hespanha - o debate acerca do estado moderno

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I í 6 António Manuel Hespanha* O DEBATE ACERCA DO "ESTADO MODERNO"** O que significa pôr a questão do "Estado Moderno"? O fato de se colocar a questão da existência ou não de um "Estado moderno" ou da cronologia da sua instituição está ligado a um certo contexto da reflexão sobre a sociedade c o poder. E só neste contexto faz sen' ido. Tal contexto pode ser descrito em duas palavras. Nos meados do século passado, Karl Marx caracterizou o advento da.modernidade (capitalista) pela separação entre a esfera da política e a esfera da economia. Ao passo que, no modo de produção feudal, a exploração económica se fazia por processos políticos (cobrança da "ren- da feudal"), no capitalismo a drenagem da mais-valia para as classes exploradoras rcaliza-se no âmbito da economia, constituindo a política apenas a moldura externa do processo de exploração. Com isto, dissol- vc-sc a confusão entre propriedade e autoridade que teria caracterizado o sistema feudal, separando-;; o 'Estado" da "sociedade civil". Por ou- tras palavras, o marxismo reserva o conceito "Estado" para a descrição de um modelo cm que a política formalmente se destaca do processo cie exploração, emergindo como (pretensa) portadora de interesses gerais ou mpraelassiitas. Comissário-geral da Comissão Nariotiai para as Comemorações dos Descobrimentos Por- tugueses, Instituto dc Cicncias Sociais. '* Coofcfcnoa proferida na Univctiitfaile Autónoma <!c Lisboa (incuita), auialtiaua.

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  • I

    6

    Antnio Manuel Hespanha*

    O DEBATE ACERCA DO "ESTADO MODERNO"**

    O que significa pr a questo do "Estado Moderno"? O fato de se colocar a questo da existncia ou no de um "Estado

    moderno" ou da cronologia da sua instituio est ligado a um certo contexto da reflexo sobre a sociedade c o poder. E s neste contexto faz sen' ido.

    Tal contexto pode ser descrito em duas palavras. Nos meados do sculo passado, Karl Marx caracterizou o advento

    da.modernidade (capitalista) pela separao entre a esfera da poltica e a esfera da economia. Ao passo que, no modo de produo feudal, a explorao econmica se fazia por processos polticos (cobrana da "ren-da feudal"), no capitalismo a drenagem da mais-valia para as classes exploradoras rcaliza-se no mbito da economia, constituindo a poltica apenas a moldura externa do processo de explorao. Com isto, dissol-vc-sc a confuso entre propriedade e autoridade que teria caracterizado o sistema feudal, separando-;; o 'Estado" da "sociedade civil". Por ou-tras palavras, o marxismo reserva o conceito "Estado" para a descrio de um modelo cm que a polt ica formalmente se destaca do processo cie explorao, emergindo como (pretensa) portadora de interesses gerais ou mpraelassiitas.

    Comissrio-geral da Comisso Nariotiai para as Comemoraes dos Descobrimentos Por-tugueses, Instituto dc Cicncias Sociais.

    '* Coofcfcnoa proferida na Univctiitfaile Autnoma

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    Na segunda metade do mesmo sculo, s teoria jurdica c poltica co-meou a adotar um estilo de anlise poltica que se preocupava menos com a conjuntura com a anlise "vncmcntiel lc" da cena poltica do que com as estruturas do poltico, nomeadamente com os gran-des princpios (axiomas, conceitos) da teoria constitucional. Foi a isto que se chamou a adoo do 'mtodo jur dico" pela teoria constitucio-nal a lem, francesa e italiana das lt imas dcadas do sculo. Neste pla-no, a grande ruptura da modernidade, no plano poltico, teria sido a instaurao de um modelo novo de desenhar o poder. O sistema polti-co tpico da modernidade seria aquele cm que um nico plo poltico tpico se arrogava o monoplio de poder em relao a uma comunida-de territorial um povo, um territrio, um Estado, um direito. A partir daqui, o conceito de Estado ganha uma nova referncia a de um poder poltico nico e exclusivo sobre uma "sociedade civil", ou seja, uma sociedade que palco de relaes c de interesses meramente privados.

    J no nosso sculo, Max Weber completa a carga conceptual da pa-lavra "Estado". Partindo da sua tipologia de modelos polticos o modelo "carismtico", o modelo "tradicional", o modelo "legal*racio-nal" , Weber reserva o conceito de Estado para este lt imo, que seria o modelo tpico da modernidade cm termos polticos. O Estado cons-tituiria, assim, uma forma de organizao do poder caracterizada pela racionalidade, generalidade e absttao. Uma forma racionai de orga-nizar (a "burocracia", a "racionalizao territorial", a seleo "merito-crtica"), uma forma abstrata e gctal de regular (o "direito igual"), um modelo tambm impessoal de participao poltica (a "democracia re-presentativa"),

    Como se v, a palavra "Estado" tudo menos um termo vazio de

    sentidos. Nele est deposta uma carga semntica pesadssima, marcada

    por pensadores muito influentes na histria do pensamento poltico

    contemporneo. Dessa carga fazem parte algumas ideias, fora, de res-

    to parcialmente sobreponveis:

    o Estado foi a entidade que separou o pblico do privaria, a autori-

    dade da propriedade, a poltica da economia: o Estado foi a entidade que promoveu a concentrao dc poderes

    O DEBATE ACERCA D O -ESTADO M O D E R N O " 1 35

    (.um s plo e que, por isso eliminou o pluralismo politico t pico do Antigo Regime;

    - o Estado foi a entidade que instituiu um modelo racional de go-verno, funcionando segundo normas gerais e abstratas.

    J se v, a partir daqui, o que que implicitamente se importa quan-do se utiliza a palavra "Estado".

    A chamada de ateno para estas importaes metodologicamente abusivas tambm tem a sua histria.

    A um nvel muito geral, ela prende-se com o problema de saber se legt imo utilizar, na descrio do passado, os conceitos do presente. Os historiadores do direito tinham discutido essa questo no incio deste sculo, a propsito da util izao, na histria do direito, dc conceitos jur dicos atuais (como "propriedade", "constituio", "famlia") ou da atual sistematizao (ou qualificao) das problemticas jur d icas . De forma tpica, uns tinham decidido pela legitimidade, por considerarem tais conceitos e sistematizaes como categorias intemporais do pensa-mento jurdico. Outros, pelo contrrio, consideravam-na errada, justa-mente porque achavam que estas entidades conceituais so "locais", ir-remediavelmente ligadas ao direito atual e insusceptveis dc retropro-jeo sobre a histria. Ou seja, a resposta questo da legitimidade do uso, ao fazer histria, de conceitos da teoria jur dica atual no depen-dia de questes metodolgicas internas histria, mas antes de ideias muito mais gerais finalmente, dc convices filosficas ou ideol-gicas acerca do valor transepocal do direito e do saber jur d ico.

    No domnio da histria polt ica, a conscincia das dimenses teri-cas desia projeo sobre a histria dos conceitos atuais tem dois pontos de partida.

    Por um lado, as conhecidas posies da Escola dos Annales acerca da ruptura cm histria. Ao descrever a histria como uma sucesso de rup-turas, esta Escola estava a sublinhar que, de poca para poca, tudo n udava, c tudo mudava radicalmente. Em termos tais que at as gran-dos categorias dc compreenso da realidade neste caso, da realidade poltica - deixavam de set as mesmas.

    Embora a ideia de ri mira fizesse parte das propostas iniciais da Es-

  • I 3(5 ANTNIO MANUEL IIESPANIIA

    cola, a primeira gerao cios Armtilcs fa/.ia dela uma aplicao incom-pleta. Ou seja, aplicavam de bom grado a ideia dc descontinuidade aos fatos histricos, mas, como criam no carter explicativo geral das cin-cias sociais, resistiam a admitir que essa descontinuidade se aplicasse tambm aos instrumentos conceituais com que se escrevia i i histria. As perplexidades que nos causa hoje a historiografia dessa poca jus-tamente o -vontade com que utilizam, para a explicao histrica, os conceitos aruais das cincias sociais. Ao reler o que escrevi, h mais de vinte atios, sobre esta mesma questo, noto como eu prprio participei deste arrogante otimismo "cientista", insinuando que esta desconfiana em relao s categorias do passado no se justificava perante verdadei-ras "categorias cientficas" (como o conceito marxista de "classe")1. E, no entanto, nessa altura, no apenas j era problemtica a viabilidade terica do conceito que estava, justamente nesse ano, a ser contesta-da num attigo, hoje clssico, de P. Bourdieu 2 , como alguns historia-dores como P.. Mousnicr ou, em Portugal, Jorge Borges dc Macedo tinham j problematizado a sua utilidade (ou legitimidade) para a histria c, nomeadamente, para a histria social c poltica.

    Na segunda gerao das Escolas dos An tirites, o historicismo alarga-se, claramente, aos prprios utensl ios de escrita da histria. A crena na transtemporalidadc das cincias sociais aparece como uma iluso ingnua, sendo substituda por uma aguda conscincia do carter "lo-cal" dos saberes sociais c dos seus artefatos conceituais. Por outro lado, ganha-se uma conscincia mais ntida da ruptura no plano da histria da cultura. Comea a ser comum pensar-se que os sistemas das crenas e dos imaginrios se substituem uns aos outros, sem que seja possvel transpor dc uns para os outros as lgicas de organizao, a-: idias-for-a, os pressupostos inconscientes. , nomeadamente, a lio dc Michel Foucault a fazer efeito.

    Enquanto isto se passava no plano da teoria geral da histria, do

    A. M. Hcspanha. Poder c instituies na Europa tte Antigo Regime(coord.), Lisboa, Gulbenkian, 1934. I Bourdieu (1984), Picrrc, "Espace social ct gnese des classes", Aaet dt la Rethrrehr en Sencei Sociales. 52/53 (junho. 1984), 3-15.

    O DEBATE ACERCA DO "ESTADO M O D E R N O " 1 37

    lado da histria poltica estavam a dar-sc movimentos confluentes, em-bora com uma origem terica muito diferente. Desde o sculo XIX que se mantinha, em toda a Europa, um filo dc crtica ao modelo poltico institudo pelas revolues liberais. Era constitudo pelo pensamento poltico conscrvador-rcacionrio, que continuava mais ou menos liga-do s formas dc imaginar a organizao poltica tpicas da sociedade de Antigo Regime. Os representantes deste filo estavam em melhores con-dies, desde logo psicolgicas e afetivas, para entender e descrever com fidelidade o imaginrio polt ico da antiga Europa. O exemplo clssico de uma descrio desse tipo o da obra de Otto Gierke, nos finais do sc. X I X 5 . Mas a ele se podem juntar o historiador belga Emile Lousse que trabalhou sobre a organizao corporativa medieval e, sobre-tudo, o historiador austraco Otro Brunner que, nos anos trinta, se de-dicou descrio do mundo mental subjacente organizao poltica medieval e moderna o imaginr io da "casa", o imaginr io das rela-es de fidelidade, o imaginr io da nobreza, o imaginrio das relaes sennor-sudito .

    A influncia dc O. Brunncr na historiografia poltica do ps-guerra veio a ser muito grande, sobretudo na Alemanha e na Itlia. Paradoxal-mente, no tanto sobtc a historiografia conservadora, mas sobre histo-riadores crticos em relao aos modelos poltico estabelecidos, que se encontravam com Brunncr na sua crtica implcita ao paradigma dc-moc r t ico-rcprcsentat ivo. E isto que explica esse estranho casamento, tpico da nova vaga dc historiadores do poder e do direito dos anos setef.ta5, entre uma formao terica de raiz marxista e os tpicos historiogrficos de Otto Brunncr, inspirados por uma viso poltica muito conservadora.

    ' Dm deuncheCennssemchafismht. Bcrlin. 1868-1913. Oito Hrunncr (1939), Landun Hcrrschaft. Grundjrogen dererritoraieti Verfassung^gcschirhte Oesterrtiehs im Miltelaller. Wicn 1939 (uad. ir. da 5.* ed. reelaborada. Terra epotere, intr. P. Schicra, GiuTr, Milano, 1983); "Das 'ganze Haus' und die altcuropaeiscbc Oekonomik" c "Dic Freiheitsrechte in der atistacfulischen Gesellschaft", ambos cm Nrur Wege der Verfassungt-nnrt Snzialgrsrhirhte, Gtlingen ,968 (2.* ed.; exisrem traJs. rtal. c esp }; Atlciiges Landlrben undeuiopischrr Ciei. Leben und Werkt Helmhards um Honbeig (1612 168$), Sal/liurg. 1949.

    ^ Por exemplo, llcrjngeki Schicra JoKannes-Micbad Sckob, Bartolome' Clavcro c cu prprio. 1 loje, o grupo alargou-sc muito.

  • 138 ANTNIO MANUIII HESPANI IA

    No vou aqui repetir, cm detalhe, as consequncias desta viragem historiogrfica". Mas saliento que ela desviou a ateno das reas clssi-cas da histria institucional, como a administrao "pblica" formal, o direito legislativo e oficial, para novas reas como as relaes clientelarcs c de fidelidade, o imaginrio e organizao domsticos, a disciplina in-formai. O u seja, para elementos de controlo e disciplina que no s no cabem no imaginr io do Estado contemporneo, mas que por ele so positivamente reprimidos, como sinais de corrupo e de perver-so.

    Parto juscamente daqui para destacar o modo corno o fato de este

    imaginrio poltico contemporneo, ligado ao paradigma democrt i-

    co-representativo, ao insinuar-se no senso comum dos historiadores,

    continua, ainda hoje, a condicionar a renovao da historiografia pol-

    tica contempornea. Na verdade, talvez no haja histria mais difcil de fazer do que a

    Histria da poca Moderna. No que existam "fontes a menos", como acontece frequentemente, na Histria Antiga ou na Histria Medieval. Por outras palavras, o problema dos historiadores que se dedicam a este perodo no o de se saber pouco sobre ele. antes o de, aparente-mente, se "saber demais". J explico.

    O comum das pessoas tem imensas ideias feitas sobre uma srie de coisas que se passaram na poca Moderna, sobretudo em Pottugal. A histria que se fez desde h sculos por vezes quase desde o momen-to em que os fatos se passaram fixou no senso comum uma srie de imagens, que hoje esto to enraizadas que custa muito remov-las ou mesmo apenas rev-las.

    Por exemplo, ao falar das monarquias modernas, imediatamente des-filam na nossa inente as imagens que a histria tem consagrado como exemplares do perodo, de D . Joo I I ou de Lus XIV. , com elas, surge a evocao dc um poder absoluto e ilimitado, exercido desptica

    Sobre cia, pode ver-se o meu prefcio colccam* Poder e imiiluieei nu Europa da Amiff Regime, Lisboa 1984, 54! p., max. 76 ss.; A m n i o Manuel Hcspanha, Storieelelle institttzione poliliihe, Bologna, Enciclopdia d'oricmanicri

  • 140 ANTNIO MANUEL HE5PANIIA

    Embora os poderes dos senhores portugueses no fossem to exten-sos e incontrolados como no centro da Europa, cerca de 2/3 dos con-celhos do reino pertenciam a senhores, que a administravam a justia. E, em cerca de 1/3, estes senhores das terras podiam mesmo impedir a entrada dos magistrados rgios (corregedores) encarregues dc inspe-cionar o governo local. Tambm isto est abundantemente provado hoje, muito embora se discutam algumas questes relevantes neste pla-no: (i) qual o controlo efetivo dos senhores de terras sobre as suas ter-ras; (ii) qual o grau de curial izao da nobreza portuguesa e em que que isto consistia9; (iii) qual o impacto pttico da existncia de uma justia senhorial intermdia 1 1 1 .

    Depois, se quisermos avaliar da importncia do poder real, temos que pr a questo da eficcia da mqu ina administrativa da coroa c, mesmo antes, dos meios de conhecer o reino.

    O aparelho administrativo da coroa era muito dbil, como o Gr-fico 1 pode comprovar. Dos cerca de 1.700 oficiais que a coroa tinha ao seu servio em meados do sc. X V I I , uns 500 estavam na corte. No resto do pas, apenas 10% das estruturas administrativas pertenciam coroa, o que quer dizer que, para cerca de 12.000 funcionrios conce-lhios, senhoriais e de outras entidades (excludos, cm todo o caso, os oficiais eclesisticos), havia 1.200 d.i coroa".

    A n t n i o Manuel Hcspanha, ''Une autre aduiinistration. La cour comine paradigme dorga-nisation fies pouvoirs iVpoquc moderne", Die Anfonge der Verwatung der Europischen Gemeinsehuf (- Jahrbueh f. europ, Veruwltungsgrsclnrhte, 4), BadeivRadcn, 1992.

    j ) V. o meu livro Portugal moderno. Poltico e institucional, Lisboa, Universidade Aberta, 1994. no captulo "Os senhorios"; bem como a rese de doutoramento, em publicao, dc Nuno Gonalo Monteiro. .Sobre a corte, um programa metodolgico em Antnio Manuel Hcspanha, "Une autre adrr.inislration. La coui comme paradigme d'organisation des pouvotis 'cpoquc moderne", Oit Anfingt der Verwoltung der l.uroptihchen Gemeinsciioft (- Jitlrvuh f. europ. Veruinltur.gsgcscldchir, 4), Badcn-Bader >, 1992.

    1 1 Sobre este rpico, dc novo, o meu livro As vsprfM .... '"ir.; tambm a. iesc dc Jose Manuel Subtil, O desembargo do Puo (750-1S3.V, Lisboa, U A L , 1996. contm elementos muito teis para a discusso.

    O DEBATE ACERCA D O "ESTADO MODERNO" 1 4 1

    Grfico 1. Rendas dos oficiais da administrao portuguesa (excluindo a ultramarina), em 1640

    O l M C C SCI!)

    tribunais 2 1 %

    Milcia real 0%

    Corporaes c senhores 6%

    Concelhos 48%

    A esta fragilidade dos aparelhos burocrticos soma-se a falta de re-cursos financeiros da coroa, pois a subida das suas rendas durante os scs. X V I I c X V I I I a que se refere o Grfico 2 no era bastante para melhorar substancialmente o magro aparelho burocrtico a que antes nos referimos'2.

  • 142 ANTNIO MANUEL HESPANHA

    A esta falta cie incios cia coroa para governar o Reino leramos ainda que acrescentar uma referncia ao deficiente conhecimento do prprio territrio de que no houve representaes cartogrficas detalhadas ou contagens demogrficas precisas at aos incios do sc. X I X e s dificuldades e demoras das comunicaes internas - ms estradas, de-ficiente servio de correios.

    Mas neste balano do impacto dos vrios poderes existentes no Rei-no esquecem-se. sobretudo, alguns dados fundamentais sobre a lgica global do sistema dc poder na poca moderna.

    Ao contrrio do que acontece hoje, o poder poltico estava muito re-partido nas sociedades modernas. Com o poder da coroa coexistiam o poder da Igreja, o poder dos concelhos ou comunas, o poder dos senho-res, o poder dc instituies como as universidades ou as corporaes de artfices, o poder cias famlias. Embora o rei dispusesse de prerrogativas polticas de que outros poderes normalmente no dispunham os cha-mados direitos reais, como a cunhagem dc moeda, a deciso sobre a guerra e a paz, a justia cm lt ima instncia , o certo que os restantes po-deres tambm tinham atribuies de que o tei no dispunha. A Igreja, por exemplo, rinha uma larga esfera de competncias exclusivas como, por exemplo, julgar e punir os clrigos. O mesmo acontecia com o poder do pai, no mbito da familiar era impensvel que a coroa se intrometesse, por exemplo, na disciplina domstica ou na educao dos filhos. E por a em diante: a universidade julgava c punia os seus estu-dantes e professores; as corporaes regulavam os respectivos ofcios; as cmaras editavam as normas (posturas) relativas vida comunitria.

    Tambm o direito do rei (a lei) no era o nico direito. Ao lado dela, vigorava o direito da Igreja (direito cannico); o direito dos con-celhos (usos e costumes locais, posturas das cmaras); ou os usos da vida, longamente estabelecidos e sobre: que houvesse consenso, que os juristas consideravam como de obedincia obrigatria, tanto ou mais do que a lei do rei. Dc resto, como tambm mostrei num estudo com alguns anos 1 3, a lei do rei to pouco era aplicada de forma inexorvel e

    1 3 An tn io Manuel Hcspanha, "Da 'iustitia' 'disciplina'.Textos, poder e poltica penal no Antigo

    O DEBATE ACERCA DO "ESTADO MODERNO" 1 4 3

    sistemtica. Os juzes entendiam que a aplicao da lei devia ser mati-zada pela avaliao das sua justeza cm concreto, tarefa que lhes caberia essencialmente a eles c sobre a qual mantinham um poder incontrolado, escudados na doutrina jur dica do direito comum. No caso da lei pe-nal, a sua aplicao devia, i lm disso, ser misericordiosa. Da que, ape-sar de as Ordenaes portuguesas preverem a pena de morte para uma srie enorme de crimes, ela ser excepcionalmente aplicada, pelo menos ate ao iluminismo.

    E, quanto s decises polt icas, a vontade do rei estava sujeita a mui-tos limites. Ele tinha que obedecer s normas religiosas, porque era o "vigrio" (o substituto) de Deus na Terra. Tinha que obedecer ao direi-to, porque este no era, como vimos, apenas o resultado da sua vonta-de. Tinha que obedecer a normas morais, porque os poderes que lhe tinh im sido conferidos o tinham sido para que ele realizasse o bem com m. E, finalmente, tinha que se comportar como um pai dos seus sditos, tratando-os com amor e solicitude, como os pais tratam os fi-lhos. E isto no era apenas eoesia. Muitas entidades controlavam o cum-primento destes deveres do ofcio dc reinar. A Igreja, por exemplo, que continuava a ter a perigosa prerrogativa dc excomungar o rei, desligan-do os sditos do devei de lhe obedecer. Por isso que as crises com o Papado - - que se multiplicavam durante os reinados de D . Joo V a D . Jos eram politicamente to srias. Os prprios tribunais odeiam suspender as decises reais c declar-las nulas. E isso acontecia frequente-mente, tanto nos tribunais superiores como nos juzes concelhios, por todo o reino, em questes grandes c pequenas.

    Tudo isto estava abundantemente c solidamente sedimentado na teo-ria poltica que, at ao pombalismo, no cessou dc repetir os tpicos corporativos, descrevendo o poder real como um poder limitado, a cons-tituio como o produto indisponvel da tradio, o governo como a manuteno dos equil brios estabelecidos, o direito como um fundo

    Regime", cm Anurio cir histria dei derttlso epaot (Madrid, 1988); verso portuguesa, em Estudos nn homenagem do Prof. Eduardo Corrrit, Faculdade de Direito de Coimbra; verso francesa. "Le projet de code pena! oprtugais dc 1786. Un essai d'analyse structurcllc", cm Ln Leopoldina. l.e politirhr criminais nelXVIIIsnolo. vol. 11, Milano. Gume. 1990, 387-447.

  • 144 ANTONIO MANUEL HESPANHA

    normativo provindo da natureza. Nestes termos, todos os acenos da teoria poltica moderna para uni governo baseado na vontade, nomea-damente na vontade arbitrria do rei, eram geral e enfaticamente rc-jeirados . Digna de uma anlise porventura diferente a literatura his-trica e poltica referente ao ultramar, em que os tpicos maquiavlicos da explorao da conjuntura e do artificialismo do poltico parece se-rem mais frequentes.

    Assim, os limites ao governo provinham mais deste controle difuso e quotidiano do que, como frequentemente se diz, da teunio regular das cortes que, nessa altura, tinham uma funo sobretudo consultiva c cerimonial. "Sem o conselho [dos juristas], o prncipe no pode editar leis, ainda que o possa fazer sem a convocao de cortes", escreve um jurista do sc. X V I I , repetindo a opinio comum.

    Toda esta imagem dc centralizao ainda mais desajustada quando aplicada ao imprio ultramarino. A, alguns mdulos (Timor, Macau, costa oriental da frica) vivera em estado de quase total autonomia at ao sc. X I X . Mas mesmo a nd ia era objeto de um controlo tornado muito remoto pelos 9 meses que demorava a comunicao com a me-t rpo le 1 5 . Apesar de, como j se sugeriu, a teoria da ao poltica relati-va ao ultramar fosse algo mais permissiva.

    Este breve conspecto das coisas sabidas algumas delas arqui-sabidas da histria poltica do Portugal moderno suficiente para mostrar como muitas das ideias ainda correntes sobre o advento do "Estado" e a sua cronologia no quadram, de todo em todo, com os dados emp-ricos. A esta luz, resulta-me mais do que problemtico que um volume sobre a Idade Md ia portuguesa possa terminar com a seguinte frase conclusiva:

    1 4 Cf. A. M . Hcspanha c Angela Barreto Xavier, "A representao da sociedade c do poder*, cm Antn io Manuel Hcspanha, O Antigo Regime (1620-1T/fl.), volume IV da Histria de Portugal dirigida por josc Mattoso, Lisboa. Crculo do; Leitores. 1993, c bibl. a citada; c. tambm a minha sntese, A. M . Hcspanha, "A. fortuna de Aristteles no pensamento poltico portugus tios scs. X V I i c XVT1I c XVII1", Arhtolelismo folitko r rafionediStato. Firenze. Olshki. 1995, I15-28.

    ' C l - , por exemplo, A. M. Hcspanha c Maria Catarina Madeira Santos, "Os poderes num imprio ocenico", cm Antn io Manuel Hcspanha (coord.), O Antigo Regime (1620-1 SI0), volume IV da Histria de Portugal dirigida por Jose Mattoso, Lisboa. Circulo dos Leitores, 1993-

    O DEBATE ACERCA D O "ESTADO MODERNO" 1 45

    "... cm 1484 h territrio, passado, nao e ptria, tudo fortemente com-sentido' c condensado cm 'Portugal' e 'Portugueses'. Construiu-se o 'Estado' parturio muito lenta. Em 1484, o Regnitm de D. Dinis um 'Estado mocerno', organizativamente complexo e segura-mente centralizado [...]. um cstado-povo-cultura s portas dc ser im-pe1 io e cantar-sc em epopeia. Lusiadamente."

    A menos que "Estado" no tenha significado nenhum e se desco-

    nhea a carga semntica que no conceito foi depositado por quase 200

    anos de teoria poltica.

    Armindo de Sousa, "A monarquia feudal", volume II da llissru, de Portugal, dirigi.ia por Jos

    Mattoso. Lisboa. Estampa. I9"3. 546.