grupos domésticos e habitat rural no norte de portugal — o

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Fernando Medeiros Análise Social, vol. XXIII (95), 1987-1.º, 97-116 Grupos domésticos e habitat rural no Norte de Portugal — o contributo da escola de Le Play, 1908-34* INTRODUÇÃO 1. IMAGENS, MITOS E «REALIDADES» A sociologia histórica permite reconsiderar numerosas representações simplificadas das configurações sociais das comunidades de camponeses do Noroeste da Península Ibérica. A minha contribuição consistirá em pôr em relevo a complexidade das dinâmicas sociais que atravessam uma parte des- sas sociedades rurais, a partir do exame dum conjunto de três séries de inquéritos e de monografias realizadas entre 1909 e 1934 por sociólogos franceses e portugueses, ligados à escola de Le Play. Na conclusão deste trabalho quereríamos tornar evidentes as distorções de certas imagens em relação às realidades que se desprendem deste corpus monográfico. Entre as imagens em questão existe uma em particular que chama a atenção, tanto pela sua perenidade, como pelo poder de evocação que ela traz em si desde há cerca de um século, condicionando desde então a maior parte das abordagens analíticas do universo rural do Norte de Portugal. Foi de facto preciso o talento de um Oliveira Martins para impor uma certa visão da paisagem minifundiária do Norte e terá de se reconhecer o poder sugestivo da sua célebre fórmula 1 . Recorde-se que Oliveira Martins utili- zava esta imagem em contraponto com a de um Sul latifundiário quase desertificado, procurando nesta representação bipolar o argumento de cho- que para o lançamento de um ambicioso projecto de desenvolvimento agrí- cola. Esse projecto, recordêmo-lo, implicava um vasto movimento de «colonização interna», no sentido de transferir para o Sul alentejano o excesso de mão-de-obra e de bocas a alimentar de que sofreria o sistema agrário microfundiário. Parece inegável que a persistência deste postulado nas tentativas mais audaciosas de reestruturação agrária não se pode explicar senão tendo em conta a mitologia que envolvia a planície alentejana, qual véu impermeável aos mais penetrantes espíritos portugueses do final do século xix e princí- pio do xx. Também se deve notar que as pesquisas de Basílio Teles encon- tram este mesmo obstáculo da falsa evidência, impedindo-o de tirar todas * Este estudo foi apresentado no colóquio «Les Campagnes Portugaises de 1870 à 1930: Image et réalité», realizado em Aix-en-Provence, de 2 a 4 de Dezembro de 1982. 1 «O cavador leva o estrume às costas num cesto de 1 litro ou 1/2 de semente no bolso, ou num saquitel de bragal. Em tais propriedades as vacas pastam presas à soga, e nas maiores sob a guarda da família, 4 ou 5 pessoas.» (Oliveira Martins, Fomento Rural e Emigração, ed. 1956, p. 67.) 97

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Fernando Medeiros Análise Social, vol. XXIII (95), 1987-1.º, 97-116

Grupos domésticos e habitat ruralno Norte de Portugal — o contributoda escola de Le Play, 1908-34*

INTRODUÇÃO

1. IMAGENS, MITOS E «REALIDADES»

A sociologia histórica permite reconsiderar numerosas representaçõessimplificadas das configurações sociais das comunidades de camponeses doNoroeste da Península Ibérica. A minha contribuição consistirá em pôr emrelevo a complexidade das dinâmicas sociais que atravessam uma parte des-sas sociedades rurais, a partir do exame dum conjunto de três séries deinquéritos e de monografias realizadas entre 1909 e 1934 por sociólogosfranceses e portugueses, ligados à escola de Le Play. Na conclusão destetrabalho quereríamos tornar evidentes as distorções de certas imagens emrelação às realidades que se desprendem deste corpus monográfico.

Entre as imagens em questão existe uma em particular que chama aatenção, tanto pela sua perenidade, como pelo poder de evocação que elatraz em si desde há cerca de um século, condicionando desde então a maiorparte das abordagens analíticas do universo rural do Norte de Portugal.Foi de facto preciso o talento de um Oliveira Martins para impor uma certavisão da paisagem minifundiária do Norte e terá de se reconhecer o podersugestivo da sua célebre fórmula1. Recorde-se que Oliveira Martins utili-zava esta imagem em contraponto com a de um Sul latifundiário quasedesertificado, procurando nesta representação bipolar o argumento de cho-que para o lançamento de um ambicioso projecto de desenvolvimento agrí-cola. Esse projecto, recordêmo-lo, implicava um vasto movimento de«colonização interna», no sentido de transferir para o Sul alentejano oexcesso de mão-de-obra e de bocas a alimentar de que sofreria o sistemaagrário microfundiário.

Parece inegável que a persistência deste postulado nas tentativas maisaudaciosas de reestruturação agrária não se pode explicar senão tendo emconta a mitologia que envolvia a planície alentejana, qual véu impermeávelaos mais penetrantes espíritos portugueses do final do século xix e princí-pio do xx. Também se deve notar que as pesquisas de Basílio Teles encon-tram este mesmo obstáculo da falsa evidência, impedindo-o de tirar todas

* Este estudo foi apresentado no colóquio «Les Campagnes Portugaises de 1870 à 1930:Image et réalité», realizado em Aix-en-Provence, de 2 a 4 de Dezembro de 1982.

1 «O cavador leva o estrume às costas num cesto de 1 litro ou 1/2 de semente no bolso,ou num saquitel de bragal. Em tais propriedades as vacas pastam presas à soga, e nas maioressob a guarda da família, 4 ou 5 pessoas.» (Oliveira Martins, Fomento Rural e Emigração,ed. 1956, p. 67.) 97

as conclusões ou de explorar a heurística de uma descoberta capital que odistingue de Oliveira Martins. Com efeito, no final de uma análise rigorosae exemplar, B. Teles descobre o traço dominante do habitat rural doNoroeste quando verifica, em colaboração com Rocha Peixoto, a disjun-ção entre o conjunto dos proprietários sujeitos ao imposto predial, por umlado, e aquele, mais restrito, formado pela totalidade das explorações agrí-colas do litoral norte, por outro. Enquanto Oliveira Martins via em cadaproprietário um chefe de exploração cujos descendentes seriam cada vezmais compelidos à emigração ou ao êxodo rural, em virtude dos efeitosmecânicos da partilha igual da herança, Basílio Teles revela, quinze anosmais tarde2, a estrutura complexa de numerosas explorações agrícolas queassociavam intimamente vários proprietários no âmbito da economiadoméstica, sujeita, em grande parte, à lógica do autoconsumo.

O primeiro passo para a compreensão das dinâmicas geradas por estassociedades camponesas acabava de ser dado e é impressionante verificaraté que ponto esta descoberta fundamental pode ter sido ignorada pelosinvestigadores que persistirão ainda durante muito tempo em partir daspremissas de Oliveira Martins. Por um curioso mimetismo, o primeiro leplaysiano a interessar-se pela morfologia social de Portugal, Léon Poin-sard, adoptará em 1909 os postulados dominantes, sem tomar conheci-mento dos trabalhos de B. Teles.

Para L. Poinsard, no que diz respeito à ruralidade do Norte, o fenó-meno mais relevante parece ser o colectivismo agrário, estudado poucotempo antes por Rocha Peixoto nas serras do Barroso e do Gerez3, ao qualele contrapõe a pulverização da propriedade fundiária nas regiões menosacidentadas. Ignorando manifestamente os trabalhos de Basílio Teles,L. Poinsard limitará as suas pesquisas à observação das práticas comunitá-rias das aldeias da montanha e aos tipos de agricultores da região de pro-dução do vinho do Porto. Os seus continuadores, pelo contrário, saberãorectificar este erro de apreciação e Paul Descamps, cerca de vinte anosmais tarde, conseguirá reunir os dados que confirmariam a análise deB. Teles, sem, no entanto, se referir a ele.

2. AS MONOGRAFIAS E OS INQUÉRITOS

A primeira série de monografias foi realizada em 1909 por Léon Poin-sard, em colaboração com Matos Braamcamp. Desta primeira série referi-remos sobretudo aquelas que dizem respeito aos «tipos de cultivadores doNorte» (Alto Douro e Beiras) e os inquéritos sobre a «cultura comunitáriade Trás-os-Montes». O livro de L. Poinsard4 informa-nos também demaneira concisa sobre os orçamentos das famílias camponesas inquiridas eé esse o interesse principal de uma obra que teve o enorme mérito de inau-gurar este tipo de pesquisas em Portugal.

A segunda série é devida aos trabalhos de José Fontes e outros colabo-radores da Sociedade Portuguesa de Sciência Social, fundada em 1917 porum grupo de universitários e de publicistas de Porto e Coimbra5. Infeliz-mente, foi-nos impossível compulsar este conjunto de monografias reuni-

2Basílio Teles, Carestia da Vida nos Campos, Porto, 1903, caps. viii e ix.3 Rocha Peixoto, Reminiscência do Regime Comunitário em Portugal, Coimbra, 1908.4 Léon Poinsard, Le Portugal Inconnu, Firmin Didot, Paris, 1910.

98 5Entre eles, Bento Carqueja, Serras e Silva, Matos Braamcamp e José Fontes.

das num Arquivo de Inquéritos sobre a Vida Portuguesa. Utilizaremossomente aquelas que foram publicadas no Boletim da Sociedade Portu-guesa de Sciência Social6.

A terceira série de monografias foi realizada por Paul Descamps,quando este ensinou em Portugal entre 1930 e 1935, a convite dos le play-sianos portugueses. A sua apresentação e análise formam o essencial daobra Portugal, a Vida Social Actual, editada em Paris em 1935.

O corpus monográfico reconstituído não apresenta uma total homoge-neidade, nem metodológica, nem na sua repartição regional. Assim,P. Descamps omite muitas vezes indicar os orçamentos das famílias inqui-ridas, passo, no entanto, fundamental, para a escola de Le Play, mas, con-trariamente ao seu predecessor, dará provas de uma maior preocupação naverificação das informações colhidas junto das «autoridades sociais»,comparando-as com os dados compulsados com a ajuda de uma bibliogra-fia mais sistemática. Este rigor, aliado a um grande número de observaçõesdirectas e de investigações monográficas realizadas com o contributo deseus estudantes de Coimbra e de Lisboa, permitir-lhe-ão descobrir a impor-tância das práticas usuais em matéria de sucessão e de herança na zonasetentrional do País, fenómeno que tinha escapado à observação deL. Poinsard, embora figurasse já nos trabalhos de José Fontes.

Notar-se-á também no caminho seguido por P. Descamps a preocupa-ção manifesta de responder a um pedido emanado do novo regime preocu-pado em elaborar certos projectos políticos através de estudos prévios. Foia primeira vez que a sociologia se encontrou envolvida de tão perto comos assuntos políticos portugueses, mas a experiência foi de curta duração.Apesar das afinidades ideológicas entre os salazaristas e os le playsianos,P. Descamps teve de renunciar às suas pretensões reformistas e verificarque a concepção da sociedade ditada pelo Estado Novo não deixava omínimo lugar a uma disciplina como a sociologia, mesmo que esta fossediscreta nas menores alusões críticas7. A geografia e a economia foramigualmente solicitadas para estudos com uma finalidade idêntica, comopodem testemunhar trabalhos de Amorim Girão e os da equipa dirigidapor Lima Basto8. Estas disciplinas, apoiando-se nas suas tradições univer-sitárias, tomariam a seu cargo alguns dos novos domínios dos estudosrurais, abandonados por uma etnografia cada vez mais confinada a fazero reportório do folclore. No entanto, as descobertas decisivas de BasílioTeles e dos le playsianos tiveram de esperar mais de meio século paraserem tomadas em consideração pelo etnólogo Jorge Dias9 e, mais recente-mente, por uma jovem geógrafa10. A análise económica das estruturasagrárias levantou por várias vezes a questão do «dualismo» Norte-Sul, massempre dentro da óptica legada por Oliveira Martins, tendo como objec-tivo resolver definitivamente o velho debate sobre a superioridade ou ainferioridade da pequena exploração em relação à grande exploração lati-

6José Fontes. n.°s l, 2, 3 e 4, Porto, 1917-18.7 No prefácio do livro de P. Descamps, assinado por Serras e Silva, note-se a rejeição do

«materialismo» le playsiano, pouco conforme à ideologia dominante.8 A. Girão, Esboço de Uma Carta Regional, Coimbra, 1933. L. Basto e outros, Inqué-

rito Económico-Agrícola, Lisboa, 1935.9 Jorge Dias, Rio d'Onor, Comunitarismo Agro-Pastoril, Porto, 1953; Vilarínho da

Furna, Uma Aldeia Comunitária, Porto, 1948.10 Rosa Fernanda Moreira da Silva, «Geografia agrária da área das doações», in Finis-terra, vol. xi, 22, 1976. pp

fundiária, omitindo, no entanto, o essencial, a saber, o polimorfismo daprimeira e a inserção de cada uma delas em sistemas sociais específicos, sebem que interligados dentro da sociedade global. Neste rápido panorama dahistória das ideias, note-se que os trabalhos de Paul Descamps sobre Portu-gal podem ser considerados como o último empreendimento monográfricoda escola de Le Play, a qual viria praticamente a desaparecer do campocientífico das ciências sociais em proveito da sociologia durkheimiana.

Voltaremos mais adiante às questões de método levantadas pelas mono-grafias dos le playsianos. No que respeita à sua distribuição geográfica,verificaremos no mapa apresentado mais adiante que as monografias rela-tivas aos agricultores se concentram em maior número nas regiões situadasao norte de uma linha unindo Aveiro e Guarda. Contam-se aí 38 monogra-fias num total de 69 dedicadas ao conjunto do País, 16 das quais se encon-tram ao sul do vale do Tejo. A faixa atlântica compreendida entre as cida-des de Aveiro e Caldas da Rainha, incluindo os distritos de Aveiro,Coimbra e Leiria, não chamou a atenção dos investigadores e tanto LéonPoinsard como Paul Descamps acharam desnecessário estender as suaspesquisas a regiões que eles compararam, sem real fundamentação, com asprincipais características do Noroeste. Isto força-nos a excluir toda aregião litoral situada entre o Vouga e o Tejo, à falta de um mínimo dematerial. Por consequência, concentraremos toda a atenção sobre a partesetentrional, compreendida entre as bacias do Vouga e do Minho, englo-bando aí todo o Nordeste. Antes de estabelecer a carta da distribuição geo-gráfica das pesquisas relativas aos grupos domésticos camponeses, convémexplicitar o que se entende por grupo doméstico e adoptar algumas conven-ções de terminologia necessárias à análise do corpus monográfico que nosinteressa evidenciar.

I — GRUPOS DOMÉSTICOSE SOCIEDADE CAMPONESA

1. FAMÍLIA, PARENTES E GRUPO DOMÉSTICO

A terminologia utilizada pelos le playsianos não é facilmente reconver-tível dentro dos conceitos da sociologia rural actual. É por vezes difícilapreender o que estes autores, a exemplo de Le Play e de H. de Tourville,entendiam por «família comunitária», «família patriarcal», «família aba-lada» ou «instável» ou ainda por «família desorganizada». Estas diferen-ciações correspondem à expressão de princípios normativos, de ordemética e político-filosófica, elaborados ao longo do século xix pelo pensa-mento conservador, empenhado na construção de um sistema de ideiascentrado na valorização explícita da estabilidade social e das instituiçõesque lhe asseguravam a perenidade. O postulado de partida na teoria deLe Play consiste na afirmação segundo a qual o estado de uma sociedadepode ser revelado a partir do estudo sistemático de uma unidade microsso-cial convenientemente escolhida, neste caso a «família11 operária», tomada

"Esta expressão abrange, para a escola de Le Play, um sentido genérico, sinónimo detrabalhadores manuais, englobando de uma maneira indiferenciada o campesinato, o artesa-

100 nato e o proletariado manufactureiro e industrial.

no seu enquadramento tanto económico como social e cultural. Este postu-lado levou estes investigadores a inquirir sobre as condições e os modos devida dos agregados familiares, a organização da oficina (atelier) doméstica,enumerando simultaneamente os costumes próprios das regiões de inser-ção, as práticas religiosas e as suas incidências sobre as formas de patro-cínio que desejavam promover, inspirando-se no Decálogo. Em últimaanálise, só as élites podiam ser consideradas responsáveis pela «desor-ganização» da vida familiar e, a partir daí, pela «desorganização» e pelodesregulamento da vida social no seu conjunto. Ao atomismo individua-lista do liberalismo opunham eles a solidariedade distributiva definidaa partir do arquétipo da autoridade patriarcal, colhendo nas organizaçõescolectivas restritas ou elementares (famílias, aldeias, oficinas), integradasem conjuntos regionais homogéneos, as referências institucionais de que oEstado deveria ser a emanação e em relação às quais se legitimariam ospoderes públicos, tão restritos quanto possível, exercidos em nome do inte-resse geral. Dentro deste dispositivo, o lugar concedido às análises da famí-lia, aos ciclos de vida familiar e às condições específicas da sua reproduçãodevia ser sistematicamente privilegiado, porque a família era, ao mesmotempo, para este sistema de pensamento, a parcela mais elementar da vidasocial e a sede da gestação e de exercício natural da única forma de con-senso extensível ao conjunto da sociedade.

Se exceptuarmos o conceito de «família-tronco», elaborado porLe Play a partir da observação da organização familiar do Sudoeste daFrança, a taxinomia morfológica utilizada pelos seguidores de Le Play nãoaponta para qualquer modelo preciso de parentesco. Por seu turno, a«família-tronco» aproxima-se em muitos aspectos da família-tipo do ramoprimogénito do sistema de linhagem. Em certo momento, Le Play foi ten-tado a fazer dela um tipo ideal de organização familiar, tomando a famíliaaristocrática como modelo, mas os seus continuadores não o seguiram e,aproximando-se progressivamente do catolicismo social, rejeitaram o mal-thusianismo implícito no modelo de reprodução simples, única soluçãocompatível com o princípio da justiça distributiva12.

Combinando os elementos dos inquéritos sobre a organização familiarcom aqueles que figuram nas descrições das oficinas agrícolas, estaremosem condições de reconstituir os grupos domésticos, pelo menos parcial-mente, conformando-nos com a definição correntemente aceite pela socio-logia rural. Recordemos que, para H. Mendras13 e J. Goody , o grupodoméstico se define como o conjunto de pessoas que, segundo a expressãoantiga, vivem da mesma panela e do mesmo lume, do mesmo pão e domesmo vinho, e multiplicam um grupo de indivíduos ligados pelo paren-tesco ao longo de gerações.

Em virtude dos objectivos da nossa análise, distinguiremos três tiposprincipais:

a) Os grupos domésticos complexos, quando se trate de agregados rela-tivamente estáveis de indivíduos ligados pelo parentesco em descen-dência directa, incluindo, pelo menos, dois casais de gerações dife-

12Antoine Savoye, «Les continuateurs de Le Play au tournant du siècle», in Revue Fran-çaise de Sociologie, vol. xxii, 3, 1981.

13Henri Mendras, Les Sociétés Paysannes, Paris, 1976.14 Jack Goody, Production and reproduction, 1976. 101

rentes e solteiros adultos, descendentes e/ou colaterais, ou aindaadultos sem qualquer laço de parentesco com os outros co-resi-dentes;

b) Os grupos domésticos simples são os constituídos por dois casais(avós e pais), com exclusão de qualquer outro co-residente perma-nente adulto casado, mas podendo compreender co-residentes tem-porários adultos pertencendo à mesma família; estes grupos só têmempregados(as) domésticos(as) menores;

c) O casal ou família nuclear corresponderá ao grupo doméstico ele-mentar,

2. GRUPOS DOMÉSTICOS E ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL NO NORTERURAL

A conversão dos dados monográficos dos le playsianos na classificaçãotipológica acima proposta levanta algumas dificuldades em virtude da insu-ficiência do material empírico, por um lado, e da desigual repartição e dis-tribuição por regiões e por estratos sociais, por outro lado. Além disso, alista dos co-residentes não menciona sistematicamente as idades dos meno-res presentes, familiares ou empregados(as) domes ticos (as). Por outrolado, as monografias não obedecem a qualquer critério de amostragem dosuniversos observados. Os inquiridores actuavam por «sondagens isoladas»(P. Descamps), a partir de informações sobre as características regionaisreunidas em colaboração com as «autoridades sociais» locais e certos sec-tores da comunidade universitária, ou simplesmente determinadas pelasorigens ou os laços familiares dos estudantes-investigadores. No terreno,os investigadores escolhiam famílias que consideravam mais representanti-vas do tipo dominante em cada região, mas os critérios de classificaçãopermanece muito vago. Por vezes, os colaboradores de P. Descamps ela-boram notas monográficas sobre a estratificação social das aldeias de resi-dência das famílias inquiridas, mas unicamente para as regiões onde predo-minava o habitat agrupado, isto é, Trás-os-Montes; para o Noroeste,englobando o Minho, o Douro Litoral e o Norte da Beira Litoral, regiõesmarcadas por uma forte densidade de população e caracterizadas por umhabitat medianamente agrupado ou disperso, o método monográfico utili-zado revela-se improdutivo e as informações estatísticas de base eram ine-xistentes ou demasiado incompletas para contornar a dificuldade.

É por todas estas razões que nos devemos abster de procurar nos inqué-ritos dos le playsianos uma visão reconstruída da «realidade», tanto maisque ela incide sobre um universo rural complexo, diverso e muito contras-tado, recamado de particularismos. A complexidade da realidade prende-seem definitivo com o conceito económico camponês, no qual o investimentoexclusivamente material não se distingue dos investimentos de ordemafectivo-cognitivòs. Isto incita-nos, antes de estabelecer a carta da distri-buição geográfica dos diferentes tipos de grupos domésticos, a salientarbem a opacidade da estratificação social quando nos limitamos a uma aná-lise da sociedade residente sem ter em conta o desdobramento desta nosdiferentes circuitos da emigração (parte não residente destas sociedadescamponesas). Arrisquemos, todavia, um rápido esboço da estratificaçãosocial pela simples enumeração dos diversos tipos de situações socieconó-

102 micas e dos estatutos dos agricultores do Norte, sem distinção de regiões.

Os seguidores de Le Play classificavam os agricultores em três categorias:os agricultores proprietários abastados (lavradores), os pequenos proprie-tários agricultores (ou co-proprietários) e os cabaneiros, correspondendoao proletariado rural dessas regiões.

Se a primeira e a terceira categorias não levantam dificuldades particu-lares, na medida em que o estatuto patrimonial funciona como critério dedistinção, o mesmo já não se passa com a categoria dos «pequenos campo-neses», que recobre uma miríade de situações diversas, do ponto de vistatanto do estatuto jurídico como do de equilíbrio necessidades-recursos oudo rendimento diferencial. Tomando o primeiro critério, isto é, o estatutojurídico, temos os proprietários, aquilo a que L. Poinsard chama os semi-proprietários (conta própria mais parceria) e os não proprietários (rendei-ros). Em relação à segunda variável, distinguem-se dois grupos principaisde agregados domésticos: aqueles cujos recursos provêm exclusivamente dotrabalho da exploração («a pequena exploração perfeita» dos economistasagrários portugueses) e aqueles dos quais uma parte dos recursos provémdo trabalho assalariado (esporádico, sazonal ou permanente) ou das remes-sas de dinheiro de um membro do agregado familiar provisoriamente15 ins-talado na emigração (Brasil, colónias e França desde 1918). E deveriamainda distinguir-se, nesta última categoria, aqueles cujos membros seausentaram por períodos sazonais, durante os quais podiam ser contrata-dos para a viticultura do Douro, para a grande exploração do Ribatejo, doAlentejo ou da Estremadura espanhola, e aqueles que, pelo contrário, utili-zavam com maior frequência as possibilidades de contrato nas fábricasimplantadas no meio rural desde o último quartel do século xix.

Esta diferenciação traduz-se numa outra: geralmente partiam paralonge os homens e os jovens; o trabalho fabril, quando existente, mobili-zava sobretudo as mulheres e as adolescentes. A partir destas indicaçõespercebe-se facilmente que a composição por idades e sexos do efectivo decada agregado doméstico lhe determinava uma trajectória específica,momentânea ou duradoura, que definia, em última análise, as situações derelativa abastança, de pobreza ou de indigência, isto com um estatutopatrimonial idêntico. Depreende-se também das monografias que a estrati-ficação social é dependente da capacidade de mobilidade geográfica, conti-nental e intercontinental (a emigração), a qual constitui uma das principaisdiscriminantes das sociedades camponesas do Norte, e mais particular-mente das do Noroeste. O acesso às redes da emigração, constituídas delonga data ou mais recentes, hierarquizadas e moduladas pelas redes desolidariedade e aliança no interior de vastas parentelas e clientelas, deter-minava as probabilidades de sucesso do projecto de emigração de cada ume, por efeitos retroactivos, de cada grupo doméstico originário. Este factorda dinâmica social arrastava efeitos múltiplos, nomeadamente ao nível dacirculação da propriedade fundiária. Com efeito, no quadro de uma agri-cultura orientada em perto de 70% para o autoconsumo (estimativa efec-tuada a partir dos orçamentos estabelecidos por L. Poinsard), não dis-pondo, por consequência, senão de uma fraquíssima capacidade depoupança sob a forma de liquidez, a aquisição de terras só era possível gra-ças à entrada de recursos exteriores, dentre os quais a emigração era a prin-cipal fornecedora.

15 Trata-se daqueles emigrantes que, pelas suas remessas regulares de dinheiro, manifes-tam explicitamente o seu profundo apego ao projecto de regresso e de reinserção local. -103

Distribuição das monografias recenseadas

| | - Partilhas iguais

Sistema consuetudináriode sucessão única

p i - Região das doações

O - Família troncor\ _ Grupo doméstico complexo

(polinuclear)& - CasalA -Sociedade familiar

104

Para completar este quadro, assinalaremos a presença de uma burgue-sia rural (plebeia ou de origem senhorial) instalada nas quintas e solares16,muitas vezes à frente de explorações agrícolas pouco rendáveis. Não conse-guindo viver das rendas das terras, os senhorios (proprietários) tinham fre-quentemente um pé na cidade e uma bota no campo, procurando as vanta-gens nos dois pólos da sociedade através da função de mediação por elespreenchida entre colectividades locais e a sociedade englobante. Noentanto, essa capacidade de mediação estava consideravelmente limitadapelas próprias características dos fluxos migratórios. Com efeito, da explo-são da emigração surgiam outras formas de mediação entre os múltiplospólos de uma sociedade global cada vez mais «deslocalizada». Assinaleinoutra oportunidade o papel determinante dos investimentos especulativosneste processo de desarticulação económica, social, política e cultural doespaço metropolitano, ocasionado pela relação de complementaridadeentre os objectivos do mercantilismo colonial e os imperativos malthusia-nos da economia doméstica camponesa17.

3. A DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS DOMÉSTICOS INQUIRIDOS,POR ESTRATOS, TIPOS E REGIÕES

A representação dos grupos domésticos inquiridos não corresponde, demaneira alguma, à estrutura da repartição efectiva, aliás impossível dedeterminar à falta de dados de base, especialmente de cadastro. Assinala-mo-la, a título puramente indicativo, para a região situada ao norte dalinha Aveiro-Guarda:

Agricultores proprietários abastados 10Pequenos agricultores:

Agricultores proprietários 12Proprietários «a meias» 7Rendeiros 5Camponeses-operários 2

Sociedades familiares (irmãos solteiros) _2Total Norte 38

Segundo os tipos de grupo doméstico acima definidos, repartem-se damaneira seguinte:

Grupos domésticos complexos 5 (pelo menos) ] ~iGrupos domésticos simples 16 (máximo) jGrupos domésticos elementares 15Sociedades familiares _2

Total Norte 38

O corpus monográfico não permite delimitar a dinâmica da passagemdos grupos domésticos de um tipo a outro. Mas o facto de ser muito raroencontrar grupos domésticos formados por dois casais da mesma geração,

16 Sobre o antigo regime cf. Albert Silbert, Le Portugal Méditerranéen à la fin de l'ancienrégime, Paris, 1968.

17 F. Medeiros, A Sociedade e a Economia Portuguesas nas Origens do Salazarismo, Lis-boa, 1978. 105

para além de que dois dos cinco casos mencionados eram explorações agrí-colas em regime de parceria, leva a crer que os grupos domésticos polinu-cleares, agrupando os casais dos pais e de dois ou mais descendentes, eramnão só excepcionais, mas também situações de transição que não se prolon-gavam para além do desaparecimento dos pais.

Deste modo, os grupos domésticos complexos cindiam-se em gruposelementares, parte dos quais, por sua vez, se transformavam em gruposdomésticos simples.

No que respeita à distribuição geográfica, assinalamos no mapa dapágina anterior o conjunto dos grupos domésticos que foram objecto denotas monográficas suficientemente precisas para permitir a sua classifica-ção nos quatro tipos seguintes: O — família-tronco (grupo doméstico sim-ples e/ou complexo); 0 — grupos domésticos complexos; A — sociedadefamiliar; *=> — casal.

A parte a cinzento-claro corresponde às regiões onde se concentra amaior frequência e proporção de grupos domésticos dos dois primeirostipos. À excepção do triângulo Braga, Fafe e Vila Nova de Famalicão, estadelimitação recobre as regiões onde a estrutura específica dos gruposdomésticos inquiridos revela a persistência do sistema de sucessão única ede herança preciputária, ou herança favorecida para um só descendente.José Fontes (1917) e P. Descamps (1935) assinalam esta sobrevivência e,deste ponto de vista, a informação contida nas monografias permite avan-çar a hipótese da relativa unidade social e antropológica do espaço for-mado pelo «grande Noroeste» (da Galiza a Oliveira de Azeméis), o Norteda província de Trás-os-Montes (ou «terra fria» para os geógrafos) e asregiões de transição entre o litoral e o interior (Barroso, Alvão e Marão).A delimitação na província de Trás-os-Montes é mais problemática, à faltade dados monográficos. Indicamo-la por uma zona de indeterminaçãolimitada por duas linhas a ponteado.

A região de Santo Tirso e «Terra da Maia», ao norte do Porto,distingue-se por um sistema de sucessão-herança específico, a doação,sobre o qual voltaremos a falar. Nas demais regiões do País, a regra daspartilhas iguais e os grupos domésticos elementares predominavam larga-mente.

II — GRUPOS DOMÉSTICOSE TIPOS DE HABITAT

1. PRÁTICAS CORRENTES DE SUCESSÃO E DE HERANÇA

Quando Oliveira Martins se preocupava com fragmentação e o extremoparcelamento da propriedade fundiária no Norte, e particularmente noNoroeste, tinham decorrido vinte anos desde a entrada em vigor das dispo-sições jurídicas que introduziram a regra da partilha igual da herança emdescendência legítima (Código Civil, 1867). Pouco tempo antes (1863), osmorgadios tinham sido abolidos enquanto se esboçava a última fase daextinção do aforamento. Este autor, bem como os seus continuadores, nãodeixava de observar nisso uma das causas do processo «microfundiário»,também atribuído ao acréscimo da pressão demográfica. Para remediar

106 este estado de coisas, Oliveira Martins chegou a preconizar drásticas medi-

das correctivas, nomeadamente aquelas que visavam estabelecer a indivisãodas propriedades não excedendo os 25 ha18.

O fenómeno da divisão e da pulverização da propriedade rústica noNorte do País era incontestado e as reformas liberais só vieram reforçaruma tendência já antiga, como o atesta o carácter neolocal da residênciade muitos casais, traço sem dúvida dominante nas formas de habitat ruralno Noroeste19. Daí, também, que o costume da transmissão do patrimónioou de uma parte importante deste a um só sucessor vigorasse ainda forte-mente nestas regiões, o que levara o legislador a admitir algumas restriçõesà capacidade testamentária do de cujus, instituindo, por um lado, a «legí-tima» (isto é, porção de herança, equivalente a metade do seu valor, reser-vada a todos os herdeiros legítimos, fossem quais fossem as disposiçõestestamentárias) e, por outro lado, a «quota disponível», equivalente a umterço do valor da herança, da qual o testador podia dispor para fins suces-sorais. Em 1910, a «quota disponível» foi objecto de uma nova interpreta-ção, passando a englobar a outra metade do valor total da herança, isto nomeio de uma certa confusão jurídica20. Em 1930, o Decreto n.° 19 126viria ratificar esta interpretação e reforçar assim a capacidade de doaçãoentre vivos.

A escolha do herdeiro-sucessor não recaía obrigatoriamente sobre ofilho mais velho, como no antigo regime, embora os lavradores-proprie-tários abastados, à excepção notável dos viticultores do Alto Douro,adoptassem frequentemente a regra da primogenitura varonil de maneira agarantir a indivisão da propriedade e a perenidade da linhagem. No casoda pequena exploração por conta própria, o privilégio preciputário erageralmente em favor de uma filha casada em casa, que herdava, em regimede «meação» com o marido, a casa e alguma terra contígua; por vezes, umdos filhos mais novos, associado à exploração familiar, podia ser dela obeneficiário, mas, neste estrato social, a prestação de serviços (sobretudoa assistência à velhice dos pais) surge como a contrapartida da «herançafavorecida». O costume da sucessão única exprimia-se ainda com maiorevidência nos contratos informais da parceria: o proprietário subscreviaquase sempre a escolha efectuada pelo rendeiro, sendo o sucessor desig-nado um filho ou um genro deste.

2. REGIME PATRIMONIAL E FORMAS DE HABITAT

A diferenciação dos tipos de habitat do Noroeste e do Nordeste é umfacto bem assente: ao habitat disperso do Minho opõe-se o habitat concen-trado de Trás-os-Montes. Os geógrafos, e entre eles Orlando Ribeiro eBodo Freund21, deram um contributo matizado à interpretação históricatradicional deste contraste, mostrando, entre outras coisas, o carácter rela-tivamente recente de certas actividades colectivas agro-pastoris praticadasem aldeias comunitárias da Terra de Barroso. Esta zona montanhosa,situada entre as cidades de Braga e Chaves, formaria, segundo B. Freund,

18Oliveira Martins, Projecto de Fomento Rural, título viii, 1887.19Colette Callier-Boisvert, «Remarques sur la parente et sur la famille au Portugal», in

L'Homme, t. viii, 1968.20Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. ii,

pp. 368-369.21 Orlando Ribeiro, «Aldeia» e «Povoamento», in Dicionário de História de Portugal. 107

uma região de transição que separa os dois grandes tipos de habitat daparte setentrional do País. O mesmo autor verifica que a estrutura parcelarmuito diversificada desta região (quatro tipos de parcelas e outras tantasformas de organização espacial das colectividades) se associa invariavel-mente a um habitat semidisperso constituído de casais e quintas isolados,situados em redor de pequenas aldeias afastadas. Perante a grande diversi-dade das paisagens, a morfologia agrária revela-se inoperante para explicaro ordenamento do espaço rural. Restam a abordagem geofísica e a análisehistórica, esta tentando revelar a influência que puderam ter os diferentessistemas de colonização (povoamento) e de arroteamento.

Definindo, a partir de critérios geofísicos e ecológicos, quatro partesdistintas da Terra de Barroso, umas aproximando-se das características doanfiteatro minhoto e outras das condições climatérias e pedológicas trans-montanas, B. Freund sublinha a presença de estruturas parcelares no con-junto de Barroso desde o século xvi, isto apesar das restrições formais aoparcelamento prescritas pelo sistema de aforamento. Esta verificação leva-oa afirmar que o sistema de contrato enfitêutico não mantinha forçosa-mente um habitat disseminado e não impedia o desenvolvimento de peque-nas aldeias22.

Em última análise, esta aproximação tipológica do habitat rural assentaessencialmente em critérios geofísicos, mas ela abre, contrariamente àsanálises efectuadas a partir exclusivamente dos dados morfológicos, novasperspectivas para uma abordagem morfológico-funcional do habitat, tendoem conta a organização espácio-arquitectónica23.

As regras de trasmissão do património, da chefia familiar e dos estatu-tos, revelando os sistemas de relações sociais centrados sobre a domestici-dade, a casa e os parentes, constituem pois um factor indispensável paraa análise dos contrastes das paisagens rurais do Norte e do polimorfismoda exploração agrícola familiar. Deste ponto de vista, a sociologia e asociologia histórica podem contribuir para melhor delimitar a oposiçãolitoral/interior e elucidar a heterogeneidade transmontana, descobrindooutras clivagens seguindo o eixo norte/sul ou a partir da oposiçãovale/planaltos (ribeiras/serras), ou ainda tendo em conta o fenómeno daperiurbanização. É nesta perspectiva que se devem inscrever os trabalhosprecursores dos le playsianos, na medida em que eles contribuíram paradelimitar a área de difusão de sistema de reprodução do campesinato a quechamaram «direito de primogenitude costumeiro» (P. Descamps).

Com efeito, tanto as monografias de J. Fontes como aquelas realizadaspor P. Descamps revelam uma extensão muito mais vasta da prática dapartilha preciputária orientada pela preocupação da indivisão do patrimó-nio do que aquela apontada por Sertório de Monte Pereira24 no princípiodo século. Enquanto este autor se limitava a assinalar aí a sobrevivênciados morgadios, afectando exclusivamente a transmissão das «quintas» (emrelação às quais se poderia aplicar o conceito de «casa»), quer eles fossempropriedade da nobreza quer da burguesia, P. Descamps assinala a existên-

22Bodo Freund, «La genèse des formes d'habitat dans la Terra de Barroso'», in Finis-terra, vol. v, 1970.

23Marie Claude Groshens, «Transmission et typologie de l'habitat rural alsacien», inÉtudes Rurales, 65, 1977. O sistema do Hof alsaciano estudado por este autor apresentasemelhanças surpreendentes com o sistema das doações de Santo Tirso e «Terra da Maia».

108 24 S. de Monte Pereira, Notas sobre Portugal/1908, vol. i, p. 132.

cia de famílias-tronco nos diferentes estratos do campesinato do Noroestee do Norte de Trás-os-Montes. Na região de «Terra da Maia», ao norte doPorto (de notar esta proximidade de uma grande cidade), subsiste aindahoje uma modalidade específica de doação entre vivos, dos pais para filho,primogénito ou não, por ocasião do contrato de casamento do beneficiá-rio. Pelo contrato de doação, a família deste recebe um dote, estimado novalor da quota disponível, que é acrescentado à totalidade dos bens dasucessão, o que permite assegurar a transmissão (quase integral) da pro-priedade ao novo casal em troca de pequenas compensações aos outrosherdeiros. Os pais permanecem na quinta e gozam, até à morte, de certosdireitos sobre o produto e o uso das terras e das casas. Quanto aos outrosdescendentes, vêem-se na obrigação de deixar a casa familiar e abandonara agricultura, a não ser que recusem a compensação em dinheiro que lhesé proposta, de maneira a conservar os seus direitos sobre o patrimónioindiviso. Neste caso, os não sucessores que permanecem na quinta e aí con-tinuam a trabalhar são constrangidos ao celibato. Um estudo recente sobrea região das doações25 mostra que este sistema de transmissão nos chegouda Idade Média e teria sido praticado em todo o Noroeste.

Na época em que foram realizadas as monografias encontravam-seainda frequentemente estes mesmos tipos de grupos domésticos (simplese/ou complexos) no Alto Minho, na periferia da Terra de Barroso (conce-lhos de Terra de Bouro, Vieira do Minho, Amares, Ribeira de Pena e Cha-ves) ou ainda no extremo nordeste, perto de Bragança. Isto parece confir-mar a tese de uma larga difusão do sistema do privilégio preciputário e datransmissão única; tal como o hostal dos Pirenéus e o Hof alsaciano, porexemplo, o património, a transmissão do nome (a linhagem) e a exploraçãoagrícola parecem ser indissociáveis e a casa constitui o elemento decisivo daidentidade social. Para além das evidentes analogias que este sistema dereprodução apresenta com os morgadios, é a relação entre ambos quecoloca em destaque o quadro institucional próprio ao sistema social destazona do País, diferenciando-a em relação a outras regiões. Para se apreen-der essa relação funcional importa sublinhar as duas diferenças notóriasque separam a doação entre vivos comuns e a transmissão dos domíniossenhoriais. Enquanto os vínculos obedeciam à regra imperativa do direitode primogenitura, o herdeiro-sucessor designado dos grupos domésticoscamponeses não era forçosamente o primogénito nem o varão. Além disso,o sistema dominial prescrevia a indivisão integral, enquanto a propriedadealodial escapava a esta obrigação jurídica. Ora esta diferença está estrutu-ralmente ligada ao sistema senhorial que se desenvolveu no Norte do Paíse aí se manteve até aos finais do século xix. Não seria abusivo, por conse-guinte, ver no sistema de doação a expressão da sobrevivência tardia doantigo regime.

Entre os grupos domésticos simples ou complexos que desenvolvemestratégias tendentes a assegurar a sua perpetuação é possível distinguirdois subtipos em função do duplo critério da sucessão e da herança. Reto-mando a classificação de Georges Augustins26, poderiam incluir-se nos

25 Para mais pormenores sobre a «região das doações» ver o artigo já citado de Rosa F.Moreira e Silva.

26Georges Augustins, «Esquisse d'une comparaison des systèmes de perpétuation desgroupes domestiques dans les sociétés paysannes européennes», in Archives Européennes deSociologie, vol. xxiii, n.° 1, 1982. 109

casos de «sucessão única, herança preciputária», aqueles que se traduzempelo casamento de uma filha em casa e aqueles que dão lugar à entrega detornas aos herdeiros não sucessores. O primeiro caso é assinalado nasmonografias do Alto Minho, na região de Viana do Castelo. Todavia, ascaracterísticas do corpus monográfico não permitem verificar, por exem-plo, em que medida a regra patrivirilocal admitia a recíproca, a patriuxoro-localidade, traduzindo nisso as modalidades de trocas específicas noâmbito dos mercados matrimoniais orientados para a reciprocidade.A eventualidade de uma tal relação funcional não seria de pôr de partepara as regiões onde viesse a observar-se uma frequência significativa demulheres casadas em casa.

Um outro tipo de «herança favorecida» era aquele praticado em diver-sas camadas de camponeses-proprietários do grande Noroeste (Minho,Douro Litoral e Norte da Beira Litoral) e da parte norte da província deTrás-os-Montes. Graças às monografias, sabemos que, nesta modalidadedo privilégio preciputário, o sucessor era geralmente um filho, primogénitoou não, escolhido para desempenhar o papel de chefe da família e daexploração. O herdeiro principal beneficiava da transmissão da casa e dasprincipais parcelas adjacentes por aplicação de cláusulas testamentáriasapropriadas. Este sistema diferencia-se do regime das doações praticadoem Terra da Maia e Santo Tirso por dois aspectos: os bens imóveis não sãointegralmente transmitidos a um só herdeiro, pois os irmãos e irmãs nãosucessores fazem efectivamente valer os direitos de co-herdeiros para dis-por da «legítima»; o privilégio preciputário não depende da entrega de umdote27. Nestas condições, a indivisão depende do pagamento de tornas aosherdeiros não sucessores (o que corresponde a um resgate das terras excluí-das da transmissão principal) ou do celibato destes quando optam pelaco-residência. Operando a partir da distinção entre sucessão (transmissãodas funções e dos estatutos) e herança (direitos sobre os bens), o privilégiopreciputário a favor de um só descendente, em troca do pagamento de tor-nas a todos os outros, poderia ser classificado no tipo de «sucessão única,herança igualitária», definida por G. Augustins28, ainda que, na prática,a partilha codificada pelo costume sucessoral assuma o carácter, aparente,de herança inigualitária. Note-se, com efeito, que os herdeiros menos moti-vados pela espera de uma eventual sucessão, espera que era muitas vezeslonga, como o atestam as monografias, preferirão antecipar e optar, emmuitos casos, pela realização em dinheiro da sua parte da herança ou «legí-tima», a fim de realizarem os seus projectos de emigração e/ou de casa-mento. Ora, se se têm em conta as limitações do sistema de perpetuaçãodos grupos domésticos camponeses, a partida destas unidades de força detrabalho chegadas à maturidade ocasiona uma menos valia para a econo-mia doméstica que se traduz sob a forma de compensação preciputária.Notemos, de passagem, que este tipo de compensação não deixa de apre-sentar certo paralelismo com a preferência pela liquidez enunciada pelaeconomia heynesiana29. Talvez se deva considerar como um dado signifi-

27As jóias e os enxovais não são incorporados, em geral, no conjunto dos bens daherança. A sua circulação diz respeito à transmissão matrilinear.

2*G. Augustins, art. cit.29 Não se trataria de uma simples analogia, pois, desde meados do século xix, pelo

menos, o pagamento das «legítimas» entre vivos encontra-se intimamente ligado ao desenvol-110 vimento do crédito hipotecário.

cativo a ausência de vestígios linguísticos pondo a tónica sobre a conotaçãoinigualitária deste sistema de partilha e de sucessão, enquanto, na Galiza,o mesmo sistema de privilégio preciputário se praticava sob a denominaçãode mejora30. No Norte de Portugal, pelo contrário, empregam-se os ter-mos «tornas» e «meação»31, que explicitam ou querem significar a ideia deequidade. Esta diferença reflecte, sem dúvida, uma divergência nas formasde validação do mesmo costume ancestral pelos sistemas jurídicos dos doispaíses; mas, para além do determinismo jurídico, resta elucidar as condi-ções e as circunstâncias históricas da divergência de evolução de dois siste-mas sociais emanados de uma mesma matriz cultural. Todavia, a expressão«herança favorecida» poderia ser mantida, com todo o rigor, para caracte-rizar a transmissão beneficiando um só herdeiro, quando outros herdeirosnão eram compensados por tornas. Segundo a configuração de alguns dosgrupos domésticos investigados, estes casos seriam bastante frequentes nasregiões recuadas do anfiteatro montanhoso do grande Noroeste32 e doNorte de Trás-os-Montes, entre os cultivadores-criadores que não dispu-nham de gado suficiente para poderem assegurar o pagamento de tornas atodos os herdeiros. Encontram-se casos semelhantes nas comunidadesagro-pastoris, baseadas no uso colectivo dos pastos comunitários («bal-dios»), nomeadamente em Vilarinho da Furna, Riodonor e Guardamil,ainda que, nestes casos precisos, o facto mais saliente do sistema sucessoraltradicional seja a sucessão única do primogénito, acompanhada geralmenteda indivisão do conjunto de bens. Mas neste caso particular encontramo--nos em presença de um sistema agrário específico, do tipo comunitário,que não tem uma base patrimonial comparável com os outros.

Esta modalidade de sucessão-herança não é estruturalmente diferentedas outras variantes, pois numa e noutras é o mesmo objectivo que é pro-curado, o de assegurar a perenidade da exploração e do grupo domésticoque a constitui a partir de um máximo de restrições opostas à divisão dopatrimónio entre co-herdeiros e sucessores potenciais. A diferença princi-pal que os separa reside no facto de aqui, em vez de desinteressarem os nãosucessores, arranjando-lhes outras actividades ou, sobretudo, encorajando--os à emigração, como é o caso no Noroeste, os chefes de família procura-rem mantê-los no lar na condição de celibatários, alcançando aliás essepropósito muito frequentemente. A partir daí, os mais novos eram obriga-dos a trabalhar na exploração familiar ou a enveredar pela função de pres-tígio e de poder muito procurada pelos grupos domésticos mais abastados.

Algumas excepções pareciam, no entanto, ser admitidas, visto que cer-tas monografias referenciam regressos de filhos casados depois de estesterem falhado nas suas tentativas de emigração ou de instalação por contaprópria. Isto traduz-se por uma maior frequência dos grupos domésticospolinucleares, englobando simultaneamente um maior número de solteirostendo ultrapassado a média de idade de casamento (28 anos para oshomens e 26 para as mulheres, segundo os dados das monografias) do quenas regiões onde predominava a policultura associada à vinha, descendo

30Liso Tolosana, Antropologia Cultural da Galiza, Madrid, t. i, 1974.31A «meação», de «mear», partilhar em duas partes iguais, equivale à comunhão de bens

entre esposos, bastante próxima do regime das meitades (a meias) praticado no vale de Barè-ges, Altos Pirenéus. Cf. G. Augustins, art. cit.

32Montanhas de Peneda, Amarela, Gerez, Barroso, Cabreira, Alvão, Marão, Monte-muro e Arada. 777

até ao litoral ou em direcção da «terra quente» transmontana33, onde,aliás, os casamentos eram celebrados, em média, mais cedo. A explicaçãodesta clara variação das soluções reside, em parte, na especificidade dossistemas agrários, moldados por diferentes combinações de sistemas de cul-tivo, regimes de exploração, pressão demográfica e estratificação social34.Além disso, o tipo de habitat predominante nessas regiões de montanha eno Nordeste dá lugar a processos de identificação e de socialização especí-ficos, onde intervêm com mais frequência as componentes das aldeias, poroposição ao Noroeste, onde a parentela muito vasta, embora disseminada,constitui o grupo de referência e o quadro das estratégias de alianças matri-moniais e patrimoniais recorrentes.

3. GRUPOS DOMÉSTICOS E MUDANÇA SOCIAL

A menor «propensão» para emigrar das populações do interior, ates-tada nessa época por um mais fraco desequilíbrio demográfico entre osdois sexos, poderia explicar-se, a partir daí, tanto pelo encravamento dasregiões periferias, como pela especificidade dos laços que ligavam estescamponeses aos grupos de origem que os sustentavam35. A emigração dointerior não tinha chegado a constituir redes tão eficazes como a do litoral,e isto apesar das partidas muito numerosas dos últimos dois decénios doséculo xix, aquando da grande crise vitícola. A principal alternativa aoseu alcance consistia, numa lógica de ruptura com a terra, em optar peloêxodo rural e por ocupações não agrícolas, mas esta alternativa encontra-va-se ela própria condicionada pela ausência de uma verdadeira dinâmicade industrialização-urbanização e, daí, pela fraca capacidade de atracçãodas principais cidades do País, particularmente das do Norte36.

A migração interior era mais acessível às raparigas, que eram enco-rajadas a trabalhar como empregadas domésticas, e eram precisamenteno Nordeste, na região de Bragança, que se encontravam os raros casosde desequilíbrio demográfico caracterizado por um excesso de residen-tes do sexo masculino, situação completamente oposta àquela que pre-dominava na maior parte do Norte, e mais especialmente no grandeNoroeste37.

33 Para o litoral, a regra de um só casamento por geração, em situação de co-residênciae de cooperação , era mais estrita, a julgar por duas monograf ias relatando o percurso de doisnão sucessores emigrantes sem êxito, que tiveram de regressar às suas respectivas famílias,mas sem as suas esposas. Estas continuaram a residir nas suas próprias famílias.

34 Sabe-se, por exemplo , que as grandes alterações provocadas pela extensão da culturad o mi lho , desde o século xv i i , e pe lo arranque da cultura da batata (século xvi i i ) estiveramna origem da expansão demográfica do Noroeste , provocando um irresistível mov imento dearroteamento e de supressão dos baldios . A difusão destas culturas alimentares para o interiorfoi abrandada pelas condições pedológicas e climatéricas desfavoráveis. Cf. Virgílio Taborda,Alto Trás-os-Montes , Coimbra, 1932.

35 O iso lamento em relação à costa, por falta de redes de transportes, é correntementereferido, nomeadamente por L. Poinsard e P . Descamps .

36 A s cidades do Norte , incluindo o Porto , conhecerão um longo período de estagnaçãoiniciado m e s m o antes d o fim d o século; a industrialização operava-se t imidamente c o m aimplantação de fábricas de têxteis nas zonas rurais.

37 A s mais elevadas taxas de «femini l idade» da população residente encontravam-se noNoroeste . N o distrito de Viana do Castelo contavam-se 130 mulheres para 100 homens em1911 e 1930. A explosão migratória do interior não surgiria senão no fim dos anos 50, quando

112 os fluxos migratórios se orientaram para o Norte da Europa.

Ainda sobre este aspecto, o celibato por constrangimento económico esocial era provavelmente tão frequente no Noroeste como no Nordeste38;no entanto, o fenómeno está por estudar no seu todo, pois não está aindaestabelecido que, num e noutro lado, os estratos mais afectados sejamexactamente os mesmos. O que se pode inferir das monografias é que, naTerra de Barroso e na «terra fria» de Trás-os-Montes, os grupos domésti-cos compreendiam maior número de celibatários do sexo masculino, sendoeste facto acompanhado no alto Trás-os-Montes de uma emigração impor-tante de raparigas, nomeadamente para Espanha.

Poder-se-ia emitir a hipótese de uma relação funcional entre estes doisfactos por um lado e a supressão mais tardia dos entraves à propriedadealodial por outro. As monografias dos continuadores de Le Play não con-tribuem com esclarecimentos sobre esta questão, mas, observando as difi-culdades de reconversão da economia tradicional camponesa destasregiões, convém interrogar-se sobre a importância do peso da herança deuma ordem senhorial mais persistente. De qualquer modo, os sistemasagrários caracterizavam-se aqui por uma forte rigidez dos sistemas de cul-tura, por uma morfologia agrária específica e por formas distintas do habi-tat, A isto junta-se uma pressão demográfica moderada, ligada estrutural-mente aos outros elementos da economia e da sociedade camponesa.Comparativamente ao Noroeste, onde o processo de proletarização erabem visível, o alto Trás-os-Montes caracterizava-se por uma relativa esta-bilidade da estrutura social, para a qual contribuía a proletarização disfar-çada, ou protoproletarização dos não sucessores, integrados, na maioria,nos grupos domésticos originários. Frequentemente, os assalariados eempregados domésticos que trabalhavam na agricultura transmontana e naviticultura do Alto Douro vinham de regiões de transição (Barroso, Marão,Ribeira de Pena, etc). Segundo P. Descamps, estes trabalhadors seriamconhecidos por serem «menos exigentes».

A configuração da área de difusão do sistema de sucessão única e deherança avantajada permitiu-nos propor uma releitura da diversidade daspaisagens rurais do Norte, na medida em que este elemento da organizaçãosocial se reflecte no ordenamento e nas formas de utilização do espaço. Oscontrastes litoral-interior, subordinados até aqui à análise dos geógrafos,convida a investigações complementares, a partir de outras disciplinas,para alcançar o significado das dissemelhanças das estruturas agrárias edos sistemas de cultura, ou ainda as modalidades concretas da formaçãodas redes e dos fluxos migratórios. As investigações etno-históricas, entreoutras, teriam uma grande utilidade para perceber os aspectos destes con-trastes que se traduzem na antroponímia e na toponímia, nas diferentesexpressões da religiosidade e nos ciclos da vida doméstica.

38 Bento Carqueja, no seu livro O Povo Português, Porto, 1914, verifica taxas elevadasde natalidade ilegítima no conjunto do Norte (4 para 100 habitantes, aproximadamente). Anatalidade ilegítima e o celibato são fenómenos estreitamente correlacionados. Este autornota uma diferença notória das atitudes sociais perante a ilegitimidade, segundo o eixo litoral--interior. No Minho, a legitimação dos filhos naturais era de regra, enquanto em Trás-os--Montes esta seria excepcional. Isto pode significar uma diferenciação pertinente entre duasestruturas do parentesco, sem ir até falar de «matriarcado» minhoto, como o fazem osle playsianos. Cf. Brian J. O'Neill: Proprietários, Lavradores e Jornaleiras. DesigualdadeSocial Numa Aldeia Transmontana, 1870-1978, Lisboa, 1984. 113

III — HABITAT RURAL E REPRODUÇÃO SOCIAL

Apesar dos contributos consideráveis das monografias dos adeptos deLe Play, fica bem assente que estas não nos fornecem os elementos indis-pensáveis para detectar a extensão do sistema de sucessão única e deherança preciputária, assim como os efeitos deste nas dinâmicas sociais dassociedades camponesas do Norte. Convém também excluir qualquer visãosimplificadora da aplicação do sistema sucessoral herdado do direito con-suetudinário. Se este forma, como já dissemos, uma peça de um sistemasocial completo, isso não invalida que este último se integre, por sua vez,numa sociedade global complexa e, no que diz respeito ao caso aqui estu-dado, em relações sociais desenvolvidas num espaço económico transnacio-nal. É nestas interacções que se devem procurar as causas de disjunçãoe/ou inércia destes sistemas sociais, privilegiando a análise dos factores demudança exógenos —económicos, jurídicos e culturais—, sem descurar,todavia, como já aconteceu, a importância das tensões sociais próprias dascolectividades rurais ou da dinâmica tradição/adaptação que as caracteri-zam e que escapam (ou resistem) ao determinismo económico da sociedadeenglobante39.

Do ponto de vista da nossa análise, está excluído fazer referência aregiões homogéneas na parte setentrional do País. A extensão do sistemade herança preciputária confunde a visão simplificada, projectada por umdeterminismo físico, das ruralidades do litoral e do interior. Na provínciado Minho, as monografias revelam a existência de uma zona onde a parti-lha igualitária do património se praticava escrupulosamente —«teimosa-mente», escreve P. Descamps— dentro de um perímetro englobando ascidades de Braga, Guimarães, Fafe e Vila Nova de Famalicão, isto é, emcontacto directo com as regiões das doações de Santo Tirso e da Terra daMaia. Seria de particular interesse estudar as causas dessa descontinuidadee verificar até que ponto o desenvolvimento industrial deste triângulo deli-mitado pelas bacias do Cávado e do Vizela pôde determinar a diferencia-ção verificada. Um contraste análogo pode ser observado na província deTrás-os-Montes: os grupos domésticos do tipo elementar predominariam,segundo as monografias, na parte sul, ou «terra quente», caracterizada porculturas do tipo mediterrânico, enquanto a parte norte, a «terra fria»,conhecia um tipo de habitat modulado por uma maior frequência de gru-pos domésticos simples e complexos. No caso presente, é inegável que ainfluência do meio natural condiciona os sistemas de cultura, mas estes nãoparecem determinar, em todos os aspectos, as formas e tipos de habitat.No caso contrário, as situações verificadas para estas duas partes de Trás--os-Montes deveriam encontrar-se, logicamente, em posição inversa, se seconsiderar que a «terra quente», com as suas culturas mediterrânicas(vinha, oliveira, amendoeira, etc), apresenta, apesar das diferenças, umíndice mais forte de continuidade em relação aos sistemas de cultura dolitoral do que os da «terra fria». É, pelo menos, o que se pode deduzir doconjunto das monografias estabelecidas entre 1909 e 1934. Todavia, a res-posta à hipótese que acaba de ser levantada exigiria investigações mais

39 A recente reinserção de mais de 600 000 pessoas repatriadas das colónias não poderiater-se realizado sem essa plasticidade considerável das estruturas camponesas e rurais do Cen-

114 tro e do Norte.

aprofundadas, de maneira a determinar, entre outros factores a conside-rar, a influência que pode ter tido o desenvolvimento intenso da viticulturado Alto Douro, ao longo de todo o século xviii, sobre a evolução ou amutação das formas ancestrais do habitat destas regiões. O advento de umenclave de economia agrária fundamentalmente orientado para o mercadonão deixou de causar transtornos consideráveis na morfologia agrária e nostipos de exploração, submetendo a organização social a novos parâmetrose agentes de mudança. Procedendo a uma perspectivação histórica doestudo comparado das duas regiões do Norte onde os grupos domésticoscomplexos teriam, por hipótese, dado lugar muito cedo à família nuclear(grupo doméstico elementar), estaríamos em condições de formular novashipóteses respeitando, a interacção entre grupos domésticos complexos e oadvento do capitalismo mercantil, agrário e industrial e testar, assim, avalidade das propostas respeitantes à emergência da família moderna noseio das diferentes sociedades camponesas europeias.

Por outro lado, a análise dos formidáveis fluxos migratórios (do grandeNoroeste e, desde há algum tempo, de todo o Norte) teria vantagem em serenriquecida a partir deste mesmo paradigma. Através da relação funcionalentre as estratégias patrimoniais orientadas pela salvaguarda da indivisãoe a colocação dos filhos segundos nas diferentes redes de emigração (as tor-nas recebidas pelos não sucessores correspondiam frequentemente ao capi-tal de partida —viagem, instalações, trâmites administrativos, ou paga-mento do «passador»40—, era o próprio destino matrimonial dos nãosucessores que estava em jogo, na medida em que só o enriquecimentorápido, ou esta esperança, era capaz de os recolocar nos circuitos do mer-cado matrimonial a que aspiravam. Isto não significa de maneira algumaque só o privilégio preciputário seria susceptível de tornar inteligível adinâmica dos fluxos mais importantes de emigração do País, quando seconhece, por exemplo, o papel desempenhado pela crise económica e agrá-ria (a doença da vinha) na explosão migratória do fim do século xix eprincípio do século xx 4 1 ou a atracção do lucro fácil mitificado por qua-tro séculos de expansão colonial. Trata-se antes de integrar esta variável noprocesso da análise histórica da emigração para desembocar, se não emresultados e conclusões radicalmente novos, pelo menos no esclarecimentode certos aspectos desta dinâmica que permanecem inexplicados, como,por exemplo, o espírito de regresso que animava uma grande parte da emi-gração, fenómeno detectado pela primeira vez por L. Poinsard, bem assimcomo o seu corolário, a saber, que a emigração portuguesa de origem cam-ponesa apresenta a particularidade de não se interessar, senão muito rara-mente, pelas actividades agrícolas nos países de acolhimento, preferindouma inserção urbana42.

O facto de a emigração do fim do século, se compor, na sua esmaga-dora maioria, de rurais do grande Noroeste leva-nos a sublinhar a correla-

40 Este facto foi estabelecido por um inquérito administrativo em 1885, citado por OliveiraMartins, op. cit., pp. 12 e 14. O relatório do administrador do concelho de Mondim da Beira(Tarouca), José de Vasconcelos Noronha e Meneses Júnior, denuncia vigorosamente «a escra-vatura de carne branca» e todo o tipo de tráfico, incluindo influências, que rodeavam o«negócio da emigração».

41 Joel Serrão, «Emigração», in Dicionário de História de Portugal.42 J. Gentil da Silva «L'autre version des voyages de découverte; les Portugais en quête

d'urbanisme», in Annales de la Faculte de Lettres et Sciences Humaines de Nice, n.° 30,1978. 115

ção entre sistema de herança preciputária e fluxos migratórios, sem que sesaiba ainda com que sinal afectar esta relação. Por outras palavras, faltaestabelecer a diacronia do processo: a explosão «emigratória» do Nortecorrespondia, no final do século, à crise de ruptura do sistema de organiza-ção social assente sobre a economia doméstica e o privilégio preciputário,ou deve-se ver nela, pelo contrário (ou também?), a expressão de constran-gimentos de nova ordem (pressão demográfica, declínio de actividades tra-dicionais em benefício da indústria nascente, crise brasileira, guerras colo-niais, etc.) impostos à reprodução social destas sociedades camponesas? Senos ativermos às indicações fornecidas pelas monografias, é a segundahipótese que será de reter. Todavia, este material empírico não nos permitesolucionar tão radicalmente esta questão de fundo. Só inquéritos suple-mentares poderão determinar em que medida a emigração dos não sucesso-res, que aceitavam ser sacrificados aos sucessores ou procuravam, pelocontrário, escapar aos encargos e constrangimentos da sucessão, segundoo estatuto, poderá ter actuado como factor de descompressão das tensõese da conflitualidade exacerbadas pela reprodução de um sistema sociallutando pela sua própria sobrevivência.

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