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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEDepartamento de Geografia
Programa de Pós- Graduação em Ordenamento Territorial e Ambiental
DO TERRITÓRIO DA GOVERNANÇA AO TERRITÓRIO DO CAMPESINATO:LIMITES E POSSIBILIDADES DOS ASSENTAMENTOS EM NIOAQUE-MS
IVAN DE SOUSA SOARES
Niterói2012
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IVAN DE SOUSA SOARES
DO TERRITÓRIO DA GOVERNANÇA AO TERRITÓRIO DO CAMPESINATO:LIMITES E POSSIBILIDADES DOS ASSENTAMENTOS EM NIOAQUE-MS
Dissertação apresentada ao Programa dePós-Graduação em Geografia daUniversidade Federal Fluminense, comorequisito parcial para obtenção do Grau deMestre em Geografia, Área de Concentração:Ordenamento Territorial.
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Orientador: Profº Dr. Jacob Binsztok
Niterói2012
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Ivan de Sousa Soares
DO TERRITÓRIO DA GOVERNANÇA AO TERRITÓRIO DO CAMPESINATO:LIMITES E POSSIBILIDADES DOS ASSENTAMENTOS EM NIOAQUE-MS
Dissertação apresentada ao Programa dePós-Graduação em Geografia daUniversidade Federal Fluminense, comorequisito parcial para obtenção do Graude Mestre em Geografia, Área deConcentração: Ordenamento Territorial.
Aprovada em 14 de maio de 2012.
Niterói2012
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Este trabalho é dedicado a minha família, companheirade estradar e amigos, os quais tiveram (ainda têm)grande importância para a minha formação como pessoanos vários meandros da vida, nesse rumo, me servindocomo alicerce para enfrentar as pelejas cotidianas. Nãohaveria de ser diferente, é dedicado, apesar de seurecorde/delimitação “espacial” de análise, a todos oscamponeses, que lutam cotidianamente em uma inclusãoprecarizada na sociedade, para assim preservarem suasdistintas formas de ser e existir no grafar cotidiano daterra.
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AGRADECIMENTOS
Ao orientador Jacó pela sua perspicácia plural de leitura da sociedade, bemcomo pela sua receptividade e flexibilidade de aceitação acerca das novas idéias naconfecção do trabalho.
Aos professores da Universidade Federal Fluminense, mormente osprofessores Carlos Walter e Mônica Cox pelas provocações acerca das propostas,processo o qual nos faz sentir mudado em relação aos pressupostos pensadosoutrora. Professor Rogério Haesbaert com suas valiosas contribuições para além do“Homo territorium”.
Professora Maria Verónica Secreto de Ferreras do curso de história da UFF,pelas importantes contribuições no momento da qualificação do referido trabalho.
Ao Carlos Alberto por suas relevantes ponderações, bem como por suareceptividade comigo ao chegar em Niterói.
Aos professores do curso de graduação em geografia da UniversidadeFederal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, os quais muitocontribuíram nos primeiros passos acadêmicos, me mostrando os “vários sabores dageografia”, mesmo que em muitos momentos, alguns desses sabores, preparos eessências me remetessem ao fel.
Em especial a professora Rosemeire Aparecida de Almeida, por meapresentar o “sabor agradável” de uma geografia comprometida com os gruposhistoricamente subalternizados, buscando assim estabelecer o diálogo do fazercientífico com a plenitude das lutas travadas no interior do modo capitalista deprodução.
Ao professor Vicente Eudes, pelos primeiros sabores da geografia, ainda naépoca de minha condição dúplice de operário e estudante.
Aos camponeses entrevistados, por entendermos que a prática dapesquisa em ciências humanas/sociais, tem-se muito mais a entender com essessujeitos do fazer cotidiano, ao invés de ensinar. Desta forma, procurandoestabelecer uma relação mais simétrica por meio do fazer científico, emborasaibamos que tal missão de descolonização da mente seja um grande obstáculoainda presente na academia.
Portanto, agradeço a cada homem, mulher e filhos dos assentamentospesquisados.
A Rosana (Preta), e Altair do assentamento Andalucia desde o primeirocontato em 2007, por contribuírem para o bom andamento da pesquisa de campo,bem como por traduzir em suas falas, o sentimento de pertencimento o qual permeiaa configuração de um legítimo cerrado habitat.
Ao Sr. Amaro e Cissa por me acolherem como um membro da família,demonstrando toda a fartura e o papel sociológico/simbólico que o alimento nomundo camponês possui, assim me fazendo adquirir algumas gramas, ao passo desempre querer voltar ao assentamento Boa Esperança.
Ao Sr. Severino e sua esposa, por tornarem a pesquisa menos fria, por meiodos relatos de suas histórias de luta e as pelejas ainda enfrentadas na atualidadecom os problemas estruturais do assentamento Areia.
Aos meus pais, uma vez que sem eles nada faria sentido. O velho “ChicoMaranhão” e Dona Helena por me darem condições de adentrar o espaço daUniversidade, mesmo que intuitivamente sabendo que historicamente essa não fora
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criada em sua raiz, para atender os anseios da classe trabalhadora e dos grupossubalternizados.
Aos Irmãos em grande número, Eva, Flávio, Fernanda e Elizângela.Aos amigos conquistados ao longo das vivencias, das várias espacialidades
vividas (São Paulo- Três Lagoas- Rio de Janeiro). Da época da graduação, PatríciaMilani e Willian Ribeiro. Aos membros do Grupo de Estudos Terra- Território- GETT,Mie grande entusiasta do papel da luta camponesa em busca da justiça social.“Tayrone, com sua inquietudade por vezes indomável”. “Irmão mais novo” adquiridono estradar acadêmico em Três Lagoas. No Rio de Janeiro, já no programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense- UFF. Saulo Costa, grande parceiro(e encorajador) de vários momentos na vivência no Rio de Janeiro. Edarme, Vera(verinha!), Lívia, Nataly (uma cerradeira perdida na praia), Daniel (trancinha),Amanda, Alanda, Pedro, Jean (goiano, grande geógrafo e contador de piadas),Philipe Braga e Glauco pelos agradáveis momentos no espaço da Universidade,bem como nos espaços extra- UFF.
À Laila pelo bom período de convivência desde o primeiro momento de nossachegada em Niterói e pelos longos diálogos “campesinos” em plena noite de sexta-feira.
À família Forster por me acolherem em seu núcleo de convívio, bem como emestadia em Duque de Caxias.
Ottílie Carolina Forster pelo amor confortante, pelo companheirismo semprepresente, mormente nos meus vários momentos de ausências.
Ao Daniel da secretaria, sempre prestativo no bom andamento de questõesligadas à pós-graduação.
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- CAPES,a qual por meio da bolsa de mestrado propiciou minha permanência em solofluminense no primeiro ano do mestrado. Da mesma forma, agradeço a Fundaçãode Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro- FAPERJ pela concessão de bolsa deauxílio, por meio da qual foi possível prosseguir com o trabalho.
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SERRA DE MARACAJÚ
Lembro de um velho índio contando históriasDe glórias e tragédias que não viviQuando das estrelas vieram deuses
E seus sinais estão por aíDepois de um certo tempo eles foram embora
Deixando para trás um povo felizMas os portugueses e os espanhóisInvadiram a terra dos GuaranisEntão vieram os bandeirantesE os retirantes lá das Gerais.
Por muito tempo não houve pazSofreu demais quem te ama
Bela Serra de MaracajúSeus mistérios quero traduzirDescobrir as lendas e memóriasDe cada légua que te percorri
Eu cheguei aqui com os meus próprios pés e hoje tenho minha raizDos antigos lados dos Xaraés
Toco chamamés que eu mesmo fizDe hoje em diante somos iguais
Quem de nossa terra te chamaBela Serra de Maracajú ( Almir Sater)
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DO TERRITÓRIO DA GOVERNANÇA AO TERRITÓRIO DO CAMPESINATO:LIMITES E POSSIBILIDADES DOS ASSENTAMENTOS EM NIOAQUE-MS
Resumo: A construção da referida dissertação de mestrado, suscita a partirsobretudo do contato primário do sujeito pesquisador, por vezes conflituoso, com arealidade empírica dos assentamentos do chamado território da Reforma, no qual omunicípio de Nioaque, possui o segundo maior número de assentamentos com 9projetos, dessa forma sendo inferior apenas ao município de Sidrolândia.
Com o referido caminho, buscou-se apreender os limites e perspectivas dosassentamentos situados em Nioaque-MS, à medida que o contingente populacionaldesses assentamentos, representam próximo a 70% da população municipal.
Embora haja no campo das práticas/ discursos das políticas públicas, um forteideário do desenvolvimento criado a partir a implementação dos territórios rurais dacidadania,, ou até mesmo por meio de política de aquisição de alimentos da “agricultura familiar”, se pode afirmar, que esses mecanismos não têm garantidomelhor qualidade de reprodução desses camponeses, como prega o discurso doEstado em suas diversas esferas. Ao enveredar na pesquisa por meio daconfluência do debate conceitual e o próprio o recorte empírico, buscou-seapreender os conflitos que se estabelecem a partir das diferentes matrizes deracionalidades no moldar territorial, bem como os desdobramentos dessa relaçãopara o cotidiano dos camponeses nessa região singular.
Palavras-chaves: Territórios rurais; campesinato; cerrado; desenvolvimento local.
DE LO TERRITORIO DE LA GOBIERNACIA AL TERRITORIO DELCAMPESINADO: LIMITES Y POSIBILIDADES DE LOS ASENTAMIENTOS EN
NIOAQUE-MS
Resumen: La construcción del trabajo de tesis de maestria, plantea desde lo primercontacto del sujeto investigador, por la veces em conflicto com la realidad empíricode los asentamientos ubicados em el territorio de la Reforma, en cual la ciudad deNioaque, tiene el segundo mayor numero de los asentamientos com 9 proyectos, emconsecuencia siendo solamente abajo a ciudad de Sidrolândia.Con el mencionado trabajo, hemos tratado de aprehender los limites y lasperspectivas de los asentamientos ubicados em Nioaque-MS, teniendo em cuentaque la populación de estos proyectos, represetan próximo al 70% de la populacióngeneral de la ciudad.Aunque hay en campos de las prácticas/ discursos de las politica del gobierno, unafuerte ideologia sobre el desarrollo logrado desde la creación de los “ territorios deRurales de la ciudadanía, o via la politica de adquisicíon de los alimentos de la “agricultura familiar”, se puede afirmar, que los mecanismos no tiene logrado mejorcalidad de vida de eses campesinos, como dice el discurso del Estado en su múltipleesferas. Al entrar em la investigación intermedio de la confluencia del debateconceptual que establece desde las dieferentes matrices de la racionalidad en laconfiguración territorial, bien como los resultados de esta relación para el cotidianodo lo campesinos en la singular región senãlada.
Palabras- clave: Territórios rurales; campesinato; cerrado; desarrollo local.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01-Territórios da Cidadania do MDA em Mato Grosso do Sul.................. 20Figura 02- Mato Grosso do Sul- Município de Nioaque................................... 25Figura 03- Plantio consorciado no assentamento Andalúcia............................ 72Figura 04- Faixa de Campanha dos Ruralistas da Soja em Dourados-MS........ 79Figura 05- Mapa República da Soja (SYNGENTA).......................................... 106Figura 06- Mato Grosso do Sul- Geografia das ocupações de terra- 1988-2007 134Figura 07- Mato Grosso do Sul- Geografia dos assentamentos-1988-2007........ 134Figura 08- Sequência de processamento do Cumbarú (Dipteryx alata).............. 146Figura 09- Exposição de mudas nativas do grupo de mulheres-NINA/MST....... 149Figura 10- Mosaico de atividades exercidas no assentamento Palmeira ........... 152Figura 11- Infraestrutura do assentamento Areia-Nioaque............................... 154Figura 12- Resfriador de leite no assentamento Andalúcia.................................. 167Figura 13- Mosaico dos Agroecossistemas complexos em Nioaque................. 172Figura 14- Processos erosivos no assentamento Boa Esperança...................... 180
Gráfico 01- Estabelecimentos em Mato Grosso do Sul divididos por grupo deárea (hectares)...................................................................................................... 17Gráfico 02- Filhos moradores em assentamentos........................................... 47Gráfico 03- Naturalidade dos assentados entrevistados Nioaque...................... 123Gráfico 04- Mato Grosso do Sul- Número de Ocupações- 1988-2007............... 127Gráfico 05- Mato Grosso do Sul- Número de assentamentos-1984-2010........... 128Gráfico 06- Organização de Luta pela terra dos Assentados em Nioaque ........ 131
Gráfico 07- Luta camponesa no território da Reforma dividida por município..... 135
Gráfico 08- Comparativo da área plantada de milho entre Nioaque e TrêsLagoas-MS-1990-2010........................................................................................ 139Gráfico 09- Produção de feijão e mandioca (ha)-1990-2010............................... 155Gráfico 10- Plantio de mandioca nos assentamentos de Nioaque- (safra-2010-2011)................................................................................................................... 157Gráfico 11- Plantio de feijão nos assentamentos de Nioaque- (safra-2010-2011)............................................................................................................ 158Gráfico 12- Plantio de milho nos assentamentos de Nioaque- (safra-2010-2011).............................................................................................................. 160Gráfico-13- Plantel de Mato Grosso do Sul- 1975-2006................................... 162Gráfico 14- Produção de Leite nos assentamentos de Nioaque-2011............... 165Gráfico 15- Geração de renda externa nos assentamentos de Nioaque-2011.... 168Gráfico 16-Informação obtida sobre sistema agroecológico............................ 178Gráfico 17- Atual situação ambiental dos assentamentos pesquisados............ 181
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LISTA DE QUADROS
Quadro 01- Assentamentos pesquisados..................................................... 24Quadro 02- Características da Agricultura camponesa e moderna.............. 73Quadro 03- Lâmina de água necessária durante o ciclo das culturas........ 75Quadro 04-Número de títulos e Concessão de terras expedidas peloEstado............................................................................................................
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LISTA DE SIGLAS
APL- Arranjos Produtivos LocaisCAND- Colônia Nacional de Dourados.CEPPEC- Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do CerradoCPT- Comissão Pastoral da TerraFAF- Federação da Agricultura FamiliarFETRAGRI- Federação dos Trabalhadores na AgriculturaFHC- Fernando Henrique CardosoFMI- Fundo Monetário InternacionalFUNAI- Fundação Nacional do ÍndioIBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e EstatísticaIIRSA- Integración de la Infraestructura Regional Sur- americanaMDA- Ministério do Desenvolvimento AgrárioMST- Movimento dos trabalhadores rurais sem-terra.MTE- Ministério do Trabalho e EmpregoNERA- Núcleo de Estudos da Reforma AgráriaP.A- Projeto de assentamentoPAA- Programa de Aquisição de AlimentosPAM- Produção Agrícola MunicipalPDA- Plano de Desenvolvimento do AssentamentoPNPSB- Plano nacional de Promoção das Cadeias de Produtos daSociobiodiversidade.PRONAF- Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura FamiliarPT- Partido dos TrabalhadoresSOMECO- Sociedade Melhoramentos de ColonizaçãoUFMS- Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................... 13CAPÍTULO 1- O LUGAR DO CAMPESINATO NAS DIFERENTES ESPAÇO-TEMPORALIDADES: O (RE)VISITAR CONCEITUAL...................................... 261.1-A inquietude da classe camponesa nos clássicos da questão agrária........ 281.2- O lugar do campesinato no marxismo ortodoxo agrário......................... 331.3- A especificidade da unidade familiar camponesa: o entendimento daeconomia doméstica a partir do legado chaynoviano...................................... 431.4- O problema da renda da terra no capitalismo............................................. 501.5- O caráter multifacetado da constituição do campesinato brasileiro............ 571.6. Outras leituras possíveis desde a relação sociedade-natureza................... 66CAPÍTULO 2- DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E A UNIFORMIDADE DOMUNDO........................................................................................................ 772.1- As múltiplas fragmentações do mundo desde o ocidente......................... 802.2- Desenvolvimento e Revolução Verde: Continuidade do sistema-mundo-moderno-colonial............................................................................................ 852.3- Desenvolvimento Rural e a plasticidade do capital..................................... 94CAPÍTULO 3- A CENTRALIDADE ANALÍTICA DO TERRITÓRIO NAQUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA............................................................... 1003.1- As tipologias que erguem acerca do território........................................... 1003.2- Terra e território na Questão agrária brasileira............................................ 1083.2.1- A lei de terras de 1850 como elemento da centralidade da terra comopoder............................................................................................................ 1123.2.2- Novos horizontes da longa marcha do campesinato brasileiro................ 115
3.3- Terra e território em Mato Grosso do Sul.................................................... 1173.3.1- Espacialização e territorialização camponesa em Mato Grosso doSul.................................................................................................................. 121CAPÍTULO 4- NIOAQUE E OS ASSENTAMENTOS RURAIS: OTERRITÓRIO CAMPONÊS POSTO EM QUESTÃO........................................ 1384.1- Campesinato e Território: A marcha ao estabelecimento da terra detrabalho em Nioaque......................................................................................
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4.2- Os assentamentos pesquisados como expressão de territórioscamponeses................................................................................................... 1434.2.1- Formas de uso da terra e trabalho nos Assentamentos de Nioaque........ 1544.2.2- A específicidade camponesa na apropriação da natureza ..................... 171CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 183REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................... 186APÊNDICE 01- Planta do Assentamento Andalucia- Nioaque-MS....................... 195APÊNDICE 02- Planta do Assentamento Boa Esperança- Nioaque..................... 196APÊNDICE 03- Planta do Assentamento Palmeira- Nioaque-MS........................ 197APÊNDICE 04- Planta do Assentamento Areia- Nioaque-MS.............................. 198APÊNDICE 05- Modelo de Questionário da Pesquisa...................................... 199
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INTRODUÇÃO
No Brasil de um modo geral, a propriedade/ posse da terra historicamente, abriu
importantes precedentes para o açambarcamento do poder político, bem como a
possibilidade de acumulação/ manutenção desse importante equivalente de capital.
A partir desse quadro, pode-se apreender com maior expressão a posição de Mato
Grosso do Sul diante do processo de fusão da relação terra-poder, o que coloca o
descrito Estado na atualidade como um dos mais concentrados do País.
Cabe destacar como lembra Almeida acerca dessa concentração fundiária
característica em Mato Grosso do Sul, que não tal situação pode ser atribuída como
um processo estritamente resultante da modernização do campo experimentada
pelo espaço agrário brasileiro a partir dos pressupostos da expansão do
agronegócio e/ou da Revolução Verde, uma vez que somente uma parte do país se
modernizou.
A relação discursiva que se estabelece a partir dessa presumida
modernização do campo, apenas serve para invisibilizar o re-inventar do latifúndio
moderno, os quais em grande parte se constituem como legítimas reservas de valor,
portanto meio pelo qual seus detentores absorvem a mais-valia social de toda
sociedade, seja por meio da renda territorial ou em alguns casos, com os Impostos
Territoriais Rurais impagáveis. Esse indicativo apontado por Almeida evidencia-se
por meio dos dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária- INCRA
(2003), trabalhados por Oliveira ( 2008), uma vez que segundo esse autor, cerca de
8.545.942,20 hectares, os quais representam um percentual de 23% das terras
cadastradas são consideradas improdutivas em Mato Grosso do Sul.
Outro dado de suma importância para o entendimento do papel da terra em Mato
Grosso do Sul, diz respeito às terras devolutas, portanto terras públicas, pois do total
de áreas cadastradas, 15% se constituem de terras devolutas, as quais por força da
Lei deveriam ser convertidas para Reforma Agrária. Acerca das terras devolutas
apontadas por Oliveira (2008), por meio dos dados do INCRA, cabe elencar que o
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município de Japorã1 no estremo sul do estado, se constitui com o maior número de
terras de Mato Grosso do Sul nessa condição, com um percentual de 56% da área
municipal total.
Na hipótese de que a reforma agrária gestada no Brasil, abarcasse somente
as terras públicas como manda a lei, ao subtrair-se as áreas devolutas de Japorã (
25.723,53 ha), pelo total das áreas oriundas da política de implantação de
assentamentos (11.918,22ha), ainda sim, tem-se uma área de 13.805,31 hectares,
dos quais são passível de apropriação indevida pelos setores do agronegócio.
No mesmo rumo, municípios como Porto Murtinho (40%), Novo Horizonte do Sul
(54%) e Chapadão do Sul (38%), possuem parcelas de áreas, as quais estão na
condição de terras devolutas.
Dentro da idéia desenvolvida da função social, a qual as terras devolutas
deveriam exercer, que ao se realizar o mesmo cálculo relativo às áreas
caracterizadas como terras devolutas, subtraindo pelas áreas contidas nos
assentamentos rurais de Novo Horizonte do Sul, chega-se ao valor de 13.805,31
hectares, dos quais estão sendo apropriados de forma indevida em contraste com o
que se propõe a Lei, nesse caso, conforme apontam os dados do IBGE (2006), o
pequeno percentual de produção de soja no município, com uma área plantada de
762 hectares, pressupõe um processo de formação de reserva de valor, à medida
que segundo dados do INCRA (2003), explorados por Oliveira (2003), 13846,5
hectares das grandes estabelecimentos do município em questão, são classificados
como improdutivos.
Nesse sentido dos dados apresentados, que o discurso da modernidade da
agricultura capitalista, personificada pelo agronegócio, tem se constituído como um
poderoso mecanismo de mascaramento do verdadeiro papel desse modelo, bem
como o uso de terras públicas empregadas na produção de commodities, ou até
mesmo em maior escala, para nela nada produzir com intuito de auferir renda de
toda a sociedade.
Essa ambivalência entre barbárie – modernidade como vem salientando
Oliveira (2003) se fundamenta como um dos principais alicerces desse modelo em
1 Um dado importante sobre o descrito, que a sua grande área de terras devolutas, se destaca pelasua posição fronteiriça, embora tal situação não configura como barreira para a apropriação indevidade terras do Estado.
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Mato Grosso do Sul. Um indicativo dessa referida complementaridade entre
barbárie- modernidade na manutenção do latifúndio moderno (PORTO-
GONÇALVES, 2006), está presente por meio dos dados de violência contra as
populações indígenas.
Embora Mato Grosso do Sul se encontre apenas com a quarta maior
população auto-declarada indígena do país, com um total de 53.900 pessoas (7% do
total), segundo dados do Censo Populacional do IBGE (2000), por outro lado, o
Estado ocupa o primeiro lugar no estabelecimento da violência contra indígenas,
tendo uma participação de 53% nos casos configurados como “homicídio culposo” e
as tentativas de assassinato, as quais possuem uma representação percentual de
59% dos casos registrados em todo o país, segundo dados do Conselho Indigenista
Missionário- CIMI (2010).
Importante apreender, que justamente a maior parte das ocorrências de
variadas formas de violência, está localizada em áreas de alto empreendimento da
agricultura capitalista, como vem ocorrendo na região de Dourados-MS, município o
qual possui a segunda maior produção de soja do Estado com 9%, apenas sendo
superado pelo município de Maracajú com 10% do total de área colhida no Estado,
segundo dados do SIDRA-IBGE (2006). No mesmo passo, segundo dados do IBGE
(2006), apontam que a microrregião de Dourados, emerge com uma participação de
61% de todas as áreas colhidas de soja produzida em Mato Grosso do Sul.
Outra forma comum de violência encontrada em Mato Grosso do Sul, a qual
mantém uma relação intima com a posse e propriedade da terra como mecanismo
de manutenção de poder, diz respeito às atividades análogas ao trabalho escravo,
situação comum no Estado.
Nesse sentido, somente na atualidade da referida “modernização do campo”,
segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego- MTE, no período
compreendido entre o período de 2008 a 2010, foram libertados 266 trabalhadores
em apenas 20 estabelecimentos fiscalizados pelo órgão federal.
Dentro dessa heterogeneidade da questão agrária de Mato Grosso do Sul, com a
terra ocupando papel central de manutenção do poder e inúmeros mecanismos de
expropriação, que Nioaque (figura-02) emerge como suas singularidades no
processo de (re)criação camponesa.
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Embora se configure como fundamental espaço de (re)criação camponesa,
portanto de democratização do acesso à terra, por outro lado o município foco da
pesquisa não está livre dos descaminhos da função social da terra. Nesse sentido,
que segundo dados do INCRA (2003) explorados por Oliveira (2008), demonstravam
que no período, possuía dentre as grandes propriedades, 78204,1 hectares de áreas
consideradas improdutivas, as quais representam um percentual de 20% do total de
áreas das cadastradas dos grandes imóveis.
A divergência entre o discurso do agronegócio, a partir da idéia de
modernização do campo/ produtividade e a real função social da terra, pode ser
evidenciada por meio dos dados do produto interno bruto- PIB de Nioaque,
disponibilizados no IBGE (2007), no qual se verifica que a Agropecuária, setor
alavancado pela pecuária extensiva de corte, atividade comum desde a formação do
Estado, apenas detém o segundo lugar com uma participação percentual de 36%.
Acima se encontram as atividades ligadas ao setor de serviços, com uma
participação de 51% na produção do PIB e o setor industrial representa apenas
13%.
O entrecruzamento dos dados de grandes estabelecimentos considerados
improdutivos explorados por Oliveira (2008), com os dados de participação no PIB
divididos por setor, contribuem para o entendimento do caráter da terra no Brasil e
em Mato Grosso do Sul, assim como o seu caráter rentista como posteriormente se
discutirá, uma vez que aponta para uma prática muito comum no Estado, da
utilização do “boi para esconder terra”.
Outro quadro preocupante e mais nítido da territorialização capitalista em
Mato Grosso do Sul, pode ser apontado pela intensificação da concentração
fundiária, bem como pela degradação ambiental promovidos pela recente expansão
da indústria de papel e celulose na microrregião de Três Lagoas. Nesse sentido,
cabe destacar que segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de
Florestas Plantadas- ABRAF de 2010, o Estado de Mato Grosso do Sul possuía uma
área total plantada de 392.042 hectares, dos quais segundo Kudlavicz (2011), a
FIBRIA2 possui 240 mil hectares na referida região.
2 Fusão de grandes empresas do setor, como Aracruz Celulose e Votorantim Papel e Celulose.
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Cabe elencar, que ainda está em processo a construção de outra planta
industrial de produção de papel e celulose na microrregião de Três Lagoas, a
Eldorado, resultado da associação do grupo JBS- Friboi e MCL Empreendimentos.
Diante de tal problemática de expansão massiva do plantio de eucalipto para
a indústria de papel e celulose, que a região enfrenta sérios problemas para a re-
criação camponesa, haja vista que até mesmo a diminuta “reforma agrária” gestada
pelo Estado neoliberal, enfrenta empecilhos diante das altas das terras.
Diante desse quadro de constante monopólio da terra no Estado, portanto de
territorialização do capital, que o campesinato em Mato Grosso do Sul
historicamente, busca por meio de uma peleja cotidiana a sua reprodução nas
bordas desse latifúndio modernizado na constituição de territórios- habitat (
MAZZETO- SILVA, 2006).
Desses camponeses, invisibilizados inclusive pelo discurso de uma “não mais
necessária de reforma agrária”, disseminado por muitos intelectuais e/ou grandes
“latifúndios” da informação no país, que versa a descrita proposta de dissertação.
Gráfico 01- Estabelecimentos em Mato Grosso do Sul divididos por grupo deárea (hectares).
Fonte: Censo agropecuário/IBGE-2006.
Os dados do censo agropecuário (2006), se apresentam como fundamentais
para a leitura da estrutura fundiária do estado de Mato Grosso do Sul, bem com
apreender a especificidade do município de Nioaque em termos comparativos, na
lógica reinante da aliança terra-capital.
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Do total de 1903 estabelecimento pesquisado no município em questão, 84%
se encontravam na categoria de “até 100 hectares”, o que aponta a singularidade da
região no estabelecimento do uso da terra pela posse predominantemente
camponesa. Por outro lado, apenas 11% dos estabelecimento levantados, se
enquadravam no grupo “ de 100 a menos de 100”, entedidos como expressão dos
médios estabelecimentos. No outro extremo, somente 5% se enquadravam no grupo
“ de 1000 a mais de 2500, assim sinalizando um importante processo de
desconcentração da terra no município.
Em Dourados, assim como no municipio foco da pesquisa, há a
predominancia percentual de estabelecimento do grupo de área de “ até mesnos 100
hectares”. De forma intermediária, um percentual de 23%, se encontravam no grupo
de 100 a menos 1000”, nesse caso havendo uma maior concentração númeríca
mais próxima de 1000 hectares. Em menor número, no último grupo, em Nioaque
encontrou-se apenas 3%.
Em Maracajú com um total de 659 estabelecimento levantados, 47% desses,
se econtravam no grupo de “ até 100 hectares”. Em posição intermediária, com um
percentual de 36%, apareceu o grupo de “ 100 a menos 1000”. No último grupo de
“1000 a mais de 2500”, ocorreu um percentual de 17% dos estabelecimento
levantados. Cabe elencar, que o município Maracajú mantém o primeiro lugar no
rancking estadual de produção de soja, bem como segundo os dados do CANASAT-
INPE, mantém um plantio na safra de 2011-2012 de 36.760 hectares.
Como constituinte sede da microrregião mais concentrada do estado de Mato
Grosso do Sul, em Três Lagoas encontrou-se um percentual de 33% de
estabelecimento enquadrados no grupo de “ até 100 hectares”. Em posição
intermediária, porém não menos ligadas à lógica do capital, sobretudo nas terras
próximas a 1000 hectares, encontrou-se um percentual de 48% contidos no grupo
de “100 a menos 1000 hectares”. Embora em menor número , nos grupos “ de 1000
a mais de 2500, encontrou-se o maior número de todos os municípios comparados
no gráfico-01, com 17%. Tal número, pode ser evidenciado por meio da expansão
massiva da silvicultura na região.
Embora o grande número de estabelecimentos como no caso de Nioaque e
Dourados evidencia-se um processo de desconcentração de terras, por outro lado
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os dados em geral, contribuem para a máxima estrruturante da questão agrária
brasileira, onde “ poucos tem muito e muitos têm pouco”.
Na contramão dessa hegemonia do latifúndio moderno, cabe elencar que Mato
Grosso do Sul possuía até o ano de 2010 um total de 186 assentamentos rurais, os
quais beneficiaram 30.585 de famílias em um total de área de 686.261,7127
hectares. Embora o número total da área destinada à reforma agrária em Mato
Grosso do Sul pareça alto, por outro lado o descrito número representa um
percentual de apenas de 0,8% dos 8.545.942,20 hectares considerados
improdutivos, ou seja, aqueles que a constituição federal teria que destinar para a
reforma agrária
Diante dessa pequena possibilidade de constituição de uma moderna “brecha
camponesa”, que ganha destaque o chamado Território da Reforma, delimitação
instituída via políticas públicas de ordenamento territorial do Ministério do
Desenvolvimento Agrário- MDA.
Cabe elencar que esse território, legitimado por meio da constante luta camponesa
em Mato Grosso do Sul, têm uma participação de 34% sobre o total de
assentamentos do Estado. Do outro lado, os territórios da grande Dourados e Cone-
Sul (figura -01), se destacam com 13% cada. Com um menor percentual de
participação, aparece o Território do vale do Ivinhema com 11%. Com maior número,
29% dos assentamentos presentes no Estado, dos municípios não abrangidos pelas
políticas dos territórios da cidadania.
Como demonstram os próprios Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural
Sustentável de cada território da cidadania, essa política pública de cunho disciplinar
de uso do espaço, além de abarcar os camponeses dos assentamentos rurais,
também sugere uma operacionalização da diversidade, à medida que abrange os
territórios indígenas e outra gama de formas na lida cotidiana na terra.
Conforme vem chamando atenção vários debatedores da questão agrária, essa
política gestada sob o indicativo do modelo neoliberal da década de 1990 vem se
consolidando, muito mais como um instrumento de controle, ao invés de mecanismo
de reconhecimento de uma gama de territórios em suas singularidades.
20
Ao realizar tamanha generalização das demandas de sua “clientela”, essa
política envereda pelo caminho da simplificação de toda uma diversidade de lutas
gestadas no interior desse capitalismo rentista presente em Mato Grosso do Sul.
Assim como todas as contradições da política “pronafiana”, as políticas de
implantação dos Terrítórios rurais/cidadania guardam em seus campos de práticas/
discursos, a ressignificação das coisas, à medida que nesse “novo mundo rural”, o
esvaziamento político de conceitos e categoria, até então ligadas às leituras das
lutas de classes e/ou processos de contra-hegemonias, são deixados de lado a favor
de um aparente ambiente social de calmaria, mas que no caso do território,
negligencia o controle social por meio do controle territorial.
Figura 01- Territórios da Cidadania do MDA em Mato Grosso do Sul.
21
Acerca desse esvaziamento/ operacionalização dos sentidos das noções, que
seguindo a máxima a qual vem sendo construída por meio do vocabulário das
grandes instituições internacionais, que os conceitos de conflito e poder inexistem
como elementos de uma disputa inerente à sociedade capitalista. Nesse sentido, os
territórios rurais, bem como o conceito de agricultor familiar, se deslocam muito mais
no sentido de esvaziar todo um leque pluri-epistêmico/ político de condições já
existentes da luta por meio de um reducionismo homogeneizante, ao invés de
legitimação e reconhecimento de outras matrizes e vivências do caráter total do
território, bem como a possibilidade do devir dessas populações.
Nesse rumo, a questão central municiada de vários problemas, se constrói a
partir dessa intersecção conflituosa dos anseios dos camponeses como sujeitos
constituintes de formas específicas de experimentar a relação com terra, portanto
instituídos de uma determinada condição relacional com o território, em contraste
aos aspectos burocráticos- técnicos das políticas públicas dos territórios da
cidadania, nesse caso o território da Reforma em Mato Grosso do Sul.
Como se entende que todo olhar acerca da pesquisa científica, sobretudo em
ciências humanas, se constrói a partir da componente relacional do pesquisador
com o objeto empírico, o que em última instância resulta na emergência de
perguntas/ problemas a serem respondidas, as questões/ problemas aqui
exploradas nascem dessa “crise produtiva do olhar”.
Em consonância com o dito, que a nossa relação com o objeto empírico, bem
como nossas tortuosas vias de apreensão dele, suscita a partir de 2007 por meio de
visita ao assentamento Andalucia, o qual naquele momento oferecia ( e ainda
oferece) uma perspectiva bastante interessante acerca de outros possíveis
caminhos para o cerrado, por meio do empreendimento das atividades do Centro de
Produção, Pesquisa e Capacitação de Cerrado- CEPPEC, uma vez que esse
oferecia um parâmetro diferenciado daquele vivenciado nos trabalhos de campo em
assentamentos rurais do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio da idéia de uma
“cerrado em pé”.
Adiante buscando apreender as contradições inerentes a esse recorte
empírico, que foi possível sugerir uma provocação acerca dos territórios da
governança por meio do profícuo debate proporcionado por Gómez (2006). Por
22
intermédio dessa primeira entrada de leitura crítica dos territórios da governança,
possibilitou-se o entrecruzamento da realidade local dos assentamentos de Nioaque,
com postulados que emergiam por meio das bibliografias experimentadas.
O olhar acerca do descrito recorte empírico, se estabelece também por meio
dos números da luta camponesa na região, tendo em vista que o número de
camponeses nos assentamentos de Nioaque representa acima de 47% da
população total do município, assim acompanhando a tendência demográfica na
divisão de populações rurais e urbanas, as quais apresentam o número de 7.334 e
7.057 habitantes respectivamente.
Frente a tais informações acerca da luta camponesa na descrita região, que
emerge a inquietação de estudar esse recorte empírico, à medida que Nioaque
assume o papel como um território legítimo do campesinato, portanto aparecendo
com grande destaque em Mato Grosso do Sul como o “eldorado” da reforma agrária.
A inquietação nasce exatamente pelo choque entre esses campos das
práticas/ discursos do desenvolvimento local por meio das políticas dos territórios da
cidadania e os limites e perspectivas do campesinato encontradas na região, em
uma relação divergente de matrizes de racionalidades.
Para a descrita empreitada, tendo em vista a importância dos clássicos da
questão agrária, muito mais pela possibilidade estabelecer um ponto de contato com
a realidade social contemporânea, bem como com o nosso recorte empírico, para
além de seu rótulo, buscou-se com o primeiro capítulo transitar pelas idéias de
autores Lênin (1995), Kaustky (1968) e Chayanov(1974), a fim de problematizar
acerca do papel do campesinato em suas várias espaços-temporalidades.
No mesmo sentido, procurou-se problematizar acerca do papel da renda da terra no
processo de exploração desse modo de vida/ classe social. Buscando entender a
especificidade da constituição do campesinato brasileiro, se problematizou a partir
das contribuições de Cardoso (2004), Guimarães (1968), Martins (1981a) e
Woortmann (2009).
Diante da problemática ambiental se que apresenta na contemporaneidade
buscou-se propiciar um debate que abarcasse a situação relacional do campesinato
frente aos recursos naturais, bem como sua especificidade de apropriação social da
natureza e os processos metabólicos com essa. Para tanto, autores inseridos na
23
temática sociedade- natureza como Alier (2011) e Leff (2009), bem como os
relacionados ao debate da agricultura praticada pelos camponeses frente aos
recursos naturais, como Toledo (2008), Mazzeto- Silva (2006) e Woortman (2009),
foram de suma importância para esse debate estruturante da ciência geográfica.
Na intenção de adentrar nesses conflitos de matrizes, buscou problematiza
acerca das várias teias escalares de desenvolvimento da Revolução Verde, como
importante revolução das relações de poder nas agriculturas mundiais. O foco
principal do segundo capítulo notabiliza pela análise da mudança das agriculturas
mundiais, bem como das narrativas e dos lugares que ecoam para imposição de
sentidos e noções para o mundo. Autores como Mignolo (2005), Quijano
(2005), Porto-Gonçalves (2006), se apresentaram com relevância importância nesse
debate de cunho epistêmico, bem como na leitura desses conflitos de matrizes de
racionalidades e os seus rebatimentos sobre as formas de produção dos saberes e
sua hierarquização. Adentrando no debate pós- colonial, torna-se possível um
entrecruzamento com o recorte empírico, à medida que esse nos mostra a condição
conflituosa de suas matrizes distintas de racionalidade na constituição do território.
Autores como Dagnino (2004) e Gómez (2006), esse último na leitura da
questão agrária, são de fundamental importância na desconstrução do
desenvolvimento, haja vista que chamam atenção para as mudanças de sentidos
dos conceitos/ noções, até então cruciais para a leitura social, inclusive fazendo
Dagnino (2004) admitir uma confluência perversa dos discursos orientados pelas
grandes instituições internacionais, no sentido de um deslocamento/ esvaziamento
político. O território enquanto um conceito constelação do espaço (HAESBAERT,
2010), o qual possui como condição sine qua non, o poder como núcleo epistêmico,
também se faz constituinte desse desvirtuamento dos sentidos nas várias escalas.
Seguindo a perspectiva apontada, prossegui-se o terceiro capítulo buscando
problematizar acerca do território e a sua fundamental importância para a leitura da
espacialidade do social. Nesse sentido, o descrito capítulo busca enveredar pela
relevância do território na questão agrária brasileira, bem como transitar pelas
tipologias que se erguem nas distintas propostas de desenvolvimento rural local. Ao
realizar um link com o sub-capítulo I.5, buscou-se analisar os principais processos
24
de edificação da questão agrária brasileira em direção da especificidade de Mato
Grosso do Sul.
Embora durante os capítulos anteriores optou-se pelo diálogo entre as leituras
teóricas e a realidade empírica local, no quarto capítulo emerge um esforço de
entendimento das situações que compõem o cotidiano dos assentamentos
participantes da pesquisa no município, portanto com maior peso de informações
coletadas em campo, assim buscando agregar obviamente os conflitos/ contradições
inerentes ao próprio processo de (re)criação camponesa na região, ao passo de
uma desconstrução que permeia o debate acerca dos Territórios da governança,
nesse caso o território da Reforma do MDA.
Para a descrita empreitada, foram escolhidos 4 assentamentos como foco da
pesquisa a saber; Andalucia, Areia, Boa Esperança e Palmeira, nos quais primou-se
pela apreensão da heterogeneidade tempo-espacial na implantação dos projetos, a
fim de se aproximar de uma leitura mais ampla das condicionantes em Nioaque-MS.
Diante da escolha de 4 do total de 9 assentamentos do município, foram realizadas
saídas de campos, com finalidade de apreender como se daria no cotidiano, as
contradições e problemáticas nos assentamentos pesquisados, haja vista a
singularidade local no processo de (re)criação camponesa. Nesse sentido, com a
utilização de questionários estruturados e semi-estruturados, foi possível verificar
questões fundamentais, bem com sua relação com uma escala maior de análise por
meio de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE.
Com grande riqueza para o processo de construção da pesquisa, se fez presente a
utilização de fontes orais, no sentido de permitir “o ecoar” das falas dos sujeitos da
luta, embora sabendo que esse se trata de um processo seletivo no qual o
pesquisador se pega como um “detentor do poder” em seu ato de direcionar a
pesquisa.
Quanto ao conteúdo amostral, optou-se pelo percentual de 30% do total de
lotes nos assentamentos (Quadro-01), no qual a seleção das famílias entrevistadas
se estabeleceu de forma aleatória.
assentamentos Total de famílias Famíliasentrevistadas
Área do assentamento (ha)
Andalúcia 166 50 4.815,1088Areias 63 19 1.601, 3085Boa Esperança 126 38 3.945,5065
25
Palmeira 112 34 4.172,7154Quadro 01- assentamentos pesquisadosFonte: INCRA, 2011.
A partir dos descritos procedimentos operacionais, a pesquisa caminhou no
sentido de apreender a luta cotidiana dos camponeses de Nioaque, portanto a
singularidade dessa região ligada à luta pela terra, como ensina o cancioneiro
popular Almir Sater ao descrever a região em “Serra de Maracajú”.
Acerca da caracterização da área, segundo dados da Empresa Brasileira de
Pesquisa de Solos- EMBRAPA (2007), o município estudado é caracterizado pelo
clima tropical seco e megatérmico (Aw), no qual se apresenta uma estação seca
definida segundo a classificação de Koppen. Nesse sentido, o município possui uma
precipitação média anual de 1.126mm. Com relação à sua formação litológica,
predomina as formações Botucatu e formação Aquidauana, os quais contribuem
para a formação de solos de textura arenosa (Neossolos).
Figura 02- Mato Grosso do Sul- Município de Nioaque
26
1- O LUGAR DO CAMPESINATO NAS DIFERENTES ESPAÇO-TEMPORALIDADES: O (RE)VISITAR CONCEITUAL
Na cultura grega, o camponês era um homem livre que praticavaa agricultura de forma orgulhosa e independente. O γεωργοϚ(gheorgos) grego representava o sublime. Em oposição, natradição romana o camponês era subordinado, uma condição quetem reflexo na atual palavra para os camponeses, contadini, quesignifica literalmente “os homens do senhor” – subordinados,maus, feios e incapazes de controlar o seu próprio destino. (Vander Ploeg, 2008).
Mas o camponês é, a um só tempo, um agente econômico e ocabeça de uma família. Sua propriedade tanto é uma unidadeeconômica como um lar. (Wolf, 1970).
Nas ciências humanas e sociais, despenderam muitos esforços, no sentido de
compreender a coreografia do campesinato e a lógica de funcionamento da unidade
econômica camponesa. Tudo isso, na mesma proporção das inquietudes e
polêmicas que cercam o referido conceito.
Nesse sentido, respeitando o binômio temporalidade/espacialidade das
sociedades, nas quais estão inseridas essas unidades analisadas por diversas áreas
da produção do conhecimento (como estrutura social, como uma economia, ou com
enfoque cultural), cada uma com os respectivos métodos e "lentes de aumento",
todavia que em alguns momentos se aproximam, pela necessidade de uma análise
integral que procure a compreensão da forma-conteúdo do sujeito camponês, por
vários caminhos de leituras, acerca das práticas desse modo de vida e/ou classe
incômoda, que tais estudos emergem complexos como bem retratou Shanin (1983).
Ao passo da densidade de estudos camponeses, também há abordagens, ora
fomentadas pela teoria neoclássica da economia, ora contribuições oriundas de
orientação marxista, que de fato transportaram os conceitos e categorias por vezes
de forma equivocada para a interpretação dessa organização econômica familiar,
nesse rumo enveredando pela via economicista, ou pela última concepção, que
tendia a não considerar essa classe como constituinte da estrutura social e/ou até
mesmo, enxergá-la como residual/efêmera, assim decretando sua validade histórica,
mormente no decorrer do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo.
27
Nesse caminho, cabe alguns esclarecimentos acerca do papel dos conceitos
e teorias, como lembra Porto-Gonçalves (2009)3. Ele indica que a questão central
que se coloca, diz respeito à relação da teoria com a realidade empírica, ou segundo
as palavras do autor de "quando a teoria não esquece o mundo". Tal reflexão curta,
porém evasiva, chama atenção para as implicações das teorias e
conceitos/categorias para a sociedade, uma vez que esses buscam legitimidade
para "dizer o que é o mundo", conforme os estatutos edificados historicamente pela
ciência moderna. Logo, institui-se como uma luta constante para a primazia dessa
leitura, as quais não estão livres (teorias e conceitos) das imbricações políticas.
Deste modo, não se trata apenas, dos pressupostos científicos e de todos os
roteiros e postulados, mas, sobretudo dos projetos vigentes, ou aqueles que se
procura instrumentalizar com os processos de ruptura com o modelo de sociedade
vigorante, como foi com a Revolução Russa e tantos outros processos nos
movimentos complexos e antagônicos das sociedades.
Acerca do papel dos conceitos, Haesbaert (2009) traz uma reflexão
elucidativa, a qual vale ser mencionada.
Ainda que não confundamos proposição conceitual, “razão epistemológica”,e objetivos políticos, “razão política”, consideramos fundamental apreocupação com as implicações políticas de nossos conceitos, numapráxis capaz de refletir constantemente sobre os conceitos a partir dasproblemáticas efetivas a que eles respondem também do próprio uso quedeles fazemos – ou que deles podemos fazer. (p.96).
Tal reflexão se apresenta com grande riqueza para o debate, uma vez que as
teorias/conceitos não são meras ferramentas de leitura do real e/ou representação
do mesmo. No entanto, ocupam posição de destaque com relação às implicações
políticas dos seus usos. Ainda nessa perspectiva, Haesbaert (2009), lembra que os
conceitos nunca são estanques, pois eles classificam e dividem claramente um
universo, advindo da empiria e/ou de cunho estritamente teórico. Com tais
indicativos, os conceitos estão sujeitos aos processos de ressignificação, assim se
metamorfoseando conforme o movimento do exercício do pensar e da sociedade.
Nesse direcionamento que o campesinato enquanto conceito elucidativo da
3 Idéia retirada do prefácio da edição brasileira do livro Ecologia, Capital e Cultura de Enrique Leff.
28
realidade empírica, mas nunca como “retrato fiel”, também está sujeito ao referido
processo.
1.1- A inquietude da classe camponesa nos clássicos da questão agrária
Realizadas as primeiras advertências acerca das tramas involucradas nas
teorias/conceitos, doravante cabe problematizar a partir das contribuições de
importantes teóricos da questão agrária. Nesse sentido, autores como Lênin (1982),
Kautsky (1968) e Chayanov (1974), se apresentam como essenciais para o debate,
nesse caso em consonância com o movimento da sociedade, não se configurando
como obras divorciadas dos tencionamentos da sociedade. Ora denunciando o
desaparecimento do campesinato, ora realizando estudos que procuraram apontar a
especificidade de reprodução da unidade econômica camponesa.
Apesar do indicativo já realizado a partir daquilo que Sevilla Guzmán & Molina
(2005), prefere classificar como marxismo ortodoxo agrário com as obras de Lênin
(1982) e Kautsky (1968) e do outro lado, com o singular legado chayanoviano4, vale
ressaltar as não menos importantes abordagens da classe camponesas orientadas
pelas correntes anarquistas e narodnista.
Ambas as maneiras de pensar os processos sócio-espaciais no campo,
denunciam no campesinato o caráter embrionário para a mudança social da Rússia
do século XIX, sobretudo por entenderem que a nação em questão, não
necessariamente haveria de passar pelo estágio do capitalismo, para então em
derradeiro chegar ao socialismo, ou como lembram Guzmán & Molina (2005), que
não haveria a necessidade de “descer ao inferno, para subir ao céu”.
O que tais correntes têm em comum, é o fato de enxergarem um potencial do
devir revolucionário no sistema organizativo da classe camponesa, haja vista que
essa se constituía como a maior parcela da população Russa do século XIX e inicio
do XX.
Com o narodnismo russo, procurava-se eleger outros caminhos possíveis
para a revolução, de uma forma que se preservasse as estruturas das comunidades
4 Apesar das várias acusações dos marxistas ortodoxos, os quais destacavam Chayanov como umpopulista, cabe destacá-lo de forma separada dessa corrente, à medida que este em seu prefácioprocura já realiza algumas advertências em relação ao equivoco de encaixá-lo neste viés.
29
camponesas, assim evitando o processo danoso da proletarização diante do modo
de produção capitalista. Nesse sentido, acreditava-se na possibilidade de mudança
societária, longe das premissas estabelecidas pela ortodoxia reinante na leitura dos
marxistas, os quais se impuseram por vezes ao estabelecer como algo universal os
escritos de Marx, ou mais exatamente a equivoca leitura de seu legado.
Destarte, que Sevilla Guzmán & Molina (2005) elucidam a partir de alguns
pontos estruturantes que parecem cruciais, para o entendimento da ortodoxia no
pensamento marxista. Tais pontos aludidos pelos autores supracitados, dizem
respeito à construção e/ou concepção de uma evolução unilinear da história,
sobretudo aquela vinculada ao desenvolvimento capitalista na Europa ocidental,
denotando assim, que as transformações operadas na agricultura, respondem
impreterivelmente às mudanças que se produzem na sociedade global,
conseguintemente:
Essas mudanças estão determinadas pelo crescimento das forçasprodutivas e a configuração do progresso como resultado, gerando formasde polarização social nas quais se produz um processo acumulativo deformas de exploração social. Assim, “a escravidão é a primeira forma deexploração, a forma própria do mundo antigo; é sucedida pela servidão, naIdade Média, e pelo trabalho assalariado nos tempos modernos. (p.50).
De certa forma, estes autores chamam a atenção para uma presumida
universalidade nos modos que sucedem cada tipo de sociedade, nos escritos de
Marx, os quais foram situados a partir de condições espaço – temporais específicas,
constructo da pujante expansão do capitalismo industrial e da consequente
espoliação da mão de obra da população urbana.
Nesse sentido, os narodnistas admitiam haver uma particularidade na
formação econômico-social da sociedade russa, uma vez que segundo indica
Abramovay (1998), o país prestes a viver uma revolução, possuía 82% de sua
população vivendo no campo, totalizando uma quantia de 17 milhões de
estabelecimentos rurais. Um exemplo da discrepância numérica dessa relação
campo-cidade gira em torno dos dados apresentados pelo autor, pois segundo este,
a população de Petrogrado passa de 2,3 milhões de habitantes em 1917 a 740 mil
em 1920, ao passo que a importante cidade de Moscou passa pela mesma
tendência demográfica.
30
Tais características se apresentam como fundamentais para o pensamento
narodnista, assim denotando o grande potencial revolucionário desde uma
perspectiva do campesinato, segundo essa corrente de pensamento. Deste modo, o
campo russo como arena política era potencialmente:
o lugar da preservação das tradições, da família, das raízes nacionais, daforça comunitária espontânea – em cujo poder transformador acredita amaioria dos revolucionários russos (mas não os bolcheviques,evidentemente) – daquilo que pode constituir a especificidade russa contraos ataques do pretenso universalismo ocidental. (ABRAMOVAY, 1998,p.71).
Adverte Sevilla-Gúzmán (2006), numa perspectiva plurilinear de história, que
não está demonstrado que os processos históricos de desenvolvimento econômico
necessitam passar de forma sequencial e taxonomicamente pelas mesmas etapas.
Logo, o campesinato enquanto uma forma econômica com suas especificidades
possui a própria contradição no seu existir no cenário do desenvolvimento das forças
produtivas, uma vez que alguns autores vão entendê-lo como uma forma não-
capitalista, ou numa perspectiva heterodoxa do marxismo, numa base não
tipicamente capitalista.
Conforme as premissas contidas no pensamento de Luxemburgo (1985) em
sua obra A Acumulação do capital, o capital seria responsável por gerar, a partir da
contradição, essas formas já elucidadas. Nesse sentido, se alude o papel das
unidades não- capitalistas no processo universal de acumulação capitalista.
Historicamente, a acumulação de capital é o processo de troca deelementos que se realiza entre os modos de produção capitalista e os não-capitalistas. Sem esses modos, a acumulação de capital não pode efetuar-se. [...] O que Marx adotou como hipótese de seu esquema deacumulação, corresponde, portanto, somente à tendência histórica eobjetiva do movimento acumulativo e ao respectivo resultado teórico final.O processo de acumulação tende sempre a substituir, onde quer que seja,a economia natural pela economia mercantil simples, e esta pelaeconomia capitalista, levando a produção capitalista – como único eexclusivo de produção – ao domínio absoluto em todos os países e ramosprodutivo. (1985, p.285).
No rumo do debate estabelecido por Luxemburgo (1985), acerca da
interpretação da fisiologia do capital, apreende-se a contradição inerente ao modo
31
de produção capitalista, uma vez que esse é capaz de reproduzir-se também a partir
de formas não tipicamente capitalistas.
Como lembra Fabrini & Marcos (2010), o sucesso e garantia da acumulação
primitiva e a (re) criação da burguesia, torna-se possível a partir da coexistência com
relações não-capitalistas de produção, o que de forma elementar, explicaria a
permanência do campesinato nos interstícios do capitalismo, atualmente
globalizado.
Acrescentaria exemplificar o fato da atual acumulação flexível5, a qual com
divisão territorial do trabalho se realiza por intermédio da exploração de unidades
familiares. Destarte, apesar da tendência massiva de substituição das formas não-
capitalistas, ainda assim, estas se tornam fundamentais para a retroalimentação do
capital nas suas múltiplas vias de acumulação.
Cabe relatar, que segundo Sevilla-Guzmán & Molina (2005), mesmo Karl
Marx, admitira a possibilidade de articulação entre os “modos de produção”, dentro
de uma mesma formação econômica.
E isso, sobretudo, se, como se depreende do prefácio da Contribuição àcrítica da Economia Política, Marx já se havia proposto, com anterioridade,não somente construir uma teoria geral do processo histórico [...], mastambém a possibilidade de existência “em todas as formas de sociedade” deuma determinada produção que indique a todas as outras suacorrespondente classe e influência”. Ou em outras palavras, a possibilidadede articulação entre vários modos de produção dentro de uma mesmaformação socioeconômica. (p.42).
Não se trata em conceber o campesinato de maneira maniqueísta, ou seja,
dentro de uma proposta socialista de sociedade, ou como portadora de um gene do
capitalismo e/ou como “um pequeno burguês”, mas sim apreendê-lo na sua inserção
contraditória no modo de produção vigente, que nesse momento que precedia o
processo revolucionário russo, tal classe poderia ser como elucidam as principais
ideias narodnistas, protagonista de uma proposta “revolucionária camponesa”, assim
transcorrendo um caminho diferente daquele debatido no esquema teórico do
5 Um grande exemplo atualmente dessa “fusão de formas”, reside a partir da análise da exploraçãodo trabalho familiar pelas grandes empresas de calçados nos países mais pobres da Ásia, onde paraa reprodução do capital, há a necessidade de formas não capitalistas para o sucesso dessareprodução a partir da acumulação flexível.
32
marxismo ortodoxo agrário, acerca do movimento da história (SEVILLA- GUZMÁN &
MOLINA, 2005),
Outra possível abordagem acerca do papel político do campesinato na
transformação social, figura a partir do enfoque anarquista, onde essa classe se
destacara pelo grande potencial de organização de outra estrutura social, capaz de
emergir a partir da preservação dos laços comunitários. Nesse sentido, a partir da
interpretação legítimos6 do preceito de igualdade, que segundo Fabrini & Marcos
(2010), se poderia gestar uma sociedade mais igualitária naquele período de alta
oxigenação do desenvolvimento das forças produtivas.
Tal pensamento parte da ideia de que se torna necessário eliminar qualquer
traço organizativo, que se baseassem nas hierarquias e/ou autoridade reguladora
externa centralizadora. Por conseguinte, o pensamento contido nessa corrente, era
de modo geral, de que os homens seriam regidos pela consciência, assim sendo
“capazes de desenvolverem suas humanidades”, o que em linhas gerais, indicaria
para a não necessidade dos códigos e normas, desenvolvidos na roupagem romana
e iluminista.
Com relação ao conteúdo da proposta anarquista, cabe destacar que
segundo aclaram Fabrini & Marcos (2010), apesar de existir uma confusão com
relação à interpretação dessa corrente, havia duas propostas distintas, as quais se
diferenciavam nos caminhos a serem percorridos para atingir as formas de produção
na agricultura, quais sejam as propostas; de produção coletiva e produção
comunitária.
A primeira corrente teria o objetivo da revolução na ótica anarquista, a qual
seria atingida por intermédio da organização espontânea do trabalho e da
propriedade coletiva das associações produtoras livremente organizadas e
federadas nas comunas e por meio da federação, também espontânea dessas
comunas (BAKUNIN apud FABRINI & MARCOS, 2010). Nesse sentido, o mote que
vai elencar o pensamento expresso por Bakunin “de cada um de acordo com as
suas possibilidades e cada um de acordo com o seu trabalho”, mostra que é pela
capacidade laboral, que se moldaria a construção de outra proposta de sociedade e
o seu devir histórico.
6 Aqui se procurou dar tal enfoque, a fim de diferenciar a ideia ilustradas dos preceitos do iluminismo,estruturados na revolução burguesa da França.
33
A diferença básica acerca das duas correntes denota-se pelo fato de que no
coletivismo de Bakunin, o trabalho era o fio condutor dessa organização, ou seja,
como elucidam Fabrini & Marcos (2010): “A terra pertencesse somente àqueles que
nela trabalhassem com os próprios braços”, enquanto a linha de pensamento
oriunda do comunismo anarquista de Kropotkin se fundava a partir das
“necessidades humanas” como principal norteador dessa corrente, não fazendo,
nesse sentido, distinção na quantidade de horas trabalhadas pelos camponeses
envolvidos nesse projeto de sociedade.
Outro ponto fundamental da proposta reside na análise da dimensão laboral
dessa, uma vez que o mote Kropotkiano propunha a quebra da distinção daquilo que
se entende entre trabalho distinto (intelectual) e trabalho simples (manual), dessa
forma agregando o acesso ao conhecimento e à ciência dos trabalhadores em sua
diversidade hierárquica. De uma forma geral, apesar das distinções e pontos de
contato das duas formas de pensar o anarquismo agrarista, de fato se fez a práxis
em alguns países do leste europeu com relativo sucesso em suas respectivas
experiências (FABRINI & MARCOS, 2010).
Destarte, em alguma medida, formas diferenciadas de organização agrícola
pipocaram pelo mundo, as quais em algum grau se aproximam das ideias
desenvolvidas pelos importantes intelectuais supracitados do anarquismo agrário.
Em termos comparativos, segundo Sevilla-Guzmán & Molina (2005), os
principais teóricos do populismo russo enxergavam no atraso econômico o motivo
que poderia permitir à Rússia tirar proveito dos progressos técnicos e econômicos
dos países centrais, assim diminuindo as etapas transitórias entre capitalismo e
socialismo. Do outro lado, Bakunin apreendeu o atraso desta sociedade, expresso
em miséria e dominação social como fator fundamental para o desencadeamento de
uma revolução social, a qual só seria plena com a destituição do Estado, portanto de
qualquer forma opressora de controle das comunidades.
1.2- O lugar do campesinato no marxismo ortodoxo agrário
Como já explanado sobre o papel das teorias e conceitos, cabe salientar,
mesmo que de forma simplificada, porém não menos importante, o papel
fundamental desses no binômio espaço-tempo. Nesse sentido, que o marxismo
34
enquanto corrente teórico-filosófica, se insere em múltiplas teias, muitas vezes de
caráter mutante, na qual busca apreender sobre os homens de carne, osso e as
lutas de classes no interior da sociedade capitalista.
Apesar das diferenças entre os vários entendimentos/correlações do
pensamento marxista, aqui entendido entre os pensamentos ortodoxo e heterodoxo,
ainda assim se compreende como fundamental ponto central, a relação capital-
trabalho. Entendendo a relação metabólica do capital na contemporaneidade, pode-
se apontar para uma perspectiva de pensar o sistema capitalista como um sistema
munido de plasticidade, capaz de agregar outras formas conforme problematizado
com Luxemburgo (1985).
Nesse momento, o que mais interessa não é traçar uma “genealogia” do
pensamento marxista, uma vez que tal tarefa, além de pretensiosa, não seria
contemplada com êxito. Entretanto, pensar em quais momentos e em quais posições
a classe camponesa é proposta em diferentes períodos na constituição da
sociedade capitalista.
Antes mesmo de pensar nos debates fomentados pelos dois principais
teóricos, Kautsky e Lênin, reconhecidos por muitos como precursores do
pensamento marxista-ortodoxo-agrário (MOLINA & SEVILLA-GUZMÁN, 2005), cabe
ressaltar a importância do próprio Marx nos seus vários momentos, mesmo que esse
não tenha dado tanta visibilidade ao campesinato em suas obras. Fato esse que se
explica por sua vivência numa Europa em plena dinâmica urbano-industrial do
desenvolvimento das forças produtivas, cuja população já não era entendida a partir
das relações com o campo. Todavia, caracterizada pela exploração da força de
trabalho na pujança fabril nas grandes cidades europeias do século XIX.
Portanto, constituindo sua construção teórica numa relação tempo-espaço e
epistemológica muito específica, nesse caso nas cidades industrializadas da
Inglaterra. Assim produzindo um discurso muito bem localizado no seu tempo-
espaço, o que não se deve negligenciar.
Realizadas as pequenas considerações, apesar da afirmação do não
protagonismo camponês nos escritos de Marx, vale salientar que o teórico ao
discutir seu escrito intitulado “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, no qual ele elenca
sobre a formação da sociedade francesa, sobretudo pós-processo revolucionário
35
burguês, realiza-o num recorte temporal específico, à medida que faz sua análise
diante de um campesinato enfraquecido, o que não significa uma lei geral para esta
classe. Nesse sentido, Marx traz no interior desse debate, a sucumbência do
campesinato francês enquanto classe:
A grande massa da nação francesa, é assim formada pela simples adiçãode grandezas homólogas, da mesma maneira que batatas em um sacoconstituem um saco de batatas. Na medida em que milhões de famíliascamponesas vivem em condições econômicas que as separam umas dasoutras, e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aosdas outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe.Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas umaligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre elescomunidade alguma, ligação nacional alguma, nem organização política,nessa exata medida não constituem uma classe. [...] Não podemrepresentar-se, têm que ser representados. Seu representante tem, aomesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles,como um poder governamental ilimitado que os protegem das demaisclasses e que alto lhes manda o sol ou a chuva. (p.54, 1984)
Como se verifica, o campesinato enquanto classe, pouco aparece, e/ou
quando o faz, essa é apresentada como portadora de uma inércia política, como se
não fosse capaz de definir sua própria (re) criação, conforme os escritos já expostos
de Marx (1984).
Outra característica basilar do pensamento marxista, diz respeito ao caráter
transitório atribuído a essa classe, ora como elucida Hegedüs (1984), se
ressignificando desde a formação econômico-social já desaparecida no Ocidente
com o feudalismo, mas que persiste no sistema capitalista, ou por outro lado num
caráter mutável, prestes a se constituir em uma das duas classes fundamentais do
capitalismo, quais sejam; operários e burgueses.
Outra fundamental característica com relação ao chamado campesinato “saco
de batatas” na França, analisado por Marx (1984[1858]), diz respeito à sua
contraditória aliança estabelecida com a burguesia revolucionária. De todo modo,
torna-se crucial estabelecer os pontos divergentes entre esse campesinato da
Europa ocidental e aquele originário da Rússia e de outras formações sociais . Tal
chave de leitura contribui no avanço do debate, uma vez que tende a escapar do
sistema eurocêntrico em que muitas vezes se operou/opera os vários vetores da
teoria marxista, por meio de suas inúmeras roupagens.
36
O século XX surge como uma seminal resposta àqueles que renegaram o
campesinato como sujeito do devir da história, dando-lhe uma característica
efêmera/inerte no desenvolvimento cada vez mais voraz das forças produtivas do
sistema capitalista. Nesse sentido, como destaca Wolf (1984), os camponeses se
apresentam como importantes protagonistas das grandes insurreições/guerras, entre
as quais vale mencionar no México de 1912 a 1920, da Rússia de 1917 a 1920, da
China de 1939 a 1949, de Cuba de 1956 a 1958, Argélia de 1954 a 1962 e do Vietnã
em 1969, sendo essa última a insurreição que mais chamou a atenção de Wolf, uma
vez que era um “conflito entre desiguais”, tamanho era a distância tecnológica que
mantinha esses e as tropas estadunidenses.
Cabe salientar, que segundo Almeida (2004), o centro das preocupações de
Wolf eram, na verdade, aqueles movimentos de insurreição, os quais culminaram
nas grandes mudanças do século XX, como Revolução Russa, Chinesa e o grande
afrontamento aos Estados Unidos no Vietnã.
Nesse caminho, para o renomado antropólogo, as pequenas insurreições não
vitoriosas, não teriam um conteúdo expressivo na configuração do campesinato
como sujeito político e responsável pelo devir da história. Ao contrário da
problematização de Wolf, acredita-se, como fundamentais as varias estratégias de
resistência, haja vista que essas aparecem como componentes importantes dos
vários movimentos de questionamentos das hegemonias. Logo movimentos, como o
Contestado e Canudos, com as suas especificidades, figuram também como formas
políticas de luta pelo direito de ser e existir, conforme os anseios desses grupos
historicamente subalternizados.
Importante dizer, nesse rumo que as lutas se dão também, no direito de se
constituir outros significados para o mundo. Logo, apesar das diferentes instâncias,
a mística e as ocupações de terras hoje fazem parte da mesma luta travada no
interior da sociedade capitalista, portanto denotando a inseparabilidade da
materialidade e imaterialidade do mundo.
Poder-se-ia elencar também, as formas cotidianas de resistência desses
grupos, conforme elucida Scott (2000), pois como essas se colocam por muitas
vezes como um discurso oculto, invisibilizadas pela história dos vencedores, assim
perde-se a dimensão desses meandros sutis da resistência. Destarte, autores como
37
Scott (2000) e Thompsom (1971), trazem à luz da reflexão, a contradição existencial
das economias morais, inseridas em um cenário cada vez mais ligado à realização
da mercadoria e da acumulação capitalista.
Tais autores, nas suas respectivas formas diferenciadas de pensar, trazem à
tona elementos e chaves de leituras fundamentais para o entendimento do
campesinato como sujeito histórico-político, ao mesmo passo que concebem a
história como uma construção plurinear, ou melhor, em uma forma espiralada,
antagônica à renegada posição linear da história, atribuída a esses sujeitos pelos
ortodoxos e/ou mesmo pelos economistas neoclássicos.
O breve destaque elencado partindo da fundamental contribuição de Marx, se
faz necessária à medida que seus ulteriores vão protagonizar grandes debates,
sobretudo procurando problematizar a partir da leitura do desenvolvimento das
forças produtivas e consequente desenvolvimento do capitalismo no campo.
Outra fundamental advertência se faz necessária acerca da visão de Marx
sobre a classe camponesa; pois se deve pensar em linhas gerais, de qual Marx, em
determinada relação espaço-tempo, se está falando? Tal perspectiva contribui no
sentido de não negligenciar acerca da “sensibilidade sociológica”, a qual fizera Marx
já no final de sua vida, enxergar as potencialidades emancipatórias do Mir Russo,
fato que se deu a partir de trocas de cartas com alguns “populistas”.
Nesse mesmo viés, que Molina & Sevilla - Guzmán (2005) alegam que há
algumas lacunas, ainda não contempladas na obra marxiana, sobretudo no último
volume de O Capital, visto que no ápice do desafio de leitura de outros fenômenos
sociais como a Rússia, lhe ocorreu a morte.
Feitas as ressalvas relativas ao papel do marxismo e propriamente de Marx
na sua relação tempo-espaço no que concerne ao desenvolvimento do capitalismo
no campo, sucessivamente o papel do campesinato enquanto classe social,
importante se faz nesse momento explanar no sentido de buscar apreender quais
eram as preocupações, sobretudo daqueles autores, os quais comumente nos
estudos agrários, aqui denominados de Marxistas Ortodoxos Agrários (MOLINA &
SEVILLA-GUZMÁN, 2005). Nesse sentido, autores como Lênin (1982) e Kautsky
(1968), são de suma necessidade para a apreensão dos fenômenos sociais, com
epicentro nas lutas de classes no campo.
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Importante se faz mencionar o fato de que os conceitos/ teorias (des)
construídos por esses importantes intelectuais, assim como supra discutidos, vão
configurar como fundamental mola propulsora para o debate político no inicio do
século XX nos países de origem dos autores. Destarte, por mais que o conceito não
seja uma representação fiel dos “nós e tramas” do mundo, está sobrecarregado de
intencionalidades e perspectivas políticas, as quais em algum grau refletem os
conflitos inerentes ao devir societário.
A partir dessa correlação já estabelecida do papel dos conceitos, vale
salientar a importância dos grandes clássicos da questão agrária, sobretudo aqueles
orientados pela corrente ortodoxa do marxismo, os quais historicamente renegaram
o campesinato enquanto classe portadora do devir histórico revolucionário.
Emblemática se apresenta a obra “O desenvolvimento do Capitalismo na
Rússia” de Vladimir Llitch Lenin. pois segundo a ideia central do grande teórico da
revolução Russa, era de que, para a transformação social, a sociedade Russa
haveria de passar pelo estágio do capitalismo a caminho do acirramento das
contradições, para depois promover a revolução. Nesse bojo, que o campesinato,
enquanto elemento conceitual e sujeito(s) foi renegado ao desaparecimento por
meio da teoria de diferenciação social, sendo classificado como “residual” e efêmero
para o projeto de sociedade ansiado naquele momento pelo movimento bolchevique.
Para tanto, sobretudo com o enfoque no desenvolvimento do mercado
interno, Lênin parte basicamente da ideia de que, no decorrer do desenvolvimento
das forças produtivas na Rússia, haveria uma diferenciação social entre os
camponeses, mormente entre aqueles ricos (burguesia camponesa) e os pobres,
assim culminando como um movimento inexorável em direção às duas classes
fundamentais do capitalismo – burguesia e proletariado.
Tal afirmação a respeito dessa inevitável desintegração do campesinato russo
foi fomentada por meio de um minucioso estudo dos dados estatísticos dos
zemstvos, com os quais Lênin se depara em algumas províncias, com
arrendamentos de terras dos camponeses pobres para os ricos. Outros dados
marcadamente importantes para as fundamentações do autor se referem ao número
expressivo de camponeses trabalhando em terras de outrem, uma vez que segundo
a concepção deste, tal medida denota a incapacidade de permanência do
39
campesinato, o qual por meio do trabalho acessório se configuraria como um
“proletariado rural” a caminho da ruína.
Na tentativa de introdução de conceitos e categorias próprias do marxismo
europeu, que Lênin inicia sua obra de forma áspera, ao procurar desconstruir os
estudos dos chamados economistas populistas. Nesse sentido, discorre sobre a
teoria populista da impossibilidade da realização da mais-valia.
Em certa medida, Lênin (1982), ao analisar os processos de arredamentos de
terras pelos camponeses considerados mais estruturados, assim culminando numa
diferenciação social, o autor tinha relativa razão ao teorizar a partir desse processo
de desintegração. Entretanto, o colocou como uma lei inexorável do
desenvolvimento do capitalismo no campo, não admitindo a contradição como
condição processual para a permanência desta classe social.
Destarte se apreende nesse exemplo emblemático, especialmente acerca da
teoria marxista-leninista, que não há como fazer uma dissociação entre os conceitos
e o real-concreto-político. Nesse caso em específico, a construção conceitual e de
categorias da prática, tiveram papel crucial no tratamento da classe camponesa na
sociedade russa, seja por meio do “encurralamento” dos camponeses pelas
formações das granjas estatais e/ou a verdadeira violência empreendida contra
outros movimentos intelectuais, que procuraram pensar a especificidade da unidade
familiar camponesa, mormente com o Estado Stalinista.
Outra seminal contribuição para os estudos agrários, visando apreender os
mecanismos de desenvolvimento do capitalismo na agricultura, foi o legado
desenvolvido por Karl Kautsky (1968), sobretudo com a obra “A Questão Agrária”, a
qual foi pensada a partir dos debates da social-democracia alemã. Nesse sentido,
verifica-se que Kaustky, diferentemente à postura de Lênin, procura entender a
condição camponesa inserida no desenvolvimento capitalista no campo, ao passo
que chama a atenção no prefácio à edição alemã, para os limites do marxismo
realizado a partir de referenciais eurocêntrico.
Engels, e sobretudo Marx, disseram com efeito coisas muito importantessobre fatos de ordem agrária, mas em regra geral só o fizeram emobservações acidentais ou em curtos artigos. Abrimos uma exceção para aparte da Renda territorial no terceiro volume de O Capital, mas ela não foiinteiramente concluída. Marx morreu sem ter terminado, nela nãoencontraríamos todos os esclarecimentos que buscamos hoje em dia. Sim,de acordo com o seu plano de trabalho, ele apenas trata da agricultura
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capitalista. Ora, o que mais nos ocupa atualmente, é o papel das formaspré-capitalistas e não capitalistas da agricultura no interior da sociedadecapitalista. (p.17, grifos nossos)
Desta maneira, mesmo que não seja de forma aprofundada, há na obra de
Kautsky uma preocupação referente à questão camponesa no desenvolvimento das
forças produtivas do capitalismo no campo. Nesse sentido, a condição dúplice de
detentor dos meios de produção e da mão de obra do campesinato, que desafia o
exercício intelectual desse importante pensador de meados do século XIX, logo se
configurando como importante resposta àqueles críticos de vertente socialista7.
Um dos aspectos que mais provocou intelectualmente Kautsky reside na
incógnita do caráter enigmático dos camponeses enquanto classe social e o seu
papel na construção do socialismo, uma vez que ora esses tinham os interesses
políticos em consonância com a burguesia, ora com o proletariado, assim criando
uma incerteza no que tange às lutas políticas pretendidas (ALMEIDA & PAULINO,
2000). Desta forma, em um processo contraditório, a permanência do campesinato
se consolidava no decorrer da história. Do outro lado, aquilo que se convencionou
como marxismo ortodoxo, o ponto de contato entre as obras de Lenin e Kaustky
reside na formação/transição em direção às duas classes fundamentais do
capitalismo, quais sejam, burguesia e proletariado.
A leitura depreciativa acerca da classe camponesa contida na obra deste
último, se daria por intermédio do avanço da indústria para as atividades do campo,
portanto no domínio industrial da agricultura. Fundamental se faz salientar, que
como um teórico localizado em uma relação espaço-tempo muito específico,
Kaustsky vivia uma realidade diferente de Lênin. Como elucidam Goodman &
Wilkinson (2008), a agricultura alemã, ponto de leitura de Kaustky, passava por um
processo intenso de modernização, o que durou parte de um século, a qual teve
suas estruturas modificadas por conta da crise provocada pela consolidação de um
mercado mundial agrícola, assim sujeita à concorrência de produtos com preços
mais acessíveis do “novo mundo”.
7 Mesmo nesta corrente, a qual estamos classificando como ortodoxa, havia muitas contradiçõesquanto ao caminho de mudança da sociedade. Tais situações ficam evidenciadas sobretudo emreuniões da Segunda internacional e nos escritos de Lênin intitulado “A revolução proletária e orenegado Kautsky de Novembro de 1918.
41
Em linhas gerais, apesar do reconhecimento de outras classes sociais em
curso, para esse esquema teórico admitido por Kautsky, segundo este haveria
apenas dois caminhos possíveis para a formação das classes, o qual indicaria para
as classes fundamentais do capitalismo rumo ao socialismo como já explanado. Tal
fato em grande medida se constituiria a partir de referenciais de análise dos
processos de desestruturação da indústria doméstica no período pré-revolução
industrial.
Segundo Almeida & Paulino (2000), um dos elementos que levou Kautsky a
supor a inexorável proletarização dos camponeses, diz respeito à quebra da
complementaridade entre essa indústria doméstica e a agricultura stritus sensus,
processo desencadeado pelo desenvolvimento da grande indústria, assim havendo
maior inserção do campesinato no mercado de consumo e de trabalho urbano-
industrial, para o último designado como trabalho acessório. Como frisa Sevilla-
Guzmán (1990):
Kautsky realiza su análisis en base a resaltar el enfretamiento que genera eldesarrollo del capitalismo entre el campo y ciudad; a quiebra de la industriarural tras la generación de <<necesidades>> mediante el nuevo sistemacomunicacional, que logra << subordinar en este proceso a toda lapoblación campesina>> haciendo imprescindible el uso de dinero para suseconomias. (p.212)
Segundo Molina & Sevilla-Guzmán (2005), outro ponto marcante do
pensamento ortodoxo, especialmente na problematização de Kautsky, é aquele que
parte da ideia acerca da centralização/concentração como processos binários
necessários ao capitalismo industrial, os quais tendem a desagregar e eliminar o
campesinato da agricultura, haja vista que esse seria incapaz de respostas diante
aos progressos técnicos, portanto de incorporá-los em seu cotidiano laboral.
Essa superioridade técnica dos grandes estabelecimentos rurais incorporados
ao processo industrial, constituiria como principio mister para a Revolução Socialista,
já que a transformação inexorável dos camponeses em proletariados, o que
segundo a concepção da ortodoxia marxista, tal fato contribuiria para a formação de
uma consciência de classe, destarte com protagonismo do operariado.
Operários [...], além de inteligentes, eis a condição indispensável para umagrande exploração racional. [...] O movimento operário, elevando o nível
42
moral e econômico do proletariado agrícola, combatendo a barbáriecamponesa, criará – e é esta a sua tarefa – a condição básica para agrande empresa agrícola racional. Ao mesmo tempo, fará desaparecer umdos últimos pilares da pequena exploração” (Kautsky, 1980, p.135).
A visão altamente depreciativa de Kautsky, naquele momento, não o fez
perceber até por conta dos indicativos da relação metabólica do sistema capitalista
de sua época, o quão o campesinato foi capaz de resistir às crises inerentes ao
sistema e se adaptar, numa espécie de “flexibilidade histórica”. Nesse rumo, que o
autor não envereda pela possibilidade de se pensar em espaços vazios do “capital”,
como forma de articulação/coexistência de várias formas, conforme elucidam Molina
& Sevilla-Guzmán (2005) a partir do pensamento heterodoxo de Rosa Luxemburgo.
Na atualidade, a relação do campesinato com o capital tem sido no limite
permeado pelas contradições, as quais se estabelecem pela própria incapacidade
do controle total do capital nos processos de produção na agricultura, o que em
última instância, se coloca como um binômio entre subordinação-resistência por
parte do campesinato em sua relação com os grandes impérios, conforme vem
pontuando Ploeg (2008), Oliveira (2007) e Martins (1981), sendo esses últimos, de
suma importância para o debate a partir da subordinação da renda camponesa ao
capital.
Ao fazermos as críticas aos escritos de Kautsky, mormente ao que se refere
ao processo de deterioração social do campesinato, por meio do advento da
expansão industrial e seus domínios técnicos na agricultura, por outro lado, poder-
se-ia admitir a fundamental importância de sua obra na atualidade, principalmente
quando foca-se nas mudanças nas relações/subordinação de sujeição da renda, por
intermédio da Revolução Verde, e recentemente pelos domínios das biotecnologias
pelas grandes empresas mundializadas de insumos e transgenia.
O que está em jogo com essa agricultura de alta aplicação de capital na
verdade, é o poderio de controle dos processos produtivos na agricultura, aos
aproximá-los à precisão industrial no domínio da natureza.
Como já aclarado, apesar da questão teorizada, a qual se denominou outrora
como “espaços vazios” do capital, a provocação intelectual de Kautsky ainda se faz
válida em algumas esferas da agricultura, uma vez que constantemente os ditos
impérios (PLOEG, 2008), buscam um maior controle dessas atividades, seja por
43
meio do controle das sementes cada vez mais manipuladas pela transgenia e/ou até
mesmo pelos pacotes técnicos ou ainda no controle de várias instâncias da
produção.
Contudo, não se pode negligenciar acerca da atualidade do pensamento
deste importante intelectual da social-democracia alemã do século XIX sobre o
poderio cada vez maior das indústrias, as quais cada vez mais operam hoje em uma
perspectiva multiescalar e multiterritorial.
1.3- A especificidade da unidade familiar camponesa: o entendimento daeconomia doméstica a partir do legado chaynoviano
Conforme o já relatado sobre as obras edificadas de Lênin (1982) e Kautsky
(1968), ambas com suas primeiras versões publicadas em 1989, a obra de
Alexander Chayanov se configura como um trabalho que marca uma efervescência
intelectual, sobretudo caracterizado pela predominância dos camponeses em uma
sociedade que ainda não vivia a pujança de aspectos urbanos- industriais. Nesse
direcionamento, a obra de Chayanov procura apreender como se gesta essa
economia estranha aos pressupostos de leitura do marxismo e da economia
clássica.
Ao fazê-lo, o autor no seu enveredar metodológico, desconstrói algumas
categorias de análises muito próprias do marxismo ocidental, uma vez que enfatiza
uma racionalidade econômica específica que rege a lógica da unidade familiar
camponesa, na qual se torna inviável a interpretação, por meio de categorias até
então amplamente disseminadas pelas matrizes de pensamentos já apontadas.
Destarte, entende-se que há uma forma-conteúdo, a qual permeia o
comportamento econômico do campesinato, que escapa à tradicional analítica da
economia. Tais preceitos logram, desde o pensamento de que essas unidades
familiares camponesas se configuram como economias não tipicamente capitalistas,
haja vista que estas não possuem como norteador o lucro ou a mais-valia como
elementos mediadores na sua constituição como modo de vida/classe social.
A condição dúplice do campesinato como portador dos meios de produção –
com a posse da terra e como dono da força de trabalho com a autoexploração do
trabalho familiar –, tem historicamente incomodado a intelectualidade, sobretudo
44
aquela ligada aos pressupostos marxistas, chegando a admitir em certa medida, que
na economia camponesa haveria uma tendência “pequeno burguesa”, tendo em
vista que esses possuem os meios de produção, portanto a potencialidade de
reprodução do capital e possível potencialidade de exploração do trabalho de
outrem.
A esses intelectuais, fica o ranço conflituoso no que rege as categorias
contábeis supracitadas, uma vez que transcende a incompreensão acerca do caráter
da exploração camponesa. Haja vista que apesar dessa deter a terra como meio de
produção, sua relação com essa se configura pela expressa fórmula M D M, ou seja,
pela produção de mercadorias e posterior venda para a aquisição de itens para o
seu uso, os quais não são produzidos na unidade familiar camponesa.
Diferentemente do burguês, o qual empreende seu dinheiro na fabricação de
mercadoria, para depois por meio da exploração de trabalho excedente de outrem
via mais-valia, auferir lucro no processo final de circulação, processo o qual se
caracteriza pela lógica contábil; D M D.
No outro extremo, tendo em vista o processo de realização da mais-valia
como ponto cume do conflito capital x trabalho, por conseguinte como momento da
exploração da mão de obra de outrem, o eixo fundamental do debate reside nas
formas, as quais se desenham na exploração do campesinato pelo capital, uma vez
que os esquemas teóricos predominantes já mencionados, por meio da categoria
contábil da mais-valia atribuída ao operariado, não têm dado respostas coesas
acerca da relação do campesinato com o capital.
. Dentro dessa dúplice condição do campesinato – cuja estrutura interna se
desenvolve como preocupação central analítica – Chayanov procura apreender por
intermédio da teoria do balanço consumo-trabalho como se dariam as vias de uma
possível crise da economia de âmbito familiar, conforme expõe Archetti (1974) ao
apresentar a obra desse importante intelectual russo em edição na língua
espanhola.Su teoría del balance entre trabajo y consumo depende, además de losaspectos específicamente demográficos, de otros numerosos factores.Especialmente porque el punto de partida es el de uma economiacampesina basicamente mercantil. Em la tradición del pensamento marxistala influencia del sistema econômico global aparece como más relevantepara explicar las fuerzas que se oponen a la reproducción de toda economiamercantil simples. ( p.19)
45
De modo geral, Chayanov buscou apreender por quais caminhos, o
campesinato poderia se constituir como uma forma social diferenciada, diante das
suas classes fundamentais do capitalismo. Cabe salientar, que as análises
propostas por esse estudioso, se consolidam a partir da sua ampla experiência por
meio de visitas a campo, assim acompanhando os processos de mudanças do Mir,
ao lado do campesinato.
Ao contrário da teoria diferenciação social propalada por Lênin ao analisar os
processos de assalariamento dos camponeses pobres, em Chayanov a
possibilidade de crise adviria pela diferenciação demográfica, ou seja, a relação de
equilíbrio entre “bocas e braços”(balanço trabalho-consumo), uma vez que havendo
um consumo maior que a disponibilidade daqueles que possuem a força de trabalho,
pode-se erigir uma importante via para uma desestruturação da unidade familiar
camponesa. Com relação à desestruturação, cabe relatar na atualidade, que tal
desequilíbrio pode ser encontrado na realidade empírica do campesinato, sobretudo
naqueles casos, onde camponeses já adquiriam uma idade elevada para a
realização dos trabalhos no sítio, ou naqueles onde o progenitor se configura como a
única força de trabalho disponível, por conseguinte, na mirada chayanoviana, os
filhos pequenos e em parte a esposa se constituiriam como elementos desse
desequilíbrio, mediado pela penosidade do trabalho.
Outro elemento, o qual denota esse caráter do desequilíbrio, diz respeito às
dimensões espaciais do lote e sua relação com a quantidade de pessoas, haja vista
que tais elementos podem se constituir como um obstáculo na unidade camponesa.
Em alguns casos na atualidade, por lado esse desequilíbrio tem contribuído
para o avanço da luta pela terra, mormente em áreas, as quais já possuem
importantes processos historicamente deflagrados de luta pela terra . Deste modo, a
própria situação na qual usualmente, se denotaria uma crise do campesinato, via
análise da diferenciação demográfica, tem culminado numa relação contraditória de
fortalecimento político do campesinato em direção às novas terras para a ampliação
da família e consequentemente para a sua recriação, conforme nos ensinam as falas
desse dos camponeses alocados na microrregião de Maracaju.
De vicentina, a gente veio pra cá, ficamos na Vila São Pedro [Dourados]acampados, eu nem lembro quanto tempo que foi, daí a gente veio para aPadroeira que era uma gleba provisória do governo, provisória que o povo
46
tá até hoje [risos] e de lá pra cá, a gente veio pra cá, pro acampamento, aíficamos 6 anos [...] moramos 25 anos no Padroeira, a gente imaginava queia pegar uma terra maior, só que lá só era 5 hectares né, aí viemos pracá [...] (M.A, assentada no assentamento Areias Nioaque-MS)8.
Nós viemos pra cá [Nioaque], no primeiro assentamento, acampemos aqui etivemos um ano e meio de luta, acampados na BRs aí. Aí essa luta foi muitodifícil pra nós. Lá na Padroeira primeiramente, o lote era muito“pequeninho”, era 4 hectares lá e nossa família era grande. Eram em cinco,cinco homens dentro de casa e aí nós fomos desmembrando. Foi três (sic)para o acampamento, os outros foram para a cidade e fiquemos nessa lutae de ano 2000 pra cá, fiquemos aqui e ganhamos essa luta aqui. [...] 4, 5hectares não dá, aqui é um pouco maior e já tamo constituindo outra família.(C.R, assentado do assentamento Boa Esperança-Nioaque-MS)9.
Minha história começou desde os meus pais, nos peguemos o lote lá naGuilhermina [assentamento], assentados, há 13 anos atrás, [...]. Lá no meupai, ficou pequeno, aí nos era em 10 [irmãos], só que aí foi casando e cadaum tomando seu rumo, agora tá lá só minha mãe com 21 hectares de terra.Ainda tenho um irmão que mora lá no Guilhermina mesmo, só que mora nolote do sogro. (O.B.O, assentada no assentamento Areias-Nioaque-MS)10.
A riqueza epistêmica das fontes orais, como forma de colocar em relevo os
discursos ocultos dos grupos historicamente subalternizados, se faz vital à medida
que aponta para condição indissociável dos conceitos/teoria com a dimensão dos
homens imersos na complexidade do mundo.
Nesse sentido, depreende-se a partir desse ponto de contato com
contemporaneidade, que há uma particularidade, a qual permeia a estrutura e a
lógica organizacional da unidade doméstica camponesa. Nesse rumo que os
atributos demográficos se revelam como basilares na composição e desestruturação
dessa unidade.
Ao fazer determinada assertiva, não se nega a possibilidade de que a crise da
unidade familiar camponesa possa ser efetivada pelos fatores externos, oriundos da
problemática social totalizante, como reflexo do desenvolvimento das forças
produtivas, como teorizaram os marxistas. Ao passo que não se pode negligenciar o
fato de que em alguns casos, como encontrado nas entrevistas supracitadas, esse
descompasso entre o número de habitantes e sua relação com o tamanho do lote,
8 Entrevista realizada em 25/07/20119 Entrevista realizada em 21/07/2011.10 Entrevista realizada em 27/07/2011.
47
não tem necessariamente significado o fim do campesinato ou/e sua proletarização,
todavia tem contribuído para a formação de um legitimo território do campesinato na
região estudada. Esse efeito contrário à desestruturação do sítio camponês, na
busca por novas terras pelas novas gerações de camponeses, portanto continuidade
da luta pode ser verificada por meio do gráfico- 02.
Gráfico 02- Filhos moradores em assentamentos.Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
Em consonância com as fontes orais, segundo dados coletados em campo,
um percentual de 39% dos entrevistados no assentamento Andalucia, revelaram
possuir filhos morando em assentamentos na condição de titulares dos lotes. No
assentamento Palmeira, 25% dos entrevistados, declararam ter algum filho morando
em assentamentos na descrita condição. Com um menor percentual, o que pode ser
explicado pela faixa etária dos entrevistados, no assentamento Boa Esperança,
destes camponeses, 17% apenas declarou ter algum filho como titular de lotes da
reforma agrária. Embora esses números mencionados, se apresentem em menor
intensidade, não deixam de ter um importante significado para a continuidade da luta
pela/na terra na região, fazendo dessa fração do espaço capitalista, um legítimo
território camponês, dado pelas suas singularidades como terra de trabalho.
Cumpre salientar, que para um capitalista, não há um limite para a produção,
uma vez que esse terá a tendência de sempre produzir, para a posteriori na
circulação, concretizar o lucro, assim se notabilizando pela maximização da
48
produção. A esse, apenas o mercado edificado pela relação de “oferta de consumo
com a oferta de produção”, será o fio condutor do controle e domínio da produção.
Do outro lado, Chayanov (1974) elucida que a racionalidade camponesa
opera a partir de outras bases, haja vista que esse tende a diminuir o ritmo do
trabalho, ao atingir como alude o autor, os ótimos de produção. Prontamente, o
norteador da produção camponesa, a otimização se apresenta como crucial para
que não haja uma superprodução e mão de obra ociosa.
Diante de tal questão, Shanin (1988) comenta acerca do pensamento
Chayanoviano, diante da lógica operativa do campesinato, ilustrando que:
Las explotaciones campesinas funcionan a menudo a tipos nominales debenefício negativos y sin embargo sobreviven, algo imposible para aexplotación agrária capitalista. La estrategia de producción y empleo queguía en muchos casos a numerosas explotaciones familiares es lamaximización de la renta y no la del beneficio o el producto marginal.(p.145).
Objetivando elencar sobre a diferenciação que se erige nas duas formas
distintas de exploração, Shanin (1988) chama atenção para o fato de que o
campesinato – como já salientado – se constituir a partir de uma racionalidade
específica, dessa maneira havendo uma tendência menor de dependência das
flutuações do mercado, ao reverso daquilo que ocorre com a exploração capitalista.
Diante do exposto, se daria uma espécie de “flexilidade histórica” do
campesinato nos processos de recriação camponesa por meio dos seus
mecanismos de reinvenção social no decorrer da história, conforme explanado.
Outro ponto relevante na obra de Chayanov, diz respeito ao trabalho externo
ao lote, pois enquanto para os intelectuais de orientação marxista (ortodoxos) esse
mecanismo poderia evidenciar um processo de desestruturação do campesinato por
intermédio da proletarização, para esse autor a referida questão se situaria em uma
lógica estratégica do campesinato para continuar se reproduzindo.
La familia campesina trata de cubrir sus necessidades de la manera másfácil y, por lo tanto, pondera los medios efectivos de produción y cualquierotro objeto al cual puede aplicarse su fuerza de trabajo, y la distribuye demanera tal que puedem aprovecharse todas las oportunidades que brindanuna remuneracion elevada. De esta manera, es frecuente que, al buscar laretribuición más alta por unidad domestica de trabajo, la familia campesinadeje sin utilizar la tierra y los medios de producción de que dispone si otras
49
formas de trabajo le proporcionan condiciones mas ventajosas.(Chayanov,1974, p.120).
Nesse sentido, o denominado trabalho acessório se configura como um
processo estratégico, pois visa complementar a renda camponesa, justamente para
que este possa dar continuidade ao seu modo de vida/classe social. Por
conseguinte, autores como Garcia Jr. (1979) e Martins (1986) irão problematizar
sobre os processos migratórios camponeses e sua relação com o trabalho externo
ao lote, e em muitos casos, com o trabalho na agricultura capitalista.
Mormente, Garcia Jr. (1979) em seu trabalho de pesquisa realizada no Estado
de Pernambuco, o camponês em alguns períodos do ano, precisa migrar de seu lote
para trabalhar nas usinas, havendo neste caso, uma relação de complementaridade
entre estes dois regimes distintos de propriedade, pois mesmo com essa
possibilidade de conversão do trabalho interno em trabalho acessório, o camponês
não fica privado da autoexploração em seu sítio, visto que o plantio dos gêneros
alimentícios de seu lote se daria no período de “entressafras” das grandes lavouras
de cana-de-açúcar.
Na obra de Chayanov, outro ponto crucial a ser destacado, notadamente em
relação ao campesinato, é sua inserção em uma proposta de desenvolvimento
nacional, como aclara Abramovay (1998). Apesar da teoria desse importante
intelectual ter sido elaborada de “baixo”, em uma mirada espacial acerca dos
interstícios da organização da unidade familiar camponesa, não se pode afirmar que
o autor tenha negligenciado o papel do campesinato em sua participação na
sociedade geral, pois nos últimos capítulos de sua obra, este procura pensar uma
alternativa de inserção da exploração familiar na economia nacional.
Nesse sentido, que se problematizava com base em uma proposta de
cooperativismo/integração vertical, na qual se diferenciava da proposta soviética
pela forma de implantação que justamente almejava-se preservar as formas de
organização já vivenciadas pelos camponeses. Tanto se destacou com consistência
as ideias de Chayanov sobre as formas de organização, que anos mais tarde, com o
ápice do Estado Stalinista, se instaurou uma verdadeira violência com a
coletivização forçada, por meio da integração horizontal da agricultura soviética,
assim comprovando os apontamentos de Chayanov.
50
De fato, a contribuição desse importante estudioso da escola para a análise
da organização e produção camponesa, ou da agronomia social como muitos
denominam, se apresenta de forma seminal, pois buscou romper com outras
orientações, que profetizavam os vários fatores de sucumbência do campesinato
pelos mais diversos caminhos constituídos pelo desenvolvimento das forças
produtivas do capitalismo.
Segundo Abramovay (1998), qualquer tentativa de enquadrá-lo em qualquer
corrente teórica, incorre-se em um equivoco, pois esse experimentou de muitas
leituras acerca dos fenômenos sociais efetivados no campo. Por conseguinte, poder-
se-ia dizer que a economia política constituída por Chayanov, se colocava em uma
negação à história universal, a qual por muito tempo esteve contida tanto no
pensamento neoclássico da economia, quanto no marxismo de cunho europeu, o
que torna esse pensador singular em sua forma de entendimento da forma-
conteúdo do campesinato.
1.4- O problema da renda terra no capitalismo
Ao se admitir que o processo de proletarização dos camponeses não se
constitui como uma regra inexorável ou ainda como processo hegemônico na
exploração capitalista sobre esses trabalhadores, como ocorre nos esquemas
teóricos marxistas (ortodoxos), estruturados na relação direta, via única do conflito
capital-trabalho, os quais se baseiam na exploração do trabalho excedente,
materializado na mais-valia, a categoria renda toma forma como uma fundamental
chave de leitura conceitual, na medida em que o domínio do solo, portanto o seu
monopólio oferece a possibilidade de seus possuidores de auferi-la de acordo com
as variáveis de disposição desse substrato tão importante para a reprodução social
das sociedades.
Nesse viés de investigação, segundo clarificam Amin & Vergopoulos (1977), o
fato das análises acerca do modo capitalista, majoritariamente se pautarem a partir
dos conflitos figurados pelas duas classes fundamentais do capitalismo, na
exploração do sobretrabalho e a realização do lucro, não permitiu o devido olhar
mais compromissado ao papel da renda da terra como elemento fundamental das
51
sociedades capitalistas, o que se incorre de forma equivocada, ao transpor
categorias típicas da analítica urbano-industrial para o capitalismo agrário.
Por outro lado, a renda enquanto categoria explicativa vem tomando
destaque até mesmo naqueles ambientes, onde a mais-valia se figura como
categoria indissociável dos processos de exploração, como no ambiente urbano-
industrial. Nesse sentido, que a possibilidade do capitalista de auferir renda,
sobretudo na contemporaneidade com o advento de grandes reestruturações do
espaço urbano de cidades mundiais, vem chamando a atenção de importantes
intelectuais que discorrem sobre a temática, como Harvey (2006) e na geografia
brasileira com Carlos (2011).
Cabe destacar que originalmente a renda não se estabelece estritamente na
emergência do modo capitalista de produção, mas que se insere em condições
históricas pré-capitalistas, assim propiciando a transição para o modus operandis
dominante. Logo, como conceito concreto e histórico, a renda adquire grande
importância nas sociedades capitalistas, haja vista que a terra é metamorfoseada
para a condição de mercadoria. Por conseguinte, esse processo pode ser descrito
conforme Smith apud Moreira (1995), como um:
Processo social e político que envolve a ruptura da estrutura hierárquica eremontada de deveres, obrigações, honra e lealdade, circunscrita àpropriedade feudal. As trajetórias constitutivas dos Estados absolutistasevidenciam, histórica e assincronicamente, a centralização do poder do rei ea desvinculação da propriedade de seus traços feudais, abrindo-lhe apossibilidade de adquirir forma mercantil, livre de quaisquer outros atributosque não os da condição de mercadoria (p.93).
A renda da terra ou fundiária no capitalismo adquire importante destaque,
diferente da renda pré-capitalista com o seu caráter de tributo pessoal, à medida que
o controle de parcelas do território permite a exploração não somente daqueles
camponeses que mantinham sua relação com o senhor feudal. Entretanto, esse
domínio torna-se possível também como um ônus para toda a sociedade como um
tributo social, regulado pelos proprietários monopolistas de terras.
Talvez, a renda da terra possa ser entendida como componente fundamental
da espinha dorsal da questão agrária brasileira, mesmo no “latifúndio moderno”
personificado pela agricultura capitalista moderna, onde por meio da renda, se
concretiza também uma das vias de exploração deste modelo. Por conseguinte, se
52
daria a continuidade do modelo colonial, o qual em um primeiro momento não fica
claro, devido à blindagem ideológica da produtividade do agronegócio, tão
disseminada na história presente.
Tamanha se configura a importância da renda da terra na
contemporaneidade, que essa categoria enquanto realidade empírica tem
influenciado até mesmo na reforma agrária (conceito questionável) de mercado
fomentado pelo Estado brasileiro, prostrada diante da elevação de preços das terras,
sobretudo em áreas de grande expansão do agro(hidro)negócio. Nesse sentido,
cabe ressaltar como exemplo dessa premissa capitalista, a microrregião de Três
Lagoas-MS, apenas em período de 5 anos, o solo obteve uma elevação em 298%
em seu preço, produto do crescente açambarcamento das terras na região.
Outro fator, o qual Amim & Vergopoulos (1977) apontam como preponderante
na exploração da renda da terra emerge por meio do mecanismo de aliança de
classes, uma vez que principalmente nos países da periferia do sistema capitalista,
esse processo se deu no sentido de açambarcar terras, principalmente unindo
capitalistas urbano-industriais e agraristas numa só imagem, conforme clarifica
Martins (1981).
Por outro lado, diferentemente da tipologia apresentada nos países da
periferia do sistema capitalista, com suas especificidades no que concerne a aliança
de classes, nos Estados Unidos poder-se-ia afirmar que a alta da renda na terra,
mormente nos estados do sul escravista, se configurou como um dos pilares do
processo que levou à Guerra Civil de 1861, haja vista que mesmo com o grande
poderio econômico dos grupos industriais, ainda assim a alta concentração de renda
fundiária dos agraristas escravistas se constituía como um grande empecilho para o
desenvolvimento das forças produtivas do capital industrial para essas áreas, além
da conquista de um mercado consumidor como já clarificado pela historiografia
corrente.
Embora a categoria renda não seja uma preocupação exclusivamente da
teoria marxista, assim sendo discutida desde os fisiocratas à Ricardo segundo
Moreira (1995), apesar de algumas confluências dos descritos autores, de que esta
existe antes mesmo do protagonismo do modo de produção capitalista. Com Marx
esta assume um caráter capitalista, à medida que esse pensador admite a luta de
53
classes nessa trama estabelecida a partir da possibilidade de alguns poucos terem o
direito de explorar a renda, por meio do monopólio da terra, a qual constituía nessa
nova mirada como equivalente de capital, ou seja, não somente como um meio de
produção fornecido pela natureza, mas também como mercadoria.
Apesar da asserção de que a terra no modo de produção capitalista se
configura como um meio de produção, não seria prudente afirmar que a ela seja
considerada como capital, haja vista que o capital como vislumbra Martins (1981), se
configura como o trabalho acumulado pelo capitalista, por intermédio de meios de
produção, os quais por sua vez, são produzidos pelo trabalho e não pelo capital. Do
outro lado, a terra se apresenta dotada de um caráter de bem natural, finito, a qual
não é passível de fabricação, como ocorrem com as mercadorias, produtos do
sobretrabalho da mais-valia. Acerca da questão, Martins (1981) enfatiza:
Não posso dizer a mesma coisa em relação à propriedade da terra. Aapropriação da terra não se dá num processo de trabalho, de exploração dotrabalho pelo capital. Portanto, nem a terra tem valor, no sentido de que nãoé materialização de trabalho humano, nem pode ter a sua apropriaçãolegitimada por um processo igual ao da produção capitalista. [...] Quandoalguém trabalha na terra, não é para produzir a terra, mas para produzir ofruto da terra. O fruto da terra pode ser produto do trabalho, mas a própriaterra não o é. (p.159-160).
Dentro das contradições do sistema capitalista, a renda se apresenta como
uma grande incógnita para o capital, uma vez que esse não é capaz de produzi-la,
enquanto um instrumento ou/e meio de produção. Nesse sentido, Martins (1981)
aponta para a existência de certa irracionalidade do capital em sua relação com a
renda, uma vez que o capitalista é forçado a pagar esse tributo a quem pertença
esse bem. Tal questão, logicamente em alguns casos, na América Latina e
especialmente no Brasil, a aliança de classes tratou logo de suprimir esse empecilho
exprimido pela renda territorial, via unificação entre as classes dos capitalistas e dos
proprietários de terras.
A terra enquanto ativo econômico, mesmo que o seu detentor não a coloque
no circuito da produção, esse proprietário estará apto a se apropriar de uma parte da
riqueza, ou dessa mais-valia social. A irracionalidade está no fato de que mesmo a
terra em alguns casos possuindo um caráter improdutivo, terá sua valorização no
mercado de terras, motivo pelo qual alguns proprietários dizem que suas terras
54
estão valorizando por intermédio da especulação. O mesmo não ocorre na indústria,
onde a valorização se realiza pelos processos de exploração do sobretrabalho, com
a realização do lucro no momento da circulação. “De outra forma, não há
valorização, senão pelo mecanismo, D M D”.
Outro ponto importante, até mesmo pelas características históricas de
concentração fundiária no Brasil, pode ser verificado pelo fato de que poder-se
afirmar que a concentração da propriedade da terra não se realiza como na
concentração do capital, situação a qual na indústria se daria pela maximização da
produção. Quando a terra é concentrada, ela não aumenta em nada a capacidade
de produção do trabalhador, assim ficando claro, o quanto se torna inócuo a
extração de mais-valia, ao passo que aumenta na realidade a potencialidade dos
proprietários de extração da mais-valia social. Isso explica de forma significativa, o
monopólio estabelecido historicamente no domínio territorial de terras no Brasil, na
imagem do “velho” latifúndio.
No mesmo passo, deve-se discorrer que a renda como categoria especial da
economia política, pode se manifestar de maneiras distintas conforme os atributos
da terra. Nesse sentido, Oliveira (2008) elucida a existência de 4 tipos de rendas, a
saber: renda pré-capitalista, renda de monopólio, renda absoluta e renda diferencial,
sendo essa última subdivida em duas categorias, diferencial I e diferencial II.
A renda pré-capitalista da terra, pode se realizar pelo excedente de produto,
ou seja, pela renda em trabalho, renda em produto e renda em dinheiro. Apesar de
sua funcionalidade estar ligada diretamente a sociedades ditas feudais/pré-
capitalistas, como uma contradição no sistema capitalista, nada impede que essa se
realize na contemporaneidade.
Por outro lado, a renda por monopólio se estabelece a partir das
particularidades da terra, na apropriação e monopolização de determinada
mercadoria produzida em algum lugar do globo dotado de qualidades únicas e
especiais, como na fabricação de vinho do Porto (OLIVEIRA, 2007).
Com relação às rendas diferenciais I e II, cabe salientar que respectivamente
se apresentam pela sua especificidade, sobretudo se configurando por meio da
fertilidade natural o solo, assim propiciando maior produtividade por área. Nesse
poder-se-ia dizer, que se trata mesmo de uma renda da natureza, uma vez que
55
outros recursos naturais, como a grande oferta de recursos hídricos característica,
podem apontar também para a renda diferencial I. Tal indicativo, sobretudo, pode-se
evidenciar ao observa-se a expansão cada vez mais crescente dos
agro(hidro)negócios em direção às principais bacias hidrográficas do Brasil. Na
renda diferencial II, ao contrário da primeira, torna-se possível por intermédio de
aplicação de capitais para melhorias no solo, só que por meios artificiais, assim
agregando maiores possibilidades do proprietário de auferir renda.
Já a renda absoluta de uma forma geral, segundo Oliveira (2007), resulta do
monopólio da terra em quaisquer situações, onde há a posse privada do solo, ao
passo da existência de um antagonismo de interesses entre os proprietários de
terras e com os da sociedade de um modo geral.
Nesse sentido, que esses grandes proprietários utilizam como equivalente de
capital, assim esperando pelas atividades mais viáveis economicamente, ou até
mesmo sem nada a fazer nesta terra. Nas duas situações indicadas, abre-se a
possibilidade deste capitalista de transferir esse importante ônus para a sociedade.
Tal fato, tem inclusive influenciado no mercado de alimentos em lugares com alta
renda, provinda das atividades da agricultura capitalista.
Realizadas algumas considerações do papel da renda territorial, nas suas
diferentes ocorrências, cabe problematizar acerca da permanência do campesinato
no modo de produção capitalista, haja vista como já elucidado, importante se faz
apreender as formas pelas quais se realiza o processo de exploração desta classe
na configuração atual do capitalismo, contudo como um processo
subordinação/sujeição da renda camponesa pelo capital.
Ploeg (2008) avança em sua obra acerca do campesinato e suas relações
com o capital mundializado, à medida que busca notabilizar a problemática, a partir
do entendimento da permanência do campesinato enquanto sujeito da história,
portanto como portador de resiliência na contemporaneidade. Por conseguinte, o
mesmo contribui para o debate acerca da penetração do capital no campo e suas
formas de subordinação da agricultura camponesa.
Tal questão em torno do campesinato nos escritos de Ploeg (2008) sugere um
insight acerca da sujeição da renda camponesa ao capital. Embora não contemple
uma perspectiva marxista de análise, ou até mesmo como elucida Paulino (2010),
56
sendo até mesmo refratário a essa, o estudioso holandês traz à tona um debate que
privilegia com certa proximidade de Martins (1996) e Oliveira (2007), a possibilidade
de coetaneidade de formas econômicas, o que à primeira vista se configura como
uma contradição do modo de produção capitalista. Nesta perspectiva, estaria o
camponês marcado pela ambivalência subordinação-resistência no seu enveredar
na história.
Segundo Martins (1981 a), a participação do campesinato se materializa pelas
vias de sujeição de sua renda, onde a forma mais emblemática hoje, da realização
dessa subordinação, se realizaria pelo processo de integração, na qual grandes
empresas por meio de estruturação das instalações nos lotes transferem a
penosidade de determinados tipos de produção, para a responsabilidade dos
camponeses, assim constituindo como ocorre na atualidade, com a produção da
sericicultura, as cadeiras do frango, do leite e tantas outras formas de sujeição da
renda da terra camponesa.
Ainda segundo Martins (1981a), ocorrem diferenças importantes nas formas
de sujeição da renda fundiária, haja vista que, em lugares onde a renda da terra se
encontra com alta concentração, o capital tende a contrair essas terras como forma
de extração/transferência de ônus para a sociedade. Do outro lado, em lugares onde
a renda da terra é baixa, como em locais de produção de gêneros alimentícios, o
capital não necessariamente compra as terras, mas procura estender seus
tentáculos/domínios propriamente no processo de compra dos produtos, assim se
instaurando processos correlatos à integração, conforme sobredito.
Outra chave de leitura de suma importância, a qual guarda similitudes com a
obra de Martins (1981a), é o debate fomentado por Oliveira (2007), pois este
situando o debate em uma perspectiva geográfica, evidencia os dois processos
descritos acima, desde os conceitos de monopolização do território pelo capital e
territorialização do capital respectivamente. Nesse sentido, ao empreender a leitura
a partir das espacialidades do capital, Oliveira (2007) permite desvendar acerca das
vias da exploração capitalista da renda camponesa, o que em última instancia,
chama atenção para o fato das grandes corporações do leite como a Nestlé e
Parmalat, conforme apontado no estudo de Ploeg (2008), não necessariamente
possuírem terras, ou em suma o que seriam os “meios de produção”, o gado leiteiro
57
para que se possa gesta o processo de lucro ou nesse caso, a subordinação da
renda de outrem.
Na descrita exemplificação se configura na perspectiva de Oliveira (2007),
como uma monopolização do território, uma vez que mesmo não havendo uma
territorialização de forma absoluta do capital, ainda este pode manter suas relações
de domínio, sem que haja uma expansão materializada no espaço.
No reverso, a territorialização do capital, se daria em lugares como já
clarificado por Martins (1981), com alta renda, os quais se caracterizam atualmente
no Brasil, comumente pelos empreendimentos capitalistas da soja, monocultivo do
eucalipto e da agroindústria da cana-de-açúcar. A referida territorialização do capital,
inclusive tem sido danosa para toda a sociedade, e até mesmo para alguns setores
do Estado, à medida que dificulta a aquisição de terras, por este último para destinar
à reforma agrária, pois mesmo terras que ainda não se encontram produzindo
próximas dessas áreas, também estarão sujeitas aos desmandos do monopólio
rentista na região.
A renda territorial, sobretudo na configuração elencada a partir da
subordinação camponesa na perspectiva contraditória do capital, oferece essa
leitura de continuidade do campesinato, inserido-o em uma trama de condição
ambivalente caracterizada pela subordinação-resistência, o que nos leva admitir o já
corroborado com Luxemburgo (1970) e Molina & Sevilla-Guzmán (2005), a
existência desses “espaços vazios” do capital, como forma de coexistência entre
diferentes.
Ao afirmarmos tais pressupostos, não se afirma ao mesmo passo, que essa
relação entre o campesinato e capital, não se dá sem conflitos, pois a história de
apropriação/expropriação da terra no Brasil tem mostrado o contrário por meio da
barbárie e violência, empreendidas contra os grupos historicamente subalternizados.
1.5. O caráter multifacetado da constituição do campesinato brasileiro
Em consonância com a condição de classe incompreendida e/ou incômoda
conforme alerta Shanin (1983) com a qual foi historicamente renegado o
campesinato, sobretudo nos períodos mais recentes do auge do desenvolvimento
das forças produtivas, no Brasil guardadas as singularidades locais, essa
58
classe/modo de vida também carrega esse ranço de incompreensão sociológica,
formatado pelos vários vetores da produção do conhecimento e da política. Dessa
forma, cerceando qualquer possibilidade de um devir “campesino”, questão a qual
historicamente tem sido contrariada, por meio das ações dos chamados novos
movimentos sociais na América Latina, com maior relevo, os de luta pela terra que
se erguem, nos “varadouros” do Brasil.
Mormente a referida polêmica acerca do debate, se dá em certa medida, pela
dificuldade de apreender uma mirada, que possa ofertar uma leitura para além do
estrito conflito capital-trabalho, outrora que tomou o mundo do pensar acadêmico e
político, tanto daqueles herdeiros do pensamento marxista, quanto no outro extremo
com o pensamento da economia neoclássica, conforme elencado na guisa
introdutória.
Outro fato, que em certa medida ajuda a apreender esse relativo
esquecimento do campesinato na formação sócio-espacial brasileira, reside a partir
do pensamento hegemônico acerca do papel da escravidão, como única forma
possível, ou suprema da relação de exploração nesse capitalismo, o qual já
começava a se destacar numa perspectiva multi-escalar.
Cardoso (2002), logra ao realizar sua leitura acerca das relações sociais
diferenciadas que se estabelecem na América, nesse sentido o importante
historiador oferta um interessante caminho e/ou até mesmo uma compreensão
desse campesinato, o qual em grande medida, se diferencia daquele campesinato
europeu ocidental, até pelas teias diferenciadas estabelecida em torno economia
açucareira.
Outro fato, o qual denota a riqueza historiográfica da obra de Cardoso (2002),
reside na possibilidade de um enveredar histórico, permeado pelo devir e na
tentativa de uma construção não linear do entendimento acerca das formas
econômicas contidas a partir do período do Brasil- Colônia. Destarte, o autor procura
romper com dicotomias e simplismos das leituras correntes acerca do sistema
escravocrata, bem como a relação capital-trabalho11, inserida nesse contexto.
11 Vale ressaltar, conforme discutido no debate sobre renda da terra, que essa sem si não se constitui comocapital, haja vista a impossibilidade de fabricação pelos homens, como o fazem com máquina. Por outro lado,essa oferta para os seus detentores a possibilidade de auferir renda por meio desta, bem como por meio destaproduzir. Nesse sentido, a terra configura como um equivalente de capital.
59
Nesse mesmo rumo, que o ponto central de sua importante obra, reside sob a
compreensão a partir da existência de uma espécie de “hibridismo social”, no qual
ora se pode definir como escravo, ora esses sujeitos partilhavam de características
camponesas, levando o autor em sua análise sugerir a existência de um
protocampesinato.
Negando qualquer leitura que se apóie na polarização das posições da
relação grande detentores de terras das plantation x escravos, Cardoso (2002)
admite haver uma complexidade embutida na formação do campesinato brasileiro,
assim como o teor heterogêneo desta classe-modo vida como na atualidade. Acerca
da definição do protocampesinato, Cardoso assinala;
Este último- e o termo protocampesinato se refere às atividades agrícolasrealizadas por escravos nas parcelas e no tempo para trabalhá-las,concedidos no interior das fazendas, e à eventual comercialização dosexcedentes obtidos- é o único aspecto das atividades camponesas sob oescravismo que nos vai ocupar. (CARDOSO, 2004, p.54-55).
Com a obra elencada, Cardoso (2004) traz uma importante contribuição
historiográfica acerca da formação brasileira, à medida que chama atenção a
necessidade de um olhar refinado acerca da heterogeneidade desses grupos
sociais, bem como a possibilidade desse hibridismo social. Portanto, contribui para a
desconstrução e desmistificação da colonização do novo mundo, destituindo a
relação escravidão- plantations, como únicos vetores/modelos das relações sociais
que se estabeleciam na colônia.
De modo geral, ao realizar um requintado levantamento acerca dos sistemas
escravistas da América, guardadas as especificidades dadas em distintas
localidades das Américas, Cardoso (2004), enfatiza a condição mister de escravo-
camponês, a qual se estabeleceu no interior do latifúndio, que era em certa medida
fundamental para a sobrevivência do latifúndio, numa relação de
complementaridade, embora assimétrica entre os grandes detentores de terras e
escravos por meio da produção alimentos, bem como no fomento de uma
microeconomia interna, muitas vezes negligenciada pelo hipnotismo da relação
mercantil entre Metrópole- Colônia que comumente acomete o debate.
A partir desse hibridismo de posições sociais, bem como pelo
estabelecimento daquilo que Cardoso designa como protocampesinato, que por
60
diferentes formas, se abre espaços para a chamada brecha camponesa. Poder-se-ia
afirmar a confluência de diversas leituras, quais defendem a formação do
campesinato brasileiro, como uma classe gestada no interior do latifúndio, portanto
na terra de outrem. Por outro lado, deve-se relativizar essa presumida liberdade,
quando se assevera a existência desse mosaico escravo-camponês, à medida que
tal fato se deve muito mais pela omissão dos detentores de terras com os custos
com a alimentação dos escravos, bem como roupas e outros utensílios necessários,
em detrimento a processos mais efetivos de resistência.
Embora nesse momento, não se constitua de fato um campesinato definido
pelo anseio político de entrada na terra, como expressão política de luta de classes,
por outro lado pode-se ao menos afirmar que se gestou a partir dessa brecha, a
possibilidade de uma classe questionadora, como o foi com as Ligas Camponesas e
os novos movimentos sociais em suas multiplicidades de condições/condicionantes.
Acerca dessa referida “marginalidade” das atividades ligadas à produção
alimentos no interior dos latifúndios, buscando apreender a importância na economia
interna dos sujeitos desse hibridismo social descrito, bem como por meio do
campesinato formado por outros sujeitos, prefere-se inserir a hipótese de uma
“inclusão precarizada” como vem ocorrendo hoje, embora em outros moldes distintos
daqueles de outrora.
O campesinato, enquanto categoria/conceito sociológico e político, como o
que ocorre na atualidade debate acerca dos paradigmas do campesinato x
agricultura familiar, emerge também na década de 1960, como importante vetor para
o debate político, bem como para a disputa de propostas ideológicas. Esse vigoroso
movimento de redescoberta do campesinato se deu em uma época muito peculiar, à
medida que a emergência do pensamento marxista tomava uma proporção jamais
conhecida no pensamento da esquerda brasileira. Destarte, o campesinato enquanto
parte dos pobres explorados do campo, emerge como importante alvo de diferentes
disputas políticas de vários setores da sociedade (vide capítulo 3).
Por outro lado, registra-se como emblemático o tratamento dado à questão
camponesa em especial, haja vista que a orientação política brasileira de esquerda,
herdou os mecanismos universalistas e dogmáticos do marxismo (aqui entendido
como ortodoxos), por meio da compreensão da condição polar das classes sociais
61
no modo de produção capitalista, fato polêmico nas diferentes correntes dentro do
partido comunista.
O campesinato, uma categoria esquecida, espúria, em processo dediferenciação social, em direção a uma das duas classes polares docapitalismo, era o sinônimo do atraso, da fragilidade política e dadependência; acrescia-se a essas fragilidades a noção da ineficiênciaeconômica, técnica, resultante do seu tradicionalismo e aversão ao risco.(WELCH et al, 2009, p.23).
Acerca do campesinato, houve tanto dissenso descrever essa classe/modo de
vida, quanto o número de falas que tentaram falar por essa. Nesse sentido, cabe
destacar que as posições colocadas ainda no pensamento europeu marxista acerca
do campesinato no estado elevado do desenvolvimento das forças produtivas, em
grande medida influenciaram com relativa competência os intelectuais brasileiros,
ocupados com a leitura da formação social brasileira, assim como a inserção do
campesinato nessa, em um período caracterizado pela urbanização tardia e
crescimento populacional nos grandes centros urbanos por meio das migrações
campo-cidade.
Com os antagonismos de posições acerca do campesinato nas bordas do
conflito capital x trabalho das classes fundamentais do capitalismo, que intelectuais
como Caio Prado Júnior (1979) e Alberto Passos Guimarães (1968), ambos
membros do Partido Comunista Brasileiro- PCB, estabelecem seus “territórios” na
produção conhecimento, mas para além dessa produção, emerge de fato, os
conceitos como componentes de ressignificação do mundo, não “desencarnados”
das questões políticas que permeavam as várias escalas de análise.
Embora não negligenciasse o campesinato como parcela fundamental da
formação da formação social brasileira, por outro lado Guimarães (1968) levantava
um posicionamento polêmico acerca do sistema escravocrata, à medida que
sustentava a ideia de um semi- feudalismo nas relações que se estabeleceram com
o regime das sesmarias, destarte notadamente a partir da mirada acerca da
constituição do latifúndio brasileiro por meio de uma matriz feudal. Outro plano de
fundo, o qual pode contribuir para o enveredar empreendido por Guimarães (1968),
evidencia-se a partir das relações sociais internas que se estabeleciam nas grandes
fazendas.
62
Logo, as condições ligadas à formação do campesinato brasileiro, como o
chamado morador e/ou agregado e sua ligação com os grandes proprietários, em
alguns momentos quase como em uma relação de complementaridade, em certa
medida, podem ter influenciado os escritos de Guimarães (1968) ao observar mais
intimamente, as dinâmicas sociais internas do latifúndio. Embora não tenha
despendido tanta atenção a essas dinâmicas internas, na relação assimétrica entre
relativa autonomia- dependência, desse campesinato em gestação, torna-se
possível em Guimarães (2009), apreender os caminhos pelos quais, se
desenvolveram a brecha camponesa fomentada por Cardoso (2002), embora o
primeiro não arrisque entrar no hibridismo social do protocampesinato.
Quando aqui e ali o fizeram, longe do núcleo principal das plantações e aseu derredor, eram, mais cedo ou mais tarde, expulsas com a dilatação doscultivos ou das criações dos grandes senhores. E se lhes concediampequenos tratos de terra para a agricultura necessária ao seu sustento, eracom a finalidade de mantê-las subjugadas, como mão-de-obra de reserva,dentro ou às proximidades dos latifúndios. (GUIMARÃES, 2009, p.45).
Conforme, já apontado por meio do rico debate fomentado por Cardoso
(2002), essa lógica interna oferecia uma grande dinamicidade das relações sociais
para além do binômio latifúndio- escravidão, se constituindo o próprio meio pelo
qual, o senhor de engenho se isentaria do ônus do pagamento e manutenção do
regime de trabalho escravocrata.
Por outro lado, Prado Júnior (1979) a partir de uma mirada mais ampla de
análise da formação do espaço agrário brasileiro, focando nas escalas de ampliação
das forças produtivas do capital, o autor consegue vislumbrar o caráter das
plantations bem como seu papel na trama econômica mundial. Portanto, ao contrário
daquilo que Guimarães (1968) aludia acerca da problemática da miséria e sua
relação com esses resquícios feudais, para Prado Júnior (1979), esse cenário era
ele mesmo, o próprio resultado do desenvolvimento pleno de um capitalismo sem
fronteiras.
Embora tenha logrado acerca da leitura sobre a questão agrária brasileira, por
outro lado ao perceber o aprofundamento das relações capitalistas como principal
plano de fundo da problemática no campo, herdando assim uma leitura ortodoxa do
marxismo, em Prado Júnior (1979), a figura do campesinato aparece como um setor
a mercê de qualquer possibilidade política de luta, nesse sentido figurando na leitura
63
do referido autor, um debate vinculado às duas classes fundamentais do capitalismo,
quais sejam; burguesia e proletariado. Tal situação ajuda apreender inclusive, o
papel do campesinato nessa redescoberta do conceito na década de 1960/70, à
medida que este estava sujeito aos várias disputas políticas, como se na condição
de sujeito, fosse incapaz da construção da possibilidade do devir, conforme
problematizado adiante.
Embora, no cenário das décadas de 1960/70, o campesinato brasileiro
emergisse como um importante sujeito político, vide exemplo por meio das ligas
camponesas, bem como tantas outras emergências populares pelo país, ainda sim,
o descrito levante não refletia uma solidez política capaz de romper com os
“oportunismos”, oriundos de todas as partes, na disputa política pelo camponesa, em
uma relação de cerceamento da condição de sujeito dessas populações, no
processo político da luta de classes.
Ao inverso de outras formações sociais, sobretudo nos casos dos campos
Russos e da porção ocidental europeia, ao campesinato brasileiro em sua
heterogeneidade, seu processo de reprodução social fundamentalmente foi possível
por meio de uma “espécie de maleabilidade social”, sob a qual no interior das
plantations (especialmente no Nordeste), bem como por meio da consolidação dos
“intrusos” na abertura das matas, para a formação das fazendas de gado na região
Centro-Oeste, foi possível um processo de gestação dessa classe esquecida
(QUEIROZ, 1963).
Ainda que essa classe/ modo de vida, se notabilize no Brasil pela sua
heterogeneidade, o plano de fundo que conflui suas condições sociais, reside na sua
emergência pelos flancos desse capitalismo rentista altamente ligado à terra, no qual
de forma contraditória, permitiu a reprodução, mesmo que de forma precarizada
desses sujeitos.
Como problematizado por Martins (1981a) e em certa medida em Cardoso
(2002), nesse processo de redescoberta do campesinato enquanto categoria
analítica e política, essa classe/ modo de vida, pode ser descrita pela sua relação
intima com terra, onde em contraste à empresa capitalista, prioriza-se pela
reprodução social da família, portanto sintetizados na tríade terra-trabalho-família.
Ao realizar a referida afirmação, não está negligenciando o fato de que os
64
camponeses estejam isolados dos sistemas micro e macroeconômicos, fato já
problematizado por Cardoso (2002) ao analisar a estrutura interna de funcionamento
do “protocampesinato” nas Plantation do Brasil Colônia, bem como também
envereda Ploeg (2008) na atualidade, por meio do debate sobre o campesinato e
sua relação com os grandes impérios alimentares.
Outro fato inclusive problematizado pela corrente agrária ortodoxa do
pensamento marxista, diz respeito ao mercado de terras, embora a “unidade
econômica camponesa” se caracterize pela fórmula M- C- M, em uma lógica de
reprodução social familiar, sem que o lucro se configure como ponto central, por
outro lado ao possuir a terra, essa está sujeita aos aparatos do capitalismo no
processo de obtenção da renda da terra. Longe de um abrupto antagonismo de
classes no modo de produção, poder-se-ia afirmar que o campesinato ocupa um
lugar (muitas vezes o não-lugar), entre a resistência- subordinação, no qual muitas
vezes para resistir, torna-se necessária a subordinação. Em muitos momentos, afim
contornar situações adversas, esse campesinato se subordina ao capital para
resistir.
Embora, a dimensão econômica esteja ligada em muitos momentos na
“coreografia” desse campesinato, até mesmo como mecanismo de reprodução
dessa classe/modo de vida conforme salientado, Segundo Woortmann (1990), por
outro lado, ao realizar o enfoque acerca desse grupo, torna-se fundamental uma
mirada mais apurada sobre o plano subjetivo que constitui a labuta cotidiana desses
sujeitos.
Com o entendimento proposto a partir dos elementos como economia moral e
reciprocidade por Woortmann (1990), não se trata de realizar uma oposição aguda
entre Homo economicus e Homo moralis na estrutura da família camponesa,
entretanto buscar apreender que em muitos momentos, uma esfera não está
divorciada da outra, inclusive se configurando como condição sine quo non para a
manutenção de sua condição camponesa.
Nesse sentido, Woortmann (1990) procurando enveredar para além das
leituras de cunho economicistas, as quais procuraram narrar sobre o campesinato
brasileiro, que o autor alerta que aspecto objetivo de integração ao mercado, não
deve ser utilizado como definidor das chamadas “campesidades”.
65
Prefiro então falar não de camponeses, mas de campesinidade, entendidacomo uma qualidade presente em maior ou menor grau em distintos gruposespecíficos. Se há uma relação entre formas históricas de produção e essaqualidade, tal relação não é, contudo, mecânica. O que tenho em vista éuma configuração modelar, mas é preciso não esquecer, sob risco dereificação, que pequenos produtores não são tipos, mas sujeitos históricos eque as situações empíricas observadas, por serem históricas, sãoambíguas. De fato, pode-se perceber a história como uma contínuaprodução e resolução de ambiguidades. Modelos nunca são “ iguais àrealidade”, se por essa última se entende a concretude histórica que é,essencialmente, movimento. (WOORTMANN, 1990.p.13).
Essas campesinidades, portanto são definidas pela ligação com terra, bem
como pela perspectiva de cunho moral das relações estabelecidas no interior do lote
camponês.
Em Martins (1981a), ao definir a tríade terra-trabalho-família como condição
fundamental de reprodução da lógica camponesa, em Woortmann (1990), esses
elementos se destacam em uma leitura de cunho subjetivo, onde o trabalho, a festa
e o rito como elenca Brandão (2009), se apresenta de forma diferenciada daquele
caracterizado pela exploração da mais-valia; a terra, se destacar como fundamental
recurso natural para o plantio do roçado, entretanto emerge como a “terra sagrada”
conforme destacado (subcapitulo I.6) por Woortmann (2009), o que em última
instância faz emergir, a ligação intrínseca das dimensões material-imaterial do
território, conforme será elencado posteriormente.
Com relação à família, deve-se levar em consideração o formato diferenciado
da estrutura camponesa, uma vez que a chamada família extensa se destaca como
fator estrutural da unidade camponesa, nesse sentido a figura do agregado, bem
como de parentes distantes, se somam nessa lógica demográfica interna. Embora
não predominante, por meio da observação empírica dos sujeitos da referida
pesquisa, foi possível encontrar entre os lotes entrevistados, 42% e 32% desses,
possuíam algum “parente” da família extensa, nos assentamentos Andalucia e
Areias, respectivamente. Em menor número, com 29% e 26%, foi possível verificar
tal configuração familiar nos assentamentos Boa Esperança e Palmeira.
A aparente condição “incômoda” do campesinato em seu caminhar histórico
nos escritos de Shanin (1983), pode também ser aproximado à leitura de
Woortmann (1990), à medida que essa constituição histórica ambígua atribuída ao
campesinato, que lhe deu a condição de recriação nos interstícios do modo de
produção capitalista, classe a qual perdura até hoje em sua multiplicidade de
66
formas- conteúdos. Desse caráter, muitas vezes ambíguo desse modo de
vida/classe, longe dos maniqueísmos, sobretudo no caso brasileiro, que se ainda se
faz relevante problematizar.
1.6. Outras leituras possíveis desde a relação sociedade-natureza
Outro grau de análise bastante interessante é a forma de apropriação da
natureza de determinados grupos, o qual pode ser contemplado a partir dos
protagonismos na questão ambiental contemporânea, pois nunca em nenhum
momento da história, se teve um debate tão amplo, tamanha a variedade de
matrizes discursivas sobre a temática.
Nesse sentido, algumas considerações precisam ser fomentadas a partir da
desconstrução do pensamento, sobretudo aquele assentado nos pilares das
atomizações do pensamento ocidental, mormente orientadas no antagonismo
homem x natureza. Entretanto, entendendo que essa última se caracteriza como
produto de outras dissociações socialmente construídas a partir do olhar
eurocêntrico, se convencionando os tantos reducionismos/esvaziamento do mundo.
Nesse enveredar, cabe notar que mesmo aqueles campos de conhecimentos,
caracterizados pelo pensamento crítico, sobretudo nas ciências humanas/sociais, há
uma premente tendência de negação da dimensão dos processos naturais ligados
aos ecossistemas, o que em última instancia, negligencia acerca das formas de “ser,
existir e pertencer” de certos grupos humanos em determinada relação tempo-
espaço com/na natureza. No outro extremo, com as ciências naturais, quando não
se nega essas relações, reduza-se o homem ao antrópico, noção muito cara à
história presente, uma vez que se negligencia a dimensão do conflito das lutas de
classes e/ou relações de poder assimétricas, condições indissociáveis do modo de
produção capitalista.
Com a instituição das ciências modernas, com os seus vários compartimentos
e fronteiras epistemológicas, segundo Toledo (1992), que se instituem também
formas unidirecionais de pensar o mundo e concebê-lo, nesse sentido com esta a
serviço do capital, operando em uma legitima uniformização do conhecimento, assim
negando uma vasta ecologia de saberes.
67
Segundo Toledo (1992), apesar de importantes estudiosos da questão
camponesa, avançarem ao redescobrirem as contribuições seminais de Chayanov,
centrando-se na racionalidade econômica dessa unidade, por outro lado, o fizeram
de forma incipiente ao negligenciar a relação intrínseca com recursos físicos, tão
fundamentais no estabelecimento dessa classe com o espaço, no transformar
cotidiano de sua natureza externa.
La manera cómo los campesinos producen bienes es um tema deconsiderable interes para los economitas y otros científicos sociales,particularmente después del redescubrimiento de los trabajos seminales deChayanov. Estos estúdios, sin embargo, examinan los fenômenos aisladosde su contexto médio ambiental. En esta estrecha visión los factoresnaturales son simplemente eliminados de los análisis o son tomados comocontantes, usualmente llamados matérias primas, de tal manera que laproducción campesina se convierte en un proceso realizado em um vacioecológico, uma consecuencia obvia de la división em compartimentosestancos de la moderna ciencia. (TOLEDO, 1992. p.200).
Um momento emblemático dessa confluência de questões “sócio-ambientais”,
o qual se conforma como grande marco que catalisou o debate entre vários
intelectuais, sem dúvidas foi o processo de luta empreendida pelo movimento dos
seringueiros, com maior magnitude na década de 1980, pois o enveredar desses
sujeitos da história, apontou para a necessidade epistêmica de maior ênfase na
mirada acerca da inerência das esferas social-natural.
Por conseguinte, mais que uma luta pelos direitos enquanto explorados pelo
capital, se configura como uma luta epistêmica pelo ato re-existir com as suas
cosmovisões e matrizes de racionalidade (PORTO-GONÇALVES, 2006)
Na agricultura, essa imbricação entre a problemática social e ambiental,
advém com maior relevo a partir daquilo que se classifica como Revolução Verde,
pois essa mudança na base da agricultura não só significou de modo geral o
acirramento conflituoso da questão agrária brasileira, senão contigo trouxe a
problemática da degradação ambiental nos espaços agrários mundiais e como
elucida Porto- Gonçalves (2006), também mudanças nas relações de poder, porque
mais que um “saber” sequer universal e deslocalizado, a técnica e conhecimento,
atualizados pela ciência moderna, carregam todas as premissas de uma narrativa
originada dos países centrais, destarte oriundas de localizações epistêmicas e
retóricas específicas.
68
Uma abordagem altamente inovadora, a qual chama a atenção para a
importância do encontro das distintas racionalidades para o que hoje se designa
como agroecologia, é fomentada pelos teóricos de Andaluzia, na Espanha,
sobretudo tendo o teórico Eduardo Sevilla Guzmán como grande expoente dessa
corrente da sociologia do campesinato. Nesse sentido, o debate proposto pelo
referido autor, pode ser muito profícuo para geografia, uma vez que ele põe em
evidência as distintas formas de apropriação da natureza por partes dos
camponeses, portanto como esclarece Porto-Gonçalves (2006), diferentes maneiras
de GEO-grafar a terra e/ou de constituição de territórios, distintos daquelas
características da agricultura capitalista, seja pelas relações materiais nas formas de
apropriação e uso da terra ou mesmo, ou ainda por meio de construção de sistemas
de signos antagônicos ao modo convencional da lógica capitalista do fazer
agricultura.
Para tal empreitada, Sevilla Guzmán (1990), procura revisitar alguns
elementos dos clássicos da questão agrária, entre os quais se poderia destacar com
maior importância em sua obra, os escritos de Alexander Chayanov, principalmente,
quando analisa a chamada agrônoma social.
[...] para Chayanov, la introducción extensiva de la racionalidad en losprocesos espontâneos constituye la esencia de la obra de la agronomiasocial. De lo que se trata es de conseguir superar a ruptura que se haproducido entre pueblo e intelligentcia, ruptura que procede de ladisociación entre forma costumbrista de la acción social y forma delprocedimiento científico. Chayanov no niega la ciencia y la técnica, susdescubrimientos y innovaciones, pero reconece El saber campesino eintenta articular éste com aquélla. (Sevilla Guzmán, 1990, p.231).
Verifica-se que o pensamento de Chayanov é muito rico e atual para o debate
do entrecruzamento de conhecimentos/saberes, uma vez que entre o final do século
XIX e começo do século XX, o descrito autor já chamava a atenção para o quão era
importante reconhecer outras bases sócio-eco-culturais e suas formas de
metabolismo sociais empreendidos no grafar cotidiano da terra, admitindo assim, a
existência de outras cosmovisões camponesas na Rússia. Grande exemplo desse
reconhecimento era a utilização de um calendário agrícola próprio de cada região,
respeitando as especificidades de cada local da Rússia, caracterizada pela grande
extensão territorial e diversidade étnico-cultural.
69
Outro estudo com preocupação na leitura dessa forma-conteúdo do
campesinato em sua relação, bem como a natureza foi realizado Wootmann (2009).
No referido constructo, a autora procura relacionar a lógica simbólica da lavoura
camponesa, com questão posta das formas e sistemas próprios de cultivo. Nesse
sentido, pontua que a lógica expressa por meio das cosmovisões dos camponeses
entrevistados12, estão baseadas na tríade Deus, homem e terra, dessa forma
elucidando para o fato da existência de uma percepção moral da relação terra-
homem por parte dos camponeses.
A terra agradecida retribui o trabalho do homem com uma colheitaabundante. Quando ela “recebe a vitamina dada pelo homem e chuva deDeus, ela fica alegre e agradece, dando muito alimento e trazendo fartura.Mas, se a terra trabalha, tal como o homem, ela fica “cansada”, e é precisorespeitar seu tempo de “descanso” (pousio), para que possa renovar suasforças. (Woortmann, 2009, p.120).
A exposição de Woortmann (2009) se apresenta muito reveladora, pois
denota uma lógica muito própria de formas de apropriação dos recursos naturais
pelos camponeses. Longe de uma visão essencialista, Woortmann (2009) esclarece
no descrito trabalho, que os camponeses não estão fechados à adoção de
mecanismos externos como sementes, dessa forma configurando o sítio um
autêntico laboratório para a experiência do fazer humano.
Outra relação vital exposta por Woortmann (2009), diz respeito à
indissociação dos vários elementos do mundo, pois diferentemente da tradição
ocidental, as cosmovisões descritas relacionam o material-simbólico, Deus (divino)-
homem, homem-natureza numa concepção segundo a autora etno-ecológica-holista.
Outra relação que vale destaque é fato desses camponeses entenderem o
agroecossistema como um “corpo”, o que demonstra uma valorização da natureza
externa como extensão de suas próprias vidas e condição material para sua própria
recriação enquanto membros daquele espaço.
Outra substancial contribuição, a qual sugere um interessante insight, pode
ser encontrada no debate fomentado por Mazzeto Silva (2008), quando procura
entender as tensões de territorialidades no cerrado brasileiro. O autor faz a distinção
entre lugar-habitat e lugar- mercadoria, ou ainda especificamente no planalto central
12 Pesquisa realizadas com sitiantes Sergipanos.
70
do Brasil, com os conceitos de cerrado-habitat em contraponto ao cerrado-
mercadoria. Partindo do pensamento de Leff, Mazzeto Mazzeto Silva (2008) avança
no sentido de pensar o habitat para além do suporte físico e trama ecológica, nos
quais se constitui referência de simbolizações e significações que configuram
identidades culturais e estilos étnicos plurais.
Podemos acrescentar que o habitat é o lugar de criar hábitos, demanifestação permanente das territorialidades que conferem uso e sentidoao território – a experiência total do espaço. O habitat pressupõe a ideia delugar de viver, vínculo e pertencimento territorial, se opondo e seconfrontando ao sentido do território-mercadoria. O habitat pressupõeconexão com o ecossistema, ao contrário da separação moderna entrehumano/natureza. (MAZZETO SILVA, 2008, p. 98-99).
A partir da exposição de Mazzeto Silva, notoriamente o debate chama a
atenção para a incumbência da geografia enquanto ciência, de problematizar o
debate no sentido pensar não só numa questão13 agrária, todavia agregar o agrícola
(ambiental) como binômio inseparável para o caso brasileiro. Tais pressupostos
ficam evidenciados nas entrelinhas dos escritos de Prado Júnior (1979). Nesse
sentido, quando Prado Júnior (1979) descreve o movimento das plantations para
novas terras e o abandono das antigas áreas já degradadas, que contraditoriamente
se constituíam como uma das poucas brechas camponesa, desta forma
evidenciando o caráter de uso da grande propriedade no Brasil, tanto seu caráter
concentrador (agrário) como degradante (agrícola-ambiental), portanto a forma de
uso e manejo do solo nas grandes propriedades se apresenta como sintomáticas
desde o processo de colonização.
Nesse sentido, acredita-se que o binômio agrário-ambiental da questão
brasileira pode ser fundamental para o debate geográfico contemporâneo, sobretudo
na leitura das tensões de territorialidades do cerrado. Por conseguinte, a chamada
Revolução Verde de meados do século XX, vem legitimar e fortalecer o binômio
estruturante e característico da questão agrária brasileira. Destarte, muda-se a
forma, entretanto a estrutura (Santos, 1996) continua no espaço agrário como
principal característica da questão agrário-agrícola brasileira.
13 Aqui estamos entendendo por questão como aquilo que está acima do problema, portanto partindode pressupostos de que a Questão é sempre maior que o problema, o qual pode ser respondido,enquanto a Questão terá uma dimensão de maior complexidade.
71
Ainda em Mazzeto Silva (2008), torna-se possível pensar o território numa
condição integradora (Haesbaert, 2006), uma vez que o lugar-habitat ou cerrado-
habitat possibilita uma leitura multidimensional do processo, a qual vai desde o
território recurso (Raffestin, 1993) ao território na perspectiva imaterial dos signos,
representações e de questões identitárias, em uma relação nunca divorciada entre o
material-imaterial.
Pensando no território no viés de uma condição integradora, Porto-Gonçalves
(2006) dialoga por meio de suas GEO-grafias a importância da diferenciação dos
distintos regimes de uso da natureza e a multidimensionalidade estruturante do
território. O autor salienta que se torna necessário um enfrentamento no sentido
daquilo que procura diferenciar entre agri-CULTURA e agroNEGÓCIO, pois mais
que uma análise da etimologia das palavras, essa problematização, pode fortalecer
o debate no rumo de pensar como a natureza vem sendo externalizada do homem,
mormente por intermédio do discurso científico. As etimologias podem trazer à tona,
no caso da agri-CULTURA, a inseparabilidade do binômio cultura-natureza como
esclarece Leff (2009) sob a luz de uma ecologia política.
Em outro trabalho, Mazzeto Silva (2007), com propósito mais específico de
ressignificar o conceito de campesinato, traz a reflexão no sentido de problematizar
sob um aspecto mais amplo da forma-conteúdo desse modo de vida – classe social.
Para tanto, por meio do diálogo com o conceito de terra de trabalho de Martins
(1991), procura avançar no sentido de esclarecer, que mais que local do trabalho, se
configura como o local de viver, de criar habitus e relações de pertenciamento.
O autor supracitado não nega todas outras leituras já realizadas acerca do
campesinato; entretanto, diante do paradigma dominante da modernização do
campo e da problemática ambiental contemporânea, julga como fundamental a
ressignificação do conceito-síntese colocado, elucidando seu papel político diante da
atual crise ecológica.
Tal debate, acerca do campesinato e sua relação com os processos de
apropriação social da natureza, deste modo de sua ambiência, indubitavelmente
está ligada ao debate corrente na contemporaneidade sobre segurança alimentar e
soberania alimentar, haja vista conforme indicativos do censo agropecuário
2005/2006, as unidades agrícolas do tipo familiar se constituem como as que mais
72
produzem alimentos. Este indicativo aponta para aquilo que Altieri (2005) procura
denominar como agroecossistemas simples e complexos. Para o primeiro, este autor
alerta para a tendência cada vez maior da agricultura capitalista de simplificação
ecológica em áreas de expansão dos monocultivos, assim reduzindo os níveis inter-
relações das espécies e modificando as cadeias tróficas locais.
No outro extremo, os agroecossistemas complexos, na medida do possível,
se configuram na agricultura camponesa, pois nesta evidencia-se a diversidade de
espécies e maior interação destas, conforme exposto na figura 01. Ainda com
relação aos dados do IBGE, não está em jogo apenas a eficiência do volume da
produção, oriunda da terra camponesa, entretanto poder-se-ia fazer alusão para sua
eficiência na conservação da diversidade de espécies alimentares e nativas.
Figura 03- Plantio consorciado no assentamento AndalúciaFonte: Soares, 2011
Nesse sentido, a relação forma-conteúdo do lote camponês, bem como de
suas formas de manejo pode apontar para um debate que gira em torno de uma
racionalidade ecológica do campesinato, uma vez que essa suscita por meio de
outras construções epistêmicas, assim se constituindo sob outros signos e matrizes
de racionalidades (PORTO-GONÇALVES, 2006).
73
Acerca da mencionada racionalidade, Toledo (2008) e Castillo (2008)
sugerem seminais contribuições, à medida que o primeiro aponta haver um campo
relacional do campesinato com a sociedade maior e com o seu substrato de
reprodução material, portanto de movimento de fluxos de energia, que dão ao
campesinato essa diferenciação no processo de gestão de seu capital ecológico
(PLOEG, 2008). Para tanto, Toledo (2008) recupera um conceito pouco explorado
do debate marxista de metabolismo social, o qual com algumas mudanças procura
instrumentalizar para a analítica proposta.
Segundo Toledo (2008), metabolismo rural, pode ser definido como um
conjunto de ações e/ou atos por meio dos quais, a sociedade se apropria de bens e
serviços da natureza. Originalmente, em Marx, o conceito de metabolismo foi
empregado para denominar o processo de trabalho como “um processo entre o
homem e a natureza, um processo pelo qual o homem, através de suas próprias
ações, medeia e controla o metabolismo entre ele mesmo e natureza, conforme
esclarece Foster (2010). Nesse sentido, que a quebra desse metabolismo se deu,
sobretudo com a emergência do capitalismo industrial e em consequência da
dissociação campo-cidade.
Em consonância com a questão elencada, Toledo (1995) oferece um quadro
interessante, o qual mostra a especificidade camponesa naquilo que Ploeg (2008)
denomina de modo camponês14 de fazer agricultura.
Quadro 02- Característica da Agricultura camponesa e moderna.Atributos Campesina Moderna
Energia: tipo usada naprodução
Interna: uso exclusivo deenergia solar, natural(Lenha)
Externa: predomina o usode energia fóssil
Escala da atividadeprodutiva
Pequenas parcelas aéreasde produção
Medianas e grandes áreasde produção
Objetivo: grau da unidadeprodutiva rural
Alta autosuficiência,cumpre necessidadescoletivas. Pouco uso deinsumos externos.
Cumpre interessesindividuais, sob baixa ounula auto-suficiência. Altouso de insumos externos.
Força de trabalho: nívelorganizado
Familiar, comuninal Assalariada, peão
Diversidade:ecogeográfica, produtiva,biológica, genética
Policultivo, com altadiversidade ecogeográfica,genética e produtiva
Monocultivo com porpouca diversidade porespecialização e
14 Aqui não confundido o conceito de modo de produção de Karl Marx, mas sim como um conjunto de práticascomuns na agricultura camponesa, a qual mantém uma relação direta com a natureza.
74
produção.Produtividade: ecológicaou energética
Regular no tempo. Altaprodutividad ecológico-energética; baixaprodutividade no trabalho.
Irregular no tempo, comalta produtividade laboral;baixa produtividadeecológica e energética.
Desechos: alta ou baixaprodução
Produção sob uso deinsumos orgânicospróprios.
Alta produção cominsumos externos:agroquímicos
Conhecimento: tipoempregado durante aapropriação/ produção
Local, tradicional, ágrafo,holístico, baseado emfatos e crenças detransmissão limitada emuito flexíveis
Especializado a partir daciência convencionalbaseada em objetivos,transmitidos por meio daescrita, de ampla difusãodiscursiva.
Cosmovisão: visão demundo (natural e social)que prevalece comocausa invisível ou ocultada racionalidade
Ecocêntrica: a natureza éuma entidade viva esacral. O natural seencarna em deidade comdeve dialogar durante aapropriação
Caráter mercadológico: Anatureza e um sistemaseparado da sociedade,cujas riquezas devem serexploradas através daciência e técnica.
Fonte: Toledo, 1995.
Destarte, conforme elucida Toledo (1995) por meio do quadro 01, o
campesinato se insere numa perspectiva diferenciada de racionalidade ambiental,
pois esta se caracteriza como construto de um sistema cognitivo no uso e
apropriação social da natureza, o que indica em última instancia conforme a
sistematização realizada pelo autor, diferentes formas metabólicas que estão
imbricadas as duas formas distintas de uso da terra.
Caberia expor diante da problemática , que a reforma agrária, enquanto
componente de justiça social, também simboliza outra proposta de apropriação da
natureza, à medida que se caracteriza como uma brecha para a (re)criação
camponesa, portanto abre a possibilidade do uso da terra por outras bases de
racionalidade, distintas da agricultura camponesa.
Outro ponto fundamental para leitura do agrário-ambiental contemporâneo,
torna-se possível a partir da mirada acerca do agronegócio, bem como nos grandes
projetos de construção hidrelétrica em suas lógicas de territorialização, uma vez que
sobretudo na agricultura capitalista em sua lógica agroindustrial, segundo Thomaz
Júnior (2008), há uma tendência maior de expansão em áreas com ricas reservas de
recursos hídricos, como vem o ocorrendo no cerrado, principal nascedouros de
importantes rios do país.
75
Nesse sentido, em consonância com Mendonça (2007), Thomaz Júnior (2008)
esclarece acerca do agro(hidro)negócio15;
As frações do território em disputa (intra e inter-capital)- com a participaçãocrescente de grupos estrangeiros- expressam não somente uma novageografia do espaço agrário, no Brasil, mas consolidam o poder de classedo capital sobre as melhores terras agricultáveis do país e da maiorincidência de disponibilização de água de subsolo da América Latina. Ocapital nada mais tem à disposição do que o Aqüífero Guarani, o que lheassegura o controle territorial das melhores terras e de mananciais deáguas de subsolos para a irrigação, nada comparável em nenhuma outraparte do planeta, para destinação e uso comercial. ( THOMAZ JR,2008.p.08)
Segundo Thomaz Jr., parte de Mato do Grosso do Sul, Oeste do estado de
São Paulo, Triângulo Mineiro, Norte do Paraná e Sudoeste Goiano, são áreas que
estão compreendidas no que o autor chama de “polígono do agrohidronegócio”.
Nesse sentido, a construção de usinas hidrelétricas, monocultivo da soja,
eucalipto,pinus e da cana, vão ter sua racionalidade de expansão focada em áreas
de abundância na oferta dos recursos hídricos disponíveis nessa porção do território
Brasileiro.
Outro dado o qual contribui para o debate sobre o agro(hidro)negócio,
sobretudo para as atividades altamente capitalizadas, como o setor
sucroalcooleiro,emerge a partir dos dados trabalhados por Thame (2008), acerca do
consumo de água para os vários tipos de cultivos, o que em última instância
contribui para o entendimento da lógica expansionista da agricultura capitalista em
determinadas áreas.
Quadro 03- Lâmina de água necessária durante o ciclo das culturasCulturas Consumo
cana-de-açúcar 1000 a 2000 mm
banana 900 a 1800 mm
arroz 600 a 1200 mm
café 800 a 1200 mm
uva 500 a 1000 mm
algodão 550 a 950 mm
15 Vale sublinhar que o Estado de Mato Grosso do Sul, possui a maior porção do aqüífero Guarani das terras emterritório brasileiro.
76
milho 400 a 800 mm
tomate 300 a 600 mm
feijão 300 a 600 mm
Verduras em geral 250 a 500 mm
Fonte: Thame, 2008,p.198.
77
2- DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E A UNIFORMIDADE DO MUNDO
A história universal não é o lugar da felicidade.(Frederic Engels)
A história da América Latina é uma longa história daperda, da usurpação, do roubo dos recursos naturais (Eduardo Galeano)16
Para desenvolver a Inglaterra foi necessário o planeta inteiro.O que será necessário para desenvolver a Índia?
(Mahatma Ghandi)
Na mesma proporção que o seu uso, quantifica-se o quão a noção de
desenvolvimento vem sendo utilizada pelos inúmeros setores do tecido social. Isso
ocorre porque, na maioria das vezes, sua abordagem é feita baseada em preceitos
simplistas ou sob o olhar economicista, o que em última instância, contribui para
escamotear os campos discursivos e das práticas do Estado capitalista e grandes
instituições internacionais, ao legitimar uma colonialidade que ainda resiste na
história presente, por meio do apontamento de uma universalidade histórica a ser
inexoravelmente percorrida pelas várias formações sócio-econômicas e culturais por
meio dessa concepção de desenvolvimento pré-moldada pelos grupos
hegemônicos.
Poder-se-ia mencionar, que o discurso de cunho evolucionista e/ou unilinear
do curso da história, pode até mesmo estar entrelaçado naqueles setores mais
progressistas de esquerda, os quais historicamente, quase que de forma automática,
herdaram os signos de um mundo uniforme, branco e europeu, como se o aspecto
econômico fosse o único ponto fundamental para a construção do desenvolvimento,
bem como a promoção de qualidade de vida.
Na guisa introdutória da temática sugerida, cabe situar o debate a partir de
alguns apontamentos, daquilo que se ergue como campo relacional entre o modo de
produção capitalista e a própria noção de desenvolvimento, haja vista a
complexidade imersa nesta segunda. Na mesma proporção de sua abrangência e
usos como uma fórmula mágica e legitimadora do enveredar capitalista, se configura
16 Fala retirada do documentário intitulado “O veneno está na mesa’’, de autoria de Silvio Tendler,2011.
78
também como importante mecanismo de produção de máscaras sociais, que mais
maquiam a realidade, que desvenda as reais intenções dos discursos dos
hegemônicos nesta grande narrativa universalista mundializada.
Contudo, vale salientar que o modo de produção capitalista enquanto
materialidade do antagonismo de classes, não se caracteriza apenas pela via desta
descrita materialidade, haja vista seus atributos simbólicos17 na instituição de seu
poderio. Prontamente, este se cristalizou de forma mundializada também, por
intermédio dos discursos de reinvenção do outro, estabelecendo assim um
verdadeiro esquema de um presumido universalismo europeu, onde falar e
reconhecer outras ontologias torna-se um ato de blasfemar contra a tradição dos
civilizados da economia industrial.
O campo das subjetividades, portanto, mostra-se como elementar, devido a
sua magnitude nas lutas epistêmicas embutidas sob os pilares econômicos- sociais.
Nesse sentido, que Escobar (1995) faz algumas elucidações acerca do papel
da modernidade, enquanto escopo do capitalismo e grande narrativa construída a
partir da Europa.A economia ocidental é geralmente pensada como um sistema deprodução. Da perspectiva da antropologia da modernidade, entretanto, aeconomia ocidental deve ser vista como uma instituição composta desistemas de produção, poder e significação. Os três sistemas uniram-se nofinal do século XVIII e estão inseparavelmente ligados ao desenvolvimentodo capitalismo e da modernidade. (p.44).
Cabe elencar que a conexão entre estes componentes dos sistemas
descritos, hoje se encontram extremamente arraigadas nos discursos e práticas dos
grupos hegemônicos, assim não havendo um isolamento destes itens com a
economia política que se consolida na atualidade. Tal fato pode ser evidenciado com
as várias justificativas dos representantes do agronegócio brasileiro, mormente no
município de Dourados-MS (figura-04), já que ao procurar legitimar o
desenvolvimento econômico da agricultura capitalista, por outro lado se almeja
deslegitimar qualquer outra tentativa de territorialidade/temporalidade avessa aos
seus interesses, por meio de discursos de fortalecimento de alguns estigmas
historicamente construídos acerca dos povos indígenas18.
17 Talvez o fetiche da mercadoria, o qual Marx descreveu, poderia apontar para este caminho dosimbolismo do capital.
79
Figura 04- Faixa de Campanha dos Ruralistas da Soja em Dourados-MSFonte: Mota, 2009.
Discursos constituídos historicamente são usados por estes grupos
hegemônicos para deslegitimar outras formas de ser e existir sob uma perspectiva
local, porém não menos colonial, subjugando outras matrizes de racionalidade,
como dos povos Kadiwéus. É desta forma que, na história presente e com o objetivo
de destacar essa presumida superioridade “produtiva’’ visando a manutenção do
status quo, que estes grupos procuram se utilizar destes mecanismos já destacados.
No bojo destes, ganha destaque a “indolência indígena”, pois por meio desta quase
convenção instituída a partir do ideário da aversão do índio ao trabalho, que se
procura justificar a expansão da produção da agricultura capitalista em terras destas
populações originárias.
Se esta terra tão utilizada pelos agronegociantes como meio produção produz
commodities agrícolas de forma crescente, também produz injustiça social e
concentração de poder, baseadas historicamente na violência física e simbólica
contra essas populações.
80
Por conta destas e outras diversas manifestações das assimetrias nas
relações de poder, que poder-se--ia afirmar uma colonialidade inerente ao próprio
modo de produção capitalista, o qual como já aclarado necessita deste campo de
significações para se legitimar diante da sociedade por meio da naturalização das
relações sociais de um modo geral.
Deste modo, o que interessa ao analisar o caráter vigoroso do modo de
produção capitalista na contemporaneidade, reside em uma mirada não só em
direção aos processos coloniais inaugurados nos séculos XV e XVII. Entretanto, sob
uma perspectiva que considere uma continuidade na condição
colonial/colonialidade, que ainda teima em comparecer nos discursos e práticas no
cotidiano conforme supramencionado, o que culmina em um universalismo de mão
única, amplamente disseminado conforme a história dos vencedores.
2.1- As múltiplas fragmentações do mundo desde o ocidente
Ao debate do desenvolvimento, enquanto um fenômeno social de
unilateralidade histórica, baseada nos preceitos do eurocentrismo como ponto de
partida de construção de narrativas, torna-se fundamental elencar algumas notas
acerca das várias dissociações que se operaram com eficiência pelo pensamento
metropolitano. Nesse sentido, as ditas separações operadas nesses epicentros de
poder, podem em certa medida, contribuir para o enveredar da questão posta na
contemporaneidade, na relação homem-natureza, bem como os homens inseridos
na problemática ambiental.
Faz-se ainda necessário problematizar sobre a ideia de modernidade, haja
vista que esta tem sido utilizada no campo conceitual para fazer a diferenciação
entre “nós e os outros”, muito mais negar outras pluralidades epistêmicas. Nesse,
sentido o que tem se gestado na história de fato, é a tendência cada vez maior de se
dizer a partir de uma determinada localização epistêmica (MIGNOLO, 2005), como
se o mundo tivesse os seus sentidos limitados ao olhar de apenas um ponto de
visão, nesse caso, na instituição de um sistema-mundo-moderno-colonial
(QUIJANO, 2005), portanto a partir de uma modernidade europeia.
Buscando operar um projeto civilizatório que as hegemonias, mormente a
partir da Europa e países centrais do norte, mantêm um projeto ainda em curso, o
81
qual denota a presumida colonialidade na história presente por meio das
fragmentações da religião, ciência, conhecimento, natureza entre outros, desta
forma negligenciando toda a riqueza das experiências humanas em sua
heterogeneidade.
Um interessante exemplo desse debate o qual contribui para apreender as
mudanças nas relações de poder por meio da produção do conhecimento, foi
fomentado por Lander (2005), pois este realiza alguns apontamentos de elementos
fragmentários/pares dicotômicos, ligados essencialmente às características
estruturantes do pensamento moderno-colonial. Por conseguinte, o autor pontua que
no debate sobre a colonialidade, o quão foram fundamentais as múltiplas
separações do ocidente, operadas a partir de uma localização epistêmica advinda
da Europa.
Um momentum propiciado para tais separações pode ser exemplificado pela
tradição judaico-cristã, uma vez que ela carrega nas suas relações dogmáticas as
dicotomizações corpo-espirito, Deus (o sagrado) - Homem (o humano). Essas
mudanças promovidas pela separação judaico-cristã, segundo Berting apud Lander,
foram seminais para legitimação enquanto discurso da igreja para se gestar uma
outra relação com a natureza.
Deus criou o mundo, de maneira que o mundo mesmo não é Deus, enão se considera sagrado. Isto está associado à ideia de que Deuscriou o homem à sua própria imagem e elevou-o acima de todas asoutras criaturas da terra, dando-lhe o direito [...] a intervir no cursodos acontecimentos na terra. Diferentemente da maior parte dossistemas religiosos, as crenças judaico-cristãs não estabelece limitesao controle de natureza pelo homem. (2005, p. 24)
Logo, aquilo que se designa como antropocentrismo, não teve grandes
rupturas com sentido teocêntrico no que rege as descritas separações, pois essas
serão acentuadas e transportadas para a relação do homem com o ente natureza,
por intermédio do projeto liberal do iluminismo e a edificação do estatuto das
ciências nos séculos XVIII-XIX. Tal construção propiciou uma ruptura ontológica
82
entre a razão19 e o mundo, no limite o esvaziamento das múltiplas significações do
mundo, assim negando outras narrativas e/ou modernidades “alternativas” possíveis.
Outro legado forte de todos os agenciamentos do projeto da modernidade
formulado pelos filósofos do iluminismo do século XVIII, torna-se evidenciado por
uma imposição de uma universalidade excludente (Lander, 2005), uma vez que ela
instrumentaliza uma única razão e caracterização ontológica do mundo. Excludente,
pelo fato de como aclara Clavero apud Lander (2005), negar os direitos20 do “outro”
que está do outro lado, diferente do pensamento liberal.
Torna-se vital problematizar e realizar um apanhado de como a Europa e
países centrais trataram de enunciar suas narrativas, negando as
multitemporalidades e pluralidades epistêmicas, sejam elas por meio das
navegações do século XVI e/ou por intermédio da ciência com suas intermináveis
fragmentações do mundo-natureza, para ele poder dominar, seja aquele entre os
homens pela luta de classes e negação de múltiplas formas de ser e existir, seja da
natureza como território recurso (Raffestin, 1993) enquanto matéria-prima para o
desenvolvimento das forças produtivas.
Tal empreitada, a qual alude-se a partir do poder institucional e criador de
subjetividade da igreja, torna-se mister, pois sua dorsal, embora com algumas
alterações, permanece no período pós-guerra, entretanto agora metamorfoseado
com o discurso do desenvolvimento do países do terceiro mundo.
Nessa direção, Escobar (1998) esclarece que para tal, foi primordial a
construção de inúmeros discursos, capazes de justificar e legitimar essa história de
mão única do mundo, imputada pelos países “centrais”. Nesse sentido, o que existe
de comum entre as múltiplas separações operacionalizadas pela igreja como
instrumento de poder, a ciência e as ações dos grupos hegemônicos, é a crescente
naturalização destas relações de poder que se instituíram historicamente. Logo, é
natural ser moderno, entretanto quando se fala a partir de outra mirada, fora do
19Como elucida Porto-Gonçalves, quando se insere no discurso atual sobre a questão ambiental, anoção de “uso racional dos recursos”, quase sempre tal noção não remonta ao uso mediado pelatécnica e ciência do mundo moderno em detrimento do saber subalterno-autóctone das populações.Nesse sentido do enfretamento epistêmico, que estudando os seringais que Porto-Gonçalves propõefalar em outras matrizes de racionalidades.20 Tal legado fica evidenciado inclusive nos marcos legais do direito atual, uma vez que processoscompensatórios como demarcação de terras indígenas e Quilombolas são assentados nasconcepções do estado-modernos. Um exemplo desse conflito epistêmico reside na análise dasdistintas concepções de território entre Estado e essas populações subalternizadas historicamente.
83
fundamentalismo epistemológico da ciência moderna, ou seja, de um saber ágrafo,
se constrói o imaginário do “outro”, do atrasado e bárbaro21.
A ciência moderna, desenvolvida a partir do século XVIII, enquanto forma de
linguagem legitimadora dos discursos hegemônicos, se constituiu como importante
ferramental para esta modernidade unilateral, uma vez que acabou por intensificar a
cisão ontológica do mundo, por meio das premissas já estruturais do pensamento
eurocêntrico no que rege tais fragmentações. Entretanto, neste caso se instaura um
antagonismo maior entre cultura-natureza, por meio do disciplinamento cada vez
maior da ciência, assim como deste fundamentalismo epistemológico, que se
acirram as dicotomias tão características do pensamento dito moderno. Deste modo,
com a ciência moderna, o mundo se perde em um reducionismo, quiçá
comprometendo uma possível visão de totalidade deste.
Ao mesmo passo deste reducionismo elencado, a produção de conhecimento
enquanto construção/produto do social se desenvolve como indispensável
instrumento de poder, à medida que subjuga todas as experiências humanas e
ecologias de saberes, desenvolvido há séculos, assim cerceando o direito destas de
dizer sobre o mundo, conforme suas cosmovisões. Tal enveredar da ciência
moderna contribuiu para esta dita uniformização do mundo, como todo aparato
prático-discursivo desde as hegemonias, no sentido de negar a possibilidade da
ideia simultaneidade de pluralidades espaço-temporais. No que tange ao domínio da
natureza, Latour (1994), elencando acerca de uma proposta de Antropologia
simétrica, problematiza:
Por que se vê o Ocidente a si mesmo desta forma? Por que deveria ser oOcidente só o Ocidente não uma cultura? Para compreender a grandedivisão entre nós e eles. Devemos regressar a outra grande divisão, aquelaque se dá entre humanos e não-humanos. De fato, a primeira é aexportação da segunda. Nós ocidentais não podemos ser uma cultura maisentre as outras, já que nós também dominamos a natureza. Nós nãodominamos uma imagem, ou uma representação simbólica da natureza,como fazem outras sociedades, mas a Natureza, tal como ela é, ou pelomenos tal como ela é conhecida pelas ciências- que permanecem no
21 Bárbaros eram todos aqueles que não pertenciam ao império Grego, termo o qual tomou umsentido pejorativo, assim culminando com suas variáveis como “barbárie e barbaridade”. Naatualidade, por mais paradoxal que seja, os meios caracterizados pela chamada civilidade eracionalidade moderna como o Estado e o agronegócio, têm se constituído como legítimos pilares dabarbárie, logo aquilo que Oliveira (2007) bem elenca como “ Barbárie e Modernidade”: astransformações no campo e o agronegócio no Brasil.
84
fundo, não estudadas, não estudáveis milagrosamente identificadas com anatureza mesma. (p.97)
Além da questão elencada por Latour (1994), ao esclarecer acerca do fato da
cultura ocidental não se situar historicamente como constituinte de uma pluralidade,
mas em si como ponto de comparação/padronização para outras culturas, este
problematiza um ponto que parece fundamental nessa proposta de modernidade,
haja vista o papel da relação que se estabelece com a natureza, onde as sociedades
ditas modernas trataram logo de dominar não apenas estas imagens e
representações, mas sim de se apropriar da natureza tal como ela se conforma em
sua materialidade, cabendo à ciência moderna no modo de produção capitalista, o
papel deste acirramento de dissociação das coisas e dos signos, diferentemente de
outras matrizes de racionalidades (PORTO-GONÇALVES, 2005).
Nesse mesmo viés de análise, que Mignolo (2005) esclarece que o projeto de
modernidade gestado pelos países da Europa ocidental, sobretudo desde a
expansão das navegações do século XVI até a atualidade, se configura na condição
dialética entre modernidade-colonialidade. Tal fato que aponta Mignolo (2005)
contribui de maneira exponencial, à medida que ajuda na desconstrução dos
discursos tecidos a partir de uma narrativa localizada espaço-epistemologicamente
dos países centrais, seja por intermédio dos debates de invenção do outro –conforme bem problematiza Castro-Gómez (2005) ou mesmo com o corolário das
políticas liberais econômicas na atualidade nos ideários das construções dos países
de terceiro mundo.
Outra questão posta, sobre a qual Mignolo (2005) procura desconstruir, se
situa no debate da pós-modernidade, pois segundo o referido autor, diferente do
debate pós-colonial, este primeiro não logra, visto que não concebe as relações de
poder impostas historicamente por meio de uma geopolítica do conhecimento, assim
havendo um ponto obscuro no que rege a ideia de simultaneidade e momentos,
como se houvesse uma temporalidade-espaço universal, permeados pela fluidez, a
qual atingisse de forma igual, toda uma multiplicidade de espaços. Nesse sentido, ao
fazê-lo desta forma, se por um lado o debate pós-moderno avança em relação ao
fomentado pela modernidade, por outro negligencia a possibilidade da emergência
85
de outras formas do pensar no debate, assim conservando a dureza da ciência,
constituída no projeto de modernidade ecoado pelo pensamento burguês.
Apesar de entender o legado marxista, sobretudo do antagonismo capital-
trabalho problematizado por Marx, configurado como seminal contribuição do século
XIX, o pensamento de orientação pós-colonial logra por apreender o modo de
produção para além deste antagonismo, à medida que em um primeiro momento
procura problematizar para além das escalas eurocêntricas, desta forma desvelando
toda a trama do desenvolvimento do capitalismo nas periferias e suas distintas
formas de universalização, as quais em grande parte, podem ser caracterizadas por
aquilo que Wallestein chamou de sistema-mundo-moderno e juntamente com
Quijano, se complementou como sistema mundo-moderno-colonial. Este último item
adicionado, como lembra Mignono (2005), se apresenta como peça fundamental,
pois alude para a permanência uma colonialidade que ainda persiste em existir, a
qual por vezes, não fica tão clara à primeira análise.
Esta colonialidade pode ser desmascarada por meio da ciência, como
discurso legitimador conforme já exemplificado no ideário do agronegócio na figura -
04, ou até mesmo naquilo que Marx em sua seminal contribuição, classificou de
fetiche da mercadoria, uma vez que cotidianamente por intermédio de uma
colonização da mente, se opera uma imposição a partir do capital, de formas de “ser
e estar”.Nesse enveredar, que os países centrais constroem o discurso do
desenvolvimento como um movimento inexorável para os países ditos de terceiro
mundo, o que direciona o debate para o paradigma da colonialidade, fazendo alguns
intelectuais como Eduardo Galeano e outros latino-americanos, admitirem que não
houve uma ruptura nas formas de pensar o mundo e de apropriação da natureza
como já aclarado por Latour (1994). Contudo, tais pressupostos se convertem numa
verdadeira “catequização” mascarada pelas políticas econômicas liberais de ajustes.
2.2- Desenvolvimento e Revolução Verde: Continuidade do sistema-mundo-moderno-colonial
O mundo, mormente caracterizado no período pós-segunda guerra,experimentou uma mudança abrupta nos significados e/ou até mesmo seu
86
esvaziamento, haja vista a emergência dos novos discursos sob a égide de uma
economia do desenvolvimento. Neste campo discursivo, que países centrais como
Estados Unidos e países europeus, na representação da “cristandade do capital”,
buscaram dizer o que é o mundo e significá-lo, como se fossem os únicos
portadores de tal direito civilizador. Nesse sentido, essa nova forma de controle
social logrou a partir dos pressupostos de que:
El desarrollo alimento una manera de concebir la vida social como problematécnico, como objeto de manejo racional que debía confiarse a um grupo depersonas, los profesionales del desarrollo, cuyo conocimiento especializadodebía capacitarlos para la tarea. (ESCOBAR, 1998,p.108.).
Segundo os preceitos do desenvolvimento, como uma nova ordem geopolítica
vigente para o mundo, o fenômeno da técnica se coloca como peça fundamental,
senão a única para a “emergência” dos países de capitalismo tardio, até então
periféricos no sistema capitalista. Nesse sentido, essa intervenção estrangeira
nestes países, mascarada pela técnica como solução para a redução das
desigualdades, ajuda a esconder a verdadeira estrutura trans-escalar de poder,
tecida no pós-guerra.
Para tanto, como aclara Escobar (1998), se estabeleceu um poderoso aparato
discursivo de “infantilização” dos países ditos subdesenvolvidos, como se estes não
fossem capazes de constituírem seus próprios devires históricos, assim negando a
possibilidade de simultaneidade de tempos-espaços, bem como outros
entendimentos do que possa ser/significar o desenvolvimento na ótica de outras
construções sócio-espaciais.
Al igual que la imagem de Currie de la “salvación”, la representación delTercer Mundo como niño necesitado de direccion adulta no era umametáfora desconocida, yse prestaba perfectamente parael discurso deldesarrollo.a infantilización del Tercer Mundo há sido parte integral deldesarrollo como “ teoria secular de salvación (ESCOBAR, 1998, p.67.).
Tal pressuposto elencado por Escobar (1998) contribui ao debate acerca das
novas tramas do projeto “globalitarista”, como diria o geógrafo Milton santos, à
medida que permite apreender acerca do sistema de poder enraizado no projeto de
87
modernidade unilinear da Europa, com maior ênfase, reestruturado no período do
pós-guerra com os Estados Unidos.
A mudança/deslocamento no pós-guerra se apresenta abrupto de tal forma,
que segundo uma visão estritamente economicista dessa modernidade advinda dos
países centrais, de variáveis bem localizadas epistemologicamente, que Escobar
(1998), esclarece que segundo essa visão primeiro-mundista, como se em um toque
de mágica, dois terços da população da terra se transformaram em pobres e
miseráveis a partir desse novo olhar para o mundo, advindo de uma concepção
restrita do desenvolvimento.
Cabe salientar como alertam vários estudiosos do desenvolvimento, que este
era um termo pouco utilizado antes do pós-guerra, assim sinalizando ao lado do
liberalismo econômico, a dimensão incrustada do imperialismo operacionalizado a
partir dos países centrais.
Essa mudança no universo de significações do mundo foi estruturada por
meio do discurso do desenvolvimento como uma missão civilizatória, haja vista sua
tendência cada vez maior de interpretar o mundo, sobretudo aqueles exógenos aos
países centrais, como grandes portadores de “patologias” em suas estruturas
sociais.
Nesse caminho, como esclarecem Escobar (1998) e Gómez (2006), que se
apresentam, como em nenhum momento da história, a profissionalização e
institucionalização da pobreza22, fome-nutrição, saúde e da “ajuda” humanitária de
forma geral, como maneira de potencializar as formas modernas de controle social,
quiçá compreendida no conceito de biopoder/biopolítica da analítica foulcaltiana. É
como se o modo de produção capitalista elencasse uma “preocupação” atípica em
seus receituários, a fim de constituir um verdadeiro invólucro nas reais intenções em
tempos de ameaça comunista na luta por hegemonia.
Acerca do discurso, este funciona como fundamental instrumento de poder,
pois se fundamenta a partir da reinvenção do “outro”, seja por meio da ciência e/ou
das “missões” econômicas empreendidas pelos especialistas do Banco Mundial e
Fundo Monetário Internacional. Destarte, ponto relevante a ser elencado, diz
22 Majid Rahnema descreve de forma magistral as várias percepções acerca da pobreza nos váriosespaços-temporalidades, ao passo que pontua a mudança de sentido quando essa é ecoada numaperspectiva global, a partir do ideário do desenvolvimento no pós-guerra.
88
respeito à emergência cada vez maior de especialistas ligados às várias áreas de
interesse das instituições promotoras do desenvolvimento.
Embora muito discutida como uma paradoxal modernização conservadora se
acredita conforme elucida Porto-Gonçalves (2005), que a Revolução Verde
enquanto fenômeno sócio-espacial se coloca não somente como um mecanismo de
mudança nos paradigmas técnico-científicos, mas se constituiu como importante
mecanismo de acirramento e instituição assimétrica das relações de poder em uma
escala mundializada. Nesse sentido, sob o discurso do desenvolvimento, que se
redesenha uma verdade cartografia do capital por meio desta mudança nos espaços
agrários mundiais pela técnica.
O que se elenca sobre o fenômeno social da Revolução Verde, que esta é
corolário de um processo do modo de produção capitalista, no qual o liberalismo
para além da leitura economicista se apresenta como expressão máxima de uma
“catequização” em escala mundial. Assim como o pensamento moderno que se
estabeleceu a partir da colonização dos séculos XV e XVI, o liberalismo cunhou a
partir do pretexto do desenvolvimento dos países ditos de terceiro mundo, uma
verdade geopolítica do conhecimento, à medida que subjugou toda uma gama de
experiências humanas no grafar da terra, com suas especificidades de apropriação
social da natureza.
Nesse viés, poder-se-ia argumentar que o fenômeno da Revolução Verde se
constrói em bases do pensamento moderno-colonial, haja vista sua tendência cada
vez maior de homogeneização do mundo, seja na materialidade deste, ou na
construção de signos, conforme aponta Shiva (2003), naquilo que a autora designa
de “monoculturas da mentes”.
Torna-se crucial pensar o movimento da Revolução Verde para além dos
”pacotes”, pois ela guarda especificidades próprias das geopolíticas empreendidas
em dada configuração sistema-mundo. Nesse sentido, se denota como incipiente
qualquer análise que não considere os agenciamentos políticos e a gama de redes
transescalares que se estabeleceram, a partir da adequação local às perspectivas
do novo paradigma de produção agrícola.
Sob a égide discursiva de um “neomathusianismo”, com a Revolução Verde,
procurava-se mascarar as ideologias de sua origem técnico-política no sentido de
89
buscar concomitante ao cenário geopolítico da época, a imposição da hegemonia
sob o véu da grande produtividade e do combate à fome. Todavia, como elucida
Porto- Gonçalves (2006), “em um jogo interessante de palavras”, a “Revolução era
verde”, porque não poderia ser vermelha”, sobretudo naqueles países “recém-
descolonizados” como a Índia em 1947. Outro fator de relativa importância que deve
ser elencado, é o fato de que o desenvolvimento em suas várias vertentes, possuía
certa resistência dos Estados nacionalistas, sobretudo na América Latina, os quais
se perfaziam como fundamentais oposições ao modelo imperialista.
Cabe salientar que nesse momento começa se desenhar a concepção de
“desenvolvimento”, sobretudo com Norman Borlaug na agricultura, ganhador do
Nobel da Paz em 1970, principal teórico defensor dessas mudanças técnicas.
Nesse novo desenho geopolítico, com a Índia “descolonizada” em 1947, país
que ocupa posição geográfica peculiar devido à grande extensão de seu território e
a relativa proximidade para a URSS, se apresentava como área de grande interesse
para a expansão e adesão ao socialismo real.
A agronomia que se introduz na Índia, mantém uma função imperialista, haja
vista que não havia um divórcio entre a expansão dita “técnica” e seu teor
geopolítico. Para tanto, por meio do novo paradigma da Revolução Verde, busca
tecer um discurso a partir da fome, como evidencia em suas palavras Borlaug em
carta resposta à revista The Ecologic v.26, n.6, dezembro de 1996.
Em meados dos anos 60, a população da Índia atingiu 465 milhões, fomeslocalizadas já estavam ocorrendo e fome generalizada e má-nutrição eramiminentes. Os apocalípticos da hora previam uma fome de proporções semprecedentes na Ásia Meridional. As variedades de trigo e arroz daRevolução Verde, que foram introduzidas em meados dos anos 60, nãoapenas afastaram este cenário Malthusiano desesperador, como tambémpossibilitaram que a Índia formasse reservas de 20-30 milhões de toneladasde grãos. De fato, atualmente eles têm mantido estas reservas apesar doclima inclemente e de outros desastres por mais de uma década, mesmoem face de uma quase duplicação de sua população (para cerca de 940milhões atualmente)! Novamente, digam-me como não houve nenhumimpacto da Revolução Verde na Índia. (p.01)
Verifica-se, que sob o discurso da técnica, Borlaug procura promover os
benefícios da revolução para o combate à fome. Entretanto, negligencia que a fome
é socialmente erigida, nesse caso propiciada pela exploração por mais 200 anos da
metrópole inglesa como ressaltara Marx:
90
A Inglaterra tem de cumprir na Índia uma dupla missão: destruidora, por umpor um lado, e regeneradora, por outro. Tem que destruir a velha sociedadeasiática e assentar as bases da sociedade asiática e assentar as bases dasociedade ocidental na Ásia. (p.292, 1978).
Guardadas as especificidades de cada momento histórico, há na verdade a
preservação de alguns elementos fundamentais, os quais apontam não somente
para uma imposição técnica, porém uma clara tentativa de construção e
hegemonização da narrativa europeia nos contextos locais, nesse sentido negando
outras formas de construção do saber. Advogando dessa ideia, que Vandana Shiva,
importante intelectual e militante feminista indiana, busca desconstruir os ideários da
Revolução Verde e o que se entende sobre desenvolvimento23, noção tão cara à
historia dos vencidos, vitimados pela violência simbólica, como bem problematiza e
Souza Santos.
Como elucida Shiva (1996), a Revolução Verde, se propôs a partir do
discurso da fome-escassez estabelecer novas relações de poder (Porto-Gonçalves,
2006) na nova configuração sistema-mundo-modeno-colonial. Nesse viés, a
intelectual indiana desconstrói a ideia da superprodutividade estruturante do
discurso hegemônico, uma vez que alerta para grande perda das espécies nativas
com grande valor nutricional.
De fato, as expansões dessas novas relações de poder, materializadas nas
novas técnicas na produção de variedades de arroz e trigo, trouxeram não somente
a supressão das espécies nativas. Todavia, foram fundamentais para os impactos
sobre os recursos hídricos, haja vista que culturas com as novas variedades
introduzidas, como arroz de duas safras, exigiam maior oferta hídrica nos períodos
das monções de inverno com grande período de estiagem, por meio da irrigação e
todos os mecanismos de represamento.
Outro interessante questionamento realizado por Shiva (1996) no que
concerne às “benesses” da Revolução Verde, diz respeito à tradição na agricultura
da população indiana. Por conseguinte, a autora questiona para o fato de uma
população, como a indiana, conviver com o “déficit alimentar”, como alega Borlaug,
23 Porto-Gonçalves compartilhando ideia de Escobar, elucida que quase sempre a noção dedesenvolvimento significou o des-envolvimento, ou seja o não envolvimento das populações locais,sempre numa relação assimétrica e verticalizada com os países centrais no comando. Nesse sentido,que não rompeu com o pensamento colonial, com eurocentrismo do saber-poder.
91
se na sua formação sócio-espacial se destaca como uma civilização altamente
ligada à agricultura por milhões de anos? Se houve realmente períodos de fome, tal
situação está ligada aos anos de pilhagem e espoliação, promovidos pela Inglaterra,
por intermédio da expansão europeia no oriente como Lembra Marx e Mahatma
Ghandi24.
Evidencia-se então com a Revolução Verde, outra revolução paralela, aquela
das relações de poder, uma vez que o conhecimento técnico/eurocêntrico busca
desqualificar as falas dos grupos subalternizados, por meio da legitimação do
discurso cientifico. O que há embutido no discurso da fome e do desenvolvimento na
verdade, é a supremacia de dizer sobre o mundo.
Sousa Santos (2008) traz no mínimo um debate esclarecedor sobre a ciência,
que em boa medida pode contribuir para desmistificar a primazia do discurso
científico elaborado por Borlaug em relação ao combate da fome na Índia.
Prontamente, Sousa-Santos aclara que “todo o conhecimento científico-natural é
científico-social”, ou especificamente, o conhecimento como construção social em
determinado espaço, guardadas as suas intencionalidades, como lembra o geógrafo
Milton Santos ao ser traduzido no fenômeno da técnica.
A partir da relação entre espaços geográficos e localizações epistemológicas,
problematizada a partir da obra de Mignolo (2005), pode-se apontar que Borlaug ao
introduzir as variedades na Índia, institui também relações de poder legitimadas pela
ciência, em detrimento do saber camponês estruturado pelo binômio cultura-
natureza na apropriação social da natureza e seus mecanismos específicos de
manejo da terra.
Como mensurado outrora em relação aos vários protagonistas na
institucionalização da Revolução Verde, vale ressaltar as importantes relações
políticas de planejamento/ordenamento do espaço agrário indiano, ou até mesmo a
participação das fundações Ford e Rockefeller, as quais tiveram grande papel por
meio dos “onguismo” inaugurados em solo indiano. Esses personagens se
caracterizavam como principais agentes do projeto “colonial” da Revolução Verde,
atuando até mesmo na área da saúde com ideia do controle da natalidade, ou até
24 Para desenvolver a Inglaterra foi necessário o planeta inteiro.O que será necessário paradesenvolver a Índia?
92
mesmo promovendo a “colonização das subjetividades” por meio da concessão de
bolsas de estudos/pesquisas nos Estados Unidos e Europa para pesquisadores
locais.
No Brasil, como em outros países da “periferia” do sistema-mundo-moderno-
colonial (Porto-Gonçalves, 2006), a Revolução Verde envereda por inúmeras teias
de agenciamentos, logo não há como percorrer por meio de uma análise única,
acerca desse fenômeno de transformação das relações de poder na agricultura.
Genericamente, os agenciamentos locais dependiam do ordenamento do espaço
agrário e suas combinações com créditos vultosos.
O momento histórico brasileiro, sobretudo no governo militar, demandava
mudanças substanciais no uso da terra, uma vez que havia a predominância do
latifúndio, tão questionado pela esquerda brasileira da década de 1960. Outro fator
que figura esse momento impar, reside nas lutas cada vez mais sólidas promovidas
pelos movimentos camponeses25.
Para tanto, criasse o estatuto da terra de 1964, o qual visava delegar sobre o
desenvolvimento agrícola e a política de reforma agrária, sendo a última antagônica
a que se prestou de fato esse marco legal. Deturpar-se a noção de função social
para função econômica da terra. Logo, institucionalizaram-se elementos estratégicos
para a “blindagem” do “latifúndio produtivo”, por intermédio da participação cada vez
mais massiva do Brasil no mercado mundial de commodities agrícolas.
No campo dos agenciamentos políticos, com resultantes na estrutura sócios-
espaciais do espaço agrário do Brasil central, articula-se e cria-se marcos legais
como a Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste – SUDECO – por
meio da lei nº 5.365 de 1967 e o Programa de Desenvolvimento do Cerrado –
POLOCENTRO, criado em 1975, os quais tiveram papéis fundamentais, para o
estabelecimento de uma nova dinâmica para o Brasil central, conforme exemplifica
Diniz (2006), dessa maneira se tornando basilar para aliança terra-capital tão
presente nestas áreas de expansão da agricultura capitalista.
Baseado na concepção de polos de crescimento, o programa selecionou 12 áreasde cerrado com alguma infraestrutura e bom potencial agrícola. Essas áreasreceberam recursos para investimentos e melhoria da infraestrutura, enquantofazendeiros dispostos a cultivar ali puderam participar de um programa
25 Há nesse momento, uma grande efervescência política, sobretudo com as ligas camponesas.
93
extremamente generoso de crédito subsidiado. Tratava-se de uma linha de créditofundiário, de investimento e de custeio a taxas de juros fixadas em níveis muitoreduzidos e sem correção monetária. Com a alta taxa inflacionária, e com oslongos períodos de carência e prazos de pagamento, o crédito do POLOCENTROtornou-se uma virtual doação aos seus mutuários. (DINIZ, 2006, p.115-116).
Para justificar tal avanço do capital em áreas do cerrado, o Estado e a
iniciativa privada se apóiam no discurso científico e das “chamadas vocações
econômicas”, os quais buscaram estruturar as ações sob o prisma do progresso e
do desenvolvimento, em detrimento das condições sócio-ecológicas do cerrado.
Esse discurso se constituiu como importante estratégia para legitimar a expansão do
agro(hidro)negócio sobre as terras das populações pré-existentes do cerrado e da
sua fauna e flora.
Por conseguinte, mudam-se as dinâmicas e formas de uso das chapadas e
veredas, conforme elucida Porto-Gonçalves (2006). Esses locais esses que eram
ocupados por populações camponesas, as quais desenvolviam sua agriCULTURA
tradicional em lugares com grande oferta hídrica (brejos, pântanos e varjões). Essa
agricultura local era combinada com a criação de gado e extrativismo de frutos do
cerrado como pequi, fava d’ anta, baru e outros elementos típicos do cotidiano do
homem cerradeiro.
As regiões mais pobres em recursos hídricos, as chapadas, onde a água se
encontra em uma camada mais profunda do solo, com o emprego de novas
tecnologias para a captação desse recurso, essas áreas começam a ter uma nova
importância para a expansão da agricultura capitalista, com forte subsídio técnico da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMPRAPA, divisão criada no
Centro-Oeste na década de 1970.
Outro importante agenciamento estruturante para o sucesso da Revolução
Verde nas áreas de cerrado, deu-se com a implementação na década de 1970 do
Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento do Cerrado –
PRODECER, o qual visava sanar parte do problema de abastecimento do Japão,
atingido diretamente com as medidas de embargo provisório das exportações dos
Estados Unidos realizadas por Richard Nixon em 1973, sobretudo para a garantia do
abastecimento interno americano.
94
Tal empreendimento se caracteriza com maior complexidade, uma vez que
denota a grande capacidade de alguns atores transitarem em nível global, numa
condição transescalar do capital26. Nesse sentido, os recursos alocados foram
oriundos desde fontes institucionais como o governo japonês e iniciativa privada
como Long Term Credit Bank, além dos órgãos Japan Internacional Cooperation
Agency – JICA (financiamento de projetos-pilotos) e Overseas Economic
Cooperation Found – OECF (financiamento de projetos de expansão).
Portanto, as mudanças das relações de poder, por intermédio da
“disseminação” da Revolução Verde, devem ser miradas a partir do desenho de uma
geografia política de ordenamento territorial.
Enquanto fenômeno da técnica, cabe destacar atualmente aquilo que muitos
destacam como “paradigma” tecnológico das biotecnologias. Apesar de procurar
versar a partir de uma narrativa “diferenciada” daquela oriunda da Revolução Verde,
ou de uma mudança no paradigma técnico diferenciado daquele desenvolvido a
partir da década de 1940, ambos simbolizam o controle sobre a vida, por meio das
sementes, privando assim os camponeses das sementes crioulas, cada vez mais
escassas com competição entre as espécies de cultivares.
2.3- O desenvolvimento rural e a plasticidade do capital
Embora a noção de desenvolvimento empreendida no pós-guerra se
configure como seminal aparato da expansão do capital em um movimento cada vez
mais trans-escalar, segundo autores como Escobar (1992) e Gómez (2006), mesmo
não operando uma mudança do status quo, mas sim realizando sua manutenção, a
partir da década de 1980, esta noção tão cara aos sistemas locais de saberes e
signos, sofreu alguns deslocamentos discursivos, à medida que procura abranger
uma nova “clientela”, até então negligenciada pelos párocos do desenvolvimento e
da Revolução Verde.
Mesmo diante de tal mudança, não se pode afirmar como prega o ideário do
desenvolvimento, que essa “nova clientela”, aqui colocados como principais
26 Tal inclusive pode ser entendida como embrião/indicativo do fenômeno da atualidade da aquisição terrasbrasileira por estrangeiros.
95
exemplos os camponeses, meio ambiente e mulheres, experimentaram da
possibilidade da construção de projetos emancipatórios, muito pelo contrário, se
enquadraram numa tentativa cada vez maior de controle social.
Ao lado dessa mudança nas direções do desenvolvimento, que se deslocam e
operam alguns conceitos e categorias, haja vista a participação de grandes
instituições como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional nos fóruns
decisórios mundiais para restruturação das políticas nacionais, bem como resultado
o controle social das populações terceiro-mundistas.
Cabe salientar, como elenca Escobar (1998), que os discursos não estão
divorciados das práticas, portanto se localizando como importante aparato na
construção de signos. Ao analisar este deslocamento de sentidos/esvaziamentos
políticos, que Dagnino (2004) se debruça na problematização acerca da confluência
perversa dos discursos que se opera na contemporaneidade, à medida que essas
grandes instituições financeiras concentradoras de poder procuram esvaziar os
sentidos de conceitos e categorias, até então utilizadas para operacionalizar a
análise do movimento do tecido social e dos grupos historicamente subalternizados.
Logo, noções como cidadania27 e participação, são tomadas para si por estas
instituições supracitadas, entretanto com os sentidos deturpados em relação aos
propósitos emancipatórios iniciais, cada vez mais distante da ideia de uma cidadania
plena, bem como a participação enquanto construto de uma democracia sólida.
No enveredar teórico-conceitual-político da desconstrução do
desenvolvimento, enquanto noção com grande impacto na realidade torna-se
fundamental apreender o sentido que tais mudanças introduzem na sociedade e
quais os seus resultantes na academia e nos protagonistas das lutas sociais.
Constituído daquilo que Quijano (2005) apreende como sistema mundo-
moderno-colonial, a abordagem a partir das concepções do Banco Mundial, Fundo
Monetário Internacional e Instituições de Desenvolvimento Regional, se constituíram
27 O que a contemporaneidade mostra na realidade, que mais importa ser consumidor em potencial,assim com a possibilidade de “consumir” o Espaço urbano caracterizado pelo Shopping Center,portanto a cidadania como possibilidade participação plena capitalista, ao invés de uma cidadaniafomentada pelos movimentos sociais e grupos subalternizados. Tal perspectiva adquire umsignificado interessante, à medida que contradiz a ideia de “marginalidade”, uma vez que não erige amargem, o que se opera com o capital, se caracteriza pela inserção/participação precarizada,conforme fomenta o sociólogo José de Souza Martins.
96
como verdadeiros vetores do eurocentrismo, uma vez que sob uma construção
discursiva altamente etnocêntrica, operaram uma legítima violência simbólica, quiçá
epistêmica, ao realizarem a leitura acerca das populações dos países
subdesenvolvidos sob os enfoques homogeneizantes.
A correlação estabelecida permite dizer que esta nova “preocupação” advinda
da lógica do capital, sobretudo acerca do campesinato, que ao esvaziar todos os
sentidos do mundo camponês, também se estabelece uma trama social perversa, já
que induz reduzi-lo ao mundo do econômico do capitalismo agrário, como agente
fundamental, o qual como qualquer outro empreendimento capitalista, deve
respostas produtivas ao capitalismo cada vez mais globalizado.
A referida mudança na ordem dos discursos foi de extrema eficiência para as
instituições internacionais, grande corporações e as alianças com as classes
burguesas locais, haja vista que procurou minar todo foco de resistência e de
emancipação. Nesse sentido, esta capacidade de incursão dos discursos, exerceu
fundamental função nas políticas nacionais de desenvolvimento, nesse caso do
desenvolvimento rural. Este processo talvez tenha sido mais doloso na América
Latina, haja vista a sua experiência com as lutas das populações camponesas, vide
exemplos: Chiapas, Balaiada, lutas empreendidas pelos campesíndios no México
como bem classifica Bartra e camponeses brasileiros em suas múltiplas estratégias
e facetas pelo direito de uma história construída pela própria condição de sujeitos no
enveredar histórico.
O que transparece de fato nessa inversão dos sentidos dos discursos que
reproduzem a perspectiva etnocêntrica de construção do outro, reside em uma
tentativa factível de esvaziamento conceitual dos conceitos, os quais, em grande
medida têm grandes impactos no cotidiano das lutas dos sujeitos, assim minando
todo um histórico de luta e resistência destes grupos.
No Brasil, este enfoque de certa forma acabou por influenciar alguns meios, à
medida que a partir da década de 1990, intelectuais como Abramovay e Lamarche,
se destacaram como principais defensores de uma nova lógica operacional de uma
economia política dos pequenos agricultores no interior da sociedade capitalista.
Embora estes creditem a possibilidade de coexistência da pequena produção em um
capitalismo mundializado, em suas análises, estes autores acabam por transitar em
97
direção a um reducionismo, à medida que conceituam esses camponeses como
agricultores familiares numa perspectiva altamente economicista, como se não
nunca houvesse uma luta histórica do campesinato pelo seu lugar na sociedade,
assim esse “pequeno produtor”, sendo classificado quase como numa relação de
“geração espontânea”, por meio das políticas públicas de “reforma agrária”.
Esta mudança dos conceitos e categorias, no caso brasileiro, como já
explanado, traz à tona outras perspectivas, sobretudo na aplicabilidade das políticas
de Estado, em que o conceito de território, mesmo ressignificado, aparece numa
perspectiva zonal e estritamente normativa do espaço, assim indissociado da noção
de desenvolvimento.
Os territórios rurais e/ou territórios da cidadania incrementados nos governo
de FHC e Lula respectivamente, demonstram a necessidade cada vez mais
preponderante por parte do Estado capitalista, de exercer os controles dos
processos sociais, por meio do controle e normatização do território. Destarte, mais
que simples conflitos semânticos, estes processos de ressignificação dos
conceitos/categorias, enunciados a partir das grandes instituições internacionais,
possuem grande poder de direcionar os signos do devir societário, por meio do
empreendimento de poderosos discursos quanto à inclusão das minorias e das
diferenças.
Cabe destacar, que à geografia, o que mais chama atenção para a
necessidade para a desconstrução dos discursos, práticas e representações, nesse
caso, é o território, uma vez que este tem sido, conforme o debate relacionado por
Dagnino (2004), esvaziado e deteriorado enquanto conceito pelos principais agentes
de promoção do desenvolvimento, desta forma se destacando como parte
inquietante do debate da ciência geográfica. Nesse sentido alguns questionamentos
se mostram fundamentais no papel de desconstrução desses conceitos empregados
na leitura do “real”. Será que esses territórios de orientação dos grandes organismos
internacionais, com fundamental pela na orientação das políticas públicas nacionais,
corresponde o território camponês, constituído historicamente, por meio do conflito?
Ainda em Escobar (1998), cabe destacar, mesmo que de forma periférica, a
interessante chave de leitura ofertada por este autor concernente à construção da
noção de natureza, uma vez que esta, por meio destes novos olhares sobre os
98
países subdesenvolvidos, será reinventada pelos preceitos do desenvolvimento,
fomentados pelas grandes instituições internacionais. Embora se mantenha a velha
lógica do capitalismo, da natureza como recurso, entra em jogo com as recorrentes
conferências internacionais sobre o meio ambiente, uma nova geopolítica ambiental,
à medida que se operacionaliza uma forma diferenciada de acumulação capitalista
com a preservação dos recursos naturais e da biodiversidade explorados, sobretudo,
pelos laboratórios das grandes corporações farmacêuticas e da área da cosmética
como vêm ocorrendo com o capitalismo verde (O’CONNOR, 2002).
Embora haja essa “preocupação” com a natureza, agora transformada em
meio ambiente, estes processos se edifica a partir dos preceitos de um sistema-
mundo-moderno-colonial (Quijano, 2005). Por meio da objetividade reducionista da
ciência, que se estabeleceu toda uma teia de discursos, os quais sempre trataram
de uma racionalidade28, sequer a única, capaz de apreender e de se apropriar dessa
natureza mercadoria. Nesse sentido, com a emergência dessas observações para o
mundo atual, a partir do capital em seu novo catecismo econômico, que se destitui o
mundo de suas subjetividades que emanam das populações locais. O Signo e a
coisa já não se completam como pares dialéticos.
Outra questão que vale sublinhar, sobretudo sob o aspecto epistemológico,
diz respeito à posição da natureza na perspectiva do desenvolvimento, pois poder-
se-ia elucidar que esta, operacionalizada a partir deste reducionismo, não mais
carrega sua complexa relação na mediação pela cultura, mas sim, como
componente fundamental da economia.
De fato a economia, enquanto recurso analítico se estruturou como
importante ferramental desta invenção do mundo no pós-guerra, assim esvaziando-o
das múltiplas possibilidades de significações das várias relações espaço-temporais.
Assim, agriculturas autóctones, formas plurais de apropriação da natureza e outras
matrizes de racionalidades, são operacionalizadas a serviço do capital, numa
constante dialética entre sujeição-resistência.
28 Porto-Gonçalves (2007), desenvolve um debate interessante, pois ao analisar o discurso de criaçãodas reservas extrativista no Acre, por parte do Estado se constituiu o discurso do “uso e manejoracional da floresta, neste sentido, o racional não era o caboclo, o índio ou seringueiro, mas simproduto de uma racionalidade branca, europeia exógena. Logo, o autor em um insight interessante,chama a atenção para pensarmos em uma outra matriz de racionalidade, como provocaçãoepistêmica para as práticas acadêmicas, científicas e políticas.
99
Nesse sentido, acredita-se como já assinalado, que o ideário da agricultura
capitalista na contemporaneidade realiza, com muita propriedade, uma construção
de discursos a partir desta constituição do sistema-mundo-moderno colonial
(QUIJANO, 2005), assim instituindo uma dicotomia entre o moderno e barbárie,
embora oculta-se a grande relação destas duas categorias em suas práticas como
bem provoca Oliveira (2004). Essa agricultura se realiza pelas grandes produções
mecanizadas, ditas modernas. Por outro lado, se faz também à custa da produção
de grande violência e expropriação, destarte da barbárie, como vem ocorrendo
sistematicamente no Brasil, em particular análise, em Mato Grosso do Sul, assim
apontando em direção de uma legítima ambivalência do velho e do novo.
100
3- A CENTRALIDADE ANALÍTICA DO TERRITÓRIO NA QUESTÃO AGRÁRIABRASILEIRA
“O território envolve sempre, ao mesmo tempo (...), uma dimensãosimbólica, cultural, por meio de uma identidade territorial atribuídapelos grupos sociais, como forma de controle simbólico sobre oespaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma deapropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma dedomínio e disciplinarização dos indivíduos.”(Haesbaert, 1997:42).
O território enquanto conceito operacional de leitura da inscrição das relações
de poder no espaço, bem como produto real das disputas dos sujeitos sociais, com a
questão agrária na América Latina, especificamente nesse caso no Brasil, vem
adquirindo grande importância analítica, à medida que o movimento da sociedade
aponta para uma constante disputa de poder, assim não negligenciando que a
existência do território, se dará com o poder enquanto núcleo epistêmico desse
importante conceito da geografia, o qual vem sendo abordado por inúmeras áreas
da produção do conhecimento na tentativa de leitura da realidade.
Outro fato a ser explicitado no redescobrimento desse conceito, reside nas
“novas formas” de controle social, uma vez que segundo Haesbaert (2008), haveria
um processo de controle social que está indubitavelmente ligado ao controle do
território, seja por intermédio daquilo que o autor sugere como contenção territorial,
seja no caráter normativo do espaço, empreendido com maior relevo, com a criação
das reservas ambientais ou até mesmo com o planejamento focado no território e/ou
o estabelecimento de uma tipologia de território, orientados pela governança.
3.1- As tipologias que se erguem acerca do território
O território, na mesma proporção de seu uso como conceito explicativo da
realidade empírica, vem também assumindo diversas facetas ao tentar-se enquadrá-
lo em sistemas teóricos conceituais infinitamente diversos. Esse fato, que provoca a
formulação múltipla desse conceito, se deve em parte aos novos rumos metabólicos
do capital com a sua fluidez e mobilidade cada vez maiores inseridos numa
perspectiva trans-escalar, multiterritorializada (HAESBAERT, 2006). Entretanto, por
101
outro lado, não se deve negar nessa ancoragem apoiada no território, a importância
do levante de outras falas dos grupos historicamente sulbalternizados, ou aquilo que
Porto Gonçalves (2006), denota como uma geograficidade do social, reivindicando
assim, outros significados para o ser e estar cotidiano, ou outras territorialidades.
Nesse sentido, que o apelo espacial do existir destes grupos ganha força, à medida
que o território conquista novo enfoque.
Por outro lado, como esclarecem Fernandes (2009) e Gómez (2006), a
abordagem territorial recebe grande importância também, no campo das categorias
da prática, à medida que por meio do empreendimento das políticas liberais, ela
começa ser instrumentalizada como espaço da governança, sobretudo a partir dos
enfoques das grandes agências internacionais de planejamento e integração, como
Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo projeto da Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) seja no espaço nacional, vide
exemplos a criação dos Territórios Rurais da Cidadania, ou com os planos
estratégicos de desenvolvimentos regionais, que transcendem a partir da mobilidade
e poderio trans-escalar de alguns atores hegemônicos, conforme já problematizado
anteriormente com os esvaziamento político dos conceitos e categorias.
Tal leque de possibilidades de leitura a partir do território, tem se notabilizado
incessantemente também pelos interesses de outras áreas do conhecimento, assim
permitindo à geografia, um autoexame de seu legado produzido até o momento.
Nesse sentido, áreas das ciências humanas como a antropologia, sobretudo aquela
comprometida com a apreensão de outras formas de vivencia territorial e
cartografias29, têm trazido importantes contribuições para o debate desse conceito,
mormente com a empiria, o que em última instância, logra para o não engessamento
da realidade empírica nos aparatos teóricos- conceituais.
Segundo Haesbaert (2006), esta redescoberta do território pelas ciências
humanas/sociais, se faz de forma paradoxal, pois essa preocupação de leitura,
renasce muito mais para determinar o seu fim com os processos de mobilidade do
capital antes entendido pela “desterritorialização” no globalismo pós-moderno
(HAESBAERT, 2010) e a erosão do território estatal de caráter zonal, por meio de
29 O trabalho realizado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, por meio das chamadascartografias sociais, representa essas novas representações do espaço, assim como uma perspectivadiferenciada do vivido territorial.
102
um desencaixe espaço-tempo, do que necessariamente numa nova mirada acerca
do território na era dos fluxos, assim entendidos na dicotomia com a rede, que se
por um lado é fluido ou fixo, por outro jamais em uma relação dialética.
Embora se assevere a emergência de uma teia de enfoques a partir da
mobilidade do capital no neoliberalismo e o consequente levante dos sujeitos, cabe
salientar as não menos importantes abordagens de caráter econômico, à medida
que estas tiveram papel fundamental neste debate de cunho espacial.
Mister se faz a contribuição Calabi & Indovina (1973), visto que a partir das
influências do pensamento marxista, estes teóricos do urbanismo concebem o
território como:
O território (na sua totalidade) não é “outro” com relação ao “processocapitalista”, mas, ao contrário, ele é usado e se transforma em funçãodaquele processo geral. Isto significa: a) que o processo dedesenvolvimento econômico tende a abarcar com as suas relações, todasas esferas da produção de mercadorias e por consequência, todo oterritório; b) que na base deste processo está a tendência à concentraçãodo capital, portanto o “uso capitalista” total do território deve ser analisado eestudado em relação ao processo de concentração do capital, com aconcentração tão acentuada das massas de homens e de capitais emdeterminados pontos, progride a concentração destas massas de capitaisem poucas mãos. Contemporaneamente ocorre, de novo, uma transferênciae um deslocamento em consequência da situação relativa dos lucros deprodução e de mercado, que mudou com a transformação dos meios decomunicação. (p.1-2).
No que tange ao debate fomentado por Calabi & Indovida (1973), cabe
salientar que algumas questões parecem fundamentais, sobretudo para a geografia
e outros campos afins que tratam da temática espacial em suas incursões
epistemológicas. Nesse sentido, vale fundamentalmente citar algumas pistas no que
rege o território como conceito síntese dos conflitos entre os homens em suas lutas
societárias.
Tal como estes autores operacionalizam o conceito, sobretudo a partir da
ideia de totalidade, estes mais se aproximam da abordagem do espaço, com sua
linguagem arraigada nas superestruturas e infraestruturas, portanto com certa
proximidade naquilo que Santos (1995) coloca como condição interacional
indissociável entre sistemas de objetos e sistemas de ações, com território usado
conforme o geógrafo brasileiro ou então com o entendimento síntese do espaço
como ação e produto em Fani (2011), do que necessariamente como uma
103
possibilidade de sobreposição conceitual, ou uma constelação de conceitos entre
espaço e território (HAESBAERT, 2010).
Embora esta abordagem tenha avançado em muitos aspectos, sobretudo
aqueles relacionados ao pensamento marxista, assim qualificando-o com uma
abordagem espacial inserindo nessa lógica os fenômenos da exploração de mais-
valia, acumulação capitalista, a renda e a circulação do capital como elementares
nos pressupostos espaciais, por outro lado, negligencia para a possibilidade da
emergência de outras territorialidades, que não sejam orientadas necessariamente
pelos desígnios do capital, bem como territorialidades que se mostrem com foco nos
aspectos culturais.
Na tentativa de estabelecer um enveredar analítico no tocante ao território,
Haesbaert (2006), formula esse em duas perspectivas distintas, denotadas pelas
condições; materialismo e o idealismo. Embora o autor opte por realizar a descrição
destas perspectivas de forma dissociada, este o faz na intenção didática do debate
sobre o conceito em questão. Nesse sentido, o teórico alerta para o equívoco de se
realizar tais separações, à medida que se incorre de um reducionismo e/ou
empobrecimento do caráter multidimensional inerente ao território, portanto das
disputas dos sujeitos na “arena” espaço.
Na geografia, os enfoques relativos ao território, assumem majoritariamente
um caráter materialista, uma vez que por meio da influência do materialismo
histórico – como já salientado – e a própria noção de território ligada ao Estado
moderno-jurídico, têm se notabilizado como pontos cruciais na leitura elementar da
inscrição do homem na natureza. Pode-se afirmar também, que mesmo entre
geógrafos, sobretudo aqueles preocupados com o enfoque cultural, o conceito de
paisagem e lugar tem comparecido como importantes ferramentais analíticos.
Por conseguinte, ao analisar o território na perspectiva materialista, Haesbaert
(2006), com uma intenção altamente didática, traz três importantes concepções, a
saber: a concepção de cunho naturalista, de base econômica e de tradição jurídico-
política. Sendo essa última, quiçá a mais privilegiada nos interstícios
epistemológicos da geografia.
Embora se configure como algo inacabado o debate que envolve o território,
não cabe aqui redesenhar uma genealogia do conceito em questão, mas sim
104
enveredar pelos pontos de confluência, nos quais estas concepções, ora se
aproximam, ora se distanciam, uma vez que transitar por estes referenciais, permite-
nos o entrecruzamento conceitual com o objeto empírico em questão, nesse caso a
territorialização camponesa em Nioaque-MS e sua correlação e distanciamento de
propostas/concepções com o território da governança, denotado pelo território da
reforma.
Há de fato que se aludir para o fato da incompletude e condição multifacetada
do território, pois mesmo em casos nos quais a priori haveria algumas características
político-administrativas, estas não estão inseridas sozinhas como componentes do
território, muito pelo contrário, se nota uma justaposição ou até a necessidade
complementar de outros atributos para a legitimação de seu teor político-
administrativo.
Ao reivindicar para a sociedade o direito “natural” a um espaço ou mesmo àpropriedade privada da terra, tornando um direito quase dever, na medidaem que correspondência ao “espaço vital” sem o qual não se daria o“progresso” social, alguns estudiosos desenvolveram a associação que fezdo território político – principalmente o território do Estado –, em maior oumenor grau, uma extensão da dinâmica que ocorria no âmbito do mundobiológico, mais especificamente no mundo animal. (Haesbaert, p.64, 2006).
Embora haja a prevalência da leitura a partir dos aparatos político-
administrativos, não se pode negligenciar para o fato desta constituição estar
relacionada aos outros enfoques de cunho naturalista e econômico. No demais, vale
salientar, conforme alerta Haesbaert (2006), que embora seja um equívoco reduzir o
legado de Ratzel ao caráter naturalista na perspectiva do território recurso como se
tem realizado na geografia com o conceito de espaço vital, assim credenciando-o
como um “determinista”, por outro lado, não se deve obscurecer esta posição
biologizante inserida em seu constructo teórico acerca do espaço e território.
Na atualidade, a exemplo desta multidimensionalidade do vivido territorial, o
processo de fechamento das reservas ambientais aparece como exemplo
emblemático desta condição, pois se inicialmente o discurso da proteção da
biodiversidade, portanto de fundamento naturalista se destaca como principal
motivador de uma contenção territorial, não só deste enfoque se caracteriza essa
porção espacial, visto que esta se tornar cada vez mais entrelaçada com as
dimensões político- administrativas e econômicas. Nesse sentido, o controle dos
105
fluxos não é realizado pelas “forças” naturais, ou territorialidades de cunho
naturalista, mas sim pela contenção territorial instrumentalizada pelo Estado. Do
mesmo modo, o enfoque econômico ganha notoriedade, ao passo da emergência de
um processo de valoração cada vez maior da natureza, por intermédio de um
capitalismo verde (O’Connor, 2002). De fato, as questões elencadas, trazem à tona,
o poder como componente fundamental do território, assim como núcleo epistêmico
deste conceito geográfico.
Por outro lado, alguns autores, em sua grande maioria, ligados ao debate de
uma geografia de cunho culturalista, em momentos quando procuram contemplar o
território em suas análises, acabam entendendo-o como um território imaterial.
Embora concordemos com a importância dos signos e a imaterialidade de um modo
geral contidos no movimento da sociedade. Contudo, compreende-se que o território
deve conter em sua constituição a condição material-imaterial, como binômios
indissociáveis. Ainda que o debate da imaterialidade do território avance na leitura
cunho subjetivo, este o faz com certas fissuras epistemológicas, pois negligencia
que toda apropriação material é, antes de tudo, também imaterial. Grande exemplo
desta exemplificação pode ser notabilizada pela terra na agricultura, aqui não
entendida como sinônimo de território.
Para o capitalista, antes mesmo de sua territorialização, portanto de sua
efetiva expansão, a terra é construída sob os signos da reprodução do capital por
meio da mais-valia e exploração da renda. Esta lógica dos signos dos capitalistas,
pode ser exemplificada pelo mapa da Syngenta (figura 05). Embora apenas seja
uma representação do espaço ainda do poderio desta grande corporação ligada à
agricultura capitalista, o campo simbólico adquire, nesse caso, relevante
importância, embora não esteja separado da materialidade na constituição de
verdadeiros territórios-redes edificados por estas empresas.
106
Figura 05- Mapa República da Soja (SYNGENTA)Fonte: EVIA (2006).
Por outro lado, em populações camponesas e toda uma diversidade de
povos, os signos são constituídos a partir da reprodução da vida, o que indica a
condição indissociável das “coisas e suas representações”; nesse sentido,
fundamental condição para a leitura focada no binômio material-imaterial do
movimento destas populações. Tal fato pode ser elucidado a partir da gama
epistêmica que se levanta. Nesse sentido, mais que simples elementos geográficos
objetivos, os rios, as matas, o cerrado e tantos outros espaços, adquirem
subjetividade por parte destas populações, que vai além do simples ato de
apropriação material em direção do “experimentar a completude” do vivido territorial.
Outra abordagem concernente à perspectiva teórica de um território imaterial,
embora nesse caso, não se possa enquadrar o autor na perspectiva culturalista, foi
fomentada por Fernandes (2009), na qual esse entende essa tipologia de território,da seguinte maneira;
O território imaterial está presente em todas as ordens de territórios. Oterritório imaterial está relacionado com controle, o domínio sobre oprocesso de construção do conhecimento e suas interpretações. Portanto,inclui teoria, conceito, método, metodologia, ideologia, etc. O processo deconstrução do conhecimento é, também, uma disputa territorial queacontece no desenvolvimento dos paradigmas ou correntes teóricas.(p.210).
Ainda que o autor entenda o território imaterial numa perspectiva relacional
com a materialidade do social/real, entende-se que não seria prudente compactuar
com esta distinção entre territórios, pois parte-se do entendimento que tal
107
direcionamento contribui para o esvaziamento do debate, assim perdendo a riqueza
que a concretude do território pode ofertar para a mirada do pesquisador.
Embora concordemos que a produção de conhecimento e a disputa contida
neste campo, possa se configurar como fundamental instrumento de poder, como o
foi na edificação da ciência moderna, por outro lado, não se pode concordar que
esses aparatos, como aponta Fernandes (2009), possa se constituir como um
território, a não ser de uma forma metafórica ao designar as disputas em curso na
sociedade capitalista, sob a qual se luta por meio da produção do conhecimento pela
primazia de dizer o que é o mundo.
Outro fato necessário de elucidação, diz respeito ao par material-imaterial da
produção de ideias e de conhecimento, uma vez que se acredita que estas não são
constituídas em um vazio/inércia em relação ao real-concreto-empírico. Muito pelo
contrário, o pressuposto da não neutralidade exprime a condição indissociável
material-imaterial, a qual está fadada toda a sociedade com as suas diferentes lutas.
Nesse caso, com o descrito papel das ideias e da produção do conhecimento, pode-
se acrescentar que há uma estreita vinculação com as relações de poder.
Entretanto, apreendem-se nesse caso, conceitos sociológicos como ideologias,
visão de mundo e o discurso no campo da linguística, como mais apropriados para a
descrita discussão fomentada pelo autor.
Na questão posta, poder-se-ia problematizar no sentido de pensar estes
últimos conceitos mencionados, como componentes formatadores dos territórios.
Porém, não como um vetor unidimensional como a tipologia apresentada do território
imaterial. Embora se constitua uma verdadeira disputa, vide exemplo as várias
direções da produção do conhecimento técnico ligado diretamente à reprodução do
capital em suas múltiplas vertentes, ou ainda no diálogo das ciências humanas com
os saberes subalternizados historicamente. Tais fatos apontam na verdade, que não
seria prudente segmentar como um território, uma vez que esse processo em algum
momento terá rebatimentos na materialidade, no real-empírico.
A respeito do papel do pensamento e de suas variáveis como conceito, categorias e
teoria, que Saquet (2010) a partir do pensamento do grande intelectual búlgaro,
György Lukács, elucida que “a processualidade do pensamento é consequência da
processualidade de toda realidade (Lukács apud Saquet, 2010, p.157).
108
Unindo aos esboços sobre a temática do território, a condição integradora, segundo
Haesbaert (2006), embora em certa medida se aproxime do conceito de região com
algumas similitudes, se configura como uma mirada interessante, já que admite uma
abordagem que privilegia vários elementos da trama geográfica. Nesse sentido,
como já esboçado sobre as outras abordagens, não se negligencia para o fato de
que o território só se faz na completude, em função de sua condição integradora,
onde o binômio material-imaterial aparece como condição sine qua non no
enveredar analítico da geografia, bem como condição das disputas dos sujeitos
sociais.
Com essa valorização da condição integradora do território, por outro lado
não se deve negar, que em algum momento (ou escala), uma das condições
contidas nessa perspectiva (material-imaterial), pode se manifestar com maior peso,
ou relevância para a leitura.
O real-empírico contemporâneo tem mostrado cada vez mais a necessidade
de uma leitura de cunho integrador do território, haja vista o levante de várias formas
de questionamentos do status quo. Nesse sentido, especialmente na questão
agrária, a terra enquanto princípio de reprodução da vida, também tem trazido
consigo outros fronts de questionamentos pelos diversos sujeitos sociais, seja por
meio de conflitos por controle da água, da floresta ou ainda empreendimentos das
grandes obras de hidrelétrica, como vem ocorrendo sistematicamente no cerrado
brasileiro, com aquilo que Mendonça (2007), vem designando como um verdadeiro
Agro(hidro)negócio.
Por conseguinte, o conflito desse capital em sua mais fina estratégia de
ordenamento espacial, com camponeses, indígenas, quilombolas e todos os grupos
subalternizados historicamente, apontam esta necessidade de completude analítica
do território.
3.2- Terra e território na questão agrária brasileira
Embora Martins (1989) admita que o campesinato se caracteriza pela tríade
“terra-trabalho-família”, cabe relatar que o campesinato brasileiro é marcado pela
mobilidade, mesmo essa sendo precarizada. Nesse sentido, ousa-se salientar que
embora as condições objetivas de expansão da agricultura capitalista e todas outras
109
formas de exploração indiquem o contrário, acredita-se que esse campesinato ainda
esteja em plena formação. Tal afirmativa, logicamente, não quer dizer que os
movimentos sociais de luta pela terra em suas diferentes estratégias, gozem de um
cenário político favorável; muito pelo contrário, a conjuntura política tem provocado
esses grupos e intelectuais, a pensarem limites e perspectivas das lutas no interior
da sociedade capitalista na contemporaneidade.
O cerne de formação deste campesinato despossuído da terra, pode ser
certamente explicado com inúmeras características do desenvolvimento do
capitalismo no Brasil e a formação da classe burguesa nacional. Assim,
diferentemente de outros países do mundo, conforme já exemplificado com a
formação sócio-espacial dos Estados Unidos, no Brasil as figuras do grande
proprietário de terra e da classe burguesa se fundem em uma só pessoa por meio
de uma aliança, ligeiramente alicerçada no país.
Por conseguinte, diferente das clássicas interpretações acerca do
desenvolvimento do capitalismo, muitas caracterizadas pelo antagonismo de classes
entre proprietários de terra e a burguesia, no caso brasileiro contrariando esta
interpretação, possibilitou uma condição indissociável do sujeito que explora pelo
mecanismo da mais-valia, se tornar um explorador da renda territorial30.
Outra questão que cabe destacar como muitos intelectuais da realidade
brasileira levantam, é que o monopólio da terra no país também possibilitou uma
verdadeira trama, ou seja, os grandes proprietários de terras aqui entendidos na
fusão de classes com a burguesia, de conquistarem o poder político em várias
esferas, em uma verdadeira rotação de poderes políticos divididos entre poucas
oligarquias.
Nesse sentido, para uma apreensão mais cuidadosa sobre a questão agrária
brasileira, fundamental se faz elucidar que a terra enquanto recurso de poder, no
Brasil está relacionada a um pacto político no período colonial como nunca visto em
outro canto do planeta.
Tão importante como entender o mecanismo de concentração de poder, que
Martins (1981a) classifica como pacto político, é apreender os sujeitos originários
30 Algo presente até hoje com o envolvimento do setor financeiro com a terra, relação a qual nãofaltam exemplos como o Banco Bradesco.
110
dessa trama, a qual tem como principal resultante a alta concentração fundiária
reinante na atualidade brasileira.
Desta forma, o processo de formação desse campesinato no Brasil, se dará
por vários eixos, os quais vale realizar algumas consideração acerca desses sujeitos
que basicamente se originam nas terras de outrem, portanto constituindo numa
condição de exclusão ou ainda de inclusão precarizada na economia colonial.
Este pacto político descrito por Martins (1981a), contava com importante
legitimação jurídica, considerando que tanto o mecanismo das sesmarias, como
tantos outros arraigados no marco jurídico, se utilizaram de todas as estratégias
para a concentração da terra. Fica claro que, ao lado dos mestiços, muitos filhos do
branco com índio que comumente na atualidade se conhece como caipiras e filhos
bastardos do branco com negro, ao lado desses, se destacavam também aqueles
filhos dos grandes fazendeiros, que por meio do morgadio, perdiam o direito da
terra, uma vez que essa ficava sob o poderio do filho primogênito. Esses outros
filhos constituíam a parcela de agregados da fazenda, embora ao contrário dos
mestiços e brancos podres, poderiam em alguma medida, reivindicarem seus
direitos em outras terras.
Segundo Martins (1981a), embora o mecanismo jurídico do morgadio seja
extinto pelo império em 1835, os grandes detentores de terras trataram logo de
instrumentalizar outras formas de vetar a dispersão e fragmentação do domínio da
terra. Nesse sentido, os matrimônios intrafamiliares, se caracterizavam como
importante mecanismo de concentração e manutenção da posse da terra, assim
como do poder político.
Esse campesinato tradicional, por conseguinte, historicamente foi moldado
pela relação mediada pela condição de agregado dos grandes fazendeiros. Relação
a qual se estabelece principalmente pela medição de favores, em que sua
permanência e até mesmo proteção contra outros grupos, dependia
necessariamente dessa “devoção” e defesa dos interessantes dos grandes
proprietários de terras. Cabe salientar que a escravidão negreira como uma
atividade altamente capitalizada para o período colonial, de certa forma também
direcionava a função desse agregado nas grandes terras, à medida que a este eram
renegadas atividades complementares ao trabalho dos negros.
111
As atividades mais comuns ligadas aos agregados eram os serviços de abertura de
floresta, como importante estratégia a qual procurava evitar fuga dos escravos.
Como já explanado, todas as estratégias de manutenção do latifúndio, sejam
elas de cunho jurídico ou advindas dos grandes proprietários por meio do seu
relacionamento com os agregados, vide exemplo com o compadrio, foram bastante
competentes, haja vista seu papel de imobilização política desse campesinato em
gestação. Para tanto, diante da escravidão negreira, foi inviabilizada qualquer
tentativa de construção de uma economia paralela, pois esta poderia permitir o
empoderamento desses camponeses, assim indo na contramão desse pacto político
descrito por Martins (1981a). Ao se afirmar tal questão, não se pode afirmar que
havia uma inércia completa com relação às insurgências, mas sim que havia uma
forte tendência à essa imobilização com as relações estabelecidas no interior das
plantations.
Essa formatação descrita do campesinato, com sua relação quase de um
parentesco de “segunda classe” com os grandes proprietários, permite apreender o
quão difusa se constituiu o papel dessa classe em formação, uma vez que, se por
um lado essa não poderia na maioria das vezes usufruir da terra conforme seus
anseios, por outro este também não era um escravo. Por conseguinte, a
estruturação da terra no Brasil, sobretudo antes da implantação da lei de terras de
1850, e a lei de abolição da escravatura de 1988, fizeram com que alguns
intelectuais do caso brasileiro, admitissem uma condição de semi-feudalidade na
lógica dos latifúndios, como afirma Guimarães (1968).
Dentro dessa lógica desencadeada pela troca de favores entre o dono das
grandes terras e o agregado (em uma relação assimétrica), a esse último, em alguns
casos era permitido o consórcio do plantio comercial como cana-de-açúcar no
Nordeste e o café no Sudeste, com o cultivo de gêneros alimentícios, o que permitia
essa complementaridade entre a casa grande e esse campesinato caracterizado
pelo agregado.
Cabe relatar, que esse campesinato nascente na história brasileira, não se
deu apenas nos interstícios do latifúndio, pois segundo Martins (1981) uma
considerável parcela desta classe, foi erigida a partir de sitiantes e posseiros que
ocupavam terras das Sesmarias, embora essas terras ainda não despertassem
112
interesse para a efetiva ocupação dos nobres. Como lembra Prado Júnior (1979), o
abandono de terras já exauridas pelo movimento das plantations, se constituía como
uma das formas desses grupos, como posseiros e sitiantes, de se instalarem na
terra, mesmo que de forma precarizada.
3.2.1- A Lei de Terras de 1850 como elemento da centralidade da terra como poder
Assim como assinalado sobre o período colonial referente ao papel da Sesmaria nas
tramas de poder que envolviam os senhores de terras e camponeses, o marco
político/jurídico, assim como tantas outras formas eficazes de manutenção da
grande propriedade, teve também grande destaque nesse novo momento, que
talvez se apresente como o mais emblemático da história agrária brasileira, assim
como se destaca como um definidor de posições, visto que evidencia os
antagonismos de classes, portanto notabilizando o conflito como ponto central da
relação de posse da terra.
Diante da temática, embora a terra sempre possuísse importância, segundo Martins
(1981a), a concentração desta era justificada pelo alto capital representado pelo
comércio de escravos, embora como no caso do setor canavieiro no Nordeste, se
notabiliza como atividade altamente rentável na época. Talvez, o ponto central desta
inversão na lógica de valoração da terra, onde a mesma por si só, justifica por seu
caráter concentrador, reside na possibilidade destes latifundiários de auferir renda
capitalizada de toda sociedade nesse novo momento.
Diante disso, não se procura afirmar que a prática de sujeição da renda se
apresenta como um fenômeno novo que somente se inicia com o caráter
mercadológico da terra no Brasil. Pelo contrário, como já salientado a partir das
contribuições de Martins (1981) e Moreira (1995), a renda da terra existe antes
mesmo da concretização do modo de produção capitalista. Nesse caso, a condição
dos moradores (Nordeste) e agregados (Sudeste) denunciam a concretização da
sujeição da renda aos latifundiários, seja por intermédio do sistema31 de “parceria”,
seja na destinação de determinada quantia de alimentos em troca de morar e
produzir em terras de outrem.
Não se pode negligenciar para o fato de que a terra após todas as tramas
político-jurídicas, edificadas pela lei de terras de 1850 e com a abolição da
31 Não por acaso, algumas empresas na atualidade utilizam de discurso parecido no sistema deintegração.
113
escravatura de 1888 ganhou novo designíos econômicos, aonde se insere cada vez
mais o caráter rentista até os dias atuais. Assim fazendo daqueles que detém o
domínio territorial, sujeitos capazes do usufruto de muitas benesses na sociedade,
em que a concentração de terras e concentração de poder se constituem como
condição sui generis na historiografia brasileira.
Nesse sentido, conforme Duarte (1939), a ordem privada e a ordem política
se entrecruzam, como o foi com o coronelismo no Nordeste e tantos outros casos
nos varadouros do Brasil com a fusão de classes muito bem operacionalizada. Outra
contribuição seminal para a apreensão da relação terra-poder reside nas análises de
Silva (2008), pois a autora aponta que a questão da terra no Brasil se encontra em
uma linha tênue com o poder, onde há um aparato estatal consolidado em função da
consolidação da grande propriedade privada concentrada em poucas mãos.
Baseado na observação da autora, pode-se afirmar que:
Por volta de 1850, a classe dos proprietários de terra já havia conseguidoestruturar um aparelho de Estado que exercia o poder sobre todo o país,embora de forma desigual nas diferentes regiões. (SILVA, 2008, p.17).
Embora Martins (1981b) oferte uma interessante e panorâmica chave de
leitura no que concerne ao caráter que adquire a terra após a implantação da lei de
terra de 1850 e sua correlação com proclamação da abolição da escravatura de
1888, do rumo mercadológico que esta adquire, para além da máxima – “Terra livre-
negro cativo, terra cativa-negro livre, tão bem desenvolvida por este importante
intelectual da questão agrária brasileira acerca deste aparato jurídico –, Silva (2008)
mostra que sua maior eficiência foi garantir a esse pacto de classes conforme elenca
Martins (1981a), a possibilidade cada vez maior de açambarcar terras públicas por
meio de inúmeras medidas fraudulentas como os processos de grilagem da terra
como nos casos Governador Valadares durante da década de 1940 e Trombas e
Formoso na década de 1960. Por conseguinte, esse avanço no debate proposto por
Silva (2008), que faz Oliveira (2008) a partir dos dados do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária-INCRA (2003), afirmar que do total de terras da
União, portanto de terras devolutas no Brasil, 180 milhões de hectares do solo
nacional estão cercados de forma indevida, o que correspondem a 21% do território
nacional.
114
Nesse quadro, que sob a possibilidade de manutenção da grande propriedade
privada no Brasil, as elites trataram de cercar aquilo que não lhe pertence de fato,
configurando um embaraço numérico nos dados do INCRA, uma vez que em muitos
casos, a soma das áreas cadastradas de determinados municípios, é maior que a
própria área do município.
Assim como o foi historicamente já problematizado a partir dos clássicos da
questão agrária, a classe camponesa no Brasil também se encontra inserida em
propostas distintas de inserção na sociedade. Nesse sentido, conforme elucida
Martins (1981a), essa classe recorrentemente aparece constituída a partir do olhar
do outro. Assim há, na verdade, uma disputa política pela classe camponesa, que
devido sua condição de não assalariado, não obteve o benefício do estatuto do
trabalhador, o que justifica em certa medida essa disputa política, como há em
vários setores.
Poder-se-ia salientar pelo menos quatro vetores de propostas para o campesinato
brasileiro, a saber; o pensamento ecoado pelo Partido Comunista Brasileiro-PCB, a
partir da igreja, pelos planos reformistas de Gourlart e as próprias ideias das Ligas
Camponesas.
Embora houvesse ligação na “tutela política” do campesinato, o partido
comunista brasileiro estava imerso na contradição, pois sob o discurso de um anti-
imperialismo, esse se aliou aos setores da elite brasileira, a fim de promover muito
mais uma perspectiva de desenvolvimento da economia interna, do que
necessariamente uma mudança na estrutura agrária e de poder do país. O discurso
anti-imperialista fez com que essa esquerda perdesse de vista o pacto/ fusão de
classes estabelecido há tempos no Brasil, assim como o caráter a – nacional do
capitalismo, nesse momento cada vez mais trans-escalar.Por outro lado, nesse momento a igreja se coloca com uma postura altamente conservadora, ao
passo que sua aposta no processo de Reforma Agrária se dá de forma pontual, na intenção de
acalmar a grande efervescência política dos camponeses em determinadas regiões do país, como no
caso do Nordeste. Tal fato revela que o temor da proletarização dos camponeses e sucessivamente
seu engajamento com sindicatos urbanos e com o partido comunista, eram os pontos centrais de
combate da igreja com as suas curiosas alianças, ora com os latifundiários, ora com a
burguesia, em detrimento de um projeto emancipatório gestado do campesinato
enquanto sujeito do devir histórico.
115
Em Gourlard, com as múltiplas reformas de bases pensadas na sociedade, no meio
rural, estas apenas refletem muito mais a tentativa de amenizar os conflitos no
campo, ao invés de uma mudança na estrutura fundiária, o que mais tarde, já no
governo militar, acabou se acirrando com o advento do estatuto da terra de 1964.
Com relação às ligas camponesas32, embora tivessem problemas organizativos em
seus primeiros levantes, pensavam a partir de uma proposta autônoma, uma vez
que sofriam o fardo da espoliação a qual estavam submetidos, seja por meio do
pagamento foro, arrendamentos ou pela expulsão da terra e violência física.
Segundo Martins (1981a), ainda que não de forma imediata e com tanta clareza, as
Ligas camponesas conseguiram apreender a função central do latifundiário no
Brasil. Nesse caso, os senhores de engenho e grandes comerciantes da região,
como um só sujeito, portanto conseguiram nessa perspectiva mirar para a aliança de
classes constituintes das raízes da formação econômica brasileira, que ali
permaneciam intactas.
3.2.2- Novos horizontes da longa marcha do campesinato brasileiro
Diante das problemáticas enfrentadas historicamente pelo campesinato
brasileiro em sua permanente luta para entrar na terra, com uma assimetria cada vez
maior na luta de classes, agora acentuada em meados do século XX pelo paradigma
da Revolução Verde, se gesta uma nova forma de organização de luta pela terra.
Essa mudança se deu, sobretudo, com os aprendizados das más sucedidas
relações políticas do campesinato, com outros setores da sociedade conforme
indicado por Martins (1981a).
Nesse sentido, esse novo pipocar dos vários sujeitos em suas
distintas e plurais lutas, denota outra forma mais autônoma quando comparado com
as lutas da década de 1950/60, de pensar e agir acerca da problemática social posta
32 Embora foquemos nas ligas camponesas, não negligencia-se para o fato a existência da umamultiplicidade de lutas empreendidas no interior da sociedade capitalista. Nesse sentido, Trombas eFormoso, Porecatu, Canudos e contestado, cada uma destas em suas respectivas épocas, mostramo protagonismo desse campesinato em formação que ainda hoje luta por terra e autonomia. Por outrolado, a luta camponesa como demonstra Welch (2010), possui inúmeras raízes, conforme estudoacerca dos sindicatos camponeses de 1924-1964, portanto não se restringindo aos acontecimentosmais conhecidos como o fenômeno social das ligas camponesas.
116
por intermédio da concentração de poder e da reafirmação do primado da grande
propriedade privada e do “latifúndio produtivo” no Brasil.
O enveredar desses novos movimentos sociais, marca notadamente a
emergência de uma geograficidade do social, portanto, da tensão de
territorialidades.
Embora se configure como novas formas de lutas, esse nascente movimento de luta
pela terra, com maior expressão o movimento dos sem-terras-MST, suscita da
constante luta do campesinato brasileiro, embora assuma estratégias que em
grande medida se mostrarão mais eficazes e diferenciadas na luta/conquista da terra
no Brasil.
Segundo Fernandes (1999), a gênese do MST possui uma estreita relação
com os grupos oprimidos em maio de 1978:Foi quando os índios Kaigang da reserva Indígena de Nonoai, que vinhamlutando desde 1974 com o apoio do Conselho Indígena Missionário-CIMI,iniciaram as ações para recuperar seu território e resolveram expulsar as1800 famílias de colonos-rendeiros que viviam naquelas terras. A reservaindígena de Nonoai foi criada em 1847 e a entrada na área das primeirasfamílias sem-terra começou na década de 1940, sendo que em 1962 jáexistiam 400 famílias que arrendavam lotes de ate 20 ha. Em 1963, e, tornode 5.000 famílias do MASTER que estavam acampadas na FazendaSarandi, e em outros acampamentos da região, foram despejadas. (p.40).
A ocorrência do conflito de Nonoai, encruzilhada Natalino e tantas outras
experimentações da luta pela terra, trouxeram à tona a prática do acampamento,
como forma de pressionar o Estado e toda a sociedade para a necessidade da
democratização do acesso à terra. Destarte, segundo Fernandes (1999), acampar é
determinar um lugar e um momento transitório para transformar a realidade, pois
esse processo se converte em um aprendizado multidimensional. Nesse momento, a
Comissão Pastoral da Terra emerge como importante agente no apoio aos
camponeses despossuídos da terra.
A prática do acampamento elevada pelo Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra-MST se estabelece como uma legítima luta sócio-espacial, uma vez que
buscava por meio desse contra-espaço (Moreira, 2001), desafiar todo marco legal
estabelecido a partir da máxima da propriedade privada. Nesse sentido, que
Fernandes (1999), atento a essas práticas, vai trabalhar em sua teorização com os
processos de espacialização e territorialização. O primeiro processo se daria com o
117
processo de ocupação de terras, por meio dos acampamentos, assim conforme já
elucidado, se caracterizando como um processo de transição em direção à
conquista da terra designada pelo autor como territorialização.
3.3- Terra e território em Mato Grosso do SulPara uma discussão consistente do projeto em questão, torna-se essencial o
desvendamento das raízes do latifúndio no Brasil e em Mato Grosso do Sul. Nesse
sentido, é preciso entender o processo que permite aos latifundiários deter cerca de
5 milhões de hectares de terras devolutas33 em Mato Grosso do Sul (que
representam 38% sobre as terras devolutas da região Centro-Oeste) e os
alarmantes 8,5 milhões de hectares de terras improdutivas, conforme aponta Oliveira
(2008).
A apropriação e o monopólio da terra sul-mato-grossense foram legitimados
antes mesmo da criação do Estado, como aponta Fabrini (2008). Para este autor, o
Mato Grosso do Sul foi criado para as oligarquias locais. Logo, se destaca nessa
monopolização do território a Cia. Mate Laranjeira como um dos principais agentes
dessa raiz concentradora de terras.
Neste processo, destaca-se o monopólio da exploração de erva mate pelaCia. Mate Laranjeira no sul do Estado. A atuação da Cia. Mate Laranjeiranão permitiu o desenvolvimento de pequenas propriedades, nem mesmopara que os pequenos proprietários servissem como mão de obra na coletade erva-mate. (FABRINI,p.55, 2008).
Para uma pequena abordagem histórica dos elementos que contribuíram para
moldar a fisionomia do latifúndio em Mato Grosso do Sul, opta-se por privilegiar os
momentos mais cruciais da história do Estado, porém sem perder de vista a
dimensão de que a realidade é processual.
O histórico de ocupação do Estado tem como marco preponderante nas
primeiras penetrações do gado em fins do século XVIII. Segundo Sodré apud Bittar
(1997), Minas Gerais sempre teve relações com a história sul-mato-grossense,
havendo uma predominância de marchas do rebanho mineiro para o Oeste34, a fim
33 Lembrando que terras devolutas devem obedecer o que reza o Art.188 da Constituição Brasileiraque diz o seguinte: “A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com políticaagrícola e com o plano nacional de reforma agrária”.34 Sodré elucida que essas áreas de expansão da fronteira da pecuária reuniam característicasgeográficas ideais para a criação bovina. Tal fato pode ser evidenciado quando analisa os fatoresgeoecológicos do cerrado, pois sua vegetação arbustiva e seu pouco gradiente de declividades sãofatores positivos para a pecuária extensiva. (Ab’ Saber, 2007)
118
de se estabelecer nas fartas pastagens do Centro-Oeste, sobretudo em solo mato-
grossense. Com a entrada pastoril, começa se projetar uma nova fisiologia
econômica e social no espaço agrário do Estado.
Os chamados “chapadões de vacarias” na primeira metade do século XIX se
transformaram em um núcleo polarizador e concentrador de rebanhos. Nesse
processo de estabelecimento da boiada, é que surgiram as primeiras fazendas e os
focos iniciais para a expansão do uso da terra nos campos que outrora foram
percorridos pelos bandeirantes no ciclo das penetrações paulistas, conforme aclara
Bittar (1997). Este processo já esboça a representação da terra monopolizada tão
cara às populações35 já existentes no cerrado e aos pobres da terra atualmente.
Para Almeida (2006), o processo de povoamento do estado de Mato Grosso
do Sul (antigo Mato Grosso) possui uma dimensão paradoxal representada pela
Guerra do Paraguai, uma vez que no início ela foi a principal motivadora da
estagnação do povoamento, passando a ser fonte de expansão a partir de 1856 com
o sistema comercial da província de Mato Grosso articulado a partir da navegação
do Rio Paraguai até Corumbá, única via de comunicação entre as cidades platinas e
a capital da província, que redesenhou novos contornos sócio-econômicos para a
região.
Cabe salientar que após o decreto da lei de terras de 1850, a terra no Brasil e
em Mato Grosso do Sul perde o seu caráter de posse, para se tornar uma
mercadoria. Portanto, o que despontava como um monopólio territorial se intensifica
com a possibilidade de compra das grandes terras e de açambarcamento de terras
públicas e também do poder na esfera regional.
A Companhia Mate-Laranjeira contava com forte monopólio de terras no sul
de Mato Grosso. Após a lei de terras, sua territorialização se deu por meio de
arrendamentos, e estes dependiam diretamente de alianças políticas locais. Logo, a
participação da família Murtinho nos negócios do mate, veio consolidar a relação
“terra e poder”, pois essa relação caracteriza o encontro das oligarquias locais com o
poder político, a fim de impor seus interesses pessoais. Esse processo de
monopolização territorial impedia qualquer brecha para a consolidação da pequena
35 Lembrando, conforme elucida Brand et al., as concessões feitas à Cia. Matte Laranjeira atingiramem cheio o território dos Kaiowá e Guarani conforme palavras do autor.
119
propriedade na região, que naquele momento sofrera investida dos migrantes do sul
do país.
Outra questão fundamental a ser abordada no ordenamento espacial de Mato
Grosso do Sul reside na construção da Ferrovia Noroeste Paulista, uma vez que
essa trouxe novas perspectivas para o sul de Mato Grosso, pois essa obra, tornou
possível às oligarquias, a valorização de suas terras por meio da absorção de renda
diferencial36, capitalizando-as conforme afirma Fabrini (2008):
A construção da Ferrovia Noroeste do Brasil contribuía para consolidar a“vocação” pecuária de Mato Grosso do Sul, principalmente nas áreaspróximas aos trilhos da ferrovia. A ferrovia também provocou mudanças nospreços da terra; as cidades por onde passavam os trilhos ganharam novoimpulso, como foi o caso de Campo Grande, Miranda eAquidauana.(FABRINI, 2008 p.64).
A correlação de forças que permeava o projeto de separação da federação,
segundo Bittar (1997), não permitia um consenso em relação às ideias
emancipatórias, ou seja, no que tange à separação e à criação do Estado de Mato
Grosso do Sul.
Havia apenas alianças fixadas entre Cuiabá e as Oligarquias do Sul, que
eram alicerçadas na defesa de interesses políticos e na manutenção do latifúndio.
Nesse viés, torna-se interessante destacar que os membros da oligarquia (sul) mato-
grossense estavam em conflito, ora para defender seus interesses regionais, ora
para defender os interesses dos membros do governo em Cuiabá, numa relação de
compadrio político. Um exemplo citado por Bittar (1997), e que pode trazer a
dimensão paradoxal desses interesses, reside na análise do conflito armado entre
Mascarelhas e Muzzi37, pois objetivando defender os interesses de Ponce38,
Mascarelhas vence Muzzi e destrói suas propriedades.
Posteriormente, em 1932, criasse a liga Sul-Mato-Grossense, marcada pela
não ruptura com as conhecidas oligarquias locais, na qual a combinação terra/poder
se perpetuaria como uma constante política econômica no sul de Mato Grosso.
36 Nesse caso, como elucida Oliveira (2007), a renda pode ser classificada por “renda diferencial ”,como aquela que está ligada à localidade das terras conforme já elucidado.37 Segundo BITTAR, João Caetano Teixeira Muzzi possuía grande quantidade de terras em Nioaque,local da referida pesquisa.38 Importante família oligárquica de Cuiabá.
120
Torna-se interessante notar que o movimento emancipatório não reúne elementos
para uma insurreição que possa promover ao menos equidade de poder. Dessa
forma, segundo Bittar, a luta estava pautada na defesa e manutenção do poder
local.Nunca houve esse “ódio” entre os habitantes do sul, do centro e do norte.Tanto é verdade, que durante quase um século em que a causa separatistafecundou, a história não registrou qualquer tipo de confronto físico entregrupos, a não ser entre chefes políticos. Porém, mesmo neste caso, a razãoprincipal dos choques não era a divisão do Estado. Nenhuma forma deextermínio físico, discriminação ou constrangimento, como as que severificam historicamente em episódios separatistas ou naqueles queenvolvem ódio racial, ocorreu entre “cuiabanos” e sulistas. “O alegado ‘ódio’era um recurso de retórica e para usar os termos do próprio manifesto, maisficção” do que realidade. (BITTAR 1997, p.182).
Como se observa nas palavras de Bittar (1997), a preocupação em criar o
Estado de Mato Grosso do Sul reside mais nos conflitos entre oligarquias locais, do
que necessariamente na ideia de “liberdade” e autonomia disseminada no período.
Portanto, como já posto em questão, apenas a sustentação da hegemonia regional
por meio da combinação “terra e poder”, vai norteiar as intenções emancipatórias
das descritas oligarquias.
Para as oligarquias do sul (de Mato Grosso), não adiantava somente exercer
o poder político em Cuiabá, haja vista que as divisas econômicas oriundas do sul,
continuariam a suprir o governo central do norte. Portanto, a fim de impedir essa
transferência de riqueza, a ruptura se apresenta como imprescindível e inevitável
para aquele momento político, social e econômico do Estado. O que acabou
acontecendo posteriormente em 1977, por meio da Lei complementar Nº 31 de 11
de outubro de 1977. Cabe aludir, que o processo de emancipação foi realizado nos
bastidores e no silêncio do poder, portanto, sem a participação da população.
Essa divisão do Estado de Mato Grosso, além de atender os interesses das
oligarquias locais, contribuiu para a fundamentação de um projeto geopolítico do governo
militar de ocupar os “espaços vazios”, e consequentemente, submeter o território brasileiro a
um controle mais ostensivo.
Nesse novo momento de divisão do Estado, o latifúndio continua muito vivo,
pois os elementos estruturantes como a lógica patrimonialista da monopolização da
terra e da concentração do poder político, permitem afirmar que o Estado foi
construído para as oligarquias locais, havendo no poder político um tipo de
revezamento entre essas oligarquias, conforme elucida Almeida (2006).
121
A classe dos proprietários de terra tratou de açambarcar o poder político noEstado recém-criado e estabeleceu um tipo de revezamento no poder quedurou até 1998; inicialmente, em 1979, com a nomeação de MarceloMiranda e, depois, Pedro Pedrossian (1980-1983). A partir das primeiraseleições, em 1983, assume Wilson Barbosa Martins. Novamente, em 1987,temos Marcelo Miranda; em 1991, volta Pedro Pedrossian. O ciclo fecha,em 1995, com o retorno de Wilson Barbosa Martins. (ALMEIDA, 2006b,p.117).
3.3.1- Espacialização e territorialização camponesa em Mato Grosso doSul
Ao campesinato sul-mato-grossense, poucas possibilidades lhe restou em
termos de políticas públicas que permitissem sua recriação (Almeida, 2006). Ou
seja, desde o primeiro momento, não houve uma brecha que possibilitasse sua
entrada na terra. A monopolização das terras pela da Cia. Matte Laranjeira desponta
como exemplo dessa política de priorização da grande propriedade, em detrimento
da democratização do acesso à terra.
Isso se deve também, de maneira indissociável, às manobras do Estado, no
sentido de permitir a venda e arrendamento de terras públicas. Nesse quadro,
apresentam-se as empresas de colonização, que gozam no período de grande
privilégio na compra de terras públicas, que mais tarde eram revendidas. O grupo
SOMECO (Sociedade Melhoramentos de Colonização) e a Colonizadora Vera-Cruz-
Mato Grosso, dentre outros, se destacaram na comercialização de terras em Mato
Grosso do Sul.
Para a pequena propriedade, foi efetivada a colonização estatal por
intermédio da CAND (Colônia Agrícola Nacional de Dourados) em 1943, política
territorial que depois não obteve sucesso por falta de recursos financeiros aliados ao
isolamento.
No quadro 01, Alves apud Fabrini (2008), apresenta números interessantes
para a análise da questão da apropriação privada de terras em Mato Grosso do Sul.
Quadro 04-Número de títulos e Concessão de terras expedidas pelo EstadoDiscriminação 1908 1914 1921 1926 1929
Tit. ProvisóriosÁrea. abrangidas (ha)Área média
49101.973
2.081
126318.398
2.527
183402.362
2.199
89200.002
2.247
107223.395
2.088
122
Tit. DefinitivosÁrea abrangida (ha)Área média
25121.002
8.840
17 50386.732
7.735
76340.200
4.476
61427.179
7.003
Conc. GratuitasÁreas. Abrangidas (há)Área média
4700
512.950
58
Fonte: ALVES apud FABRINI, 2008.
O quadro-01 apresenta com muita propriedade a situação do campesinato no
começo do Sec. XX em Mato Grosso do Sul, pois se pode observar que foram
concedidos, por meio da compra em 1914, 140 títulos entre provisórios e definitivos.
Por outro lado, neste mesmo período tivemos apenas quatro títulos concedidos
gratuitamente para áreas consideradas pequenas em relação às demais. Já em
1921, foram concedidos 233 títulos provisórios e permanentes, abrangendo uma
área total de 789.094 ha. Tais números mostram a dimensão trágica referente ao
não-lugar do campesinato sul-mato-grossense, e é nesse sentido que se acirram as
contradições e o latifúndio permanece, porém, não sem questionamento.
A figura do camponês sul-mato-grossense é personificada principalmente pelo
trabalhador despossuído da terra. Tal situação, segundo Fabrini (2008), decorre de
vários fatores. Entretanto, o principal elemento que configura essa situação de
fechamento das terras para essa classe, reside no processo de ocupação do
Estado, e sucessivamente, na grande concentração fundiária. Posteriormente, o que
se denomina de modernização conservadora, será outro elemento complementar de
expropriação contra aqueles poucos camponeses que, lutando contra as condições
objetivas, conseguiram o seu pequeno sítio.
O camponês sul-mato-grossense é caracterizado como aquele, ou aquela
pessoa desprovida de terras, de caráter migratório, cuja relação de pertença com a
terra foi construída precariamente, seja na condição de empregado temporário,
posseiro ou arrendatário.
123
Gráfico 03- Naturalidade dos assentados entrevistados Nioaque.Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
Embora os entrevistados dos assentamentos pesquisados, em sua grande
maioria sejam de origem sul-mato-grossense com 44%, não menos importante são
os números de pessoas oriundas de outros estados, uma vez que denota uma das
características peculiares do campesinato brasileiro em sua multiplicidade,
mormente caracterizado por grande mobilidade pelo país, atrás da possibilidade de
conquista de novas terras para sua recriação.
De modo geral, na região centro-oeste, esta mobilidade como ponto de
confluência dos movimentos migratórios, se deu com maior frequência, haja vista
que esses acompanharam as medidas políticas de incentivos para a ocupação de
novas áreas de expansão da fronteira agrícola, o que por outro lado, não significou
uma real distribuição da terra para todos que se propusessem nela produzir.
Em seguida, um percentual expressivo de 21% dos entrevistados, declarou
ser naturais do estado do Paraná. Sobre este Estado, cabe relatar que esse
processo migratório pode ter uma relação direta com modernização conservadora, a
qual teve grande papel na expropriação dos pobres da terra no Paraná, e que viram
a possibilidade de possuir sua terra em Mato Grosso do Sul e no Paraguai, para
retornar posteriormente, por meio do movimento conhecido como Brasiguaios39 na
década de 1980.
39 Trabalhadores sem-terra brasileiros, que trabalhavam em fazendas paraguaias, ou possuíampequenas glebas no país vizinho.
124
Em relação ao movimento migratório dos brasiguaios, cabe destacar que essa
população vivia com grande fragilidade/vulnerabilidade, o que corrobora com a
afirmação de Martins (1986), de que com a condição de migrante, se “vivi dois
lugares, sem efetivamente pertencer a nenhum”. No limite se vivia uma
territorialidade precarizada, promovida à custa de todo tipo de violência do outro lado
da fronteira, que vai desde o confisco da produção, destruição da roça e violência
física, empreendida contra esses trabalhadores, conforme esclarece em depoimento
o assentado S.P.D:
Nós passemos por assentados, meus irmãos ficaram acampados, meuscunhados ficaram acampados e agente viveu na roça... Meu pai tinha umasterras na grande Dourados, dos meus avós que meu pai tocava, financiavao café, plantava café e deu uma geada “ preta” e queimou e perdeu tudo.Perdeu a terra para o banco, naquela época perdia mesmo! Através disso,aí que surgiu falar que tinha uma colônia de brasiguaios, que ia entrar numacolônia no Paraguai há 100 quilômetros de Ponta-Porã, ficamos uns 20anos dentro do Paraguai. Isso foi no finalzinho de 1980, então aí muitosbrasileiros ainda estão lá, outros viemos para cá e quebraram a cara.Outros viemos e assentaram pelo Itamaraty [assentamento], o caraacostumado em cima de 50 hectares, chega aqui e assentar em cima de 4hectares e é isso aí! Estamos aqui agora. Meu pai criou a família dentro doParaguai, mas sempre a lei mudava, mudava muito a lei! Nós vamos prosem-terra! (S.P.D, assentado no assentamento Andalucia-Nioaque-MS)40
O mesmo processo de expulsão-migração se aplica para São Paulo com
13%, Minas Gerais 2% e Rio Grande do Sul 3%. Como já aclarado, no Estado41
houve grande migração de mineiros no período da expansão das pastagens e na
implantação de maciços florestais. Embora esses movimentos estejam mais ligados
ao leste do Estado, não deixam de contribuir para o crescimento da grande massa
de camponeses desprovidos do acesso à terra com a crise e estagnação da
exploração de madeira dos maciços para o setor carvoeiro.
Embora pouco comum no Estado,15% dos entrevistados possuem como
origem os estados do Nordeste, sendo que 4% declararam serem oriundos do
estado de Pernambuco, 4% do estado da Bahia, 3% do estado do Ceará, 2%
Alagoas e Piauí com 1%. Por conseguinte, grande parte desses migrantes, estão
ligados à condição de posseiros e agregados, uma vez que a grande maioria estava
40 Entrevista realizada em 15/04/2011.41 Embora a maioria dos entrevistados tenha declarado a naturalidade em Mato Grosso do Sul,origem grande parte destes, são filhos de mineiros ou gaúchos.
125
relacionada ao trabalho de abertura da mata para formação da pastagem das
grandes fazendas.
O acirramento em Mato Grosso do Sul dessa condição de desprovido da
terra, se dá a partir do momento em que os trabalhadores não são donos da terra,
mas trabalham na condição de arrendatários na abertura e derrubada das matas e
formação das pastagens para os fazendeiros de São Paulo e Minas Gerais. Nesse
sentido, as palavras de Fabrini elucidam o começo do acirramento em relação ao
uso e posse da terra em Mato Grosso do Sul. Com destaque, nesse processo de
luta, para a imagem dos arrendatários que expulsos das fazendas, ocupam áreas
próximas às propriedades Bulle e Baunilha em Itaquiraí, no Sudeste do Estado42.
O anúncio desse projeto foi feito com grande propaganda por parte dogoverno. Nesta mesma época, os camponeses despossuídos da terra devários municípios da região ocuparam a área intermediária entre asfazendas Bule e Baunilha, em Itaquiraí. Uma das estratégias doscamponeses foi utilizar o nome e o símbolo do projeto (enxada encabada),construindo uma grande placa, instalada próximo ao acampamento.(FABRINI, 2008, p.72).
Após três dias de ocupação nas fazendas em Itaquiraí, por meio de um
ostensivo aparato policial do Estado, as famílias foram retiradas da área. Desta
forma, tem-se que o mais importante dessa experiência de luta pela terra, assim
como outras experiências em outros lugares do país gestadas em meados da
década de 1970, se empreende uma nova lógica de reivindicação pelo direito de
acesso e democratização da terra, portanto imprimindo a esses movimentos, uma
lógica sócio-espacial, em que o processo de espacialização da luta pela terra, ganha
relevante destaque, segundo Fernandes (1996), para quem:Espacializar é registrar no espaço social um processo de luta. É omultidimensionamento do espaço de socialização política. É “escrever” noespaço por intermédio de ações concretas como manifestações, ocupaçõese reocupações de terras, etc. É na espacialização da luta pela terra que ostrabalhadores organizados no MST conquistam a fração do território e,dessa forma, desenvolvem o processo de territorialização do MST(FERNANDES, 1996, p.136).
Outro processo de espacialização camponesa importante foi aquele realizado
por arrendatários do município de Naviraí, em 1980. Seguindo a mesma lógica de
42 Segundo FABRINI (2008), o Projeto Guatambu foi lançado logo depois da nomeação de PedroPedrossian pelo governo no inicio da década de 1980. O projeto tinha objetivo de melhorar arentabilidade e a organização da produção agrícola, com assistência técnica, mecanização,fornecimento de insumos.
126
expropriação, como já elucidada, esse processo também ocorreu em vista da
expulsão destes sujeitos pelo fazendeiro, após a derrubada da mata. No seio dessa
injustiça, nasce a luta contra os donos das fazendas Água Doce, Jequitibá e Entre
Rios, devido às irregularidades no contrato de arrendamento. No mesmo ano, a
Justiça deu ganho de causa aos arrendatários da fazenda Jequitibá43, deixando os
camponeses permanecer durante mais um ano.
Vale sublinhar, que uma passagem de grande importância para a história de
lutas em Mato Grosso do Sul, foi a ocupação da gleba Santa Idalina, de propriedade
da SOMECO em 1984, já que esse processo traz à tona a necessidade de
democratização de acesso à terra, que estava abafada no período militar. Portanto,
essa espacialização desponta como fato fundante da contínua luta pela terra em
Mato Grosso do Sul, conforme aponta o gráfico 02.
A partir da ocupação da fazenda Santa Idalina, a luta ganha outros horizontes
em Mato Grosso do Sul, pois até aquele momento, os movimentos dos arrendatários
em suas estratégias priorizavam os limites institucionais, com negociação e batalha
jurídica pela desapropriação e permanência na terra.
Gráfico 04- Mato Grosso do Sul- Número de Ocupações- 1988-2007
43 Após as reivindicações de desapropriação da Fazenda Jequitibá, a situação se acirra com adestruição da roça camponesa e com a morte do advogado dos arrendatários. Nesse momento, ficanítido o recrudescimento da violência.
127
Com a ocupação do latifúndio, um novo horizonte de luta pela reprodução da
vida ganha espaço, pois nesse novo momento, os trabalhadores sem-terras
organizados pela CPT e MST, com a sua essência “rebelde”, ultrapassam as
barreiras legais da institucionalidade. Nesse sentido, destaca-se junto com a
ocupação o acampamento, ganha grande importância para edificação da
consciência de classes dos camponeses.
Por conseguinte, com o passar do tempo, a luta ganha força e se dissemina
pelo Estado, pois as chamadas “barreiras legais” de defesa da propriedade privada,já não representavam empecilho para o questionamento do latifúndio no Brasil e em
Mato Grosso do Sul.
As ocupações, conforme mostra o gráfico -04, aumentam ao longo dos anos,
porém em um movimento não linear. Vamos ter inicialmente 4 ocupações em 1988;em seguida, em 1989, um aumento para 6 ocupações. Já em 1990, houve
diminuição. No último período mencionado, década de 1990, o Brasil e os
movimentos sociais passam por uma grande expectativa política, pois além de
simbolizar a “redemocratização” do país, essa descrita expectativa cresce a partir da
possibilidade da tomada de poder pelo então candidato operário Lula, o que não
aconteceu de fato.
A tímida evolução no quadro da questão agrária sul-mato-grossense fica
explícita quando se analisa o gráfico 05, pois no período de 1985 a 1990, foram
implantados 19 projetos de assentamentos que representam apenas 11% do total.
Estes projetos beneficiaram 4280 famílias, ou seja, uma média de 225 famílias
assentadas por ano no governo Sarney. Cabe relatar que o governo estadual não
implantou nenhum projeto de assentamento nesse período.
128
Gráfico 05- Mato Grosso do Sul- Número de assentamentos-1984-2010Fonte: SIPRA-INCRA/MS.
O período de 1990 ao final de 1994 é marcado pela diminuição brusca da
territorialização camponesa. Ressalte-se que foi implementado um total de 3
assentamentos, ou seja, apenas 2% do total apresentado pelo gráfico-05,
beneficiando apenas 410 famílias. Tal número negativo reflete o período conturbado
vivido na época (Governos Collor e Itamar Franco), caracterizado como um período
muito difícil para os movimentos de luta pela terra.
De 1995 ao final de 2002, há uma evolução no quadro agrário sul-mato-
grossense, pois nesse período foram implementados 94 projetos de assentamentos,
que favoreceram 12.677 famílias, portanto, com uma média de 1568 famílias
assentadas por ano.
Torna-se mister aclarar que o processo de implementação dos projetos de
reforma agrária, não pode ser interpretado somente como um mérito da instituição
Estado brasileiro, mas sim, como uma série de processos, resultantes da luta
cotidiana dos pobres da terra para a (re)criação camponesa, por intermédio da
espacialização da luta e posterior territorialização na terra de trabalho44, como nos
44 Aqui estamos trabalhando com os conceitos de Martins (1991), o qual aponta que a terra detrabalho aparece como basilar para a reprodução e manutenção da família camponesa, pois quandoo trabalhador se apossa da terra, esta se transforma em terra de trabalho. No outro extremo, écompreendida como terra de negócio a fração espacial apropriada pelo capital, a qual se caracterizapela exploração do trabalho alheio, portanto assentadas nos pilares da mais-valia. Nesse sentido,distinguindo como regimes distintos de propriedade.
129
alerta Fernandes (1996). Tanto faz sentido essa afirmativa, que a partir de 2001, os
números de ocupações (Gráfico 04) e de implementação de assentamentos rurais
em Mato Grosso do Sul (Gráfico 05) mantêm uma relação próxima e explicam que
para existir reforma agrária no país, tem que existir luta pela terra.
É interessante destacar que este decréscimo nas espacializações neste
período e, consequentemente, nas territorializações, se deve principalmente à
medida provisória nº. 2027, a qual em seu Art.4º, parágrafo sexto e sétimo informam
que:O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada porconflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não será vistoriado nos doisanos seguintes à desocupação do imóvel.
E ainda no parágrafo 7º, em texto complementar;
Na hipótese de reincidência da invasão, computar-se-á em dobro o prazo aque se refere o parágrafo anterior.
A medida provisória nº. 2027, como observado nos gráfico - 04 e 05, foi de
grande impacto para os movimentos sociais de luta pela terra, pois essa manobra do
governo FHC veio com a função de “criminalizar” os movimentos sociais, sobretudo
aqueles com o histórico de ações mais efetivas contra o latifúndio, por exemplo o
MST. Cabe relatar, que essa MP exibe sua face contraditória, a partir do momento
que livra o latifúndio de fiscalização, legitimando a contrarreforma agrária.
No período citado de 1995 a 2007, o governo estadual instalou somente 8
assentamentos, favorecendo apenas 694 famílias. Cabe ressaltar que mesmo tendo
quebrado o ciclo de governo das famílias ligadas às oligarquias com a eleição do
Zeca do PT em 1999, na Câmara dos Deputados persiste um forte lobby político
relacionado à aliança terra e poder. Nesse sentido, continuou predominando a
essência da ideologia burguesa local, dando continuidade às raízes e essência do
latifúndio, ou a perpetuação do “poder do atraso” como elucida José de Souza
Martins.
No período de 2003 ao final de 2010, nos mandatos do governo Lula, a
territorialização camponesa teve uma leve queda de 2002 para 2003. Contudo,
retoma um crescimento até 2005 com 24 projetos de assentamentos
implementados, tendo uma queda em 2006 com 6 projetos e retomando novamente
o crescimento em 2007, com 24 assentamentos. Do começo do ano de 2008 ao final
130
de 2010, se caracteriza como um período de grande decréscimo no número de
assentamentos, uma vez que apenas 15 projetos de reforma agrária foram de fato
concretizados, assim fazendo alguns pensadores da questão agrária brasileira,
admitirem uma verdadeira contrarreforma agrária contida no governo lula (gráfico
05).
Conforme ilustrado no gráfico 06 acerca dos quatro assentamentos
pesquisados, no assentamento Andalucia, 46% declararam participarem do
Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra-MST. Por outro lado, 16% declararam
participar da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso do Sul-
FETAGRI, e 28% dos entrevistados se encontram na condição de comprador do
lote45.
Por outro lado, no assentamento Areias, o mais recente diante de todos os
participantes da pesquisa, 74% dos entrevistados declararam participar da
Federação da Agricultura Familiar-FAF. Já 26% declarararam participar da
Comissão Pastoral da Terra-CPT. Nesse sentido, até o momento, essa instituição
vem desenvolvendo importante papel de consultoria para esses camponeses.
No assentamento Boa Esperança, uma quantidade majoritária – 76% dos
assentados – declarou fazer parte do MST, ao passo que 24% se encontram na
condição de compradores do lote.
No Palmeira, 29% dos entrevistados declararam ter participado do MST na
luta pela terra, 24% participaram pela luta empreendida pela FETAGRI, e 47% dos
entrevistados se caracterizam pela condição de comprador de lotes. Cabe salientar,
que esse assentamento se localiza fora do núcleo de assentamentos estabelecidos
aos arredores da BR-419 nos municípios de Nioaque e Anastácio.
Vale ressaltar que o MST teve grande presença na territorialização da luta
camponesa46, mormente no Sul e Oeste do estado de Mato Grosso do Sul. Embora
haja essa supremacia do MST na empreitada da luta pela terra na região, outras
45 Se configuram como pessoas que entraram depois do processo de luta e conquista. Por outrolado, pode-se observar que a grande maioria destes sujeitos já passaram pelo processo deacampamento, portanto de uma legítima luta pela terra.46 Logicamente, que não cabe aqui um julgamento em relação às formas de luta pela terra, pois háuma distinção dessas formas. Porém, o mais importante é a distinção feita a partir do sujeito da lutaconforme elucida Almeida (2006). O número aludido não visa apresentar uma presumidasuperioridade do MST, mas sim exprime um número do universo de entrevistados, os quais foramouvidos de forma aleatória independente da origem de organização de luta pela terra, conforme jáaclarado na metodologia.
131
organizações de luta pela terra protagonizam no enveredar da democratização do
acesso à terra, como a FAF.
FETAGRI MST FAF CPT C. deComprador
16%
46%
28%
74%
26%
76%
24%24%29%
47%
Andalucia Areias Boa Esperança Palmeiras
Gráfico-06- Organização de Luta pela terra dos Assentados em NioaqueFonte: Pesquisa de Campo, 2011.
Embora não se configure como ponto central do debate proposto, cabe
elucidar que os dados exibidos no gráfico-04 acerca das ocupações de terras, têm
como base também, não somente as lutas travadas pelos camponeses por terra,
sobretudo na luta das populações indígenas do estado de Mato Grosso do Sul, o
que em última instância, tem trazido à tona para a sociedade brasileira, a grande
violência empreendida nos varadouros e lugares invisibilizados pela ideologia do
agro (hidro)negócio. Por conseguinte, segundo dados do Conselho Indigenista
Missionário-CIMI, somente no ano de 2010 em Mato Grosso do Sul, foram
assassinados 34 indígenas, o que em números relativos, representa 57% de todos
os assassinatos cometidos contra essa população em todo o país.
Nesse mesmo rumo alarmante sobre a centralidade da terra no
empreendimento da violência contra essas populações, que segundo os dados do
CIMI, agora divididos por municípios em Mato Grosso do Sul, Dourados, este, não
por acaso, é o maior produtor de soja do Estado e décimo do país, segundo os
dados do IBGE (2003), também se destaca como o município com maior ocorrência
contra as populações indígenas com participação em 29% dos casos registrados no
Estado. Tais números contribuem cada vez mais para o entendimento de uma
132
dialética da barbárie-modernidade gritante na atualidade, como lembra Oliveira
(2005), ou até mesmo no estabelecimento de um legítimo estado de exceção no
campo brasileiro.
No mesmo passo que a constante luta dos indígenas pela reconstituição de
seus territórios, a violência empreendida contra os camponeses sem-terra – assim
como no país inteiro de uma forma geral, embora tenha havido um decréscimo – não
tem deixado de existir, sobretudo naqueles estados ligados à modernidade do
agro(hidro)negócio na região Centro-Oeste.
Nesse sentido, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra- CPT, do ano
de 2002 a 2010, houve 36 assassinatos envolvendo camponeses na luta por terra na
região Centro-Oeste nesse período, dos quais 19% possuem ocorrência no estado
de Mato Grosso do Sul. Embora tenha havido uma diminuição no número de
assassinatos – quando comparado com períodos anteriores como do ano de 1977
ao ano de 1983, com o total de 9 assassinatos motivados por disputa por terras –
outras medidas coercitivas têm se destacado como fundamental mecanismo de
intimidação da luta pela terra. Como exemplos emblemáticos dessas medidas,
podem ser citados: agressão, tentativas de assassinatos, ameaças, prisões, assim
como o emprego do trabalho escravo, pois conforme dados do Ministério do
Trabalho e Emprego-MTE, no período de 2008 a 2010 foram libertados 266
trabalhadores47 em apenas 20 estabelecimentos fiscalizados do Estado.
Por conseguinte, a terra em Mato Grosso do Sul, assim como no restante do
país, ganha centralidade na constituição das assimetrias do poder, à medida que
para além de um ativo econômico sujeito ao mecanismo da renda territorial, ela
também se figura como seminal meio de exploração da mão de obra de outrem;
nesse caso, sob condições análogas ao trabalho escravo. Como já exemplificada
por Martins (1981), Silva (2008) e tantos outros pensadores da formação brasileira
em suas múltiplas formas de entendimento, essa relação com a terra permitiu
historicamente açambarcamento do poder, assim tecendo muitos entrecruzamentos
entre expropriação, violência, poder, política e o território.
47 Embora os dados do Ministério do Trabalho versem sobre várias situações onde o trabalho se configuracomo análogo ao trabalho escravo, portanto tanto no campo, quanto na cidade, em Mato Grosso do Sul essaprática ganha maior destaque, mormente no trabalho realizado em carvoarias e no setor modernosucroalcooleiro.
133
Diante do exposto, cabe salientar que a luta pela terra empreendida pelo
camponês sul-mato-grossense, com a conquista da terra de trabalho (Martins,
1989), para além das ações das políticas públicas, se caracteriza como resultado
legítimo das lutas travadas no interior da sociedade capitalista.
Nesse sentido, os ditos movimentos sócio-territoriais, têm logrado à medida
que por meio das ocupações de terras, tem se territorializado em locais onde têm
sido diretamente travados esses conflitos. Diante de tal afirmativa, cabe destacar
que dados CPT/NERA, do total de 132 ocupações de terras realizadas no período
de 1988 a 2007, que Nioaque dentre os 11 municípios componentes do “Território da
Reforma”, se destaca com 18% das ocupações de terras, somente ficando abaixo do
município de Sidrolândia, com 21%, no período destacado conforme demonstrado
na figura 06.
134
135
Por intermédio do método areolar proporcional (Martinelli, 1991), torna-
se possível representar a geograficidade dos camponeses em movimento no
estado de Mato Grosso do Sul. Nesse sentido, ao realizar-se uma
sobreposição, portanto uma correção entre os mapas de ocupação (mapa-01)
e assentamentos no Estado (mapa-02), os números apresentados de
ocupações possuem uma relação direta com a conquista da terra, haja vista
que segundo dados do INCRA (2010), atualmente o município de Sidrolândia
possui 36% dos assentamentos “inseridos” no Território da Reforma. Nioaque,
assim como apontado no número de ocupações, detêm 19% dos
assentamentos rurais.
Outro dado interessante, acerca da expressividade dos camponeses na
região, diz respeito à participação demográfica dessa parcela, pois os
assentamentos da região, segundo dados do INCRA (2010), possuem no total
1678 famílias. Nesse sentido, se multiplicarmos essa quantidade de famílias
por 448, denota-se que esses camponeses representam 47% da população do
município de Nioaque.
Gráfico 07- Luta camponesa no território da Reforma dividida pormunicípio.
Fonte: NERA, 2008.
48 O número apresentado tem como base a média estabelecida pelo IBGE sobre a estrutura dafamília brasileira na atualidade. Nesse sentido, se tratando de uma projeção para o município,assim podendo haver variação e um percentual maior da participação demográfica dessescamponeses.
136
Em consonância com os dados trabalhados nos mapas de
ocupações e número de assentamentos no estado de Mato Grosso do Sul, que
o gráfico 07 contribui para a leitura geográfica da questão agrária na região.
Nesse sentido, no município de Nioaque se mantém o protagonismo na luta
pela terra a partir do ano de 1993, embora se registre há tempos a
problemática da terra nesse recorte de análise. Do período de 1992 a 1995,
houve 11 ocupações, das quais resultou em apenas 1 assentamento com 166.
Do período de 1997 a 2006 houve um total de 4 ocupações, as quais
resultaram em 4 assentamentos com 474 famílias beneficiárias. Por outro lado,
as ocupações de terras em Sidrolândia só ganha maior impulso a partir de
1997 com 2 ocupações e com maior força em 1999 com 10 ocupações.
Diante da pressão dos movimentos sociais, que do período de 1997 a
2001, foram conquistados 8 assentamentos, dos quais 1.208 famílias foram
beneficiárias.
Do período compreendido entre 2000 a 2006 foram registradas por meio
dos dados do NERA/CPT um total de 12 ocupações. No mesmo, que 2001 a
2010, foram implantados 8, com 2546 famílias beneficiária.
Cabe destacar que a queda abrupta registrada de 1999 para 2001,
emerge como reflexo da medida provisória nº. 2027 criada em 2000, no sentido
de criminalizar as ações dos movimentos sociais de luta pela terra.
Tais números expressos chamam a atenção para a importância da luta
camponesa, pois o que tem se gestado de fato na região, é o território
camponês constructo da permanente luta pela/na terra, ao contrário do
discurso que se impõe das políticas públicas, o qual acaba por invisibilizar os
constantes conflitos. Nesse sentido, se esse território é da reforma na sua
fundamentação a partir da governança, ele se institui muito antes como um
território camponês. Esse enveredar teórico de questionamentos sobre o
esvaziamento político de alguns conceitos e categorias, torna o sujeito-
pesquisador menos vulnerável a mudanças, esvaziamentos e confluências dos
discursos, sobretudo aqueles orientados sob a tutela dos grandes agentes de
promoção da lógica do capital. O território e os seus adjetivos se enquadram
nessa lógica perversa de esvaziamento político, em que parece não haver a
dimensão do conflito e a centralidade do poder como condição epistêmica.
137
Espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo,caracterizado por critérios multidimensionais, tais como o ambiente, aeconomia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e umapopulação, com grupos sociais relativamente distintos, que serelacionam interna e externamente por meio de processosespecíficos, onde se pode distinguir um ou mais elementos queindicam identidade e coesão social, cultural e territorial. (MDA apudGómez, 2006,p.80)
Como bem esclarece Gómez (2006), o território posto sob a ótica da
governança, se caracteriza muito mais pela pseudo-ausência do conflito, a qual
assume uma condição de controle dos processos sociais, por meio do território
(HAESBAERT, 2008), ao invés de reconhecer outras construções de territórios
de autonomia. Ao mesmo passo estabelecido do conflituoso debate
estabelecido a partir da década de 1990 entre agricultura familiar x campesino,
aqui o território da governança, edificado na sua forma mais fina por intermédio
dos territórios da cidadania do Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA, se
contrapõe à legitimidade do território do campesinato na sua
multidimensionalidade.
138
4- NIOAQUE E OS ASSENTAMENTOS RURAIS: O TERRITÓRIO CAMPONÊSPOSTO EM QUESTÃO.
Lembro de um velho índio contando históriasDe glórias e tragédias que não viviQuando das estrelas vieram deuses
E seus sinais estão por aíDepois de um certo tempo eles foram embora
Deixando para trás um povo felizMas os portugueses e os espanhóis
Invadiram a terra dos GuaranisEntão vieram os bandeirantesE os retirantes lá das Gerais.
Por muito tempo não houve paz(Serra de Maracajú, Almir Sater)
Como bem esclarece o cancioneiro-violeiro popular por intermédio de
suas estrofes musicais, por meio dessas pode-se apreender acerca dos
conflitos de territorialidades inerentes à formação do espaço agrário sul-mato-
grossense, em especial na região estudada da Serra de Maracajú. Nesse
sentido, a questão da terra na região se edifica a partir da centralidade do
conflito. A esses conflitos, poder-se-ia traçar uma análise que vai desde o
Tratado de Tordesilhas de 1494, com a constante iminência de invasão dos
espanhóis, por conseguinte com a instabilidade da fronteira com a Guerra do
Paraguai de 1864 a 1870, uma vez que o município estudado se encontra
numa condição geográfica privilegiada em relação ao aparato geopolítico na
época da Guerra. Nesse sentido, cabe destacar que Nioaque possui uma
distância de 143 km para a fronteira sudoeste no município de Bela Vista-MS e
252 Km para a fronteira do município de Porto Murtinho.
Segundo dados do censo agropecuário-IBGE (1996), Nioaque possuía
um total de 1543 estabelecimentos rurais49, dos quais 1270 (82%) se
encontram no grupo de menos de 10 ha a menos de 200 ha. Até esse
momento, haviam sido implantados somente 2 (re)assentamentos, os quais
contribuíam com 459 estabelecimentos rurais. O ponto central da análise, que
ao subtrair o total de estabelecimentos apontados pelo IBGE (1996), pelo
49 Aqui não confundido com a propriedade da terra, logo se configurado um campesinatogestado na grande propriedade. Tanto faz sentido essa afirmativa, que um grande número deentrevistados declararam ter trabalhado em numerosas fazendas de gado da região.
139
número de estabelecimentos oriundos dos projetos de reforma agrária50, tem-
se um total de 811 considerados pequenos estabelecimentos que não são
resultados diretos da “reforma Agrária”, os quais são superiores à categoria dos
estabelecimentos rurais de 200 a menos de 500 ha aos 2000 ha e mais, com
um número 273 estabelecimentos (18%).
E ainda dentro daqueles grupos que compõem a microrregião de
Bodoquena, a categoria dos grupos de estabelecimento de menos de 10 ha à
menos de 200 ha, o município de Nioaque representava 41% desses
estabelecimentos (IBGE, 1996).
Destarte os dados quantificados pelo IBGE (1996), apontam muito mais
que uma simples dimensão métrica do uso da terra no município estudado,
uma vez que em seus interstícios aponta a predominância de um uso
camponês da terra. Nesse sentido, os dados do IBGE (2010), acerca da
produção de milho no município, aponta a importância do campesinato, o qual
historicamente no Brasil, está ligado à segurança alimentar, mesmo essa
atividade sendo realizada na terra de outrem. (gráfico-08).
Gráfico 08- Comparativo da área plantada de milho entre Nioaque e TrêsLagoas-MS-1990-2010
Fonte: PAM , 2011.
50 Embora não se encontre informações explicitadas na historiografia de Mato Grosso do Sulacerca da formação desse campesinato na região por meio dos pequenos estabelecimentos,parti-se da hipótese de que essa se estabeleceram também como importante estratégia dedefesa contra invasões na região no período da Guerra do Paraguai, além do fato da grandeimportância da produção de alimentos no descrito período.
140
Segundo dados do PAM-IBGE (2010), no ano de 1990, o município de
Nioaque teve uma produção de milho, a qual ocupou cerca de 1500 hectares.
Por outro, apenas como parâmetro de comparação de regiões distintas
historicamente em seus regimes de uso da terra, Três Lagoas-MS, município
historicamente com alta concentração fundiária, destinou apenas 841 hectares
para o cultivo do milho. Cabe frisar, que do período de 1990 a 1996, o
município de Nioaque passa por importantes mobilizações dos movimentos
sociais, o que culminou nesse período com a conquista do assentamento
Andalucia. Ao lado assentamento Colônia Nova, implementado em 1987, tais
acontecimentos podem em certa medida ajudar a apreender acerca do
aumento do cultivo do feijão na região, haja vista que segundo dados do PAM,
do período de 1990 à 1992, o município quase dobrou a destinação de terras
para essa leguminosa com 2700 hectares. No mesmo período, o município de
Três Lagoas teve uma diminuição brusca na destinação das terras para o
plantio do milho, resultado da constante expansão de terras para criação de
gado, bem como da territorialização de atividade altamente capitalizadas.
Tais características apresentadas a partir da lógica de produção que se
estabelece historicamente em Nioaque-MS, apontam para o histórico da
organização da unidade camponesa na região. Nesse sentido, emergindo a
configuração do território camponês nesse recorte espacial.
4.1- Campesinato e território: a marcha ao estabelecimento da terrade trabalho em Nioaque.
Para apreender a constituição desse território do campesinato na região,
torna-se fundamental a priori, problematizar a partir da mobilidade precarizada,
a qual na maior parte da formação do espaço agrário brasileiro, sempre esteve
ligada a essa classe/modo de vida conforme já se elencou. Nesse sentido,
essa predominância demográfica apontada acerca da população camponesa
no município, se configura como produto de muitas dificuldades destas
populações em suas trajetórias de vidas para o estabelecimento da terra de
trabalho em seus lugares de origem.
141
Contudo, não se pode negligenciar para os pontos fundamentais, que
possibilitaram a formação desse grupo nessa região, com maior densidade em
Nioaque-MS.
Nessa lógica, cabe destacar a implantação do reassentamento
Conceição, à medida que esse, ao lado Padroeira do Brasil e de outros
assentamentos de municípios vizinhos na atualidade, se constituem
importantes pólos irradiadores/concentradores da luta camponesa na região.
Os dois assentamentos, Conceição e Padroeira do Brasil, segundo indicação
de muitos entrevistados, sobretudo de assentados acerca rodovia BR- 419 se
caracterizam nas palavras desses camponeses como os “pai e mãe” das lutas
pela terra na região.
De fato, Padroeira do Brasil, se constituiu como importante estratégia de
continuidade das lutas, à medida que os camponeses que ali conquistaram a
terra, por intermédio de suas experiências anteriores de ocupação da fazenda
Santa Idalina51 no município de Ivinhema, contribuíram para a continuidade da
luta, entretanto com um importante enriquecimento político no que rege o
debate sobre a terra e a inserção do campesinato nessa questão.
Acerca da formação do assentamento Padroeira do Brasil, Kudlavicz et
al (1990), com dados minuciosamente levantados a partir da participação da
Comissão Pastoral da Terra esclarecem;
Em torno de 1000 a 1500 famílias (não dá para precisar o númeroexato de famílias), no dia 29.04.84, ocuparam uma área de 8.762 ha.,de terras, supostamente de propriedade da empresa SOMECO S/A,chamada Gleba Santa Idalina, no município de Ivinhema. Quase nasua totalidade são ex-arrendatários e bóias- fria vindos de MundoNovo, Eldorado, Itaquiraí, Naviraí, Caarapó, Fátima do Sul, Glória deDourados, Bataiporã, Taquarussú, Nova Andradina e Dourados, comexceção de um grupo menor de brasiguaios e ilhéus. (p.92).
Esse tencionamento relatado a partir de documentos e entrevistas
efetuadas por importantes agentes da Comissão Pastoral da Terra- MS
mostram com propriedade a importância dessas novas formas de resistências,
inauguradas pelos processos de ocupação, contribuindo cada vez mais para a
constituição de legítimas ramificações políticas da luta pela terra. Nesse
51 Essa configura como uma das mais expressivas lutas já registradas em Mato Grosso do Sul.
142
sentido, após uma robusta labuta em Ivinhema, foi criada em 1984 pelo extinto
TERRASUL, a colônia Padroeira do Brasil no município de Nioaque52.
Assim como relatado acerca da Colônia Padroeira do Brasil, a criação da
colônia Conceição no mesmo município não está livre da centralidade do
conflito de territorialidades. Em suma, sua criação está ligada ao conflito
estabelecido em Bodoquena entre posseiros e índios Kadiwéus na região de
morraria.
Posseiros que viviam há mais de 10 anos na região, em 1983
protagonizam um dos momentos mais emblemáticos dos conflitos de terras
registrados em Mato Grosso do Sul, visto que diante desses conflitos, foi
assassinado um jovem de apenas 15 anos. Cabe destacar, que segundo
relatos colhidos por agentes da CPT-MS, os camponeses já haviam
encaminhado um abaixo assinado ao Estado, entretanto em nada adiantou
esse fato para a redução e/ou até mesmo término desses conflitos.
Vale salientar, que o fator central desencadeador desses conflitos,
reside na relação paradoxal entre fazendeiros da região e a Fundação Nacional
do Indio- FUNAI, pois essa última exercia importante papel de arrendamento de
terras para esses grandes proprietários, o que logo depois, por meio de tal
relação, ficou comprovada a ampla grilagem de terras na região (Kudlavicz et al
,1990).
A debilidade do Estado em resolver os sérios problemas acerca desses
conflitos por terras, levou os camponeses a uma inversão política da luta pela
terra, assim se destacando organizações de luta pela terra como MST,
FETAGRI E CPT.
Após intensa pressão dessas organizações, no final de 1985, o governo
transferiu 373 famílias de posseiros para o assentamento Nioaque, mais
conhecido como colônia Conceição, antiga fazenda pertencente à Ferroviária
S/A, adquirida pelo INCRA.
Embora seja breve a descrição estabelecida da luta pela terra na região,
sobretudo elencando o papel desses dois assentamentos, cabe destacar que
esses, assim como outros assentamentos dos municípios vizinhos, possuem
52 Antes de essas famílias conquistarem essas terras, passaram um período na Vila São Pedroem Dourados-MS durante uma negociação com o governador Wilson Barbosa Martins.
143
grande importância como pólos irradiadores da luta, portanto abrindo a “brecha
camponesa” para a entrada na terra.
4.2- Os Assentamentos Pesquisados como expressão de TerritóriosCamponeses.
Realizadas algumas considerações acerca do papel político, assim como
a abertura de um campo de possibilidades promovida por esses dois
assentamentos na região, cabe destacar as não menos importantes
conquistas, as quais culminaram na criação dos assentamentos, a saber;
Andalucia, Areias, Boa Esperança e Palmeira.
Assim como já problematizado acerca do conceito de campesinato a
partir da obra de Chayanov (1974), o que poderia se constituir como um dos
pilares da decadência dessa classe social, por meio da diferenciação
demográfica e com desequilíbrio do balanço trabalho-consumo, o crescimento
familiar nos lotes destes assentamentos primários, têm obrigado essas novas
gerações de filhos de camponeses, a rumarem à luta pelas terras nos
arredores desses projetos. Tal fato a partir dos dados do INCRA (2011), bem
como por meio dos dados coletados por intermédio de pesquisa de campo, se
constituem como importantes fontes no sentido de apreender essa dinâmica
estabelecida na região por esses laços parentais.
Por conseguinte, ao se realizar qualquer análise acerca dos
assentamentos contemplados na pesquisa, opta-se por não perder de vista
essa dinâmica territorial estabelecida por esses laços, conforme já relatado por
meio das fontes orais no inicio do debate (capítulo I).
O assentamento Andalucia (Apêndice-01), talvez se destaque como
maior expressão dessa lógica dos camponeses, estabelecida na região, uma
vez que na época da ocupação, havia uma relação de ajuda dos camponeses
já assentados na colônia Conceição, com camponeses que ocuparam a área
da Fazenda Andalucia53, de propriedade do Conde espanhol Rafael Garrely
Gutierrez. Segundo fontes de pesquisa de campo e da CPT, a primeira
ocupação foi realizada 28 de maio de 1993, com a participação de 602
53 Embora se relate sobre essa data, a área em questão já era considerada improdutiva desde1979, inclusive com um histórico de plantação de maconha.
144
famílias, das quais em boa parte, faziam parte de outras Glebas da região,
motivadas pela possibilidade de adquirirem terras maiores, bem como pela
possibilidade de adquirir terras com melhores condições de fertilidade, haja
vista como no caso do Padroeira do Brasil, o qual tinha lotes de 5 hectares em
média.
Segundo dados da CPT/NERA acerca das ocupações de terras no
estado de Mato Grosso do Sul no período 1988-2007, somente na área que
compreendia as fazendas Andalúcia e Madalena, houve cerca de 6 ocupações
do período de meados de 1993 ao final de 1995.
Após anos de luta camponesa na região, no final do ano de 1996 foi
implantado o assentamento Andalucia, com um total de 166 famílias
beneficiárias em uma área de 4.815.1088 hectares.
Embora admitamos algumas características, as quais permeiam a
unidade econômica camponesa como pontos genéricos da relação dessas com
a sociedade em geral, há de se admitir ao mesmo passo, que o campesinato
também se faz a partir da idéia de adaptabilidade social, haja vista que essa se
constitui pela heterogeneidade de estratégias e do “reinventar social”. Nesse
sentido, ao focar os assentamentos como legítimos contra – espaços em
relação à lógica do capital, não se pode negligência a existência dessa descrita
diversidade como ponto fundamental da análise.
Poder-se-ia destacar que o assentamento Andalucia, se encontra nessa
teia heterogênea de estratégias, aqui não cabendo estabelecer o um pré-
julgamento com relação aos anseios emancipatórios contidos em cada
proposta, porém apreendê-los na condição contraditória que se impõe a partir
do movimento da sociedade, em uma lógica entre limites e perspectivas.
Apreendendo essa diversidade, que cabe destacar o importante papel
do Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado- CEPPEC, o qual
suscita a partir da ligação com a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul-
UFMS e a ONG ECOA, sediada em Campo Grande.
A iniciativa de criar um projeto centrado na biodiversidade do cerrado
como meio de geração de renda centrado no extrativismo, surge de forma
embrionária em 1997, resultado da relação entre a Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul – UFMS e assentados do projeto Andalúcia. Atualmente
145
são 9 famílias que fazem parte da associação conhecida como CEPPEC, cujo
o principal vetor da geração de renda tem sido a tecelagem de algodão, lã com
tingimento natural e fibras vegetais na produção de bolsas, pastas, mantas,
cachecol e aproveitamento de sobras das atividades agrícolas (fibra de
bananeira, capim de arroz, palha de milho) para ornamentação de peças.
Praticam ainda a comercialização a castanha do cumbaru (Dipteryx alata),
conhecido no cerrado como Barú, a farinha de jatobá, o pequi (Caryocar
brasiliense) e a bocaiúva (Acrocomia aculeata). Outro ponto fundamental, que
o CEPPEC se constitui como pólo promotor de oficinas de culinária local e
artesanato, o qual busca atender diversos grupos em Mato Grosso do Sul,
portanto em uma constante perspectiva de troca de saberes, bem como uma
proposta diferenciada de desenvolvimento local, por meio das redes de
economia solidária.
No campo da troca de conhecimento e saberes, o CEPPEC tem
valorizado essa parceria com universidade (UFMS), pois, conforme informação
coletada em campo em entrevista com a diretoria do CEPPEC, essa relação
tem possibilitado um aprendizado mútuo, principalmente pela possibilidade que
o meio acadêmico oferece de pesquisa e divulgação dos projetos.
146
Figura-08- Sequência de processamento do Cumbarú (Dipteryx alata)
Essa nova preocupação trazida a partir das formas de apropriação da
natureza, nesse caso o cerrado, teve um papel importante, pois ao lado do
papel político das lutas camponesas, se erguem novas perspectivas no sentido
de pensar o debate ambiental como componente dessa emergência da luta dos
camponeses.
Nesse sentido, a valorização dos saberes locais, emergem como
elemento de uma agricultura, antagônica ao projeto do agro(hidro)negócio, à
medida que se estabelece uma relação diferenciada com a natureza, conforme
problematizado com Toledo (1992).
Acerca da diferenciação dos distintos regimes de uso da terra e
sucessivamente apropriação da natureza, Porto-Gonçalves (2007), esclarece;
Essas populações camponesas, ao contrário dos monocultivos, vivemda sua criatividade cultural e da produtividade biológica primária quea natureza oferece – biomassa – fazendo uma agriculturadiversificada, ainda que, muitas vezes, sobrevivendo em condiçõespiores do que poderiam caso houvesse um conjunto de políticas que
147
pusesse em diálogo a ciência convencional com essa ciência datradição, como chamam alguns pesquisadores. As áreas onde hojeestão as maiores disponibilidade de bens genéticos (germoplasma),ou seja, as áreas de maior diversidade biológica são áreas ocupadaspor populações camponesas e/ou por populações cultural eetnicamente diferenciadas, como os quilombolas e povos originários.Insistimos que a ideologia e o imaginário conformados em torno deuma presumida superioridade epistêmica, cultural e religiosa européiatende a deslegitimar essas populações tratando-as como inferiores ecomo estorvo ao seu progresso e ao seu desenvolvimento, assimcomo tratam a natureza como algo a ser dominado. (PORTO-GONÇALVES, 2007, p. 02).
Tal como elucida Porto-Gonçalves (2007), há todo um sistema cognitivo
constituído a partir dos processos cotidianos de apropriação social da natureza,
que permite dizer que há uma ligação direta na preservação dos recursos
naturais com esses saberes construídos por essas populações. Nesse sentido,
que o CEPPEC dentro dos limites e contradições que permeiam a própria
genealogia que se insere as ONGS no Brasil, sobretudo no período neoliberal,
vêm tornando possível pensar em um “outro cerrado”, para além dos grandes
celeiros de produtividade do agro(hidro)negócio.
Como elucidado, embora poder-se-ia apreender as contradições
embutidas na plasticidade do capital de agregar as diferenças, sobretudo no
período neoliberal, conforme discutido com as valiosas contribuições de
Escobar (1992), o CEPPEC se apresenta como um projeto estratégico de
desenvolvimento local, na medida que possibilita a manutenção da economia
doméstica camponesa com a conciliação de atividades de lavoura de auto-
consumo e de gado leiteiro, com extrativismo, turismo rural e o artesanato.
Outro ponto central, o qual tem chamado atenção nos assentamentos
rurais, diz respeito à permanência dos jovens nos assentamentos, pois por
inúmeros motivos, essa questão tem se colocado como um verdadeiro desafio
dos movimentos sociais, ou até mesmo para as políticas públicas. Por outro,
esse fronte tem se erguido como fundamental ponto de preocupação do
CEPPEC, conforme Sampaio (2007).O CEPPEC também foi implementado no assentamento Andalucia
como proposta para solucionar um dos problemas que é a evasão dajuventude do campo, porque na maioria dos assentamentos naregião estão ficando só os velhos nos assentamentos. A juventudenormalmente se sente envergonhada por dizer que são jovens rurais,jovens assentados. A falta de política de desenvolvimento, deintercâmbio de cultura pros assentamentos leva os jovens a sonhacom o mundo lá fora, com o que a mídia apresenta. E isto épreocupante, porque nós estamos pretendendo trabalhar na terra,
148
nós conquistamos esta terra pra que ela amparasse nossos filhos enossos netos. Não no sentido deles terem que ficar a vida inteiracomo nós, trabalhando no cabo da enxada, assim como a Claricedisse que é a lógica passada pra os agricultores. Mas que elesestudem, que eles valorizem o espaço onde vivem, que reconheçamque esse espaço tem valor e que eles desenvolvam ali atividadesque possam acomodá-los e que possa trazer um sentimento de bemestar no lugar onde eles vivem. São cursos de capacitação peloCEPPEC que o assentamento trouxe para os condutores devisitantes no assentamento [turismo rural] visando despertar, então,a atenção da juventude para as belezas que existe na fauna, nafauna, e isso teve um resultado positivo, fez com que vários jovenshoje tenham prazer, tenham satisfação, tenham orgulho de dizer queeles são assentados. (SAMPAIO apud ALMEIDA, 2008a, p.306-307).
A fala da presidente do CEPPEC não parte de um “ecologismo
simplista”, mas sim, de uma relação de pertencimento do/ao bioma cerrado, o
qual é inerente à própria (re)criação cotidiana e agregadora que a luta na terra
camponesa exige. Nesse sentido, que esse ecologismo fomentado pelos
pobres da terra, como expressa Alier (2011), se torna parte de uma
problemática social maior, à medida que o ambiental em si, não se explica sem
as contradições e mazelas inerentes à sociedade enquanto totalidade histórico-
espacial. O agrário, não se constitui mais somente uno, mas sim pelo binômio
agrário-ambiental, haja vista na atualidade, a cada vez maior disputa pelos
recursos naturais54. Nesse rumo, que o território em sua multidimensionalidade
se destaca, apontando a possibilidade de uma leitura contemplativa acerca de
dois regimes distintos de apropriação da natureza.
Acerca dos territórios enquanto conceito central explicativo, que Mazzeto
Silva (2006), realiza a distinção entre cerrado-habitat e cerrado-mercadoria,
como formas distintas entre a agricultura camponesa que se reproduz nos
varadouros do Brasil central e dessa agricultura capitalista, instituída nesse
importante bioma brasileiro a partir da década de 1960.
Diante da heterogeneidade de estratégias, que cabe salientar outra
interessante iniciativa no assentamento Andalúcia, na qual ganha destaque o
papel da mulher no processo de resistência cotidiana de luta na terra. Nesse
sentido, o grupo formado por mulheres do MST, intitulado NINA emerge com
uma proposta de se pensar outras vias para o desenvolvimento em áreas do
54 Em uma gama considerável de entrevistas abertas, foi possível verificar nas falas o carátersócio-ambiental dessas terras na época de fazenda, uma vez que segundo as fontes, serealizava um desmatamento em grande escala em função da atividade de formação de pastos.
149
cerrado, a partir das práticas de extrativismo de frutos do cerrado, bem como o
processamento destes, assim garantindo agregação de valor a esses produtos
como na fabricação de licores, além da produção de mudas nativas da região
para comercialização.
Figura 09- Exposição de mudas nativas do grupo de mulheres-NINA/MSTFonte: Soares, 2011.
Outro ponto, talvez que diferencie o grupo NINA-MST na relação
produtiva, diz respeito à preocupação da inserção da mulher na família e o seu
papel político, assim como na luta pela terra, uma vez que questões mais
amplas ligadas à questão de gênero e relações de poder na configuração
familiar se apresentam como fundamentais pautas políticas fomentadas por
esse grupo de mulheres camponesas do MST.
Essa mudança das relações de poder ligadas à questão de gênero,
assim como uma maior simetria desta, pode ser exemplificada na fala de V.L.
Uma das coisas mais importantes que eu percebo aqui, é a questãoda... de levar o conhecimento , a segurança para as mulheres quenós não precisamos depender de ficar só dentro de casa, lavandoroupa, cozinhando e muitas indo só pra roça né... Nós temosespaços, nós podemos continuar nossos estudos, eh... além da genteter isso é lógico, todas as mulheres que fazem parte da organização,tem que se valorizar, não se valorizar nessa questão de “ sou macho”não! Não é isso! Continuamos sendo fêmeas né, sendo mulher,
150
sendo mãe, sendo trabalhadora rural, mas com qualidade, nãoquerendo dizer que nós não tínhamos qualidade ... ela está maisvisível, mais transparente e também essa questão de nós sermosrespeitadas, porque nós não tínhamos , várias mulheres não têmessa clareza assim, por fazer isto elas vão ser tratadas como “ umaqualquer”, nós melhoramos nosso tratamento, relacionado àvalorização da mulher dentro do MST. Nós não buscamos mulheressó do MST, buscamos mulheres do assentamento Andalúcia, porqueassim...a opressão aqui, são submissas e agente tá trabalhandonessa questão da violência e agente ta melhorando..avançar .. eh.. asmulheres tão perdendo o medo, porque elas tinham medo dedenunciar, pois através de nossa discussão elas conseguem perderesse medo.(Assentada no assentamento Andalúcia).
Embora haja uma preocupação de cunho econômico na fala transcrita,
por outro lado o ponto marcante dessa proposta, reside também no
empoderamento das mulheres diante da face opressora do capital, assim como
das relações hierárquicas instituídas no âmbito familiar.
O assentamento Boa Esperança (Apêndice-02), também nasce dessa
pujança da luta camponesa na região, pois como relatado por meio de fontes
orais, os assentamentos primários, como no casos da colônia Conceição e o
assentamento Padroeira do Brasil e até mesmo o assentamento Andalúcia, têm
se destacado como importantes pólos irradiadores da luta, o que credencia o
P.A Boa Esperança como resultado concreto dessas lutas na região estudada.
O mesmo se caracteriza com grande presença de filhos de camponeses
já assentados em glebas mais antigas como no Monjolinho e São Manoel,
ambos no município de Anastácio-MS, assim como nos outros dois
assentamentos mais antigos de Nioaque, nos quais a luta se fez na região
como uma estratégia de pressão sobre o Estado, com forte apoio dos
assentamentos vizinhos.
Segundo dados do INCRA (2010), a implantação do P.A Boa Esperança
em dezembro de 1998, por meio da desapropriação das fazendas Santa Marta,
Santa Mônica e Boa Esperança, passou a beneficiar 126 famílias, em uma área
de 3.945,5065 hectares.
Na atualidade, por meio da formação de associações, a atividade mais
exercida nesse assentamento é a pecuária leiteira, se destacando como ponto
central na aquisição de renda no lote. Embora não encontrado entre os
entrevistados, nenhuma outra atividade especial como o extrativismo, em
alguns casos, os assentados mantêm uma relação com o CEPPEC, por
151
intermédio da venda do barú para essa associação, o que por outro lado não
se estabelece com regularidade durante os anos, assim ocorrendo apenas em
alguns períodos.
Como já dito, embora não se estabeleça com regularidade essa relação,
não se pode negligenciar que tal fato, adquire grande importância na gama de
estratégias de reprodução camponesa, à medida que se avança na construção
de uma rede local a partir das atividades do CEPPEC no assentamento vizinho,
Andalúcia.
Como resultado da pressão dos movimentos sociais de luta pela terra na
região, que no ano de 1998, foi implantado o P.A Palmeiras pelo INCRA.
Dentro da pesquisa, o assentamento em questão possui uma característica
peculiar quando comparado aos outros três assentamentos, pois sua
localização se encontra aos arredores da rodovia MS-060, se configurando o
único assentamento dessa área. Embora haja essa distância dessa
concentração de assentamentos da região entre Anastácio (MS-419), não se
pode negar as ramificações da luta pela terra contida no assentamento em
questão, pois com a realização das saídas à campo, foi possível verificar a
existência entre os entrevistados, aqueles que já haviam participado de lutas
anteriores, como no processo de ocupação das Fazendas Andalúcia e
Madalena, atual assentamento Andalucia.
Cabe salientar, que segundo dados da CPT/NERA, do período de
13/12/1994 a 04/11/1995, houve a ocorrência de 5 ocupações na antiga
fazenda Palmeira, das quais 350 famílias tiveram participação.
Como resultados da territorialização da luta camponesa, na região foram
assentadas 112 famílias em uma área de 4.172,7154 hectares.
Com relação às atividades exercidas nos lotes, foi possível verificar que
na grande maioria desses, a pecuária leiteira se destaca como principal
atividade geradora de renda, bem como o plantio para o auto-consumo,
embora em um número menor encontrou-se a produção de hortaliças para
comercialização nas cidades de Nioaque, Jardim e Bonito, bem como uma
nova proposta de aproveitamento de fibras da folha de bananeira para a
confecção de artigos de artesanato como chapéus, bolsas e peças artesanais,
o que se denota como importante estratégia de recriação camponesa, à
152
medida que permite a agregação de valor na produção. Ao mesmo passo da
perspectiva da agregação de valor, foi possível encontrar também, a fabricação
caseira de doces, conservas e compotas.
Figura 10- Mosaico de atividades exercidas no assentamento Palmeira.Fonte: Soares, 2011.
Buscando apreender a diversidade espaço-temporal dos assentamentos
pesquisados, que o assentamento Areias se destaca como importante campo
de pesquisa, devido à sua recente implantação em Nioaque no ano de 2007.
Com um processo de luta parecido com os assentamentos Andalúcia e
Boa Esperança, encontra-se famílias, as quais em sua grande parte já havia
participado de ocupações na região conforme já explicitado (capítulo 01) ou até
mesmo como forma de recriação camponesa, devido ao desequilíbrio do
balanço trabalho-consumo, conforme problematiza Chayanov (1976), a partir
do crescimento familiar, as novas gerações de camponeses foram obrigadas a
lutar por novas terras na região. Destarte, em entrevistas de campo, torna-se
possível apreender que um expressivo número de assentados, tem suas
origens nos assentamentos vizinhos no município de Nioaque, ou até mesmo
em municípios nos arredores.
Acerca do processo de luta pela terra no assentamento Areias, a
camponesa55 esclarece;
55 Entrevista realizada em 26/07/2011.
153
Eu sou de Anastácio e vim para o acampamento aqui, era diamantina, viemos de Anastácio, lutamos, lutamos pra ver se conseguia terrané e isso é até onde nós chegamos, ficamos 12 anos acampados,entrei nesse e nesse fiquei até o final, ai agora saiu que nós somosassentados. Hoje valeu a pena, lutando com dificuldade, mas vamosindo (I.G, assentada do P.A Areias- Nioaque-MS).
Além de I.G enfatizar o árduo período de luta pela terra por 12 anos no
acampamento Diamantino, por outro lado demonstra que essa luta não cessa
com a conquista do lote uma vez que, embora os dados do INCRA (2010)
atestem a implantação do assentamento em 2007, não se pode considerar no
mesmo passo, que o mesmo possui as infraestruturas necessárias para
alocação das atividades dos camponeses. Nesse sentido, em muitos casos foi
possível constatar por intermédio das visitas ao lote, que as casas ainda não
possuem instalações de rede elétrica, além de condições precárias de moradia.
Ainda segundo relatos dos entrevistados, somente até o momento da
pesquisa, foi concedido por parte do Estado, apenas um fundo inicial para a
construção do sistema hidráulico do assentamento, o qual possui valor
aproximado de R$2700,00 para cada lote.
Cabe destacar ainda, que devido ao não termino da construção do
Programa de Desenvolvimento de Assentamentos- PDA, as famílias ficaram
impossibilitadas até o momento de acessarem fomentos oriundos de políticas
públicas como Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar-
PRONAF, bem como empréstimos para melhoria dos lotes como custeio do
Banco do Brasil para melhora do plantel de gado bovino, ou para qualquer
outra atividade desenvolvida no assentamento.
154
Figura 11 Infraestrutura do assentamento Areia-NioaqueFonte: Soares, 2011.
Essa descrita morosidade da atuação das políticas públicas mesmo em
áreas “priorizadas” pela criação de territórios rurais como forma de
ordenamento sócio-espacial, em grande medida está relacionada aos
processos de estagnação que atualmente passa o INCRA, haja vista que
desde agosto de 2010 a superintendência regional do órgão em Mato Grosso
do Sul se encontra sob intervenção federal, por conta de denúncias de
corrupção.
4.2.1- Formas de Uso da terra e trabalho nos Assentamentos de Nioaque
Embora o assentamento Areias, ainda se encontre com problemas
estruturais, resultado da descrita morosidade por parte do Estado, por
intermédio da CPT com o estabelecimento de um convênio com a
PETROBRÁS, formaram-se grupos de camponeses, os quais podem variar de
3 a 5 famílias. Nesse sentido, em um sistema rotacional de lotes, se pretende
cultivar para cada grupo uma área de 3000m² de cana-de-açúcar, na
perspectiva de formação de uma indústria doméstica para a fabricação de
derivados da cana, como; rapaduras, melaços e doces.
155
Pensando no debate recente acerca da soberania alimentar fomentado
pelos vários setores da sociedade, cabe destacar a relevância da produção de
alimentos no município pesquisado conforme indica o gráfico-09.
Gráfico 09- Produção de feijão e mandioca (ha)-1990-2010.Fonte: Censo Agropecuário-IBGE-2011.
Mesmo quando apenas possuia 3 assentamentos até o ano de 1992, no
município de Nioaque, se destinava uma área total de 1000 hectares para o
cultivo do feijão, com uma média de 1,4 hectares por família nos
assentamentos implementados até o momento descrito. Em 1994 com os
mesmos 3 assentamentos no município se manteve a média de áreas
destinadas ao cultivo do feijão com um total de 1000 hectares.
Segundo apontam os dados do censo agropecuário do IBGE, em 2000 o
município de Nioaque dobrou sua produção com destinação de 2000 hectares
para o cultivo dessa importante leguminosa. Diante de tal evidenciamento,
cabe destacar que até esse ano, o munícipio ao mesmo passo da multiplicação
de terras destinadas para este tipo de cultivo, o número de assentamentos
dobrou com 6 projetos implementados até o final de 2000 com uma média de
1,7 hectares por lote/família para o feijão.
Outro número que chama a atenção, diz respeito à queda da quantidade
de terras destinadas para o plantio de feijão do ano de 2000 a 2002, uma vez
que o número de assentamentos aumentou. Nesse sentido, no descrito
período, o munícipio teve uma queda de 80% na quantidade de terras
destinadas ao feijão, situação que pode ser explicada por impactos de cunho
156
climático, como chuvas e períodos de estiagem, bem como a falta de políticas
de isentivos e de garantia de preço mínimo para a produção de alimentos,
assim desestimulando uma produção que possa se converter como fonte de
renda mononetária para estes camponeses. Nesse rumo, vale relatar que
nesse período, o município destinou uma média de 0,4 hectares por lote para
esse cultivo.
No período de 2002 a 2004, houve um aumento de 900 hectares
destinados para o cultivo do feijão, com a permanência de 6 assentamentos e
uma média de 0,8 hectares por lote/família.
No período de 2004 a 2008, segundo dados do IBGE, no município
houve uma queda para 400 hectares na somatória de terras destinadas para o
feijão, com uma média de 0,3 hectares destinados, o que configura como o
período de menor produtividade desde 1990, mesmo com o aumento no
número de assentamentos. Por outro lado, no período dos últimos dois anos, o
número de terras para o feijão dobrou para 850 hectares, o que pode denotar
como resultado das políticas públicas de aquisição de alimentos da “ agricultura
familiar”, embora nada comparado ao período de 1998 a 2000.
Nesse rumo friza-se, que a média de área família/lote destinada para
esse cultivo foi de 0,6 hectares no município do referido estudo.
No caso da mandioca, conforme indica os dados do IBGE por meio do
gráfico 09, mantém uma linha contínua, com leves alterações entre 90 e 200
hectares no período de 1990 a 2010. Cabe destacar, semelhante ao cultivo do
feijão, a mandioca na lógica unidade econômica camponesa se destaca tanto
como produto para o autoconsumo, ou até mesmo para a constituição da renda
monetária, embora diferentemente do feijão, conforme apresenta o gráfico 09,
seu cultivo independe das flutuações do mercado.
Nesse sentido, segundo dados coletados por meio de entrevistas em
campo, atestam que nos 4 assentamentos pesquisados, a mandioca assume
importante papel na alimentação dos camponeses. No assentamento
Andalúcia, na safra compreendida entre 2010-2011, 86% dos entrevistados
declararam ter cultivado a mandioca, contra 14% que não plantaram nesse
período. Dentre esses que declararam o cultivo dessa espécie, se apresenta
uma média de área de 0,6 hectares destinados por lote/família.
157
Embora haja problemas estruturais no assentamento Areia conforme já
descrito, 95% dos entrevistados declararam ter produzido mandioca nesse ano
agrícola, ao passo que apenas 5% não produziram. A média encontrada de
área destinada para este cultivo foi de 0,5 hectares.
Gráfico 10-Plantio de mandioca nos assentamentos de Nioaque- (safra-2010-2011)
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
No Boa Esperança se mantém essa supramacia, pois segundo dados
coletados em campo, 82% dos assentados apontaram ter produzido, contra
18% dos quais não produziram. Dos que produziram, se estabeleceu uma
média de 0,5 hectares por lote.
No assentamento Palmeira como em outros projetos do município de
Nioaque, a maior parte dos entrevistados com 91% declararam ter realizado o
plantio de mandioca. Por outro lado, um número menor de 9% declararam não
ter realizado o plantio no último ano agrícola. Com relação à áreas destinadas
ao plantio da mandioca, o assentamento Palmeira se destaca com uma média
de 0,8 hectares.
A mandioca, conforme lembra Garcia Jr.(1975), se configura como um
alimento que possui alternatividade, ou seja, tanto serve para alimentação da
família, quanto para a alimentação dos animais, autoconsumo e venda. O
mesmo acontece na transformação dos produtos, pois se pode com ela fazer
farinha e polvilho, portanto, agregar valor. Ou então, pode-se deixar na terra
por um considerável tempo, sem que isso prejudique a qualidade do vegetal.
158
Cabe ressaltar que em tempos de transgenia, e conseqüente monopólio de
sementes por parte das grandes empresas, a mandioca guarda uma
característica interessante para a reprodução camponesa, pois para planta-lá
só se necessita da rama.
Gráfico 11- Plantio de feijão nos assentamentos de Nioaque- (safra-2010-2011)
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
Conforme já indicado por meio dos dados do Censo agropecuário-IBGE,
o feijão se destaca tanto como um produto destinado ao autoconsumo, o qual
por outro lado oferece a possibilidade de venda para geração de renda
monetária, destarte se destacando como um produto de elevada importância
no roçado camponês.
Nesse sentido, com exceção do assentamento Boa Esperança, em
todos os demais, essa importante leguminosa do regime alimentar brasileiro se
apresenta de forma majoritária na região.
Segundo dados de campo, dentre os entrevistados do assentamento
Andalucia, 76% desses declararam ter realizado o plantio de feijão, por outro
lado, 24% declararam não ter realizado esse plantio no ano agrícola 2010-
2011. Com relação à média de área plantada de feijão, o assentamento
Andalúcia se destaca pela superioridade numérica quando comparado aos
outros assentamentos, uma vez que a média de terras destinadas para essa
cultura foi de 2,3 hectares.
159
Apesar das limitações estruturais do assentamento Areia, dentre os
entrevistados, um expressivo percentual de 84% desses declararam ter
realizado o plantio de feijão. Do outro lado, 16% dos entrevistados declararam
não ter plantado. Cabe relatar, que até o momento muitos lotes do
assentamento Areia, se encontram ainda em fase inicial de limpeza do terreno,
logo tais informações podem ajudar a explicar o percentual dos entrevistados,
os quais não produziram o feijão no último ano agrícola 2010-2011. Dos lotes
que produziram, a média encontrada foi de 1,1 hectares por família/lote.
Com relação ao papel da produção de alimentos no roçado camponês,
bem como o debate sobre soberania alimentar, o assentamento Boa
Esperança foi o projeto pesquisado que mais se mostrou preocupante, à
medida que 50% dos entrevistados declararam ter plantado o feijão na última
safra, contra 50% dos que na plantaram. Embora haja equilíbrio entre os dois
grupos, a expressividade percentual daqueles que não plantaram, se mostra
preocupante, haja vista que motivos como; trabalho em usinas de álcool no
município de Maracajú, falta de incentivos de políticas públicas para
plantio/produção de alimentos, bem como a insuficiência de garantia preços
mínimos, podem apontar os descaminhos, os quais enfrentam esses
camponeses. No grupo daqueles que plantaram, foi possível apreender acerca
de uma área média de 1,5 hectares por família/lote.
Assim como maior parte dos projetos entrevistados, no assentamento
Palmeira, majoritariamente 68% dos entrevistados declararam ter plantado
feijão na última safra. Por outro lado, 32% do total de entrevistados, declararam
não ter realizado o plantio dessa leguminosa. Embora, o número daqueles, os
quais declararam ter realizado o plantio, vale ressaltar que os 32% no outro
extremo, denota uma situação preocupante, sobretudo no que diz respeito à
segurança alimentar desses grupos. Nesse assentamento, foi possível verificar
uma média de terras destinadas para esse plantio de 0,8 hectares por
família/lote, o que mostra uma confluência com os dados na escala municipal
apresentados por intermédio do gráfico-09.
De um modo geral, poder-se-ia apontar que os arrendamentos de
pastos, bem como problemas climáticos na região ocorridos nos últimos anos,
160
têm contribuído em certa medida para essa queda na produção de feijão dos
assentamentos.
Com relação ao cultivo de milho, importante grão tanto para a nutrição
humana como na dieta animal, ao contrário dos outros tipos de culturas como a
mandioca e o feijão, em alguns assentamentos têm se apresentado em pleno
declínio, conforme já apontado por meio do gráfico -08. Nesse sentido, dados
específicos no que diz respeito aos projetos pesquisados em campo, denotam
essa tendência, conforme o gráfico-12.
Gráfico 12- Plantio de milho nos assentamentos de Nioaque- (safra-2010-2011)
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
No assentamento Andalúcia, do total de entrevistados, 62% declarou ter
realizado o plantio do milho. Por outro lado, 38% dos entrevistados declararam
não ter realizado o plantio. Embora haja a supremacia numérica daqueles que
plantaram na última safra, ainda sim o percentual dos camponeses que não
plantaram, se apresenta com relativa expressividade, haja vista o papel do
milho nos diversos processos da produção camponesa. Com relação à área
plantada, foi possível apreender uma média de 1,5 hectares por família/lote.
No P.A Areia, 84% dos entrevistados declararam ter realizado o plantio
do milho no ano agrícola 2010-2011, do outro lado em menor número, 16% dos
entrevistados declararam não ter realizado o plantio no descrito período.
Embora se configure como um assentamento implantado recentemente, o
161
Areia se destaca pelo maior número dentre os assentamentos pesquisados, de
camponeses, os quais destinaram terras para plantio do milho. Nesse sentido,
vale salientar que foi destinada uma média de 2,1 hectares por família/lote.
Portanto, além do percentual daqueles que destinaram terras para o plantio, a
média se destaca quando comparadas com os outros assentamentos da
pesquisa.
Com características próximas do assentamento Andalúcia, no Boa
Esperança, entre os entrevistados, 66% declarou ter realizado o cultivo o milho,
bem como um percentual de 34% destes declararam não ter realizado o cultivo
desse grão. Embora a maior parte dos entrevistados declarar positivamente
acerca do plantio na última safra, os 34% dos quais não plantaram, assim
como no assentamento Andalúcia, aponta para uma problemática que
acompanha a queda da produção descrita no gráfico-08 por meio dos dados do
IBGE. A média de terras destinada a esse cultivo foi de 1,4 hectares.
Com um equilíbrio maior quando comparado aos outros assentamentos,
no Palmeira, do total de camponeses entrevistados, 56% declarou ter efetivado
o plantio do milho no descrito ano agrícola. Por outro lado, 44% destes,
declararam não ter realizado o plantio. Entre aqueles que realizaram o plantio
do grão, foi possível verificar uma média de 0,7 hectares por família/lote.
Conformidade.
Segundo dados do IBGE (2010), o município de Nioaque possui uma
média de área plantada de milho de 1,1 hectares lote/família. Nesse sentido, os
dados apresentados, sobretudo no assentamento Palmeira, em conformidade
com os dados gerais do município apresentados no gráfico-08, denotam uma
contínua queda na destinação das terras para o cultivo desse importante grão
na produção camponesa.
Numa perspectiva complementar aos dados numéricos, por meio de
relatos e fontes orais, foi possível verificar que os principais limites indicados
pelos camponeses, vão desde os altos preços das sementes, ou até mesmo
como ocorre em outras regiões de Mato Grosso do Sul, com os ataques de
pássaros no roçado, resultado da constante expansão da silvicultura em áreas
do cerrado na região.
162
Com relação ao plantel encontrado em Mato Grosso do Sul, cabe
destaca os dados do IBGE (2010) no gráfico-13, pois por meio destes, torna-se
possível apreender os impactos do processo de (re) criação camponesa
conforme esclarece Almeida (2006), bem como a função social imprimida por
essa classe/modo de vida no grafar cotidiano da terra no estado de Mato
Grosso do Sul.
Nesse sentido, a opção de enveredar a análise por meio destes dados,
oferta a possibilidade de apreensão do papel da terra no Brasil e sua função
social nos distintos modos de uso.
Gráfico-13- Plantel de Mato Grosso do Sul- 1975-2006.Fonte: Censo Agropecuário-IBGE-2011.
Embora haja ocilações no que diz respeito ao plantel de Mato Grosso do
Sul, de modo geral houve crescimento no número de animais em distintas
espécies. Entretanto, o que mais chama atenção em consonancia com esse
crescimento apontado, é a criação de aves, importante componente da dieta
alimentar, fato relevante, uma vez que aponta para a importancia do
campesinato na produção de alimentos. Cabe salientar, que a criação de
animais de pequeno porte, como aves e suínos, está ligada diretamente com o
acesso do campesinato à terra, assim estando relacionada à lógica da unidade
econômica camponesa.
No caso das aves, no período de 1975-90 houve crescimento apenas de
9% em relação ao ano base de 1975. Na mesma proporção, no período de
163
1980-85, houve um aumento de apenas 7% desse tipo de animal. Por lado, a
partir do ano 1985, começou haver um aumento exponencial na criação de
aves, logo no período de 1985-95, o crescimento foi de 291%, acompanhando
o crescimento na quantidade de assentamentos implementados até o momento
no Estado. Da mesma forma, esse tipo de criação, no período posterior de
1995-2006 obteve um crescimento de 256%.
Quando se analisa os dados sem distribuição de intervalos,
considerando apenas os valores iniciais do censo agropecuário de 1975 e
últimos valores de 2006, pode-se afirmar que o crescimento da criação desse
tipo de plantel foi de 1258% em Mato Grosso do Sul.
Cabe destacar, que embora afirmemos que esse tipo de criação esteja
ligada à lógica da pequena produção camponesa, por outro lado não se pode
afirma que a mesma esteja fora do circuito do capital. Nesse sentido, por meio
da chamada integração com mercado, que o campesinato passa a ter sua
renda subordinada ao capital, por meio daquilo que Oliveira (2007) classifica
como monopolização do território, onde não há a necessidade de uma
territorialização plena do capital para que haja a exploração da renda e/ou de
mais-valia alheia conforme já explanado.
Nos assentamentos pesquisados, encontrou-se uma média geral de 32
cabeças de aves por família/lote.
Outro tipo de criação que se destaca com o aumento conforme
demonstra os dados do IBGE, é a do suíno, pois esse tipo de plantel, teve um
aumento geral do período de 1975 a 2006 de 82%. Vale salientar, que a
criação de porcos na unidade economica camponesa possui fundamental
importancia, à medida que deste animal torna-se possível a extração de vários
subprodutos como a carne e banha, sendo essa última passível de
transformação, conforme ocorre na fabricação do sabão caseiro.
No período compreendido de 1975-80, a criação do suíno teve uma
diminuição de 16%, por outro lado no período posterior de 1980-85, essa forma
de pecuária teve um singelo aumento de 1%. No período compreendido entre
1985-95, assim como na criação de aves, teve um considerável aumento de
27% de cabeças de suínos. No último período de 1995-2006, no Estado houve
um aumento de 41% das cabeças de suínos. Assim como no caso das aves, o
164
aumento das cabeças de suínos, sobretudo aquele compreendido a partir de
1985, possui uma ligação direta com os processos de territorialização
camponesa no campo-sul-matogrossense. Destaca-se ainda que foi possível
encontrar uma média de 5 animais suínos por família/lote nos assentamentos
pesquisados, assim demonstrando a importancia dessa criação para a unidade
camponesa familiar.
No caso dos bovinos, torna-se fundamental destacar o papel desse tipo
de atividade, haja vista que essa por vezes exerceu o papel muito mais
direcionado para esconder/justificar os altos indices de concentração de terra
no Estado, do que necessariamente o cumprimento do papel social da terra.
Portanto, o gado bovino em Mato Grosso do Sul, se destaca muito mais como
mecanismo de sujeição da renda e possibilidade de pilhagem da mais-valia
social e todas benesses que gozam os agronegociantes do setor da pecuária
de corte.
Nessa mirada, que para a apreensão desse tipo de atividade, torna-se
necessário compreender o movimento de usos da terra em Mato Grosso do Sul
que se opera até o presente momento. Por outro lado, embora a pecuária
esteja ligada historicamente ao estabelecimento da grande propriedade no
estado, cabe salientar, que sobretudo o aumento nesse plantel no período de
1995 a 2006, se deve também à consolidação da propriedade camponesa
operada nas duas últimas décadas.
Outra questão fundamental, a qual não se pode negligenciar, está
acerca das formas de pecuária exercida, uma vez que na lógica camponesa, se
destaca a pecuária leiteira, na qual se torna possível a extração e fabricação de
subprodutos do leite e posterior agregação de valor.
No período compreendido entre 1975-80, esse tipo de criação teve um
aumento relativo de 34%, como resultado de incentivos e políticas públicas
operados na época com a formações dos “bolsões” de pecuária. Na mesma
tendência, no período de 1980-85 houve um aumento de 26% no número de
animais. No período de 1985-95, se opera um maior crescimento que o período
anterior, de 31%. Somente no período de 1995-06, ocorreu uma situação
atípica, pois esse tipo de atividade sofreu um descréscimo de 12%.
165
O descréscimo na criação de gado bovino em Mato Grosso do Sul,
Estado considerado um dos maiores criadores de gado bovino do país, pode
ser explicado pela lógica operadas sobretudo em áreas de expansão da soja e
com maior impacto, com a expansão do plantio de eucalipto na região leste do
estado. Nesse sentido, terras que outrora eram utilizadas para a pecuária
extensiva, atualmente estão perdendo espaço para atividades altamente
capitalizadas conforme descrito.
Com relação ao período de 1975-2006, quando se analisa sem
considerar as oscilações ocorridas nos períodos intermediários, pode-se
verificar que o estado de Mato Grosso do Sul teve um acréscimo de 96% de
cabeças de gado bovino. Embora a pecuária do estado seja rigorosamente
uma atividade capitalizada, o processo de (re) criação camponesa no estado
tem permitido também o aumento no plantel, o qual pode ser sinalizado pelo
aumento da produção leiteira, atividade inerente aos pequenos proprietários de
terras conforme demonstram os dados coletados em campo do gráfico-14.
Gráfico 14- Produção de Leite nos assentamentos de Nioaque-2011Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
Diante de tal afirmação do papel da pecuária leitera no trabalho
camponês, vale salientar que segundo dados do IBGE (2006), no descrito ano,
do total de 794 estabelecimentos caracterizados pela atividade leiteira no
município de Nioaque, 79% se encontravam dentro da classificação de grupo
de área até menos 100 hectares, caracterizados notadamente pela posse
166
camponesa. No outro extremo, somente 21% dos estabelecimentos eram
caracterizados pelo grupo de área de 100 a mais de 500 hectares.
A pecuária leiteira em Nioaque-MS, bem como em outros municípios
com presença de assentamentos do Estado, possui grande importância para
geração de renda monetária para os camponeses. Em grande parte destes, o
leite é entregue à laticínios da região, dessa forma se configurando a forma
mais comum de sujeição/subordinação da renda camponesa. Por outro lado,
em alguns caso foi possível encontrar famílias que possuem a prática de
fabricação de queijos, doces e compotas para a agregação de valor, ao passo
que defende a renda do lote.
No assentamento Andalúcia, com expressiva participação, 66% dos
entrevistados declararam produzir leite em seu lote, por outo lado um número
menor, porém não menos expressivo de 44% declarou não produzir leite no
seu lote. Esse último número pode ser explicado em parte pela alta faixa etaria
dos camponeses, questão ligada à penosidade do trabalho, bem como pela
opção de realização de outras atividades ou arrendamento de pastos. Dentre
aqueles que declararam produzir o leite, no assentamento Andalúcia foi
possível encontrar uma média de produção de 21 litros/dia e um plantel médio
de 35 cabeças por família/lote.
Assim como o assentamento vizinho, no Boa Esperança, do total de
entrevistados, 74% declarou produzir leite no lote, contra 26% daqueles que
declararam não produzir.
Dentre aqueles que declararam produzir o leite, encontrou-se uma média
de 24 litro/dia e o plantel bovino de 24 cabeças.
Como atividade principal, a criação de bovinos ganha destaque no
assentamento Palmeira, uma vez que dentre o total de entrevistados, um
número majoritário de 97% declarou produzir leite no lote. Por outro lado,
apenas 3% declarou produzir o leite.
Com uma média próxima dos outros assentamentos participantes da
pesquisa, no P.A Palmeira foi possível encontrar uma média de produção de 26
litros/dia, com um plantel bovino de 22 cabeças por família/lote.
Ao contrário dos outros assentamentos, no projeto Areia devido aos
problemas estruturais conforme já elencado, apenas 5% dos entrevistados
167
declararam produzir leite, contra 95% daqueles que não produziram. Dentre
aqueles que têm a produção de leite no lote, encontrou-se uma média
11litros/dia, com um plantel bovino de 8 cabeças por família/lote.
Figura 12- Resfriador de leite no assentamento Andalúcia.Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
Vale salientar, que a maior parte da produção de leite, segundo
depoimentos dos camponeses entrevistados, é destinada para laticínios da
região. Por outro lado, devido aos problemas de limitação dos canais de
comercialização, bem como condições estruturais do assentamento, emergem
como fatores negativos, face à possibilidade de agregação de valor, por meio
da fabricação de queijos e/ou outros subprodutos. Contudo foi possível verificar
em poucos casos esporádicos, a prática de agregação de valor, bem como a
concretização da venda direta desses produtos como forma complementar da
renda do lote.
Em alguns casos, como no assentamento Andalucia, a proposta do
CEPPEC, tem demonstrado a viabilidade social-econômica dessa prática, à
medida que por intermédio da prática do extrativismo de recursos do cerrado,
bem como sua transformação, tem trazido considerável melhoria na qualidade
de vida para as famílias participantes do projeto. Por outro lado, assim como
168
ocorre nas inúmeras propostas de desenvolvimento rural local, as vias de
comercialização desses produtos, se apresentam ainda incipientes.
O exemplo de que esse campesinato está pautado no processo de
adaptabilidade social, portanto não preso estritamente nas atividades ligadas
ao lote, pode ser verificado por meio do gráfico 15.
Gráfico 15- Geração de renda externa nos assentamentos de Nioaque-2011.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
A contento do debate estabelecido a partir dessa ambiguidade do
campesinato, como condição fundamental para sua reprodução como tal
(Woortman, 1990), grande parcela dos entrevistados dos assentamentos de
Nioaque, declararm receber algum tipo de renda externa ao lote.
No assentamento Andalucia, um dos mais antigos do grupo pesquisado,
92% dos entrevistados declararam possuir renda externa ao lote. Por outro
lado, apenas 8% do total de entrevistados, declararam não alferir nenhum tipo
de renda externa ao lote. Cabe destacar, que com relação ao assentamento
Andalucia, esse elevado número expresso na renda externa, caracteriza-se
sobretudo, por camponeses aposentados, portanto de beneficiários da
previdencia social, o que pode ser apontado por meio das faixas etárias dos
entrevistados, dentre os quais, um percentual considerável de 38%, se
encontram na categoria de 54 anos até acima de 72 anos. Por outro lado, em
maior grau, 62% dos entrevistados se encontram na faixa etária de 18 a 53
169
anos, entendido aqui como o periodo de maior desenvolvimento do potencial
produtivo do trabalho.
Por outro lado, a renda obtida por meio de programas assistenciais do
Estado, como programa bolsa família do governo federal, se apresenta em
parcela significativa no assentamento em questão, fato que pode ser
evidenciado pela quantidade jovens em idade escolar, sobre os quais, 51% dos
entrevistados, declararam ter filho na faixa etária até 17 anos. Em menor
proporção foi possível encontrar entre os entrevistados, aqueles que obtêm
renda externa por intermédio do trabalho por diária e/ou a chamada empreitada
em fazendas de gado nos arredores. Outra informação coletada por meio de
informações dos assentados, que cada vez mais, um número considerável de
camponeses, buscam trabalho em usina sucroalcooleira, no município de
Maracajú, como forma de obtenção de renda para sustenção do lote.
No Areia, um percentual considerável de 89% dos entrevistados
declararam possuir renda externa ao lote. Por outro lado, apenas 11% destes,
declararam viver exclusivamente de renda proveniente do lote. Entre os tipos
de rendas encontrados, pode-se sublinhar a importante presença do trabalho
acessório em fazendas vizinhas como mecanismo de estruturação dos lotes do
assentamento recém conquistado, bem como a forte presença dos programas
de assistenciais, ligados à criança e adolescentes, como o bolsa familias entre
outros programas na esfera do governo estadual, o que pode ser expressado
pelo expressivo percentual de 56% de filhos localizados na faixa etária até 17
anos.
Com relação às idades dos titulares, cabe alertar sobre uma situação
preocupante, acerca do “cambaleante” processo de reforma agrária que vem
sendo gestado, uma vez que, a relação da faixa etária, com a recente
implantação do assentamento, tem denunciado a grande morosidade, com a
qual tem sido tratada a partilha da terra, por meio da qual tem se deparado
essas populações, fato que pode ser refletido por meio dos 53% dos
entrevistados, que se encontram na categoria daqueles que possuem de 45 a
mais de 72 anos.
Dentre os assentamentos abrangidos pela pesquisa, o assentamento
Palmeira aparece com o menor percentual de entrevistados, os quais possuiem
170
renda externa, com um número de 65%. Entretanto, um número menor, porém
não menos importante de 35% declarou obter renda externa ao lote. Dentre
esse grupo do menor percentual que obtém renda externa, vale salientar que
essa pode ser explicada pela presença de pessoas com faixa etária elevada,
onde 44% dos entrevistados, se encontram na faixa de 54 a 72 anos ou mais,
portanto se destacando a figura dos aposentados beneficiários da previdência
social. Por outro lado, foi possível encontrar em menor número, aqueles que
obtêm renda por meio do trabalho acessório em fazendas da região, como nos
casos descritos no assentamento Andalucia.
Não menos importante que nos outros casos apresentados, o peso de
renda externa obtida por intermédio de programas assistenciais do Estado
presente no assentamento Palmeira, pode ser indicado pelo elevado número
de filhos de camponeses, os quais se encontram nos grupos de até 17 anos de
idade, com uma participação de 51% dos entrevistados.
Se por um lado, o número elevado de pessoas constituinte das maiores
faixa etárias, camada formada sobretudo, por antigos moradores, se coloca
como uma caracteristica deste assentamento, no outro extremo, a presença de
titulares nas menores faixas etárias nos assentamentos pesquisados de um
modo geral, vem crescendo como reflexo do crescimento da condição de
comprador de lote, sob a qual, foi possível verificar que 47% dos entrevistados,
se encontravam nessa condição de usufruto da terra conforme apontado no
gráfico-06 (CAPÍTULO 3).
A contento das mudanças ocorridas no espaço agrário sul-
matogrossense por intermédio do avanço da luta camponesa no referido
município, vale salientar que segundo os dados do Censo Agropecuário-IBGE
(2006), do total contabilizado de 5154 pessoas ocupadas nos estabelecimentos
rurais, uma parcela 70% é constituída por camponeses beneficiários da
Reforma Agrária. Quando soma-se esse número àqueles dos pequenos lotes já
existentes no município, esse percentual se eleva. Para efeito comparativo, em
Três Lagoas-MS, município o qual possui umas das maiores concentrações
fundiárias do Estado, a participação da “ agricultura familiar” no número de
pessoas ocupadas é de 20% apenas, dessa forma refletindo o entedimento da
função social da terra pelas distintas propostas de uso.
171
4.2.2- A específicidade camponesa na apropriação da natureza
Como algo recorrente, cabe elucidar que a relação agricultura x natureza
não é algo novo, portanto se colocando desde os primórdios das agriculturas
pelo mundo. A especificidade dessa imbricação, no entanto, reside pela pouca
importância dada a essa relação nos estudos agrários, sobretudo direcionados
a partir da leitura do desenvolvimento das relações capitalistas no campo.
Por outro lado, esse problema não pode apenas ser atribuído apenas à
leitura de cunho antropocêntrico das diversas vertentes do conhecimento e/ou
ao reducionismo economicista que pairou diante de todos outros campos,
todavia, deve-se apreender como reflexo das fronteiras instituídas pela própria
ciência, conforme elencado em outra oportunidade. (subcapítulo I.6).
A própria tendência gestada nas últimas décadas, com uma sociedade
majoritariamente industrializada, pode se constituir como ponto centralizador do
debate da questão ambiental, em detrimento de uma mirada acerca das
relações que se estabelecem no campo e suas resultantes agrário-ambientais.
Ao sublinhar que a história da América Latina está ligada
indubitavelmente, à pilhagem dos recursos natural, Eduardo Galeano aponta
para as várias facetas que adquire a relação desigual de usufruto dos recursos,
desde o estabelecimento do latifúndio colonial.
Nesse mesmo caminho de uma ecologia política, Pádua (2010) descreve
de forma minuciosa, o esboço de um modelo homogeneizante de agricultura, o
qual se expressa hoje pela agricultura capitalista do agronegócio e/ou pelo
latifúndio moderno.
A partir do enfoque proposto por Mazzeto Silva (2006), pode-se retomar
o debate teorizado anteriormente (Capítulo II) e sua relação intrínseca com a
empiria, uma vez que se depreendem formas distintas de apropriação da
natureza e conseqüente proposta de desenvolvimento rural. Nesse rumo, para
além das lutas de classes circunscritas no interior do modo capitalista de
produção, está em questão, a disputa constante para dizer sobre o mundo, por
meio de diferentes matrizes de racionalidades (PORTO-GONÇALVES, 2006).
Nas diferentes formas do grafar da terra, se faz pela apropriação da
natureza, a qual se realiza por meio de um conjunto de formas de saberes/
172
conhecimentos gerados na lida cotidiana da relação com a terra. Destarte, o
que se mostra como uma “aparente desorganização” quando observada a
“espacialização” do cultivo do roçado, ou aquilo que Altieri (2005) classifica
como agroecossistemas complexos (figura 13), para o camponês essa relação
forma-conteúdo, está intrínseca à própria funcionalidade do lote, em uma
relação material com território, além da dimensão cognitiva impressa, conforme
elencado por meio dos escritos de Toledo (1995).
Figura13- Mosaico dos Agroecossistemas complexos em Nioaque.Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
Como uma ramificação do debate estabelecido anteriormente (Capítulo
II), acerca dos vários esvaziamentos políticos e banalizações das categorias,
empreendidos pelas hegemonias por meio dos discursos conforme bem
esclarece Dagnino (2004), a agroecologia56 como campo transdisciplinar de
leitura acerca de distintas formas de agricultura, também emerge como
importante noção-conceito dessa confluência perversa desses discursos, assim
se resumindo em alguns casos, muito mais como resultado de um “ecofetiche”
da mercadoria, por meio da emergência de uma “preocupação” ambiental
mundial, ou um olhar “ecocrata”, do que outra forma possível de inscrição de
formas/ territorialidades na agricultura. Acerca dessas armadilhas de relações
contraditórias, deve-se ao menos tornar a crítica visível, no mesmo passo que
56 Poderia até dizer em alguns casos, como um conceito obstáculo, o qual não se colocar comoum projeto uma leitura da possibilidade de um projeto emancipatório.
173
se apreende esse mecanismo de plasticidade do capital em seus tentáculos
“humanizados”.
Não se pode negligenciar, o fato de que esse discurso se sustenta como
elemento de um capitalismo verde, na emergência dos impérios alimentares.
Os chamados alimentos orgânicos e o seu domínio pelas grandes redes
de supermercados, podem se constituírem como relevantes indicadores dessa
trama do capital.
Com o intuito de evitar confusões teóricas acerca da agroecologia, bem
como sua descaracterização/ esvaziamento político, acredita-se constituir com
maior importância, a leitura acerca de uma racionalidade camponesa de uso
dos recursos, ao invés de um debate puramente agroecológico, desta forma
buscando apreender essa territorialidade para além do circulo vicioso do
discurso estritamente ecológico.
Torna-se fundamental elencar, que historicamente as várias agriculturas
praticadas por uma gama de populações, se fundamentam na diversidade
agro-alimentar, nesse sentido se estabelecendo formas plurais, diversas e
diretas de relação com a natureza. Outro traço fundamental para a leitura
desses grupos denota-se a partir do binômio material-imaterial do território,
pois no referido trabalho, para além do cerrado como grande celeiro da
produção de comodities, para esses camponeses, o seu(s) cerrado(s) são
constituídos pela terra que produz o alimento, pelo sentimento de
pertencimento ao cerrado e pela festa.
Dentro desse aspecto cognitivo da apropriação social da natureza pelos
camponeses, pode-se apreender que embora a grande parte destes
desconheça o termo “agroecologia” e/ou o que seriam as práticas
agroecológicas conforme demonstrado no gráfico-16, por outro lado, vale
sublinhar que em seus cotidianos, se utilizam de práticas próximas às tantas
noções existentes sobre agroecologia.
174
Gráfico 16-Informação obtida sobre sistema agroecológico.Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
As práticas descritas no cotidiano podem ser exemplificadas pela
utilização de urina de vaca, rica em uréia- (NH2)2 CO, dissolvida em água para
combate às pragas, sobretudo em hortaliças. Outra prática comum encontrada
foi a utilização de calda de fumo com a mesma função da urina nas hortas dos
lotes.
A utilização das palhas das bananeiras é utilizada com frequência, como
mecanismo de manutenção orgânica do solo, bem como da umidade nas
camadas superficiais do solo, conforme apontado na figura-03 (vide
Subcapítulo I-6).
Embora haja essa singularidade, a qual se caracterizou como uma
racionalidade camponesa na apropriação da natureza, por outro lado, ao
contrário dos maniqueísmos tão comuns de algumas correntes da
agroecologia, não se pode negligenciar para o fato de que esses sujeitos
sociais, não estão livres da utilização em alguns períodos dos insumos
industriais.
Na descrita situação contraditória, Woortmann (2009), assinala que os
camponeses não estão livres do uso de sementes e/ou insumos industriais,
embora tal situação se dê por meio de verdadeiro mosaico de sementes, os
quais tornam o roçado um verdadeiro laboratório de experiência no cruzamento
de espécies industriais, com as chamadas sementes crioulas para obter os
melhores resultados, que vai desde os melhores grãos no caso do milho, aos
175
melhores rendimentos na densidade da palha para o uso na dieta animal, bem
como forma de enriquecimento orgânico do solo.
Nesse sentido, negligenciar abruptamente essas contradições contidas
no usufruto dos recursos naturais pela lógica camponesa em uma perspectiva
beirando quase uma espécie de essencialismo nas relações sociais desses
sujeitos, por meio de uma “agroecologia em estado puro” se torna altamente
depreciativa para a análise dessa matriz de racionalidade.
Outra relação que não deve ser negligenciada é o fato, de que essa
racionalidade camponesa na apropriação social da natureza, não está
divorciada do aspecto econômico, uma vez que para se defender das
flutuações do mercado, essencialmente da subordinação de sua renda para as
grandes empresas de insumos, as medidas de conservação/ manutenção das
chamadas sementes crioulas, pode se constituir como um mecanismo de
preservação da agro(eco) diversidade, entretanto como um importante
elemento político de resistência cotidiana desses camponeses.
Por meio desse ecologismo dos pobres na melhor expressão de Alier
(2011), permiti-se historicamente a reprodução camponesa em toda sua
heterogeneidade, bem como uma rica agro-bio-diversidade.
No mesmo tocante, segundo dados coletados por meio de entrevista,
grande parte dos camponeses participantes da pesquisa, declarou não ter
recebido informações sobre o sistema de agrofloresta. Como no aspecto
relacionado às práticas agroecológicas, cabe salientar que embora grande
percentual dos camponeses não tenha recebido orientações acerca desse
consórcio entre espécies nativas e exóticas, ao se mirar para forma-conteúdo
do lote camponês, torna-se possível apreender uma grande diversidade de
espécies, nesse caso o cumbaru (Dipteryx alata), pequi ( Caryocar brasiliense)
entre outros nativas, com consórcio de espécies exóticas típicas da dieta
alimentar.
Essa configuração agroflorestal permite consorciar culturas temporárias
como milho, feijão e mandioca, com espécies nativas do cerrado como o barú
(Dipteryx alata), cajuzinho do cerrado (Anacardium humile) e o pequi (Caryocar
brasiliense). A dita complementaridade se dará na relação planta-solo, pois
cada planta é responsável por suplementar por meio da liberação de variados
176
nutrientes, assim contribuindo para a manutenção da fertilidade natural do solo.
Ao contrário do modelo largamente disseminado com maior densidade a
partir da Revolução Verde, o qual necessita de um uso excessivo de
fertilizantes e outros agroquímicos, para adequar o cerrado às condições
ecológicas dos monocultivos da agricultura capitalista, como vem ocorrendo
nas últimas décadas.
Portanto, para além da sistematização imposta historicamente pelas
relações fragmentárias das ciências, essa matriz de racionalidade se expressa
pelo saber-fazer cotidiano, ou um saber-total, o qual não está pautado somente
em pressupostos de um ecologismo simplista, mas sim em uma relação de uso
do solo, o qual procura otimizar as funções do lote, dessa forma se
apresentando a descrita configuração agroflorestal, como condição inerente ao
processo cotidiano de produção do lote.
Cabe relatar por outro lado, que esses regimes de uso da terra, como
resultado da descrita racionalidade na apropriação da natureza, se estabelece
como contraponto às ciências agronômicas modernas, as quais em grande
medida conservam as bases de uma agricultura ligada ao alto empreendimento
de capitais. O conflito dessas duas propostas distintas de apropriação da
natureza pode ser visualizado por meio de uma mirada acerca dos sistemas
técnico-burocráticos, os quais edificaram historicamente as propostas de
desenvolvimento rural no Brasil, bem como por meio das exigências técnicas
dos sistemas de créditos para a produção agrícola e modelos de extensão rural
existente, com grande apelo tecnocrata.
Com relações de poder desenvolvidas nos processos de extensão
rurais, que se estabelece uma sobreposição de racionalidades por meio de
uma imposição verticalizada, a qual reflete o próprio poderio das grandes
empresas no controle das sementes, assim como em alguns casos, se
edificando propostas localistas de desenvolvimento, sem a preservação da
condição de sujeitos dos camponeses. A proposta de política pública cabe mais
em alguns casos, para assegurar a complementaridade à agricultura
capitalista, por meio de uma visão “empreendedora” acerca do campesinato,
com atividade de alto custo para o agronegócio, ao invés de procurar
177
apreender as demandas dessa classe que convive em mundos sociais distintos
em sua relação com a sociedade de um modo geral.
Outro indicativo da constituição de legítimo território camponês, ou
aquilo que Mazzeto Silva (2006), classifica como território habitat ou cerrado
habitat, que 90% dos entrevistados do assentamento Andalucia, declarou
utilizar espécies nativas e/ou exóticas como plantas medicinais. No mesmo
patamar percentual, 94% dos entrevistados do assentamento Areia declararam
utilizarem a descrita prática. Nos assentamentos Boa Esperança e Palmeira,
92% e 94% respectivamente, declararam realizar a utilização das plantas
medicinais.
Dentre as plantas utilizadas com o objetivo curativo, pode-se mencionar
como a mais comum, a espécie Stryphnodendron polyphyllum (Barbatimão), o
qual foi apontado pelos entrevistados, como indicado para cura de processos
inflamatórios, bem como para cicatrização de ferimentos. Por outro lado, um
número de considerável de camponeses declarou utilizar a didaleira/didal57
(Lafoensia pacari St. HIL), sobretudo com propriedades anti-flamatórias e
analgésicas. Outra variedade comum utilizada pelos camponeses é a casca do
cumbaru (Dipteryx alata), a qual segundo os entrevistados possui propriedade
medicinal para a cura de problemas estomacais, além da amêndoa possuir
grande valor nutricional.
O olhar a partir dessas especificidades na apropriação social da
natureza, que Mazzeto Silva (2007), elucida para o fato de que a abordagem
do campesinato sob esse prisma tem ganhado destaque, sobretudo pelo
questionamento acerca da agricultura capitalista por meio dos debates
fomentados pela via campesina, bem como os malefícios ambientais causados
por esse modelo de agricultura, com alto emprego de insumos sintéticos
industriais.
A esses antagonismos de formas de uso do solo, bem como outros
atributos, os quais distinguem essas singularidades, atribuem-se as diferentes
57 Um grande exemplo dessa apropriação a partir do saber científico em detrimento de outrossaberes pode ser observado em noticia vinculada no dia 28/01/2009 no site da universidade deSão Paulo, onde pontuava que a faculdade de ciências farmacêuticas de Ribeirão Preto“demonstrou que o extrato bruto etanólico e o principio ativo isolado da casca do caule dapopular dedaleira, planta típica do cerrado, tem ação anti-inflamatória na asma. Omiti-se, porexemplo, que as populações tradicionais/camponesas conhecem e já fazem uso dos benefíciosdessas plantas de longa data.
178
tipologias de territorialidades, as quais podem ser apreendidas por meio de
Toledo (2008) nas abordagens etno-ecológicas.
Acredita-se haver nas várias escalas de análises, um núcleo conflitante
nas distintas matrizes de racionalidades, à medida que tal situação é refletida
pela lógica imposta das políticas territoriais, com maior destaque por meio da
criação dos territórios rurais/cidadania.
As próprias noções/ conceitos utilizados por meio das políticas de
Estado, por outro lado contribuem na construção de uma narrativa sem
sujeitos, nas quais ganham destaque a noção de agricultura familiar e um
território isento de poder em seu núcleo epistêmico, conforme lembra Gómez
(2006). Nesse mesmo rumo de esvaziamentos de noções com forte proposição
política (DAGNINO, 2001), que se gesta um projeto maior de
complementaridade ao agro(hidro)negócio), uma vez que esses camponeses
são sujeitados aos sistemas técnicos ligados às grandes empresas, dessa
forma se realizando a manutenção do status quo, por meio do
controle/normatização cada vez maior do espaço.
As políticas públicas com enfoque no território, mesmo que em uma
visão altamente equivocada em termos conceituais, assume importante papel
para o controle social, por intermédio do controle de cunho espacial.
Por outro lado, esse “novo rural” brasileiro direcionado pelas políticas
das grandes instituições internacionais, não cessam as contradições inerentes
à problemática da terra no Brasil, uma vez que promulgam o mascaramento
das ditas contradições no interior do modelo agrário-agrícola brasileiro.
De fronte à inoperância das políticas de desenvolvimento territorial, os
camponeses do município de Nioaque, buscam por inúmeras estratégias,
lograr a partir de suas vivências no grafar cotidiano da terra, a terra de trabalho
como ensina Martins (ano), ou a constituição do cerrado-habitat como bem
ressalta Mazzeto Silva (2006), na perspectiva de uma reprodução continuada
do campesinato.
O número considerável de compradores de lotes nos assentados
pesquisados, mormente naqueles com maior tempo de implantação, se
configura como um importante indicativo dos (des)caminhos da “reforma
179
agrária” que vem sendo promovida no Brasil, fundamentada na precariedade
como apontou-se acerca do assentamento Areia.
Para além dos aparatos burocráticos do Estado, apreende-se com
considerável nitidez, uma imposição de um “território”, nesse caso o chamado
Território da Reforma do MDA, o qual por sua vez, não remete o caráter
identitário plural dessas populações. Nesse sentido, evidenciam-se as
divergências entre as propostas do MDA com os reais anseios dos
camponeses, assim se configurando o caráter conflituoso das propostas de
desenvolvimento local.
Nesse processo moldado por uma espécie de pedagogia da escassez,
que os camponeses procuram re-existir frente às contradições do capitalismo,
em uma relação diferenciada de uso dos recursos naturais na manutenção de
suas agriCULTURAS. Destarte, se molda o legítimo território habitat
(MAZETTO-SILVA, 2006), por meio da produção de saberes endógenos de
outra matriz de racionalidade cabocla, em oposição ao Território do
ORDEnamento das políticas públicas, com todos seus aparatos técnico-
burocráticos. Esses aspectos que emergem do “pipocar” das lutas camponesas
na região, que denotam a singularidade de Nioaque na questão da terra em
Mato Grosso do Sul.
Acerca das condições atuais condição ambiental dos assentamentos
pesquisados cabe destacar a percepção dos camponeses sobre esse
componente de fundamental importância de reprodução material desses
sujeitos. Nesse sentido, buscando focar as diferentes formas e regimes de uso
do cerrado.
Torna-se fundamental tais enfoques, à medida que processos erosivos
podem comprometer a atividade agrícola, como ocorre em muitos locais em
Mato Grosso do Sul, mormente em áreas direcionadas para a reforma agrária.
Tal situação se deve pela combinação de solos poucos coesos, como areias
quartzosas e a atividade de formação de pastos. Nesse sentido, embora
Nioaque possua uma relativa densidade de cerrado em suas várias
configurações, quando comparados a outros municípios do Estado, segundo
dados da EMBRAPA, o município possuía até 2007, um percentual 22% da
floresta natural.
180
Em grande parte dos assentamentos entrevistados, por meio de fontes
orais, foi possível apreender que mesmo antes da implantação dos projetos,
em grande parte das antigas fazendas, já haviam processos deflagrados de
desmatamento, bem como ravinas e voçorocas (figura-14).
Figura14- processos erosivos no assentamento Boa Esperança.Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.
Embora grande parte do compartimento geomorlógico de Nioaque, seja
caraterizado em grande parte por gradiente de declividade de 0-3% segundo
dados da EMBRAPA, os processos erosivos intensificados pela abertura de
pastos, bem como a condicionantes dos solos, tal fato se apresenta com
frequencia nos assentamentos pesquisados, o que alguns casos, como em
lotes do assentamento Boa Esperança, têm ocupado áreas relativamente
extensas de fundos de lotes.
Com relação aos procedimentos e medidas para ameniza esses
movimentos de sedimentos, bem como o surgimento de novas ravinas/
voçorocas, cabe salientar que no assentamento Andalucia, apenas 6% dos
entrevistados, declararam ter realizado a construção de curvas de níveis e/ou
outros mecanismos para neutralizar a competência do escoamento superficial
181
das águas. Dos outros assentamentos participantes do trabalho, apenas no
assentamento Palmeira, 56% dos camponeses declararam ter realizado essa
obra de estruturação no lote, contra 44% daqueles que não realizaram.
Cabe ressaltar, que esses procedimentos descritos, foram financiados
por meio do Programa de Aperfeiçoamento da Consolidação de
Assentamentos- PAC, via financiamento do Banco Interamericano do
Desenvolvimento- BIB, o qual visava a estruturação dos assentamentos por
meio da construção de sistema de esgotamento sanitário, cisternas, bem como
outras bem- feitorias para a estruturação dos lotes.
No assentamento Andalucia, embora se configure como um dos
beneficiários desse recurso no Estado, devido a problemas de irregularidade no
cumprimento dos acordos estabelecidos, não foi possível a construção de
obras para melhorias para o assentamento, conforme o PAC. Nesse sentido,
embora seja um assentamento estabelecido há mais de 15 anos, ainda sim se
torna possível, sobretudo em áreas mais distantes do núcleo do assentamento,
encontrar famílias que utilizam água do açude para o consumo doméstico, ao
passo que em 2004, o assentamento contava com a liberação de R$ 1,8
milhão58.
Gráfico 17- Atual situação ambiental dos assentamentos pesquisadosFonte: Pesquisa de Campo, 2011.
58 Nesse contexto, elenca-se que antes dos problemas de irregularidade, já sido liberado umvalor de R$ 480 mil. Após esse acontecimento, o INCRA assumiu diretamente assumiudiretamente a gestão do programa.
182
Com relação à percepção dos assentados, que no assentamento
Andalucia, bem como Areias e Palmeira, segundo os entrevistados a situação
atual de igualdade, se deve por meio do argumento de que justamente por
meio da agro(bio)diversidade da agricultura camponesa, como forma de
reconstituição da biomassa, torna-se possível a manutenção do cerrado. Por
outro lado, os percentuais significativos daqueles que alertaram sobre a piora,
alegam justamente para os problemas de assoreamento dos corpos d’ água,
como resultado de processos ligados ao passado dos grandes pastos das
antigas fazendas, bem como a falta de medidas conservacionistas, conforme
elencado.
183
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme trabalhado por meio das informações coletadas em campo e
teorizadas por meio da contribuição de autores que tratam acerca da questão
agrária, bem do devolvimento, o território enquanto ferramenta de discursos e
prática, sobretudo como conceito ressignificado pelas políticas públicas, têm
servido muito mais como um mecanismo de des-envolvimento como trata
Porto-Gonçalves (2006), no sentido de produzir constrangimentos deste com o
território legitimamente constituído pelo campesinato, ao passo que se
constroem mecanismo de controle social, por intermédio do controle do
território.
Os processos para desenvolvimento rural, como o Programa de
Aquisição de Alimentos- PAA, bem mecanismos de financiamentos de cunho
“pronafianos”, não têm logrado em permite maior autonomia ao campesinato.
No caso do primeiro, apenas em casos esporádicos, como no grupo do
CEPPEC, foi possível a inserção por meio dos Arranjos Produtivos Locais-
APLs do cerrado, no estabelecimento do Plano Nacional de Promoção das
Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade- PNPSB.
Com relação aos financiamentos, conforme discutido grande parte dos
entrevistados, ainda não conseguiram financiamento para investir no sítio. Tal
situação se deve à falta de segurança no pagamento dessas dívidas, bem
como de sistemas mais flexíveis que permitam atividades apara além dos
pacotes técnicos/ burocráticos contidos nesse modelo de extensão de um
modo geral.
Embora afirmemos no tocante do território camponês, cabe salientar
também que a problemática do desenvolvimento local emerge também dos
problemas de ordem organizacional dos movimentos sociais, no sentido de
reivindicar melhorias no período após a implantação dos assentamentos.
O território da governança emerge como o território do conflito entre
racionalidades distintas, à medida que esse “modelo” de território está
submetido à lógica de produção técnica- burocrática em contraste aos saberes
endógenos. Mais que uma contraposição de matrizes de racionalidades, se
184
estabelece por esse modelo, todo um aparato de controle social de inclusão
precarizada, na qual se acirram as assimetrias de poder.
A formação dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Territorial-
CMDR tem buscado apreender essas demandas locais, embora tais medidas
com tímida participação coletiva e em alguns casos de disputas, não têm
trazido melhor qualidade de vida para os camponeses na região, como ocorre
especialmente dentre os assentamentos pesquisados, no P.A Areias.
Embora região se apresente como o “eldorado“ da reforma agrária no
Estado, fatos como o descrito acerca da suspeita de corrupção em órgãos de
elevada envergadura como o INCRA-MS, bem como problemas locais na
gestão de investimento em melhorias dos assentamentos, tem tornado o
afamado Território da Reforma do MDA, incipiente diante das demandas dos
camponeses, como ocorre em regiões mais precárias do Estado, assim
reproduzindo o caráter inconclusivo da cambaleante reforma agrária de
mercado gestada pelo Estado brasileiro.
Por outro lado, nas novas configurações organizacionais internas dos
assentamentos pesquisados, sobretudo os com maior tempo de implantação,
tem apontado para diversas formas de organização, que não necessariamente
aquelas pensadas estritamente pelos movimentos sociais, mas a partir de
novas configurações de uso do território. Ao afirmarem-se essas diferentes
formas organizacionais, bem como essas novas configurações internas do
assentamento, não se nega a importância dos movimentos sociais no processo
maior da luta, entretanto vale ressaltar que em alguns casos o poder de
atuação dos movimentos sociais no processo de pós-luta pela terra não tem se
mostrado de forma consolidada.
Outro fato de suma importância para o debate contemporâneo da
“reforma agrária”, sobretudo com relação ao recorte empírico da pesquisa, diz
respeito a essas novas configurações dos assentamentos, naquilo que se
apontou como “compradores de lotes”, uma vez que, se por um lado, mormente
na perspectiva jurídica esses camponeses estão na contramão das normas do
Estado por meio do ato da “compra” de lotes, por outro lado com o
engessamento da cambaleante Reforma Agrária, tal fato se constitui como
fundamental estratégia na região para o processo reprodução do campesinato,
185
uma vez que grande parte desses “compradores” entrevistados tem algum
vinculo de parentesco com alguém do assentamento, denotando a necessidade
daquilo que Chayanov (ano) aponta como equilíbrio no balanço trabalho-
consumo com a aquisição de novas terras, essas adotadas na lógica M D M,
diferente do capitalista especulador, ou então têm se notabilizado por
camponeses que já lutaram em outros momentos na perspectiva da conquista
da terra. Tal situação deve ser elencada, à medida que ao olhar esse
campesinato por dentro imbricado nessa nova dinâmica interna dos
assentamentos na região, nos faz menos reféns dos números do Estado, bem
como contribui para o entendimento acerca dos novos desafios desse
campesinato, face à problemática jurídica posta.
186
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Apêndice 05- Modelo de Questionário da Pesquisa.
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE- PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA- ICG
QUESTIONÁRIO
PARTE I - SOBRE O UNIVERSO FAMILIAR.
1) IDENTIDADE DO ASSENTADO:
Nome:Idade:lote:Área do Lotenaturalidade:escolaridade:
2) Tipo de atividade exercida no lote (forma de uso)
a) Pecuária b) agropecuária c) atividade não agrícola eagropecuária.
3) Antes de conquistar o lote, o Sr. (a) fazia parte de qual organizaçãode luta pela terra?
a) Fetagri b) MST c) CUT d) condição de comprador
4) O Sr.(a) está no assentamento desde quando?Ano:
5) Um ano antes de vir para o assentamento o Srº(a) estavatrabalhando?
a) Sim b) Não
6)- O que o Sr.(a) fazia?
a) Assalariado urbano b) assalariado rural c)trabalhador autônomo d) outros (explicitar a função)
7) Número total de filhos?
R: (criar categorias depois)
8) Filhos divididos entre os que moram no lote e foraa) Moram no lote:________/ b)moram fora:_______
200
9) Faixa etária dos filhos que residem no lote (a)?R: _________
10) Este filho que mora fora está estabelecido onde?a) cidade b) no campo c) acampamento
11) Tem algum filho (a) morando em assentamento?a) Sim b) Não
12) total de filhos, quanto são homens e quantos são mulheres?
Homens________/ Mulheres___________
Escolaridade dos filhos.
13) Além da família nuclear ( pai, mãe e filhos) existem alguém dafamília extensa (netos (a), sobrinho (a) ou agregados morando no lote?
a) sim b) não
se sim quais? _______
14) Possui alguma renda que não seja proveniente do lote?(aposentadoria, bolsa família, trabalho fora do lote)
a) Sim b) não Se sim, Qual?_________________
15) O Sr. (a) conseguiu algum tipo de crédito e/ou financiamento nosúltimos 3 anos?
a) Sim b) Não
201
II-SOBRE O USO E MANEJO DO SOLO.16) Antes da conquista da terra, o Sr.(a) já recebeu alguma orientação
sobre as formas de conservação do solo? ( palestra, cursos de formação etc.)
a)Sim b)Não
17) Depois da conquista da terra já recebeu alguma orientação ouassistência sobre o manejo e uso sustentável do solo ( uso de esterco e outrasmaneiras alternativas para o plantio)?
a) Sim b) Não se sim, quais?__________________________________________________________
___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
____18) O Sr(a) plantou milho na última safra (2010/2011)?
a) Sim b) Nãose sim, qual foi a área plantada?_________________
19) O Sr(a) plantou feijão na última safra (2010/2011)?
a) Sim b) Nãose sim, qual foi a área plantada?_________________
20) O Sr(a) plantou mandioca na última safra (2010/2011)?
a) Sim b) nãob) Não se sim, qual foi a área plantada?_________________
19) No lote do senhor, produz leite?Se sim, qual a quantidade ( dia, mês ou ano)?
21) Relação do Plantel
AvesCaprinos
202
EquinosSuinosBovinosOutros ( especificar)
22) Outros produtos agrícolas produzidos no lote ( com foco nadiversidade do pomar):
203
23) Utilizou adubos e corretivos ( industriais) na última safra?
(a) Sim (b) Não
24) Usa defensivos agrícolas químicos (veneno)?a) Sim b) Não
25) Conhece alguma forma alternativa de uso para a agricultura ( uso decalda de fumo, chá de angico, Nim “amargosa” , etc)
a) Simb) Não
26) O Sr.(a) se utiliza e medidas conservacionista para o uso do solo (Curva de nível, terraceamento, etc)?
a) Sim b) Não
27) Costuma fazer queimadas para a limpeza da área agricultável?a) Simb) Não25) Já obteve informações sobre o sistema agroecológico?a) Sim b) Não
28) Já obteve informações sobre o sistema agroflorestal?
a) Simb) Não
29) o Sr(a) possui alguma planta medicinal no lote?(a) Sim (b) NãoSe sim quais?
Nome Para que serve?
204
30) Das atividades realizadas junto ao CEPPEC, qual a renda obtida (Mensal,diária)?______________
31) Utiliza algum fruto ( Barú, Jatobá, Pequi...) nativo do cerrado (nolote) para
geração de renda junto ao CEPPEC?
(a) Sim (b)Não__________________________________________________________
___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
32) Se sim, qual a renda obtida com essa atividade? ( Dia, ano, Mês)___________________________________________
33) Na opinião do Sr.(a) a situação de conservação do solo, das águas,da mata hoje no assentamento em relação ao período de entrada,está:
a) ( ) igual b) melhor c) ( ) pior
III- PERGUNTAS ABERTAS PARA GRAVAÇÃO
34) o que o Sr. Entende por questão ambiental?33) Na sua opinião, qual a importância da questão ambiental no seu dia
a dia na produção?
205
35) Para o senhor (a), qual a diferença no meio ambiente quandocompara o CEPPEC com as área de plantação de cana, eucalipto (monocultivo no geral) ?
36) O significam a terra, as águas e as arvores nativas para o Sr.(a),qual a importância desses elementos