la cuestion estética en levinas (portugues)

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  • 5/26/2018 La Cuestion Esttica en Levinas (Portugues)

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    MAURO CSAR DE CASTRO

    GRANDEZA E FALSIDADE DA ARTE:

    AQUESTO ESTTICA NA OBRA DE EMMANUEL LEVINAS

    Dissertao apresentada como requisito paraobteno do grau de mestre, pelo Programa dePs-graduao da Faculdade de Filosofia daPontifcia Universidade Catlica do RioGrande do Sul.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza

    Porto Alegre2007

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    MAURO CSAR DE CASTRO

    GRANDEZA E FALSIDADE DA ARTE:

    AQUESTO ESTTICA NA OBRA DE EMMANUEL LEVINAS

    Dissertao apresentada como requisito paraobteno do grau de mestre, pelo Programa de

    Ps-graduao da Faculdade de Filosofia daPontifcia Universidade Catlica do RioGrande do Sul.

    Aprovado em 10 de Janeiro de 2007.

    BANCA EXAMINADORA

    ------------------------------------------------------------------------------Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza (PUCRS) orientador

    ------------------------------------------------------------------------------Prof. Dr. Nythamar Fernandes de Oliveira (PUCRS)

    ------------------------------------------------------------------------------Prof. Dr. Jayme Paviani (UCS)

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    A minha famlia

    e, no centenrio do nascimento de Levinas, ao leitor.

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    AGRADECIMENTOS

    A meus pais, Josias e Maria, e minhas irms, Marta, Marcionlia e Matildes;

    aos mestres Ricardo Timm, Pergentino Pivatto e Mrcio Paiva;

    aos colegas do CEBEL, especialmente Evaldo Kuiava, Andr Farias e Marcelo Fabri;

    aos colegas do PPG, Fabrcio Pontin, Eneida Braga e Tiege Rodrigues;

    ao amigo Gelson Pdua, os amigos de Minas e os novos de PoA;

    a Mrcia Farah e Martha Brizzio;

    PUCRS e ao CNPq.

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    RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo investigar a constituio da questo esttica na obra

    de Levinas. Levinas apresenta uma austera crtica antiesttica a partir da associao entre

    arte, exotismo e idolatria. A arte seria o campo do silncio, da imagem, da esttua e do

    retorno ao mesmo, o que se traduz em negao do sujeito e da tica. Por outro lado,

    Levinas sugere uma certa redeno da arte atravs da crtica, fazendo convergir esttica e

    tica. O presente trabalho pretende averiguar as recorrncias, continuidades,

    desdobramentos ou rupturas no trato da questo esttica nos diversos textos de Levinas e

    toma como hiptese a interpretao de que as valoraes positiva e negativa convivem ao

    longo de toda sua obra. No primeiro captulo, enfatiza-se o carter de musicalidadeda obra

    de arte e o fenmeno do exotismo; no segundo, suaplasticidadee o fenmeno da idolatria;

    no terceiro, os conceitos de obrae de crticada arte como possibilidade de convergncia

    entre esttica e tica.

    Palavras-chave: Arte. Esttica. tica. Alteridade. Levinas.

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    ABSTRACT

    The present work has as its aim to investigate the constitution of the aesthetic question in

    the Levinas work. Levinas presents a precise antiaesthetic critic from the association

    between arts, exotism and idolatry. Arts would be the field of silence, of image, of the

    return to the same, what leads to a denial of the subject and of ethics. On the other hand,

    Levinas suggests a kind of redemption of arts throughout the criticism, converging

    aesthetics and ethics. The present works aims to investigate the recurrences, continuities,

    unfoldings and ruptures in the dealing with the aesthetic question in several texts by

    Levinas, taking as an hypothesis the interpretation that the positive and negative

    approaches towards aesthetics converge in Levinas work. In the first chapter, it is

    emphasized the musicality of the work of art and the phenomenon of exotism; in the

    second itsplasticity and the phenomenon of idolatry; in the third, the concepts of workand

    art criticismas the possibility of convergence between ethics and aesthetics.

    Keywords: Art. Aesthetics. Ethics. Alterity. Levinas.

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    SIGLAS DAS OBRAS DE LEVINAS*

    AT- Altrit et transcendance

    CH - Cahier de lHerne

    DE- De l'vasion

    DEHH- Descobrindo a existncia com Husserl e Heidegger

    DL- Difficile libert

    DO- De loblitrationDVI- De Deus que vem idia

    EE- Da existncia ao existente

    EI- tica e infinito

    EN- Entre ns

    HH- Humanismo do outro homem

    HS- Hors sujet

    IH- Les imprvus de l'histoire

    LC - Libert et commandement

    NP- Noms propres

    OS - De otro modo que ser o ms all de la esencia

    SMB- Sur Maurice Blanchot

    TA- Le temps et l'autre

    TI- Totalidade e infinito

    TRI- Transcendncia e inteligibilidade

    VI- Il volto infinito

    *As obras disponveis em portugus foram citadas conforme a traduo, e a paginao refere-se s mesmas;quando necessrio referir-se ao texto original dessas, em francs, ser acrescido fr sigla. Para as demaisobras e outros textos em idioma diverso, a traduo livre do autor deste trabalho.

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    SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................................9

    I. OCASO ouUMA INVASO DE SOMBRA................................................................13

    1. Evaso .........................................................................................................................13

    1.1 Hipstase e temporalidade ................................................ .................................................. .. 15

    1.2 Gozo........................................... .................................................. .......................................... 16

    1.3 Em casa............ .................................................. .................................................. .................. 191.4 Alteridade e diacronia ....................................... .................................................. .................. 20

    2. Exotismo......................................................................................................................24

    2.1 Entretempo e morte na arte ....................................... .................................................. .......... 25

    2.2 Ritmo.................................................. .................................................. .................................. 28

    II. AURORA ouUMA INVASO DE LUZ....................................................................32

    1. xodo ..........................................................................................................................32

    1.1 Desejo e vestgio do Infinito ................................................ .................................................. 33

    1.1 Responsabilidade....................................... .................................................. .......................... 37

    1.2 Epifania do rosto ....................................... .................................................. .......................... 41

    2. Idolatria .......................................................................................................................44

    2.1 Viso e representao........................ .................................................. .................................. 45

    2.2 Beleza e idolatria ....................................... .................................................. .......................... 49

    2.3 Interdito ............................................. .................................................. .................................. 56

    III. A OBRA ouALM DO PARADOXO LUSCO-FUSCO ...........................................62

    1. Dizer............................................................................................................................62

    1.1 Trauma e testemunho................................................. .................................................. .......... 63

    1.2 Entre paradoxo e metfora ................................................ .................................................. .. 661.3 Obra e significao.................................................... .................................................. .......... 71

    2. Crtica da arte...............................................................................................................75

    2.1 O som como verbo ............................................. .................................................. .................. 77

    2.2 A imagem como convite ............................................. .................................................. .......... 89

    CONCLUSO.................................................................................................................98

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................103

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    INTRODUO

    A questo o desejo do pensamento.(Maurice Blanchot)

    No h hoje como se empenhar nas prticas filosficas, artsticas e culturais sem se colocar

    em questo as possibilidades e tarefas das mesmas frente s solicitaes e metamorfoses de

    um mundo marcado pela crise do sentido e falncia dos sistemas representativos. A obra deLevinas se insere nesse cenrio e prope que antes da Cultura e da Esttica, a significao

    situa-se na tica, pressuposto de toda Cultura e de toda significao (HH: 67). Mas como

    compreender esse antes, esse pressuposto? Como fundamento, isto , a tica funda a

    esttica e a cultura? Como restrio, isto , no h sentido fora do plano tico? O

    desenvolvimento da pesquisa parte desse confronto estabelecido por Levinas entre esttica

    e tica, de modo que sua discusso deve levar tanto ao aprofundamento da esttica quanto

    da tica. Pensar a questo esttica na obra de Levinas significa questionar o lugar e a

    legitimidade da prpria arte, assim como suas implicaes no mbito tico.

    O tema da esttica no est dentre os mais abordados por Levinas, porm nunca lhe foi

    indiferente, surgindo vrias vezes em suas reflexes como implicao das questes

    fundamentais. Os textos de Levinas dedicados questo esttica no so to raros como

    parece primeira vista, e breves menes a respeito so recorrentes. O mais conhecido

    do incio de sua obra o artigoLa ralit et son ombre(1948)1. Ali Levinas apresenta uma

    austera crtica antiesttica. A arte seria o campo do silncio (em oposio ao conceito), da

    1In: IH: 107-27.

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    imagem (em oposio ao objeto), da esttua (em oposio ao tempo) e do retorno ao

    mesmo (em oposio alteridade). Para Levinas, isso se traduz em negao do sujeito e,

    conseqentemente, da tica. Em outros momentos, por outro lado, Levinas sugere uma

    certa redeno da arte atravs da crtica e, por vezes, elogia a literatura e a poesia.Se a

    arte o campo do silncio, seria pela palavra que a obra se inseriria no mundo humano.

    Pela crtica, a esttica seria trazida tica. Entretanto, no dedicou a isso maiores

    especulaes.

    Uma forte impresso geralmente deixada no leitor pela crtica voraz arte presente no

    artigo La ralit et son ombre, muitas vezes apontado por alguns comentadores como

    referncia maior da concepo esttica levinasiana. Porm, ainda que altamente relevante

    aquele texto, no devem ser ignorados os desdobramentos da questo ao longo do

    desenvolvimento da obra de Levinas. Interpretar esses desdobramentos constitui-se em

    uma tarefa especulativa intrigante. A dificuldade da questo est no carter elptico do

    texto levinasiano e na disperso das suas referncias esttica. Diante disso, a tarefa que se

    apresenta ao estudioso da obra de Levinas a de averiguar as recorrncias, continuidades,

    desdobramentos ou rupturas apontadas pelas questes em aberto mediante uma paulatina

    leitura dos textos. isso o que se pretende no presente trabalho atravs da anlise crtica e

    interpretativa das obras de Levinas. Ler lado a lado os diversos textos no significa ignorar

    os contrastes existentes, mas sim fazer perceber o processo de argumentao que constitui

    o filosofar do autor.

    Uma possvel orientao de leitura a proposta por Franoise Armengaud (1999), segundo

    a qual h elementos no curso da obra de Levinas que indicariam uma evoluo da sua

    concepo esttica. Ela aponta trs linhas de reavaliao do problema: a)a reflexo sobre a

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    sensibilidade, ou quando o verse faz tocar; b)a reflexo sobre a poesia, ou quando a

    linguagem se faz arte; c)o exerccio da crtica, ou quando a filosofia se faz escrita da

    arte. Ou seja, da tica levinasiana derivaria uma esttica pelos vetores da sensibilidade

    (confluncia entre toque e obra), da linguagem (confluncia entre dizer e dito) e da crtica

    da arte (confluncia entre arte e filosofia). Essa hiptese se faz presente, de um modo ou de

    outro, na interpretao da maioria dos comentadores e tambm auxilia em alguns aspectos

    o presente trabalho.

    Entretanto, numa leitura mais atenta, pode-se perceber no se tratar nem de abandono, nem

    de repetio da crtica, e sim de uma retomada reflexiva a partir das questes iniciais em

    busca de novos elementos no dilogo com outras questes ainda no abordadas. Ademais,

    ainda que vindo a reconhecer uma positividade na arte, Levinas nunca perder de vista a

    tica como filosofia primeira. Mais do que uma crtica veemente, parece fazer-se presente

    um pensamento de tenso. Donde a leitura proposta por Raffaella di Castro (1997), a qual

    destaca o fato de conviverem, ao longo de toda a obra de Levinas, a crtica esttica

    negativa e a reflexo esttica positiva, seja entre textos de uma mesma poca, seja num

    mesmo texto. A presente pesquisa segue esta hiptese de leitura.

    O presente trabalho tem por objetivo central investigar a constituio do problema esttico

    na obra de Levinas. Outros objetivos secundrios tambm permeam o estudo ora

    apresentado, tais como: analisar as razes da crtica antiesttica levinasiana; elucidar osconceitos de arte e obra nos textos do filsofo; perscrutar a existncia de elementos na sua

    obra que ofeream um contraponto positivo crtica negativa da esttica; analisar e discutir

    o confronto estabelecido pelo autor entre tica e esttica.

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    O termo esttica usado neste trabalho em sentido estrito, enquanto filosofia da arte, sem

    ignorar o campo de relaes que o conceito engloba. Porm, para fins de delimitao do

    problema, a pergunta pela arte propriamente dita que conduz esta pesquisa e a abordagem

    da esttica em suas outras acepes (sensibilidade, sensao, afeco etc.) interessada na

    primeira.

    A questo esttica, que se constitui no objeto deste trabalho, uma pergunta pela questo

    da questo. Isto , quais so os pontos de tenso na filosofia de Levinas que levam a por a

    arte em questo? Nesse sentido, as trs partes em que se dividem o presente trabalho

    desenvolvem-se cada uma na tentativa de elaborar a questo a partir de um ponto e, no

    conjunto do trabalho, aprofundar o alcance da questo principal. O primeiro captulo parte

    da relao entre sujeito e mundo, diante da qual evasoe exotismose apresentaram como

    possibilidades contemporneas e contrrias no ser. O segundo captulo parte da relao

    entre Eu e Outrem e, novamente, xodoe idolatriase contrapem como possibilidades de

    relao com a alteridade. O terceiro captulo traz, por fim, a figura do Terceiro, diante do

    qual as instncias anteriores so novamente postas em questo. Mediante isso, a questo

    esttica constituda em cada um dos trs. No primeiro, enfatiza o carter de musicalidade

    da obra de arte e o fenmeno do exotismo; no segundo, suaplasticidadee o fenmeno da

    idolatria; no terceiro, os conceitos de obra e de crtica da arte como possibilidade de

    convergncia entre esttica e tica.

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    I

    OCASOouUMA INVASO DE SOMBRA

    s seis horas da tarde hibernal, as brumas difusas tornam osespaos mais impenetrveis, e o choque suave entre as luzes

    moribundas do dia e os focos nascentes das luzes da noitecontribui para a criao de uma atmosfera indefinvel, sem

    certezas prvias: um nascedouro.(R. Timm de Souza)

    Da arte no h despertar, porque nela no dormimos, emborasonhssemos.

    (Fernando Pessoa)

    1. Evaso

    A questo elaborada emDe lvasion(1935), a qual pode ser considerada a obra inaugural

    da filosofia levinasiana, enuncia uma inquietao que delinear um longo caminho de

    reflexo. A questo parte da recusa concepo de um ser auto-suficiente e de um sujeito

    auto-referente. Pode-se perceb-la j sendo intuda desde os escritos anteriores de Levinas

    (em sua maioria estudos fenomenolgicos), porm a idia de evaso que marca seu

    pensamento prprio. A necessidade de sada do ser, necessidade de excedncia(DE: 73),

    ser reassumida nos escritos posteriores com novas e cada vez mais radicais conotaes at

    culminar dcadas depois na idia de um Autrement qutre(1974). Nesse sentido podem

    ser lidas as obras seguintes, De 1existence 1existant (1947) e Le temps et lautre

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    (1947), sendo que esta consuma definitivamente a direo do pensamento levinasiano: a

    questo maior a alteridade.

    A inteno de se estabelecer uma relao entre os referidos textos fazer perceber um

    caminho de pensamento que se vai delineando ao longo da obra levinasiana nestes trs

    vetores que orientaro parte do presente trabalho: evaso, exotismoe xodo2.

    A leitura dos primeiros escritos de um filsofo faz perceber ali suas intuies iniciais e, no

    caso de Levinas, seu entusiasmo e sua inquietao diante da fenomenologia e da tarefa de

    superar-lhe os limites. A ateno aos mesmos se faz necessria no presente trabalho

    especialmente para a compreenso da gestao da questo em torno da arte apresentada no

    artigoLa ralit et son ombre(1948), repercutindo inversamente a idia de evaso. Alis,

    o termo evaso foi emprestado da linguagem da crtica literria da poca3 (DE: 70) e

    assumido pelo autor com um significado prprio. A questo esttica est presente desde o

    incio da obra levinasiana. Dez anos separam De lvasione La ralit et son ombre, mas

    so os anos da Segunda Guerra Mundial, quando Levinas foi mantido prisioneiro como

    oficial francs pelos alemes (1939-45), e durante os quais escreveu De 1existence

    1existante concebeu certamente as idias dos textos publicados no imediato ps-guerra.

    2Vale observar a advenincia desses termos. Levinas indica que o termo exotismo usado no seu sentidoetimolgico (EE: 62). A raiz grega, do advrbio (= fora, exterior), tambm usado como prefixo, depoisherdado pelo latim (ex-) e, por conseguinte, pelas lnguas neolatinas. Donde o adjetivo (com omesmo sentido do radical e tambm de estrangeiro), transferido para o latim exoticuse o francs exotique. Aformao do substantivo exotisme francesa; remete ao substantivo (= ao de impelir fora,expulsar). Do mesmo prefixo (+ = caminho) vem exode ( = sada, retirada, partida). Jvasionvem do latim evasio(= fuga, escapada, sada), por sua vez derivado do verbo evadere(no francs,vader), o qual conserva em forma mais abreviada o prefixo grego. (Cf. BAILLY, 1954; SARAVIR, 2000).3Denomina-se literatura ou espetculo d'vasionaquela obra que permite fugir do cotidiano e se divertir semesforo. O conceito de exotismocunhado por Levinas aproxima-se dessa acepo de evaso.

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    1.1 Hipstase e temporalidade

    Em De 1existence 1existant, marcado pelo horror da Shoah (Holocausto), Levinas

    apresenta o fundamental conceito de il y a(h) para expressar o drama da existncia sem

    existente e sem mundo, do ser em geral, neutro, annimo e impessoal: H em geral,

    sem que importe o que h, sem que se possa juntar um substantivo a este termo: h, forma

    impessoal como chove ou faz calor (EE: 68).

    A noite expressa, por excelncia, o anonimato radical, uma espcie de campo de fora

    em que tudo se confunde e anula. Quebram-se todas as redes de sentido e de relaes

    possveis; no h mais mundo, nem mesmo espao para expresso da subjetividade ou da

    exterioridade:

    Quando as formas das coisas so dissolvidas na noite, a escurido da noite, queno um objeto nem a qualidade de um objeto, invade como uma presena. Nanoite, quando estamos presos a ela, no lidamos com coisa alguma. Mas essenada no um puro nada. No mais isto, nem aquilo; no h alguma coisa.

    No entanto, esta universal ausncia , por sua vez, uma presena absolutamenteinevitvel. Esta no o correlato dialtico da ausncia e no por umpensamento que a apreendemos. Ela est imediatamente ali. No h discurso.Nada responde. Mas esse silncio, a voz desse silncio ouvida e apavora comoo silncio desses espaos infinitos de que fala Pascal. (EE: 68)

    O anonimato do ser rompido quando o existente se erige diante da existncia, na

    hipstase o evento pelo qual o expresso por um verbo torna-se um ser designado por um

    substantivo (EE: 99-100). Significa que o sujeito se afirma como Eu, como conscincia e

    liberdade. Isso se d efetivamente no presente assumido pelo sujeito como instante de auto-

    referncia: O presente e o eu so o movimento da referncia a si mesmo que constitui

    a identidade (EE: 97). A figura do sono, segundo o autor, expressa este ato de posio,

    pois implica assumir um lugar de repouso, uma condio; contrasta com a insnia, como

    viglia annima do ser e incapacidade de se sair dele.

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    1.2 Gozo

    Em toda sua obra, Levinas busca um constante distanciar do ser atravs da crtica

    categoria de totalidade trazida pela Ontologia, a qual expressa o formalismo do ser que

    reduz o ente a mero participante de um gnero. Da ruptura da totalidade depende a

    subjetividade do humano4. Em Totalit et Infini, o ser comparado ao estado de guerra,

    que anula a exterioridade do Outro e destri a identidade do Mesmo:

    Os indivduos reduzem-se a a portadores de formas que os comandam sem elessaberem. Os indivduos vo buscar a essa totalidade o seu sentido (invisvel de

    fora dela). A unicidade de cada presente sacrifica-se incessantemente a umfuturo chamado a desvendar o seu sentido objetivo. (TI: 10)

    Viver margem do ser, fora do formalismo e impessoalidade de uma categoria significa,

    em primeiro momento, viver em si, ser Eu Mesmo. A primeira abordagem da subjetividade

    enquanto ipseidade, tematizada na segunda seo de Totalit et Infini, parte da

    interioridade e persegue a possibilidade de rompimento com o ser na hipstase do ente

    mediante suas relaes egostas. Essa perspectiva contempla um objetivo ulterior: de

    grande importncia indagar-se em que medida possvel uma interioridade do Eu que no

    se converta em solipsismo, mas que, ao invs, torne possvel uma relao com Outrem

    verdadeiramente tica.

    4Levinas recusa-se a pensar a subjetividade subordinada ao ser e critica o Daseinde Martin Heidegger: Oesforo heideggeriano consiste em pensar a subjetividade em funo do ser, do qual aquela traduz umapoca (OS: 62; ver ainda HH: 113-5). No obstante, Levinas conserva em sua filosofia influncias daanaltica existencial heideggeriana, assim como do mtodo fenomenolgico de Edmund Husserl, porm

    distancia-se de ambos essencialmente. Jean-Luc Marion (Prlogo, In: ARNIZ, 1988: 11-7) percebe estaruptura no desenvolvimento da obra levinasiana em trs momentos. Primeiramente Levinas busca superar oconceito husserliano de intencionalidade e romper com o solipsismo do ego. Retoma a concepo de ego paraconceb-lo antes de tudo como uma abertura ao Outro, mais que como conscincia constituinte dos objetosdo mundo. Assim, rompe tambm com Heidegger, que pensara oDaseinno mais que se abrindo ao mundo eatravs dele ao ser. Em segundo lugar, Levinas contesta que o ser oferea o ltimo fundamento ao homem,ou seja, que a ontologia seja fundamental rompendo com o projeto heideggeriano. Levinas prev o risco deoDasein, apropriando-se do ser, impor-se como princpio em detrimento eventual de qualquer Outro. Enfim,far-se- necessrio para Levinas abandonar todo e qualquer discurso sobre o ser e tentar dizer a realidadeoutramente que ser. Ser, portanto, de grande importncia descobrir o Infinito como instncia ltima dafilosofia mediante a tica.

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    na relao com o mundo que Levinas percebe o surgimento da interioridade do sujeito, a

    qual condio de uma vida separada (contrria participao no ser). De fato, vivemos

    de boa sopa, de ar, de luz, de espetculos, de trabalho, de idias, de sono, etc. (TI: 96),

    contudo a relao primeira do Eu para com o mundo no de representao ou de

    instrumentalidade, a sua necessidade primeira no de tomada de conscincia do mundo

    ou de realizao de um fim; as coisas primeiramente se oferecem ao prazer. Viver de... a

    estrutura transitiva da vida que se realiza no gozo(jouissance) de seus complementos. Em

    toda relao de prazer h, de certa forma, um princpio de alimentao: o Eu reconhece nas

    coisas um outro, uma energia diferente e, alimentando-se delas, transmuta-as em Mesmo,

    em a minha energia, a minha fora, eu (TI: 97). O gozo esta maravilha da vida e nisto

    consiste a felicidade do Eu: na satisfao gratuita e imediata de suas necessidades (TI:

    101). Fruir sem utilidade, em pura perda, gratuitamente, sem remeter para mais nada, em

    puro dispndio eis o humano (TI: 118).

    A necessidade (besoin) no se reduz mera fisiologia ou biologia, nem se d como causa

    para um efeito. O gozo, como satisfao das necessidades, j um primeiro momento de

    transcendncia: De fora, a fisiologia ensina-nos que a necessidade uma falta, porm, o

    fato de o homem poder ser feliz com as suas necessidades indica que o plano fisiolgico

    transcendido pela necessidade humana, que, a partir da necessidade, estamos fora das

    categorias do ser (TI: 100). A necessidade do Eu em relao ao mundo traz em si a

    ambigidade de dependncia e independncia. Por um lado, o Eu depende do mundo que ocompleta e satisfaz, ele tende para o mundo (intencionalidade), mas por outro, retorna para

    si reafirmando sua alteridade em relao a seus contedos (interioridade) e capaz

    inclusive de se abster dos mesmos. Viver de... a dependncia que se muda em soberania,

    em felicidade essencialmente egosta (TI: 100).

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    Levinas atribui individualidade do gozo o princpio de individuao dos sujeitos: E

    porque a vida felicidade, pessoal. A personalidade da pessoa, a ipseidade do eu, mais

    do que a particularidade do eu e do indivduo, a particularidade da felicidade e do gozo

    (TI: 101)5. o psiquismo, e no a matria, que traz um princpio de individualizao (TI:

    46). O gozo de suma importncia para a constituio do sujeito, pois s um ser egosta e

    soberano capaz de viver separado e possuir uma identidade.

    A intencionalidade do gozo se distingue da intencionalidade da representao. Segundo a

    crtica de Levinas,

    a tese husserliana sobre o primado do ato objetivante [...] leva a filosofiatranscendental afirmao to surpreendente aps os temas realistas que aidia de intencionalidade parecia abordar de que o objeto da conscincia,distinto da conscincia, quase um produto da conscincia, como sentidoemprestado por ela, como resultado da Sinngebung(TI: 108).

    Na representao, o objeto perde sua oposio ao sujeito, pois o outro identificado com o

    Mesmo, uma vez reduzido pela conscincia a um noema. J no gozo, o sujeito feliz e os

    contedos com que se satisfaz no se confundem. A ambigidade

    dependncia/independncia inerente ao gozo afirma a exterioridade como no constituda

    pelo Eu (TI: 112). Ainda que no gozo o Mesmo determine o outro, h um extravasar de

    sentido naquilo de que se alimenta. Ao invs de conscincia de..., viver de.... Esta

    afirmao ter importante ressonncia na relao social do Eu com o Outro, cuja

    exterioridade absoluta e de nenhum modo pode ser constituda nem determinada pelo

    Mesmo.

    5A verso portuguesa traduz jouissancepor fruio, mas preferiu-se aqui alter-la e usar gozo a fim dedistinguir da fruio esttica.

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    1.3 Em casa

    A condio paradisaca de gozo colocada em risco diante do futuro incerto. A

    preocupao do amanh leva o Eu a trabalhar para vencer a insegurana e instaurar a

    posse, exigindo do sujeito a possibilidade de recolher-se num espao prprio a partir do

    qual possa abordar a extraterritorialidade. Tal recolhimento realiza-se como casa: O

    homem mantm-se no mundo como vindo para ele a partir de um domnio privado, de um

    em sua casa, para onde se pode retirar em qualquer altura (TI: 135). Surge, ento, uma

    nova relao do sujeito com o mundo: a economia6.

    Para que se realize a interioridade do sujeito, no basta construir e possuir uma casa

    enquanto edifcio; no o isolamento da casa que suscita o recolhimento H que

    inverter os termos: o recolhimento, obra de separao, concretiza-se como existncia

    econmica. Porque o eu existe recolhendo-se, refugia-se empiricamente na casa (TI: 136-

    7). A partir desse recolhimento, o edifcio recebe a significao de morada e delineia a

    separao do sujeito enquanto vida em sua casa, isto , vida interior. A casa faz-se, ento,

    um espao de intimidade e familiaridade, onde o Eu se identifica plenamente; a casa o

    Mesmo, nela o eu espalha e espelha em todas as coisas o seu prprio eu (S USIN, 1984:

    54).

    Mais que recolhimento, a morada refere-se ainda a um acolhimento. A familiaridade que a

    morada instala supe uma intimidade, e isto se d atravs da presena do Outro. Na

    intimidade com Outrem, a morada se faz lar, lugar de aconchego, doura, acolhimento. E

    o outro, cuja presena discretamente uma ausncia e a partir da qual se realiza o

    6 A etimologia da palavra economia (no francs, conomie) remete a seu sentido original: do grego,(ikos= casa, nmos= medida).

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    acolhimento hospitaleiro por excelncia que descreve o campo da intimidade, a Mulher

    (TI: 138). O feminino a prpria doura que torna possvel o recolhimento e o

    acolhimento no seio da casa. A ambigidade da ausncia na presena, ou do recolhimento

    no acolhimento, marca a prpria ambigidade do sujeito, cuja porta ao exterior deve estar a

    um tempo aberta e fechada:

    preciso que a interioridade, ao assegurar a separao [...], produza um serabsolutamente fechado sobre si prprio, que no tira dialeticamente o seuisolamento da sua oposio a Outrem. E necessrio que tal encerramento noimpea a sada para fora da interioridade, para que a exterioridade possa falar-lhe, revelar-se-lhe, num movimento imprevisvel que o isolamento do serseparado no poderia suscitar por simples contraste. (TI: 132)

    Nesta ambigidade est a peculiaridade da constituio da subjetividade abordada por

    Levinas como casa. certo que o sujeito pode fechar-se no seu egosmo, ou seja, na

    prpria realizao do seu isolamento (TI: 154), mas essa possibilidade no atesta o erro da

    separao, e sim a sua verdade e o seu radicalismo; a possibilidade para a casa de se abrir

    a Outrem to essencial essncia da casa, como as portas e as janelas fechadas (TI:

    154). Ademais, embora absoluto (enquanto separado), O Mesmo no o Absoluto [...]; a

    sua realidade no total na sua existncia econmica. apenas ao abordar Outrem que me

    ajudo a mim mesmo (TI: 160). A vida interior no consiste na situao ltima do sujeito,

    e sim na sua condio.

    1.4 Alteridade e diacronia

    A passagem da existncia ao existente inaugura o tempo. Contudo, no Eu, como auto-

    presena a si mesmo, o tempo s se d como presente; toda referncia ao passado e ao

    futuro remete para este instante identificador. De que modo o tempo se d plenamente? A

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    ltima parte de De lexistence lexistant j anunciava a resposta, mas seu

    desenvolvimento s apareceria emLe temps et l'autre.

    A tese de Levinas que, face ambigidade da presena/ausncia do Outro, o tempo

    triunfa como ruptura e descontinuidade mediante a morte, o erose a fecundidade.Le temps

    et l'autrese inicia retomando o tema da hipstase com o acrscimo de alguns aspectos, por

    exemplo a anlise do gozo (TA: 45s), que viria a ser desenvolvido mais tarde em Totalit

    et Infini. Porm a partir da metade da obra que Levinas oferece o novo daquele texto. A

    anlise do sofrimento do sujeito marca uma transio. Por um lado, o sofrimento fsico,

    em todas as suas gradaes, uma impossibilidade de destacar-se do instante da

    existncia (TA: 55), ou seja, uma incrustao no presente em que se sofre. Por outro, a

    dor iminncia de um porvir, anncio da proximidade da morte.

    O incgnito da morte significa que o sujeito est em relao com aquilo que no vem

    dele. Podemos dizer que est em relao com o mistrio (TA: 56). Como condio

    emergente, inevitvel e imprevisvel do sujeito, a morte perturba e questiona a virilidade e

    o poder do Eu. No que diante da morte no haja nada a se fazer, no se trata de uma

    impotncia frente a uma fatalidade. No aproximar-se da morte, o importante que em um

    certo momento no podemos mais poder (TA: 62). A morte por vir pe o sujeito em

    relao com algo que extrapola qualquer criao ou projeto seu. O porvir uma incerteza

    do tempo, uma estranheza, ou ainda, uma alteridade: H um abismo entre o presente e amorte, entre o eu e a alteridade do mistrio (TA: 73).

    A morte instaura o paradoxo que permite a instaurao do tempo. O sujeito sofre, est s

    enquanto Eu, mas porque mortal no est encerrado no presente. Eis a situao que torna

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    possvel a sada do Eu de sua solido para entrar em relao com o Outro 7. Essa relao, a

    bem dizer, j o tempo. O el do tempo, frente ao abismo entre o instante presente e o

    instante da morte, d-se na relao com Outrem. A figura apresentada por Levinas para

    expressar a relao o amor: O Eros, forte como a morte, nos fornecer a base da anlise

    desta relao com o mistrio (TA: 64)8.

    No amor, embora o desejo busque comprazer-se na carcia, o Eu no toma posse, pois a

    amada lhe escapa sempre. Entretanto, segundo Levinas, Aquilo que apresentado como o

    fracasso da comunicao no amor constitui precisamente a positividade da relao. Essa

    ausncia do outro precisamente sua presena como outro (EE: 113). A diferena entre o

    gozo e o eros, entre a sensao e a carcia est em que naquele o objeto para o qual

    intenciona se identifica com o sujeito. J no eros e na carcia, o objeto da

    intencionalidade no est dado, sempre inacessvel, inapreensvel, sempre porvir (TA:

    82). Isso porque o Outro no se deixa possuir nem re-presentar; est presente e ao mesmo

    tempo ausente na sua recusa de ser contedo, exterioridade. A feminidade, no seu

    apresentar-se escondendo-se, a situao na qual a alteridade do Outro aparece na sua

    pureza. A dualidade no se funde nem se neutraliza na relao, esta sempre irrecproca,

    anacrnica e assimtrica (TA: 77s).

    A ltima figura da alteridade trazida por Le temps et lautre configura ainda uma outra

    forma de relao entre alteridade e tempo. A fecundidade apresenta-se como a

    7Vale observar que neste momento inicial no aparece ainda um aspecto a respeito da morte que se tornarpreponderante mais tarde na obra de Levinas, qual seja, a relao do eu com a morte do outro como assunoda responsabilidade diante do imperativo do Tu no matars (cf. p. e. TI: 211ss). O irnico est em que oautor questionava como possvel que a abordagem principal da nossa relao com a morte tenha escapado ateno dos filsofos (TA: 42) e parece que ele mesmo ainda no se tinha dado conta do alcance dareflexo que iniciara.8Cfr. Cnticos8, 6: o amor forte como a morte.

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    possibilidade de um Eu permanecer num Outro sem que se anulem mutuamente. Decerto o

    pai est presente no filho, porm este no simplesmente obra sua, como o um poema ou

    uma obra de arte, nem mesmo sua propriedade. Trata-se de um Outro que, tendo advindo

    do Eu, no , todavia, seu alter ego.(TA: 86). Para alm da expectativa e do empenho do

    pai, o filho se apresenta como um porvir. Mas no tambm um evento isolado, pois nasce

    de uma relao de eros e ele prprio relao de alteridade com os pais. Levinas entende

    isso como uma descontinuidade no tempo, ultrapassando at mesmo a morte e, assim,

    instaurando uma dimenso temporal que transcende o intervalo anteriormente dito; o

    tempo transcende o entretempo9.

    9 Levinas se contrape concepo de temporalidade husserliana. Na Fenomenologia da Conscincia doTempo Imanente, Husserl analisa o tempo enquanto objetal, colocando entre parnteses o transcendente evoltando-se para o ato de percepo da conscincia, na qual somente o tempo pode ser dado. O tempo semanifesta na conscincia como durao mediante sucessivos atos. Cada ato de percepodo objeto gera umaimpresso na conscincia; mesmo aps a percepo, o objeto retido pela memria e permanece presente,embora no com a mesma vivacidade. Do mesmo modo, cada impresso gera na conscincia umaexpectativa, ao que Husserl denomina proteno. Se se v um objeto e piscamos os olhos (HUSSERL, 1959:54), pode-se notar este processo. No momento em que o objeto mirado, ele est presente conscincia peloato de percepo. No instante seguinte, quando os olhos so fechados, o objeto no se esvai simplesmente,ele recordado, remetendo a conscincia quele ato em que o objeto foi percebido. E j h na conscincia a

    expectativa de um ato subseqente, em que o objeto no ser percebido do mesmo modo, mas alterado eassim sucessivamente. Contudo, cada ato particular na percepo que o objeto originalmenteconstitudo e a sua representao o atualiza, torna o objeto presente conscincia de modo similar, mas nocomo uma nova percepo, e sim como um novo ato, a reteno(ib.: 89). A sucesso percepo-reteno-proteno constitui para a conscincia o fenmeno do tempo. No agora (ato presente) o ato anterior retidocomo passado e o ato ulterior esperado como porvir. O agora anterior j no , porm tambm aindaa pela reteno; o agora posterior um ainda no, porm tambm j a pela proteno (DEHH: 185).A descrio de Husserl acaba por identificar o tempo com o processo do conhecimento. O tempo, enquantofenmeno, apresenta-se imanente prpria conscincia. Na constituio do tempo, inteno e acontecimentocoincidem, pois o tempo o prprio modo da conscincia de sentir seu objeto, o fluxo do vivido conscincia do tempo (DEHH: 185), a prpria temporalizao (DEHH: 186).

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    2. Exotismo

    A arte como questo posta pela primeira vez em De 1existence 1existant, no tpico

    entitulado Lexotisme, o qual pode ser visto como uma preparao para a crtica

    antiesttica enfatizada no artigo La ralit et son ombre. Embora Levinas no volte a

    dedicar um trabalho questo da arte tal como o fez em La ralit et son ombre, ela

    continua presente em abordagens breves e secundrias e suas reflexes inicias nunca sero

    perdidas de vista, ainda que com novas nuances10.

    A crtica levinasiana da arte se inicia acentuando o carter imagtico da obra. O

    pressuposto de que a arte interpe entre o sujeito e os objetos uma imagem desses,

    retirando-os da perspectiva do mundo. H na arte uma dimenso de evaso:Alcanamos,

    por a, a experincia mais corrente e mais banal do prazer esttico. uma das razes que

    fazem aparecer o valor da arte. [...]. Libera. Fazer ou desfrutar uma novela ou um quadro

    no ter que conceber, renunciar ao esforo da cincia, da filosofia e do ato (EE: 63-4).

    Entretanto, supe uma admirao em silncio e um recuo da reflexo. A esttica privilegia

    a sensao e a toma em si mesma como objeto, de modo que a intencionalidade se perde e

    retorna impessoalidade do elemento. O movimento esttico um exotismo, um modo de

    arrancar-nos do mundo (EE: 61). Traduz-se, assim, num passo atrs com relao ao

    movimento de evaso do ser, numa espcie de evaso ao inverso ou obstculo evaso. A

    descrio esttica de Levinas se apresenta trgica, associando arte e il y a.

    10Em alguns textos posteriores, Levinas, ao tratar da arte, remete o leitor ao artigo La ralit e son ombre;ver DL: 408; TI: 200; AE: 235; AT: 137.

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    2.1 Entretempo e morte na arte

    Visto que o tempo um mais alm do instante, a arte por sua vez interpretada por

    Levinas como um mais aqum. Levinas contrape o instante na melodia ao instante do

    esforo no trabalho. Segundo o autor, a msica se aproxima de um jogo de evanescncia:

    Os instantes da melodia s esto a para morrer (EE: 34). Ora, tambm o instante do

    existente se desvanece. Porm na msica o instante nunca se consuma, ele s existe

    enquanto anulado na expectativa do instante seguinte, o que configura a durao da

    melodia. J para o sujeito, a durao na execuo da obra laboral assumida em cada

    instante de esforo enquanto presente. Cada ato uma parada de posio e realizao,

    rompendo e reatando o fio do tempo (EE: 35). Na execuo da msica, essa posio no

    possvel, os instantes nunca so assumidos de modo presente11.

    Levinas afirma que toda obra de arte , ao final de contas, esttua uma suspenso do

    tempo, ou melhor, seu adiamento sobre si mesmo (IH: 119). Conforme visto, na hipstase

    do sujeito o instante apresentou-se como constante renovar-se e, na presena do Outro,

    como porvir. Na arte, por sua vez, um determinado instante capturado na obra de modo a

    conservar-se sempre nela e passa, paradoxalmente, a perdurar infinitamente imvel. O

    porvir suspendido: eternamente estar Laocoonte prendido no lao das serpentes,

    eternamente a Gioconda sorrir (IH: 119).

    11 Tambm nesse ponto Levinas se contrape a Husserl. Ao longo da Fenomenologia da Conscincia doTempo Imanente, Husserl remete freqentemente ao exemplo da msica para descrever a constituio dotempo. Na constituio da melodia, Ao apreender o tom que agora aparece, que agora escutado, por assimdizer, fundem-se a recordao primria dos tons recentemente ouvidos, no modo de smile, e a expectativa(proteno) relativa aos tons ainda deficientes (HUSSERL, 1959: 84). Sem este elo de durao temporal, amelodia no seria mais que uma sucesso fragmentada de tons. A unidade da melodia percebida pelaconscincia corresponde apreenso do fenmeno da durao do tempo que constitui a prpria conscincia.J para Levinas, tal correspondncia no procede porque o tempo no imanente, mas sim transcendente aoeu.

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    A esttua, como figura da inrcia, no se restringe s artes plsticas. Segundo o autor,

    mesmo quando se tenta introduzir o tempo nas artes no-plsticas, seja na msica,

    literatura, teatro ou cinema, a fixidez da imagem se conserva. Sob pretexto de se reproduzir

    a durao do tempo, este substitudo por uma repetio infinita do enredo, o qual, por sua

    prpria natureza de obra, est fadado durao que lhe foi atribuda na sua concepo.

    No h remisso possvel para os personagens, seu destino est para sempre encerrado no

    intervalo determinado da obra. Assim, no s os objetos como tambm o prprio tempo

    transformado em imagem. O tempo interno obra torna-se uma caricatura do tempo e o

    porvir substitudo pelo destino (IH: 120).

    Para Levinas, arte e sonho se aproximam, ou melhor, arte e pesadelo: E a convm ainda

    aproximar arte e sonho: o instante da esttua o pesadelo (IH: 121). Vale lembrar que o

    autor usara a figura da insnia como expresso da viglia annima diante do il y a, em que

    os objetos do mundo escapam ao sujeito e ele prprio extinto diante da impessoalidade

    do ser (EE: 79-81). A figura do pesadelo surge agora para indicar a retrao da arte ao

    elemental, ao nvel impessoal do ser, anterior ao posicionamento do existente diante da

    existncia. Por que pesadelo e no simplesmente insnia? Embora esta relao no esteja

    explicitada no texto, a sugesto parece ser de que na arte a viglia mediada por imagens.

    Alm de na obra o ser no se revelar luz da conscincia, obscurece-se sobremaneira

    travestido na imagem, de modo que a obra acaba por se apresentar como o reverso da

    verdade do ser um entardecer, uma invaso de sombra (IH: 110). Tal figura remetequela da noite como experincia do il y a, do horror das trevas (EE, 68-9). No

    obstante, a esttica no se identifica figura do sono, anteriormente visto como tomada de

    posio do sujeito num lugar de repouso, pois na arte o sujeito no assume uma posio no

    mundo; ao invs, o mundo lhe arrancado por debaixo dos ps como em um pesadelo.

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    A sombra remete ao evento da morte. Se em Le temps et lautrea morte manifestou-se

    como alteridade, em La ralit et son ombre a arte identificada morte em sentido

    diverso. Quando Levinas afirma que a arte est fadada repetio do destino inerente

    obra, conclui que a vida da obra j morte. A morte no assume aqui o carter de porvir,

    mas de inrcia, de esttua. A bem dizer, a obra no tem vida, apesar do intuito do artista de

    conferir-lhe uma. Isso porque nela o tempo no se realiza, seja porque em sua fixidez o

    instante no se esvai e no se renova, seja porque, na msica, ele se esvai antes mesmo de

    ser assumido como instante presente. A esttua uma vida sem vida, uma caricatura da

    vida: Uma presena que no se recobre a si mesma e que se transborda por todos os lados,

    que no tem em mos os cordes da marionete que (IH: 120). Quando assumida no

    tempo, a morte remete a uma transcendncia, mas quando destituda dele, o porvir

    permanece imanente. A transcendncia do tempo significa que o porvir promessa de um

    presente novo, ao passo que na arte a renovao negada, numa eterna durao do

    intervalo, jamais acabado algo de inumano e monstruoso (IH: 120).

    Levinas aponta ainda outro aspecto na relao entre arte e morte. Diante da morte agora

    tomada como evento concreto da existncia humana no mundo o homem parece tentar

    neg-la atravs da arte. como se a obsesso em dar obra uma durao infinita se

    mostrasse como uma relutncia em encarar a finitude e uma tentativa de superar a morte

    despojando-a do poder de interromper a vida. Nesse sentido, arte e paganismo se

    aproximam:

    O fato de que a humanidade haja podido dar-se uma arte revela no tempo aincerteza de sua continuao e como que uma morte duplicando o impulso davida a petrificao do instante no sentido da durao castigo de Nobe , ainsegurana do ser pressentindo o destino, a grande obsesso do mundo artista,do mundo pago. (IH: 123)

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    2.2 Ritmo

    A idia de ritmo evocada por Levinas para expressar o modo como a obra de arte afeta o

    sujeito. Caracteriza uma extenso do efeito da msica sobre o sujeito, mas no se restringe

    msica, uma categoria esttica geral (IH: 112). Por que da msica? Ora, a msica

    talvez a arte mais invasiva, mais irrecusvel, que afeta o sujeito sem pedir licena, sem

    necessidade de um ato voluntrio prvio. s artes visuais, h que se abrir e volver os olhos

    para perceb-las e, contrariamente, pode-se virar-lhes as costas ou fechar os olhos, porm

    msica no, assim como no poesia quando declamada. No h o ato de abrir os ouvidos,

    o sujeito est desde sempre de ouvidos abertos, exposto ao som que vem de todas as

    direes, limitado apenas pela acstica e distncia de sua repercusso12. muito difcil

    fugir do som, mesmo tapar os ouvidos pode no ser suficiente para recus-lo. O mesmo

    ocorre com o olfato e tambm o tato, porm esses exigem uma proximidade maior para que

    o sujeito seja afetado. A bem dizer, a viso talvez o nico sentido em que a atividade

    pode assumir um carter mais forte do que a passividade no sujeito, pois ver supe

    direcionar os olhos em direo a algo. At mesmo o corpo parece comandado pela msica,

    absorvido, em um automatismo particular do andar ou da dana ao som da msica (IH:

    112).

    O ritmo a situao em que os elementos se impem ao sujeito.

    Porm se impem a ns sem que os assumamos. Ou melhor, nossoconsentimento para com eles se inverte em participao. Entram em ns ouentramos ns neles, pouco importa. O ritmo representa a situao nica na qualno se pode falar de consentimento, de assuno, de iniciativa, de liberdade porque o sujeito agarrado e levado pelo ritmo. [...] Nem sequer a pesar dele,pois no ritmo j no h si-mesmo, e sim como que uma transio de si aoanonimato. (IH: 112)

    12Essa considerao tributria a Ricardo Timm de Souza, a partir de uma conferncia acerca de Adornopronunciada no Institut Goethe, Porto Alegre, RS em maio/2006.

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    O ritmo resulta na perda do objeto: O som a qualidade mais desligada do objeto. Sua

    relao com a substncia da qual emana no se inscreve em sua qualidade. Ressoa

    impessoalmente. [...] Assim, escutando, no apreendemos um algo, mas sim ficamos sem

    conceitos (IH: 113). Nisso no se distinguem artes figurativas e no-figurativas, ou a arte

    clssica e a moderna: O objeto representado, pelo simples fato de fazer-se imagem,

    converte-se em no-objeto; [...] desencarnao da realidade atravs da imagem (IH: 114).

    Pela imagem, a representao artstica, ao invs de tornar presente o objeto ausente, insiste

    sobre sua ausncia e ocupa seu lugar. Desinstitui o objeto de seu lugar prprio para que

    vigore em substituio seu reflexo. Ao invs de projetar a realidade para uma possvel

    significao mais alm de si mesma, f-la regredir ao mais aqum, ao elemental. a

    ambigidade no ser (IH: 117). Na arte, a realidade no se revela, e sim se vela, ou se perde

    em seu prprio vu.

    As coisas constituem o mundo. o trabalho que separa as coisas dos elementos (TI:

    140), suscitaas coisas e transforma a natureza em mundo (TI: 139). Pelo trabalho, O

    futuro incerto do elemento suspende-se. O elemento fixa-se entre as quatro paredes da

    casa, acalma-se na posse. Apresenta-se a como coisa, que pode definir-se, qui, pela

    tranqilidade, como numa natureza-morta (TI: 140-1). Assim, apazigua o murmrio

    annimo do h, a barafunda incontrolvel do elemental, inquietante (TI: 142). Em

    oposio, a orientao esttica resulta em regresso ao gozo e ao elemental (TI: 124). De

    modo especial, Levinas percebe na pintura e na poesia modernas, em seu protesto contra orealismo e na destruio da representao, um esforo em banir a alma e o horizonte do

    mundo e em apresent-lo na sua pura materialidade, lanando sobre ns Elementos nus,

    simples e absolutos, intumescncias ou abscessos de ser (EE: 66).

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    A arte se vale, por certo, da percepo dos sons, cores, palavras e movimentos que

    recobrem um objeto. Mas o que especifica o evento esttico fazer desses elementos seu

    objeto ao mesmo tempo em que no conduzem a nenhum objeto e esto em si, isto , o

    evento da sensao como sensao (EE: 63). No retorno ao elemental tudo se torna

    susceptvel de transmutar-se, pois que livres de voltarem a um objeto pelo qual deveriam

    reunir-se univocamente. Na msica, o som se torna melodia e o barulho percusso; na

    pintura, as cores produzem constrastes; na poesia, as palavras se oferecem ao jogo mtrico

    e de aliterao; no teatro, os gestos danam; no cinema, a luz se projeta em perspectivas

    tudo num jogo incessante de ambigidades, intercmbios e descontinuidades, no qual as

    palavras cantam, as cores se movimentam, os movimentos falam, os sons brilham. No

    fosse isso e a obra no se ofereceria contemplao, passaria despercebida no conjunto

    prosaico das coisas do mundo. O desnudamento propicia o afastamento necessrio e a

    quebra da funcionalidade: a moldura tira o quadro da parede, o palco interrompe a rua, o

    verso alitera a palavra, a composio seleciona os sons nos quais atentar o ouvido, o cinzel

    determina a distino entre a escultura e seu suporte13.

    A perda do objeto traduz-se em perda do sujeito, num estado em que o ser-no-mundo

    substitudo pelo entre as coisas. O sujeito passa a estar entre as coisas, como coisa,

    como formando parte do espetculo, exterior a ele-mesmo (IH: 112), invertendo poder em

    participao. Pela imagem, o mundo escapa mo do sujeito, torna-se-lhe alheio, no pode

    ser possudo nem assimilado. Do mesmo modo, o sujeito se apresenta a si mesmo alheio,incapaz de coincidir consigo mesmo, pois que perdido na sombra de seu prprio ser: E

    assim como a pessoa leva sobre sua prpria face, ao lado de seu ser com o qual coincide,

    13 No se pode ignorar, contudo, a restrio de tal leitura esttica a determinadas poticas, sobretudo nacontemporaneidade quando, por exemplo, o conceito de instalaocoloca em cheque os limites entre obra eambiente, ou seja, entre arte e mundo.

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    sua prpria caricatura, seu pitoresco. (IH: 115). O sujeito diante da obra de arte

    experimenta uma perda de posio, uma retirada de si mesmo, como trapos de uma

    alma (IH: 115).

    Arte e conhecimento apresentam-se como duas possibilidades contemporneas do ser

    (IH: 117). Na arte, o ser se introduz no mundo como alegoria pela imagem; no

    conhecimento, como verdade pelo conceito. Neste, clareia-se; naquela, obscurece-se. No

    se trata para Levinas de se negar a sombra da realidade, mas antes, de no se perder nela,

    de no se substituir a realidade por sua sombra.

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    II

    AURORAouUMA INVASO DE LUZ

    Por que, para ns, no mago do dia pode aparecer algumacoisa, talvez, que no seja o dia, alguma coisa que, numa

    atmosfera de luz e limpidez, representasse o arrepio de pavor deonde saiu o dia?

    (Friedrich Nietzsche)

    O homem desfeito segundo a sua imagem.(Maurice Blanchot)

    1. xodo

    No contexto deDe 1existence 1existanteLa ralit et son ombre, a anlise esttica tem

    em vista as relaes entre um Eu e a obra de arte, seja aquele enquanto artista, seja

    enquanto fruidor. Entretanto, no ltimo pargrafo de La ralit et son ombre, Levinas

    acena para o fato da limitao das anlises daquele texto e da possibilidade de estend-las,

    para alm do mbito sujeito-objeto, em direo relao com Outrem. A reflexo esttica

    naquelas obras, portanto, ainda no tem em conta a dimenso da alteridade e da tica

    dimenso consagrada a partir de Le temps et lautre, obra essa em que a questo esttica

    est ausente. A partir dessa nova perspectiva seguem-se as anlises deste captulo. Aps

    terem sido descritos os movimentos de evasoe de exotismo, passa-se a um terceiro: xodo

    o qual importa ser analisado tendo em vista suas implicaes estticas. Quando da

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    oposio entre evaso e exotismo, levou-se em considerao sobretudo a relao do Eu

    para com o mundo; trata-se agora de por a arte em questo diante da epifania do Outro.

    O xodo inscreve um sentido tico, o pr-se em movimento para se colocar no lugar do

    outro (DVI 30). Ademais, assume um sentido especulativo. Levinas percebe o

    desenvolvimento do pensamento ocidental como discurso de dominao, seja pela

    hegemonia clssica do ser, seja pela moderna do Eu, ambas traduzidas em tendncia

    unificadora e totalizante, que exclui o confronto e a valorizao da diversidade; em

    contraposio, a obra levinasiana pretende-se xodo e exlio14. Poder-se-ia tambm pensar

    em um sentido estticodo xodo?

    1.1 Desejo e vestgio do Infinito

    Um novo mbito de realidade se abre a partir da exterioridade. Se a interioridade do Eu

    coloca em questo o formalismo do ser, a exterioridade do Outro no s o faz tambm,

    como questiona o prprio egosmo do Eu. A bem dizer, No sou eu que me recuso ao

    sistema, [...] o Outro (TI: 28); No a insuficincia do Eu que impede a totalizao,

    mas o Infinito de Outrem (TI: 66). A exterioridade do Outro concretiza a separao do

    sujeito mostrada na identificao do Eu e sua alteridade absoluta marca a impossibilidade

    da generalizao.

    14E vale dizer, movimento tambm biogrfico; a obra reflete, de certa forma, o itinerrio pessoal do autor.Levinas nasceu em Kaunas (Litunia) em 1906, no seio de uma famlia hebraica. Por ocasio da I GuerraMundial, sua terra natal foi ocupada pelos alemes e ele refugiou-se com a famlia na Ucrnia (1915), ondeassistiu revoluo de Outubro (1917). Mais tarde, estabeleceu-se na Frana (1923) e iniciou estudos defilosofia em Strasbourg. Dirigindo-se a Freiburg, Alemanha (1928-9), tornou-se aluno de Edmund Husserl eMartin Heidegger, dos quais viria a ser um dos primeiros a introduzir o pensamento na Frana. Retornou aParis at que, tendo eclodido a II Guerra Mundial, foi capturado e feito prisioneiro pelos alemes (1940-5);nesse perodo seus parentes lituanos foram exterminados. Retornando Frana, dedicou-se direo daEscola Normal Israelita Oriental de Paris (1946-64), lecionou depois na universidade de Poitiers (1964-7), nade Nanterre (1967-1973) e na de Sorbonne (1973-80). Faleceu em Paris em 1995. (Ver MALKA, 2002;VZQUES MORO, 1982: 1-6).

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    A alteridade do Outro no se d por negao do Eu, como se Outrem fosse diante de mim

    um mero no-Eu. Identificar o Mesmo e o Outro por simples oposio seria ainda englob-

    los numa totalidade da qual fariam parte (TI: 26). Tambm no se trata de deduzir da

    identidade do Eu a alteridade de Outrem, pois este se revela de forma completamente

    diferente. Outrem no um outro de mim, no um alter ego15. A originalidade de Outrem

    no estar para mim na sua subjetividade e interioridade, mas na alteridade como tal

    (SUSIN, 1984: 199). A relao entre o Eu e o Outro marcada por uma assimetria radical

    que impossibilita a identificao recproca e a constituio do sistema. O absolutamente

    Outro Outrem; no faz nmero comigo. A coletividade em que eu digo tu ou ns no

    um plural de eu. Eu, tu, no so indivduos de um conceito comum (TI: 26). Abordar o

    Outro como parte de um todo negar a sua alteridade e se traduz em um ato de violncia.

    Para Levinas, a relao do Eu com o Outro est fixada na situao descrita por Descartes

    em que o eu penso mantm com o Infinito, que ele no pode de modo nenhum conter e

    de que est separado, uma relao chamada idia do infinito (TI: 35-6). A idia do

    infinito caracteriza-se primeiramente pela sua incomensurabilidade em relao quele que

    a pensa: o infinitamente mais contido no menos (TI: 175). Como tal, no pode ser

    apreendida nem constituda pela conscincia: destri o conceito de imanncia: a idia do

    infinito na conscincia um transbordamento dessa conscincia (TI: 183). Idia que s

    pode vir de fora, como absoluta exterioridade: a relao com o infinito [est] na dupla

    estrutura do infinito presente no finito, mas presente fora do finito (TI: 189). Contudo, oinfinito no se apresenta como uma negao do finito: Descartes, melhor do que um

    idealista ou que um realista, descobre uma relao com uma alteridade total, irredutvel

    15Levinas critica Husserl tanto por constituir o Eu como ego puroquanto por constituir a alteridade comoalter egoem analogia conscincia do Eu (ver TRI: 31-32; DERRIDA, 1967).

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    interioridade e que, no entanto, no violenta a interioridade; uma receptividade sem

    passividade, uma relao entre libertos (TI: 189)16.

    A essa relao, Levinas chama vestgio (trace) do Infinito17. O vestgio do Infinito no

    significa uma presena do Infinito no rosto propriamente falando, mas somente enquanto

    ausente. Quando no rosto se possa estabelecer uma correspondncia com sinais

    perceptveis pelo sujeito, o Infinito j escapou. Expressar um vestgio s possvel em sua

    contradio. Identific-lo para encontrar sua origem seria neg-lo e, a bem dizer, o vestgio

    nada indica ou indica aquilo que no tem origem, o pr-original, o an-rquico. Ele se

    conserva sempre aqum do logos (HH: 91), pois o lugar onde se quereria encontr-lo o

    no-lugar da exceo ao presente (HH: 96), o imemorial (OS: 88). Este modo de passar

    inquietando o presente sem se deixar sitiar pela da conscincia, marcando com riscos

    16 Interessa sobremaneira a Levinas a concepo cartesiana da idia de Deus como a afeco do finito peloinfinito, [..] pensamento que pensa mais do que pensa ou que faz melhor do que pensar (TRI: 23-4). No, porm, a prova da existncia de Deus procurada por Descartes na idia do Infinito que interessa a Levinas,sua reflexo parte em direo nfase da alteridade (ver OS: 158). Ele afirma: No teologia que eu fao, esim filosofia (LC: 122), porm, no acesso ao rosto, h certamente tambm um acesso idia de Deus (EI:83), de modo que a dimenso do divino abre-se a partir do rosto humano (TI: 64). Questionado a respeito,ele responde: O senhor pensa: que feito do Infinito que o ttulo anunciava: Totalit et Infini? No tenhoreceio da palavra Deus, que aparece muitas vezes nos meus ensaios. O Infinito vem-me idia nasignificncia do rosto. O rosto significa o Infinito (EI: 97). A expresso d ttulo a um de seus ltimoslivros,De Dieu qui vient l'ide(1982). O Outro , ento, um mediador entre Deus e ns? No, Outrem no encarnao de Deus, mas precisamente pelo seu rosto, em que est desencarnado, a manifestao da alturaem que Deus se revela (TI: 65).17A expresso se inscreve no limite do trao. A palavra francesa tracepode ser traduzida por rastro (cf. EE),vestgio (cf. HH) ou mesmo trao, mas este no em sentido material, ao que corresponde melhor a palavratrait(risco, trao); talvez se possa estabelecer uma distino parecida no portugus entre rasto e rastro. Oconceito de traceem Levinas tem carter puramente metafsico, conservando, contudo, certa ambigidadequanto a sua manifestao no sensvel do trao que ofusca o trao, do risco que coloca o sentido em risco.Levinas acentua a distino: Esta posio de vestgio [ trace] [...] no comea nas coisas, as quais, por simesmas, no deixam vestgio; elas produzem efeitos, isto , permanecem no mundo. Uma pedra riscou outra.O risco [rayure] pode, com certeza, ser tomado por um vestgio; na verdade, sem o homem que segurou apedra, o risco nada mais que um efeito. [...] Tudo nas coisas exposto, mesmo seu desconhecido: osvestgios que as marcam fazem parte desta plenitude de presena, sua histria sem passado (HH: 78/ HHfr:68).

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    a claridade do ostensvel, o que chamamos vestgio (OS: 165). Nisso o vestgio se

    distingue da imagem18.

    A idia do Infinito, no brilho do rosto de Outrem, desperta no Eu uma aspirao nova: o

    desejo (desir), o qual difere-se radicalmente da necessidade. A necessidade, que est na

    base do gozo, marca uma relao com um outro captado pelo Eu que o alimenta e atravs

    do qual se satisfaz, de modo que sua alteridade incorpora-se na identidade do Mesmo. J

    na estrutura do desejo, a alteridade e exterioridade do Outro conservada. O Eu tende

    para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro. [...] O desejo metafsico

    tem uma outra inteno deseja o que est para alm de tudo o que pode simplesmente

    complet-lo (TI: 21-2). Como tal, o desejo insacivel, no pela ilimitao do apetite ou

    pela escassez de alimento, mas porque no apelo de alimento (TI: 50). desejo num ser

    j satisfeito, j feliz; desejo que se alimenta da sua fome (TI: 22).

    No desejo, o movimento contrrio ao da necessidade: O Desejo uma aspirao

    animada pelo Desejvel; nasce a partir do seu objeto, revelao. Em contrapartida, a

    necessidade um vazio da Alma, parte do sujeito (TI: 49). A necessidade culmina em

    imanncia, em reafirmao da identidade do Mesmo; o desejo, em transcendncia,

    reafirmando o que lhe exterior. Eis a obra metafsica: um movimento que parte de um

    mundo que nos familiar sejam quais forem as terras ainda desconhecidas que o

    18Cair-se-ia em erro interpretar esteticamente o versculo bblico segundo o qual o homem foi criado porDeus sua imagem e semelhana (Gnesis1, 26). Tal imagem no deve ser lida na acepo usada porLevinas a respeito da arte. Na interpretao hebraica, a semelhana de que trata o versculo no esttica, esim espiritual ou, mais precisamente segundo Levinas, moral, como traduo da Palavra que se fazmandamento de responsabilidade para com Outrem. Ele explica: O Deus que passou no o modelo de queo rosto seria a imagem. Ser imagem de Deus no significa ser o cone de Deus, mas encontrar-se no seuvestgio. O Deus revelado da nossa espiritualidade judaico-crist conserva todo o infinito da sua ausncia queest na ordem pessoal prpria. Ele no se mostra seno por seu vestgio, como no captulo 33 do xodo. Irpara ele no consiste em seguir esse vestgio, que no um sinal; mas em ir para os Outros, que se mantmno vestgio da eleidade (HH: 79-80; ver ainda DVI: 199; CASTRO, 1997).

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    marginem ou que ele esconda , de uma nossa casa que habitamos, para um fora-de-si

    estrangeiro, para um alm (TI: 21).

    1.1 Responsabilidade

    A concepo levinasiana de subjetividade no se reduz a uma filosofia da mera diferena, e

    sim busca tornar possvel, a partir do princpio de alteridade, uma tica da

    responsabilidade. O primado da tica, fundada no rosto de Outrem, pode ser visto como

    uma tentativa de repensar o humanismo em meio modernidade, de tal modo que a tica

    se converte no tposoriginrio da verdade metafsica e na possibilidade de superao da

    totalidade e da violncia (PAIVA, 2002: 213). A obra Humanisme de lAutre Homme

    (1972) traduz esta inteno: uma defesa do homem, entendida como defesa do outro

    homem que no eu (HH: 127). J em Totalit et Infini, Levinas esclarecia: Este livro

    apresenta-se, pois, como uma defesa da subjetividade, mas no a captar ao nvel do seu

    protesto puramente egosta contra a totalidade [...]. Este livro apresentar a subjetividade

    como acolhendo Outrem, como hospitalidade (TI: 13-4; ver TI: 278). A questo levada

    s ltimas conseqncias no desenvolvimento deAutrement qutre, onde a subjetividade

    concebida como sujeio19.

    Repensar a subjetividade a partir da tica siginifica, para Levinas, conceb-la constituindo-

    se na proximidade inter-humana. A proximidade pensada aqui fora das categorias

    ontolgicas, no anula a separao do sujeito e segue sendo distncia e exterioridade (OS:

    19Rolland (1998: 45s) acentua como sendo a grande novidade deAutrement qutreem relao a Totalit etInfinia nfase na passividade original do sujeito. Se antes o Eu era definido por sua identidade e seu poder,posteriormente excedidos pela alteridade, agora consistir em inverter a ordem de prioridade e em pensar oeu [je] humano como originariamente pr-originariamente, dir precisamente o texto obcecado porOutrem, e somente em um segundo tempo em condio de existir em um mundo dado a sua tomada deposse.

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    60-1). A proximidade o fato de que outrem no est simplesmente prximo de mim no

    espao, ou prximo como um parente, mas que se aproxima essencialmente de mim

    enquanto me sinto enquanto sou responsvel por ele (EI: 88-9).

    A responsabilidade por Outrem pe em questo o egosmo do sujeito. Mais ainda, contesta

    o primado da liberdade, pois no se d por uma escolha ou iniciativa do sujeito, no se

    trata de compromisso assumido ou deciso (TI: 282-3). Antes mesmo de o sujeito tomar

    conscincia dela, convoca-o e obriga a pesardele mesmo. Responsvel pelo que fazem

    ou sofrem os outros, acusado sem ter iniciativa por isto, tomado por Outrem que o

    interpela, o sujeito rfem(OS: 180.183.198). Levinas inverte a lgica da intencionalidade

    da conscincia constituinte de si e do Outro e de toda concepo da sujetividade como

    soberana e ativa (OS: 100). A responsabilidade para com o outro o lugar em que se

    coloca o no-lugar da subjetividade (OS: 54). A sujetividade passividade, uma

    passividade mais passiva que toda passividade e que toda receptividade, na sensibilidade e

    vulnerabilidade do sujeito frente ao rosto de Outrem. Deste ponto de vista o eu se

    encontra no dever de responder (eticamente) por aquilo que no determina (logicamente), e

    s nesta atividadede resposta no interior de uma absoluta passividadede constitiuio

    que a tica revela a sua mais profunda estrutura (PETROSINO, 1992: 56)20. Instaura-se,

    ento, o um-para-o-outro (OS: 146), um movimento irreversvel, gratuito e

    desinteressado:

    [a] subjetividade consiste em ir ao outro sem preocupar-se com seu movimentoat mim ou, mais exatamente, em aproximar-se de tal maneira que, por cima detodas as relaes recprocas que no deixam de se estabelecer entre eu e oprximo, eu sempre dou um passo a mais at ele (o qual s possvel se essepasso responsabilidade) [...]. (OS: 145)

    20 E continua: Aos olhos de Levinas, a tica se configura assim como o lugar de um entrelaamentooriginrio entre passividade e atividade, em virtude do qual a passividade no somente falta, atraso, vazio eausncia, e a atividade no somente poder, posse, assimilao e violncia.

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    Nessa perspectiva, a responsabilidade converte-se em substituio, o que no consiste em

    assumir o lugar de Outrem, mas em trazer conforto associando-se sua debilidade e

    essencial finitude, suportar o peso sacrificando o prprio inter-essamento e o prprio

    comprazer-em-ser21. A substituio opera nas entranhas do Eu, desgarra sua interioridade,

    questiona sua identidade e faz fracassar seu retorno a si (OS: 189). Na substuio, o ser se

    desfaz e o humano se constitui:

    Podemos mostrar-nos escandalizados por esta concepo utpica e, para um eu,inumana. Mas a humanidade do humano a verdadeira vida est ausente22. [...]Ser humano significa: viver como se no se fosse um ser entre os seres. Como se,pela espiritualidade humana, se invertessem as categorias do ser, num

    outramente que ser. No apenas num ser de modo diferente; ser diferente ainda ser. O outramente que ser23, na verdade, no tem verbo que designe oacontecimento da sua in-quietude, do seu des-inter-esse, da impugnao deste ser ou do esse do ente. (EI: 92-3)

    A unicidade do sujeito est na impossibilidade para ele de fechar-se, esquivar-se e escapar

    substituio, pois s ele pode responder quilo a que diretamente convocado: eu a

    quem outro no pode substituir designa a unicidade do insubstituvel. Unicidade sem

    interioridade, eu sem repouso em si, refm de todos, desviado de si em cada movimento de

    retorno a si homem sem identidade (HH: 126). A substituio no qualificao de um

    gnero, mas acusao em primeira pessoa: Eu nico e eleito, eleio por sujeio (OS:

    200). Eis a condio, ou melhor, a incondio do sujeito24. O termo Eu significa eis-me

    21Extrado de Dialogo con E. Levinas, in: PONZIO, 1994a: 161.22H nessa proposio uma aluso a Arthur Rimbaud (em Uma estadia no inferno: Que vida! A verdadeiravida est ausente. No estamos no mundo); a mesma aparecera em Totalit et Infini, onde Levinas contradizo poeta na seqncia: A verdadeira vida est ausente. Mas ns estamos no mundo (TI: 21).23Para a traduo do autrement qutre levinasiano, a verso portuguesa apresenta de outro modo queser, porm preferiu-se neste trabalho alter-la e utilizar o neologismo outramente, em consonncia com oque prope Pergentino Pivatto (in RICOEUR, 1999: 5): fundamental no pensamento de Levinas oconceito de alteridade, ao qual se liga o advrbio outramente. Expresses como: diferentemente, de outromodo, de outra forma, etc., so insuficientes para traduzir a radicalidade de autrement e podem induzir traio e no verso do pensamento do autor. A fim de resguardar intuies centrais do pensamento deLevinas, introduzimos o neologismo outramente para traduzir seu autrement e, assim, preservar o que especfico e nuclear nesta expresso.24 A condio ontolgica desfaz-se, ou desfeita, na condio ou incondio humana (EI: 92). Souza(2001: 398) interpreta a substituio como sendo no um ato, mas condio, a condio de refm, condioincondicional (e neste sentido incondio).

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    aqui, respondendo por tudo e por todos (OS: 183), significa um ser que no para si,

    que para todos, que ao mesmo tempo ser e desinteresse; opara sisignifica conscincia;

    o para todos significa responsabilidade para com os outros, suporte do universo (OS:

    185).

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    1.2 Epifania do rosto

    manifestao da alteridade do Outro, Levinas chama rosto (visage)25: A verdadeira

    essncia do homem apresenta-se no seu rosto (TI: 270); No rosto, apresenta-se o ente por

    excelncia (TI: 240). A figura do rosto enfatiza a imediatez com que Outrem se apresenta

    25 Visage tem sido traduzido no portugus por rosto (ver p. e. TI, HH, EI, TRI, EN), porm comdiscordncias por parte de alguns comentadores. Susin (1984: 203 nota 8) o traduz por Olhar, emmaiscula para diferenciar do verbo, pois tem a vantagem de denotar um centro em si mesmo, do qualparte a relao a mim. Alm disso, tem carter puramente espiritual e est ligado aos olhos que no so meus, viso que me v desde a altura, que para Levinas a dimenso desde onde o outro me visita. Parece-nos,por isso, melhor do que face ou rosto ou semblante, que conservam maior ambigidade enquanto oque eu posso ver.. Tambm Souza (1996: 182-3 nota 327) considera imprpria a traduo por rosto, pois,embora gramaticalmente correta, pode sugerir uma determinada materialidade facilmente redutvel

    determinao ontolgica no momento mesmo em que se estabelece, tica e faticamente, o ponto de fuga detoda determinao ontolgica. Um rosto d-se, em sua dignidade, materializao como circunscrioespacial isto no acontece com olhar, cuja presena a subverso mesma da noo normal deespacialidade determinvel. Contudo, a alternativa olhar, ao invs de clarear o conceito de visage, podegerar outros problemas:

    a) Levinas usa tanto as palavras visagequanto regard, de modo que a traduo de visagepor olhar teriaproblemas em alguns textos; por exemplo: Olhar um olhar, olhar aquele no se entrega, que no sedenuncia, mas que vos mira: olhar o rosto (DL: 20: Regarder un regard, cest regarder ce qui nesabandonne pas, ne se livre pas, mais qui vous vise: cest regarder le visage. ). No obstante, o uso do verboregarder, em francs, guarda uma dubiedade interessante, podendo significar olhar ou concernir, dizerrespeito a; nesse segundo sentido, rosto e olhar se aproximam, conforme esclarece Levinas: [...] o outrome olha; no para me perceber, mas concernindo-me, importando-me como algum a quem devoresponder. O outro que neste sentido me olha, rosto (HS: 169: [...] lautre me regarde; non paspour me percevoir, mais en me concernant, en mimportant comme quelqun dont jai repondre.

    Lautre qui en ce sens me regarde, est visage.). E ainda: O rosto que me olha me afirma. Mas, face aface, no posso mais negar o outro [...] (EN: 61/ ENfr: 48: Le visage qui me regarde maffirme. Mais, face face, je ne peux davantage nier autrui).

    b) O olhar s pode manifestar-se diante de outro olhar, determinando um certo privilgio da viso narelao face a face, do que Levinas discorda (ver p. e. EE: 54; TI: 167; HS: 201). claro que no se deveidentificar olhar e viso, mas esta condiciona aquele, e o encontro pode abrir-se tambm pelo toque, peloouvir. Ademais, Que ele [Outrem] me olhe ou no, ele me diz respeito; devo responder por ele. (EN: 291/ENfr: 257: Quil me regarde ou non, il me regarde; jai rpondre de lui.). O encontro enquanto olharsuporia uma simetria, um reconhecimento recproco, uma presena visvel e frente a frente. O estar em faceno se restringe ao estar de frente e o visageno se identifica face talvez o uso de rosto, em portugus,gere essa associao, mas no vocabulrio de Levinas visageefacetm cada um sentido prprio. Ser oface face um frente-a-frente? (cf. TI:67/ TIfr: 79; donde a impreciso da traduo portuguesa ao fazer essacorrespondncia). Ora, tambm uma nuca pode expressar como visage(EN: 297; DO: 20), ou melhor, todo ocorpo (TI: 240).

    c) Visagesignifica enquanto conceito e no em sua literalidade. Todo o exerccio da escrita levinasiana estmarcado pela busca de superao dos equvocos do dito, mas consciente dos mesmos, de modo que seusentido pleno h que ser buscado no dizer do texto. A ambigidade de visage interessante ao presentetrabalho enquanto marca o limite da expresso no encontro mediado pela sensibilidade mas j lhetranscendendo: Ainda poder, porque o rosto exprime-se no sensvel; mas j impotncia, porque o rosto rasgao sensvel. (TI: 177). O prprio Levinas explora essa ambigidade; quando, por exemplo, descreve o ertico o equvocopor excelncia (TI: 234) diz: O feminino oferece um rosto que vai alm do rosto (TI: 239/TIfr: 291: Le fminin offre un visage qui va au-del du visage.). De qualquer forma, a dimenso sensvelno estranha, muito menos contrria tica, ou se perderia na abstrao dos conceitos. Reconhecer o visageem sua expresso material no significa necessariamente reduzi-lo mesma; violncia e hospitalidade sopossibilidades tanto morais quanto materiais.

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    face ao Eu, sem tempo para formalismo. No se trata, claro, de abordar Outrem por sua

    expresso facial. Quando se v um nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se podem

    descrever, que nos voltamos para outrem como para um objeto (EI: 77). Outrem como

    rosto no se resume sua plasticidade. Apresenta-se numa aparncia sensvel, mas de

    imediato a ultrapassa e transcende, est no limite da santidade e da caricatura (TI: 177).

    Coloca-se alm da percepo e do pensamento: O rosto est presente na sua recusa de ser

    contedo. Neste sentido, no poder ser compreendido, isto , englobado. Nem visto, nem

    tocado (TI: 173). A presena do rosto do Outro se caracteriza por esta paradoxal ausncia:

    enquanto escapa que se apresenta propriamente.

    Enquanto as coisas do mundo se oferecem ao Eu como coisa dada viso, o rosto no se

    d. A alteridade do mundo com relao ao Eu somente formal, absorve-se na relao e

    recebe seu sentido em funo da intencionalidade da conscincia. J a alteridade do Outro

    supe uma separao radical, o que s possvel se o outro realmente Outro em relao

    ao Mesmo, no relativa, mas absolutamente (TI: 24).

    O rosto uma particular manifestao de Outrem, revelao. No desvelamento26, no

    significa em relao a um horizonte ou a um contexto (HH: 58; EI: 78), nem vai buscar seu

    26Levinas ope a revelao do rosto fenomenologia heideggeriana do desvelamento. Desvelar uma coisa(tirar-lhe o vu) projetar luz sobre ela e revesti-la de significao (TI: 61). Reconhecer a verdade comodesvelamento referi-la ao horizonte daquele que desvela (TI: 52). Realando a primazia do face a facehumano, Levinas afirma que Heidegger subordina a relao com Outrem Ontologia (TI: 75), subordinaa relao com algum que um ente (a relao tica) a uma relao com o ser do ente que, impessoal como, permite o seqestro, a dominao do ente (a uma relao de saber) (TI: 32). , ento, a ontologiafundamental? (EN: 21-33). A ontologia supe a metafsica (TI: 35), e esta tem lugar nas relaes ticas(TI: 65).

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    sentido no olhar que o observa27. Anteriormente a tudo isso, manifesta-se por si mesmo

    (), expresso (TI: 38.52.61).

    Na revelao o rosto est nu. Como rosto, o Outro se apresenta na sua misria e na sua

    fome, sem defesa e sem mscara (TI: 178-9), na dura resistncia desses olhos sem

    proteo, do que h de mais doce e de mais descoberto (TI: 240). A nudez do rosto

    penria. Reconhecer outrem reconhecer uma fome. Reconhecer Outrem dar. Mas

    dar ao mestre, ao senhor, quele que se aborda como o senhor numa dimenso de altura

    (TI: 62). J no posso cham-lo Tu, e sim Vs, pois em seu rosto revela-se uma

    eminncia. Na sua doura, desponta a sua fora e o seu respeito (TI: 241). O rosto

    traduz esta ambigidade: Outrem enquanto outrem situa-se numa dimenso da altura e do

    abaixamento glorioso abaixamento; tem o semblante do pobre, do estrangeiro, da viva e

    do rfo e, ao mesmo tempo, do senhor chamado a bloquear e a justificar a minha

    liberdade (TI: 229).

    Mas a palavra rostono deve ser entendida de modo estreito (EN: 297), h diferentes

    maneiras de ser rosto. Levinas comenta, a respeito do livro Vie et Destin, de Vassili

    Grossmann,

    como em Loubianka, em Moscou, diante do famoso guich onde se podia enviarcartas e pacotes aos parentes e amigos presos por delitos polticos ou obternotcias deles, as pessoas faziam fila lendo, cada um sobre a nuca da pessoaque a precedia, os sentimentos e as esperanas de sua misria. (EN: 297)

    Aquelas nucas so mas outramente [autrement] rostos obliterados (DO: 20).

    Portanto, o rosto pode tomar sentido a partir do que o contrrio do rosto! O rosto no

    27No sei se podemos falar de fenomenologia do rosto, j que a fenomenologia descreve o que aparece.Assim, pergunto-me se podemos falar de um olhar voltado para o rosto, porque o olhar conhecimento,percepo. Penso antes que o acesso ao rosto , num primeiro momento, tico (EI: 77; ver ainda TI: 162-4).

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    , pois, cor dos olhos, forma do nariz, frescor das faces, etc (EN: 297); todo o corpo pode

    exprimir como o rosto: uma mo ou um arqueamento do ombro por exemplo (TI: 240).

    2. Idolatria

    Conforme visto, a reflexo esttica de Levinas em La ralit et son ombre tem por

    pressuposto o carter imagtico da obra de arte. Assim, a arte abordada sobretudo como

    atividade de representao, atrelando-a a uma dependncia para com a realidade qual se

    refere. Referncia, entretanto, que se d como negao, como a sombra que se pretende

    substituir prpria realidade. a partir dessa constatao que Levinas tratar, no

    desenvolvimento de sua obra, das relaes entre obra de arte e alteridade e, por

    conseguinte, das interseces entre esttica e tica. Se a musicalidade foi apontada como

    sendo o efeito principal da imagem na relao entre sujeito e mundo, a plasticidade o ser

    na relao entre o Eu e o Outro. Se a crtica imagem no mbito fenomenolgico coloca a

    arte em questo quanto a sua propriedade, a problematizao no mbito tico a acentuar

    quanto a sua legitimidade.

    Em De lexistence lexistant, Levinas destaca sobretudo a capacidade da arte em

    desnudar as coisas exoticamente; j em Totalit et Infini, sua tendncia a conferir formas

    atravs da beleza. No primeiro, um mundo que se dissipa no h; no segundo, um mundo

    que se pretende constituir na aparncia. Isso traduz a relao de Levinas com a

    fenomenologia; que num primeiro momento a idia de constituio de mundo parece

    oferecer um estatuto razoavelmente seguro de relao com a realidade e de constituio da

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    subjetividade, o que vir a ser contradito no desenvolver da obra, em que a idia de mundo

    transmuta-se e chega a assumir uma conotao negativa de totalizao da exterioridade.

    Isso tambm se reflete nos contrastes quanto ao uso das figuras de luz e sombra, dia e

    noite. Se por um lado Levinas identificara a arte ao anonimato da noite destituindo as

    coisas de suas formas, por outro a acusa de uma cumplicidade com o dia ao recobrir os

    objetos de formas e constitu-los dolos.

    A epifania do rosto, assim como vai de encontro ao primado fenomenolgico da

    representao, pe em questo a arte, uma vez definida por Levinas como atividade de

    representao. Arte e filosofia parecem atrelar-se, segundo a crtica de Levinas, em um

    comum jogo lusco-fusco, no qual a luz projetada sobre a realidade seja pela conscincia

    intencional, seja pelas formas artsticas projeta uma sombra de violncia.

    2.1 Viso e representao

    Inquieta sobretudo a Levinas o primado atribudo viso pela tradio filosfica desde

    suas origens gregas e consumado pela fenomenologia husserliana. Se pensar lanar a luz

    da conscincia sobre a realidade a fim de que esta se manifeste frente quela, toda

    realidade est condicionada atividade da razo. Conforme a mxima husserliana, todo

    objeto objeto para uma conscincia e a todo noemacorresponde uma noeseou, em outras

    palavras, s h realidade em relao intencionalidade da conscincia. A arte parece

    guardar um trao semelhante, o que Levinas sintetiza sob o aspecto da plasticidade. A arte

    um modo de manifestar as coisas atravs da forma, e a forma consiste basicamente em

    trazer os objetos luz, em tirar-lhes de sua opacidade e faz-los manifestarem-se conforme

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    a forma que assumem na obra. A arte visa ser vista, sua propriedade se define pela

    capacidade de se fazer perceber.

    Isso posto, torna-se extremamente difcil a Levinas conceber uma forma de arte que no

    caia no jogo fenomenolgico. Talvez na fotografia se encontre a expresso mais evidente

    do que teme Levinas. O desvelar fenomenolgico se associa ao revelar fotogrfico. A luz

    que a cmera lana sobre os objetos expe suas sombras, nega-as, registra-as ao inverso e

    as reconstitui. Revelar uma foto representar aquilo que se pde captar da realidade a

    partir da luz que se lhe projetou, traz-la tona a partir de sua face negativa, quase que

    negando sua face. Fenomenologicamente falando, desvelar tambm lanar luz.