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  Bordado e costura do texto Tamara Kamenszain Tradução de Clarisse Lyra “Bordado e costura do texto” apareceu pela primeira vez em livro em 1983, como apêndice a  El texto silencioso: tradición y vanguardia en la poesía hispanoamericana , volume que reunia ensaios sobre autores como Macedonio Fernández e Enrique Lihn e que foi escrito durante o período em que a autora viveu no México, publicando na revista editada por Octavio Paz. Posteriormen te foi republicad o em  Historias de amor (y otros ensayos sobre poesía)  (Buenos Aires, Paidós, 2000).

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bordado e costura do texto

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  • Bordado e costura do texto

    Tamara Kamenszain

    Traduo de Clarisse Lyra

    Bordado e costura do texto apareceu pela primeira vez em livro em 1983, como apndice a El texto silencioso: tradicin y vanguardia en la poesa hispanoamericana,

    volume que reunia ensaios sobre autores como Macedonio Fernndez e Enrique Lihn e

    que foi escrito durante o perodo em que a autora viveu no Mxico, publicando na

    revista editada por Octavio Paz. Posteriormente foi republicado em Historias de amor (y

    otros ensayos sobre poesa) (Buenos Aires, Paids, 2000).

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    Bordado e costura do texto

    Tamara Kamenszain

    A Eva Staif

    Se a escrita e o silncio reconhecem um ao outro nesse caminho que os separa da

    fala, a mulher, silenciosa por tradio, est prxima da escrita. Silenciosa porque seu

    acesso fala nasceu no cochicho e no sussurro, para desandar o microfnico mundo das

    verdades altissonantes. To calada e lateral foi sempre sua relao com a marcialidade

    dos discursos estabelecidos, que os homens, paradoxalmente, qualificaram a mulher

    como muito conversadeira. E conversa no seria outra coisa que essa emaranhada

    mescla de nveis discursivos cujo dizer, como objeto, o nada. Sussurrante conversa de

    mulheres foi criando uma cadeia inquebrantvel de sabedoria por transmisso oral que

    nunca foi reunida em livros.

    No obstante, enquanto habita no avesso do claro e preciso, a escrita tambm

    baseia sua preservao em uma espcie de transmisso oral. Ningum aprender a

    escrever como Gngora usando um manual de versificao. A poesia gongorina, receita

    milenria de av, se refoga nessa prtica reiterativa que canaliza o cochicho de regras

    culinrias. Como a escrita no quer dizer nada, sua estranha conversa no pode ser

    recolhida em manuais e apenas o oral sabe transmiti-la. E se a oralidade o maternal

    por excelncia o seio fala, a boca do filho apre(e)nde pode-se dizer que o elemento

    feminino da escrita a me. Com a me se aprende a escrever. Professora de escritores,

    ela quem imprime casa o sem-sentido prazeroso da conversa. Referindo-se a

    Paradiso, diz Elosa, irm de Jos Lezama Lima:

    As mulheres daquela famlia investiam grande parte do tempo em incessantes dilogos

    que se interrompiam para prosseguir a cotidianidade e voltavam a se fiar com uma tcnica

    aperfeioada. Esses dilogos deram s crianas da famlia uma cultura insupervel. [...] A

    tradio oral que nos foi transmitida enriqueceu nosso inconsciente. Mais tarde, o jovem

    poeta iria submet-lo ao prisma de seu caleidoscpio. Nesse meio, to exuberante, meu

    irmo vai incubando seu grande romance.

    A me tambm imprime casa o espao artesanal, obsessivo e vazio de suas

    tarefas dirias. Costurar, bordar, cozinhar, limpar, quantas maneiras metafricas de

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    dizer escrever. J quase parte do sentido metafrico comparar o texto a um tecido, a

    construo do relato a uma costura, o modo de adjetivar um poema ao de bordar.

    Partindo do pressuposto de que as mulheres, delicadas at o detalhe, perdem muito

    tempo, as grandes companhias de limpeza preferem contratar homens. So elas que

    veem o p escondido detrs dos objetivos e se detm nele. Nessa lenta prtica de ir

    descobrindo o que os outros no veem, aperfeioam seu ofcio. Da mesma maneira,

    quando o olho que rel o escrito perde tempo encontrando sujeira no detalhe, trabalha

    como mulher. Polir um texto, lustr-lo, so metforas que nasceram na tarefa domstica

    e a ela devem sua obsessividade artesanal.

    Parmnides cego tecendo o tapete de Bagd. / Comeo porque sei que algum

    me ouve / a que ouviu meu nascimento 1, declara o tecelo Lezama Lima enquanto o

    fio de seu novelo desenrolado pela me, sempre escuta, calada interlocutora que com

    seu silncio abre ao filho o lugar da escrita. Nessa fresta que as mulheres mudas

    prepararam e deixaram livre, puderam crescer alguns textos artesanais e femininos,

    como o de Lezama Lima. J que ningum lhes pediu que escrevessem, muitas mulheres,

    atravs dos sculos, incubaram o sintoma canalizando-o na conversao ou nas tarefas

    domsticas. Entretanto, o sintoma foi habitar em seus filhos e assim surgiram algumas

    obras assinadas por homens, mas co-escritas por mulheres. Desejoso aquele que foge

    de sua me 2, diz um poema de Lezama Lima, enquanto o poeta fugidio descobre que o

    desejo espelhante da me no outro que o mandato da escrita.

    Na ltima conversa que tive com ela, recordo que me dizia: filho, como voc ficar s

    quando eu morrer. Eu lhe respondia: o que farei sem voc, minha me, e com voz firme

    ela me respondeu: escrever, escrever, pois voc nasceu para isso, escrever, escrever,

    confessa Lezama em suas cartas.

    NA SALA DE ESTAR

    Memria corporificada na conversa, a das mulheres encontrou tambm seu lugar

    de registro na escrita: o dirio ntimo, as cartas, os cadernos garatujados com receitas de

    cozinha, os cancioneiros acumularam durante sculos pores de idioma familiar.

    1 Jos Lezama Lima, Mi hermana Elosa, publicado em Fragmentos a su imn, 1977. (N. T.) 2 Jos Lezama Lima, Llamado del deseoso, publicado em Aventuras sigilosas, 1945. (N. T.)

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    Sentadas no centro da casa, somente as mulheres podiam enraizar o romance no fluir

    memorioso que caminha pela rvore genealgica. Referindo-se a Victoria Ocampo,

    Leopoldo Marechal reflete acerca desse carter memorioso da literatura feminina:

    [...] o estudo e a expresso do fluir, o idioma da paixo consequente, a dor de perder a

    imagem no tempo e a doura de recuper-la na memria, tudo isto constitui, a meu ver,

    uma matria literria sobre a qual a mulher pode alegar direitos quase naturais. E digo

    quase naturais porque, como j adiantei, a mulher no possui tal carter em exclusividade,

    mas em alto grau de excelncia em relao ao homem: a literatura de Proust, no entanto,

    revela muito de tal carter.

    Fascinado pelas diferenas, talvez Marechal ainda no alcance enxergar a ponte:

    Proust, como tantos outros artesos do bordado e da trama, filho da escrita feminina.

    Interlocutor de avs, mes, empregadas, pe na roda o dirio ntimo, legaliza-o, torna-o

    literatura. E embora para isto fosse necessrio imprimir uma assinatura masculina lei e

    homem encontram sua sntese perfeita na assinatura tambm era necessrio que

    permanecesse sentado, como as irms Bront imaginadas por Virginia Woolf, no meio

    da sala de estar. Para Woolf no meio desse ambiente de conversas, de cruzamentos, de

    trabalhos domsticos, que se tece a histria familiar. Charlotte e Emily, sem quarto

    prprio, acumulavam, desde o lugar coletivo da casa, a matria do romance.

    Mas assim como Proust pediu emprestado mulher esse lugar da casa, as Bront,

    para publicar para se fazerem pblicas , pediram emprestadas ao homem a

    assinatura, a legalidade.

    DO LADO DA BAINHA

    Os arqutipos malficos de uma literatura feminina confinada a certos temas e

    gneros ocultam, uma vez mais, o aporte calado e rico da mulher a essa tradio

    artesanal e milenar da letra escrita. Textos lacrimogneos, uma falsa lrica adoada com

    bondade e pudor, a tematizao permanente de certos conflitos vitais supostamente

    prprios da mulher, encheram pginas e pginas de uma literatura que, pretendendo ser

    especificamente feminina , na realidade, especfica de um mercado. Se atravs dos

    sculos as mulheres imprimiram literatura fosse escrevendo ou transmitindo aos

    homens que escreviam o selo do artesanal, do no discursivo, isto no implica

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    irracionalidade, tolice, ingenuidade, falso lirismo. Como para demonstrar o contrrio, a

    modernidade encontra as mulheres involucradas ao chamado discurso racional.

    Seguindo mais a tradio oral das avs que a tradio impressa das academias,

    algumas mulheres viravam o discurso terico para trabalh-lo pelo lado da bainha.

    Familiarizadas com as costuras, souberam que toda construo apoia suas bases em um

    fio no discursivo. Snteses entre mes e professoras, introduziram o raciocnio linear e

    pedaggico por caminhos ziguezagueantes. Transformando quase em um dirio ntimo a

    teoria freudiana, Melanie Klein escreveu o peito materno, deixou que se perdesse na

    imagem literria para assim recuper-lo como objeto terico. Por seu lado, e metida a

    brigar em terreno masculino com sua obsessiva mquina de escrever, Julia Kristeva

    consegue torcer a viso cega dos discursos cientficos em relao a um objeto frgil e

    esquecido: a linguagem. Outra mulher, Simone de Beauvoir, ensaia a forma de integrar

    teoria e romance para dar a seu objeto de reflexo um lugar no qual se sinta cmodo.

    Pensar sobre a mulher e escrever como mulher se unem na casa de Beauvoir fora de

    apagar as espessas fronteiras entre gneros literrios.

    A VANGUARDA DOMSTICA

    Esta possibilidade feminina de espiar nas costuras para ver as construes pelo

    avesso abre mulher, em sua relao com a escrita, o caminho da vanguarda.

    Vanguarda velha e nova na qual os textos deixam o leitor jogar com a artificialidade da

    feitura. E na milenar escola das tarefas domsticas onde se aprendem as regras dessa

    modernidade. Velho como o mundo, somente o trabalho intil e calado pode conseguir

    enlaces novos.

    Temerosas de transgredir, muitas mulheres escritoras tiveram de justificar, atravs

    dos tempos, suas inclinaes vanguardistas. A propsito do aparecimento de Mascarilla

    y trbol (1938), Alfonsina Storni teve de elaborar uma justificativa que se transformou

    quase em desculpa. Buscando uma escrita clara e pedaggica, os leitores de Alfonsina

    pretendiam que ela prolongasse na pgina o quadro negro escolar. Poeta e professora

    primria: dois papis intercambiveis que a mulher no tinha direito a diferenciar. Mas

    se em princpios do sculo americano Gabriela Mistral e Alfonsina ensinaram as

    primeiras letras, tambm avanaram por elas at alcanar sua prpria graduao na

    maestria potica. Com a idade de ser avs, estas escritoras escreveram seus textos mais

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    transgressores. Nos ltimos anos, mudanas psquicas se operaram em mim: nelas

    que se deve buscar a chave desta relativamente nova direo lrica e no em correntes

    externas que arrastam minha personalidade verdadeira, justifica-se Storni,

    desnudando a alma diante de seus leitores.

    Apelar autenticidade do sentimento que a leva a mudar de estilo literrio: isto

    o que protege a escritora das acusaes de frieza e obscuridade, verdadeiras heresias se

    resultam da pluma de uma mulher. Um pblico que nesta poca j havia digerido sem

    susto obras vanguardistas como as de Borges, Girondo, Macedonio Fernndez, se

    desdobra ante a poesia de Alfonsina Storni e pede, infantil, que nada lhe seja exigido.

    por isso que defender o que lhe pertence por tradio (a prtica no discursiva, a

    experimentao, o artesanato) um trabalho extra que a mulher escritora se obriga a

    realizar. Ningum apontou mais claramente o caminho para consegui-lo que Virginia

    Woolf. Ningum sabe melhor do que ela que a frase construo ideada pelo homem,

    demasiado pesada, demasiado pomposa, demasiado ampla no serve mulher na hora

    de escrever. Se somos mulheres agrega Virginia o contato com o passado se d

    atravs de nossas mes, intil que acudamos aos grandes escritores vares em busca

    de ajuda.

    E no contato com a me que se desarma a frase. Sua pomposidade morre com a

    conversa, seu peso com o cochicho, sua amplitude com o silncio. Lugar de

    marginalidade e desprestgio no qual a me se comunica com sua filha, ali se sedimenta

    e cresce, como uma teia, o imenso texto escrito por mulheres.

    Original em: KAMENSZAIN, Tamara. Bordado y costura del texto. Historias de amor (y

    otros ensayos sobre poesa). Buenos Aires: Paids, 2000. pp. 207-211.