dez lições de filosofia chinesa

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  DEZ LIÇOES DE FILOSOFIA CHINESA André Bueno 2004

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Filosofia Chinesa

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  • DEZ LIOES DE FILOSOFIA CHINESA

    Andr Bueno

    2004

  • Dez lies de Filosofia Chinesa

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  • Dez lies de Filosofia Chinesa

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    NDICE

    Apresentao, 7 Sobre o Pensar Chins Antigo, 9 Os Primrdios do Pensar Chins, 15 O Poder de Domar do Pequeno, 19 As Instrues de Yueh, 23 As Conversaes de Confcio, 29 Sobre a Real Natureza Humana, 35 O Verso do Dao, 41 Sobre um Ladro de Machado, 49 O Fabulista do Dao, 53 A Necessidade de Padres, 59 A Regra dos Punhos, 65 A Relatividade das Coisas, 71 Concluso, 75 Sugestes de Leitura, 81

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    Apresentao

    Dez lies de Filosofia Chinesa um livro feito para entendermos um pouco mais sobre o pensamento da Antiga China. Como bem apontou o Sinlogo e tradutor Artur Waley (1979:11), costumamos diferenciar os estudos e transcries da sabedoria chinesa em duas categorias; uma histrica e outra cannica. A primeira busca analisar a cultura chinesa tal como um objeto, utilizando uma metodologia seca, cientfica, sem nunca se aprofundar em suas singularidades e reproduzindo uma srie de esteretipos e preconceitos. A segunda, no entanto, vai-se justamente pelo caminho contrrio, tentando visualizar no oriente a realizao de todas as suas utopias - por vezes escorregando no exagero e no esoterismo, sem contar com suas ocasionais falhas nas referncias histricas. Indo a fundo, ela consegue penetrar nas culturas asiticas de modo especial, conseguindo com sensibilidade absorver as peculiaridades de cada sociedade. No entanto, ao projetar sobre as mesmas as fantasias de um Ocidente degenerado, ela facilmente se desvia para uma perspectiva salvacionista e religiosa, perdendo-se de uma busca explicativa racional e coerente.

    Contudo, o tempo da separao entre China e Ocidente est por ser superado, tendo em vista que os estudos sobre a Civilizao chinesa esto cada vez mais avanados, permitindo-nos fazer contraposies frteis entre o que as duas correntes podem nos oferecer de bom, tendo por base, antes de tudo, um senso crtico necessariamente treinado e apurado.

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    Neste contexto, o objetivo do nosso livro conjugar vises histricas e culturais na anlise de textos especficos do pensamento chins. Queremos, antes de tudo, realizar um estudo sobre certos aspectos da sabedoria chinesa imortalizados nos escritos de grandes autores como Confcio, Laozi, Zhuangzi, entre outros. Mas de forma alguma nos deteremos em suas caractersticas mais superficiais e abrangentes, o que nos aproximar um pouco do campo filosfico da tica. No queremos, alis, fugir dessa obrigao: a civilizao chinesa carregada desses valores e anlises, e deix-las de lado simplesmente ignorar contedos culturais bsicos do pensamento, o que tornaria qualquer trabalho histrico e filosfico bastante falho.

    Tentaremos, com cuidado, articular os textos de forma cronolgica e conceitual. A maior parte deles data do perodo das Cem Escolas de Pensamento, quando a China se via prxima de um contexto de crise e conflito intenso. Pensamos se muitos destes escritos ainda no tm uma certa significao para ns, o que discutiremos ao longo de nosso trabalho e na concluso.

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    1a Verso: "Dez lies de Cultura chinesa", em 2000

    2a Verso, revisada: 2004

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    Sobre o Pensar Chins Antigo

    O pensador indiano R. Panikkar (1988) observou muito bem que existe atualmente, no campo historiogrfico e filosfico, uma hierarquia estabelecida entre as cincias ocidentais e o pensamento oriental. O filtro pelo qual ns realizamos o trabalho de investigao das civilizaes asiticas , justamente, o da nossa cultura, o que nos induz naturalmente a distoro dos aspectos mais banais do outro. Apesar da idia defendida pelo antroplogo C. Geertz (1982) - que com certa razo afirma que somos produto de uma cultura (e por isso temos uma melhor possibilidade de entendermos e expressarmos a ns mesmos, mas no aos outros) - acreditamos que no impossvel lanar, sobre as civilizaes orientais, um olhar naturalmente interessado e simptico - o que se torna uma grande vantagem para o pesquisador estrangeiro perceber algo em uma cultura que os prprios nativos no conseguem atentar. H uma discusso sria em torno dessas possibilidades de estudo sobre a alteridade, cada qual com suas qualidades e defeitos que no nos cabe aqui aprofundar. O fato que podemos nos utilizar das experincias de cada uma para compreender, com melhor proveito, o pensamento oriental. No entanto, ainda temos a questo desses mtodos serem em essncia ocidentais, o que no facilita a interpretao de certos conceitos presentes nas culturas asiticas.

    Uma dessas tendncias, por exemplo, aquela na qual procuramos fazer tradues aproximadas de certos termos e princpios do pensamento asitico que julgamos serem convenientemente iguais ou parecidos com os nossos (como no

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    caso dos primeiros tradutores ocidentais cristos que buscaram incessantemente o termo chins mais prximo possvel da noo de Deus). Isso ocasiona o problema de encontrarmos contradies, a todo tempo, nos sistemas de pensamento oriental. Tal engano tem mesmo que ocorrer, tendo em vista que as conceituaes utilizadas so prprias da nossa cultura, que formam um sistema diferente dos de China e ndia. Logo, quando fazemos esta aproximao, tendemos a enxergar os outros como errados, atrasados, estranhos, exticos, etc. No pensamos que transpomos, aos mesmos, aspectos de nossa prpria realidade, e como ela no aplicvel em toda sua amplitude a diversidade de sociedades existentes, a tendncia a incompreenso e/ou a formulao de modelos bastante falhos (como a idia de que a cultura chinesa deriva da indiana, por exemplo). Alis, no paramos para pensar que nem mesmo nossa cincia tem conceituaes definidas sobre certos assuntos, o que nos leva a crer que, muitas vezes, partimos das idias do senso comum e do preconceito para investigarmos a cultura asitica, o que s pode terminar em catstrofe.

    Por outro lado, muito difcil compreendermos em toda extenso a mentalidade oriental, e mesmo nos valendo das isenes saudveis (no preconceituosas) que possamos ter, no fomos, em geral, criados e formados nessas culturas diferentes da nossa. Da que, quando tentamos realizar um processo de converso ao modus do outro, em geral incorremos num outro caminho desastroso, que nos leva ao anacronismo (quando no, ao ridculo), utilizando-nos de todos os esteretipos positivos que possumos sobre os mesmos para tal mister, o que no nos deixa escapar, por conseguinte, do preconceito. Hoje em dia, porm, h uma tendncia muito original de fundir este pensamento antigo com as concepes

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    modernas de cincias humanas tal como so propostas no Ocidente.

    Em meio a essas perspectivas conflitantes e complicadas, resta-nos ainda perguntar se tudo, no Oriente, realmente diferente, ou se no podemos fazer aproximaes seguras dessas culturas com a nossa. Ora, acreditamos ser totalmente plausvel fazer inferncias anlogas, se isso for realizado com certo cuidado e respeito.

    Temos que entender que a Histria e a Filosofia asiticas tem suas tradies prprias, que partem de um conceitual em muitos pontos diferentes do nosso. Os sistemas orientais insistem, em sua maioria, na existncia de valores e concepes que teriam origem numa razo universalista, pautada no esprito humano (Chan, 1978). Todas as sociedades no mundo teriam a possibilidade de traduzir este princpio - mas, devido uma srie de fatores, cada um destes grupos formularia sua prpria proposta de interpretao, o que acabaria por gerar o atrito e o conflito de idias. Isso decorreria da incapacidade emprica do ser humano, enquanto ente material, de apreender a realidade do todo nesta instncia de sua existncia.

    Esta proposta de cunho metafsico no exige, no entanto, um engajamento religioso ou espiritual: apenas atenta ao fato de que todos somos seres humanos, e por isso mesmo temos a capacidade de descobrir as mesmas coisas.

    Achamos este princpio bastante vlido para iniciarmos a discusso sobre o pensamento chins. Podemos, dentro destas proposies, fazermos uma crtica objetiva e histrica das

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    idias de cada um desses pensadores, sem torn-los melhores ou piores do que os nossos.

    Alm disso, o fato destes sistemas de pensamento serem diferentes no significa, porm, que no trabalhem com problemas semelhantes aos encontrados no Ocidente. Isso nos remeter, na apresentao dos textos, a possibilidade de aplicao destas idias no contexto moderno - ainda que como propostas apenas filosficas.

    Busquemos entender o pensamento chins como um irmo de nossa tradio greco-romana, que possui suas prprias opinies sobre os mesmos assuntos, em funo de uma capacidade de formao e leitura alternativa nossa. Apenas assim que teremos a capacidade de analisar em que medida estas propostas podem ser vlidas ou no tanto para ns quanto para eles. E, em ltima instncia, de que forma poderemos empreender um mergulho sobre a cultura do outro e retiramos dela uma srie de instrumentais e conceitos que nos permitam fazer uma saudvel autocrtica sobre nossa prpria sociedade, sobre os caminhos que temos buscado para resolver os problemas atuais?

    Base Histrica

    Quase todos os textos que apresentaremos datam do perodo entre VI - III a.C., momento de intensa produo intelectual da Antiga China. Era o perodo final de existncia da Dinastia Zhou, que agonizava debaixo das guerras constantes promovidas pelos Estados Combatentes (as datas tradicionais situam esta poca em 481-221 a.C.) e, diante de um contexto social e poltico complexo, os chineses resolveram empreender

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    uma reviso profunda de seus valores e costumes, procurando encontrar frmulas que resgatassem seu antigo passado ideal ou, que pudessem reorganizar sua estrutura de vida (Kaltenmark, 1982 e Granet, 1997).

    Este processo, no entanto, era mais antigo: desde o sculo VI a.C., Confcio e Laozi j atentavam a degradao que se instalava no seio das comunidades, nos hbitos e no pensamento. Desde ento, formaram-se vrias escolas em torno de mestres destacados, cujas propostas apresentavam-se como solues para a poca de crise.

    Durante a Dinastia Han, no entanto, uma classificao genrica, feita com fins didticos e tericos, foi realizada, separando cada uma dessas correntes segundo uma linha de direcionamento especfica. Elas foram organizadas em nove sistemas principais, que seriam: a escola dos letrados (de Confcio), taostas, mostas, legistas, nominalistas (ou sofistas), cosmogonitas, polticos, agrcolas e eclticos (Jopert, 1979:90). Abordaremos as principais delas.

    Se partirmos da noo de que todos estes autores compartilhavam da mesma perplexidade diante da corrupo e violncia que afligiam a sociedade (e quem sabe, talvez, ainda atinjam toda a humanidade), observamos, porm, que suas propostas construram-se de forma substancialmente diferente. E a Histria do pensamento chins no poderia ser, tambm, encerrada neste perodo: como afirma Chan (1978), nesta poca que se inaugura uma seqncia, dentro da China, de elaborao e renovao das escolas filosficas que continuariam a se desenvolver, sem grandes interrupes, at o sculo XX, quando finalmente o Marxismo surge,

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    revolucionando a vida do pas. No entanto, estes antigos sistemas continuariam a sobreviver em outros lugares, como em Taiwan, Japo, Coria, etc. onde a influncia da Cultura chinesa de fez sentir de forma significativa.

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    Os Primrdios do Pensar Chins

    Podemos afirmar que a gnese da Filosofia chinesa tradicional, tal como a conhecemos hoje, situa-se no sculo VI a.C. com Confcio, Laozi, e o estabelecimento das primeiras escolas de pensamento da antiguidade. Esta classificao se d por dois motivos: primeiro, pela falta de um conhecimento mais preciso dos sistemas que existiam anteriormente ao perodo citado; segundo, que este mesmo momento histrico caracteriza-se pelo rompimento das estruturas culturais vigentes at ento, e pelo estabelecimento dos paradigmas que serviriam como contedo de discusso at os dias de hoje (Chan, 1978). No entanto, algumas informaes fragmentrias nos permitem inferir a estruturao de diversos conceitos filosficos anteriores ao sculo VI a.C., e creio ser interessante apresenta-los aqui para compreendermos a base de discusso sobre a qual os sistemas tradicionais se desenvolveram.

    Inicialmente, podemos afirmar que existia uma cosmologia razoavelmente estabelecida no pensamento chins, que trabalhava com uma srie de idias que remontam ao perodo Shang, do sculo XVI a.C., e que seriam posteriormente desenvolvidas pela dinastia Zhou. Desde a descoberta das carapaas de tartaruga de uso premonitrio e oracular (Watson, 1969), vemos menes aos designativos Tian (Cu), Dao (Caminho), Yi (Mutao), etc. Tais citaes aparecem tambm nos vasos de bronze de uso ritual da mesma dinastia Shang (Watson, 1969). Este material nos d idia de um sistema de interpretao e interao com o cosmo que oscilava entre o religioso e o natural. A concluso da formulao deste sistema

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    aparece nos discursos do Yijing (Livro das Mutaes), recuperado por Confcio, que traduz nas frmulas hexagramticas a interpretao que os chineses tinham do que era natureza e da relao que sua cultura possua com ela, como veremos adiante.

    Neste pensamento primitivo, havia a idia corrente de que a civilizao era um desdobramento criativo do ser humano em relao natureza primordial. No entanto, o mesmo ser necessitava estar em constante interao com o cosmo, pois, estando inserido nele, no podia de forma alguma obliterar os seus canais de comunicao sensorial, sob o risco de perder-se em si mesmo e em seu meio.

    Esta natureza (ou cosmo) era designada pelo termo Tian (Cu), ao qual o plano material (a Terra) estava indissoluvelmente ligado. Perder o caminho era perder o Dao, ou seja, desligar-se da real natureza para incorrer na corrupo e na degradao do prprio ser.

    No entanto, acreditava-se que a sociedade era uma reproduo da harmonia celeste: ou, ao menos, eram o que imaginavam os pensadores da dinastia Zhou. Tendo assumido o poder no sculo XI a.C., aps a derrubada dos Shang, os Zhou criaram a idia de um passado ideal que culminava na formulao de uma civilizao perfeita - ou seja, a sua.

    Neste tempo, surgem os clssicos que Confcio depois resgataria: o Li Qi (Manual dos Rituais), o Shijing (Tratado das Poesias), Shujing (Tratado das Histrias), Yuejing (Tratado das Msicas) e o Yijing (Tratado das Mutaes). Ele ainda somaria a estes textos uma crnica histrica escrita por si prprio, o

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    Chunqiu (Anais das Primaveras e Outonos). Quase todos estes escritos no tratam de assuntos diretamente ligados formulao de um pensamento filosfico, mas por se tratarem de contedos de uma cultura antiga ideal, Confcio os empregaria para o estudo e aperfeioamento de seus discpulos.

    A produo deste conhecimento corresponde diretamente ao aperfeioamento das antigas teorias cosmolgicas Shang que o perodo Zhou promoveu: o universo, gerado por um princpio (Li) se originaria de um vazio primordial (Kung, ou Wu). Deste princpio se origina a oposio complementar fundamental (Yin e Yang), que geraria os oito estados essenciais da natureza (os oito Guas, ou trigramas, do Yijing). Noes como Qi (energia) e Wuxing (cinco agentes) iriam em breve aparecer, tambm, na literatura filosfica. Esta cosmologia seria a base das discusses concernentes a busca do Dao (o caminho, ou a conexo primordial) que permeariam a formao das jias (escolas de pensamento) depois do sculo VI a.C.

    O que aconteceu neste ltimo perodo razoavelmente conhecido e no nos aprofundaremos nisso: a dinastia Zhou comeou a entrar num processo de degradao das estruturas de poder e as guerras civis comearam a estalar. Diante do quadro catico que se apresentava, os pensadores chineses decidiram resgatar (ou romper) com o passado e elaborar uma nova civilizao. Foi quando surgiu, ento, o j citado perodo das Cem escolas de pensamento, donde proviria a nata destes filsofos chineses que escreveram seus nomes na Histria.

    Vale ressaltar que quase todo material de que dispomos hoje para estudar este Filosofia antiga resulta de um grande esforo empreendido durante a dinastia Han (III a.C. - III d.C.) para

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    resgatar as obras antigas do pensamento chins, j que durante a dinastia Qin (III a.C.), houve a grande queima de livros filosficos (tidos como subversivos e reacionrios) que aambarcou vrios dos ttulos que hoje conhecemos. Mas o esforo de sbios, famlias e intelectuais permitiu uma recuperao grandiosa deste material, que os Han buscaram, na medida do possvel, reproduzir de forma indistinta e imparcial.

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    O Poder de Domar do Pequeno

    __________ __________ ____ ____ __________ __________ __________

    Acima, Sun, a suavidade, o vento.

    Abaixo, Xien, o criativo, o cu.

    Julgamento: O Poder de Domar do Pequeno tem Sucesso

    Nuvens densas, nenhuma chuva vinda de nossa regio Oeste.

    Imagem: O vento percorre os cus: a imagem do Poder de Domar do Pequeno.

    Assim o Ser Humano aperfeioa a forma externa de sua Natureza.

    Ideograma 9 do Yijing, o Tratado das Mutaes

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    COMENTRIOS O Poder de Domar do Pequeno um Hexagrama muito significativo do Yijing, o Livro das Mutaes Chins, que nos d conta de um princpio que norteou, por muito tempo, as concepes de poder e poltica na China Antiga. Ele significa a capacidade de algo pequeno que amansa, retm, segura, estabelece limites, atravs da suavidade.

    No Julgamento das linhas do Hexagrama, h uma referncia ao mtico e sbio rei Wen, no momento em que este se encontrava incapacitado de vencer o imperador Zhouxi, de Shang, impondo-o limite, por conseguinte, pela persuaso suave (Shiji, 6). A descrio do momento sugere que ainda no hora de se atuar com todas as foras, embora no fim tudo possa ser favorvel. O Poder de Domar do Pequeno sugestiona a capacidade de se exercer influncia pela doura, pela susceptibilidade, pela submisso sincera do corao, e no da fora. Na Imagem, quando o vento percorre os cus, o Yijing se remete ao Ser superior que, atravs de uma firme disciplina interna, aperfeioa suas virtudes dominando as paixes pequenas.

    O que esse Poder de Domar do Pequeno significa, portanto? Na China Antiga, havia uma crena de que a real soberania do passado (como a do Rei Wen, por exemplo) no se pautava exclusivamente na fora, mas sim na capacidade de administrar as coisas da Terra de acordo com a vontade do povo e do Cu. O Suserano ideal seria aquele que se submetesse s necessidades da sociedade, abrindo mo de seus interesses prprios em prol do bem comum. Assim sendo, ele seria uma espcie de governante distante, cuja funo seria de instruir e

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    arbitrar o povo, e guia-lo apenas nos momentos de calamidade, retirando-se do poder nos tempos de paz e fartura.

    Este princpio embasou, em muito, as concepes sobre sabedoria e governo que foram propostas por Confcio e Laozi. O primeiro via, nos reis do passado, homens prontos a deixarem seus postos de comando no momento em que julgassem encontrar pessoas mais capacitadas que eles para o trono. Soberanos responsveis, eles instruam o povo e eram isentos de aes egostas, sendo devotados ao mximo ao trabalho, tentando governar pela virtude e pelo exemplo, e no pela intimidao. Seria o caso de Da Yu (o Grande Yu), que antes de fundar a dinastia Xia, passou anos trabalhando para dominar o dilvio chins, estando tanto tempo fora de casa que no conheceu seus filhos seno quando crescidos (sobre os reis do passado, consultar o Lunyu 8, 12, 13 e 20: o Shujing, 1a parte e o Shiji, 2). Estes soberanos seriam um exemplo de civilidade e de amor, atributos capazes de administrar o mundo de forma harmnica e natural. Laozi tambm apreciava a flexibilidade e amabilidade, pelos quais pequenos Estados podiam at conquistar os grandes (Daodejing, 59-60; Lunyu, 5, 13 e 15; e ainda, sobre a nobreza de esprito, 2, 8 e 15). Esta conquista no a da fora, mas da admirao. o poder de convencer o poderoso no executar a violncia perante a mediao da docilidade.

    O Poder de Domar do Pequeno nos ensina que a Humildade, em muitos casos, no uma demonstrao de fraqueza: na verdade, ela exige muita fora interna, tanto para refrear os impulsos egostas quanto para sustar nossos atos contra o prximo. Nem sempre hora de agir com ao e intensidade. melhor, de acordo com a circunstncia, ser submisso ao

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    contexto e a razo, prevendo o momento de atuar com segurana.

    Mas a submisso no nos impediria de sermos autnticos com ns mesmos e com os outros? Pensemos neste aspecto: o que ser autntico? O que expressar o ntimo? Ser que nosso desejo de sempre demonstrarmos o que sentimos no no fundo uma manifestao do egosmo, uma forma de sobrepormos o desejo de aceitao das nossas vontades sobre os outros? O Poder de Domar do Pequeno chama a esse exame da conscincia: a violncia, a expresso forte do ntimo, tudo isso choca, impressiona, mas muitas vezes ftuo, efmero e gera imagens negativas. Quantas vezes, porm, no nos deparamos com casos em que a docilidade no domina a fria? Em que a dominao, a inveja, o cime, tudo isso no passa de demonstraes de insegurana, enquanto que aqueles que tem o esprito tranqilo continuam a realizar suas tarefas, ainda que com a pecha de fracos, submissos, etc? Laozi se referiu precisamente a este ponto quando disse: todos querem ser fortes como a rvore, mas, num vendaval, a grama, que se curvando ao vento, sobrevive, enquanto a rvore arrancada (Daodejing, 76). A sabedoria exige sempre flexibilidade, adaptao, compreenso sobre o momento. Isso s existe, no entanto, se formos humildes o suficiente para percebermos quem somos, onde estamos, e o que est acima e abaixo de ns. assim, portanto, que se constri a virtude das coisas pequenas, da razo e do sentimento, contidas no Poder de Domar do Pequeno.

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    As Instrues de Yueh

    (...) Tendo assumido o cargo de superviso de todos os funcionrios, Yueh se apresentou ao rei e disse: Oh! Os reis sbios agem com obedincia de acordo com a vontade do Cu. A fundao de Estados e o estabelecimento de capitais, a nomeao de soberanos, nobres, funcionrios, chefes, no se destinam ao cio e aos prazeres egostas, mas sim ao servio do povo. O cu esclarecido e atencioso: que o sbio rei o tome como exemplo. Assim, no haver ministros que no o sigam e, por conseguinte, todo o povo ser bem governado. da boca que se origina a vergonha, so as armaduras que do origens guerra. As vestes importantes, e as comuns, no sero retiradas de seus bas de forma interesseira; antes de utilizar uma lana e um escudo, deve a pessoa examinar a si mesma. Se vossa majestade for prudente e conduzir assim seu governo, o povo ser esclarecido e tudo ser excelente. O bom e o mau governo dependem de seus auxiliares: os cargos no devem ser atribudos aos favoritos, mas aos capazes. As dignidades devem ser concedidas s pessoas de mrito, no s de conduta indigna.

    Antes de agir, cogite sobre as melhores possibilidades, e aja no momento oportuno. Preocupar-se apenas em ser bondoso perder a noo do correto, e no empregar o poder que possui de forma correta perder o prprio mrito das suas possveis realizaes.

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    Que exista preparo em todas as questes, e com isso no ocorreram calamidades. No deves abrir as portas aos favoritos, que depois o trairo. No se envergonhe dos seus erros, ou eles podem se tornar crimes. Permita que seu esprito se dirija as questes do bem comum, e suas atitudes sero corretas. Tanto a licenciosidade quanto o excesso devem ser banidos da execuo dos rituais, o que conduz desordem - sem isso, difcil servir aos antepassados. (...).

    Extrato do Shujing, O Tratado dos Livros

    COMENTRIOS Quem o Ser superior (junzi)? aquele que possui os atributos da fora ou os da sabedoria? Em teoria, para os antigos chineses, ambas as qualificaes deveriam estar presentes no ideal rei-sbio. O soberano isento, antes de tudo, era um exemplo de conduta para a populao. Vimos, no texto anterior, a importncia da suavidade e da humildade. No entanto, o pensamento chins estabeleceu, desde cedo, uma dicotomia entre as manifestaes componentes da realidade, que se constituem no Yin e no Yang (embora no Yijing ambas as noes ainda no apaream com estes nomes). O Poder de Domar do Pequeno, em essncia, era de propriedade Yin (apesar de composto, na maioria do seu corpo, por linhas Yang), pois se constitua na capacidade de uma tnue linha fraca suster a ao das linhas fortes. Chega a hora, porm, em que o governante (o exemplo do ser superior) deve se entregar ao servio e agir com energia, dinamizando o movimento da sociedade de acordo com os ciclos da natureza. Nesse momento ele age de forma Yang, ou seja, gerando impulso,

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    expandido sua energia benfica e suas determinaes salutares pelo governo e pela comunidade.

    Como isso se corporifica no plano material? Atravs de uma srie de determinaes transparentes, comedidas, regradas, que colocam os elementos mais capazes no corpo da administrao pblica, onde ele pode vigiar seu trabalho e a execuo de suas atribuies.

    Isso no quer dizer que a China fosse um manancial de bons soberanos. Na verdade, a experincia com alguns poucos, dignos de nota, que parecem ter imprimido no imaginrio popular uma concepo acerca do que era ser um bom governante (Mozi, 4). Este ponto de vista confirmado quando levamos em conta que foi Confcio quem recuperou o Shujing, e, por conseguinte, sua releitura dos textos - somada as transformaes que ele sofreu ao longo dos sculos - permitem-nos entrever que as idias propostas no mesmo podem decorrer de uma srie de construes ideolgicas prprias, mas no de uma realidade comprovvel. Por outro lado, principalmente a partir da Dinastia Han, quando o confucionismo torna-se uma doutrina oficial, tais conceitos so recuperados, o que nos permite afirmar que este ideal de bom governante, presente no Shujing, torna-se uma espcie de modelo cultural que norteou a execuo dos deveres pelos monarcas (pelo menos, no campo mental, tendo em vista que muitos continuaram incorrendo em excessos).

    Cabe-nos aqui discutir em que medida esta proposta, porm, no deixa de ser consistente com uma noo de tica poltica e moral que para ns to importante.

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    Inicialmente, podemos notar a fundamento primordial, para os chineses, de que um governo s poderia funcionar se fosse baseado na mritocracia, e no no nepotismo. Era estranho, ao senso comum, a idia de que o filho de um nobre seria to capaz quanto o pai apenas por sua ascendncia familiar. Como indicou Confcio, mesmo para se obterem as bnos de cu e a compreenso do caminho (Dao), era necessrio estudar com afinco (Lunyu 3, 7 e 8). Da o comentrio de Yueh, que informa o soberano sobre a necessidade de escolher, segundo a capacidade (e no por favores) os melhores elementos para o governo. Tal concepo nos indica dois pontos fundamentais no discurso: primeiro, de que um governante s poderia assegurar sua sobrevivncia e gravar seu nome no mural dos exemplos se conduzisse bem os negcios do governo. Era falsa a idia, na mentalidade chinesa, de que a aliana e a distribuio de bens entre os aliados interesseiros asseguraria o poder de algum: isso s daria ensejo, no fundo, corrupo e a degradao dos valores, alm da intriga e da traio. Em segundo lugar, podemos supor que o mesmo problema da degradao devia ser maior do que imaginvamos na China Antiga: em quase todos os discursos confucionistas (e no de outras escolas tambm) os combates corrupo e ao nepotismo se faziam premissas bsicas da reformulao social e poltica.

    Tal ponto nos permite fazer uma inferncia segura da contraposio que existia entre o ideal de ser superior, de bom soberano, e o da realidade material. Os constantes apelos ao exemplo dos governantes, feitos pelos confucionistas, comprovam que a civilizao chinesa era capaz de engendrar, como qualquer outra, a idia da corrupo e do favorecimento ilcito. No entanto, os mesmos chineses foram capazes de

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    atentar e criticar esta condio, tendo-a como degradadora dos costumes e hbitos culturais. Assim sendo, o egosmo humano, individualista, deixa de ser uma questo de foro ntimo para ser de amplitude pblica, na medida em que prejudica os interesses comuns da sociedade.

    Mais do que isso aparece, tambm, no breve discurso de Yueh; a necessidade de se planejar o futuro. Dependia do monarca, em concordncia com os anseios do povo e com a vontade do cu, prestar sempre ateno aos momentos de agir e de construir. da que Mncio ir retirar a idia de que a vontade do cu , praticamente, a do bem - estar popular (Mengzi, III:27). Ateno constante, diligncia, responsabilidade, eis os atributos daquele que desejaria ser respeitado pelos seus nos negcios pblicos: humildade, fora, conhecimento e energia, eis as qualificaes daqueles que so sbios. Para os chineses antigos, se os reis deveriam ser grandes seres humanos, suas capacidades, no entanto, estariam ao alcance de todos os mortais; e essa modificao ntima dos seres que representa o sustentculo de uma sociedade ideal e harmnica, onde todos seriam virtuosos em prol do bem comum, e no em funo de si mesmos (Lunyu, 17).

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    As Conversaes de Confcio

    O Mestre disse: estudar sem refletir intil; meditar sem estudar perigoso..

    O Mestre disse: (...) praticar o Ren comear por si mesmo: querer elevar os outros tanto quanto queremos elevar-nos a ns mesmos e desejar o seu xito tanto quanto desejamos o nosso. Acolhe em ti a idia do que podes fazer pelos outros - eis o que te por no caminho do Ren.

    Fan Chi perguntou: o que Ren? O mestre disse: ame a todas as pessoas.

    Zigong: existe uma palavra que possa guiar nossa ao por toda a vida? O Mestre disse: no faa aos outros o que no quer que faam com voc.

    Do Lunyu, as Conversaes de Confcio

    COMENTRIOS Kung fuzi, ou Confcio, um dos grandes sbios da antiguidade chinesa -que dispensa apresentaes - foi um trabalhador incessante no resgate das tradies, tal como dos antigos mitos inspiradores. Seria difcil para ns, portanto, escolher uma passagem em especial do Lunyu (Conversaes, ou Analectos), que englobasse uma parte substancial do seu pensamento. Mas talvez o que mais surpreenda, em nossa proposta de investigar as similitudes do pensamento oriental e ocidental, a noo

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    apresentada por ele sobre Humanismo (Ren). Nos sculos XVI-XIX, os missionrios cristos ficaram pasmos, ao constatar que seria difcil converter um povo que vivia sob a gide de uma doutrina oficial pregadora, antes de tudo, deste amor igualitrio.

    Por este motivo, devemos ter o confucionismo como um sistema de pensamento muito bem estruturado, pautado em valores definidos, como o prprio Ren (Humanismo), Li (Ritual), Zheng (Conduta), entre outros. Decidimos por privilegiar estes trs, que vm de encontro a nossa anlise.

    Iniciemos aqui, por motivos didticos, pelo Li. Para Confcio e seus seguidores, a questo ritual era o grande ndice da civilidade humana, separando-os dos brbaros e ignorantes (Lunyu, 13). No entanto, no havia ningum, na mentalidade confucionista, que no pudesse se educar nos rituais e na cultura (educar-se, alis, era a base da formao de um ser humano, sem o que ele no se diferenciaria dos outros animais) (Lunyu, 12). Os rituais, por conseguinte, eram os atos oficiais, religiosos e sociais responsveis pela interao entre os membros da comunidade e pela sua conexo com a ordem natural e a vontade do Cu. Para este sbio, a execuo do ritual era uma forma de assegurar a reproduo de uma velha estrutura de vida que havia possibilitado a existncia da China de sua poca (Lunyu, 10). A degradao moral e a corrupo dos costumes, bem como a apropriao indbita do poder vinham, justamente, do desconhecimento que as pessoas tinham sobre a importncia dos rituais, e isso ocorria tanto pelas tendncias egosticas dos homens quanto pela sua m formao educativa.

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    Estudar, para Confcio, era a base de tudo; era o que assegurava a conduta reta (Zheng) e a justia (Yi) nos negcios pblicos e para com as pessoas. Para ele, a conduta no era apenas uma forma polida de etiqueta: era um meio pelo qual as pessoas conheciam seus limites internos e externos, garantindo seu bom relacionamento com o prximo. Era tambm uma forma de autocontrole, que em ltima analise levava a criatura a perceber sua importncia no mundo, deslocando-a dos interesses prprios para os interesses da comunidade. Temos uma noo muito hipcrita da etiqueta, que em nossas concepes apresenta-se como uma forma diplomtica de relacionamento, muito ligada cultura de elite. A idia dos confucionistas ia bem alm da mera formalidade: o hbito da retido na conduta moral deveria forar o Ser a repensar suas atitudes, atentando a seu papel social (Lunyu, 12 e 13). Assim sendo, as prticas de relacionamento no seriam uma represso dos sentimentos, mas sim uma expresso digna e respeitosa do ntimo, que atravs da formalidade, seriam filtradas de forma no agressiva.

    Estas idias se originavam da concepo de Confcio de que Ren (o Humanismo) era, de fato, a base de todo o Mundo. Mas o que Humanismo numa viso confucionista?

    complicado traduzir este termo para nossa lngua, tendo em vista que ele engloba vrias idias diferentes, mas faamos uma aproximao explicativa.

    O primeiro conceito que podemos utilizar para entender este Humanismo confucionista o do Amor. Houve uma grande deturpao em relao proposta de distribuio do afeto entre os seres, e muitos tenderam a acreditar que Confcio defendia

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    que s era possvel amar aqueles que tambm fossem civilizados, o que em breve se traduziu por chineses. Isso no verdade: mesmo criticando os brbaros do Norte por seus costumes diferentes e agressivos, Confcio nunca estabeleceu um limite para quem poderia ou no entender o caminho (Dao) por ele proposto. A base desse Humanismo, assim como do ritual e da conduta eram, sempre, os estudos. Estudar a si prprio, estudar os outros, estudar a cultura, formando assim um arcabouo ntimo de idias e valores: eis o mister dos autnticos confucionistas (Lunyu, 1). Assim sendo, Amar um termo que se aproxima pela noo de sentimento afetivo recproco, de compreenso mtua, de equilbrio e equanimidade entre as pessoas. Isso no basta, porm, para explicar o Ren.

    Devemos aqui incluir outra noo, a do Altrusmo. A ajuda desinteressada faz parte dos elementos componentes do Ren, o que permite o equilbrio da sociedade pelo aproveitamento sadio de todos os seres. Confcio era contra a caridade direta, que para ele s reforava as desigualdades e a acomodao (Lunyu, 6). Era necessrio empreender a educao comum, a ajuda mtua e a distribuio do trabalho para que todos pudessem viver em uma harmonia digna, justa. Uma pessoa s seria lanada ao desequilbrio e a carncia se no tivesse trabalho ou, ainda, se mesmo com trabalho, no tivesse uma educao que lhe impedisse de cometer excessos, ou que a fizesse desconhecer as regras de conduta e de ritual.

    No perodo Han, quando da adoo do Confucionismo pelo Estado, a China passou por um perodo de grande renovao cultural e intelectual derivada destas propostas. No entanto, esta escola foi incrivelmente deturpada em perodos

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    posteriores, transformando-se at numa religio, algo que Confcio provavelmente lastimaria. O principal desvio, no entanto, foi a transformao do ritual em um separador da cultura chinesa em relao ao resto do mundo (Jopert, 1979: 92); somada a banalizao do Ren, que se transformou em um conceito de afeto disperso e superficial, dirigido em termos caritativos, o confucionismo perdeu grande parte de sua potncia como proposta universal para se tornar um discurso sinocentrista de civilizao.

    Temos que nos impressionar, no entanto, com a atualidade e a abrangncia da proposio original de Confcio. Amar a todos, e no fazer ao prximo o que no quer que faam com voc so, no mnimo, afirmaes tiradas de uma razo humana que deve transcender a lgica cultural. Nessa hora somos obrigados a nos perguntar se, de fato, as correntes do pensamento oriental no estariam certas, ao afirmar a importncia da ascendncia do esprito humano sobre certos valores e conceitos que surgem, em diferentes sociedades e contextos histricos, levando em conta que estas concluses foram feitas tendo por base pressupostos culturais completamente diferentes. E o que dizer ento da idia de educao e comportamento? Quanto tempo levamos para concluir isso, com nossas concepes modernas sobre cincias humanas? H que se pensar a, realmente, numa possvel universalidade do saber, patrimnio indelvel da mentalidade humana que de tempos em tempos inferida por estes grandes pensadores? No podemos ter certeza, mas Confcio, j no sculo VI a.C. foi capaz de elaborar uma proposta, em muitos aspectos invejvel, para a resoluo de problemas sociais que parecem atravessar a existncia humana com persistncia e

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    tenacidade, sobre os quais apenas a vontade ntima seria capaz de se sobrepor.

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    Sobre a Real Natureza Humana

    Mncio disse: todos tem um corao sensvel aos sofrimentos de outros. Os grandes reis do passado tiveram este corao sensvel, e polticas cheias de compaixo foram adotadas. Trazer a ordem ao reino to fcil quanto mover um objeto na palma de sua mo, e quando voc tem um corao sensvel tenta sempre pr em prtica polticas de compaixo. Me deixe dar um exemplo do que eu digo, ou seja, que todos tem um corao sensvel aos sofrimentos de outros: qualquer um que tenha visto, de repente, um beb prximo de cair em um poo se sentiria alarmado e iria salva-lo. No o faria porque quis melhorar suas relaes com os pais da criana, nem porque quis adquirir uma reputao boa entre seus amigos e vizinhos, ou ainda, porque no gostou de ouvir a criana gritar. Apenas o faria por compaixo. Disto segue que qualquer um quem falte sentimentos de comiserao, de carinho, de cortesia ou um sentido de certo e de errado, no pode ser entendido como humano.

    (...) Gaozi disse: a natureza humana como a gua correndo: quando um curso aberto ao leste, ela flui para o leste; quando uma corrente aberta ao oeste, flui para o oeste. A natureza humana mais inclinada ao bem tanto para o leste quanto para o oeste. Mncio respondeu: a gua no tem preferncia pelo leste ou pelo oeste, mas no tem uma preferncia pelo cimo ou para baixo? A bondade na natureza humana como fluir da gua para baixo. No h nenhuma pessoa que no seja boa e nenhuma gua que

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    no flua para baixo. Espirrada, ela pode molhar sua cabea; se forada, pode ser trazida acima de um monte. Mas esta no a natureza da gua; so circunstncias especficas. Embora os povos possam ser feitos para serem maus, suas naturezas no so mudadas.

    ****

    Xun Zi disse: A natureza do homem m. Bom o produto humano. A natureza humana tal que os povos nascem com amor ao lucro, e se seguirem essa inclinaes, eles lutaro e arrebatar-se-o uns aos outros, e as inclinaes ao dever e a produo morrero. Eles nascem com medos e dios. Se os seguirem, transformar-se-o em violentos e tendenciosos, indo de contra a boa f, que morrer. Se forem indulgentes, a desordem da licenciosidade sexual resultar na perda dos princpios rituais e da moral. Em outras palavras, se o povo agir de acordo com a natureza humana e seus desejos, eles inevitavelmente lutaro, arrebatar-se-o, violaro as normas e agiro com violento abandono. Conseqentemente, somente depois de transformados por professores e por princpios rituais e morais, conforme a cultura, podero permanecer em boa ordem. Visto por este lado, bvio que a natureza humana m, e bom o produto humano.

    Extratos do Livro de Mncio e do Livro de Xunzi

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    COMENTRIOS Os dois grandes nomes do Confucionismo, depois do prprio Confcio, foram Mengzi (Mncio) e Xunzi, que desenvolveram a doutrina a partir de uma nova perspectiva interpretativa. Mncio (IV-III a.C.) considerado por muitos o grande idealista dessa escola, e seu texto foi adicionado ao cnon tradicional. J Xunzi impregnou o discurso com uma forte noo racionalista, cujos desdobramentos contriburam de forma significativa para a formao do pensamento poltico de sua poca (III a.C.). Ambos foram quase contemporneos, e suas propostas foram discutidas simultaneamente.

    Mncio e Xunzi inauguraram, dentro do Confucionismo, a discusso sobre a real natureza humana. Ela seria boa ou m? Confcio no disse muito a respeito, preocupando-se mais com a questo da retificao das pessoas do que propriamente com sua natureza. Para Mncio, no entanto, era importante explicar esta dimenso do pensamento confucionista, tendo em vista uma crtica sria que era feita aos mtodos de sua escola.

    A crtica pautava-se na questo da educao: se ela era fundamental para a construo da sociedade ideal e harmnica, porque tantos nobres considerados educados continuavam a empreender a corrupo e a degradao moral? Porque os mais ricos eram mais cobiosos que os pobres, se muitos haviam podido estudar e, teoricamente, esclarecer-se?

    A resposta de Mncio vinha de encontro idia de que no havia um mal intrnseco tanto nos pobres quanto nos ricos. Ambos nasciam com espritos bons, ou destinados ao bem, mas a atrao pela fama e pelas riquezas matrias que corrompiam

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    o ser humano. Desde cedo ele seria estimulado a tirar proveito, a cobiar, a roubar, a trair, se esse fosse o exemplo gerado pela sua famlia e pelos lderes de seu povo. A educao, portanto, seria a grande arma para esclarecer, de fato, os problemas da sociedade. Aqueles que, mesmo sendo considerados bem educados, continuassem a explorar e a praticar a vilania no teriam sido, para Mncio, devidamente instrudos. A educao, em sua viso (que concordava com Confcio) devia, acima de tudo, clamar ao exame interior do Ser. Sem isso, ela no seria mais do que um lustre intelectual, uma polidez cultural que no alteraria o carter deformado das pessoas.

    Por isso mesmo Mncio no via, do maior nobre ao menor campons, diferenas que os fizessem seres humanos diferentes e melhores (ou piores) uns que os outros. A separao hierrquica seria apenas uma circunstncia transitria, e at discutvel, que serviria somente necessidade de organizao social em torno da administrao pblica. Por este motivo, qualquer um que tivesse seu bom corao firme, por conseguinte, era candidato a exercer o poder, o que seria demonstrado pela vontade do cu.

    Xunzi, no entanto, considerou que a perspectiva de Mncio era por demais idealista, e por mais que o Cu prometesse catstrofes aos governantes corruptos, ainda assim o gnio humano continuava a agir, disseminando a maldade. Partindo deste princpio que Xunzi concluiu justamente o contrrio de Mncio: a natureza humana seria m, selvagem, idntica a natureza dos animais que se juntariam em bandos para caar, matar e procriar. No entanto, este mesmo ser humano precisou estabelecer limites que assegurassem sua existncia, sendo capaz de gerar uma idia de lei e justia que intermediaria seus

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    conflitos com o outro. Xunzi entendia ser isso um Saber social (Cultura), ou seja, um sistema de reproduo da sociedade que disciplinava seu modo de vida, vinculada, fundamentalmente, a questo da educao, que seria a transmisso desta estrutura entre geraes. Vemos a, novamente, o problema dos estudos aparecendo como um fator primordial na tica confucionista. Xunzi era pessimista, mas no descrente do ser humano: pelo contrrio, acreditava que mesmo esse ser, de natureza vil, era capaz de articular um modo de vida que respeitasse os limites alheios. Logo, se a China de sua poca vivia uma crise, era porque realmente as pessoas no estavam sendo bem educadas: e isso permitia que seus instintos primitivos aflorassem em toda a sua fora. O ser humano tinha todo o potencial de ser bom, mas disso dependia que toda a sociedade exercesse uma presso constante sobre si prpria e sobre os governantes para regular suas aes, e disseminar a prtica do bem e da cultura. Eram necessrios princpios rgidos na avaliao do cotidiano. E assim sendo, valendo-se de suas foras, a humanidade independeria, mesmo do Cu, para sobreviver.

    A questo da natureza humana foi to importante, para a China Antiga, quanto para nossa sociedade hoje. As idias de Xunzi influenciaram vrios pensadores polticos, como Han Fei (que veremos adiante), cujas propostas radicais guardavam bastante do pessimismo de seu mentor. J Mncio conclamava as pessoas a repensarem seus medos e desconfianas, diante da ao da bondade; e a reagir quando a maldade prevalecesse (Mengzi IV:3). Como nos situamos diante dessas anlises do esprito humano? Quantas vezes estabelecemos preconceitos e esteretipos em relao a outras culturas e povos por no sabermos sua mentalidade? O Ocidente esperou at Hobbes e Locke (sculo XVII) para chegar a uma discusso semelhante,

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    e ainda assim, em nenhuma parte do mundo chegou-se um consenso. Parece-nos aqui que a opo por uma interpretao sobre a real natureza humana dependeu, sempre, das perspectivas mentais daqueles que a propuseram, fossem elas positivas, negativas, ou mesmo neutras. No entanto, a maneira de encarar esta dvida, no ponto de vista chins, no se encontrava na avaliao metafsica do problema, mas sim, na sua resoluo pragmtica. E para os confucionistas, o sempre recorrente discurso da educao se fazia necessrio.

    Isso nos coloca em outro nvel de questionamento: pode uma construo humana (a educao, em si) modificar o esprito de um povo, ou mesmo de apenas uma pessoa s? Ou cada um j nasceria com uma tendncia, com uma pr-disposio, que a educao apenas lapidaria, afirmaria ou destruiria? Na dvida, os mesmos confucionistas optaram pelo dogma do ensino: afinal, ainda que existisse (ou no) um destino traado para cada ser, cumpria sociedade instru-los sobre suas capacidades, seus limites e direitos. Diante disso, somente a conscincia poderia determinar, realmente, o caminho a ser tomado pelo indivduo, fosse qual fosse sua ndole natural.

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    O Verso do Dao

    O caminho que pode ser seguido no o Caminho perfeito. O nome que pode ser dito no o nome do Eterno. No princpio est o que no tem denominao. O que tem nome a Me de todas as coisas. Para que possamos observar seus segredos, devemos permanecer sem desejos. Se formos at ela com desejos, s vislumbraremos sua forma externa, a casca em torno da essncia. Estes dois estados existem para sempre unidos. Diferentes apenas pelo nome, so idnticos, juntos, entrelaados. So os mistrios, mistrios alm dos mistrios. [So] O portal, que conduz a tudo aquilo que sutil e maravilhoso, esconderijo de todas as essncias.

    Verso 1 do Daodejing, o Tratado do Caminho e da Virtude de Laozi

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    COMENTRIO O misterioso pensador Lao zi teria vivido em poca contempornea a de Confcio (VI a.C.), mas sua existncia continua sendo um motivo de controvrsia. Acreditamos que no sumamente importante discutir agora este ponto, em virtude de duas questes: primeiro, que o nosso objetivo aqui analisar a proposta contida no texto; texto esse que, numa segunda assertiva, j influenciava o pensamento chins no sculo IV a.C. atravs de autores como Liezi e Zhuangzi. Assim sendo, o fato de ter havido, ou no, algum chamado Laozi, j no era importante desde o sculo V a.C., o que se dir agora. Empregaremos, assim, a figura do suposto autor para introduzir o discurso taosta, sem que haja aqui uma afirmao sobre sua condio real de existncia.

    Em meio ao caos que se instalava no sculo VI a.C., a proposta de Laozi baseou-se num distanciamento claro das decadentes instituies polticas dos Zhou. Empreender um retorno natureza primordial do ser, essa sim seria a busca ideal da salvao. Os tempos antigos representavam para os taostas uma poca de paz, de desapego, que fora obtido graas harmonizao natural dos seres com o meio. No intuito de fazer prevalecer esta paz, porm, apareceram os sbios, que instituram leis, promulgaram regras, e lanaram a desconfiana entre as pessoas, ensejando os desejos egostas de sobrevivncia e acmulo material.

    Por causa disso, a sociedade perdeu o Dao (Tao), o caminho, conceito esse j existente na mentalidade chinesa que os taostas (ou daostas - optamos pelo primeiro termo, mais comum) iriam desenvolver ao mximo. O Dao no poderia, em

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    essncia, ser explicado. Parece tratar-se de uma frmula de harmonia com a natureza, onde o Ser descobriria sua posio atuante no ciclo csmico. Isso exigia que a pessoa comum, portanto, se desprendesse das coisas mundanas que atavam-na, no crculo vicioso das convenes sociais, para descobrir, no seu ntimo, o ritmo das relaes existentes entre seu corpo, seu esprito e a natureza.

    Por isso mesmo, a descrio lingstica do Dao no era possvel, para os taostas, por se tratar de uma experincia transcendente, desligada das sensaes que governam os seres comuns. A matria e o esprito seriam, na verdade, desdobramentos de uma nica fonte primordial, inominvel, que provinha da entidade geradora do cosmo, a Me-natureza (Daodejing, 6 e 52). Partindo dela, estabelece-se a dicotomia constituinte da matria, os princpios opostos, o Yin e o Yang. E da fuso de ambos nasce o Trs, o filho, o manancial das Dez mil Coisas (expresso chinesa para o universo) (Daodejing, 42). Para se acessar, por conseguinte, essa realidade, o ser precisaria buscar dentro de seu prprio esprito a noo de equilbrio e interao que se chamaria Dao. Ele no poderia dispensar a matria, do qual faz parte: mas pode tentar apreende-la sem desejo, sem noo de posse, o que permite ento a livre expresso das propriedades das coisas (Daodejing, 48, 49 e 72). Esta iseno do desejo, e o livre fluir do conhecimento, que davam ensejo ao conceito da No - ao (wu wei).

    Esta clivagem taosta bastante interessante: quantas vezes no deixamos de enxergar as coisas porque nelas projetamos nossas nsias e desejos? exatamente por isso que Laozi propunha uma aproximao isenta, sem o que s seramos capazes de

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    observar a forma externa das mesmas, e nelas continuaramos a sobrepor nossas concepes prprias de mundo que no seriam nada mais, nada menos, do que erros de leitura da realidade, propostas pela Cultura.

    De fato, esta mesma Cultura aparecia a, para os taostas, como um filtro deformador da realidade natural: uma construo at necessria, para que o homem pudesse interagir com o meio. Mas, a partir do momento que a mesma se tornasse um sistema de Domnio sobre a natureza, ento ela comea a se degradar e corromper, pois passa a ser uma construo irreal (e ideal) sobre a verdade csmica. Derivariam disso os conflitos entre os pases, os povos, as famlias, cada qual porque nenhum desse seres percebe que os atributos do cosmo esto presentes, por igual, em cada um deles.

    Mas essa realidade natural do Ser seria de fcil acesso? Na verdade sim, e no. Ela dependeria do esforo individual de cada um, o que a torna um caminho tortuoso e complicado, mas que ao mesmo tempo est aberto diante de ns, j que fazemos parte desta natureza e no podemos dela nos separar. Este seria o Portal do conhecimento, dos mistrios, presente na entrada do Dao (Daodejing, 34 e 70).

    Estas concepes taostas conclamavam as pessoas ao estudo ntimo e a meditao profunda do papel do ser humano no seu meio. Laozi foi um tanto hermtico nos seus discursos sobre o resgate da harmonia primordial, mas ao mesmo tempo foi original e autntico, quando props que a real liberdade do Ser no poderia ser atingida pela prtica de uma cultura que trazia dentro de si o cerne da degradao. Toda e qualquer construo humana, que se distancia de uma base natural, tenderia a gerar

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    perturbao, j que ela provocaria o surgimento de novas nsias, duvidas, conflitos e perigos, que jogariam os seres uns contra os outros. A abordagem do Caminho deveria ser feita, com segurana, atravs da flexibilidade do pensamento, da ao contida e do corao aberto aos movimentos do mundo.

    O primeiro verso do Daodejing nos diz respeito, portanto, a necessidade que os seres humanos teriam de reencontrar sua posio na natureza csmica. Seria um engano pensarmos que somos donos de algo (ou de nossa prpria vida, ou do meio), j que esta conscincia ideolgica deriva de uma noo maior de Cultura, mas que no esclarece, em si, o fato de que todos os seres nascem e morrem, e apenas natureza continua a existir. Assim sendo, ns pertencemos natureza, e no o contrrio. Laozi pensava, com isso, em chamar as pessoas construo de uma sociedade mais harmnica, baseada na compreenso deste princpio, que nos induz a agir no de forma selvagem, mas que nos traz a conscincia da transitoriedade das coisas, e que por isso mesmo, nos fora rever nossos desejos e angstias como sentimentos vos, numa existncia que no exige nada disso para assegurar nossa sobrevivncia.

    A proposta de Laozi nos faz pensar, em termos modernos, na questo da responsabilidade individual sobre o mundo, sobre as das ditas comunidades primitvas e mesmo sobre a questo ecolgica. Em que medida ns assumimos um exame ntimo de nossas vidas e no criamos para elas mais necessidades do que realmente precisaramos? A cultura, por muitas vezes, no nos induz ao excesso desmedido, criando anseios sobre coisas que seriam totalmente dispensveis em nossas vidas, mediante um exame mais atento? Quando observamos as comunidades primitivas, que durante um bom tempo conseguiram

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    estabelecer um padro de vida bastante significativo, pautado exclusivamente na harmonia com a natureza e o meio, podemos realmente assegurar que a evoluo material seria o nico caminho de desenvolvimento possvel para a sociedade? E ainda, as construes tecnolgicas, que se prope a serem reprodutoras da vida humana, muitas vezes no ameaam o meio ambiente, pondo em perigo, por conseguinte, a prpria existncia das sociedades mundiais?

    Na antiguidade chinesa, o taosmo terminou por se destacar como um caminho exotrico de compreenso da realidade natural, pondo-o num patamar religioso acessvel somente pela meditao e, por vezes, pela alquimia (Palmer, 1993 e Eliade, 1978). Numa perspectiva moderna, isso seria considerar que o taosmo tenderia a ser um movimento contra a evoluo tcnica da humanidade, privilegiando o distanciamento e o abandono das necessidades materiais. Essa idia uma constante na interpretao de vrios sistemas de pensamento oriental, mas no podemos assegurar que os taostas, em bloco, pensassem assim. Na verdade, talvez seu intuito fosse criticar uma cultura que destrua seus prprios elementos em funo de interesses particulares e egosticos, afastando o ser da sua natureza inicial (Daodejing, 65). O retiro, a, no despende que a humanidade parasse sua caminhada: mas que, apenas, revisse seus passos. Se assim for, a descoberta dos mistrios que envolvem o caminho no seria, nada mais, nada menos, do que a criao de uma sociedade onde seres conscientes fossem capazes de assegurar a vida comum atravs de uma relao mais equnime e adaptada realidade do meio. O caminho, portanto, seria se deixar conduzir por este movimento natural e constante, sem conflitos, sem atritos, sem desperdcios (Ibidem, 63, 73). Eis uma mensagem significativa, que Liezi e Zhuangzi

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    trabalhariam para tornar mais acessvel ao pblico atravs de suas parbolas, que veremos a seguir.

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    Sobre um Ladro de Machado

    Um homem perdeu seu machado, e desconfiou que o filho do vizinho o tivesse roubado. Comeou a espiona-lo, e tudo parecia indicar que suas desconfianas estavam corretas: o rapaz andava como um ladro de machado; sorria como um ladro de machado, e seu modo de falar parecia ser hipcrita como o de um ladro de machado. Todos os seus movimentos tendiam a disfarar sua culpa. Mas, um dia, aconteceu deste homem, que perdeu o machado, cavar um lugar qualquer no vale e topar com o seu instrumento de trabalho perdido em um canto, perto do lugar onde sempre fazia seu servio. No dia seguinte, ele olhou novamente o filho do vizinho, e concluiu que todos os seus movimentos, todo o seu ser, nada tinham haver com os de um ladro de machado.

    do Livro de Liezi

    COMENTRIOS Liezi teria vivido no sculo IV a.C., tendo sido, tradicionalmente, mestre de Zhuangzi. Teria herdado de Laozi o gosto por versos profundos, mas ao mesmo tempo iniciou a transmisso dos saberes taostas pela via dos contos e apangios, que tiveram seu pice com o discpulo famoso.

    A parbola do Ladro de Machado exemplifica a questo do preconceito e das construes irreais, que fomentamos sobre as coisas e sobre os outros, quando nos vemos em momentos de

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    angustia ou de irreflexo. Isso s ocorreria por causa das exigncias que a sociedade nos lana todos os dias: precisamos trabalhar, s vezes sem saber porque ou como. No importante se o servio gera prazer ou satisfao: sua execuo est vinculada a um fim, e no ao ato em si. Este fim a sobrevivncia. Mas a concepo ideolgica da subsistncia, como uma meta individualista, no seria a geradora justamente dos males humanos? Seno vejamos: porque o lenhador achava que algum o havia roubado? Em princpio, porque seu machado s poderia ter sumido assim. Algum queria levar vantagem sobre ele, e, em ltima anlise, sobre a vida. Ele desconfia do filho do vizinho: v nele toda a sua insegurana manifesta, a quase comprovao do delito que pe, o outro, como culpado de seu fracasso. E no final, descobre que o engano era seu mesmo.

    A percepo de Liezi vasta neste aspecto: ela realiza a contraposio entre o individual e o coletivo, noo importante na sociedade chinesa, intensamente gregria. A idia de obrigao social incide sempre com muita fora no espao individual, e uma forma de escapismo atribuir os problemas ntimos s condies externas adversas.

    Sabemos que, por muitas vezes, a fora da ideologia e da cultura macera o sentimento humano numa determinada frma, que o adapta, fora, as convenes do meio (Liezi, 2). Mas a parbola de Liezi nos mostra duas coisas importantes: primeira, de que no podemos viver sempre em funo da sociedade, j que ela no capaz de gerar sempre respostas para nossos problemas. Na verdade, vivemos das regras, mas quando fracassamos, muitas das vezes essas mesmas convenes nos abandonam (Liezi, 8). Em segundo lugar, a sociedade

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    constituda por ns: so as pessoas que fazem as desconfianas, os conflitos, as incertezas. Se examinssemos todos os passos de nossa vida, saberamos reconhecer, com justia, o que fizemos de errado e o que no foi culpa nossa. Melhor ainda, talvez percebssemos mesmo que muitas das ofensas que sofremos, e que julgamos serem decisivas na nossa formao no passam, diante de um olhar atento, de mera imaturidade e frivolidade. Dentro do olhar taosta de Liezi, o caso do roubo do machado mostra que o ser humano ainda tem muito por fazer para viver numa sociedade harmoniosa.

    Para que o Todo seja perfeito, cada um tem que fazer seu esforo individual para que a mudana ocorra. necessrio tentar compreender o caminho (Dao), seno vamos continuar nos perdendo nas iluses materiais, nas prprias paranias que construmos sobre o que nos cerca (Liezi, 1). No existiria, nessa viso, um conflito entre a noo de indivduo e coletivo: na verdade, assim como o Yin e o Yang, ambos so diferentes, mas ao mesmo tempo se completam, e um depende do outro. Assim, a cultura no pode ser nunca entendida como tbua de salvao, se no for precedida de uma reflexo moral e tica profunda e sincera, desprendida da cobia e isenta de interesse; o que muito difcil, na prtica, mas no impossvel, se levarmos em conta que cada trabalho feito diariamente, passo aps passo. Como no caso do lenhador, nenhuma floresta ser derrubada no primeiro dia de esforo: o servio contnuo que traz o aperfeioamento constante e a obteno das metas.

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    O Fabulista do Dao

    No Absoluto

    Se um homem dorme em um lugar mido, resfria-se e morre. Mas e as enguias? Viver em cima de uma rvore difcil, e esgota os nervos de qualquer um. Mas que me dizes dos macacos? Entre o homem, a enguia e o macaco, quem habita o lugar certo, absolutamente? Os seres humanos alimentam-se de carne, o gamo de erva, as centopias de cobras, as corujas e corvos de ratos. Desses quatro, qual o gosto certo, absolutamente? O macaco se une a macaca, o gamo cora; as enguias unem-se aos peixes, enquanto os homens admiram Mao Qiang e Li Chin vista dos quais os peixes mergulhariam, horrorizados, na profundidade das guas, as aves voariam alto no Cu e os gamos fugiriam correndo. Quem dir, contudo, qual o correto padro de beleza? Na minha opinio, o padro da virtude humana, e do positivo e negativo, to obscuro que impossvel realmente saber qual seja.

    A Escolha de Zhuang zi

    Zhuang zi estava pescando no rio Pu, quando o prncipe de Zhu mandou dois altos funcionrios convid-lo para assumir o cargo de administrador do Estado Zhu.

    Zhuang zi continuou pescando e, indiferente, disse: "Ouvi falando que em Zhu h uma tartaruga sagrada que morreu h cerca de trs mil anos. E que o prncipe guarda

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    cuidadosamente essa tartaruga em um cofre no altar de seus ancestrais. Ora, para essa tartaruga seria melhor estar morta e ter os seus restos venerados, ou estar viva e arrastando a sua cauda na lama?".

    "Seria melhor estar viva e arrastando a sua cauda na lama", responderam os dois altos funcionrios.

    "Ide embora!", gritou Zhuang zi. "Eu tambm prefiro arrastar a minha cauda na lama".

    Zhuang zi Morte

    Quando Zhuang zi estava para morrer, os seus discpulos manifestaram a vontade de lhe fazerem um esplndido funeral. Mas Zhuang zi disse: Com o cu e a terra por meu fretro; com o Sol, a Lua e as estrelas como ornamentos fnebres, e com toda a criao para me levar ao tmulo - os preparativos para o meu funeral j no esto prontos?.

    "Tememos" argumentaram os discpulos "que os abutres devorem o corpo do senhor" Ao que Zhuang zi replicou: "Acima do cho serei alimento dos abutres; debaixo do cho serei alimento dos vermes e das formigas. Por que tirar de uns para dar aos outros?".

    Extratos do Livro de Zhuangzi

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    COMENTRIOS Com Zhuangzi, a escola taosta completou sua trade, tal como a dos confucionistas. Mas este incrvel contador de histrias, que tornou o Dao acessvel aos leigos, deixou uma mensagem humanstica profunda, que nos surpreende pela sua sensibilidade e agudeza.

    Vejamos a primeira fbula: quem pode saber o que melhor, em absoluto? Quantas vezes algum pode nos indicar um caminho achando que o melhor, desconhecendo por completo nossa individualidade? Zhuangzi no nega o valor da experincia humana, mas contesta sua abrangncia e especificidade. Em geral, o que vivemos so construes ideolgicas e culturais que so alheias aos impositivos de nosso esprito (Zhuangzi, 2), mas ento, como podemos manifesta-los em nossa sociedade? Quem pode saber, realmente, o que melhor pra ns, seno ns mesmos? Mas Zhuangzi no era, tambm, um defensor do egosmo e da imaturidade. Para ele, as experincias humanas deveriam ser a base sobre qual ns observaramos a vacuidade de certas coisas, e no uma muralha, construda pelas decepes, que fechariam nossa alma ao mundo.

    Em geral, o chamado conhecimento da vida seria, na viso deste pensador, nada mais do que um conjunto de amarguras e rancores que induzem as pessoas sempre lutarem pelo que transitrio, o que d prestgio, mas que no a definitiva realidade do ser. As sensaes no deveriam servir para que todos desenvolvessem uma viso egosta e pessimista do mundo: elas teriam por fundamento, na verdade, a possibilidade de fazer com que as pessoas reconhecessem as

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    diferenas que existem entre os Seres da natureza. E isto no faria com que houvesse, necessariamente, uma hierarquia csmica que determinasse a posio de cada um no universo; cada qual tem, de fato, seu lugar nos ciclos naturais, mas cada um com sua importncia, ningum melhor ou pior do que o outro.

    por isso que Zhuangzi recusara as honrarias de um bom cargo, no segundo conto: porque se deixar prender em obrigaes matrias e transitrias, cujas preocupaes cotidianas e montonas nada tem haver com a realidade ltima do mundo (ibidem, 17)? Tinha o que precisava para seu sustento, ento porque querer mais? Seria comodismo? Ou a negao daquilo que muitos querem, o Poder e o Prestgio?

    Como vimos antes, a fora, na viso taosta, efmera e rpida, em contraposio a suavidade, que durvel e sutil. Assim tambm seriam o Poder e o Prestgio: hoje, um homem soberano; e amanh, escravo de outro rei. Somente aqueles que percebessem o caminho seriam capazes de compreender que todas essas coisas passam. A fome, sim, seria uma realidade; nascer, morrer, procriar, eis o que todos fazem, do mais alto poltico at o mais baixo popular. Disto se conclua que todas as disputas em torno de valores, posses, bens e posies nada mais eram do que construes humanas, pois todos, enfim, precisam do mesmo bsico para viver.

    por isso que Zhuangzi encerra brilhantemente sua vida retribuindo, natureza, seu corpo (ibidem, 32). A mesma Me que d, a que tira. E, no entanto, como podemos achar que no fazemos parte dela, se somos entes perenes, j que no ciclo csmico no h perdas, mas apenas manifestaes da mesma

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    matria? Como podemos nos fazer mais ou menos importantes que outros, se somos feitos do mesmo princpio e se necessitamos das mesmas coisas? (ibidem, 7)

    Zhuangzi um apangio sobre o preconceito e sobre o egosmo. No que Laozi e Liezi no tenham se pronunciado, e bem, sobre estas coisas, mas Zhuangzi explorou-as ao mximo, aproximando seu discurso das pessoas mais ignorantes e menos instrudas. A salvao estaria ao alcance de todos, e ela seria facilmente atingida por aqueles que conseguissem se desprender dos grilhes materialistas do mundo para perceber, com naturalidade, a presena do caminho (Dao), da existncia real do Ser.

    Muito nos impressiona ver que, no sculo IV a.C., este autor j era capaz de discutir as diferenas sociais e materiais sob uma tima humana, isenta de preconceitos, pautada unicamente numa crtica ao mundo, e no somente sua cultura. Se nesta poca j era possvel realizar tal inferncia, vemos que a criao de um conceito humanstico no privilgio de nenhuma sociedade, mas de uma sabedoria universal, inerente a todos os povos (se, de fato, esta sabedoria existe). Somente as construes ideolgicas fomentariam um pessimismo sobre o Ser (como em Xunzi), que transparecesse no estabelecimento de cdigos e leis desiguais e hierrquicas: a tendncia do esprito, em si, seria reconhecer-se como igual, o que tornaria a fraternidade e o amor os nicos princpios verdadeiros do mundo.

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    A Necessidade de Padres Mozi disse: Para fazer o que quer que seja, cumpre ter padres. Ningum realizou coisa alguma sem eles. Os fidalgos, no exerccio de suas funes de generais e conselheiros, no os dispensaram. Os prprios artesos regem-se por padres. Assim, constroem objetos quadrados, de acordo com o quadrado; e recorrem ao compasso, para as figuras circulares; desenham linhas retas com a rgua de carpinteiro; e o prumo lhes vale para as perpendiculares. Todos os artfices, capazes ou no, empregam esses cinco padres. Apenas os mais hbeis so perfeitos. E os menos hbeis, os que no alcanaram a perfeio, andaro melhor, se fizerem uso dessas regras. Eis porque todo arteso se norteia por moldes certos. Ora, o governo do imprio e o dos grandes pases no se atm a padres; isto demonstra que os governantes so menos inteligentes que os artfices. Que devemos tomar como exemplo de bom modelo de governo? Deve cada um imitar os pais? H muitos pais no mundo; poucos so magnnimos. Se todos seguirem o exemplo dos pais, raras vezes procedero nobremente. E imitar um procedimento indigno no ser ater-se ao padro adequado. Poderia cada um nortear-se pelo exemplo de seu mestre? Muitos so os mestres; mas poucos os mestres dotados de uma alma grande. Logo, se todos imitarem o seu mestre, nem sempre imitaro um bom exemplo. Nortear-se pelos maus exemplos no adotar o padro apropriado. Convm que cada um imite o seu soberano? H muitos soberanos; raros, porm, so exemplares. Imitando-os, nem sempre andaremos bem. No boa norma copiar um mau proceder. Logo, nem os pais, nem o mestre, ou o soberano,

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    podem ser aceitos como padres de governo. Que devemos, ento, escolher como padro de governo? Nada melhor do que orientarmo-nos pelo Cu. O Cu abrange tudo; imparcial nas suas atividades, generoso e incessante nas suas bnos, guia infatigvel e constante. Assim, quando os reis sbios tomaram o Cu por modelo, moldaram por ele as suas aes e empresas. Faziam o que o Cu desejava e evitavam o que o Cu pudesse condenar. Ora, o que que o Cu preza, e o que que o Cu abomina? Indubitavelmente, o Cu deseja que os homens se amem e auxiliem mutuamente, e reprova que se odeiem e hostilizem. Como chegamos a esta concluso? Simplesmente porque o Cu ama e favorece toda a humanidade. E como sabemos que o Cu ama e favorece a humanidade inteira? Porque o cu protege a todos, e de todos aceita oferendas. Todos os reinos do mundo, grandes ou pequenos, so cidades do Cu; todos os homens, velhos ou moos, fidalgos ou humildes, so sditos celestes; em verdade, todos eles apascentam bois e ovelhas, alimentam ces e porcos e preparam vinho e bolos para sacrific-los ao Cu. Acaso no significa isto que o Cu protege a todos e de todos aceita oferendas? Desde que assim, como no deveramos pensar que o Cu deseja que os homens se amem e auxiliem mutuamente? Logo, o Cu abenoar os que procederem de acordo com esse preceito, e amaldioar os que odeiam e prejudicam o prximo, pois foi dito: a adversidade h de punir o assassino do inocente. Como explicaramos, de outro modo, o fato de recair sobre os criminosos a maldio celeste? Logo, o Cu deseja o amor do prximo, e detesta o dio ao prximo. Extrato da parte 4 do Livro de Mozi

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    COMENTRIO Mo zi foi um dos grandes crticos do Confucionismo, tendo vivido, provavelmente, em torno do sculo V - IV a.C. Uma srie de evidncias indica que Mozi deve ter estudado os mesmo clssicos que Confcio, chegando a concluses diametralmente opostas, porm, das propostas apresentadas pela Escola dos Letrados. Supe-se que essa diferena de interpretao tenha vindo da condio social de Mozi, muito mais prxima da plebe do que da fidalguia Zhou (Jopert, 1979:102-3).

    Este autor era um pregador retrico contundente, como seu texto mostra.Tinha uma relutncia profunda para com o confucionismo, que considerava uma ideologia de elite. Mozi era antes de tudo um defensor das causas populares, e via na estrutura poltica da Dinastia Zhou um sistema corrompido, injusto, criado em torno dos interesses das classes altas. Sua capacidade de perceber a realidade, de forma pragmtica, levou-o a concluso de que o mundo no precisava de governantes distantes do povo, j que o mesmo povo quem produzia o sustento da sociedade, e, por conseguinte, a grande estrutura oficial (administradores, funcionrios, etc) formava apenas um grupo de parasitas que se alimentavam do esforo alheio. Desta forma, a nica inspirao correta, para ele, provinha do Cu, que tratava todos como iguais e no via distino na atribuio de benesses (Mozi, 4). Sua proposta de amor universal tornava literalmente iguais todas as pessoas, sem diferenas de classe, cor, sexo, raa, etc., e por isso, era importante que o povo se unisse para poder administrar, de forma independente, sua prpria vida (Mozi, 15-6).

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    Mozi chegava, numa analogia, bem perto do ideal marxista-comunista, j que conseguia compreender que a estrutura sobre a qual a sociedade funciona estava calcada no trabalho dos populares (ou talvez, proletariado?). Diante disso, se as classes baixas soubessem se unir, elas no mais dependeriam da interferncia das elites para organizar a produo e a distribuio dos bens comuns, findando com a desigualdade, a explorao, e fomentando o surgimento de uma sociedade mais equnime e justa. Por isso mesmo Mozi combatia a cultura da elite, e por conseqncia, aquilo que ele considerava ser a maior expresso dos mesmos, os confucionistas (ibidem, 39), j que ao seu ver, seriam estas concepes de pensamento que no permitiriam, ao povo, enxergar suas potencialidades.

    Embora pacifistas, os mostas tambm se uniram para defender cidades ameaadas por pilhagens, pela bandidagem e por governantes corruptos, tornando-se eficientes generais na defesa das causas populares (ibidem, 17-8).

    Este atraente sistema de pensamento nos possibilita perceber que Mozi j havia compreendido a realidade das desigualdades sociais, colocando o problema da cultura como um dos grandes impedimentos ideolgicos para a construo da to procurada harmonia universal (tal como outros autores j haviam proposto, igualmente). No entanto, a sada possvel, para estes problemas, era a criao de um novo sistema, independente das velhas estruturas, que no mais desse espao ao surgimento das hierarquias e concentrao de poder em mos individuais. Mozi era um grande estimulador das estruturas comunitrias, defendendo a liberdade de seus integrantes na administrao de seus negcios pblicos desde que houvesse, por parte dos mesmos, um comprometimento constante na ajuda dos menos

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    favorecidos (os famintos, os camponeses arruinados por pestes, secas, os pobres, etc) (ibidem 15, 16 e 26).

    O ideal de Mozi, porm, no reconheceu a fora das estruturas mentais, na hora em que processam as mudanas. A cultura no um elemento autnomo que fraciona as classes sociais de forma independente: ela depende da ao dos indivduos, e, grande parte das vezes, nas classes populares, este discurso se reproduz de forma intensa, partindo de pressupostos que incutem, na mente dos mesmos, a impossibilidade de se mudar um regime ou um sistema.

    Alm disso, sua pregao contra a cultura no reconhecia o valor que a mesma tinha de processar alteraes no imaginrio e na ideologia social. Sua crtica era precisa sociedade Zhou, mas desse mesmo contexto que ele, Mozi, surgiu, e disso derivava sua proposta revolucionria. Era compreensvel sua raiva contra as estruturas opressoras da poca, que lanavam o povo a misria, mas talvez ele tenha exagerado no seu combate contra o sistema cultural. Sua percepo de que a ideologia era vinculada pela literatura, pelos rituais e pela religio era perfeita: mas h que nos perguntarmos se destru-la, por completo, asseguraria a efetividade de um novo sistema. Mozi no levou em conta a ambio humana. Mesmo nas comunidades que adotaram suas idias, surgiram pessoas que, fosse por fraqueza de esprito, fosse por pura e simples discordncia, acabaram por recair nos mesmos processos de concentrao de poder e riqueza que ele tanto havia combatido.

    Mozi depositava no Cu, e na f, suas esperanas de modificar a sociedade (Mozi, 26 e 27). Poucos foram, porm, os que puderam continuar dando ensejo sua proposta aps sua morte.

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    As crenas mostas nos demonstram que a noo de igualdade uma recorrncia comum entre as sociedades oprimidas, principalmente no seio das classes populares, onde a insatisfao campeia contra a desigualdade, e que clama por justia. Mas o questionamento que fica : ser que a humanidade estaria preparada para uma sociedade de amor universal, igualitria, ou esta seria uma utopia, j que a tendncia natural do Ser seria o individualismo?

    Se pensarmos do ponto de vista chins, veremos que nada disso seria impossvel, mas dependeria da vinculao de vrios elementos, tais como a meditao individual, o estudo, a compreenso da natureza, polticas de compaixo, etc...Valores presentes em todas as outras escolas que apresentamos at aqui, mas cada qual com um entendimento sobre o que isso significaria.

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    A Regra dos Punhos

    O meio pelo qual uma regra inteligente pode controlar seus ministros chamado de "os dois punhos". Esses dois punhos so a punio e a recompensa. Que significam o castigo e a recompensa? Quando se infligi a morte ou a tortura em cima dos culpados, chamado castigo; j os incentivos para homens do mrito so chamados de recompensa. Os ministros tem receio das censuras e das punies, mas so afeioados ao incentivo e a recompensa. Conseqentemente, se o senhor dos homens usar os punhos do castigo e da recompensa, todos os ministros temero sua severidade, e por seu turno, sua liberdade - mas executaro com grado o seu dever. (...) Agora, supondo que o senhor dos homens colocasse o direito da punio e do lucro nas mos dos ministros, deixando para outros o exerccio de sua autoridade, a seguir todos no pas temeriam os ministros, e por seu turno as leis, voltando-se para os primeiros e afastando-se das ltimas. Esta a calamidade da perda da regra dos punhos do castigo e da recompensa.

    Extrato do Livro de Hanfeizi

    COMENTRIOS Os legistas foram os grandes unificadores do imprio chins no sculo III a.C., emprestando sua ideologia forte e radical ao governo do reino de Qin, que, possuidor de uma estrutura slida e de uma mquina militar invejvel, demoliu um a um os principados que formaram o perodo dos Estados Combatentes.

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    Esta escola teria surgido com Shang Yang, no sculo IV a.C., que foi o grande formulador da estrutura de poder Qin. No sculo III a.C., dois outros especialistas no legismo, Han Fei zi e Li si, fizeram os preparativos finais para a ascenso deste Estado na poltica chinesa. Conquanto Han Fei fosse o grande idelogo da escola legista, Li si foi o ministro que aplicou as medidas com eficincia. Mas, enciumado, Li si resolveu intrigar e condenar Han Fei, encerrando assim com a linhagem de brilhantes autores desta escola (Jopert, 1979:108).

    Han Fei teria estudado com Xunzi e ainda, teria retirado inspirao tanto do livro de Shang Yang (um dos primeiros legistas) como do mosmo, empregando ainda alguns textos antigos, tal como o Sunzi Bingfa (o Livro da Lei da Guerra de Sunzi).

    Suas idias deixam claro uma descrena total com o passado, e a necessidade de se fazer tudo novo. No se preocupavam - e nem perdiam tempo - com a discusso sobre a natureza humana, acreditando que os efeitos, e no as causas, que podiam ser controlados. Para isso, construram a idia de que um sistema poltico s podia ser gerido por leis firmes e determinadas, independentes de condies sociais ou materiais.

    A proposta era simples: centralizar o poder nica e exclusivamente nas mos do soberano: acabar com privilgios nobilirquicos e implodir com as diferenciaes sociais. A hierarquia existente seria definida pelas atribuies de cada um, e no pela sua riqueza ou posio social. Mais, essas atribuies seriam detalhadamente definidas por lei, para que no houvesse uma sobreposio de poderes e/ou uma invaso do espao do outro.

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    Muito se criticou a proposio legista na poca. Ela gerava horror aos confucionistas, pois as questes no seriam mais julgadas pela sabedoria, e sim por uma lei seca. Os filsofos taostas acreditaram que esta era uma construo mais artificial do que qualquer outra, fadada ao fracasso; mas os mesmos j estavam divididos, na poca, e sua transformao em religio diminuiu, em parte, o seu interesse por poltica.

    O que ocorreu que os legistas conseguiram concretizar, ainda que de forma efmera, a transformao da sociedade. Estruturam as bases do novo imprio chins na figura de Qin Shi Huang Di - e ainda que suas leis fossem cruis, criaram a idia de igualdade jurdica, que no via distino na aplicao das culpas e das penas aos membros da sociedade, fossem quem fossem.

    Quando Han Fei falou sobre o castigo e a recompensa, ele no se preocupou em tentar entender se o homem era bom ou mal; se estava ligado ou desligado da natureza; se havia necessidade de uma discusso pblica ou privada do poder; se os seres devem ou no ser instrudos. Para ele, todos estes aspectos so de mbito individual, e no diziam respeito premncia de organizar o poder e a coletividade de uma forma nica e coesa (Hanfeizi, 48).

    O realismo legista trouxe uma experincia singular para a China. Forou o abandono das idias de propriedade particular e absorveu todas as terras nas mos do imperador, criando uma forte mquina estatal. Combateu a cultura antiga, promovendo queimas de livros e perseguies polticas (Shiji, 5 e 6).

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    O legismo nos faz pensar se a fora, por vezes, no seria a nica soluo efetiva em momentos de grande crise. Se pensarmos como os taostas, veremos que ela poderia at ter sido empregada no momento correto, mas no sobreviveu alm da poca Qin. No entanto, a estrutura organizada pelos legistas foi suavizada e aproveitada, em muitos aspectos, pelos confucionistas Han.

    Acreditamos que a virtude de Han Fei foi mostrar (ainda que no da melhor forma) que a fora de um Estado e de uma ideologia se valem, quase sempre, do monoplio da violncia. A administrao, tanto da punio, quanto da recompensa, resumem os pressupostos de que a coletividade no possui uma identidade definida, e por isso mesmo, no pode ser julgada nem guiada por princpios diferentes. Uma nica lei necessria, o que torna todos as pessoas iguais. No haveria espao, numa sociedade deste gnero, para o interesse prprio, sob pena de punies severas. , portanto, a violncia, um mal necessrio? , a fora, uma realidade indissocivel da prtica do poder? Ser que os melhores governos tm que se basear numa administrao forte, austera, porm radical? At porque isso nos faz questionar, tambm, sobre a efetividade dessas medidas. Como disse uma vez Montesquieu, os melhores cdigos legais so os que tm menos leis, porque demonstram uma sociedade evoluda, que no necessita de tantas regras para viver. Se Han Fei promulgou tantas diretrizes, bem provvel que a quantidade de crimes fosse enorme. Alm disso, o povo, que deveria ser o maior beneficirio dessa igualdade, ateou fogo tumba de Qin Shi Huang Di, revoltado com os anos de explorao. Logo, mesmo as propostas legistas nos fazem ver que a manipulao do poder pela fora gera descontentamento e atrito, j que ela no impede a

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    manifestao dos interesses individuais no sistema social. Em muitos casos, a igualdade jurdica, se no bem vistoriada, torna-se um embuste realidade das divises materiais e sociais. E, assim sendo, mesmo todas as benesses advindas de um sistema poltico fechado podem perder-se no mar da violncia.

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    A Relatividade das Coisas

    O que infinitamente grande no tem nada que lhe seja exterior; e o que infinitamente pequeno no tem nada que lhe seja interior. O que no tem espessura no pode acumular-se, mas pode ser estendido. Se um basto de um p de altura for divido, a cada dia, em dois, continuar assim por uma infinidade de geraes. O vo de uma flecha lanada rapidamente se compe de espaos que no esto em movimento nem em repouso. No momento em que se nasce, comea-se a morrer. Fragmentos de Huizi (fonte, Livro de Zhuangzi, 33)

    COMENTRIOS Para finalizar nossa seo de textos, fazemos uma exposio de alguns dos aforismos de Hui zi, um dos expoentes da Escola dos Nomes, tambm chamada de sofismo chins.

    Hui zi foi amigo de Zhuangzi (Zhuangzi, 33) com quem travava fabulosos dilogos. Muitas de suas mximas esto espalhadas pelo livro do autor taosta, que o tinha em alta conta pela sua inteligncia e argumentao.

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    Os Nominalistas eram mestres no discurso e na linguagem, acreditando que o uso das palavras era importante para a vinculao das idias, mas que, ao mesmo tempo, elas possuam autonomia sobre o real, podendo proporcionar construes dspares.

    o caso dos paradoxos propostos por Hui zi, que muita semelhana guardam com seus contemporneos gregos. Seu objetivo era demonstrar que, pelo uso correto e intencional dos termos e denominaes, podemos fazer as mais abstratas construes, destruindo (ou articulando) os sistemas lgicos pela deturpao das premissas bsicas.

    Mas qual era o ponto principal deste discurso? A relatividade das coisas. Tudo relativo, e por isso as idias no se ligam diretamente realidade, mas apenas suscitam processos na mesma. No h uma separao absoluta entre as coisas. Se um animal morto, por exemplo, ele deixa de existir enquanto animal, mas se transforma em alimento para outro. Logo, os estados so transitrios e se alternam, no tendo fim.

    A importncia disso reside no fato de que tudo converge para uma nica realidade, embora tudo seja relativo. Como o tudo no coisa alguma, do nada que provm tudo. Por isso mesmo, todas as coisas so iguais, e devem ser amadas indiscriminadamente.

    Hui zi tambm pregava o amor universal, e ia mais alm do que todas as noes de Amor presentes no Confucionismo, no Mosmo, etc. Para ele, toda e qualquer coisa era um objeto dessa realidade nica e, por conseguinte, com semelhanas conosco. Logo, ela deveria ser amada, respeitada, e venerada,

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    em equivalncia com todas as outras manifestaes da realidade suprema. Hui zi parece ser o fecho perfeito para estes textos: tudo relativo, mas todas as coisas provm da mesma fonte.

    Resta-nos pensar que fonte essa: ser uma sapincia humana universalista, tal como proposto pelos orientais? Ser uma realidade metafsica? Ou ser, ainda, uma pura e simples manifestao do homem diante dos mesmos contextos e problemas? Alis, ser que todas essas correntes esto certas, ou nenhuma est? E ainda, suas propostas so temporais, ou atemporais? So reais ou utpicas? Vem de algo alm ou da simples constatao do mundo? Esta , simplesmente, uma resposta que os chineses no quiseram dar. E, na dvida, Huizi disse a mesma coisa que Confcio: amem a todas as criaturas, sem discriminaes.

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    Concluso

    Os desdobramentos destas propostas na cultura chinesa foram muitos, e fica-nos impossvel apresentar um resumo desta histria e de suas transformaes neste trabalho de carter introdutrio, o que sugerimos que o leitor faa atravs de nossas indicaes bibliogrficas.

    Achamos importante, porm, que uma discusso seja feita nessa pequena concluso: possvel vivenciar alguns desses sistemas filosficos na atualidade?

    Primeiro, observemos a realidade histrica dessas doutrinas: o taosmo s encontrado hoje como religio, e no sabemos como ele seria praticado, de fato, pelos seus primeiros autores. Na verdade, os pesquisadores de hoje tendem a concordar que o Taosmo religioso no tem muitas semelhanas com o filosfico, seno a de uma base textual sobre os quais as duas vertentes tm