ensaio dtc i os ultimos charruas - matheus estevan barancelli

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UNIVERSIDADE DE COIMBRA Faculdade de Economia | Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Mestrado em Intervenção Social, Inovação, Empreendedorismo Sofrimento Social Corporificado – Os últimos Charruas Unidade Curricular: Debates Teóricos Contemporâneos Docente: Prof. Doutor José Manuel Mendes Discente: Matheus Estevan Barancelli Coimbra, 2015

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Page 1: Ensaio dtc i   os ultimos charruas - matheus estevan barancelli

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Faculdade de Economia | Faculdade de Psicologia e de Ciências da EducaçãoMestrado em Intervenção Social, Inovação, Empreendedorismo

Sofrimento Social Corporificado – Os últimos Charruas

Unidade Curricular: Debates Teóricos ContemporâneosDocente: Prof. Doutor José Manuel Mendes

Discente: Matheus Estevan Barancelli

Coimbra, 2015

Page 2: Ensaio dtc i   os ultimos charruas - matheus estevan barancelli

1 Resumo

Utilizando como base o artigo “Querem matar os ‘últimos Charruas’: Sofrimento social e

‘luta’ dos indígenas que vivem nas cidades” escrito por Ceres Gomes Víctora e Antonio Leite Ruas-

Neto no ano de 2011, publicado na Revista ANTHROPOLÓGICAS no mesmo ano, este ensaio

partindo da Antropologia do Corpo e da Saúde, propõe um debate sobre o sofrimento social

corporificado nas experiências desse grupo indígena. Tomando por base, os dados de pesquisa

etnográfica desenvolvida entre indígenas da etnia Charrua, que em busca do seu reconhecimento

étnico e por direitos constitucionais têm se envolvidos numa rede burocrática de políticas e

instituições governamentais as quais, se por um lado, deveriam amenizar as suas dificuldades, por

outro, significam um permanente foco de tensões causadoras de enorme sofrimento.

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2 Introdução

O conceito de sofrimento social emerge nas últimas décadas como lente particularmente

apropriada para olhar as relações profundas entre a experiência subjetiva do mal-estar e os

processos históricos e sociais mais amplos. O sofrimento, enquanto sentimento humano, foi por

muito tempo imaginado como uma experiência inata, ligada ao corpo natural e, portanto, universal,

associado aos lugares simbólicos da interioridade, pouco interessante, nesse sentido, e ainda menos

acessível aos métodos da análise sociocultural.

Este paradigma universalista está ligado a uma espécie de “realismo ingênuo segundo o qual

o amor, a chuva, o casamento, os cultos, as árvores, o sofrimento, a morte, a comida e mil outras

formas de realidade têm o mesmo significado para todos os seres humanos” (Bibeau, 1995). Através

de um olhar mais atento, “o sofrimento revela-se como um fato especificamente social,

considerando que as práticas e estratégias, produzidas e sustentadas dentro de um quadro de

relações de poder, o definem e o aliviam, apontando a posição dos interlocutores e a ideologia

veiculada pelas categorias em jogo” (PUSSETTI & BRAZZABENI, 2011).

Assim, o sofrimento social, resulta de uma violência cometida pela própria estrutura social e

não por um indivíduo ou grupo que dela faz parte: o conceito refere-se aos efeitos nocivos das

relações desiguais de poder que caracterizam a organização social. Alude, ao mesmo tempo, a uma

série de problemas individuais cuja origem e consequência têm as suas raízes nas fraturas

devastantes que as forças sociais podem exercitar sobre a experiência humana.

Segundo Kleinman, “o sofrimento social resulta do que o poder político, econômico e

institucional produz nas pessoas e, reciprocamente, de como essas formas de poder, elas próprias,

influenciam as respostas aos problemas sociais” (KLEINMAN, 1997). Em outras palavras, trata-se

de um sofrimento intrinsecamente vinculado ao que podemos nos referir simplesmente como as

políticas e economias da vida, verificadas em condições e configurações históricas e sociais

específicas.

É nesse sentido que se torna fundamental observar como os poderes políticos, econômicos e

institucionais se entrelaçam na experiência pessoal e cotidiana e como as pessoas reagem aos

eventos no dia-a-dia. Não se trata de um sofrimento individual, embora na maioria das vezes se faça

visível como tal, ou de um sofrimento corporal, embora se manifeste, como argumentado ao longo

desse texto, de forma corporificada. Como uma experiência sociocultural, existe como uma

condensação corporificada do tempo histórico, ou seja, o sofrimento social é social não somente

porque é gerado por condições sociais, mas porque é, como um todo, um processo social

corporificado nos sujeitos históricos. É assim, que a Antropologia, através do reconhecimento da

sua especificidade, pode contribuir para a sua significação.

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2.1 Breve história dos Índios Charruas - “os últimos Charruas”.

Os índios Charruas, grupo étnico que até o século XIX habitava em grande número o

Uruguai, partes da Argentina e do Rio Grande do Sul (Brasil), a história dos Charruas, fica marcada

por dois acontecimentos dramáticos: primeiro, “o assassinato de quarenta Charruas e o

aprisionamento de tantos outros por parte do governo uruguaio, que se encontrava sob o comando

de Barnabé Rivera, na sangrenta Batalha de Salsipuedes, em 1831” (Becker, 2002). O segundo

episódio, ocorrido pouco tempo depois, é o caso de quatro índios Charrua que, “capturados na

Batalha de Salsipuedes, foram levados a Paris na França, para exposição num ‘zoológico humano’,

em 1833, onde três deles teriam morrido e um eventualmente escapado, levando consigo um bebê

que nascera condições subumanas, em praça pública. Estes ficaram conhecidos na História como

‘os últimos Charruas”(Becker 2002).

Porém depois de muita luta, um grupo de descendentes dos Charruas que, em novembro de

2007, obteve reconhecimento como povo indígena brasileiro em ato solene na Câmara Municipal de

Porto Alegre, após apresentação de laudos de arqueólogos, “que possibilitou o posterior processo de

reconhecimento oficial a esse grupo indígena, a origem Charrua dos exemplares de cultura material

que eles possuíam e lhe apresentaram é indiscutível” (Leite, 2008).

Essas pessoas, que têm uma mesma origem familiar, vivem atualmente em Porto Alegre,

Brasil, em uma extensão de terra concedida pelo governo municipal para a construção da primeira

aldeia Charrua do Rio Grande do Sul, a Aldeia Polidoro. Mas a conquista da terra, para eles, foi

apenas uma etapa da ‘luta’ por uma vida que consideram digna.

2.2 Construção da Aldeia e os Problemas de Saneamento.

Embora reconheçam o salto qualitativo que a obtenção dessa terra indígena significou para

sobrevivência física e cultural do grupo, eles apelam incansavelmente junto aos órgãos

governamentais federal, estadual e municipal, pela melhoria da infraestrutura do local, onde não

existe água encanada nem eletricidade regular para abrigar o que, na sua conta, somavam-se 40

indivíduos aparentados entre si.

Na terra da Aldeia Polidoro, passa um córrego que desce pela força da gravidade de cerca de

200m de declive pela mata, sendo está água não tratada. É a água desse córrego que chega até a

aldeia por mangueiras e serve diretamente para irrigar as plantas e consumo dos animais, bem como

para abastecer a caixa d´água funcional da aldeia. É esta água que é utilizada para lavar roupa e

também para consumo humano.

Segundo Victoria & Ruas-Neto 2011, “Não sendo está água tratada, sua coloração é escura e

seu gosto é terroso, possuindo partículas visíveis e, eventualmente, invertebrados, como minhocas e

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insetos, o que a faz inadequada para o consumo”. Ainda segundo os autores, o principal problema

concentra-se no “problema da água”, e no nicho de problemas de saúde que a mesma provoca na

aldeia, o qual foi denunciado em diferentes instâncias, desde a Fundação Nacional de Saúde

(FUNASA), órgão do Ministério da Saúde que naquela época dava atenção aos problemas de saúde

e saneamento indígena, até os Ministérios Públicos, Estadual e Federal, que acolhem e encaminham

denúncias de violação de direitos humanos dos indígenas, entre outros.

2.3 Problema de saúde ou sofrimento social?

Partindo da Antropologia do Corpo e da Saúde, proponho um debate sobre o sofrimento

social corporificado nas experiências desse grupo indígena. Tomando por base, os dados de

pesquisa etnográfica desenvolvida entre indígenas da etnia Charrua, que em busca do seu

reconhecimento étnico e por direitos constitucionais têm se envolvidos numa rede burocrática de

políticas e instituições governamentais as quais, se por um lado, deveriam amenizar as suas

dificuldades, por outro, significam um permanente foco de tensões causadoras de enorme

sofrimento. Estamos nos referindo aqui naquilo que Das e Kleinman apontam como “os efeitos das

respostas burocráticas aos problemas humanos” e como as “ações institucionais podem aprofundar e

tornar mais intratáveis os problemas que eles procuram amenizar” ( Das & Kleinman 2001:2)

Nesse sentido, o estudo do sofrimento é complexo e requer olhar para além do indivíduo que

sofre. Nesse caso, a contribuição dos antropólogos têm sido, antes que definir, adentrar os contextos

do sofrimento e explicitar, da forma mais abrangente possível, as dinâmicas da vida encompassadas

pelas situações que causam sofrimento.

Assim, o estudo antropológico do sofrimento social direcionado a indígenas vai, não

somente, enfocar a saúde, a doença, a dor, o desamparo a partir de seus significados culturais, mas

dar uma ênfase à compreensão das suas múltiplas inter-relações com o mundo social, com aquilo

que estamos denominando como as políticas e economias da vida. Isso pressupõe a recusa da

dissociação entre os domínios políticos e econômicos na própria constituição cultural do sofrimento

e é condizente com a proposta teórica e metodológica de implicar o estudo da saúde, da doença e da

cura culturalmente construídos e corporificados, com o contexto social e político abrangente,

utilizando a etnografia como uma forma de adentrar essa complexidade.

Essa proposta se justifica diante da abrangência das formas de sofrimento que se incorporam

à e são corporificadas em contato com a vida social e da inabilidade das instituições políticas e

sociais de lidarem com este fenômeno. Também porque o sofrimento, em certo sentido, desafia as

abordagens tradicionais de conhecimento as quais, muitas vezes, acabam por fragmentar a

experiência humana e diluí-la em uma série de aspectos isolados que lhe destituem de significado e

poder.

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É a partir desse quadro de referência que debateremos o caso dos Charruas que vivem em

Porto Alegre. Toma como exemplo o que chamamos de paradoxo da água como vida e morte para

contextualizar o sofrimento social e as categorias êmicas de “discriminação” e “luta” forjadas por

essa experiência de ser indígena na urbanidade nos dias de hoje. Através de uma estudo etnográfico

nos aproximamos das questões políticas e econômicas que se encontram interligadas

inexoravelmente e não podem ser dissociadas da saúde, da doença e do sofrimento, sugerindo assim

a impossibilidade de dissociação das dimensões públicas e privadas da experiência.

Uma das situações ilustrativas desse processo explorado nesse trabalho foi a demanda de

instalação de rede de água na aldeia, a qual o texto utilizado como base relata, nos mais

(im)precisos detalhes de onde fica claro, à problemáticas do sofrimento social que, embora seja

originado precisamente no entrelaçamento de relações sociais e políticas de desfavorecimento

histórico, ele é vivido pelo grupo de forma corporificada, por exemplo, como doenças causadas pela

água, num grande número de situações práticas do dia-a-dia.

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3 Considerações Finais

Pode-se ressaltar que o sofrimento social, embora seja originado precisamente no

entrelaçamento de relações sociais e políticas de desfavorecimento histórico, ele é vivido pelo grupo

de forma corporificada, por exemplo, as doenças causadas pela água em um grande número de

situações práticas do dia-a-dia. E embora a frequência e a intensidade dos infortúnios lhes atinjam

diretamente produzindo sofrimento, isso não significa que seja a soma dos infortúnios que dá forma

e sentido ao sofrimento social.

O sofrimento social é um fenômeno mais amplo, que perpassa o tempo e carrega consigo a

história para dentro do presente. Assim, a expressão frequentemente usada por eles, os “últimos

Charruas”, implica nessa condensação dos tempos passado, presente e futuro, das esferas individual

e coletiva, das dimensões pública e privada da vida. Resta para nós, diante disso, voltar à reflexão

sobre a ideia de que a conquista do seu reconhecimento, que na verdade, é a ‘luta’ pela dignidade e

cidadania, permanente ameaça que sentem.

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4 Bibliografia

BIBEAU, Gilles, 1995 [1981], “Premesse per un’epidemiologia antropologica della

depressione”, em Roberto Beneduce e René Collignon (orgs.),Il Sorriso della Volpe: Lutto,

Ideologie della Morte e Depressione in Africa. Nápoles, Liguori, 41-59.

PUSSETTI, C.; BRAZZABENI, M., 2011, “Sofrimento Social: idiomas da exclusão e políticas

do assistencialismo», Etnográfica, 15 (3): 467-478, ISSN 0873-6561.

BECKER, Ítala Irene Basile. 2002. Os Índios Charrua e Minuano na Antiga Banda Oriental do

Uruguai. São Leopoldo: Editora Unisinos.

DAS, Veena; KLEINMAN, Arthur. 2001. Introduction. In DAS, Veena; KLEINMAN, Arthur;

LOCK, Margareth et al. (eds.): Remaking the World: violence, social suffering and recovery, pp.

1-30. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press.

__________. 1997. The Appeal of Experience: The Dismay of Images. Cultural Appropriations

of Suffering in Our Times. In KLEINMAN, Arthur; DAS, Veena; LOCK, Margareth (eds.): Social

Suffering, pp.1-24. Berkeley, Los Angeles: University of California Press.

LEITE, Sérgio. 2008. Relatório “Charrua: cada vez mais vivos.” Porto Alegre: Museu

Antropológico do Rio Grande do Sul.

RBS/TV, 2010 Os Últimos Charruas, da série Histórias Extraordinárias, produzida pela RBS/TV.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Z0bonoBzask

VÍCTORA, C. G.; RUAS-NETO, A. L. Querem matar os 'últimos Charruas': sofrimento social

e a 'luta' dos indígenas que vivem nas cidades. Revista Anthropológicas, ano 15, v. 22, 2011.

http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologicas/index.php/revista/article/viewFile/222/158