor deserto. Compreendi que era um beco sem saída,

mas me resultou impossível reagir de modo algum. Os olhos cinzas do Mogkan me olharam

durante um instante antes de que me soltasse o braço. Com os dedos riscou a linha de

rombos negros que tinha pela manga do uniforme.

—Minha Yelena —disse, possessivamente.

O medo se apoderou de mim no momento no que se rompeu o contato físico.

Apesar de tudo, não podia me mover. Os músculos de meu corpo não respondiam às

frenéticas ordens que eu lhes enviava para poder sair fugindo.

Um mago! Mogkan tinha poderes. Tinha-os utilizado durante a reunião do brandy, o

que tinha alertado ao Valek. Entretanto, não pude seguir pensando mais no tema quando

Mogkan me aproximou.

—Se me tivesse imaginado que causaria tantos problemas, jamais teria te levado

ao orfanato do Brazell —disse com um sorriso ao notar minha confusão— Não te disse

Reyad que eu tinha te encontrado?

—Não.

—Estava perdida no bosque. Só tinha seis anos. Foi uma menina tão formosa e

inteligente... Uma delícia. Resgatei-te das garras de um leopardo porque sabia que tinha

potencial. Entretanto, foi muito teimosa, muito independente. Quanto mais nos esforçávamos,

mais resistia. Inclusive agora, quando estou unido a ti, segue resistindo. Posso lhe dar ordens

a seu corpo —disse.

Então, levantou o braço esquerdo e o meu se levantou, repetindo de modo idêntico

os movimentos dele.

—Entretanto, se tratasse de controlar seu corpo e sua mente, você terminaria me

derrotando —concluiu, sacudindo a cabeça com incredulidade, como se o conceito lhe

surpreendesse— Felizmente, o único que se precisa é uma suave pressão.

Apartou a mão e realizou um gesto com os dedos, como se estivesse dando um

beliscão. Então, senti que me fechava a garganta. Incapaz de me defender, caí ao chão.

Tratei de gritar, mas não pude. Minha mente me impediu isso. Mogkan estava utilizando a

magia. Talvez pudesse bloqueá-lo antes de perder o conhecimento. Tratei de recitar venenos

mentalmente.

—Que força —disse Mogkan com admiração—, mas esta vez não te servirá de

nada.

Page 184: María v snyder 01 poison study

Inclinou-se sobre mim e me beijou meigamente na frente, como se tratasse de um

pai.

Senti que se estendia por meu corpo uma profunda paz. Deixei de resistir. A visão

me nublou. Senti que Mogkan tomava a mão e a sustentava entre as suas.

Capítulo 25

Enquanto me reclinava contra a parede, aferrei-me à mão do Mogkan. Sentia que o

mundo se esfumava ao meu redor. De repente, senti um incômodo puxão e o bloqueio que

oprimia minha garganta desapareceu. Ao tempo que tratava de recuperar o fôlego, recuperei

os sentidos e me dava conta de que estava tombada no chão. A meu lado, Valek estava

sentado sobre o peito do Mogkan. Tinha-o agarrado pelo pescoço, mas não deixava de olhar

para mim.

Mogkan sorriu quando Valek ficou de pé e obrigou ele a fazer o mesmo.

—Espero que seja consciente da pena que te espera por ser mago no território da

Ixia —disse Valek— Se não, eu estarei encantado de lhe dizer isso.

Mogkan estirou o uniforme e ajustou a larga e escura trança em que tinha recolhido

seu cabelo.

—Alguns diriam que sua habilidade para te opor à magia converte a ti em um

mago, Valek.

—O Comandante é de outra opinião. Está detido.

—Nesse caso, você levará uma grande surpresa. Sugiro-te que fale com o

Comandante antes que faça algo muito drástico.

—O que te parece se te mato agora mesmo? —espetou-lhe Valek, aproximando-se

perigosamente. Uma profunda dor atravessou meu abdômen. Eu lancei um grito e me enrolei

sobre mim mesma. A agonia era insuportável. Valek deu outro passo à frente. Eu gritei ao

experimentar uma sensação parecida com a de fogo nas costas e na cabeça.

—Te aproxime mais e ela se converterá em cadáver —disse Mogkan, com a voz

cheia de astúcia.

Com os olhos cheios de angústia, Valek tratou de seguir adiante, mas ao final

permaneceu imóvel.

Page 185: María v snyder 01 poison study

—Vá, vá... Isso sim que é interessante. Ao Valek de antigamente não lhe teria

importado que eu matasse a um simples provador de comida. Yelena, minha menina, acabo

de me dar conta de quão útil vais ser para mim.

A intensa dor resultava insuportável. Teria morrido agradada, tão somente para

escapar dele. Antes de perder o conhecimento, quão último vi foi como Mogkan partia, sem

que Valek o impedisse.

Despertei envolta na escuridão. Tinha um pouco pesado sobre a frente. Alarmada,

tratei de me incorporar.

—Tranqüila —disse Valek, me obrigando a me deitar.

Toquei a cabeça e notei um pano úmido. Pisquei para que os olhos se

acostumassem à luz e comprovei que estava em minha habitação. Valek estava de pé ao

meu lado com uma taça na mão.

—Beba isto.

Tomei um sorvo. Repugnou-me o sabor o remédio, mas Valek insistiu em que

terminasse tudo. Quando a taça esteve vazia, colocou-a sobre a mesinha de noite.

—Descansa —me ordenou. Então, deu a volta para partir.

—Valek —disse, para que se detivesse— Por que não matou ao Mogkan?

—Uma manobra tática. Mogkan teria matado a ti antes de que eu tivesse podido

acabar com ele. Você é a chave de muitos enigmas. Necessito-te.

Dirigiu-se de novo à porta, mas se deteve na soleira.

—Denunciei ao Mogkan ante o Comandante, mas ele se mostrou... impassível —

acrescentou, agarrando com força o pomo da porta— Eu me encarregarei de vigiar ao

Comandante até que Brazell e Mogkan partam. Designei ao Ari e ao Janco como seus

guarda-costas pessoais. Não parta destas habitações sem eles. E deixa de comer Crioulo. Eu

me encarregarei de provar o do Comandante. Quero ver se te ocorre algo.

Valek partiu, me deixando a sós com meus conturbados pensamentos.

Tal e como tinha prometido e para irritação do Comandante, Valek não se separou

de seu lado. Ari e e Janco gostaram de poder dispor de uma mudança de rotina, mas eu lhes

fiz trabalhar muito. Quando não estava provando as comidas do Comandante, fazia que Ari

me instruísse nas brigas a faca e que Janco me desse mais aulas sobre abrir fechaduras.

A marcha do Comandante estava programada para o dia seguinte, o que

significava que tinha chegado o momento de realizar meu próprio reconhecimento. Era meio

tarde, e sabia que Valek estaria com o Comandante até muito tarde. Disse ao Ari e ao Janco

Page 186: María v snyder 01 poison study

que me ia deitar cedo e lhes dava boa noite na soleira da porta das habitações do Valek.

Depois de esperar durante uma hora, saí ao corredor.

Os corredores do castelo não estavam tão desertos como tinha esperado, mas,

felizmente, o despacho do Valek estava situado em uma parte bastante tranqüila do castelo.

Aproximei-me da porta e, depois de me assegurar de que não havia ninguém, coloquei

minhas punções na primeira das três fechaduras. Entretanto, os nervos fizeram que

resultasse impossível fazer saltar a fechadura. Respirei profundamente e voltei a tentá-lo.

Tinha conseguido abrir duas das fechaduras quando ouvi vozes. Rapidamente, tirei

os punções da fechadura e bati na porta justo quando os dois homens apareciam no corredor.

—Está com o Comandante —disse um deles.

—Obrigado —repliquei.

Então, comecei a caminhar na direção oposta. O coração pulsava com a mesma

velocidade que as asas de um colibri. Quando vi que os homens partiram, retornei ao

despacho do Valek. A terceira fechadura resultou ser a mais difícil. Quando consegui abri-la,

estava completamente coberta de suor. Entrei rapidamente no despacho e fechei a porta a

minhas costas.

Minha primeira tarefa era abrir o armário que guardava meu antídoto. Talvez Valek

tinha ali cotada a receita. Quando o consegui, acendi um pequeno abajur para olhar em seu

interior. Havia muitas garrafas e frascos. A tensão foi tomando conta de mim. Quão único

descobri foi uma grande garrafa que continha o antídoto. Verti umas quantas doses no frasco

que levava no bolso, sabendo que Valek se daria conta se tomava muito. Depois de voltar a

fechar o armário, comecei a registrar os arquivos de Valek. Felizmente, seus papéis pessoais

estavam muito bem organizados. Encontrei informe sobre a Margg e o Comandante. Senti a

tentação de lê-los, mas me centrei em procurar o arquivo que continha meu nome ou alguma

referência ao Pó de Mariposa. Em meu arquivo pessoal, Valek tinha escrito uns comentários

muito interessantes sobre minha habilidade para notar sabores, mas não havia menção

alguma do veneno nem do antídoto.

Quando terminei com o escritório, dirigi-me à mesa de conferências. Rebusquei

entre livros e pastas, mas era consciente de que o tempo estava acabando. Tinha que

retornar a minha habitação antes de que Valek acompanhasse o Comandante a sua suíte.

Terminei com a mesa. Senti uma profunda desilusão ao me dar conta de que ainda

ficava por registrar a metade do despacho. De repente, ouvi o distintivo som que fazia uma

chave ao introduzir-se na fechadura. Um clique. Retirou-se a chave. Apaguei a luz enquanto

Page 187: María v snyder 01 poison study

soava o clique correspondente à segunda fechadura. Lancei-me sob a mesa de conferências,

esperando que as caixas que se empilhavam debaixo dela me ocultassem por completo.

Rezei para que fosse Margg e não Valek. O terceiro clique fez que me detivesse o coração.

A porta se abriu e se fechou. Uns passos cruzaram a sala e alguém se sentou ao

escritório. Não me arrisquei a olhar para ver de quem se tratava, mas sabia que era Valek.

Retirou-se logo o Comandante? Repassei as opções que tinha: ser descoberta ou esperar

que Valek partisse. Pus-me cômoda.

Uns minutos depois, alguém bateu na porta.

—Entre —disse Valek.

—Seu... seu pacote chegou, senhor —anunciou uma voz masculina.

—Faça-o passar.

Imediatamente, ouvi um ruído de cadeias e alguém que arrastava os pés ao andar.

—Pode partir —ordenou Valek. A porta se fechou. Imediatamente, captei o aroma

rançoso das masmorras.

—Bem, Tentil. É consciente de que é o seguinte em ir ao cadafalso? —perguntou

Valek.

—Sim, senhor —sussurrou uma voz. —Está aqui porque matou a seu filho de três

anos com um arado e afirmou que se tratava de um acidente. É correto?

—Sim, senhor. Minha esposa acabava de morrer. Eu não podia permitir uma babá

para o menino. Não sabia que ele se colocou debaixo —murmurou o homem, com a voz

arrancada pela dor.

—Tentil, na Ixia não valem as desculpas.

—Sim, senhor. Sei, senhor. Quero morrer, senhor. Resulta-me impossível suportar

a culpa.

—Nesse caso, a morte não seria um castigo adequado, não te parece? Viver seria

uma sentença muito mais dura. De fato, eu conheço uma granja muito produtiva no DM-4 que,

tragicamente, perdeu ao granjeiro e a sua esposa. Ficaram três órfãos com menos de seis

anos. Tentil morrerá na forca amanhã mesmo, ou isso será o que crê todo mundo. Entretanto,

você se dirigirá ao DM-4 para te fazer encarregado de uma granja de trigo e de criar a esses

três meninos. Sugiro-te que o primeiro que faça seja contratar a uma babá. Compreendido?

—Mas...

—O Código de Comportamento realizou um papel fundamental na hora de liberar a

Ixia dos indesejáveis, mas também carece em certo modo de compreensão humana. Apesar

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de meus argumentos, o Comandante não consegue compreender este ponto, por isso em

ocasiões eu me ocupo pessoalmente de alguns assuntos. Mantém a boca fechada e

sobreviverá. Um de meus homens de confiança irá te ver de vez em quando...

Eu escutei completamente incrédula aquelas palavras. Não podia acreditar o que

acabava de ouvir. Naquele momento, alguém bateu na porta.

—Entre —disse Valek— No momento justo, como sempre Wing. Trouxeste os

documentos? —perguntou. Ouvi o ruído de uns papéis— Sua nova identidade, Tentil. Wing te

acompanhará ao DM-4. Pode partir.

—Sim, senhor —repôs Tentil, com a voz rota pela emoção. Certamente se sentia

afligido. Eu sabia como me sentiria se Valek me oferecesse uma vida em liberdade.

Quando os homens partiram, um doloroso silêncio se apoderou do despacho.

Temi-me que o som de minha respiração me delatasse. De repente, a cadeira do Valek se

deslizou sobre o chão. Então, ele bocejou ruidosamente.

—Bom, Yelena, pareceu-te interessante essa conversação?

Mantive-me imóvel, esperando que ele estivesse brincando. Entretanto, sua

seguinte frase não me deixou dúvidas.

—Sei que está detrás da mesa.

Pus-me de pé. Não havia ira em sua voz. Reclinou-se sobre a cadeira e tinha posto

os pés no escritório.

—Como há...? —comecei.

—Você gosta do sabão de lavanda e eu não seguiria com vida se não pudesse me

dar conta de que alguém forçou minhas fechaduras. Aos assassinos adoram as emboscadas

e isso de deixar cadáveres detrás de portas misteriosamente fechadas. Muito divertido.

—Não está zangado comigo?

—Não. Em realidade, sinto-me aliviado. Já estava perguntando quando registraria

meu escritório para procurar a receita do antídoto.

—Aliviado? —repeti, furiosa— De que tenha tentado escapar? De que tenha

rebuscado em seus papéis? Tão seguro está de que não vou conseguir nada?

—Não. O que me alivia é que vá seguindo os passos habituais dos intentos de

escapada e que não tenha inventado um plano diferente. Se souber o que está fazendo,

posso antecipar seu seguinte movimento. Se não for assim, poderia ser que escapasse algo.

Naturalmente, o fato de aprender a forçar fechaduras conduz a isto. Não obstante, dado que a

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fórmula do antídoto não está escrita e só a conheço eu, estou seguro de que não a

encontrará.

Cheia de fúria, apertei com força os punhos para não estrangular ao senhor

sabichão.

—Muito bem. Não tenho possibilidade de escapar. O que te parece isto? Deste ao

Tentil uma nova vida. Por que não a mim?

—Como sabe que não o tenho feito já? —replicou Valek, ficando de pé— Por que

crê que esteve um ano nas masmorras? Foi só a sorte a que provocou que você fosse a

seguinte quando Oscove morreu? Talvez simplesmente estava atuando em nossa primeira

reunião, quando pareceu que me surpreendia tanto de que fosse uma mulher.

Aquilo me resultava insuportável.

—O que é que quer, Valek? —perguntei— Quer que deixe de tentá-lo? Ou que me

contente com uma vida envenenada?

—De verdade quer saber?

—Sim...

—Quero-te... não como faxineira, mas sim como colaboradora leal. É inteligente,

rápida e está te convertendo em uma lutadora decente. Quero ver-te tão dedicada como eu

na hora de preservar a vida do Comandante. Sim, é um trabalho perigoso, mas, por outro

lado, um salto mal calculado sobre o cabo poderia te fazer romper o pescoço. Isso é o que

quero. Será capaz de me dar isso? Disse, me olhando atentamente aos olhos — Além disso,

aonde iria? Seu lugar é este.

Senti a tentação de ceder. Entretanto, sabia que se não morria vítima do veneno ou

assassinada pelo Brazell, a magia selvagem que havia em meu sangue terminaria por

explorar e me levaria com ela. A única marca física que deixaria no mundo seria uma

pequena ruga na fonte de poder. Além disso, sem o antídoto, estava perdida de todos os

modos.

—Não sei. Há muito...

—Que não me tem dito?

Assenti, incapaz de falar. Lhe falar sobre minhas habilidades mágicas só serviria

para que me matassem antes.

—Resulta difícil confiar e muito mais saber em quem fazê-lo —disse.

—E minha experiência foi horrenda. É uma de minhas debilidades.

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—Não, um de seus pontos fortes. Olhe ao Ari e ao Janco. converteram-se em seus

protetores muito antes de que eu os atribuísse para que fossem, tudo porque você os

defendeu diante do Comandante quando não o fez nem seu próprio capitão. Pensa no que

tem agora antes de que me dê uma resposta. Ganhaste-te o respeito do Comandante e de

Maren e a lealdade do Ari e Janco.

—E o que ganhei de ti, Valek? Lealdade? Respeito? Confiança?

—Tem minha atenção, mas, se me der o que quero, poderá ter tudo.

À manhã seguinte, os generais se prepararam para partir. Os soldados demoraram

quatro horas em reunir-se. Quatro horas de ruído e confusão. Quando por fim todos tiveram

passado pelas portas exteriores da muralha, pareceu que o castelo exalava um suspiro de

alívio. Então, o Comandante informou que a delegação de Sitia chegaria ao dia seguinte.

Suas palavras provocaram um enorme revôo. O silêncio inicial se viu seguido por uma

frenética atividade enquanto os serventes se dispunham a levar a cabo suas obrigações.

Embora me alegrava de que Mogkan e Brazell partiram, sentia-me sem forças.

Ainda não tinha dado a Valek sua resposta. Para seguir com vida, tinha que partir ao sul, mas,

sem o antídoto, não sobreviveria. O temor encheu meu coração ao compreender a realidade

de meu inevitável destino.

Ao dia seguinte, requereu-se minha presença na cerimônia de boas vindas que se

organizou para a chegada da delegação de Sitia. Eu sentia uma certa apreensão ante a

presença dos suboas. Parecia-me como se alguém estivesse dizendo que olhasse o que não

podia ter.

Desde que a sala do trono se converteu em um enorme despacho, o único lugar do

castelo que podia albergar aquela classe de acontecimentos era a sala de guerra do

Comandante. Uma vez mais, Valek teve que ficar com seu uniforme de ornamento e colocar-

se ao lado direito do Comandante enquanto eu esperava atrás deles.

Por fim, quando se anunciou a chegada da delegação, apareci um pouco para ver

melhor. Os de Sitia entraram na sala como se estivessem flutuando. Seus exóticos e coloridos

vestidos eram largos e lhes cobriam por completo os pés. Além disso, completavam seu traje

com máscaras animais adornadas com brilhantes plumas e peles. Detiveram-se diante do

Comandante e se abriram até formar um v. Sua líder, que levava a máscara de um falcão,

falou com voz muito formal.

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—Trazemo-lhe as saudações de seus vizinhos do sul. Esperamos que esta reunião

aproxime mais a nossos dois países. Para mostrar nosso compromisso com este empenho,

viemos preparados para nos mostrar ante você. Então, os cinco tiraram as máscaras com um

estudado movimento. Pisquei várias vezes de assombro, esperando que tudo trocasse

durante aqueles segundos de escuridão. Desgraçadamente, meu mundo tinha passado de

mal a pior. Valek me olhou com rosto resignado, como se ele tampouco pudesse acreditar o

giro que tinham dado os acontecimentos.

A pessoa que se ocultava sob a máscara do falcão era Irys. Sua líder era uma

maga professora que estava a uma curta distância do Comandante Ambrose.

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Capítulo 26

—Ixia lhes dá boas vindas a nossa terra e espera que todos possamos começar de

novo —anunciou o Comandante ante a delegação do sul.

Enquanto eu esperava atrás do Comandante, perguntei-me o que ocorreria aos de

Sitia quando Valek informasse ao Comandante de que Irys era uma maga. Preferi não pensar

no caos que ela poderia causar no castelo antes de partir e tratei de imaginar uma situação

mais favorável. Fracassei, me dando conta de que, provavelmente, aquele era o princípio do

fim.

Valek observou atentamente como os suboas e o Comandante intercambiavam

saudações mais formais. Pela atitude do Valek, adivinhei que Irys não tinha utilizado sua

magia. Depois de que concluíra a cerimônia oficial de boas vindas, acompanhou-se à

delegação a seus aposentos para que pudessem descansar de sua viagem e esperar ali o

festim da noite. O protocolo decretava que as galanterias e o entretenimento deviam preceder

às duras negociações.

Todos, à exceção do Comandante e Valek, partiram da sala de guerra. Eu fiz gesto

de partir também, mas Valek me agarrou pelo braço.

—Muito bem, Valek. Você dirá. Suponho que se trata de alguma perigosa

advertência, não? —perguntou o Comandante com um suspiro.

—A líder da delegação de Sitia é uma maga professora —disse Valek, molesto

pela atitude do Comandante.

—Era de se esperar. Como não poderiam saber que somos sinceros na hora de

querer estabelecer um tratado de comércio? Tudo isto poderia ter sido uma emboscada. É

lógico.

Sem mostrar preocupação alguma, o Comandante se dirigiu para a porta.

—Essa mulher não lhe preocupa? —insistiu Valek— Tratou que matar a Yelena.

O Comandante me olhou pela primeira vez desde que tínhamos entrado na sala de

guerra.

—Seria pouco inteligente matar à provadora de minha comida. Um ato assim

poderia interpretar-se como intento de assassinato e deter as negociações. Yelena está a

salvo... no momento.

Com isso, partiu da sala.

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—Maldita seja —sussurrou Valek.

—E agora o que? —perguntei eu.

—Tinha antecipado que um mago ou maga participaria deste encontro, mas jamais

tinha pensado que seria ela. Enquanto esteja aqui, Ari e Janco seguirão ocupando-se de ti

embora, se for isso o que quer, não haverá nada que eles ou eu possamos fazer a respeito.

Com o Mogkan tive sorte. Estava perto quando senti seu poder. Esperemos que essa mulher

se comporte como uma convidada enquanto esteja em nossas terras. Ao menos agora sei

onde estão os magos. Mogkan foi o que senti durante a reunião de generais. E a maga do sul

está agora no castelo. A menos que venham mais, estaremos a sós.

—E a Capitã Star?

—Star é uma charlatã. Suas afirmações de que é maga só são uma tática para

assustar a seus mexeriqueiros e evitar que se enfrentem a ela. Recordo-te que terá que

assistir ao festim esta noite. Um pesar, mas ao menos a comida deve ser boa. Ouvi que Rand

queria utilizar o Crioulo para uma nova sobremesa, mas o Comandante se negou. Outro

enigma, dado que Brazell o enviou em quantidades industriais e prometeu fazer o mesmo

com os outros generais. O pediam como se fora ouro. Sente-se estranha desde que deixaste

que tomá-lo? —perguntou-me.

Tinham passado três dias desde que tomei a última parte. Não recordava ter

notado sintomas físicos. O fato de me comê-lo tinha levantado o ânimo e tinha suposto um

incremento de energia para mim. Desejava seu doce sabor, especialmente naqueles

momentos, quando minhas oportunidades de ser livre eram mais reduzidas que nunca.

—Um certo desejo por tomá-lo, mas não se pode considerar vício —disse ao

Valek— Penso nisso de vez em quando e eu gostaria de tomar uma parte.

—Talvez seja muito cedo —comentou Valek, franzindo o cenho— Pode que ainda

o tenha no sangue. Informará-me se ocorrer algo?

—Sim.

—Bem. Até esta noite.

“Pobre Valek”, pensei. Tinha tido que ficar com seu uniforme de ornamento em três

ocasiões. No comilão, colocaram-se elaborados adornos para o festim. A sala estava muito

iluminada. Construiu-se uma plataforma para colocar a mesa principal em que a delegação do

sul, o Comandante e Valek estivessem sentados com seus melhores ornamentos. O resto,

estava sentado ao redor em mesas redondas, formando um círculo na sala. O espaço no

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meio ficava vazio. Em um rincão, uma pequena orquestra tocava música relaxante, o que

resultou uma surpresa. O Comandante desprezava a música, dado que a considerava uma

perda de tempo.

Eu tomei assento ao lado do Comandante Ambrose de modo que ele pudesse me

passar seu prato. Como era de esperar, a comida era maravilhosa. Rand tinha superado a si

mesmo. Por sua parte, Irys e os seus estavam colocados à esquerda do Comandante. Seus

formosos trajes tinham redemoinhos de cor que brilhavam à luz dos abajures. Irys levava um

pendente de diamantes com forma de flor, que reluzia sobre seu peito. Ignorou minha

presença, o que não me incomodou absolutamente. Depois que os criados recolhessem as

mesas, apagaram a metade dos abajures. A orquestra começou a tocar uma música mais

animada e, então, uns bailarinos disfarçados irromperam na sala, sujeitando paus ardendo

por cima de suas cabeças. Bailarinos de fogo! Realizaram uma complexa dança que deixou

todo mundo boquiaberto. Compreendi perfeitamente por que durante o festival sua loja tinha

estado sempre cheia.

Valek se reclinou em sua cadeira e me disse:

—Não acredito que tivesse passado as provas, Yelena. Provavelmente, a estas

alturas da dança já teria o cabelo em chamas.

—O que tem que mau em uma cabeça chamuscada pelo bem da arte? —brinquei.

Ele se pôs a rir. Todo mundo parecia estar muito contente. Esperei de todo coração

que o Comandante não esperasse outros quinze anos para celebrar outro festim.

Os bailarinos terminaram seu segundo baile e saíram da sala. Irys se levantou para

propor um brinde. Os de Sitia tinham levado seu melhor brandy. Irys serviu uma taça ao

Comandante, ao Valek e a si mesma. Não pareceu ofender-se quando o Comandante me

entregou sua taça.

Fiz que o líquido desse voltas na taça e aspirei o aroma. Tomei um pequeno sorvo

e saboreei o brandy e logo o cuspi ao chão. Entre arcadas e escarros, tratei de jogá-lo tudo.

Valek me olhou alarmado.

—Meu amor —sussurrei.

Valek atirou as outras duas taças e verteu seus conteúdos sobre a mesa. À medida

que meu corpo foi reagindo ao veneno, vi que Valek ia se convertendo em um ponto negro e

que as paredes se cobriam de sangue.

Eu flutuava em um mar vermelho. As cores pareciam flutuar e dar voltas ao meu redor. O som

do cristal quebrado sobre a pedra criou uma estranha melodia em minha mente. Navegava à

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deriva sobre uma balsa feita de cabelo branco encaracolado, que era empurrada por uma

forte corrente. A suave voz do Irys falou em meio daquela tempestade de cores.

—Estará bem... agarre-te a sua balsa. Poderá escapar a esta tormenta.

Despertei em minha habitação. Alguém tinha aceso um abajur e Janco estava

sentado em uma cadeira, lendo um livro. Aquilo resultava muito mais agradável que a última

vez que tinha provado “Meu amor”. Uma cômoda cama era preferível a jazer em um atoleiro

de meus próprios vômitos.

—Janco. Não sabia era capaz de ler —brinquei. Tinha a voz rouca e doíam a

cabeça e a garganta.

—Sou homem de talentos desconhecidos. Bem-vinda.

—Quanto tempo estive inconsciente?

—Dois dias.

—O que ocorreu?

—Depois de que te convertesse em uma louca? Ou refere-te ao depois que te

converteu-te em uma?

—Depois.

—Resulta surpreendente o rápido que se pode mover Valek —disse Janco com

admiração— Colocou a ti no chão enquanto punha a cortiça da garrafa envenenada e a

trocava por outra com um rápido movimento de mãos. Desculpou-se de sua estupidez e

serviu outras três taças para que essa bruxa do sul pudesse fazer seu brinde. Todo o

incidente se tampou tão rapidamente que só os da mesa principal se deram conta do ocorrido.

Bom, Ari também —acrescentou, tocando o cavanhaque— Não tirou os olhos de cima de ti

em toda a noite, por isso, quando caiu ao chão, levantamo-nos. Deslizamo-nos até chegar

detrás da mesa principal e ele te trouxe aqui. Ainda estaria a seu lado, mas eu lhe obriguei a

que se fosse dormir um pouco.

Isso explicava o fato de que minha balsa fosse de cabelo encaracolado, dado que

era assim como o tinha Ari. Sentei-me, mas a dor de cabeça se intensificou. Ao ver que havia

uma jarra de água sobre minha mesinha, servi-me um copo que esvaziei de um gole.

—Valek disse que teria sede. Esteve aqui em um par de ocasiões, mas esteve

muito ocupado com os suboas. Não posso acreditar que essa bruxa tivesse a audácia de

tratar de envenenar ao Comandante.

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—Não foi assim. É que não te lembra? Serve três taças da mesma garrafa. Deve

ter sido outra pessoa.

—A menos que estivesse disposta a suicidar-se para cometer o assassinato. Uma

morte rápida em vez de esperar em nossas masmorras a que a pendurassem.

—Pode ser —disse, embora me parecia pouco provável.

—Valek deve ser da mesma opinião. As conversações sobre o tratado seguiram

como se não tivesse ocorrido nada — comentou Janco, entre bocejos — Bom, agora que

volta a estar acordada, vou dormir um momento. Ficam quatro horas até que amanheça.

Descansa você também um pouco. Voltaremos pela manhã —acrescentou, me obrigando a

me deitar. Então, estudou-me atentamente, com o rosto cheio de indecisão— Ari me disse

que gritou muito enquanto ele te cuidava. De fato, disse que se Reyad seguisse com vida,

mataria-lhe sem duvidá-lo um momento. Pareceu-me que você gostaria de sabê-lo.

Com isso, Janco me deu um beijo fraternal na face e partiu.

Genial. Que mais sabia Ari? Como poderia eu enfrentar a ele pela manhã? De

momento, não podia fazer nada a respeito. Tratei de dormir um pouco, mas o estômago vazio

não fazia mais que protestar. Só podia pensar na comida.

Quando me decidi a correr o risco de ir procurar algo à cozinha, coloquei minha

navalha e me dirigi com pernas trementes à cozinha. Ali esperava encontrar um pouco de pão

sem que Rand me visse. Consegui o pão e estava cortando uma parte de queijo quando a

porta do Rand se abriu.

—Yelena —disse, muito surpreso.

—Bom dia, Rand. Só estava roubando um pouco de comida.

—Faz semanas que não te vejo —se queixou — Onde estiveste?

—Ocupada. Já sabe. Os generais, a delegação, o festim... Por certo, este foi

magnífico. Rand, é um gênio.

Rand pareceu animar-se um pouco. Resignei-me ao feito de que, se queria que ele

pensasse que seguíamos sendo amigos, teria que conversar um momento com ele. Coloquei

meu café da manhã sobre a mesa e aproximei um tamborete.

—Alguém me disse que estava doente —comentou, aproximando-se de mim.

—Sim. Um vírus estomacal. Não comi em dois dias, mas agora estou melhor.

—Espera, farei-te uns pasteizinhos.

Observei como mesclava os ingredientes e me assegurei de que não jogava

nenhum veneno. Quando os pasteizinhos estiveram a meu alcance, lancei a eles com

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completo abandono. A cena me resultava tão familiar que se dissolveu o desconforto entre

nós. Muito em breve estivemos conversando e rindo.

Até que suas perguntas se fizeram mais concretas, não compreendi que estava

tratando de tirar informação sobre o Comandante e Valek.

—Sabe algo sobre esse tratado do sul? —perguntou Rand.

—Não —disse com um tom tão duro que provoquei que ele me olhasse com

curiosidade— O sinto. Estou cansada. É melhor que volte para a cama.

—Antes de que vá, é melhor que leve estes grãos. Preparei-os que todas as

maneiras possíveis, mas seu sabor resulta horrível e irreconhecível.

Jogou-os em uma bolsa e foi comprovar os fornos. Ao ver como avivava o fogo,

tive uma idéia.

—Talvez não sejam para comer —disse— Talvez sejam uma fonte de energia.

—Bom, vale a pena tentá-lo.

Arrojou os grãos ao fogo. Esperamos um momento, mas não se produziram

repentinas chamas nem nenhum aumentou da temperatura. Enquanto Rand se ocupava de

seus pães, olhei as brasas, pensando que, no mistério dos grãos, já não ficavam opções.

Quando Rand voltou para a carga com suas perguntas, apartei os olhos do fogo.

Sentia uma pressão na garganta.

—É melhor que vá ou Valek se perguntará onde estou.

—Sim, vá. Notei que Valek e você estão agora muito unidos. Lhe diga de minha

parte que não mate a ninguém, sim? —disse, com a voz cheia de sarcasmo. Ao escutá-lo, eu

perdi o controle.

—Ao menos, Valek tem a decência de me informar que me envenenou —lhe

espetei sem poder me conter.

A expressão de seu rosto passou da surpresa à culpabilidade em um instante.

—Disse-lhe isso Star? —perguntou.

—Ah...

Não sabia o que dizer. Se dizia que sim, Star lhe confirmaria que eu lhe tinha

mentido e se dizia que não, insistiria em conhecer minha fonte. Fora como fora, descobriria-o.

Acabava de deixar ao descoberto as investigações secretas do Valek.

Felizmente, Rand não esperou a que eu respondesse.

—Teria que haver imaginado que lhe diria isso. Adora jogar malotes passados.

Quando você apareceu, não queria te conhecer. Quão único queria era o montão de dinheiro

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que Star me ofereceu para cancelar minha dívida se danificava a prova ao Valek. Então,

minha moralidade e o boa pessoa que você é complicaram as coisas. Vender informação

sobre ti e logo ter que te proteger sem que parecesse que estava te protegendo converteu

minha vida em um inferno.

—Sinto haver te incomodado. Suponho que, além de envenenamentos e

seqüestros, deveria te agradecer.

Rand esfregou o rosto com as mãos.

—Sinto muito, Yelena. Estava encurralado e não podia sair sem fazer danos a

alguém.

—Por que queria Star que me envenenasse?

—O general Brazell a encarregou. Isso sim que não deveria ser uma surpresa.

—Não... Rand, há alguém que possa te ajudar a sair desta confusão? Valek,

talvez?

—É obvio que não! Por que tem tão boa opinião dele? É um assassino. Deveria

odiá-lo por haver te dado o Pó de Mariposa. Eu o odiaria.

—Quem lhe há isso dito? Quem mais sabe? Pensei que só sabiam Valek e o

Comandante.

—Seu predecessor, Oscove, disse-me por que jamais tratava de fugir e não, não

lhe vendi essa informação a ninguém. Tenho meus limites. O ódio que Oscove sentia pelo

Valek rivalizava com o meu. Compreendi-o. Entretanto, sua relação com o Valek... Está

apaixonada por ele, verdade? —disse-me, inesperadamente.

—Isso é uma tolice —gritei.

Olhamo-nos mutuamente com a boca aberta, muito atônitos para dizer nada mais.

Então, um doce aroma a frutos secos alcançou o nariz. Rand também o notou.

Segui o aroma até o forno ao que tinha arrojado os misteriosos grãos. Ao abrir a porta, vi-me

assaltado pelo forte aroma de uma essência celestial. Crioulo.

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Capítulo 27

—Onde encontrou esses grãos? —perguntou-me Rand— São o ingrediente que

me falta para a receita do Crioulo. Não me ocorreu torrá-los para trocar seu sabor.

—Em um armazém do porão —menti. Não estava disposta a lhe dizer que Valek e

eu os tínhamos interceptado de caminho à nova fábrica do Brazell, que, certamente, não

produzia piensos a não ser Crioulo.

—Que armazém? —insistiu Rand, complemente desesperado.

—Não me lembro.

—Te esforce um pouco. Se posso fazer Crioulo, talvez não me transfiram.

—Aonde?

—Está me dizendo que Valek ainda não lhe disse? Leva querendo livrar-se de mim

da mudança de regime. Enviam-me à casa do Brazell para que Ving possa vir aqui. Não

durará nenhuma semana! —exclamou com amargura.

—Quando?

—Não sei. Meus papéis ainda não estão preparados, por isso ainda fica esperança

de impedi-lo. Se me pode encontrar esses grãos.

Acreditava que ainda éramos amigos. Inclusive depois de admitir que tinha tentado

me envenenar, ainda acreditava que eu seria capaz de fazer algo por ele.

—Tentarei-o —disse antes de partir precipitadamente.

Os primeiros raios do sol estavam despontando nas montanhas da Alma quando

cheguei à suíte do Valek sem que ninguém me visse. Graças a tênue luz, vi que Valek estava

me esperando sentado no sofá.

—Tão logo volta? —perguntou-me Valek— Uma pena. Estava a ponto de

organizar uma partida de busca de seu cadáver. O que ocorreu quando bateu na porta da

maga do sul para te sacrificar? Jogaram a patadas, pensando que foi muito parva como para

que perdessem seu tempo contigo?

Sentei-me em uma cadeira para escutar o bate-papo de Valek. Nenhuma desculpa

que eu lhe dissesse lhe satisfaria. Tinha razão. Tinha sido uma tolice sair sozinha, mas a

lógica e o estômago vazio eram como o azeite e a água. Não se mesclam. Quando terminou,

perguntei-lhe:

—Terminaste já?

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—Não vais refutar o que acabo de te dizer?

—Não.

—Nesse caso, terminei.

—Bem. Dado que já está de mau humor, talvez te diga o que ocorreu enquanto

estava na cozinha. Em realidade, duas coisas. Uma má e uma boa. Qual você gostaria de

escutar primeiro?

—A má. Isso sempre transmite a esperança de que a boa equilibre um pouco as

coisas.

Armei-me de coragem e admiti ter revelado sua operação de investigações

secretas. O rosto do Valek se endureceu.

—É tua culpa. Estava-te defendendo!

—Por proteger minha honra, deixaste ao descoberto meses de trabalho. Crê que

deveria me sentir adulado?

—Sim.

Não pensava me sentir culpada. Se não tivesse posto a prova minha lealdade com

o Star e logo me tivesse utilizado em sua investigação, não estaria naquela situação.

—Não tinha planejado realizar arrestos até finais de mês. Será melhor que comece

antes de que Rand tenha tempo de alertar ao Star. Não obstante, isto poderia nos beneficiar.

Acredito que Star está começando a suspeitar. Se a detiver agora, talvez descubra quem a

contratou para que pusesse o veneno na garrafa de Sitia.

—Star? Como?

—Ela tem empregado a um assassino do sul. Seria o único que teve a

oportunidade e a habilidade de fazê-lo. Estou seguro de que o envenenamento não foi o

resultado dos pontos de vista políticos do Star. Sua organização faria algo por um bom preço.

Devo descobrir quem arriscou tanto para comprometer à delegação. Bom, quais são as boas

notícias?

—Os grãos misteriosos são um ingrediente do Crioulo.

—Então, por que mentiu Brazell em sua solicitude? —disse Valek, pensando igual

a min na verdadeira natureza da fábrica do Brazell.

—Talvez porque importa os grãos de Sitia —sugeri— Isso seria ilegal, ao menos

até que o tratado de comércio esteja finalizado. Pode que tenha estado utilizando mais

matérias primas ou equipamento.

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—É possível, o que explicaria seu interesse por ter um tratado. Terá que te fixar

muito bem quando visitar a fábrica.

—O que?

—O Comandante preparou uma viagem ao DM-5 quando partirem os de Sitia. E,

onde vai o Comandante, você o acompanha.

—E você? Você vai também, verdade? —disse, cheia de pânico.

—Não. Me ordenou que permaneça aqui.

—Um e dois e três, quatro e cinco... Segue brigando assim e morrerá —cantarolou

Janco.

Eu estava imobilizada contra a parede. Minha fortificação caiu ao chão. Janco me

golpeou na têmpora com o seu, para enfatizar suas palavras.

—O que te passa? Normalmente não resulta tão fácil ganhar.

—Estou muito distraída —disse. Só fazia um dia que Valek tinha me informado dos

planos do Comandante.

—Então, o que estamos fazendo aqui? —perguntou Ari. Maren e ele nos estavam

observando.

—Prometo-lhes que me esforçarei um pouco mais na seguinte ronda. Janco, por

que alguma vez deixa de falar enquanto brigas?

—Ajuda-me com o ritmo.

—Não tiram o sarro os outros soldados?

—Não quando os derroto.

Começamos uma nova briga. Fiz um esforço maior por me concentrar, mas Janco

voltou a me derrotar.

—Agora está te esforçando muito. Planeja cada movimento de ataque. Delata-te —

me comentou— Por isso, eu te posso bloquear os golpes antes que os dê.

—Ensaiamos por uma razão. Os movimentos ofensivos e defensivos devem ser

instintivos —acrescentou Ari— Deixa que sua mente se relaxe, mas permanece alerta.

Bloqueia todas as distrações. Permanece centrada em seu oponente, mas não muito.

—É uma contradição! —gritei, cheia de frustração.

—Funciona —respondeu Ari. Respirei profundamente e tratei de apartar os

turbadores pensamentos de minha próxima visita ao distrito do Brazell. Concentrei-me na

solidez e suavidade de minha arma e tratei de estabelecer um vínculo com ela, como se

tratasse de uma extensão de mim mesma.

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Ao tocar a madeira de novo, senti uma ligeira vibração nos dedos. Minha

consciência fluía através do fortificação, me unindo por completo a ele.Começamos a terceira

ronda com uma sensação diferente. Instintivamente, comecei a adivinhar o que Janco

planejava. Um décimo de segundo antes de que ele estabelecesse um movimento, eu o

bloqueava com minha arma. Em vez de lutar por me defender, o fazia por atacar. Encurralei

ao Janco. Uma música começou a vibrar na mente e eu lhe permiti guiar meu ataque. Ganhei

a briga.

—Surpreendente —disse Janco— Seguiste o conselho do Ari?

—Ao pé da letra.

—Pode voltar a fazê-lo? —quis saber Ari.

—Não sei.

—Ponha a prova a mim.

Ari tomou sua fortificação e se colocou em posição. Eu esfreguei de novo o

fortificação com os dedos, deixando que minha mente retornasse à mesma zona mental em

que tinha estado antes. A segunda vez, resultou-me mais fácil.

Ari era um oponente mais complicado que Janco. O que lhe faltava de velocidade,

compensava-o com a força. Tive que modificar minha defesa e utilizei meu menor tamanho

para penetrar abaixo de um de seus cotovelos. Então, coloquei minha fortificação detrás dos

tornozelos e atirei. Caiu ao chão como um saco de batatas. Havia tornado a ganhar.

—Incrível —disse Janco.

—Toca-me —me desafiou Maren. Uma vez mais, voltei para a mesma zona

mental. Os ataques de Maren eram rápidos como os de uma pantera. Era uma oponente

muito boa, que aplicava a tática em vez da força e a velocidade. Apesar de tudo, também

consegui derrotá-la.

—Maldita seja! —exclamou— Quando uma estudante começa a derrotar a sua

professora, significa que a primeira já não a necessita. Parto-me.

Ari, Janco e eu nos olhamos.

—Está de brincadeira, verdade? —perguntei.

—Deixa-a. Já lhe acontecerá —comentou Ari— A menos que comece a derrotá-la

em cada briga.

—Não acredito que isso seja muito provável.

—Isso digo eu —apostilou Janco, que certamente também estava tratando de

animar a seu derrotado ego.

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—Já basta de brigas —disse Ari— Yelena, por que não faz algums katas para ir

relaxando e o deixamos por hoje?

Um kata era uma rotina de bloqueios e golpes defensivos e ofensivos. Cada uma

tinha um nome e se foram fazendo mais complexas à medida que se ia avançando. Eu

comecei com um mais singelo. Enquanto eu me exercitava, Ari e Janco estavam absortos em

sua conversação. Eu sorri, pensando que pareciam um casal de casados. Enquanto realizava

meus exercícios, notei que alguém estava me observando da porta com muito interesse. Era

Irys.

Levava um uniforme de falcoeira e o cabelo recolhido segundo as regras militares

da Ixia. Certamente tinha conseguido percorrer o castelo sem que ninguém a detivesse.

Olhei a meu guarda-costas e vi que seguiam perdidos em sua conversação e que

não faziam caso nem de Irys nem de mim. A intranqüilidade se apoderou de mim. Ao ver que

ela entrava no armazém, aproximei-me um pouco mais a meus companheiros.

—Não sentirá Valek sua magia? —perguntei-lhe, assinalando ao Ari e ao Janco.

—Ele está no outro lado do castelo, mas senti que alguém utilizava o poder antes

de que chegássemos. Uns momentos breves. Assim há ou houve outro mago no castelo.

—Não sabe você?

—Desgraçadamente, não.

—Mas sabe de quem se trata, verdade?

—Não. Há vários magos que desapareceram. Ou estão mortos ou escondidos.

Alguns são muito reservados, por isso nunca sabemos nada deles. Poderia ser qualquer um.

Eu só posso identificar a um mago se tiver estabelecido um vínculo com ele ou ela, tal e como

tenho feito contigo. O que lhe passa ao Comandante? —perguntou-me, depois de inspecionar

as armas que havia contra a parede— Os pensamentos virtualmente lhe escapam da

cabeça. É tão aberto... Eu poderia lhe tirar toda a informação que quisesse se não fora porque

vai contra nosso código de ética.

Eu não podia lhe responder a isso.

—O que está fazendo aqui? —quis saber.

Irys sorriu. Indicou o fortificação que eu tinha entre as mãos.

—O que faz você com essa arma?

Como não via razão alguma para mentir, expliquei meu treinamento.

—Como foi hoje? —perguntou-me.

—Pela primeira vez, derrotei a meus três companheiros.

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—Interessante —comentou Irys. Parecia contente.

—Por que está aqui? —insisti, depois de olhar ao Ari e ao Janco, que seguiam

perdidos em sua profunda conversação— Me prometeu um ano. Estou perto de sair

ardendo?

—Ainda fica tempo. No momento, estabilizaste-te, mas, como de perto está de vir a

Sitia?

—Não posso conseguir o antídoto, a menos que você lhe possa tirar a informação

da mente.

—Impossível. Entretanto, meus curandeiros dizem que se pode conseguir

suficiente antídoto para que dure um mês, há uma possibilidade de que lhe possamos tirar o

veneno do corpo. Vêem conosco quando partirmos. Tenho uma conselheira que é justo de

seu tamanho. Ela ficará sua uniforme e afastará ao Valek e a seus homens enquanto você

ocupa seu lugar. Com uma máscara posta, ninguém se daria conta.

A esperança despertou dentro de mim. O coração me acelerou. Tinha que me

tranqüilizar. Irys havia dito que existia a possibilidade de tirar o veneno do meu corpo, mas

não havia garantias. O plano de fuga parecia singelo, mas eu procurei possíveis falhas. Sabia

muito bem que não devia confiar por completo dela.

—O conselheiro Mogkan esteve aqui a semana passada —disse— É ele um de

seus espiões?

—Mogkan... Mogkan...

—É um homem alto, de olhos cinzas. Tem o cabelo comprido e o tem recolhido

com uma única trança. Valek me disse que tem poderes.

—Kangom! Que pouco original! Perdi-o de vista faz dez anos. Produziu-se um

grande escândalo sobre sua implicação em uma banda de seqüestradores. OH —sussurrou,

me olhando fixamente— Onde está agora?

—No DM-5. Lhe busca?

—Só se converte em um perigo para Sitia, mas isso explica por que estive

captando emanações de poder nessa direção —disse— De fato, há um débil fluxo de magia

no castelo. Poderia ser do Kangom... Ou Mogkan, embora não acredito. Ele não tem essa

aura de força. Provavelmente não seja nada de importância. Entretanto, hei sentido que

alguém absorvia poder recentemente. Bom, vem comigo?

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Talvez a magia do Mogkan não preocupasse a ela, mas a mim sim. Parecia existir

um vínculo entre a magia do Mogkan e o incomum comportamento do Comandante, mas não

podia entender por que.

Não sabia o que fazer. O fato de escapar sempre tinha sido um reflexo defensivo.

Partir ao sul oferecia minha melhor possibilidade de sobrevivência. Meses antes, teria

obstinado à possibilidade, mas naquele momento, parecia-me que era como abandonar o

navio muito cedo.

—Não. Ainda não.

—Está louca?

—Provavelmente, mas primeiro tenho que terminar uma coisa. Então, manterei

minha promessa e partirei a Sitia.

—Se seguir com vida.

—Talvez você possa me ajudar. Há algum modo no que possa proteger minha

mente de influências mágicas?

—Te preocupa Kangom?

—Muito.

—Acredito que sim. É o suficientemente forte para dirigi-lo —disse, me entregando

minha fortificação— Faz uma de seus katas, fecha os olhos e esclarece mente.

Comecei com uma de bloqueio.

—Imagine um tijolo. Coloca um tijolo no chão e logo faz uma fila deles. Utilizando

um morteiro imaginário, constrói outra fila. Segue construindo até que tenha uma parede tão

alta como sua cabeça.

Fiz o que Irys me dizia. Quando por fim terminei, tinha formado uma resistente parede mental.

—Basta —me ordenou— Agora, abre os olhos —acrescentou.

Minha parede desapareceu

—Agora, me bloqueie!

Uma música ressonou em minha cabeça, me afligindo.

—Imagina sua parede —me gritou Irys.

Meu muro se erigiu imediatamente. A música se deteve em seco.

—Muito bem. Sugiro que termine tudo o que tenha que terminar aqui e venha ao

sul. Com essa classe de força, se não conseguir controlar sua magia por completo, alguém

poderia tirar isso e utilizá-la, te convertendo em um escravo sem mente.

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Com isso, deu-se a volta e partiu do armazém. No momento no que a porta se

fechou, Ari e Janco terminaram sua conversação e piscaram como se se estivessem

despertando de um profundo sonho.

—Terminaste já? Quantas katas? —perguntou-me Ari.

Eu pus-me a rir e deixei o fortificação.

—Vamos, tenho fome.

Quando a delegação de Sitia partiu três dias depois, tive um repentino ataque de

pânico. Que diabos estava fazendo? Era a oportunidade perfeita para escapar ao sul, mas eu

tinha decidido ficar no castelo e me preparar para ir à casa do Brazell. Irys tinha razão. Estava

louca. Cada vez que pensava na viagem, o coração acelerava. O Comandante tinha

preparado tudo para sair ao dia seguinte. Comecei a preparar minhas provisões especiais

para a viagem. O rosto triste da Dilana me recebeu quando fui pedir-lhe roupa de viagem. Os

papéis do Rand já estavam preparados. Vinha conosco.

—Eu pedi um traslado, mas duvido que me concedam isso. Se esse imbecil se

casasse comigo, não estaríamos nesta situação.

—Ainda têm tempo de fazer a solicitude. Se passar, poderá viajar ao DM-5 para as

bodas.

—Não quer que ninguém saiba o que sente por mim. Preocupa-lhe que me

pudessem utilizar para vingar-se dele.

Dilana estava inconsolável. Nem sequer se alegrou quando lhe disse que, com o

novo tratado de comércio, poderia importar seda. Quando me deu a roupa, parti-me de sua

oficina sem ter conseguido animá-la.

A manhã seguinte amanheceu cinza e nublada. A estação fria estava começando, o

que normalmente indicava o fim das viagens, não o início. As neves provavelmente

manteriam nossa partida em casa do Brazell até que chegasse a estação das geadas. Tremi

só de pensá-lo. Valek me deteve antes de que me partisse de nossa suíte.

—Esta é uma viagem muito perigosa para ti. Tenta passar desapercebida e

mantém os olhos abertos. Questiona os pensamentos que tenha, porque poderiam não ser

teus —disse. Então, entregou uma cigarreira de prata— O Comandante tem sua dose de

antídoto, mas, se lhe esquecesse, aqui tem um fornecimento de apoio. Não diga a ninguém

que o tem e mantém oculto.

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Pela primeira vez, Valek tinha crédulo em mim.

—Obrigada.

O medo me roçou o estômago enquanto colocava a cigarreira em minha mochila.

Outro perigo que não tinha reconhecido. Que mais tinha passado por cima?

—Espera, Yelena, há uma coisa mais. Quero que tenha isto.

Estendeu a mão e nela vi a formosa mariposa de pedra que ele tinha esculpido. Os

pontos de prata reluziam maravilhosamente. Uma cadeia de prata pendurava de um pequeno

buraco que tinha no corpo. Valek colocou a cadeia ao redor do meu pescoço.

—Quando a esculpi, pensava em ti. Delicada na aparência, mas com uma força

que não se nota a primeira vista.

Senti uma estranha tensão no peito. Valek se comportava como se não fosse voltar

para ver-me. Seu medo por minha segurança parecia autêntico. Entretanto, preocupava-lhe

eu ou sua valiosa provadora de comidas?

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Capítulo 28

O séquito de viagem do Comandante Ambrose consistia de quase cinqüenta

soldados de sua guarda de elite. Alguns precediam à caravana, outros partiam a seu lado. Os

soldados também protegiam aos serventes, que precediam aos cavalos. O resto dos soldados

fechava o cortejo. Ari e Janco foram examinando a rota da viagem, por isso levavam horas de

adiantamento.

Avançávamos a passo rápido no frio ar da manhã. Eu tinha metido a mariposa do

Valek sob a camisa e me surpreendi tocando-a através do tecido em várias ocasiões. O

presente provocava um tumulto em meus sentimentos. Quando acreditava que já o conhecia,

ele voltava a me surpreender. Junto com minha mochila, também levava um fortificação, que

utilizava como se o necessitasse para caminhar. Alguns dos soldados me olhavam com certa

suspeita, mas não me importava. Rand se negava a me olhar aos olhos. Olhava para diante

em completo silêncio. Não demorou muito em ficar atrás. Sua perna lhe impedia de manter o

passo. Depois de nos deter para almoçar, seguimos até uma hora antes do pôr-do-sol. O

maior Granten, o oficial ao mando da expedição, queria montar o acampamento à luz do dia.

Umas espaçosas barracas se erigiram para o Comandante e seus conselheiros e duas

menores para os serventes. Descobri que compartilharia meu espaço com uma mulher

chamada Bria, que fazia recados e servia aos conselheiros do Comandante.

Acomodei-me na loja enquanto Bria se esquentava ao lado do fogo. Acendi um

pequeno abajur e tirei o livro sobre símbolos de guerra que tinha tomado emprestado do

Valek. Depois de decifrar o nome do sucessor, não tinha tido tempo de interpretar os símbolos

da navalha que Janco tinha me dado. Quando terminei de traduzir os seis símbolos, esbocei

um sorriso. Janco podia resultar muito irritante, mas, abaixo essa aparência, era um homem

muito doce. Quando Bria entrou na loja, guardei rapidamente o livro.

Uns conturbados sonhos fizeram que não descansasse muito aquela noite. À

alvorada, despertei completamente esgotada. Com o tempo que a procissão demorava a

comer e reagrupar-se, além disso, o fato de que havia menos horas de sol, estimei que a

viagem à casa do Brazell nos levaria uns cinco dias. Na segunda noite de viagem, encontrei

uma nota em minha loja. Era uma entrevista. À tarde seguinte, enquanto os soldados

montavam o acampamento, eu tinha que seguir um pequeno atalho que levava para o norte.

A mensagem ia assinada pelo Janco. Examinei cuidadosamente a assinatura, tratando de

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recordar se tinha visto alguma vez a caligrafia do Janco. Seria uma armadilha? Deveria ir ou

ficar no acampamento, onde estava a salvo? O que faria Valek naquela situação em

particular? A resposta me ajudou a formar um plano. Quando ouvi o sinal de que nos

detínhamos para passar a noite, esperei a que todo mundo estivesse ocupado para deixar o

claro. Quando ninguém podia me ver, tirei a capa e me pus ao reverso. Antes de partir do

castelo, tinha pedido a Dilana que me desse tecido cinza, que tinha costurado ao forro de

minha capa se por acaso tinha que escapar e me ocultar na paisagem invernal. Esperava que

aquela improvisada camuflagem me ajudasse a ocultar minha presença quando me

aproximasse do lugar da reunião.

Atei a fortificação às costas e coloquei a navalha na coxa direita. Então, agarrei

minha corda e meu gancho. Encontrei o atalho do norte. Em vez de ir andando por ele,

procurei uma árvore adequada e enganchei minha corda entre os ramos. O primeiro que me

preocupou foi o ruído que poderia fazer ao me mover entre os ramos, mas muito em breve

descobri que as árvores sem folhas só rangiam levemente sob meu peso. Quando me

aproximei do lugar, vi um homem alto, de cabelo escuro. Parecia inquieto e agitado. Era muito

magro para ser Janco. Então, deu-se a volta. Era Rand. O que estava fazendo ali? Rodeei o

claro. Ao descobrir que não havia ameaça alguma entre as árvores, baixei ao atalho, embora

deixei a corda pendurando da árvore. Por último, escondi minha mochila no tronco de uma

árvore.

—Maldita seja —disse Rand— Acreditava que não foste vir —acrescentou. Seu

esgotado rosto mostrava profundas olheiras.

—E eu acreditava que Janco era o que ia estar aqui.

— Queria explicar isso, mas já não há tempo, Yelena-afirmou, me olhando

fixamente aos olhos— É uma armadilha! Corre!

—Quantos? Onde? —perguntei, tirando a fortificação das costas.

—Star e dois gorilas. Estão muito perto. Supunha-se que te guiar até aqui me

reportaria o cancelamento de minha dívida —sussurrou Rand com lágrimas nos olhos.

—Pois tem feito um bom trabalho —lhe espetei— Vejo que cumpriste com seu

encargo.

—Não! —gritou— Não posso fazê-lo!. Corre!, Maldita seja, corre!... Não!

Rand me apartou para um lado. Algo me passou assobiando ao lado da orelha

enquanto caía ao chão. Rand caiu a meu lado, com uma flecha cravada no coração. O

sangue emanava abundantemente e empapava a camisa branca de seu uniforme.

Page 210: María v snyder 01 poison study

—Corre —sussurrou— Corre...

—Não, Rand. Estou cansada de correr.

—Me perdoe, por favor —suplicou, me agarrando a mão.

—Está perdoado.

Suspirou uma vez e então deixou de respirar. O brilho de seus olhos se apagou.

Cobri-lhe a cabeça com seu capuz.

—Se levante —me ordenou a voz de um homem.

Me apoiando em minha fortificação, obedeci. Brandamente, comecei a esfregar a

madeira, encontrando rapidamente minha zona de concentração.

—A zona está controlada, Capitã —disse o homem gritando para o bosque— Você

não te mova —acrescentou, referindo-se a mim, enquanto me apontava com sua arma ao

peito.

Ouviram-se passos. O homem apartou os olhos de mim para procurar a seus

companheiros. Eu ataquei.

Dava-lhe o primeiro golpe nos antebraços. A mola de suspensão lhe caiu das mãos

e se disparou para o bosque. O segundo golpe aterrissou na parte posterior dos joelhos, o

que lhe fez cair de bruços ao chão. Dali, olhou-me com uma expressão atônita no rosto. Antes

que pudesse reagir, golpeei-lhe no pescoço, lhe esmagando a traquéia. Quando olhei por

cima do ombro, vi que Star e outro homem se aproximavam rapidamente ao claro. Star

começou a gritar. Seu gorila tirou a espada. Eu pus-se a correr pelo atalho. Pesados passos

do homem ressoavam a minhas costas. Quando alcancei a corda, arrojei o fortificação ao

bosque e subi à árvore. A espada do homem me roçou as pernas. O fio cortou o tecido das

calças e o tato frio do aço me animou a subir mais às pressas. Enquanto subia a seguinte

árvore, lançou uma maldição. Eu me movia com rapidez pelas copas das árvores. Quando o

som de seus passos ficou atrás, encontrei um lugar no que me esconder. Envolvi-me em

minha capa e esperei.

O gorila não demorou para aparecer. Não longe de onde eu estava, deteve-se para

escutar e para examinar as copas das árvores. Os batimentos do coração se aceleraram.

Quando notei que estava debaixo de mim, atirei a capa e me lancei, lhe golpeando as costas

com os pés. Caímos ao chão. Eu me pus de pé antes que ele pudesse recuperar-se, então,

tirei-lhe a espada das mãos com uma patada, mas ele se mostrou mais rápido do que eu tinha

antecipado. Agarrou-me pelo tornozelo e me fez cair ao chão. Antes que eu pudesse reagir,

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senti seu peso em cima e suas mãos ao redor do pescoço. Enquanto me golpeava a cabeça

contra o estou acostumado e murmurou:

—Isto é por me dar problemas!

Então, começou a me apertar a garganta com os polegares.

Eu comecei a lhe atirar dos braços, tratando de apartá-los. Então, recordei minha

navalha. Rebusquei no bolso enquanto a vista começava a se pôr imprecisa. Nesse momento,

notei o suave tato da madeira. Agarrei com força a manga, tirei a navalha e apertei o botão. O

som da folha provocou medo nos olhos do homem. Antes que pudesse reagir, afundei-lhe a

navalha no estômago. Com um grunhido, ele incrementou a pressão que estava aplicando à

garganta. O sangue correu por meus braços, molhando minha camisa. Apesar da asfixia que

tinha, levantei a navalha e enfiei outra vez. Nesta ocasião, apontei diretamente ao coração. O

homem se desmoronou para diante e morreu.

Com um grande esforço, apartei-me do cadáver. Sentia-me como presa em um

sonho. Limpei a navalha na terra, encontrei minha fortificação e fui em busca de Star. Dois

homens. Acabava de matar a dois homens. Nem sequer tinha duvidado. O medo e a raiva se

instalaram no em meu peito, me rodeando o coração de uma capa de gelo. Star não tinha ido

muito longe. Estava esperando no claro. Seu vermelho cabelo destacava sobre o fundo cinza

do bosque. Muito em breve cairia a noite. Lançou-me um pequeno som de surpresa. Então,

fixou-se no sangue que eu tinha na camisa. Quando viu que eu não estava ferida, olhou a seu

redor procurando a seu gorila.

—Está morto —lhe disse.

Star empalideceu em seguida.

—Podemos solucionar tudo isto —suplicou.

—Não, não podemos. Se te deixo partir, retornará com mais homens. Se te levar a

presença do Comandante, teria que responder pela morte de seus gorilas. Não fica opção.

Dava um passo para ela. Tinha o corpo paralisado pelo medo. Tinha matado aos outros em

defesa própria. Matar premeditadamente seria mais difícil.

—Yelena, para!

Dava a volta para ver quem tinha me chamado. Um dos soldados do Comandante

se aproximava com a espada na mão.

Deveu dar-se conta de que eu estava boa para apresentar batalha porque se

deteve e embainhou sua espada. Então, tirou-se o chapéu de lã que lhe cobria a cabeça e

deixou solto seu cabelo negro.

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—Pensei que tinha ordens de ficar no castelo —disse ao Valek— Não suporá isso

um conselho de guerra?

—E eu que acreditava que seus dias de matar tinham terminado —replicou ele,

examinando o cadáver do gorila de Star— A ver o que te parece isto. Se você não disser

nada, eu tampouco. Assim os dois poderemos evitar a soga. Trato feito?

—E ela?

—Há uma ordem de arresto a seu nome. Pensou em algum momento levá-la ante

o Comandante?

—Não.

—Por que não? O assassinato não é a única solução a um problema. Foi essa

sempre sua maneira?

—Minha maneira! Perdoa, senhor Assassino, que ria. Vou recordar minhas lições

de história sobre como terminar com um monarca tirânico matando-o a ele e a sua família.

Valek me lançou um perigoso olhar. Então, decidi trocar de tática.

—Apoiei minhas ações no que acreditava que você faria se fosse objeto de uma

emboscada.

Valek considerou minhas palavras em silêncio durante uma incômoda porção de

tempo. Star parecia horroriza com nossa discussão. Não deixava de olhar a seu redor, como

se estivesse pensando escapar.

—Não me conhece absolutamente —disse Valek.

—Pensa-o, Valek. Se a levar ao Comandante e lhe explico os detalhes, o que me

ocorreria?

A expressão do rosto de Valek me valeu como resposta.

—Nesse caso, foi uma sorte para as duas que eu cheguei —comentou.

No momento em que Star punha-se a correr, Valek lançou um estranho assobio. A

mulher pôs-se a correr pelo caminho. Eu tratei de segui-la, mas Valek me disse que

esperasse. Duas formas se materializaram entre as árvores, a ambos os lados do caminho.

Agarraram a Star. A mulher gritou de surpresa.

—Levem ao castelo —ordenou Valek— Já me ocuparei dela quando retornar. E

enviem a alguém que recolha tudo isto. Não quero que ninguém se encontre com isto.

Imediatamente, os homens começaram a levar-se a Star.

—Esperem —disse — Tenho informação. Se me soltarem, direi-lhes quem

planejou danificar o tratado de comércio com Sitia.

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—Não te incomode —lhe espetou Valek— Vais me dizer isso de todos os modos.

Entretanto, se quer revelar o nome de seu patrão agora mesmo, poderemo-nos saltar um

interrogatório muito mais doloroso mais tarde, mas te advirto que mentir só pioraria sua

situação.

—Kangom —disse, muito a seu pesar— Levava um uniforme de soldado do DM-8.

—O general Dinno —disse Valek, sem surpresa.

—Descreve a esse Kangom —ordenei, sabendo que era o outro nome do

conselheiro Mogkan. Não obstante, não podia lhe dizer ao Valek como tinha descoberto esta

informação.

—Alto, com cabelo comprido e negro, recolhido em uma trança. Um canalha

arrogante. Quase o joguei a patadas, mas me mostrou um montão de dinheiro que não pude

rechaçar.

—Algo mais? —perguntou Valek.

Star negou com a cabeça. Valek estalou os dedos e os dois homens a levaram.

—Poderia ser Mogkan?

—Mogkan? Não. Brazell estava muito contente com a visita da delegação. Por que

ia querer pôr em perigo o tratado? Não tem sentido. Por outro lado, Dinno se mostrou furioso

com o Comandante. Provavelmente enviou a um de seus homens para contratar a Star.

Tratei de encontrar uma razão pela que Mogkan queria por em perigo o tratado

com Sitia, mas não achei nenhuma. Perguntei-me como poderia convencer ao Valek de que

Mogkan tinha contratado a Star.

Comecei a tremer. O sangue empapava o uniforme e as mãos. Sequei-me nas

calças e me pus a procurar minha capa. Entretanto, antes que pudesse por a capa Valek me

disse:

—É melhor que deixe essas roupas aqui. Montaria-se uma boa confusão se te

apresentasse para jantar coberta de sangue.

Retirei minha mochila de onde a tinha guardado e, enquanto Valek não olhava,

pus-me um uniforme limpo. Então, dirigimo-nos ao acampamento.

—Por certo, muito bem —me disse— Vi a briga. Não estava o suficientemente

perto para poder te ajudar, mas te defendeu bem. Quem te deu a navalha?

—Comprei-a com o dinheiro do Star —respondi. Em parte, era verdade. Não queria

colocar ao Janco em uma confusão.

—Muito apropriado.

Page 214: María v snyder 01 poison study

Quando chegamos, Valek se mesclou com os soldados enquanto eu me dirigia

rapidamente à loja do Comandante para provar sua comida.

Aquela noite, enquanto estava sentada junto ao fogo do acampamento, comecei a

reagir ante o ocorrido aquela tarde. Senti uma imensa pena pelo Rand e a melancolia se

apoderou de mim. Talvez seria melhor que partisse ao sul e deixar que Valek se ocupasse do

Comandante e do Brazell... As dúvidas me assaltaram de repente. Estaria alguém me

influenciando para que tivesse esses pensamentos? Erigi minha muralha de amparo e

consegui dissipar algumas dúvidas, mas não todas.

O desaparecimento de Rand não tirou o chapéu até a manhã seguinte. O maior

Granten, que acreditava que se escapou, mandou uma pequena partida para buscá-lo

enquanto outros íamos entrando no distrito do Brazell.

O resto da viagem transcorreu sem incidentes, à exceção do turbador feito de que,

quanto mais nos aproximávamos da casa, mais ausente parecia o Comandante. Tinha

deixado de dar ordens ou de mostrar interesse pelo que lhe rodeava. A faísca inteligente e

letal que adornava seu olhar ia desaparecendo com cada passo. Pelo contrário, eu me sentia

cada vez pior. À medida que avançávamos, convencia-me mais de que tinha sido um

profundo engano. Quando o pânico se apoderava de mim, refugiava-me atrás de meu muro

de amparo e centrava em meus pensamentos de sobrevivência.

A uma hora de caminho da casa do Brazell, o rico aroma do Crioulo flutuava quase

palpável no ar. Como precaução, eu me deslizei no bosque e, depois de tomar só o

imprescindível, escondi minha mochila e o fortificação em uma árvore.

Quando por fim chegamos à casa, os soldados exalaram um suspiro de alívio. Já

tinham entregue são e salvo o Comandante. A partir de então, poderiam descansar nos

barracões até que chegasse o momento de voltar para casa. Pelo contrário, meus

sentimentos eram completamente opostos. Enquanto seguia o Comandante e a seus

conselheiros ao despacho do Brazell, ia custando mais respirar. Ao entrar, Brazell nos

recebeu com um enorme sorriso. Mogkan o acompanhava. Coloquei em seu lugar meu

escudo mental e permaneci perto da porta.

—Cavalheiros, devem estar muito cansados —disse Brazell, referindo-se aos

conselheiros do Comandante— Minha ama de chaves os conduzirá a seus aposentos.

Enquanto os conselheiros partiam, tratei de partir com eles, mas Mogkan me

agarrou pelo braço.

—Ainda não —me disse— Para ti temos planos especiais.

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Alarmada, olhei ao Comandante. Carecia por completo de expressão. Tinha o olhar

perdido na distância. Era como uma marionete esperando que seu dono atirasse dos fios.

—E agora o que? —perguntou- Brazell ao Mogkan.

—Dissimularemos durante uns dias. Levaremo-lo a ver a fábrica, tal e como estava

planejado.

Manteremos contentes a seus conselheiros. Quando todo mundo esteja

enganchado, não teremos que fingir mais.

—E ela? —perguntou Brazell com satisfação. Eu me centrei na imagem de meu

muro de tijolos.

—Yelena —comentou Mogkan— aprendeste um truque novo. Tijolo vermelho, que

vulgar.

Entretanto… —Escutei um ruído, como o que pode fazer a pedra esfregando-se

contra a pedra.

—Há pontos débeis aqui e aqui —disse, assinalando no ar— E acredito que este

tijolo está solto...

O morteiro começou a desmoronar-se. Apareceram pequenos buracos em minha

parede mental.

—Quando tiver um momento, farei pedaços suas defesas —prometeu Mogkan.

—Por que perder o tempo? —perguntou Brazell, tirando a espada— A quero

morta. Agora mesmo.

—Quieto —lhe ordenou Mogkan— A necessitamos para ter ao Valek a raia.

—Mas se tivermos ao Comandante...

—É muito evidente. Terá que considerar a outros sete generais. Se matarmos ao

Comandante enquanto esteja aqui, suspeitarão. Jamais te converteria em seu sucessor.

Valek sabe, por isso não nos servirá ameaçar à Comandante. Entretanto, quem se preocupa

com uma provadora de comida? Ninguém menos Valek. Se ela morrer aqui, os generais

acreditarão que está justificado.

Mogkan se inclinou sobre o Comandante e lhe sussurrou ao ouvido. O

Comandante abriu sua maleta, tirou uma cigarreira e a entregou ao Mogkan. Meu antídoto.

—A partir de agora, terá que vir para mim para que te dê seu antídoto —disse

Mogkan, sorrindo.

antes de que eu pudesse reagir, alguém bateu na porta. Entraram dois soldados sem pedir

permissão.

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—Estes são suas escoltas, Yelena. Ocuparam-se bem de ti —comentou. Então,

voltou-se para os soldados— Não necessita que lhe deem um passeio para que o conheça

tudo. Nossa infame Yelena voltou para casa.

Capítulo 29

Examinei aos dois soldados e comprovei que estavam muito bem armados. Toquei

a navalha através do bolso, mas decidi que não podia fazer nada. Esperaria até que tivesse

mais possibilidades a meu favor. Os guardas indicaram que os acompanhasse. Lancei um

último olhar ao Comandante, mas nada parecia ter trocado em sua atitude.

Quando os guardas me levaram a uma pequena habitação da asa de convidados

em vez da as celas do porão, senti uma pequena quebra de onda de esperança. Passei em

uma delas uma semana depois de matar ao Reyad e odiava a idéia de voltar para aquelas

celas fedorentas e infestadas de ratos.

Depois que fecharam a porta com chave, tirei os punções com os que tinha

recolhido o cabelo. A fechadura era muito básica e não demoraria muito em abri-la.

Entretanto, antes de forçá-la, decidi utilizar um punção que tinha um pequeno espelho na

ponta para olhar por debaixo da porta. Pude ver que havia um par de botas a cada lado da

porta. Os guardas estavam montando guarda diante de minha habitação. Dirigi-me à janela.

Minha habitação estava no segundo andar. Se me sentia desesperada, podia saltar, mas no

momento decidi esperar.

No dia seguinte, me permitiu sair de minha habitação tão somente para provar as comidas do

Comandante. Depois do café da manhã, Mogkan me mostrou uma porção de meu antídoto.

—Se quiser isto, deve responder a uma pergunta.

—Isto é uma fanfarronada —repliquei— Se me quisesse morta, não estaria de pé

agora mesmo.

—Asseguro-te que se trata só de uma situação temporária. Simplesmente te

ofereço uma eleição. A morte por Pó de Mariposa é larga e feia enquanto que, por exemplo,

morrer degolada é só um momento de dor.

—Qual é a pergunta?

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—Onde está Valek?

—Não sei —disse. Era certo. Não havia tornado a vê-lo da briga do bosque.

Mogkan considerou minha resposta. Então, aproveitando sua distração, arrebatei-

lhe o vidro e tomei de um gole.

O rosto do Mogkan avermelhou de fúria. Agarrou-me pelos ombros e me empurrou

para os guardas.

—Levem a sua habitação.

Ali me perguntei o que estaria tramando Valek. Duvidava que estivesse ocioso.

Além disso, as perguntas do Mogkan confirmavam minhas suspeitas.

Durante minhas visitas ao Comandante nos dias sucessivos, comecei a reconhecer

que minha presença formava parte do espetáculo do Mogkan para evitar que os conselheiros

do Comandante suspeitassem. Brazell, por sua parte, fingia que o Comandante seguia dando

ordens.

Durante a visita à fábrica, me permitiu acompanhar ao grupo. Isto me surpreendeu

quase tanto como o fato de que nenhum dos conselheiros do Comandante protestasse de que

estivesse fabricando Crioulo em vez de penso para os animais, tal e como tinha refletido em

sua permissão. Limitavam-se a comer barras de Crioulo e lhes bastava assentindo a tudo e

dar a razão ao Brazell.

Os grãos se torravam em enormes fornos. Quando estavam preparados,

transportavam-se a outra zona em que uns trabalhadores partiam os grãos e tiravam uma

espécie de broto marrom escuro. Uns enormes paus de macarrão convertiam os brotos em

uma massa, que se mesclava com açúcar, leite e manteiga em enormes contêineres. Outros

trabalhadores removiam constantemente a mescla até que esta se convertia em um líquido

suave e espesso, que se vertia a seguir em moldes retangulares.

Apesar dos deliciosos aromas que se respiravam ali, a fábrica era um lugar triste e

sombrio. Durante a visita, examinei cuidadosamente as zonas de trabalho para comprovar

que não se vertiam ingredientes venenosos ou aditivos. Não encontrei nada.

Quando o grupo retornou à casa, observei que as animadas expressões dos

conselheiros desapareciam, para ver-se substituídas pelo mesmo olhar perdido que adornava

o rosto do Comandante. Isso devia significar que existia um vínculo entre o Crioulo e o fato de

sucumbir ante a magia do Mogkan. Certamente, o fingimento do Mogkan e Brazell terminaria

quando o primeiro tivesse o controle absoluto das mentes dos conselheiros. Quando isso

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ocorresse, meu lugar de alojamento pioraria notavelmente. Aquela noite, arrojei minha capa

pela janela e bati na porta imediatamente. Quando os guardas a abriram, disse:

—Necessito um banho.

Sem esperar resposta, saí decididamente ao corredor. Os guardas me seguiram.

Nos banheiros, um guarda me deteve no corredor enquanto seu companheiro olhava no

interior. Quando se assegurou de que estaria sozinha, deixaram-me passar.

No interior, dirigi-me à parede mais afastada da porta. Ali, oculta à vista de todos,

havia outra entrada. Os guardas trabalhavam ali, mas eu tinha crescido naquela casa.

Conhecia todos seus rincões, à exceção da suíte do Brazell e seu escritório.

Tratei de abrir a porta e me encontrei com a primeira surpresa. Estava fechada com

chave. Não obstante, não supunha nenhum problema. Tomei minhas punções e a fiz saltar

com facilidade. Então, descobri uma segunda e desagradável surpresa. Um dos guardas me

esperava ao outro lado. O soldado sorriu. Então, aproveitei a situação e lhe dava uma patada

na virilha. Então, pus-se a correr pelo corredor.

Saí pela porta sul, recolhi minha capa e me dirigi ao oeste para recuperar minha

mochila e minha fortificação. A brilhante luz da lua iluminava o atalho, mas meu verdadeiro

caminho não ficava tão claro. Sabia que não podia ajudar ao Comandante encerrada em uma

habitação, mas não estava segura do que podia fazer do lado de fora. Precisava falar com o

Valek. Como me pareceu que seria muito arriscado ir aos barracões, subi às árvores. Quando

soubesse que tinha escapado, buscaria-me ali.

Quando cheguei à zona em que se estava acostumado a instalar o festival de fogo,

detive-me. Amassei bem em minha capa e me apoiei contra uma árvore. Em uma ocasião

escutei o latido dos cães e gritos longínquos, mas ninguém se aproximou de minha

improvisada cama. Não conseguia dormir. Tinha muito frio e me sentia muito nervosa. Para

me tranqüilizar, imaginei os festivais de fogo que se celebraram ali. Perdi-me nesses

pensamentos, imaginando que voltava a assistir a eles. Tão vivos foram minhas lembranças

que desci da árvore e comecei a realizar minha rotina de exercícios, o que me ajudou a entrar

em calor. De repente, dava-me conta de que podia me pôr em contato com a natureza que

me rodeava e inclusive sentir a quão animais havia no bosque. Vi como um mocho seguia

desde uma das árvores os movimentos de um camundongo de campo. Uma mulher, que

estava acocorada detrás de uma pedra, observava-me. Me colocar no pensamento de Irys me

resultou tão fácil como me pôr um par de luvas. Seus pensamentos fluíam dentro de mim

como a seda. Eu recordava a sua irmã menor, Lily e ansiava retornar a Sitia com sua família e

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não estar na horrível e fria Ixia. A situação no norte se estava fazendo perigosa. Como maga

professora, não podia consentir o abuso do poder que se estava produzindo naquela zona.

Kangom, ou Mogkan, estava produzindo Theobroma em alarmantes quantidades. Também

tinha conseguido intensificar seu poder.

“Yelena, o que está fazendo em minha mente?”

“Não estou segura de como cheguei até aqui”.

—”Ainda não te deste conta? Projeta a mente quando luta. Por isso,

instintivamente, antecipa os movimentos de seus oponentes. Senti-te no castelo quando

lutava com seus amigos. Agora que aprendeste a refrear seu poder, deste o passo lógico de

expandi-lo além da zona que te rodeia...”

Minha surpresa rompeu nosso vínculo. Naquele momento, Irys saiu do bosque.

—Significa isso que não vou sair ardendo? —perguntei.

—Estabilizaste-te, mas não te fará menos perigosa a menos que receba um

adestramento adequado. Não pode perder seu potencial. Vêem o sul agora. Seus

perseguidores estão longe daqui...

—O Comandante...

—Está enfeitiçado. Não há nada que possa fazer. Certamente perdeu a mente para

sempre. Mogkan lhe esteve dando Theobroma. Cheirei-o assim que cheguei.

—Theobroma? Refere-te ao Crioulo, esse doce de aspecto marrom que Brazell

fabrica?

—Acredito que sim. Abre a mente às influências mágicas. Relaxa as defesas

mentais e permite o fácil acesso à mente de uma pessoa. Usamo-lo como ferramenta para

controlar situações nas que um aprendiz de mago está perto da substância. O Comandante

tem uma personalidade muito forte, muito resistente às sugestões da magia, mas a

Theobroma rompe essas barreiras, o que ajuda a um estudante quando está aprendendo.

Utilizá-lo para fazer-se com o controle da mente do Comandante é como se fosse uma

violação. Inclusive com a Theobroma, um mago não deveria poder alcançar a mente do

Comandante desde esta distância, mas Mogkan o tem feito. Encontrou um modo de

acrescentar seu poder. Acredito que a visita que Mogkan realizou ao castelo teve por objeto

encerrar-se na mente do Comandante para poder tirá-lo dali.

—O que podemos fazer para romper esse vínculo?

—Matar ao Mogkan, mas será difícil. É muito poderoso.

—Há alguma outra maneira?

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—Bloquear o fornecimento de poder do Mogkan poderia servir. Seguiria tendo sua

magia, mas não seria tão poderosa.

—Como podemos fazê-lo?

—Acredito que o que fez foi recrutar a uma série de magos para reunir seu poder

em si mesmo. Ou pode que tenha encontrado o modo de absorver mais poder sem romper o

equilíbrio... Diamantes —acrescentou, depois de pensá-lo um momento.

—Diamantes? —perguntei, atônita.

—Sim. Resulta muito caro, mas os diamantes reúnem e acumulam o poder como

as brasas guardam o calor. Talvez esteja utilizando diamantes para potencializar sua magia.

Necessitaria um círculo de diamantes do tamanho de um homem, o que não resulta fácil de

ocultar. Se pudéssemos encontrar este círculo, poderíamos bloquear seu poder ou, ao

menos, interrompê-lo o tempo suficiente para que você pudesse despertar o Comandante.

—E se a fonte é um grupo de magos? Como poderia reconhecê-los?

—Desgraçadamente, Ixia não dispõe de um uniforme para os magos —comentou

Irys, com a voz cheia de sarcasmo— Em vez de buscá-los, poderíamos procurar uma sala

vazia com o desenho de uma roda de carro pintado no chão. Para vincular o poder mágico,

cada mago deve estar perfeitamente alinhado ao redor de um círculo.

—Posso revistar a casa, mas necessitarei ajuda. Necessito ao Valek.

—O que precisa é um milagre.

—Pode dirigir ao Valek para cá?

—Já está a caminho. Os dois forjaram um vínculo muito forte, embora não sei se é

de origem mágica.... —comentou Irys, franzindo o cenho— É melhor que vá antes de que ele

chegue. Se descobrir a fonte do poder extra do Mogkan, entoa meu nome mentalmente em

um cântico. Eu te escutarei porque nós também criamos um vínculo. Tratarei de te ajudar com

o Comandante, mas não te prometo nada. Vou atrás do Mogkan.

Com isso, Irys desapareceu. Enquanto esperava ao Valek, tratei de pensar no

modo de encontrar a fonte de poder do Mogkan. Efetivamente, tal e como Irys havia dito,

necessitaria um milagre.

Para me distrair enquanto esperava, olhei para meu redor. Tinham passado dois

anos da última vez que estive ali. Recordei que tinha enterrado em alguma parte a medalha

que ganhei na competição de acrobacia para que não caísse nas mãos do Reyad. Como

prova, tratei de utilizar meus poderes mágicos para encontrá-la. Percorri o terreno palmo a

palmo. Estava começando a me aborrecer quando, de repente, as novelo de meus pés

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ficaram ao vermelho vivo. Quando segui andando, esfriaram-se. Ao voltar para lugar no que

tinha estado antes, esquentaram-se de novo.

Tirei o gancho da mochila e comecei a escavar. Meus esforços deixaram ao

descoberto um pouco de tecido. Segui escavando e, muito em breve, voltei a ter entre minhas

mãos a apreciada medalha. Tinha perdido o brilho e estava suja. A cinta estava rasgada e

manchada. Apertei a medalha contra meu peito e senti o calor que emanava dela, como se

fosse um amuleto. Limpei-a um pouco e pendurei ao pescoço, junto com a mariposa do

Valek.

—Não é o melhor esconderijo, não te parece? Estão lhe procurando. Por que

fugiste?

Rapidamente, contei ao Valek tudo o referente ao Comandante, ao Mogkan, à

fábrica e aos conselheiros, esperando que ele tirasse as mesmas conclusões que eu.

—Quer dizer, está utilizando o Crioulo para fazer-se dono de suas mentes.

Entretanto, de onde tira o poder?

—Não sei. Temos que registrar a casa. Eu cresci nela. Conheço-a bem. Quando

começamos?

—Agora. Ficam quatro horas até o alvorada. O que é exatamente o que estamos

procurando?

Quando lhe contei tudo o que Irys me tinha explicado sem lhe revelar a fonte que

me tinha contado isso, Valek franziu o cenho, como se quisesse me interrogar a respeito.

Entretanto, guardou silêncio e nos dirigimos aos barracões.

Eu esperei fora enquanto vestia sua malha negra. Tirou uma camisa negra para

que eu pusesse sobre a vermelha de meu uniforme. Além disso, levava um discreto abajur

sem acender. Como minha capa resultaria algo molesta, escondi-a entre os matagais.

Encontramos uma porta perto da asa dos serventes. Valek acendeu o abajur e

deixou que escapasse só um pequeno raio de luz. Já no interior da casa, eu tomei a dianteira.

Meu interesse principal se centrava na zona dos experimentos do Reyad, sobre tudo em seu

laboratório. Dispunha de uma asa inteira e havia portas que sempre tinha tido fechadas com

chave durante o tempo no que eu fui seu rato de laboratório.

Enquanto procurávamos, os horrores de antigamente se apoderaram de mim.

Entramos no laboratório e a só visão dos instrumentos que penduravam das paredes me

acelerou os batimentos do coração. A sala parecia uma câmara de tortura em vez de um lugar

para experimentos. Sentia-me como um animal apanhado. Queria sair correndo, fugir. Por

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que tinha tido que levar ao Valek ali? Depois de tudo, certamente o círculo de poder estava

perto das habitações do Mogkan, não ali.

Valek não havia dito nenhuma palavra desde que acendeu o abajur. No corredor

que havia frente à porta do dormitório do Reyad, senti que uma força física me impedia de

entrar. Os músculos me tremiam. Um suor frio me cobria todo o corpo. Eu esperei fora

enquanto Valek entrava. Não queria voltar a ver o diabólico baú no que Reyad guardava seus

“brinquedos”. Se o queimava, cessariam meus pesadelos?

—Não se eu posso impedi-lo —disse o fantasma do Reyad, materializando-se a

meu lado.

Dava a volta muito sobressaltada. Sem que pudesse evitá-lo, um grito me escapou

dos lábios.

—Acreditava que tinha desaparecido para sempre —repliquei.

—Jamais, Yelena. Sempre estarei a seu lado. Meu sangue te manchou a alma.

Não tem possibilidade alguma de lavá-la.

—Eu não tenho alma.

—Sua alma está coberta com o sangue de suas vítimas, por isso não pode vê-la.

Quando morrer, essa pesada essência manchada de sangue se afundará no fundo da terra e

ali arderá por toda a eternidade por seus crimes.

—Diz-o a voz da experiência...

Naquele momento, Valek saiu da habitação do Reyad. Com o rosto pálido como a

morte, olhou-me durante um momento com uma expressão de horror tal que me perguntei se

teria ficado mudo. Por fim, fechou a porta e passou ao lado do fantasma sem vê-lo e se

deteve frente à seguinte porta, que estava fechada com chave. Ali, inclinou a cabeça e cobriu

o rosto com uma mão. Eu me esqueci do Reyad e segui ao Valek. Continuamos com nossa

busca, mas resultava evidente que, à exceção do laboratório, a asa estava completamente

abandonada. Ficavam três salas por examinar. O conteúdo de uma delas reclamou toda

minha atenção. Em seu interior, dúzias de mulheres e uns quantos homens se encolheram ao

notar o raio de luz do abajur do Valek. O cabelo gordurento obscurecia seus sujos rostos.

Seus emaciados corpos estavam só talheres com farrapos. Nenhum deles falou nem gritou.

Horrorizada, vi que estavam encadeados ao chão. Em círculos. Um círculo exterior e dois

círculos interiores com linhas pintadas entre eles.

Quando Valek e eu entramos na sala, o fedor de corpos sujos e de excrementos se

apoderou de nós. Valek começou a lhes fazer perguntas, que se responderam com silêncio.

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Eu comecei a reconhecer alguns dos rostos. Tinham vivido no orfanato comigo.

Eram as garotas e meninos que se graduaram” e que se supunha que partiram da casa. Uma

moça, de cabelo vermelho, fez-me gritar de dor.

Os olhos de Carra não mostraram sinal algum de inteligência enquanto lhe acariciei

o ombro e sussurrei seu nome. A menina alegre que eu tinha conhecido se converteu em uma

quebrada mulher, vazia e sem espírito.

—Meus alunos —disse Reyad, voltando a aparecer— Os que não falharam...

—E agora o que? —perguntei ao Valek com voz tremente.

—Estão presos —respondeu Mogkan.

Valek e eu nos demos a volta ao uníssono. Mogkan estava na porta. Valek se

lançou contra ele com os olhos cheios de fúria. Antes que pudesse alcançá-lo, Mogkan se

tornou a um lado, provocando que Valek caísse ao chão. Eu me apressei a sair da sala para

ajudá-lo.

Como um covarde, Mogkan estava detrás de oito guardas. As pontas das espadas

de todos eles se dirigiam ao peito do Valek, a poucos centímetros de sua pele.

Page 224: María v snyder 01 poison study

Capítulo 30

Enquanto as pontas das espadas cravavam em minhas costas, observei ao Valek.

Esperava que ele ficasse em ação durante a miserável viagem para as celas do Brazell.

Esperei que ficasse em movimento enquanto nos despiam e nos revistavam, tendo que

suportar a humilhação do contato com aquelas ásperas mãos enquanto confiscavam minha

mochila, minha navalha e meu colar. Perder minha roupa não me doeu tanto como perder a

mariposa do Valek e meu amuleto. Continuando, levaram-nos a prisão e nos colocaram em

celas contíguas. Contive o fôlego ao escutar o som da fechadura. Os soldados nos atiraram a

roupa através dos barrotes antes de partir, nos deixando perdidos na escuridão. Eu me vesti

rapidamente. Ali estava de novo. Um pesadelo feito realidade. Aquele aroma rançoso me

saudou de novo. O ar estava tão viciado que demorei um momento em me dar conta de que

fomos os únicos ocupantes.

—Valek?

—O que?

—Por que não enfrentou aos guardas? Eu teria te ajudado.

—Adula-me que confie tanto em mim, mas oito homens armados e suas

correspondentes espadas me apontando ao peito é muito. Quatro, talvez, mas oito...

—Forçamos as fechaduras para escapar ?

—Isso seria fenomenal, se tivéssemos algo com o que fazê-lo... Era esse seu

destino? —perguntou, depois de uma pequena pausa— Se não tivesse matado ao Reyad,

teria terminado encadeada ao chão?

A imagem daqueles cativos voltou a me atormentar. Pela primeira vez me alegrei

de ter acabado com o Reyad. Efetivamente, Mogkan absorvia o poder daquelas pessoas.

Brazell, Reyad e Mogkan deviam procurar pessoas com potencial mágico. Então, enquanto

experimentavam com os escolhidos, Mogkan lhes apagava a mente e os convertia em

quebrasse das que podia extrair seu poder.

—Acredito que Brazell e Reyad queriam me reduzir a esse estado mental, mas eu

resisti —disse. Então, expliquei-lhe minha teoria sobre os cativos ao Valek.

—Me conte o que te passou.

Depois de uma pausa, a história começou a fluir de meus lábios, ao princípio em

retalhos, mas logo em toda sua extensão. As lágrimas me caíam abundantemente pelo rosto.

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Não economizei nenhum detalhe nem tratei de lhe tirar horror às partes mais desagradáveis.

Contei ao Valek todo o vivido durante aqueles dois anos de horror, as humilhações, os

torturas, os jogos cruéis e, por último, a violação que precedeu ao assassinato. Assim,

purguei-me do sangue do Reyad que cobria minha alma. Senti-me bem por isso.

Valek permaneceu em silêncio. Por fim, sua voz cristalizou e disse:

—Brazell e Mogkan serão destruídos.

Eu não sabia se tratava-se de uma promessa ou de uma ameaça. Então, como se

tivessem escutado seus nomes, Brazell e Mogkan se apresentaram nas masmorras.

Escoltavam-os quatro guardas com abajures acesos.

—Me alegro de voltar a ver-te aonde deve estar —me disse Brazell— Hei sentido

a tentação de molhar as mãos com seu sangue, mas Mogkan me informou do destino que te

espera se não receber seu antídoto —acrescentou, sorrindo de satisfação— Ver como a

assassina de meu filho se retorce de dor será muito melhor. Deverei te visitar mais tarde para

escutar seus gritos. Se me suplicar isso, talvez te ajude a morrer, embora só seja para poder

respirar o aroma quente de seu sangue. Quanto a ti, Valek, desobedecer uma ordem direta se

castiga com a pena capital. O Comandante Ambrose assinou sua pena de morte. Sua

execução se levará a cabo amanhã ao meio-dia. Acredito que farei que me dê sua cabeça.

Converterá-te em um bonito elemento de decoração para meu escritório quando me converter

em Comandante.

Entre risadas, os dois partiram. A escuridão em que ficamos perdidos resultou mais

pesada que antes. As emoções que sentia passavam do terror ao desprezo mais absoluto.

Dava uma patada aos barrotes da cela e comecei a golpear as paredes.

—Yelena, te tranqüilize. Dorme um pouco. Necessitará as forças mais tarde.

—Sim, claro. Todo mundo deveria estar descansado para morrer —repliquei.

Então, lamentei minha dureza ao recordar que Valek também enfrentava à morte— O

tentarei.

Deitei-me na suja palha, sabendo que não poderia descansar. Como podia alguém

dormir em suas últimas horas de vida?

Aparentemente, eu.

Despertei com um grito. O pesadelo de ratos se transformou em realidade. Tinha

um enorme sobre a perna. Dava-lhe uma patada que o mandou contra a parede.

—Dormiste bem? —perguntou-me Valek.

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—Melhor em outras ocasiões. Meu companheiro de sonhos roncava —brinquei—

Quanto tempo estive dormindo?

—Resulta difícil sabê-lo sem o sol, mas eu diria que está a ponto de ficar sol.

Eu tinha recebido minha última dose de antídoto no dia anterior pela manhã. Isso

significava que tinha até o dia seguinte pela manhã, mas os sintomas começariam certamente

muito antes.

—Valek, tenho uma confissão...

De repente, os músculos do estômago contraíram com tal severidade que me senti

como se alguém estivesse tratando de me arrancar ele.

—O que sente?

—Uma forte dor de estômago. É o começo?

—Sim. Começam muito lentamente, mas muito em breve as convulsões serão

contínuas.

Ao notar outra forte dor, me acocorei no chão. Quando passou, preparei-me sobre

a palha do chão, esperando o seguinte assalto.

—Valek, fale comigo. Necessito algo que me distraia.

—Pois te direi uma coisa que talvez te console. Não existe nenhum veneno

chamado Pó de Mariposa.

—Como diz?

—Vais querer morrer, a desejar que já estivesse morta, mas, ao final, seguirá com

vida.

—Por que me diz isso agora?

—A mente controla ao corpo. Se acredita que vais morrer, teria morrido só por essa

crença.

—E por que esperaste até agora para me dizer isso? Espetei-lhe, cheia de fúria.

—Uma decisão tática.

Tratei de compreender ao Valek. Decidi que, talvez, durante o dia nos teria

apresentado a oportunidade de escapar. Nesse caso, Valek não teria tido que me contar a

verdade.

—E as retorções que sinto?

—É síndrome de abstinência.

—Do que?

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—De seu suposto antídoto. É uma beberagem muito interessante. Eu o utilizo para

provocar os vômitos. À medida que passa o tempo, produz fortes dores de estômago que

duram um dia inteiro. Se beber com continuidade, os sintomas não se manifestam até que se

deixa de tomar.

—Como se chama? —perguntei, recordando os livros que tinha estudado.

—Susto Branco.

—E o Pó de Mariposa? —quis saber, mais tranqüila dado que conhecia que não ia

morrer. Este fato me ajudou a suportar os dores mais estoicamente.

—Não existe. Eu o inventei. Soava-me muito bem. Necessitava algo para evitar

que os provadores de comida escapassem sem ter que utilizar guardas nem portas fechadas.

—Sabe o Comandante que é uma mentira? —inquiri. Se ele sabia, Mogkan

também estaria à corrente.

—Não. Ele acredita que foste envenenada.

Durante aquela noite, resultou-me difícil acreditar que não tinha nenhum veneno no

corpo. As dores resultavam insuportáveis. Não fazia mais que percorrer a cela, gritando e

vomitando.

Por fim, o esgotamento me levou a ficar adormecida.

Despertei deitada sobre o chão da cela.

Tinha o braço direito estendido através dos barrotes. Surpreendeu-me mais o fato

de que estivesse na mão do Valek do que estivesse viva.

—Yelena, encontra-te bem? —perguntou ele, com certa preocupação.

—Acredito que sim.

De repente, a porta da prisão se abriu com um forte estrondo.

—Te faça a morta —me sussurrou Valek, me soltando a mão— Tenta que se

aproximem de minha cela —acrescentou, enquanto dois guardas entravam na masmorra.

—Maldita seja! O aroma que há aqui é pior que o das latrinas depois da festa da

cerveja —disse um dos guardas.

—Crê que está morta? —perguntou o segundo.

Tinha o rosto contra a parede, mas fechei os olhos de todos os modos e contive o

fôlego enquanto a luz do abajur me percorria o corpo.

O guarda se inclinou para me tocar a mão esquerda que, ao não ter estado em

contato com a do Valek, estava geada.

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—Fria como a ferrugem do tigre de neve. Tiremos a daqui antes de que comece a

apodrecer-se. Se cre que agora cheira mau...

A porta da cela se abriu. Eu me concentrei em me fazer de morta enquanto o

guarda me tirava pelos pés. Quando passávamos por diante da cela do Valek, agarrei os

barrotes com as mãos aproveitando a penumbra que reinava a nível do chão.

—Espera um momento. Enganchou-se.

—Com o que? —perguntou o que levava o abajur.

—Não sei. Retorna aqui com essa maldita luz.

Eu me soltei e enganchei o braço entre os barrotes da cela.

—Lhe aparte —disse o guarda ao Valek.

Começou a tirar o braço com força. Então, soltou um grunhido. Abri os olhos a

tempo para ver como a luz do abajur se apagava quando esta caiu contra o chão.

—Que diabos? —exclamou o que tinha arranca-rabo pelos pés.

Separou-se dos barrotes do Valek. Eu dobrei as pernas e me aproximei de suas

botas. Ao sentir que eu lhe agarrava os tornozelos, gritou com força. Então, tropeçou e caiu.

O horrível som do osso rompendo-se contra o chão não foi o que eu esperava. Pus-me de pé.

Ao escutar o tinido das chaves, voltei-me e vi o Valek acendendo o abajur. O outro

guarda estava apoiado contra os barrotes. Tinha a cabeça colocada num ângulo pouco

natural. Eu olhei ao outro soldado e vi que tinha quebrado a cabeça contra o chão. Ao ver o

enorme atoleiro de sangue, pensei que tinha matado a outro homem. Comecei a tremer.

Tinha-me convertido em uma assassina sem coração? Sentia Valek remorsos quando tirava

uma vida?

Tão eficaz como sempre, Valek tirou as armas aos soldados mortos.

—Espera aqui —me ordenou. Então, abriu a porta principal das masmorras e saiu.

Escutaram-se gritos e o som de uma briga. Não havia culpabilidade nem remorso

algum no caso do Valek. Ele fazia o que tinha que fazer para ganhar.

Quando me indicou que me reunisse com ele, vi que tinha o rosto, o peito e os

braços manchados de sangue. Havia três guardas, ou inconscientes ou mortos, tombados

sobre o chão. Minha mochila estava sobre uma mesa, sobre a qual estavam pulverizados

todos seus conteúdos. Recolhi tudo enquanto Valek abria a porta que ficava para alcançar a

liberdade. Quando tive a mariposa e meu amuleto pendurados do pescoço, senti-me muito

otimista.

—Maldita seja...

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—O que ocorre, Valek?

—O Capitão deve ter a única chave desta porta. Abrirá-a quando chegar o

momento de fazer a mudança de guarda.

—Prova com estes —lhe disse, lhe entregando minhas punções. Ele sorriu.

Rapidamente abriu a fechadura e apareceu ao exterior.

—Perfeito. Não há guardas. Vamos —sussurrou.

Então, agarrou-me pela mão e deu a volta do que significava nossa única saída.

Conduziu-me à prisão, detendo-se para deixar completamente aberta a porta das celas.

—Está louco? —perguntei-lhe, ao ver que me levava a última cela— A liberdade

não está por aqui.

—Confia em mim. Este é o lugar perfeito para nos esconder. Muito em breve

descobrirão o ocorrido e enviarão partidas de busca por toda parte. Quando todos os

soldados tenham abandonado a casa, sairemos daqui. Até esse momento, esconderemo-nos.

Depois de apagar o abajur, fez-me deitar sobre a palha. Eu me acocorei de flanco,

de costas a ele. Então, Valek nos cobriu com palha e me tomou entre seus braços. Eu me

estiquei ao notar o contato, mas seu calor corporal me fez entrar em calor e muito em breve

me relaxei.

A comoção que se produziu quando chegou o conhecimento de nossa fuga foi

ensurdecedora. Escutavam-se vozes e gritos por toda parte. Organizaram-se partidas de

busca, mas Brazell e Mogkan não pareciam de acordo sobre que direção deviam tomar.

—Valek provavelmente se retirará a um território que conheça bem —afirmou

Brazell.

—Entretanto, o sul é o mais lógico. Nós temos o Comandante. Não podem fazer

nada. Fogem para salvar a vida. Tomarei um cavalo e registrarei o bosque com minha magia.

Quando a prisão ficou em silencio por fim e esteve vazia durante umas horas, eu

comecei a me sentir inquieta.

—Podemos partir já?

—Ainda não. Acredito que ainda é de dia. Esperaremos até que escureça.

Para ajudar a que passasse o tempo, perguntei ao Valek como tinha começado sua

relação com o Comandante. Depois de uma larga pausa, durante a qual me arrependi de

minha curiosidade, ele tomou a palavra.

—Minha família vivia na província do Icefaren, antes que esta adotasse o nome do

DM-1. Um inverno particularmente duro, provocou que a casa que albergava o negócio de

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peles de meu pai desmoronasse, lhe destroçando todas suas ferramentas. Necessitava outras

para poder seguir trabalhando, mas os soldados que vieram a minha casa para recolher o

dinheiro dos tributos não escutaram as razões. Naquela época, eu só era um menino, mas

tinha três irmãos maiores. Todos eram fortes e grandes. Quando meu pai disse aos soldados

que se pagava os impostos não teria dinheiro para dar de comer a sua família, eles mataram

a meus irmãos. Puseram-se a rir e disseram a meu pai que já tinha o problema solucionado

porque tinha três bocas menos que alimentar. Naturalmente, eu queria me vingar, mas não

dos soldados. Eles só eram mensageiros. Eu queria ao Rei. O homem que tinha permitido

que seus soldados assassinassem a meus irmãos em seu nome. Aprendi a brigar e estudei a

arte de matar até que me converti em um homem invencível. Comecei a viajar e utilizei

minhas habilidades para ganhar dinheiro. Os da classe alta eram tão corruptos que me

pagavam para matar-se uns aos outros. Então, encarregaram-me que matasse a um jovem

chamado Ambrose, cujos discursos incitavam à rebelião e que estavam pondo muito nervosos

à realeza. Tinha desaparecido com um exército cada vez mais numeroso e realizava

operações secretas contra a monarquia. O pagamento que me deram para matar ao Ambrose

era muito significativo. Tendi-lhe uma emboscada, esperando que poderia matá-lo antes de

que se desse conta. Entretanto, ele me parou o golpe e me encontrei lutando para salvar a

vida. Quando perdi, em vez de me matar, Ambrose me gravou uma letra c no peito com minha

própria faca, por certo, o mesmo que usei para matar ao Rei. Então, Ambrose se declarou

meu Comandante e anunciou que eu trabalhava para ele. Estive de acordo e lhe prometi que

se me facilitava a aproximação ao Rei para que eu pudesse matá-lo, seria-lhe leal para

sempre. Ao longo de todos estes anos, vi-o ir alcançando seus objetivos um a um sem

excessos nem violência. O poder e a avareza não conseguiram lhe corromper. É muito leal

aos seus e não houve ninguém no mundo ao que apreciasse mais. Até agora.

Eu contive o fôlego. Tinha sido uma pergunta muito singela. Jamais teria esperado

uma resposta tão íntima.

—Yelena, estiveste me voltando louco. Causaste-me consideráveis problemas e

pensei em te tirar a vida em duas ocasiões desde que te conheço —confessou. O fato de

sentir seu fôlego contra a orelha me provocou um calafrio pelas costas— Entretanto, te

colocaste muito dentro e me roubaste o coração.

—Isso parece mais um veneno que uma pessoa —disse. Sua confissão tinha me

pego de surpresa e emocionado de uma só vez.

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—Isso. Envenenaste-me —sussurrou com a voz rouca, dando a volta para me pôr

cara a cara com ele. Antes de que eu pudesse dizer nada mais, beijou-me.

Um desejo reprimido durante muito tempo cobrou vida. Abracei-o com força e lhe

devolvi o beijo com idêntica paixão. Minha resposta foi uma deliciosa surpresa. Tinha temido

que, depois dos abusos do Reyad, o corpo sentisse pânico e repulsão ante a cercania de um

homem. Não foi assim.

O som distante da música vibrou no ar. Pouco a pouco, a mágica harmonia foi

acrescentando seu tempo e nos cobriu como se fosse uma cálida manta. Esquecemo-nos da

pressão e da suja palha. Àquele nível, fomos companheiros, iguais. Nossas almas se uniram.

Seu prazer era meu êxtase. Meu sangue começou a bombear seu coração.

O gozo em estado puro só se conseguia em pequenos retalhos, mas Valek e eu

estávamos dispostos a voltá-lo para tentar. Tínhamo-nos fundido, tínhamo-nos convertido em

um. Eu entesourava sua essência e gozava com o fato de sentir seu corpo dentro do meu.

Valek tinha preenchido o vazio que havia em meu coração com luz e alegria. Embora

estávamos tombados sobre suja palha e enfrentávamos a um futuro incerto, um profundo

zumbido de felicidade vibrava por todo meu corpo.

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Capítulo 31

A realidade e o fedor das celas entremeteu em nossa felicidade. Tinha escurecido.

—Vamos —disse Valek, me pondo de pé.

—Onde? —perguntei enquanto ajustava o uniforme.

—À habitação do Comandante para que possa voltar a nos levar ao castelo.

—Isso não servirá de nada.

—Por que não? —perguntou Valek.

—Assim que o toque, Mogkan saberá —respondi, explicando o vínculo que o mago

tinha com ele através da utilização do Crioulo.

—Como podemos romper esse vínculo?

Tinha chegado o momento de lhe falar de minha magia. Sentia-me enjoada, como

se estivesse nos limites do mundo. Respirei profundamente e relatei os encontros e as

conversações que tinha tido com o Irys e como ela poderia nos ajudar.

—Confia nela?

—Sim, Valek.

—Há algo mais que não me haja dito?

A cabeça começou a me dar voltas. Tinham ocorrido tantas coisas... A morte ainda

era uma possibilidade muito real. Queria que Valek soubesse o que sentia.

—Quero-te.

Valek me tomou entre seus braços.

—Meu amor foi teu no festival de fogo. Se esses gorilas lhe tivessem matado, a

vida não teria sido igual para mim. Nem desejava nem esperava que ocorresse isto, mas não

pude resistir a ti. Agora, vamos.

Antes de sair ao corredor, trocamo-nos de uniforme na sala de guarda. Embelezados com o

verde e negro dos soldados do Brazell, esperávamos evitar que nos descobrissem. Então,

retornamos aos barracões para que ele pudesse recolher algumas armas. Tal e como havia

predito, estavam vazios. Todos os soldados tinham saído para nos buscar.

Fui recolher minha capa e enquanto esperava, comecei a invocar a Irys.

Necessitávamos um plano de ataque. De repente, escutei gritos e maldições procedentes do

interior do barracão. Entrei rapidamente e vi o Ari e ao Janco apontando ao Valek com suas

espadas.

—Quietos —disse.

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Os dois guardaram suas armas e me abraçaram com força.

—Acreditávamos que Valek se escapou sem ti —disse Ari.

—Não deveriam estar em uma dessas partidas de busca? —perguntou Valek,

enquanto tirava uma bolsa negra de debaixo de um beliche. Ficou uma malha cor marfim com

numerosos bolsos.

—Estávamos muito doentes —comentou Janco, com seu melhor sorriso.

—Como? —perguntei.

—Resultava tão evidente que os delitos que lhes acusava eram inventados que nos

negamos a tomar parte na busca —explicou Janco.

—Isso é insubordinação —comentou Valek, tirando uma comprido faca e vários

dardos de sua bolsa.

—Disso se tratava precisamente. O que terá que fazer para que lhe prendam e lhe

levem às masmorras?

Eu olhei ao Janco completamente atônita. Tinham estado dispostos a enfrentar-se

a uma corte marcial com tal de me ajudar. Dizia muito a sério o que me tinha escrito sobre a

navalha.

—Que direção tomaram? —perguntou Valek enquanto metia facas em vários

bolsos e se colocava o cinturão que sujeitava sua espada e sua adaga.

—Principalmente ao sul e ao leste, embora alguns foram para o norte e o oeste —

replicou Ari.

—Cães?

—Sim.

—E a casa?

—Um guarda mínimo.

—Muito bem —disse Valek— Estão conosco?

—Sim, senhor —responderam os dois, quadrando-se ante ele.

—Vamos então.

—Um momento —intervi— Não quero que Ari e Janco se metam em confusões —

acrescentei. Ainda não tinha podido assimilar o que tinham estado a ponto de fazer por mim.

—Necessitamos sua ajuda —afirmou Valek.

—Vão necessitar muito mais que isso —disse Irys, aparecendo de repente na

escuridão.

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Automaticamente, os três homens tiraram suas espadas. Entretanto, quando ela se

aproximou do abajur, Valek se relaxou.

—Tranqüilos —disse ao Ari e ao Janco.

—É uma amiga —afirmei, ao ver que não estavam de todo seguros — Veio para

nos ajudar. Temos descoberto a fonte de poder do Mogkan —acrescentei, me dirigindo a ela.

—Do que se trata?

Falei-lhe dos cativos e da situação tão horrível em que se encontravam. Enquanto

o fazia, Ari e Janco escutavam horrorizados.

—Do que está falando? —perguntou Ari.

—Já lhes explicarei isso mais tarde. Agora, quero que os dois protejam Irys com

sua vida —lhes pedi, compreendendo que Valek tinha razão e que os necessitávamos a

ambos— É muito importante.

—Sim, senhor —disseram ambos.

Olhei-os completamente atônita. Tinham-me chamado “senhor”, o que significava

que estavam dispostos a seguir minhas ordens, embora estas os levassem a morte.

—Tem algum plano? —perguntou-me Valek.

—Sim.

—Conta-nos.

Através de escuros corredores, dirigimo-nos à habitação do Comandante. Ali,

esperamos uns instantes para dar aos outros tempo de colocar-se.

Em poucos minutos, Valek forçou a fechadura. Entramos na habitação e ele a

fechou imediatamente. Acendemos um abajur e nos aproximamos da cama com dossel. O

Comandante estava convexo em cima dos lençóis, completamente vestido. Tinha os olhos

abertos, embora com o olhar perdido no teto. Não pareceu dar-se conta de nossa presença.

Eu sentei a seu lado e tomei a mão. Seguindo as breves instruções de Irys, imaginei minha

parede de tijolos, embora logo a expandi até convertê-la em uma cúpula de tijolos que

protegesse a ambos. Valek se colocou contra a parede para esperar ao Mogkan.

A porta não demorou para abrir-se. Quatro guardas armados entraram

precipitadamente, Valek acabou com um antes que o homem pudesse reagir. O som das

espadas encheu o dormitório.

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Mogkan entrou quando seus homens tinham entretido ao Valek. Evitou a luta e se

aproximou de mim. Tinha um condescendente sorriso nos lábios.

—Um iglu de tijolo. Que bonito. Vamos, Yelena, me dê um pouco de crédito. Uma

fortaleza de pedra ou aço teriam suposto um maior desafio.

Senti um golpe forte contra minhas defesas mentais. O tijolo começou a

desmoronar-se. Cheia de desespero, rezei para que Ari, Janco e Irys tivessem conseguido

chegar à sala em que Mogkan tinha encadeados aos prisioneiros. Não obstante, embora

conseguissem bloquear a fonte de poder, ainda teria que me enfrentar ao poder do Mogkan.

O mago deteve seu ataque contra mim durante um segundo e inclinou a cabeça.

—Bonito truque —disse— São teus amigos? Estão no corredor da asa do Reyad,

mas, a menos que possam derrotar a dez homens, não poderão chegar a meus meninos.

Então, Mogkan reatou seu ataque com maior determinação. Por sorte, ao Valek só

ficava já um guarda dos quatro que tinham entrado, mas minhas defesas se debilitavam com

cada golpe. Logo, minha cúpula se derrubou entre uma nuvem de pó.

O poder de Mogkan me agarrou como se fosse o punho de um gigante e me

apertou com força as costelas. Eu gritei de dor e soltei a mão do Comandante. Justo naquele

momento, Valek terminou com o último guarda.

—Quieto ou ela morre —ordenou Mogkan.

Valek se deteve imediatamente. Três guardas mais entraram na habitação,

seguidos do Brazell. Rodearam ao Valek, tiraram-lhe a espada e lhe obrigaram a ficar de

joelhos com as mãos na cabeça.

—Adiante, general. Mata-a — disse Mogkan, fazendo-se a um lado para que

Brazell pudesse aproximar-se. — Deveria haver permitido que lhe fatiasse o pescoço o

primeiro dia.

— Por que escutas ao Mogkan? —perguntei ao Brazell— Não é digno de

confiança.

A dor voltou a apoderar-se de mim quando Mogkan me olhou de novo.

—O que quer dizer? —perguntou Brazell. Mogkan se pôs-se a rir.

—Só está tratando de atrasar o inevitável —disse.

—Como quando você tratou de atrasar as negociações com Sitia envenenando o

brandy? Ou acaso estava tratando de evitar que se produzissem? —perguntei-lhe.

A surpresa de Mogkan revelou sua culpabilidade. Embora Valek também ficou

atônito, guardou silêncio.

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—Isso não tem sentido —comentou Brazell.

—Mogkan quer evitar o contato com os do sul. Eles saberiam que... Senti que a

garganta me fechava. Agarrei-me com força ao pescoço, mas resultava impossível respirar.

Brazell se voltou para o Mogkan e o interrogou com o olhar.

—O que estiveste tramando? —quis saber.

—Não necessitamos nenhum tratado com Sitia. Vamos conseguir nossos

fornecimentos sem problemas. Por que não quer me escutar? Terá que ser avaro. Com um

tratado de comércio, os suboas não demorariam para cruzar a fronteira e começar a farejar

tudo —explicou Mogkan, sem mostrar temor algum para o Brazell, só ira por ter que explicar

seus atos— Agora, vais matar a ou quer que o eu faça?

Eu estava a ponto de perder o conhecimento, mas, antes que ocorresse e de que

Brazell pudesse responder, Mogkan cambaleou. A pressão a que estava submetida se

afrouxou um pouco. Pude tomar ar.

—Meus meninos! —gritou o mago — Mas até sem eles tenho mais poder que

você!

Como se fosse um peixe enganchado a um anzol, senti que meus pés

abandonavam o chão e que me lançava contra a parede. Minha cabeça golpeou contra a

pedra, mas não caí ao chão. Mogkan me sustentou no ar. Vi que Valek estava lutando com

seus guardas para tratar de chegar a ele. Muito tarde para mim. Fui caindo inconsciente até

que o negrume encheu meu mundo. Então, escutei a voz de Irys.

—Me deixe te ajudar...

Senti que um poder puro fluía dentro de mim. Reconstruí meu escudo mental e

rechacei o ataque de Mogkan. Ele se estatelou contra a parede oposta. Entretanto, devido a

minha inexperiência, não pude contê-lo. Saiu rapidamente da sala. Valek, com uma faca na

mão, lutava contra soldados com espadas. Quando me dispunha a ajudar ao Valek, Brazell

me agarrou pelo braço.

Levantou a espada. Eu dava um salto atrás para evitar o primeiro golpe, mas me

choquei contra a cama do Comandante. Subi nela para evitar o seguinte golpe. O terceiro,

cortou um dos postes da cama. Rapidamente desci da cama e agarrei o poste. Por fim estava

armada.

Brazell era um bom competidor. Com cada golpe de sua espada, ia arrancando

partes de meu poste.

—O que crê que está fazendo? Estriparei-te com dois golpes.

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Quando consegui encontrar minha zona de poder, ele deixou de gastar saliva.

Desgraçadamente, meu poste não era rival para sua espada.

O fantasma de Reyad se materializou na sala. Animava a seu pai, tratando de me

distrair. Sua tática funcionou. Minhas costas tocaram a parede e a espada de Brazell cortou o

poste em dois.

—Está morta —disse.

Com grande satisfação, levantou a espada, mas quando este se aproximava, eu

desviei a trajetória com meu poste quebrado. A ponta da espada roçou minha cintura. O

sangue começou a empapar a camisa de meu uniforme.

Então, Brazell cometeu seu primeiro engano. Pensando que eu estava acabada,

baixou o guarda, mas eu ainda seguia de pé. Levantei minha arma e, com uma força

desesperada, golpeei-lhe na têmpora. Os dois caímos juntos ao chão.

Vi que Valek se aproximava imediatamente, mas lhe indiquei que partisse.

—Vá procurar Mogkan.

Desapareceu imediatamente. Quando recuperei minha força, examinei minha

ferida. Pareceu-me que quão único necessitaria para curá-la seria um pouco da cola do Rand.

O fantasma de Reyad ainda seguia presente, com seu eterno sorriso.

—Vá daqui —lhe espetei.

—Me obrigue a fazê-lo desafiou.

Como podia enfrentar a um fantasma? Com uma briga mental.

Pensei no que tinha conseguido no ano e meio desde que matei ao Reyad.

Compreendi que era uma pessoa completamente diferente. Olhei ao Brazell e vi que ainda

respirava. Estava a meu cargo. Eu já não era sua vítima. Já não era o rato apanhado na

ratoeira.

—Parte — ordenei ao fantasma do Reyad. Sua expressão de horror me reportou

um grande prazer enquanto desaparecia. Entretanto, a alegria era como uma mariposa que

se detém em uma flor. Um breve descanso antes de voltar a sair voando.

—Janco está ferido —disse a voz de Irys, ressonando em minha cabeça— Vêem

agora mesmo.

Com as cadeias de um guarda morto, encadeei ao Brazell à cama. Então, saí

correndo da sala. Janco não... Não podia morrer... Não poderia suportar sua morte. Tão

preocupada estava que me encontrei com Valek e Mogkan sem reconhecê-los. Estavam

Page 238: María v snyder 01 poison study

lutando com espadas. Mogkan parecia levar a dianteira. Valek estava muito pálido. Sujeitava

a espada como se fosse um peso morto.

O que lhe ocorria? Seria a magia do Mogkan? Não. Valek era imune. Então,

compreendi-o tudo. Valek havia me dito que estar perto de um mago era como envolver-se

em um espesso xarope. Valek tinha derrotado a sete guardas depois de passar-se dois dias

nas masmorras sem comida nem bebida. O esgotamento tinha terminado por poder com ele.

Mogkan sorriu. Então, executou um rápido movimento. A espada do Valek caiu ao

chão ao mesmo tempo que o braço lhe tingia de sangue.

—Que incrível jornada! —exclamou Mogkan— vou poder matar ao famoso Valek e

a infame Yelena ao mesmo tempo.

Eu tirei minha navalha. Mogkan se pôs-se a rir. Então, voltei a escutar a voz do

Irys.

—O que é o que acontece, Yelena? por que não vem?

—Necessito ajuda! —gritei, mentalmente

De repente, o poder me encheu por completo. Estendi um dedo para o Mogkan. A

espada lhe caiu imediatamente da mão. O terror o paralisou por completo. A magia o

envolvia, esticando-se a seu redor como se fosse uma soga. Estava completamente

paralisado...

—Você, maldita filha do demônio! —gritou— É uma maldição para esta terra. Uma

encarnação do inferno. É como o resto deles... A linhagem dos Zaltana deveria ser

exterminado, apagado da face da terra... Mogkan seguiu me insultando, mas eu tinha deixado

de lhe escutar. Valek tomou minha navalha e se aproximou dele. Depois de um grito de dor,

Mogkan ficou por fim em silêncio. Seu corpo caiu ao chão.

Valek entregou minha navalha ensangüentada. Com uma esgotada reverência,

disse-me:

—Para ti, meu amor.

Page 239: María v snyder 01 poison study

Capítulo 32

De repente, recordei de novo ao Janco. Agarrei ao Valek pelo braço, avançando e

explicando o que passava enquanto os dois corríamos. Fomos procurar ao médico e, com a

persuasão de uma faca, Valek conseguiu que nos acompanhasse.

Quando entramos na asa do Reyad, senti náuseas. Havia partes de braços e

pernas por toda parte, como se alguém tivesse sido amputando-os sobre a marcha. As

paredes estavam cobertas de sangue, igual ao chão.

O médico queria deter-se com o primeiro homem, mas Valek o pôs de pé e

seguimos avançando até que vimos o Janco. Estava convexo de costas, com a cabeça no

regaço de Ari. Estava inconsciente, felizmente, uma espada lhe tinha atravessado o ventre. A

ponta lhe saía pelas costas. O rosto empapado de sangue de Ari tinha uma expressão

sombria. A seu lado, jazia uma tocha, responsável por aquele açougue. Irys estava sentada

no centro do círculo dos prisioneiros. Tinha a frente coberta de suor e uma expressão distante

no rosto. Os homens e mulheres encadeados contemplavam a cena com olhos impassíveis.

A viagem à enfermaria foi como um pesadelo. Tudo passou como envolto em um

redemoinho até que me vi tombada junto ao Janco, lhe sujeitando a mão. O médico fez todo o

possível, mas se a espada tinha atravessado algum órgão vital de Janco, não sobreviveria.

Tinham curado minha ferida e quase não notava dor alguma. Toda minha energia e

força foram dirigidas ao Janco.

Mais tarde, naquele mesmo dia, despertei depois de um ligeiro sonho.

—Dormindo em seu posto de trabalho? —sussurrou-me Janco com um débil

sorriso em seu pálido rosto.

Respirei aliviada. Se tinha forças suficientes para me insultar, certamente

sobreviveria.

Desgraçadamente, Irys não nos pôde dizer o mesmo sobre o Comandante. Quatro

dias depois da morte de Mogkan, ainda não tinha recuperado seu espírito. Seus conselheiros

sim se recuperaram e se feito cargo do controle militar do DM-5 e enviaram mensageiros ao

general Tesso, do DM-4 e ao general Hazal, do 6, requerendo sua presença imediatamente.

Os generais teriam a protestado de decidir o que se faria a seguir se o Comandante não

conseguisse sobreviver.

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Igual e desconcertante foi que nenhuma das vítimas do Brazell, Reyad e Mogkan

despertou de sua letargia. Irys nos disse que suas mentes eram como casas abandonadas...

Irys e eu nos resignamos a pensar que viveriam o resto de seus dias perdidos

naquela letargia. Sofri em especial a perda de Carra, embora descobri que Mai seguia viva e

bem, dentre o resto dos órfãos. Eu decidi ir visita-la assim que Janco recuperasse as forças.

—Resulta evidente que os meninos do orfanato do Brazell procediam de Sitia —

explicou Irys, que tinha vindo me visitar na enfermaria— Mogkan espaçou suficientemente os

seqüestros para não despertar suspeitas. A magia está acostumada ser mais forte nas

mulheres, o que explica que haja mais garotas. Certamente, Mogkan e Brazell estiveram

muito tempo planejando isto. Não acredito que resulte difícil encontrar a sua família, Yelena.

—Não sei... antes de morrer, Mogkan mencionou algo sobre a linhagem dos

Zaltana — respondi.

—Zaltana! —exclamou Irys entre risadas— Agora que me lembro, sim que

perderam uma filha. Meu deus. Se formas partir do clã dos Zaltana, espera-te uma boa

surpresa. Isso explicaria por que você foi quão única não se rendeu aos desejos do Mogkan.

Milhares de perguntas me amontoavam na garganta. Queria saber mais sobre

aquela família, mas não desejava ter esperanças. Talvez eu não fosse uma Zaltana. Supus

que o averiguaria quando chegássemos a Sitia. Irys queria começar meu adestramento

imediatamente. Não obstante, sentia certa intranqüilidade por ter que abandonar Ixia. Troquei

de tema.

—Como está o Comandante?

— É diferente de outros. Os prisioneiros não têm nada na cabeça, mas ele se

retirou a um lugar muito branco. Se pudesse descobrir onde está, talvez poderia fazê-lo

retornar.Considerei aquelas palavras durante uns instantes e pensei em um momento no que

fiquei adormecida na sala de guerra.

—Posso tentá-lo?

—Por que não?

Irys me acompanhou à habitação do Comandante. Sentei-me na cama e tomei sua

fria mão entre as minhas. Fechei os olhos e enviei meu poder mental para ele.

Meus pés pisaram em gelo. Um frio vento me açoitou o rosto. Estava rodeada por

um branco cegador. Pó de diamantes ou flocos de neve, não estava segura. Caminhei

durante um comprido momento, me enfrentando ao gélido vento sem encontrar nada.

Page 241: María v snyder 01 poison study

Estava a ponto de admitir minha derrota quando recordei por que pensei que

poderia encontrar ao Comandante. Centrei-me na cena de uma jovem mulher cheia de alegria

sobre o corpo sem vida de um tigre de neve. De repente, o vento se deteve. Estava ao lado

de Ambrose. Ia vestido com umas peles brancas que pareciam as do tigre.

—Retorna —disse.

—Não posso...

Ao olhar ao redor, vi que uns barrotes nos rodeavam por toda parte. Pareceu-me

uma jaula a primeira vista, mas, quando me fixei melhor, descobri que eram soldados

armados com espadas.

—Cada vez que trato de partir, eles me impedem.

—Mas você é o Comandante.

—Aqui não. Aqui só sou Ambrosia, apanhada em um corpo equivocado. Os

soldados conhecem minha maldição.

Olhei o corpo do tigre.

—Como o matou?

O rosto da moça se animou. Contou-me que se banhou na essência do animal e

que passou semanas envolto em peles de tigre. Fingiu ser um dos tigres, até que estes a

admitiram em sua manada. Ao final, conseguir seu troféu só foi questão de tempo.

—Isso demonstra que sou um homem. Que ganhei o direito de ser um homem.

—Nesse caso, talvez deva pôr seu troféu. As peles não lhe ajudarão contra seus

soldados.

A mulher compreendeu de repente. Olhou ao tigre morto e se metamorfoseou no

Comandante. Seu comprido cabelo se cortou e lhe surgiram rugas no rosto. As peles caíram

ao chão ao tempo que se materializava em seu impoluto uniforme. Separou-se das peles lhes

dando patadas.

—Não deveria fazer isso —disse— Poderia as necessitar de novo.

—Necessito a ti, Yelena? —perguntou-me— Posso confiar em que mantenha em

segredo minha mutação?

—Vim aqui para te fazer voltar. Serve-te isso como resposta?

—Valek me jurou lealdade quando lhe gravei um c no peito. Faria você o mesmo?

—Sabe Valek da Ambrosia?

—Não. Não respondeste a minha pergunta.

Mostrei-lhe ao Comandante a mariposa do Valek.

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—Levo isto contra meu peito. Jurei lealdade ao Valek, que a sua vez é leal a ti.

O Comandante alcançou a mariposa. Eu permaneci imóvel enquanto me tirava isso

do pescoço. Então, tirou uma faca das peles e cortou a palma direita. Sustentou o pendente

na mão ensangüentada e me estendeu a faca. Eu estendi a mão e fiz um gesto de dor ao

notar o contato com a folha. Nossos sangues se mesclaram enquanto sustentávamos a

mariposa. Quando me soltou, o presente do Valek estava em minha mão. Voltei a colocar em

seu lugar, sobre meu coração.

—Como vamos retornar? —perguntou-me o Comandante.

—Você é quem manda.

—Lutaremos —disse, tirando a espada.

Eu agarrei uma lança que havia junto ao corpo do tigre. Era mais ligeira que minha

fortificação, mas me serviria.

Enfrentamos aos soldados. Eram muito hábeis, mas o Comandante era um

espadachim estupendo. Era como lutar com cinco homens mais. Não demoramos para nos

desfazer de todos os homens.

—Muito bem —disse o Comandante— Me ajudaste a me redescobrir, a matar a

todos meus demônios.

Tomou a mão e a levou aos lábios. De repente, a cena invernal se desvaneceu e me

encontrei de novo sentada na cama, olhando aos poderosos olhos do Comandante.

Aquela noite, Valek e eu informamos ao Comandante de tudo o que tinha ocorrido

na reunião do brandy. Valek tinha interrogado ao Brazell e tinha descoberto que Mogkan e ele

levavam dez anos preparando o golpe. O Crioulo tinha sido o último elo de um plano muito

elaborado.

—E a fábrica? —perguntou o Comandante.

—Detivemos a produção —disse Valek.

—Bem. Salvem os materiais que possam e logo queimem a fábrica e todo o Crioulo

que possam encontrar.

—Sim, senhor.

—Algo mais?

—Sim. Brazell me contou que, quando tivessem conseguido o controle da Ixia,

planejavam invadir Sitia.

Page 243: María v snyder 01 poison study

Ao dia seguinte, o Comandante celebrou o julgamento do Brazell com o Valek a

sua direita. Como se esperava, Brazell foi despojado de sua fila e sentenciada a passar o

resto de sua vida nas masmorras do Comandante.

Como lhe permitiram umas últimas palavras, Brazell começou a gritar;

—Idiotas! Seu Comandante é um mentiroso! Leva anos lhes mentindo! Em

realidade, trata-se de uma mulher vestido de homem!

O silêncio se apoderou da sala, mas o Comandante não variou a expressão neutra

de seu rosto. Muito em breve, as risadas estalaram entre as quatro paredes da sala. Quem ia

acreditar nas palavras de um lunático? É obvio, as risadas não se deviam a que ninguém

acreditasse que a idéia de uma mulher ostentando o poder era ridícula, mas sim porque o

Comandante Ambrose tinha uma presença muito poderosa. Além disso, devido a suas

crenças e convicções, eu, que sabia a verdade, não podia pensar nele de nenhum outro

modo. Mais tarde naquele dia, fui visitar o orfanato. Encontrei a Mai no dormitório. Ela

levantou-se de sua cama e se lançou com força contra mim.

—Yelena! Acreditei que jamais voltaria a verte...

Eu a apertei com força. Quando ela se retirou, sorri ao vê-la. Sua alegria se

desvaneceu ao saber de Carra. Então, vi o muito que a menina que eu recordava tinha

crescido.

—Vamos contigo a Sitia! —exclamou Mai de repente, cheia de alegria. Indicou-me

uma mala que havia na porta.

—Como?

—A dama do sul nos disse que nos levaria a nosso lar para nos ajudar a encontrar

a nossas famílias.

Senti uma estranha dor no coração. Para mim, a palavra família tinha um significado diferente.

Valek, Ari e Janco eram minha família. Até a Maren era como uma resmungona irmã mais

velha.

—É maravilhoso —disse, tratando de igualar seu entusiasmo.

—Desgraçadamente, ficamos tão poucos...

—Valek se assegurará de que Carra e os outros estejam bem cuidados.

—Valek! Que bonito!

Janco, por outro lado, recebeu-me com um rosto muito triste quando fui despedir-

me dele. Irys, que se mostrava ansiosa por ir ao sul, queria estar de caminho ao dia seguinte

pela manhã. Ari tinha-se feito a cargo de Janco e estava sentado a seu lado.

Page 244: María v snyder 01 poison study

—O que passou com a mensagem de amizade eterno que me escreveu na

navalha?

—Vá, vá... Já o traduziste?

Eu sorri.

—Assim que Janco esteja melhor, partiremo-nos ao sul —prometeu Ari.

—E o que ides fazer ali?

—Virão-nos muito bem umas férias —comentou Janco, sorrindo.

—Te cuide —disse Ari.

—No sul não necessito amparo. Além disso, parece-me que não faz muito tempo,

superei a meus dois instrutores. Além disso, não devem se preocupar comigo. Retornarei

muito em breve.

—Isso espero. Quero a revanche —replicou Janco.

Entretanto, eu tinha falado muito cedo sobre a volta. Valek, Irys e eu tínhamos

falado de meu futuro, mas o Comandante parecia ter outros planos. Aquela tarde, o

Comandante Ambrose convocou uma reunião. A sós com o Valek, Irys e Ari no velho

despacho do general Brazell. Prometeu respeitar o tratado. Logo me disse meu destino.

—Yelena, salvaste minha vida e, por isso te dou obrigado. Entretanto, tem poderes

mágicos que não se toleram na Ixia. Não fica eleição mais que ordenar sua execução.

Todos os presentes ficaram atônitos. Quando o Comandante estendeu um papel

ao Valek, senti uma estranha frieza na pele. Valek não se moveu.

—Senhor, sempre acreditei que ter um mago trabalhando para nós nos beneficiaria

e, por exemplo, teria impedido esta situação em particular. Podemos confiar na Yelena.

—Tem razão —afirmou o Comandante— Embora possamos confiar nela, embora

me salvou a vida, devemos cumprir o Código de Comportamento. O contrário, seria um sinal

de debilidade, algo que não posso permitir agora, sobre tudo depois do assunto com o

Mogkan. Além disso, os generais e meus conselheiros não confiam nela.

Uma vez mais, o Comandante estendeu a ordem de execução ao Valek.

Mentalmente, escutei que Irys dizia que saísse fugindo. Neguei-me. Seguiria ali até o final.

Não fugiria.

—Não vou aceitar-la —disse Valek.

—Vais desobedecer uma ordem direta?

—Não. Se não a tomo, não terei que desobedecê-la.

—E se fizer que seja verbal?

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—Obedecerei, mas será a última vez —replicou Valek, tirando uma adaga do

cinturão.

Ari também desembainhou sua espada.

—Terá que acabar primeiro comigo —disse, colocando-se diante de mim.

—Não, Ari...

Obriguei-o a baixar a espada e me coloquei ao lado de Valek. Olhamo-nos nos

olhos. Compreendi que sua lealdade ao Comandante não tinha limites. Compreendi que,

depois de me tirar a vida, tiraria a sua.

O Comandante nos observou atentamente. —assinei essa ordem pelo Código —

disse por fim— Atribuirei a outra pessoa para que a leve a cabo. Talvez tarde uns dias em

encontrar a pessoa adequada...

Aquela era a oportunidade que nos dava para que Irys e eu partíssemos da Ixia.

—Lembrem-se que esta ordem só é válida na Ixia —acrescentou— Agora, podem-

lhes partir.

Todos saímos imediatamente. Ari me abraçou com força. Entretanto, eu senti uma

profunda amargura ao saber que me separaria de Valek tão logo depois de nos unir.

Quando tivemos organizada nossa “fuga”, Valek me separou de outros. Beijamo-

nos com paixão e urgência desesperadas.

Quando recuperamos o fôlego, disse:

—Vêem comigo...

—Não posso Yelena, tem que aprender, tem que encontrar a sua família, tem que

estender as asas e ver até onde pode voar. Nestes momentos não me necessita, mas o

Comandante sim.

Abracei-o com força. Tinha razão. Não o necessitava, mas queria que ele estivesse

comigo para sempre.

Partimo-nos aquela noite. Irys, oito garotas, dois meninos e eu. Caminhamos

durante várias horas até que encontramos um claro adequado para acampar aquela noite. Ari

nos tinha subministrado tudo o que poderíamos necessitar durante a viagem. Levantamos

seis pequenas barracas e Irys surpreendeu aos meninos acendendo o fogo tão somente com

um gesto da mão. Quando todos estiveram dormidos, eu me sentei ao lado do fogo. Pela

centésima vez, perguntei-me por que Valek não teria ido a despedir-se de mim.

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De repente, senti movimento. Pus-me de pé e tomei minha fortificação. Uma

sombra se separou de uma árvore. Irys tinha criado uma barreira mágica ao redor das

barracas. Segundo ela, a barreira nos ocultaria e provocaria que a pessoa que nos

aproximasse só visse um claro. A sombra me sorriu. Não parecia afetado pela magia. Era

Valek.

Estendeu a mão. Eu agarrei os frios dedos entre os meus e deixei que ele me

separasse das barracas e me conduzisse ao bosque.

—Por que não veio antes de que nos partíssemos? —perguntei-lhe quando nos

detivemos.

—Estava ocupado me assegurando de que o Comandante tinha problemas na hora

de encontrar a alguém que levasse a cabo suas ordens. É surpreendente a quantidade de

trabalho que há depois do Brazell —acrescentou com um sorriso.

—Quem prova agora a comida do Comandante?

—No momento, eu, mas acredito que a Capitã Star seria uma excelente candidata.

Dado que ela sabe quem são todos os assassinos, parece-me que sua ajuda seria muito

valiosa.

Tocou-me sorrir. Star o faria bem, se conseguisse superar o adestramento...

—Já basta de bate-papo. Preciso me despedir de ti adequadamente...

Passei minha última noite na Ixia com o Valek debaixo daquela árvore. As horas

voaram. Quando o sol começou a entremeter-se entre nós, despertando-me de um feliz

descanso entre os braços de Valek, obrigou-me a enfrentar ao dia em que tinha que me

separar dele.

Pressentindo meu estado de ânimo, Valek disse:

—Uma ordem de execução não nos conseguiu separar antes. Não o vai conseguir

agora. Estaremos juntos.

—É uma ordem?

—Não, uma promessa.

Fim

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