estudos sobre a franco maçonaria e o companheirismo - rene guenon

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 René Guénon   Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo   Comunidade Teúrgica Portuguesa 1  RENÉ GUÉNON ESTUDOS SOBRE A FRANCO-MAÇONARIA E O COMPANHEIRISMO

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Estudos sobre a Franco Maçonaria e o Companheirismo - Rene Guenon

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  • Ren Gunon Estudos sobre a Franco-Maonaria e o Companheirismo Comunidade Tergica Portuguesa

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    REN GUNON

    ESTUDOS SOBRE A FRANCO-MAONARIA E

    O COMPANHEIRISMO

  • Ren Gunon Estudos sobre a Franco-Maonaria e o Companheirismo Comunidade Tergica Portuguesa

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    tudes sur la Franc-Maonnerie et le Compagnonnage (vols. I et II), Ren Gunon.

    ditions Traditionnelles, Paris, 1964, 1965.

    Estudos sobre a Franco-Maonaria e o Companheirismo.

    Traduzido do original francs por Vitor Manuel Adrio, Lisboa, 2014.

  • Ren Gunon Estudos sobre a Franco-Maonaria e o Companheirismo Comunidade Tergica Portuguesa

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    REN GUNON

    (Dados biogrficos)

    Nasceu em 15 de Novembro de 1886, em Blois, Frana, com o nome de Ren Jean Marie

    Joseph Gunon, filho do arquitecto Jaez Baptiste Gunon e de uma jovem da burguesia local, Anna

    Lontine Jolly.

    De sade incerta porm aluno brilhante, cursou Matemticas elementares em 1904 e,

    mostrando reais aptides para esse ramo do saber universitrio, alguns professores convenceram-

    -no a prosseguir os estudos de Matemtica em Paris. Assim, em Outubro de 1904, seguiu para a

    capital francesa instalando-se primeiro no Quartier Latin, depois na Rua St.-Louis-en-LIle, n. 51,

    tendo entrado no Colgio Rollin como aluno de Matemticas especiais, curso que viria a abandonar

    em 1906 por problemas de sade.

    por essa altura, entre 1906 e 1909, que pela mo de amigos entra em contacto com a

    Escola Hermtica do mdico militar Grard Encausse, com o pseudnimo de Papus, na qual se filia. Igualmente afilia-se na Ordem Martinista, chefiada pelo mesmo Papus, que pretendia ter

    como origem uma transmisso regular da antiga Ordem dos Eleitos Cohens, fundada no sculo

    XVIII por Martinets de Pasqually (ao qual, alis, se atribui uma origem incerta francesa, espanhola e portuguesa no entanto garantida ser originrio de uma famlia israel-sefardita da Pennsula Ibrica: Las Cazas ou Das Casas). A alcanou o grau supremo de Superior Incgnito ou Desconhecido, passando a tomar conhecimento dos documentos da Ordem.

    Seguidamente, fez-se receber em duas Ramas manicas que tinham relaes prximas

    com a Ordem Martinista: a Loja Simblica Humanidad n. 240, do Rito Nacional Espanhol, e o

    Captulo e Templo INRI, do Rito Primitivo e Original Swendenborguiano. Neste ltimo recebeu de Theodore Reuss, Gro-Mestre do Grande Oriente e Soberano Santurio do Imprio da

    Alemanha, o cordo de seda negra de Kadosch.

    Por outra parte, criou-se no Templo do Rito Misto do Direito Humano um Soberano

    Grande Conselho do Rito de Mnfis-Misraim para a Frana e suas dependncias, tornando-se a

    Loja Humanidad Loja-Me desse Rito. Nele Ren Gunon recebeu a patente do 30.-90. grau.

    No Congresso Espiritualista e Manico de 1908, Ren Gunon esteve como secretrio da

    mesa, mas logo o abandonou aps a sesso de abertura, em confronto ideolgico aberto com Papus,

    presidente do mesmo. No decurso do Congresso conheceu pessoalmente Fabre des Essarts, que

    com o pseudnimo de Synesius era o patriarca da Igreja Gnstica, e solicitou-lhe a sua admisso. admitido e em 1909 consagrado bispo por Synesius, adoptando o nome inicitico

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    Palingenius (a primeira parte deste nome grego significa que renasce, equivalente do significado de seu nome Ren, renato, e a segunda gnio, por extenso: o gnio que renasce). No interior desse grupo veio a encontrar Lon Champrenaud (Abdul-Haqq) e Albert de

    Pourvourville (Matgioi), que o ajudaram a fundar a revista La Gnose em Novembro de 1909, inicialmente como rgo oficial da Igreja Gnstica Universal, na qual Gunon publicou os seus primeiros artigos. A revista deixou de se publicar em Fevereiro de 1912.

    Ainda em 1908, surgiu a oportunidade de Ren Gunon fundar uma Ordem do Templo renovada, compreendendo sete graus. Essa Ordem, de existncia efmera, esteve na origem da ruptura entre Gunon e Papus; efectivamente, esse ltimo expulsou-o das diversas organizaes

    sob o seu controlo. Gunon foi ento admitido na Loja Tebah, dependente da Grande Loja de

    Frana, Rito Escocs Antigo e Aceite. A permaneceu at 1914, data em que o eclodir da I Guerra

    Mundial obrigou as Lojas a adormecer.

    Em Julho de 1912 casou, segundo o rito catlico, com Mlle. Berthe Lory, professora

    primria. Nesse mesmo ano converteu-se efectivamente ao Islo, recebendo a luz ou barakah do Sheikh Abder Rahmn Elish El-Kebir, por intermdio de Abdul-Hdi (nome islmico de John

    Gustaf Agelii, tambm conhecido pelo seu nome de artista plstico, Ivan Aguli).

    Dispensado do servio militar durante a Grande Guerra, devido sua fraca sade, mas

    necessitando de enfrentar as necessidades materiais, foi obrigado a trabalhar como professor do

    ensino particular em diversos colgios. Em Outubro de 1917 foi nomeado professor de Filosofia

    em Setif, na Arglia. Este perodo da sua vida na Arglia, naturalmente serviu para aperfeioar os

    seus conhecimentos de lngua rabe e estabelecer contacto com certos mestres e meios espirituais

    islmicos.

    Em 1918 regressa a Frana e em 1919 encontra-se novamente em Paris, com a sua mulher

    e uma jovem sobrinha, abandonando o ensino mas preparando alguns dos muitos livros que ir

    publicar ao longo dos anos (Introduo Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, Apercepes sobre

    a Iniciao, O Rei do Mundo, etc., a par de vrias centenas de artigos que viram a luz da edio).

    Em 1922 d-se o seu encontro com Paul Chacornac, e da em diante passa a colaborar na

    revista editada por esse, Le Voile dIsis (O Vu de sis), mais tarde designada tudes Traditionneles (Estudos Tradicionais). Em 1924 participa com Jacques Maritain e Ren Grousset no debate organizado pela revista Nouvelles Littraires (Novidades Literrias), por ocasio do lanamento do livro de Ferdinand Ossendowski, Btes, Hommes et Dieux (Bestas, Homens e Deuses), o qual, juntamente com o anterior de Saint Yves dAlveydre, Mission de lInde en Europe (Misso da ndia na Europa), iriam inspir-lo a escrever o seu Le Roi du Monde (O Rei do Mundo), publicado em 1927. Nele aborda a temtica da Agharta, aprestando-se a situ-la no plano puramente simblico e arredando-se de represent-la no plano efectivamente real;

    mesmo assim, esse livro ter sido o causador directo da mudana das relaes entre Gunon e

    alguns representantes da tradio hindu, por terem considerado as informaes fornecidas nessa

    obra serem demasiado precisas, mesmo que indicadas como exclusivamente simblicas, atrever-

    me-ia a chamar-lhes especulativas, em detrimento da realidade operativa que, reconhea-se, Gunon no quis reconhecer por motivos s seus conhecidos, um deles, qui, o de pretender

    propositadamente baralhar ou confundir tudo, ou ento to-s o baralhar-se confundindo-se

    completamente. Mas a verdade que certos brahmanes e panditas (sacerdotes e instrutores) sobretudo do Norte da ndia, ainda assim reprovaram-no severamente. Isto por haverem coisas de

    que no se deve falar demasiadamente...

    No final de 1925 profere na Sorbonne a nica conferncia pblica da sua vida, tendo

    escolhido o tema La Mtaphysique Orientale (A Metafsica Oriental). E continuar a dar lies de Filosofia at 1929 no Cours Saint-Louis, onde estudava a sua sobrinha. Em 15 de Janeiro de

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    1928 a sua mulher faleceu, e pouco depois a sua tia, Mme. Duru, tendo a sua sobrinha voltado para

    casa da famlia. Ren Gunon ficou s.

    Em 1929 conheceu Marie W. Shillito, filha do rei dos caminhos-de-ferro canadianos, viva de um engenheiro egpcio, Hassan Farid Dina. Tanto ela como o marido, enquanto este foi

    vivo, colocaram a sua fortuna ao servio da investigao cientfica e de outros tipos de

    investigao. Mme. Dina viria a auxiliar grandemente em que a obra dispersa j publicada de

    Gunon fosse comprada aos diferentes editores e centralizada numa nica casa editora, que a

    publicaria a seguir como exclusiva: a sede da revista Le Voile dIsis, situada no Quai Saint-Michel

    (Praa So Miguel), em Paris.

    Em 5 de Maro de 1930, Ren Gunon parte para o Egipto em companhia de Mme. Dina.

    No Cairo, onde primeiro se instala provisoriamente e depois definitivamente, tornar-se- o Sheik

    Abdel Wahed Yahia, o seu nome islmico significando o servidor do nico. Inteiramente islamizado, falando rabe sem qualquer sotaque, Abdel Wahed Yahia era agora um modesto

    habitante do Egipto, vivendo uma vida muito simples repartida entre o estudo e a orao.

    Em Julho de 1934 daria mais um passo na sua integrao no mundo rabe, desposando

    Fatma ou Ftima, filha mais velha do Sheik Mohammad Ibrahim, em cuja residncia o casal passa

    a viver, at que em 1937 decide ir para os arredores a oeste do Cairo, instalando-se no bairro de

    Doki, num lugar sossegado onde ningum os incomodava. A sua casa era uma vivenda branca,

    escondida pela verdura, na esquina de uma rua tranquila. Gunon chamou-lhe Vila Ftima e sobre a porta estava escrita a frase em rabe: Deus a Majestade das Majestades.

    Do seu casamento com Fatma nasceram duas filhas e dois filhos: Khadija, em 1944, Leila,

    em 1947. Entretanto, em 1948 obtm a nacionalidade egpcia. Em 5 de Setembro de 1949 nasce o

    seu primeiro filho, Ahmed, enquanto o seu segundo filho, Abdel Wahed, nascer aps a sua morte,

    em 17 de Maio de 1951.

    Em Novembro de 1950 os trs filhos de Gunon adoeceram ao mesmo tempo, e enquanto

    no se curaram ele recusou deixar-se tratar, a tal ponto que se lhe tornou impossvel qualquer

    actividade e os seus amigos no receberam mais nenhuma carta sua. Isso valeu-lhe no ms

    seguinte, Dezembro, ficar gravemente doente, ficar retido no leito passando a ser assistido pelo

    seu mdico e amigo pessoal, dr. Katz. Contudo, os seus males agravaram-se de dia para dia: tinha

    dificuldade em falar, pronunciando com dificuldade algumas palavras, e esboava

    descontroladamente certos movimentos, sintomas degenerativos da doena de Alzheimer.

    Por fim, em de 7 de Janeiro de 1951, verificou-se o desenlace fatal: j no conseguia

    alimentar-se nem ingerir qualquer medicamento, embora mantivesse a lucidez, tendo vrias vezes

    erguido a cabea da almofada exclamando: El Nafass Khalass, ou seja, a alma est saindo do corpo. Morreu s 23 horas desse dia, sendo as suas ltimas palavras: Allah, Allah. Segundo as testemunhas, o seu corpo repousava calmamente, com o rosto muito sereno, tendo desaparecido a crispao das ltimas horas. E o seu mdico no soube explicar a causa da morte, visto que nenhum rgo fora particularmente atingido como se a alma tivesse partido misteriosamente.

    O funeral, muito simples, decorreu no dia seguinte. O corpo ficou depositado no tmulo

    da famlia de sua mulher e, de acordo com o ritual islmico, foi envolto num lenol de linho e

    deitado directamente sobre a areia, com o rosto voltado para Meca.

    Pouco antes de morrer, Gunon havia declarado sua mulher que desejava que o seu

    gabinete de trabalho fosse mantido tal como estava, prometendo que, mesmo invisvel, ele estaria a.

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    Para terminar a feitura destes curtos dados biogrficos de Ren Gunon, devo citar as duas

    fontes de consulta que foram imprescindveis mesma: o Prefcio de Antnio Carlos Carvalho,

    Um homem simples: Ren Gunon, ao livro deste, A Crise do Mundo Moderno (Editorial Vega,

    Lisboa, Outubro de 1977), e Alguns dados sobre a vida e a obra de Ren Gunon, por Vitor de

    Oliveira, tradutor do seu livro O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos (Publicaes Dom

    Quixote, Lisboa, 1989).

    T

    A obra pstuma de Ren Gunon, Estudos sobre a Franco-Maonaria e o

    Companheirismo, foi editada em dois volumes pela primeira vez em Paris em 1964 e 1965, mas

    que aqui, na edio portuguesa, esto reunidos num nico mesmo mantendo a ordem cronolgica

    original de 1929 a 1950, onde alm dos captulos reportando-se aos mltiplos aspectos do tema

    manico o autor faz a crtica literria de livros e artigos de revistas que o seu editor parisiense de

    Voile dsis, depois Etudes Traditionnelles, fazia chegar a ele j residindo no Cairo.

    Sobressai do conjunto da obra a distino que Ren Gunon faz entre Maonaria Operativa

    e Maonaria Especulativa dando a primazia e mais-valia primeira em detrimento da segunda, e

    igualmente o apelo constante ao aperfeioamento humano por parte dos maons modernos preocupados quase exclusivamente com factores externos de natureza poltico-social, por

    exemplo, do que propriamente com a apurao interna realizando a Grande Obra Manica, ou

    seja, a criao do Homem Novo em termos de espiritualidade verdadeira, mental, emocional e fsica dentro da mais estrita ortodoxia manica.

    As suas crticas literrias de autores e obras cuja maioria desapareceu entretanto com a II

    Grande Guerra Mundial, tm o valor de quem conheceu de perto a maioria dos supraditos e o modo

    como agiram e agitaram atravs do ocultismo e do esoterismo a sociedade do seu tempo, antevendo

    o autor com muita preciso que tudo isso acabaria no conflito armado que abrasou o Mundo de

    1939 a 1945, descartando-se a-priori de certos movimentos esotericistas, nacionalistas e

    xenfobos, entretanto surgidos e que impuseram as suas polticas segregacionistas de que at hoje

    o Mundo, particularmente a Europa, se ressente.

    Estudos sobre a Franco-Maonaria e o Companheirismo termina de um modo brusco,

    como se o agravamento da doena e a morte do autor o tivessem impedido de a finalizar. Sendo o

    livro mais fulanizado de toda a obra literria de Ren Gunon, as informaes inditas que contm so de uma preciosidade indispensvel para todos os estudiosos de Franco-Maonaria e

    Companheirismo e um testemunho directo do desenvolvimento e aco dos principais

    intervenientes do ocultismo e esoterismo na Europa desde o sculo XVIII at metade do XX. As

    inmeras notas pessoais do tradutor acompanhando as opinies do autor, servem igualmente como

    enriquecimento da obra nos seus vrios pontos aparentemente obscuros onde as mesmas aparecem

    com a exclusiva pretenso de os clarear.

    Por tudo, Estudos sobre a Franco-Maonaria e o Companheirismo merecem ser lidos e

    estudados por todo que se importam com estes temas de Tradio Inicitica, afiliados ou no nessas

    correntes tradicionais por esta obra ser sobretudo de interesse geral. A todos desejamos boa leitura

    e os maiores sucessos particulares nos seus estudos e pesquisas onde esta ferramenta literria

    impe-se como indispensvel.

    Vitor Manuel Adrio

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    CAPTULO I

    COLNIA OU ESTRASBURGO?

    Publicado em Voile de sis, Janeiro 1927

    O assunto foi abordado no nmero de Outubro de 1926 do Voile dIsis e deve ser, parece-

    nos, separado em duas partes: uma de ordem histrica e outra de ordem simblica. A divergncia

    assinalada no alcana, em suma, mais que o primeiro desses dois aspectos; por outro lado, pode

    ser que a contradio no seja seno aparente: se a catedral de Estrasburgo seguramente o centro

    oficial de certo rito de Companheirismo, no ser igualmente a de Colnia o centro de um outro

    rito? E no teria havido, precisamente por essa razo, duas cartas manicas distintas, uma datada

    de Estrasburgo e outra de Colnia, o que poderia ter dado lugar a uma confuso? Isso deveria ser

    verificado, faltando tambm saber se essas duas cartas tm a mesma data ou datas diferentes!... O

    assunto interessante sobretudo do ponto de vista histrico. Este no para ns o mais importante,

    porm, tampouco carece de valor porque de certo modo liga-se ao prprio ponto de vista

    simblico: com efeito, no foi arbitrariamente que tal ou qual lugar tenha sido escolhido como

    centro de organizaes como aquelas que a actuaram.

    Seja como for, estamos inteiramente de acordo com M. Albert Bernet, quando diz que o

    ponto sensvel deve existir em todas as catedrais que tenham sido construdas segundo as regras verdadeiras da arte, e tambm quando declara que ele foi aplicado sobretudo pelo ponto de vista simblico. A esse respeito, foi feita uma observao curiosa: Wronski afirmou que em todo o corpo h um ponto determinado que se for atingido imediatamente o corpo inteiro desagrega-se

    por a mesmo, volatiza-se de certa maneira ficando dissociadas todas as suas molculas; ele

    pretendia ter achado o meio de determinar pelo clculo a posio desse centro de coeso. No

    isso, sobretudo se considerado simbolicamente como pensamos que deve fazer-se, exactamente a

    mesma coisa que o ponto sensvel das catedrais?

    A questo, na sua forma genrica, igualmente aquela do chamado n vital existente em todo o composto, como ponto de juno dos seus elementos constitutivos. A catedral construda

    segundo as regras forma um verdadeiro conjunto orgnico, e por isso ela tambm tem um n vital. O problema que se reporta a este ponto o mesmo daquele que expressava, na Antiguidade, o famoso smbolo do n grdio, mas seguramente os Maons modernos ficariam bem surpreendidos se algum lhes dissesse que a sua espada pode desempenhar ritualisticamente, a

    esse respeito, a mesma funo que a de Alexandre...

    Pode dizer-se ainda que a soluo efectiva do problema em questo liga-se ao poder das chaves (potestas ligandi et solvendi) entendido no seu prprio significado hermtico, correspondendo segunda fase do solve et coagula dos alquimistas. No se deve esquecer, como

    assinalmos no artigo de Regnabit a que se refere M. Paul Redonnel, que Janus era entre os

    Romanos o deus da iniciao aos Mistrios, e era ao mesmo tempo o patrono dos Collegia

    fabrorum, das corporaes de artesos que prosseguiram atravs de toda a Idade Mdia e, pelo

    Companheirismo, at aos tempos modernos. Porm, sem dvida so muito pouco numerosos

    aqueles que, hoje em dia, ainda compreendem alguma coisa do simbolismo profundo da Loja de So Joo.

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    CAPTULO II

    ACERCA DOS CONSTRUTORES DA IDADE MDIA

    Publicado em Voile de sis, Janeiro 1927

    Um artigo de M. Armand Bdarride, aparecido em o Symbolisme de Maio de 1929, ao qual

    j fizemos aluso na nossa crnica de revistas, parece-nos susceptvel de dar lugar a algumas

    reflexes teis. Esse artigo, intitulado As Ideias dos nossos Precursores, concerne s corporaes

    da Idade Mdia consideradas como tendo transmitido alguma coisa do seu esprito e das suas

    tradies Maonaria moderna.

    Desde j observamos, a esse propsito, que a distino entre Maonaria Operativa e Maonaria Especulativa parece-nos dever ser tomada num sentido diferente daquele que se lhe atribui comummente. Com efeito, imagina-se frequentemente que os Maons operativos no passavam de simples obreiros ou artesos e nada mais, e que o simbolismo dos significados mais

    ou menos profundos no chegou seno muito tardiamente, aps a introduo nas organizaes

    corporativas de pessoas estranhas arte de construir. Mas essa no a opinio de M. Bdarride,

    que cita um grande nmero de exemplos, especialmente nos monumentos religiosos, de figuras

    cujo carcter simblico incontestvel. Ele fala em particular das duas colunas da catedral de

    Wurtzbourg, que provam, diz ele, que os Maons construtores do sculo XIV praticavam um simbolismo filosfico, o que exacto, com a condio, evidentemente, de entend-lo no sentido de filosofia hermtica, e no na acepo corrente de que no passaria de filosofia profana, a qual, de resto, nunca fez o menor uso de um simbolismo qualquer. Poderiam multiplicar-se os exemplos

    indefinidamente!... O prprio plano das catedrais eminentemente simblico, como j observmos

    em outras ocasies. Falta acrescentar ainda que dentre os smbolos utilizados na Idade Mdia, alm

    daqueles que os Maons modernos conservaram a lembrana mas sem entenderem o seu

    significado, h muitos outros de que eles no tm a menor ideia1.

    Faz falta, em nossa opinio, algum tipo de contrapeso da opinio corrente e considerar a

    Maonaria Especulativa como no sendo, sob muitos aspectos, seno uma degenerao da Maonaria Operativa. Esta ltima, com efeito, era verdadeiramente completa em sua ordem, possuindo a teoria e a prtica correspondente, e a sua designao pode nesse aspecto ser entendida

    como uma aluso s operaes da arte sagrada, onde a construo segundo as regras tradicionais era uma das aplicaes. Quanto Maonaria Especulativa, que nasceu no momento em que as corporaes construtivas estavam em plena decadncia, o seu nome indica muito

    claramente que ela est confinada especulao pura e simples, ou seja, a uma teoria sem realizao, e decerto que uma maneira muito estranha encarar-se isso como um progresso. Se nisso no tivesse havido mais que um enfraquecimento, o mal no seria to grande como na

    realidade, porm, como j dissemos em diversas ocasies, mais que isso aconteceu um verdadeiro

    afastamento nos incios do sculo XVIII aquando da constituio da Grande Loja de Inglaterra,

    que foi o ponto de partida de toda a Maonaria moderna. De momento no insistiremos mais,

    porm, temos de destacar que para compreender-se verdadeiramente o esprito dos construtores da

    1 Tivemos ultimamente a ocasio de assinalar, na catedral de Estrasburgo e sobre outros edifcios da Alscia, um

    nmero vultuoso de marcas de talhadores de pedra datadas de pocas diversas, desde o sculo XII at ao incio do

    sculo XVII. Entre essas marcas h muitas bastante curiosas e encontramos especialmente a swstika, a que M.

    Bdarride faz aluso, num dos torrees em flecha da catedral de Estrasburgo.

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    Idade Mdia, tais observaes so inteiramente essenciais, pois de outra forma algum poder

    conceber uma ideia falsa ou no mnimo muito incompleta.

    Outra ideia que no menos importante rectificar, aquela segundo a qual o emprego das

    formas simblicas teria sido imposto simplesmente por razes de prudncia. Que essas razes

    tenham existido algumas vezes, no contestamos, porm, esse no seno o lado mais exterior e

    menos interessante da questo, j o dissemos a propsito de Dante e dos Fiis de Amor2 e podemos repetir no que respeita s corporaes de construtores, tanto mais que tero havido laos

    muito estreitos entre todas essas organizaes de carcter aparentemente to diferente, mas onde

    todas participavam dos mesmos conhecimentos tradicionais3. Ora o simbolismo precisamente o

    modo de expresso normal dos conhecimentos desta ordem, e tal a sua verdadeira razo de ser

    em todos os tempos e em todos os pases, inclusive nos casos onde no era necessrio dissimular

    o que quer que fosse, e to simplesmente por haverem coisas que, pela sua prpria natureza, no

    podem expressar-se seno dessa forma.

    O equvoco cometido frequentemente a respeito, do qual encontramos at certo ponto o

    eco no artigo de Bdarride, parece-nos dever-se a dois motivos principais, sendo o primeiro o que

    geralmente se concebe bastante mal sobre o que era o Catolicismo na Idade Mdia. No se deveria

    esquecer que assim como h um esoterismo muulmano, tambm houve nessa poca um

    esoterismo catlico, queremos dizer, um esoterismo que tomava a sua base e o seu ponto de apoio

    nos smbolos e nos ritos da religio catlica, sobrepondo-se a esta mas sem opor-se de modo

    algum, no sendo duvidoso que certas Ordens religiosas estivessem muito longe de ser estranhas

    a esse esoterismo. Se a tendncia da maior parte dos catlicos actuais negar a existncia destas

    coisas, isso prova somente que eles no esto melhor informados a respeito que o resto dos nossos

    contemporneos.

    O segundo motivo do erro que assinalmos, imaginar-se que o que se oculta sob os

    smbolos so quase exclusivamente concepes sociais ou polticas4, mas na realidade trata-se de

    coisa diferente disso. As concepes dessa ordem no podiam ter, aos olhos dos que possuam

    certos conhecimentos, mais que uma importncia muito secundria, em suma, a de uma aplicao

    possvel dentre muitas outras. Acrescentamos mesmo que em todas as partes onde chegaram a

    tomar um lugar bastante destacado e a tornar-se predominantes, invariavelmente foram uma causa

    de degenerao e afastamento5. Foi precisamente isso o que fez perder Maonaria moderna a

    compreenso do que ela ainda conserva do antigo simbolismo e das tradies de que, apesar de

    todas as suas insuficincias, preciso diz-lo, parece ser a nica herdeira no mundo ocidental

    actual. Se nos objectarem, como prova das preocupaes sociais dos construtores, com as figuras

    satricas e mais ou menos licenciosas que s vezes encontram-se nas suas obras, a resposta muito

    simples: essas figuras esto sobretudo destinadas a despistar os profanos, que se detm na

    aparncia exterior e nunca vem o que elas dissimulam de mais profundo. H nisso alguma coisa

    que est longe de ser particular aos construtores: alguns escritores como Boccacio e Rabelais,

    sobretudo, mas tambm muitos outros, adoptaram a mesma mscara e usaram do mesmo

    procedimento. Deve-se acreditar que esse estratagema foi eficaz, visto que ainda nos nossos dias,

    sem dvida mais do que nunca, os profanos deixam-se enredar nele.

    Se se quiser ir ao fundo das coisas, h que ver no simbolismo dos construtores a expresso

    de certas cincias tradicionais relacionadas com o que se pode, de modo geral, designar pelo nome

    2 Ver o Voile dsis de Fevereiro de 1929. 3 Os Companheiros do Rito de Salomo conservaram at aos nossos dias a lembrana da sua conexo com a Ordem do Templo. 4 Esta maneira de ver em grande parte aquela de Aroux e de Rossetti no que respeita interpretao de Dante,

    encontrando-se tambm em muitas passagens da Histria da Magia de Eliphas Lvi. 5 O exemplo de certas organizaes muulmanas, nas quais as preocupaes polticas de alguma maneira sufocaram

    a espiritualidade original, muito claro a este respeito.

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    de Hermetismo. Somente no se deve acreditar, posto que falamos aqui de cincias, tratar-se de alguma coisa comparvel cincia profana, a nica conhecida por quase todos os modernos.

    Parece que uma assimilao desse gnero formou-se no esprito de M. Bdarride, que fala da forma mutvel dos conhecimentos positivos da cincia, o que se aplica prpria e exclusivamente cincia profana, e tomando letra vrias imagens puramente simblicas cr ter descoberto a

    ideias evolucionistas e inclusive transformistas, ideias que esto em contradio absoluta com todo o fundamento tradicional. J desenvolvemos longamente, em muitas das nossas obras, a

    distino entre a cincia sagrada ou tradicional e a cincia profana, pelo que no podemos nem

    sonhar reproduzir aqui todas essas consideraes, mas ao menos julgamos como bom mais uma

    vez atrair a ateno sobre esse ponto capital.

    No acrescentaremos mais que algumas palavras para concluir: no sem razo que Janus,

    entre os Romanos, era o deus da iniciao aos Mistrios e o deus das corporaes de artesos.

    Tampouco por nada que os construtores da Idade Mdia conservaram as duas festas solsticiais

    desse mesmo Janus, tornadas com o Cristianismo na dos dois So Joo de Inverno e de Vero. E

    quando se conhece a conexo de So Joo com a vertente esotrica do Cristianismo, no se ver

    imediatamente que, sob a adaptao requerida pelas circunstncias e pelas leis cclicas, sempre da mesma iniciao aos Mistrios que efectivamente se trata?

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    CAPTULO III

    UM PROJECTO DE JOSEPH DE MAISTRE

    PARA A UNIO DOS POVOS

    Publicado em Vers lUnit, Maro 1927

    M. Emile Dermenghem, a quem j devamos um estudo notvel sobre Joseph de Maistre

    mystique, publicou um manuscrito indito do mesmo autor. Trata-se de um memorando dirigido

    em 1782 ao duque Ferdinand de Brunswick (Ecques a Victoria), Gro-Mestre do Regime Escocs

    Rectificado, por ocasio do Convnio de Wilhelmsbad. O duque, desejoso de instaurar a ordem e a sabedoria na anarquia manica, em Setembro de 1780 havia dirigido o seguinte questionrio a todas as Lojas da sua Obedincia: 1. Tendo a Ordem teve por origem uma sociedade antiga, de que sociedade se tratou? 2. Existem realmente os Superiores Incgnitos e quem so? 3. Qual a

    verdadeira finalidade da Ordem? 4. Essa finalidade a restaurao da Ordem dos Templrios? 5.

    De que modo o cerimonial e os ritos devem ser organizados para serem to perfeitos quanto

    possvel? 6. Deve a Ordem ocupar-se das cincias secretas? Foi para responder a essas perguntas que Joseph de Maistre escreveu um memorando particular, margem da resposta colectiva da Loja

    A Perfeita Sinceridade de Chambry a que pertencia, e na sua qualidade de Gro Professo ou membro do mais alto grau do Regime Rectificado (sob o nome de Eques a Floribus), props-se

    expressar os pontos de vista de alguns Irmos mais acertados que outros, que parecem destinados a contemplar verdades de ordem superior. Esse memorando, como diz M. Dermenghem, assim mesmo a primeira obra importante sada da sua pena.

    Joseph de Maistre no admite a origem templria da Maonaria, e at mesmo desconhece

    o interesse real da questo. Inclusive chega a escrever: Que importa ao universo a destruio da Ordem dos T.? Contrariamente isso importa muito, por ser da que data a ruptura do Ocidente com a sua prpria tradio inicitica, ruptura que verdadeiramente a causa primeira de todo o

    desvio intelectual do mundo moderno. Com efeito, tal desvio remonta muito alm do

    Renascimento, que marca somente uma das principais etapas, devendo chegar-se at ao sculo

    XIV para localizar o seu incio. Joseph de Maistre, desde logo no possuindo mais que um

    conhecimento bastante vago das coisas da Idade Mdia, ignorava quais teriam sido os meios de

    transmisso da doutrina inicitica e os representantes da verdadeira hierarquia espiritual. Pelo

    menos no nega claramente a existncia de uma e de outra, o que j muito, visto e considerando

    qual era nos fins do sculo XVIII a situao das mltiplas organizaes manicas, inclusive a

    daquelas que pretendiam dar aos seus membros uma iniciao real no se limitando a um

    formalismo inteiramente exterior. Todas procuravam ligar-se a alguma coisa cuja natureza exacta

    era-lhes desconhecida: reencontrar uma tradio cujos sinais ainda existiam por toda a parte, mas

    cujos princpios se haviam perdido. Ningum possua mais os verdadeiros caracteres, como se dizia na poca, tendo sido o Convnio de Wilhelmsbad uma tentativa de restabelecer a ordem no

    meio do caos dos ritos e dos graus. Certamente, diz Joseph de Maistre, a Ordem no pode ter comeado pelo que vemos agora. Tudo indica que a Franco-Maonaria vulgar um ramo

    desprendido, e possivelmente corrompido, de um tronco antigo e respeitvel. Esta a estrita verdade, mas como saber que tronco foi esse? Ele cita um extracto de um livro ingls que trata de

    certas confrarias de construtores, e acrescenta: notvel que este tipo de instituies coincida com a destruio dos T. Esta observao deveria ter-lhe aberto outros horizontes e surpreendente que no o tenha levado a reflectir mais, sobretudo porque o simples facto de t-la

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    escrito no concorda com o que disse antes. Ademais, sustentamos que este assunto no concerne

    seno a um dos aspectos da to complexa questo das origens da Maonaria.

    Outro aspecto da mesma questo est representado pelas tentativas de vincular a Maonaria

    aos Mistrios Antigos: Os Irmos mais sbios do nosso Regime pensam que h fortes razes para acreditar que a verdadeira Maonaria no seno a Cincia do Homem por excelncia, ou seja, o

    conhecimento da sua origem e destino. Alguns acrescentam que essa Cincia no difere

    essencialmente da antiga iniciao grega ou egpcia. Joseph de Maistre objecta que impossvel saber exactamente o que eram esses Mistrios Antigos e o que se ensinava neles, parecendo s ter

    uma ideia muito medocre dos mesmos, o que talvez seja ainda mais surpreendente que a atitude

    anloga que tomou a respeito dos Templrios. Com efeito, mesmo que no vacile em afirmar muito

    justamente que em todos os povos h restos da Tradio primitiva, porque nem sequer pensou que os Mistrios deviam ter como finalidade principal conservarem-se como depsito dessa

    mesma Tradio? No obstante e num certo sentido, admite que a iniciao de que herdeira a

    Maonaria remonta s origens das coisas, ao comeo do Mundo: A verdadeira religio tem muito mais de dezoito sculos, ela nasceu no dia em que nasceram os dias. Tambm nisso lhe escapam so os meios de transmisso e observa-se a muita facilidade com que toma partido dessa

    ignorncia, mas tambm sendo verdade no ter mais de vinte e nove anos quando escreveu o

    memorando.

    A resposta que d a outra questo prova ainda que a iniciao de Joseph de Maistre, apesar

    do alto grau que possua, estava longe de ser perfeita, e como muitos outros Maons dos graus

    mais elevados, tanto nessa poca como hoje, estavam exactamente nas mesmas condies e at

    sabiam muitssimo menos! Referimo-nos questo dos Superiores Incgnitos. Eis o que ele disse: Temos Mestres? No, no os temos. A prova curta mas decisiva, e a de que no os conhecemos... Como poderemos concertar uma obrigao tcita com Superiores escondidos,

    porque no caso de se darem a conhecer talvez nos viessem a desencantar e por isso mesmo nos

    apartaramos deles? Ele ignora evidentemente do que se trata na realidade e qual possa ser o modo de aco dos verdadeiros Superiores Incgnitos. Quanto ao facto deles no serem conhecidos nem pelos prprios chefes da Maonaria, tudo o que isso prova que a ligao efectiva

    verdadeira hierarquia inicitica no existia mais, e a recusa em reconhecer esses Superiores teria

    feito desaparecer a ltima oportunidade que ainda haveria em restabelec-la.

    A parte mais interessante do memorando sem dvida a que contm as respostas s duas

    ltimas perguntas. Desde j destacamos a que respeita s cerimnias. Joseph de Maistre, para quem

    a forma uma grande coisa, contudo no fala do carcter simblico do ritual nem do seu contedo inicitico, o que uma lamentvel lacuna. No entanto insiste sobre o que poderia chamar

    o valor prtico do ritual, e o que diz uma grande verdade psicolgica: Trinta ou quarenta pessoas, silenciosamente alinhadas ao longo das paredes de uma cmara forrada de negro ou de

    verde, diferenciadas pela roupagem singular e no falando seno com permisso, raciocinam

    sabiamente sobre algum objecto que se lhes proponha. Retiradas as insgnias e os hbitos, apagadas

    as velas e s ento permitindo que se levantem dos assentos, vereis esses mesmos homens

    precipitar-se uns sobre os outros, deixar de entender-se, falar de coscuvilhices e de mulheres, e o

    mais vulgar de toda a sociedade se imiscuir neles mesmos antes de poderem reflectir que a sua

    atitude igual dos demais... Cuidemo-nos sobretudo de no suprimir o juramento como

    propuseram alguns, talvez baseados em boas razes, mas que sem dvida no podemos

    compreender. Raciocinam muito mal os telogos que querem provar que o nosso juramento

    ilcito ou ento irrazovel. verdade que s a autoridade civil pode ordenar e receber o juramento

    nos diferentes actos de sociedade, porm no pode negar-se a um ser inteligente o direito de

    certificar com um juramento uma determinao interior do seu livre arbtrio. O soberano s tem

    autoridade sobre as aces. O meu brao seu, a minha vontade minha.

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    Em seguida apresenta uma espcie de plano de trabalhos para os diferentes graus, onde

    cada um deve ter o seu objectivo particular, e sobre isso que queremos insistir muito

    especialmente aqui, desde j importando dissipar uma confuso. Como a diviso adoptada por

    Joseph de Maistre no implica mais que trs graus, M. Dermenghem acredita ter interpretado que

    a sua inteno era reduzir a Maonaria aos trs graus simblicos, porm essa interpretao

    inconcilivel com a prpria constituio do Regime Escocs Rectificado, que essencialmente um

    Rito de altos graus. M. Dermenghem no percebeu que Joseph de Maistre escreveu graus ou classes, e verdadeiramente de trs classes que se tratam, cada uma podendo subdividir-se em diversos graus propriamente ditos. Vejamos como essa repartio parece estar estabelecida: a

    primeira classe compreende os trs graus simblicos; a segunda classe corresponde aos graus

    capitulares, dos quais o mais importante e talvez o nico praticado de facto no Regime Rectificado

    o de Escocs de Santo Andr; por fim, a terceira classe formada pelos graus superiores de

    Novio, Escudeiro e Grande Professo ou Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa. O que prova de

    assim se dever considerar a questo, ainda o facto de, falando dos trabalhos da terceira classe, o

    autor do memorando escrever: Quo vasto o panorama que se abre ao zelo e perseverana dos G. P.! Trata-se aqui evidentemente dos Grandes Professos, grau a que ele pertencia, e no dos simples Mestres da Loja Azul. Portanto, ele no pretendeu suprimir os altos graus, pelo contrrio, quis dar-lhes finalidades baseadas nas suas caractersticas prprias.

    A finalidade assinalada primeira classe desde logo a prtica da beneficncia, que deve ser o objectivo aparente de toda a Ordem. Mas isso no suficiente, faltando acrescentar uma segunda finalidade que mais intelectual: No s se formar o corao do Maom no primeiro grau como tambm esclarecer o seu esprito aplicando-o ao estudo da moral e da poltica, que

    a moral dos Estados. Nas Lojas se discutir sobre questes interessantes relativas a essas duas

    cincias, ao mesmo tempo que se pedir aos Irmos a sua opinio por escrito... Mas o grande

    objectivo dos Irmos ser sobretudo o de procurarem um conhecimento aprofundado da sua ptria,

    do que ela possui e do que lhe falta, das causas do infortnio e dos meios de regenerao.

    A segunda classe da Maonaria deveria ter como finalidade, segundo o sistema proposto, a instruo dos governos e a reunio de todas as seitas crists. No que respeita ao primeiro ponto, deveria ocupar-se com um zelo infatigvel a afastar os obstculos de toda a espcie interpostos pelas paixes entre a verdade e o ouvido da autoridade... Os limites do Estado no podero limitar

    a actividade desta segunda classe, e os Irmos das diferentes naes podero algumas vezes, por

    um acordo zeloso, operar os maiores bens. E para o segundo objectivo, disse: No seria digno de ns propor-nos o progresso do Cristianismo como um dos objectivos da nossa Ordem? Esse

    projecto constaria de duas partes, por ser necessrio que cada comunho trabalhe para si mesma e

    trabalhe para aproximar-se das outras... Deveriam estabelecer-se comits de correspondncia

    compostos sobretudo por padres das diferentes comunhes que tenhamos agregado e iniciado.

    Trabalhemos de forma lenta porm segura. No empreendamos nenhuma conquista que no seja

    apropriada para aperfeioar a Grande Obra... Tudo o que possa contribuir para o progresso da

    religio, para a extirpao das opinies perigosas, numa palavra, para elevar o trono da verdade

    sobre as runas da superstio e do cepticismo, ser da incumbncia desta classe.

    Por fim, a terceira classe ter como objectivo o que Joseph de Maistre denomina de

    Cristianismo transcendente, que para ele a revelao da Revelao e constitui o essencial daquelas cincias secretas a que faz aluso na ltima pergunta pois assim se poder encontrar a soluo das diversas e penosas dificuldades nos conhecimentos que possumos. E pontualiza nestes termos: Os Irmos admitidos na classe superior tero como objectivo dos seus estudos e reflexes mais profundas a investigao dos factos e dos conhecimentos metafsicos... Tudo

    mistrio nos dois Testamentos, e os Eleitos de uma e de outra Lei no foram seno verdadeiros

    Iniciados. necessrio ento interrogar essa venervel Antiguidade e perguntar-lhe como ela

    entendia as alegorias sagradas. Quem pode duvidar que as investigaes dessa espcie no nos

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    proporcionem armas vitoriosas contra os escritores modernos que se obstinam em no ver na

    Escritura seno o sentido literal? Eles j so refutados s pela expresso Mistrios da Religio,

    que empregamos diariamente sem penetrar o seu sentido. A palavra mistrio em princpio no

    significa seno uma verdade oculta sob certos aspectos com que a revestiram os que a possuam. possvel afirmar mais claramente e mais explicitamente a existncia do esoterismo em geral, e

    do esoterismo cristo em particular? Como apoio dessa afirmativa so transcritas vrias citaes

    de autores eclesisticos e judeus, tomadas do Mundo Primitivo de Court de Gbelin. Neste vasto

    campo de investigao cada um poder encaminhar-se segundo as suas aptides: Que uns se lancem corajosamente nos estudos eruditos que possam multiplicar os nossos ttulos e esclarecer

    os que j possumos. Que outros cujo gnio apela s contemplaes metafsicas, procurem na

    prpria natureza das coisas as provas da nossa doutrina. Que outros, enfim (e queira Deus que

    sejam muitos!), nos transmitam o que poderem aprender desse Esprito que sopra por onde quer,

    como quer e quando quer. O apelo inspirao directa, expresso nessa ltima frase, no a o menos notvel.

    Este projecto jamais foi aplicado, e nem sequer se sabe se chegou ao conhecimento do

    duque de Brunswick. No entanto, no to quimrico como alguns podero pensar, pelo contrrio,

    consideramo-lo muito apropriado para suscitar reflexes interessantes, tanto hoje como na poca

    em que foi concebido, e esse o motivo por que reproduzimos dele longos excertos. Em suma, a

    ideia geral que se desprende dele poder formular-se da seguinte maneira: sem pretender de

    nenhum modo negar ou suprimir as diferenas e particularidades nacionais, das quais pelo

    contrrio, apesar do que pretendem os actuais internacionalistas, se deve tomar conscincia em

    primeiro lugar e to profundamente quanto seja possvel, trata-se de restaurar a unidade, muito

    mais supranacional que internacional, da antiga Cristandade, unidade destruda pelas mltiplas

    seitas que se desgarraram da roupa sem costura, para da elevar-se at universalidade realizando o Catolicismo no verdadeiro sentido da palavra, o mesmo sentido com que o entendia

    igualmente Wronski, para quem o Catolicismo no ter existncia plenamente efectiva enquanto

    no tiver integrado as tradies contidas nos Livros sagrados de todos os povos. essencial

    observar que tal unio como a encarava Joseph de Maistre, devia realizar-se antes de tudo na ordem

    puramente intelectual. Isto mesmo o que por nossa parte temos afirmado sempre, porque

    pensamos no poder haver verdadeiro entendimento entre os povos, sobretudo entre os que

    pertencem a civilizaes diferentes, se no se fundamentar sobre os princpios, no sentido prprio

    da palavra. Sem esta base estritamente doutrinal, nada de slido poder ser edificado; todas as

    combinaes polticas e econmicas sero sempre impotentes a este respeito, tanto como as

    consideraes sentimentais, mas se o acordo for realizado sobre os princpios, o entendimento nos

    demais domnios poder resultar necessariamente.

    Sem dvida a Maonaria dos fins do sculo XVIII j no tinha o que lhe fazia falta para

    cumprir esta Grande Obra, da qual certas condies muito provavelmente escaparam ao prprio Joseph de Maistre. Quer isto dizer que semelhante plano nunca poder ser tentado novamente, de

    uma ou de outra forma, por alguma organizao que possua um carcter verdadeiramente inicitico

    e detenha o fio de Ariadne que lhe permita guiar-se no labirinto das inumerveis formas que velam a Tradio nica, e finalmente voltar a reencontrar a Palavra Perdida e fazer surgir a Luz das Trevas, a Ordem do Caos? No pretendemos de maneira alguma prever o futuro, porm, h certos sinais que permitem pensar que, apesar das aparncias desfavorveis do mundo actual, isso

    talvez no seja inteiramente impossvel. E terminamos citando uma frase um tanto proftica que

    ainda de Joseph de Maistre, pronunciada na segunda das Veladas de So Petersburgo: Devemos aprestar-nos para um acontecimento imenso na Ordem Divina, para o qual marchamos com to

    clere velocidade que surpreender todos os observadores. Temveis orculos j anunciam que os

    Tempos so chegados.

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    CAPTULO IV

    O COMPANHEIRISMO E OS BOMIOS

    Publicado em Voile dsis, Outubro 1928

    Num artigo de M. G. Milcent publicado na revista Le Compagnonnage de Maio de 1926 e

    reproduzido no Voile dIsis de Novembro de 1927, anotmos esta frase: O que me surpreendeu e

    me deixou mesmo um pouco cptico, foi quando o CT Bernet disse que preside anualmente, nas Saintes-Maries-de-la-Mer, eleio do Rei dos Bomios. No h muito tempo havamos feito a mesma observao, porm, no quisemos abordar o assunto. Mas agora que foi apresentado assim

    to publicamente, no temos nenhuma razo para no dizer algumas palavras, tanto mais que

    podero contribuir para elucidar alguns pontos que no deixam de ter interesse.

    Em primeiro lugar, no um Rei que os Bomios6 elegem mas uma Rainha, e em segundo

    lugar essa eleio no se repete todos os anos. O que se realiza anualmente somente a reunio,

    com ou sem eleio, dos Bomios na cripta da igreja de Saintes-Maries-de-la-Mer7. Por outro lado,

    muito possvel que alguns, mesmo sem pertencerem raa bomia mas em razo das suas

    qualidades ou das suas funes, possam ser admitidos a assistir a essa reunio e aos ritos que ento

    se realizam. Mas quanto a presidi-los j outro assunto, e o mnimo que podemos dizer que tal parece-nos extremamente esquisito. Porm, como essa afirmao apareceu pela primeira vez

    numa entrevista publicada h bastante tempo no Intransigeant, queremos acreditar que as

    imprecises que contm devem simplesmente imputar-se ao jornalista que, como costume

    acontecer, ter forado a nota para picar a curiosidade do seu pblico, to ignorante como ele

    mesmo no que se refere a estes assuntos, e por conseguinte incapaz de aperceber os seus erros.

    Assim, no tencionamos insistir mais do que o necessrio mais sobre o assunto, pois o verdadeiro

    interesse reside na questo mais genrica das relaes que possam haver entre os Bomios e as

    organizaes do Companheirismo.

    M. Micent, no seu artigo, prossegue dizendo que os Bomios praticam o rito judeu, e que

    nisso podero existir relaes com os CT Canteiros Estrangeiros do Dever da Liberdade. A primeira parte desta afirmao parece-nos conter uma impreciso, ou pelo menos um equvoco:

    verdade que a Rainha dos Bomios porta o nome, ou melhor, o ttulo de Sarah, que tambm o

    nome dado santa que eles reconhecem como sua padroeira, cujo corpo repousa na cripta das

    Saintes-Maries. Tambm verdade que esse ttulo, forma feminina de Sar, hebraico e significa

    princesa. Mas ser isso suficiente para poder-se falar a propsito de um rito judeu? Ora o Judasmo pertencendo a um povo cuja religio estreitamente solidria da raa, certamente os

    Bomios, qualquer que possa ser a sua origem, nada tm em comum com a raa judaica. No

    entanto, apesar de tudo, ser possvel que tenham existido relaes devido a afinidades de ordem

    mais misteriosa?

    Quando se fala dos Bomios indispensvel fazer uma distino muito frequentemente

    esquecida: a de que na realidade h dois tipos de Bomios, que parecem ser absolutamente

    6 Ou Ciganos, etnia a que se refere o autor neste estudo (nota do tradutor). 7 Santas Marias do Mar (Maria Madalena, Maria Salom e Maria Jacob), pretexto para a festividade cigana anual, de

    22 a 25 de Maio, em honra de Santa Sara ou Kali, celebrada no dia 24 de Maio, cuja imagem negra est na cripta dessa

    igreja da capital da Camarga, prxima do delta do Rhne e vizinha da cidade de Arles, na Ocitnia provenal, no sul

    de Frana (nota do tradutor).

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    estranhos entre si e inclusive chegam a tratar-se como inimigos no tm as mesmas caractersticas tnicas, no falam a mesma lngua, nem exercem os mesmos ofcios. De um lado

    esto os Bomios orientais ou Zngaros, que so sobretudo domadores de ursos e caldeireiros; do

    outro lado esto os Bomios meridionais ou Ciganos propriamente ditos, chamados Caraques no Languedoc e na Provena, sendo quase exclusivamente comerciantes de cavalos, e so estes os

    nicos que se renem em Saintes-Maries. O marqus de Baroncelli-Javon, num curioso estudo

    sobre os Bomios de Saintes-Maries-de-la-Mer, indica numerosos traos que lhes so comuns com

    os Peles-Vermelhas da Amrica, e no hesita, em virtude dessas semelhanas e tambm pela

    interpretao das suas prprias tradies, em atribuir-lhes uma origem atlanteana. Apesar de no

    passar de uma hiptese, de qualquer modo digna de ter em conta. Mas h outra coisa que nunca

    vimos assinalada em parte alguma e que no menos extraordinria: tal como h dois tipos de

    Bomios, tambm h dois tipos de Judeus, os Ashkenazim e os Sephardim, aos quais podem

    aplicar-se consideraes anlogas no que respeita s diferenas de traos fsicos, de lngua, de

    aptides e que ademais nem sempre mantm as relaes mais cordiais, pois cada parte pretende

    representar por si s o puro Judasmo, seja no aspecto racial, seja no da tradio. H, inclusive, no

    que respeita lngua uma semelhana bastante surpreendente: nem os Judeus nem os Bomios

    tm, a dizer verdade, uma lngua completa que lhes pertena propriamente, pelo menos na do uso

    corrente. Tanto uns como outros servem-se das lnguas das regies onde vivem, entremesclando

    algumas palavras que lhes pertencem, hebraicas no caso dos Judeus, e no caso dos Bomios

    palavras que lhes vm tambm de uma lngua ancestral da qual so os ltimos restos. Estas

    particularidades podem explicar-se pelas condies de existncia de povos forados a viver

    dispersos entre estrangeiros. Porm, j mais difcil explicar o facto das regies percorridas pelos

    Bomios orientais e pelos Bomios meridionais serem precisamente as mesmas onde habitam

    respectivamente os Ashkenazim e os Sephardim. No ser uma atitude demasiado simplista aquela que se limita a no ver nisso seno uma pura coincidncia?

    Estas consideraes levam a pensar que no se tratam de relaes tnicas entre os Judeus

    e os Bomios, mas talvez de outro tipo de relaes que, sem necessitar deter-nos na sua natureza,

    poderamos qualificar de tradicionais. Tudo isso reconduz-nos directamente ao assunto em pauta,

    de que no nos afastmos seno aparentemente: as organizaes do Companheirismo, nas quais a

    questo tnica evidentemente no se pe, por isto mesmo no poderiam elas prprias manter

    relaes do mesmo teor seja com os Judeus, seja com os Bomios, seja mesmo com uns e outros

    ao mesmo tempo? No temos a inteno, pelo menos de momento, de procurar explicar a origem

    e a razo dessas relaes, contentando-nos em chamar a ateno para alguns pontos muito precisos:

    no esto os Companheiros divididos em muitos ritos rivais, estando frequentemente de

    hostilidades mais ou menos abertas? No comportam as suas viagens itinerrios segundo diversos

    os ritos e com pontos de ligao igualmente diferentes? No tm elas de algum modo uma

    linguagem especial, cujo fundo seguramente formado pela lngua corrente mas que se distingue

    dela pela introduo de termos particulares, tal qual acontece no caso dos Judeus e dos Bomios?

    No certo que se usa o vocabulrio jargo para distinguir aquela linguagem convencional usada em certas sociedades secretas, particularmente no Companheirismo, tal como s vezes os Judeus

    o usam para denominar o seu prprio? Por outro lado, em certas regies rurais os Bomios no so

    conhecidos pelo nome de passantes pelo qual acabam confundidos com os bufarinheiros, que , como se sabe, uma designao aplicada igualmente aos Companheiros? Finalmente, a lenda do

    Judeu Errante no teria, como muitas outras, origem no Companheirismo?

    Sem dvida poderamos multiplicar estas interrogaes, porm consideramos que as

    colocadas so suficientes e que as pesquisas dirigidas nesse sentido podero esclarecer

    singularmente certos enigmas. De resto, poder acontecer que ns prprios voltemos ao assunto

    trazendo ainda algumas indicaes complementares. Mas, os Companheiros de hoje em dia tero

    verdadeiramente interesse por quanto se refira s suas tradies?

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    CAPTULO V

    UM NOVO LIVRO SOBRE

    A ORDEM DOS LUS COENS

    Publicado em Voile dsis, Dezembro 1929

    M. R. Le Forestier, que se especializou nos estudos histricos respeitantes s organizaes

    secretas, manicas e outras, da segunda metade do sculo XVIII, faz alguns meses publicou um

    importante volume sobre La Franc-Maonnerie occultiste au XVIIIe sicle et lOrdre des lus

    Coens8. Este ttulo requer uma pequena reserva, porque o termo ocultista, que parece nunca ter sido empregado antes de Eliphas Lvi, parecesse um pouco a um anacronismo. Talvez tivesse sido

    melhor empregar outra palavra, e isto no uma simples questo de terminologia, porque o que se

    chama propriamente ocultismo verdadeiramente um produto do sculo XIX.

    A obra est dividida em trs partes. A primeira trata das doutrinas e prticas dos lus Coens; a segunda, das relaes entre os lus Coens e a tradio ocultista (e aqui o termo esotrico certamente teria sido mais apropriado); finalmente, a terceira trata da organizao e da histria da Ordem. Tudo o que propriamente histrico est muito bem feito apoiado num estudo bastante srio dos documentos que o autor teve sua disposio, e no podemos seno

    recomendar a sua leitura. O que unicamente lamentamos so algumas lacunas a respeito da

    biografia de Martines de Pasqually, onde alguns pontos ficaram obscuros. De qualquer modo, o

    Voile dsis publicar proximamente novos documentos que podero contribuir para o seu

    esclarecimento.

    A primeira parte constitui uma excelente viso geral sobre o contedo do Trait de la

    Rintgration des tres9, obra muito confusa, escrita num estilo incorrecto e por vezes pouco

    inteligvel, ademais tendo ficado ficou inacabada. No fcil extrair dela uma exposio coerente,

    e deve-se elogiar M. Le Forestier por t-lo conseguido. No entanto subsiste uma certa ambiguidade

    quanto natureza das operaes dos lus Coens: seriam verdadeiramente tergicas ou somente mgicas? O autor parece no aperceber-se de que essas so duas coisas essencialmente diferentes que no so da mesma ordem. possvel que essa confuso tenha existido sempre entre

    os prprios lus Coens, cuja iniciao sempre pareceu ser demasiado incompleta em muitos

    aspectos, e seria bom ter deixado essa observao. Ns diramos de bom grado que parece tratar-

    se de um ritual de magia cerimonial com pretenses tergicas, deixando a porta abertas a muitas iluses, pois a importncia atribuda a simples manifestaes fenomnicas, e o que Martines chamava passes no passava disso, prova efectivamente ainda no ter ultrapassado o domnio da iluso. O que h de mais deplorvel nessa histria, para ns, o fundador dos lus Coens ter-

    se acreditado na posse de conhecimentos transcendentes, quando eram somente conhecimentos

    que, apesar de reais, no passavam de uma ordem bastante secundria. Ademais e pelas mesmas

    razes, persistiu sempre nele uma certa confuso entre a perspectiva inicitica e a perspectiva mstica, porque as doutrinas que exprimiu tomam sempre uma forma religiosa, enquanto as suas operaes no se afastam desse carcter. lamentvel que M. Le Forestier parea aceitar essa confuso por ele prprio no ter uma ideia clara sobre a distino das duas perspectivas em causa.

    8 Dorbon An, editor. Ttulo em portugus: A Franco-Maonaria ocultista no sculo XVIII e a Ordem dos Eleitos

    Cohen Nota do tradutor. 9 Tratado da Reintegrao dos Seres, de Martines de Pasqually (nota do tradutor).

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    Por outro lado, ele observa que o que Martinets chama reintegrao no ultrapassa as possibilidades do ser humano individual. Este ponto claramente fixado pelo autor, mas devia ter

    retirado dele concluses muito importantes sobre as limitaes do ensinamento que o chefe dos

    lus Coens podia transmitir aos seus discpulos, e consequentemente sobre o grau de realizao a que os conseguia levar.

    A segunda parte a menos satisfatria, e talvez para seu pesar M. Le Forestier nem sempre

    conseguiu libertar-se de um certo esprito que podemos qualificar de racionalista, o qual provavelmente se deve sua formao universitria. Observando certas semelhanas entre as

    diversas doutrinas tradicionais, concluiu que necessariamente devem-se a reprodues ou a

    influncias directas, apesar de ser normal que em toda a parte onde as mesmas verdades se

    encontrem hajam semelhanas entre elas, como acontece particularmente na cincia dos Nmeros,

    cujos significados no so uma inveno humana nem uma concepo mais ou menos arbitrria.

    O mesmo no referente Astrologia, que trata de leis csmicas que no dependem de ns, e

    compreendemos por que motivo tudo que a ela se refira tenha sido tomado exclusivamente dos

    Caldeus, como se eles possussem o monoplio desses conhecimentos. O mesmo pode dizer-se da

    Angeologia, que ademais relaciona-se muito estreitamente com essa ltima, a qual no possvel

    aceitar, a menos que se aceite os defeitos da crtica moderna, ter sido ignorada pelos Hebreus at poca do cativeiro na Babilnia. Acrescentamos ainda que M. Le Forestier parece no ter

    uma noo inteiramente correcta do que seja a Kaballah, cujo nome no sentido mais amplo

    significa simplesmente Tradio, algumas vezes assimilada por ele como uma modalidade particular na redaco escrita destes ou aqueles ensinamentos, e apesar de dizer que a Kaballah nasceu na parte sul de Frana e na setentrional de Espanha e datar a sua origem no sculo XIII, tambm nisso o esprito crtico, antecipadamente ignorando o facto da transmisso oral, verdadeiramente um pouco forado. Finalmente, anotamos aqui um ltimo reparo: a palavra

    Pardes (que , como j explicmos noutras ocasies, a snscrita Paradsha, regio suprema, e no um termo persa significando parque dos animais, o que no parece fazer muito sentido apesar da proximidade com os Querubins de Ezequiel) no designa de maneira alguma uma

    simples especulao mstica, mas antes a obteno real de um certo estado que o da restaurao do estado primordial ou ednico, o que no deixa de apresentar uma estreita semelhana com a reintegrao tal como a encarava Martines10.

    Feitas todas essas reservas, inegvel que a forma com que Martines revestiu o seu

    ensinamento de inspirao especificamente judaica, mas no implicando que ele prprio fosse

    necessariamente de origem judaica (este um dos pontos que at hoje ainda no foram

    suficientemente esclarecidos), nem que tenha sido sinceramente cristo. M. Le Forestier tem razo

    quando fala a esse respeito do Cristianismo esotrico11, mas no vemos porque se deve negar s concepes dessa ordem o direito de afirmarem-se autenticamente crists. Limitar-se s ideias

    modernas de uma religio exclusiva e restritamente exotrica, negar ao Cristianismo todo o

    sentido verdadeiramente profundo, e tambm desconhecer tudo o que ele tenha sido na Idade

    Mdia, do qual podemos aperceber precisamente os ltimos reflexos, j muito enfraquecidos, em

    organizaes possivelmente como a dos lus Coens. Sabemos muito bem o que incomoda aqui os

    nossos contemporneos: a sua preocupao em reduzir tudo a uma questo de historicidade,

    10 A esse respeito, j apontmos um equvoco bastante divertido numa das cartas de Willermoz ao baro de Turkeim

    publicadas por M. mile Dermenghem na continuao dos Sommeils (Sonhos): Willermoz protesta contra a afirmao de que o livro Des Erreurs e de la Vrit (Dos Erros e da Verdade), de Saint-Martin, provinha dos Partas. O que levou-o a tomar o nome desse povo, que evidentemente nada tinha a ver com o assunto, foi a palavra Pardes, que sem dvida era-lhe totalmente desconhecida. Como o baro de Turkeim tinha falado a esse respeito do

    Parthes, obra clssica dos Cabalistas, entendemos que na realidade devia tratar-se da obra intitulada Pardes Rimonim. 11 Invs de Cristianismo esotrico sem dvida seria mais correcto dizer esoterismo cristo, ou seja, tomando como base o Cristianismo para indicar aquilo de que se trata no pertencer ao mbito da religio. Naturalmente, a mesma

    observao vlida para o esoterismo muulmano.

  • Ren Gunon Estudos sobre a Franco-Maonaria e o Companheirismo Comunidade Tergica Portuguesa

    19

    preocupao que agora parece ser comum tanto aos partidrios como aos adversrios do

    Cristianismo, se bem que os adversrios foram certamente os primeiros a levar o debate para esse

    terreno. Temos a dizer muito claramente: se o Cristo fosse encarado unicamente como um

    personagem histrico, tal teria muito pouco interesse, mas a considerao do Cristo-Princpio

    assume toda uma outra importncia, e ademais uma no exclui a outra porque, como j dissemos

    repetidamente, os factos histricos tm em si mesmos um valor simblico e exprimem os

    princpios sua maneira e no seu nvel. De momento no insistiremos mais sobre este ponto, que

    de resto parece-nos ter ficado bastante claro.

    A terceira parte dedicada histria da Ordem dos lus Coens, cuja existncia efectiva

    foi muito breve, e exposio do que se sabe dos rituais dos seus diferentes graus, que parecem

    nunca terem sido inteiramente acabados e deixados prontos, como igualmente aqueles das famosas

    operaes. Talvez no seja muito exacto chamar escoceses, como faz M. Le Forestier, a todos os sistemas de altos graus manicos sem excepo, nem de ver de alguma maneira uma simples

    mscara no carcter manico dado por Martines aos lus Coens, sendo arriscado aprofundar essas

    questes que poderiam levar-nos demasiado longe12. Somente queremos chamar muito

    especialmente a ateno para a denominao de Rau-Croix13 dada por Martines ao grau mais elevado do seu regime, como ento se dizia, na qual M. Le Forestier no v seno a imitao ou mesmo a contrafaco daquela de Rose-Croix14. Para ns h nisso outra coisa. No esprito de Martines, o Rau-Croix devia ser, pelo contrrio, o verdadeiro Rose-Croix, enquanto o grau que leva essa denominao na Maonaria ordinria no seno apcrifo, usando a expresso que ele emprega frequentemente. Mas donde provm esse nome bizarro de Rau-Croix e qual poder ser o seu significado? Segundo Martines, o verdadeiro nome de Adam era Roux em lngua

    vulgar, e Rau em hebraico, que significava Homem-Deus poderoso em sabedoria, virtude e potncia, interpretao que primeira vista parece no mnimo bastante fantasista. A verdade que de facto Adam significa rouge15, pois adamah a argila vermelha e damah o sangue, que

    igualmente vermelho. Edom, nome que se deu a Esa, tambm tem o sentido de roux16. Esta cor

    frequentemente tomada como smbolo de fora ou potncia, o que justifica em parte a explicao

    de Martines. Quanto forma Rau, certamente nada tem de hebraico apesar de pensarmos que se

    deva ver nela uma assimilao fontica da palavra roeh, vidente, que foi a primeira denominao dos profetas e cujo sentido prprio inteiramente comparvel quele do snscrito rishi. Este tipo

    de simbolismo fontico no tem nada de excepcional17, como j indicmos em diversas ocasies,

    e no tem nada de espantoso que Martines tenha-se servido dele para fazer aluso a uma das

    principais caractersticas inerentes ao estado ednico, e por conseguinte para significar a posse desse mesmo estado. Se assim for, a expresso Rau-Croix, composta da adjuno da Croix do Reparador ao primeiro nome Rau, indica, na linguagem utilizada no Tratado da Reintegrao dos Seres, o menor restabelecido nas suas prerrogativas, ou seja, o homem regenerado, que efectivamente o segundo Adam de S. Paulo, e que tambm o verdadeiro Rosa-Cruz18. Ento,

    12 A propsito dos diversos sistemas de altos graus, ficmos um pouco surpresos ao ver atribuda aristocracia de nascimento e de dinheiro a organizao do Conselho dos Imperadores do Oriente e do Ocidente, cujo fundador parece ter sido to simplesmente o senhor Pirlet, alfaiate, como dizem os documentos da poca. Por mais mal informado que Thory estivesse sobre certos aspectos, certamente ele no teria inventado essa indicao (Acta

    Latomorum, t. I, p. 79). 13 Cruz-Real, em portugus (nota do tradutor). 14 Rosa-Cruz, em portugus (nota do tradutor). 15 Vermelho, em portugus (nota do tradutor). 16 Ruivo, em portugus (nota do tradutor). 17 M. Le Forestier assinala ainda um outro exemplo dado pelo prprio Martines: o da assimilao que ele estabelece

    por uma espcie de anagrama entre Noachites e Chinois (ou seja, Noaquitas e Chineses, cujo efeito fontico resulta mais significativo em francs Nota do tradutor). 18 Ademais a cruz por si mesma o smbolo do Homem Universal, podendo dizer-se que ela representa a prpria forma do homem reunido ao seu centro original, do qual foi separado pela queda ou, segundo o vocabulrio de Martines, pela prevaricao.

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    na realidade no se trata de uma imitao do termo Rosa-Cruz, que lhe teria sido muito mais fcil apropriar-se pura e simplesmente dele como tantos outros tm feito, mas de uma das

    numerosas interpretaes ou adaptaes que legitimamente possam dar-lhe, mas isto, bem

    entendido, no quer dizer que as pretenses de Martines no respeitante aos efeitos reais da sua

    ordenao de Rau-Croix fossem inteiramente justificadas.

    Para terminar este exame bastante sumrio, assinalamos ainda um ltimo ponto: M. Le

    Forestier tem toda a razo em ver na expresso forma gloriosa, utilizada frequentemente por Martines, e onde gloriosa no de maneira nenhuma sinnima de luminosa, uma aluso Shekinah (que alguns velhos rituais manicos, por uma deformao bastante bizarra, chamam de

    Stekenna)19. Ela exactamente a mesma da expresso corpo glorioso que corrente no Cristianismo, inclusive exotrico, tomada das palavras de S. Paulo: Semeado na corrupo, ressuscitar na glria..., e assim tambm a designao da luz de glria, na qual, segundo a teologia mais ortodoxa, se opera a viso beatfica. Isto demonstra bem que no h nenhuma oposio entre o exoterismo e o esoterismo, e somente uma sobreposio deste em relao quele,

    sendo o esoterismo quem confere as verdades expressas de forma mais ou menos velada pelo

    exoterismo, a plenitude do seu sentido superior e profundo.

    19 A palavra glria aplicada ao tringulo portando o Tetragrama e rodeado de raios, que figura nas igrejas como tambm nas Lojas, efectivamente uma das designaes da Shekinah, conforme j explicmos em O Rei do Mundo.

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    CAPTULO VI

    ACERCA DOS ROSA-CRUZES LYONESES

    Publicado em Voile dsis, Janeiro 1930

    Actualmente, os estudos sobre Martines de Pasqually e os seus discpulos multiplicam-se

    de maneira muito curiosa: depois do livro de M. Le Forestier de que falmos aqui no ltimo ms,

    eis que por sua vez M. Paul Vulliaud acaba de publicar uma obra intitulada Les Rose-Croix

    lyonnais au XVIIIe sicle20. Este ttulo no nos parece muito justificado porque, verdade se diga,

    fora a introduo o livro no trata minimamente dos Rosa-Cruzes. Ser que teria se inspirado na

    famosa denominao de Rau-Croix para a qual, de resto, M. Vulliaud, no se preocupou em procurar a explicao? muito possvel, mas o emprego desse termo no implica qualquer filiao

    histrica entre os Rosa-Cruzes propriamente ditos e os lus Coens, e em todo o caso no h razo

    para englobar no mesmo vocbulo organizaes tais como a Estrita Observncia e o Regime

    Escocs Rectificado, que seguramente no tinham nem no seu esprito nem na sua forma qualquer

    caracterstica rosacruciana. Dizemos mais: nos Ritos manicos onde existe um grau de Rosa-Cruz, este no foi tomado do Rosacrucianismo seno como smbolo, pelo que qualificar os seus possuidores de Rosa-Cruzes sem mais explicaes criar-se um grande e lamentvel equvoco. H qualquer coisa desse gnero no ttulo adoptado por M. Vulliaud. Nisso h ainda outros termos,

    como por exemplo aquele de Iluminados, que no apresentam um sentido preciso, aparecendo um pouco ao acaso e substituindo-se entre eles mais ou menos indiferentemente, o que no pode

    seno originar confuses no esprito do leitor que j de si ter dificuldades em no se perder na

    quantidade de Ritos e de Ordens existentes na poca em questo. Com isso, no pretendemos

    afirmar que o prprio M. Vulliaud no esteja bem informado, antes preferimos ver nessa aplicao

    incorrecta do vocabulrio tcnico uma consequncia quase obrigatria da atitude profana onde se compraz em fixar, o que nos causou alguma surpresa, porque at agora s nos ambientes

    universitrios e oficiais havamos cruzado com pessoas que se vangloriam da sua condio de profanos pelas quais, acreditamos, M. Vulliaud no tem nenhuma estima, como tampouco ns

    prprios a temos.

    Essa atitude gerou ainda uma outra consequncia: a de M. Vulliaud acreditar dever adoptar

    quase permanentemente um tom irnico que muito aborrecido, correndo o risco de dar a

    impresso de uma parcialidade de que todo o historiador deve acautelar-se cuidadosamente. J o

    Joseph de Maistre Franc-Maon21, do mesmo autor, d um pouco a mesma impresso. Ser ento

    to difcil a um no-Maom (no dizemos um profano) abordar assuntos desta ordem sem utilizar uma linguagem polmica que lhe conviria deix-la para as publicaes especificamente

    antimanicas? Segundo sabemos, s M. Le Forestier faz excepo, e lamentamos no encontrar

    uma outra excepo em M. Vulliaud cujos estudos habituais deveriam possuir uma maior

    serenidade.

    Tudo isso, bem entendido, no retira nenhum valor nem interesse aos documentos

    publicados por M. Vulliaud, apesar de alguns deles no serem to inditos como algum possa

    acreditar22, e no deixamos de ficar admirados quando dedica um captulo aos Sonhos sem

    20 Biblioteca das Iniciaes modernas. . Nourry, editor (Os Rosa-Cruzes lyoneses no sculo XVIII Nota do tradutor). 21 Joseph de Maistre Franco-Maom (nota do tradutor). 22 Por exemplo, as cinco Instrues no captulo IX j foram publicadas em 1914 na Frana Antimanica, apesar de ele no indicar a sua origem.

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    sequer mencionar o que j apareceu sobre esse assunto, e precisamente sob esse ttulo numa obra

    de M. mile Dermenghem. Por outro lado, acreditamos que os extractos dos cadernos iniciticos transcritos por Louis-Claude de Saint-Martin so verdadeiramente inditos, tendo as estranhas

    caractersticas desses cadernos gerado desde logo inmeros interrogaes que nunca foram esclarecidas. Ns j tivemos a oportunidade de ver alguns desses documentos, e desde logo os seus

    rabiscos bizarros e ininteligveis deixaram-nos a forte impresso de que o agente desconhecido a quem se atribui a sua autoria no era seno um sonmbulo (no dizemos um mdium, porque seria um grave anacronismo); desde logo eles representam o resultado de experincias do mesmo

    gnero daquelas dos Sonhos, o que diminui bastante o seu contedo inicitico. Em todo o caso, o certo que isso absolutamente nada tinha a ver com os lus Coens, ademais j naquela

    altura tendo deixado de existir como organizao, adiantamos que nisso no h absolutamente

    nada que se reporte directamente ao Regime Escocs Rectificado, apesar de ter sido

    frequentemente assunto na Loja A Beneficncia. Para ns, a verdade que Willermoz e outros membros dessa Loja, interessados por magnetismo, haviam criado entre eles uma espcie de

    grupo de estudos, como hoje se diz, ao qual deram o ttulo um pouco ambicioso de Sociedade dos Iniciados. Este ttulo, que figura nos documentos, no tem outra explicao e demonstra muito claramente pelo prprio emprego do termo sociedade que o agrupamento em questo, apesar de ser composto por Maons, no tinha em si mesmo nenhum carcter manico. Ainda

    hoje encontra-se frequentemente Maons que constituem, por um motivos qualquer, um chamado

    grupo fraternal cujas reunies esto desprovidas de toda a forma ritual, e a Sociedade dos Iniciados no devia ser outra coisa seno isso. Pelo menos, esta a nica soluo plausvel que encontramos para essa questo to obscura. Pensamos que os documentos que se reportam aos lus Coens tm uma outra importncia

    do ponto de vista inicitico, malgrado as lacunas que sempre existiram a esse respeito no

    ensinamento de Martines que j apontmos no nosso ltimo artigo. M. Vulliaud tem toda a razo

    quando insiste sobre o erro daqueles que pretendem fazer de Martines um kabalista, pois o que

    nele de inspirao incontestavelmente judaica no implica, com efeito, qualquer conhecimento

    do que deva designar propriamente de Kaballah, termo que frequentemente se utiliza incorrecta e

    despropositadamente. Mas por outro lado, perante a m ortografia e o estilo defeituoso de

    Martines, que M. Vulliaud sublinha com uma no pouco excessiva complacncia, isso no prova

    nada contra a realidade dos seus conhecimentos num certo nvel. No se deve confundir a instruo

    profana com saber inicitico: um iniciado de ordem muito elevada (que certamente Martines no

    foi) pode mesmo ser um completo iletrado, como se observa frequentemente no Oriente. Desde

    logo parece que M. Vulliaud compraz-se em apresentar sob o seu aspecto mais negativo a

    personalidade enigmtica e complexa de Martines, tendo decerto M. Le Forestier se mostrado

    muito mais imparcial. E com tudo isso, ficam ainda muitos aspectos por esclarecer.

    A persistncia de tais pontos obscuros prova a dificuldade nestes estudos sobre coisas que

    s vezes parecem ter sido baralhadas intencionalmente. Por isso devemos agradecer a contribuio

    de M. Vulliaud cujo trabalho, apesar de ter-se abstido de formular qualquer concluso, fornece

    uma documentao nova em grande parte, e muito interessante no seu conjunto. Como esse

    trabalho seu trabalho merece ter uma continuao, desejamos que M. Vulliaud no se demore

    muito em atender aos seus leitores, que certamente iro ainda encontrar muitas outras coisas

    curiosas dignas de ateno, e que talvez possam ser o ponto de partida para reflexes que o autor,

    fechando-se no seu papel de historiador23, no quis ele prprio expressar.

    23 De passagem, assinalamos um erro histrico que verdadeiramente muito grosseiro para atribu-lo a simples

    distraco: M. Vulliaud escreve que Albric Thomas, por oposio a Papus, fundou com alguns outros o Rito de Misraim (nota da p. 42). Ora esse Rito foi fundado em Itlia cerca de 1805 e introduzido em Frana em 1814 pelos irmos Bdarride.

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    CAPTULO VII

    ACERCA DAS PEREGRINAES

    Publicado em Voile dsis, Junho 1930

    A recente reimpresso, no Voile dsis, do notvel artigo de M. Grillot de Givry acerca dos

    lugares de peregrinao, faz-nos voltar a esse assunto sobre o qual j fizemos aqui vrias

    referncias, como M. Clavelle lembrou na apresentao desse artigo.

    Desde j apontamos que a palavra latina peregrinus, donde procede peregrino, por sua vez significa viajante e estrangeiro. Esta simples observao desde logo d lugar a vrios paralelismos bastante curiosos: com efeito, por um lado entre os Companheiros alguns se

    reconhecem como viajantes e outros como estrangeiros, o que corresponde exactamente aos dois significados de peregrinus (que alm do mais tambm se encontram tambm no termo hebreu

    gershn); por outro lado, na prpria Maonaria moderna e especulativa as provas simblicas da iniciao so chamadas viagens. Alm disso, em muitas e diversas tradies os diferentes estados iniciticos so frequentemente descritos as como etapas de uma viagem, s vezes tratando-

    se de uma simples viagem que tambm s vezes poder ser uma navegao, conforme assinalmos

    noutras ocasies. Este simbolismo da viagem parece estar muito mais difundido que aquele da

    guerra, de que j falmos no nosso ltimo artigo. De resto, um e outro no deixam de apresentar

    uma certa relao entre eles, que vrias vezes chegou mesmo a reflectir-se exteriormente nos factos

    histricos. Nisto estamos pensando na ligao estreita que na Idade Mdia existiu entre as

    peregrinaes Terra Santa e as Cruzadas. Acrescentamos ainda que mesmo na linguagem

    religiosa mais comum, a vida terrena considerada como um perodo de provas frequentemente

    assimilada a uma viagem, e mesmo muito expressamente qualificada de peregrinao, de que o

    mundo celeste a meta, sendo assim identificada simbolicamente Terra Santa ou Terra dos Viventes24.

    O estado de errncia, se assim se pode dizer, ou de migrao, ento, de um modo geral, um estado de provao, e com efeito observa-se ser precisamente essa a natureza de organizaes como o Companheirismo. Por outro lado, o que verdade para esse respeito para os

    indivduos tambm pode ser, pelo menos em certos casos, para alguns povos considerados

    colectivamente, sendo um exemplo muito claro disso o dos Hebreus que vaguearam durante

    quarenta anos no deserto antes de alcanarem a Terra Prometida. Desde j deve-se fazer aqui fazer

    uma distino, porque esse estado essencialmente transitrio no deve ser confundido com o

    estado nmada que normal em certos povos, e mesmo depois de terem chegado Terra Prometida

    e at aos tempos de David e Salomo os Hebreus foram um povo nmada, porm, esse nomadismo no tinha evidentemente o mesmo carcter da sua peregrinao no deserto25. Alm

    disso, pode-se observar um terceiro caso de errncia que se pode designar com maior propriedade pelo termo tribulao, como foi aquele dos Judeus aps a sua disperso e tambm, parecendo semelhante em tudo, o dos Bomios, mas isso iria levar-nos demasiado longe, pelo que

    24 No que respeita ao simbolismo da Terra Santa remetemos para o nosso estudo sobre o Rei do Mundo, e tambm para o nosso artigo no nmero especial do Voile dsis consagrado aos Templrios. 25 A distino entre povos nmadas (pastores) e sedentrios (agricultores), que remonta s prprias origens da

    Humanidade terrestre, de grande importncia para a compreenso das caractersticas especiais das diferentes formas

    tradicionais.

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    24

    somente acrescentamos que tal caso aplicvel tanto s colectividades como aos indivduos. Por

    aqui pode-se perceber como estas coisas so complexas e como podem haver distines a fazer

    entre homens que se apresentam exteriormente sob as mesmas aparncias, confundidos com os

    peregrinos no sentido comum do termo, faltando ainda acrescentar o seguinte: acontece que s

    vezes alguns Iniciados, inclusive Adeptos, j chegados meta, por motivos especiais voltam a retomar essa mesma aparncia de viajantes.

    Porm, voltemos aos peregrinos. Sabe-se que os seus sinais distintivos eram a concha vieira

    (chamada de Santiago) e o bordo. Este ltimo, que tambm tem uma estreita relao com a cana

    do Companheirismo, naturalmente um atributo do viajante, mas tem outros significados, e talvez

    um dia dediquemos um estudo especial a esse assunto. Quanto concha vieira26, em algumas

    regies francesas ela chamada creusille, palavra que se aproxima daquela creuset27, o que nos conduz novamente ideia das provas, considerada mais particularmente segundo um

    simbolismo alqumico, e entendida no sentido de purificao, a Katharsis28 dos Pitagricos, que era precisamente a fase preparatria da iniciao29.

    Sendo a concha vieira tomada muito especialmente como o atributo de Santiago, somos

    levados a fazer a esse propsito uma considerao respeitante peregrinao a Santiago de

    Compostela. As rotas que outrora os peregrinos seguiam eram frequentemente chamadas, e ainda

    hoje, caminhos de Santiago, mas esta expresso tem ao mesmo tempo outra aplicao totalmente distinta: o caminho de Santiago, na linguagem campesina, tambm a Via Lctea, e talvez isto talvez se perceba se observar-se que Compostela, etimologicamente, no significa outra coisa

    seno o campo estrelado. Nisto encontramos uma outra ideia, a das viagens celestes, desde logo em correlao com as viagens terrestres. Este tambm um ponto sobre o qual no nos

    possvel deter-nos presentemente, e somente indicaremos que poder pressentir-se a uma certa

    correspondncia entre a situao geogrfica dos lugares de peregrinao e o prprio ordenamento

    da esfera celeste. Nisto, a geografia sagrada, a que temos feito aluso, integra-se ento numa verdadeira cosmografia sagrada.

    Ainda a propsito das rotas das peregrinaes, oportuno lembrar que M. Joseph Bdier

    teve o mrito de destacar a relao existente entre os santurios que marcam as suas etapas e a

    formao das canes de gesta. Parece-nos que esse facto generalizou-se, podendo-se dizer a

    mesma coisa sobre a propagao de uma infinidade de lendas cujo verdadeiro contedo inicitico

    infelizmente quase inteiramente desconhecido dos modernos. Na razo da pluralidade dos seus

    significados, os relatos desse gnero podiam destinar-se simultaneamente multido de peregrinos

    e comuns e aos outros. Cada um compreendia-os na medida da sua prpria capacidade intelectual e somente alguns penetravam o seu significado mais profundo, como ocorre para com

    todo o ensinamento inicitico. Deve-se tambm reparar que por mais diversas que fossem as

    pessoas que percorriam as rotas, incluindo os mercadores ambulantes e at mesmo os mendigos,

    estabelecia-se entre elas, por razes sem dvida muito difceis de definir, uma certa solidariedade

    que se expressava pela adopo comum de uma linguagem convencional especial, o argot da Vieira ou a lngua dos peregrinos. Coisa interessante, M. Len Daudet observa num dos seus livros recentes que muitos dos termos e locues pertencentes a essa linguagem encontram-se em

    Villon e em Rabelais30, e a respeito deste ltimo tambm indica, facto digno de ser destacado nesta

    perspectiva, que durante muitos anos ele peregrinou atravessando o Poitou, provncia clebre

    26 Veneris, em espanhol, donde o termo latino venerabilis, venervel, e at se encontrando nela o smbolo estelar de Vnus (nota do tradutor). 27 Crisol, em portugus (nota do tradutor). 28 Catarse, em portugus (nota do tradutor). 29 Pode-se indicar aqui tudo quanto dissemos em O Rei do Mundo acerca da indicao dos iniciados, em diversas

    tradies, mediante termos reportando-se ideia de pureza. 30 Os Horrores da Guerra, pp. 145, 147 e 167.

  • Ren Gunon Estudos sobre a Franco-Maonaria e o Companheirismo Comunidade Tergica Portuguesa

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    pelos mistrios e pelas farsas que ento ali se interpretavam, e tambm pelas lendas que corriam

    nela, encontrando-se no Pantagruel vestgios dessas lendas, dessas farsas e um certo nmero de

    vocbulos prprios dos habitantes do Poitou31. Citamos esta ltima frase porque, alm de fazer meno s lendas de que falmos atrs, destaca ainda uma outra questo relacionada com o que

    aqui tratado, ou seja, a das origens do Teatro: desde logo, por um lado ele foi essencialmente

    ambulante, e por outro revestiu-se de um carcter religioso, pelo menos nas suas formas exteriores,

    carcter religioso esse destinado a aproximar daquele os peregrinos e as pessoas que assumiam a

    sua aparncia. O que d ainda mais importncia a este facto ele no ter sido particular Europa

    da Idade Mdia, pois a histria do Teatro na Grcia antiga inteiramente anloga, podendo-se

    tambm encontrar exemplos similares na maioria dos pases do Oriente.

    No querendo alongar-nos, abordaremos somente ainda um ltimo ponto a propsito da

    expresso nobres viajantes aplicada aos iniciados, ou pelo menos a alguns deles, precisamente pelo motivo das suas peregrinaes. A este respeito, M. O. V. de Milosz escreveu o seguinte: Os nobres viajantes era o nome secreto dos iniciados da Antiguidade, transmitido por tradio oral queles da Idade Mdia e dos tempos modernos. Foi pronunciado pela ltima vez em pblico a 30

    de Maio de 1786, em Paris, no decurso de uma sesso do Parlamento dedicada ao interrogatrio

    de um clebre imputado (Cagliostro), vtima do panfletrio Thveneau de Morande. As

    peregrinaes dos iniciados no se distinguiam das viagens de estudo comuns seno pelo facto do

    seu itinerrio coincidir rigorosamente, sob a aparncia de um trajecto aventuroso, com as

    aspiraes e aptides mais secretas do Adepto. Os exemplos mais ilustres dessas peregrinaes

    so-nos oferecidos por Demcrito, iniciado nos segredos da Alquimia pelos sacerdotes egpcios e

    pelo mago Ostanes nas doutrinas asiticas durante a sua estadia na Prsia, e, segundo alguns

    historiadores, na ndia; Thales, formado nos templos do Egipto e da Caldeia; Pitgoras, que visitou

    todos os pases conhecidos dos antigos (e muito possivelmente a ndia e a China), cuja estadia na

    Prsia foi marcada pelos seus encontros com o mago Zaratas, na Glia pela sua colaborao com

    os Druidas, e finalmente na Itlia pelos seus discursos Assembleia dos Ansies de Crotona. A

    esses exemplos convm acrescentar as estadias de Paracelso em Frana, ustria, Alemanha,

    Espanha e Portugal, Inglaterra, Holanda, Dinamarca, Sucia, Hungria, Polnia, Litunia, Valquia,

    Carniola, Dalmcia, Rssia e Turqui