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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

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Editorial Franciscana

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BRAGA - 2006

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Ficha Técnica Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: [email protected] Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 28 - 2006

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Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice

I — Estudos 1. Fr. José Maria Arregui, ofm — O gozo e a responsabilidade do acompanhamento vocacional na vida franciscana – Relação entre formação inicial e formação permanente na vida franciscana ................................................... 5 2. Ir. Maria Victória Triviño, osc — Irmãs Pobres – Um título que define uma forma de vida .............. 27 3. Fr. Henrique Pinto Rema, ofm — No 5º centenário de S. Pedro de Alcântara .................................. 39 4. Fr. Joahnnes Baptist Freyer, ofm — O conceito de liberdade na visão teológica da história do franciscano Pedro João Olivi ......................................................... 49

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I — Estudos

GOZO E A RESPONSABILIDADE DO

ACOMPANHAMENTO VOCACIONAL

NA VIDA FRANCISCANA

“RELAÇÃO ENTRE FORMAÇÃO INICIAL E FORMAÇÃO PERMANENTE

NA VIDA FRANCISCANA”

por Fr. José Maria Arregui ofm1

————— 1 Resumo da Conferência proferida em Cracóvia no Congresso dos formadores

Franciscanos Conventuais, em Agosto de 2004.

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O GOZO E A RESPONSABILIDADE DO ACOMPANHAMENTO

VOCACIONAL NA VIDA FRANCISCANA

1. O FORMOSO E COMPLEXO PROCESSO DA FORMAÇÃO Formar e formar franciscanamente, é algo muito formoso e complexo

ao mesmo tempo. É formoso porque se é testemunha e se possibilita o crescimento paulatino e progressivo do ser do irmão; vê-lo a descobrir mundo novos, vê-lo a buscar respostas e a descobrir a beleza da própria vida, a beleza de Deus no caminho de Francisco...! É tão formoso! Há poucos desafios tão formosos na vida.

Mas, convém dizê-lo, é complexo. É complexo porque o desenvolvi-

mento total da riqueza da pessoa humana, implica esta complexidade que tem suas raízes no princípio mesmo da vida, de como viveu as suas pri-meiríssimas experiências preconscientes, de como se abriu ao novo que apareceu, pouco a pouco, da experiência com os seus próprios pais, de como se situou perante as primeiras experiências humanas, de como sen-tiu os outros como amigos, adversários ou indiferentes, de como se foi aceitando a si mesmo, como pessoa valiosa ou desprezível... Esta com-plexidade advém também do facto de que a vida está cheia de crises con-tínuas, que se devem ultrapassar sempre, se queremos crescer e amadure-cer.

Recordemos alguns dos capítulos desta formosa e complexa história

do crescimento como irmãos, que é o mesmo que recordar de alguma maneira os objectivos da formação. Que podemos oferecer a este candi-dato que procura a nossa fraternidade e ao irmão que vive connosco nas fraternidades?

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1.1 Descobrir a riqueza de cada um... Comecemos com um relato que sintetiza bem o que queremos

indicar. “Era uma vez um escultor que trabalhava com o seu martelo e cinzel sobre um bloco imenso de mármore. Uma criança que o observava não via mais que grandes e pequenas lascas de pedra que caíam à direita e à esquerda. Não tinha a menor ideia do que estava a suceder. Quando passadas umas semanas regressou à oficina do artista, a criança viu, com espanto, um grande e forte leão sentado no lugar onde estava a pedra de mármore. Com grande emoção, correu para o escultor e perguntou: Diga-me, senhor, como sabia que dentro do mármore estava um leão?

A formação que queremos oferecer aos nossos candidatos começa

sempre por uma intuição básica: pensamos que por detrás de cada ser existe algo grande e original, que muitas vezes se esconde ao olhar superficial. Esse é o projecto de Deus para cada um. E como tudo o que vem de Deus, o projecto refere-se à vida, à vitalidade, ao desenvolvi-mento do ser, á abundância da vida. “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”, disse Jesus.

Alegra-me muito e gosto de pensar que todo o ser humano, homem

ou mulher, que vem a este mundo, por mais pobres que pareçam, são como uma grande promessa; uma promessa que só se torna realidade se for acompanhada e se houver colaboração na descoberta e no amadureci-mento do que é o seu ser pessoal. Essa criança recém-nascida é só uma promessa, é só um começo: primeiro os pais, depois a família, o ambiente, os formadores, as amizades, os estudos, os professores e a graça do Senhor... acompanharão para que ele mesmo vá dando os pri-meiros passos e se vá desenvolvendo. Ele é o primeiro responsável do seu próprio desenvolvimento, mas tem de contar, sobretudo no início, com colaboradores aliados que facilitarão e tornarão possível a descoberta, o desenvolvimento e a exteriorização de toda a riqueza de ser que cada um alberga dentro de si.

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Quando falamos, pois, de formação inicial, quando acolhemos na nossa fraternidade um adulto ou um jovem, que nos diz que quer ser irmão menor como nós, temos que lhe prestar essa ajuda básica de desco-brir e fazer aparecer a riqueza do seu ser.

A tarefa básica e primeira da formação inicial (caso não se tenha

feito antes) será a de descobrir e fortalecer a complexidade da própria realidade, colaborar na afirmação duma auto-estima pessoal, acompanhá--lo no desenvolvimento da sua afectividade, conduzi-lo a experimentar caminhos de liberdade pessoal... Mas não devemos esquecer, que sobre-tudo nestes tempos, muitas vezes o primeiro trabalho de formação inicial será curar feridas, ser bálsamo e azeite para as numerosos feridas e que se receberam na infância e na primeira juventude. Sabemos hoje, por experiência, que bastantes candidatos provêm de famílias desagregadas, de experiências que os bloquearam e desequilibraram.

Este acompanhamento humano básico não será só tarefa da formação

inicial, mas uma tarefa para toda a vida. Só aprendemos a verdadeira auto-estima e a desenvolvermo-nos afectivamente com liberdade e a usá--la com responsabilidade, quando aprendemos também a servir e a entregar-se, isto é, quando aprendemos a morrer.

Entendo, por conseguinte, que a tarefa primordial da formação inicial

não deve consistir em assimilar os comportamentos que regem a fraterni-dade ou a Província; também não consiste em dar normas e pautas de conduta para serem seguidas com rigidez; entendo, pelo contrário, que a tarefa primordial da formação é possibilitar o crescimento e o desenvol-vimento integral das pessoas e o acompanhamento nos processos pes-soais.

Todo o homem ou mulher nasce dotado de mil possibilidades que há

que descobrir, consciencializar e desenterrar; por isso só pode ser forma-dor quem crê de verdade e confia na riqueza do ser das pessoas e na sua maturação; o responsável último do próprio crescimento é a própria pes-soa do candidato; aos formadores, à fraternidade, à Província, compete corresponsabilizar-se no crescimento dessa “vocação” que lhe é ofere-cida; as pessoas crescem quando se acredita nelas e quando são amadas; o respeito, a confiança, o amor são algumas das ferramentas que Deus nos

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oferece para o crescimento e o desenvolvimento pessoal; uma pessoa pode enterrar para sempre a sua riqueza, se ninguém o acompanha, desde fora, no seu descobrimento e no seu desenvolvimento.

1.2. Descobrindo a beleza da vocação.. Acompanhar os candidatos na descoberta da própria pessoa, não é o

único gozo que tem a fraternidade franciscana. Somos fraternidade fran-ciscana na medida em que nela se busca a Deus, que é todo o Bem, o sumo Bem. E esta é a beleza da vida franciscana: poder viver retribuindo a Deus a sua busca e a sua adoração.

Ao candidato que procura a nossa vida, podemos também oferecer a

possibilidade de buscar Deus connosco; que possa intuir que Deus é Alguém por quem valha a pena vender tudo; Alguém que é Pai que ama com ternura a seus filhos; poder acompanhar os nossos jovens candidatos nessa experiência pela qual se aprende a confiar em Deus e em sua Pala-vra; poder introduzir esses irmãos candidatos na experiência de oração, de dia e de noite, ininterruptamente, como forma de vida e experiência de amor doado...

Este “mundo” de Deus, o mundo do Evangelho descoberto por Fran-

cisco de Assis na Igreja, o conhecimento e o amor de Jesus Cristo, a quem seguimos em pobreza e humildade, o horizonte da vocação pessoal como chamamento a viver a vida para lá da morte, partindo da experiência da ressurreição... é tudo isto que uma fraternidade franciscana pode oferecer também aos nossos candidatos.

A fraternidade franciscana não promete nem oferece êxitos, nem

sequer uma vida confortável; nem lhe oferecemos em primeiro lugar “valores” como pobreza, fraternidade ou simplicidade...; o que a fraterni-dade oferece em primeiro lugar, é o que para ela constitui “o tesouro escondido do evangelho”, perante o qual merece a pena vender tudo para ficar com Jesus Cristo, o Filho do Altíssimo, e segui-l’O. Essa é a nossa riqueza e a herança que nos deixou São Francisco.

É aqui que se joga, em grande parte, a formação dos candidatos.

Trata-se de lhes podermos oferecer pessoalmente e como fraternidade, o

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testemunho vivo desta nossa convicção: que somos irmãos acolhidos pela experiência do evangelho; que somos capazes de deixar tudo por causa de Deus; que Deus é o centro da nossa vida e que somos felizes assim. Ofe-recer aos nossos candidatos o gozo destas posoportunidades, partindo da experiência, constitui a pedra de toque e a responsabilidade da nossa vocação de irmãos menores.

1.3. Aprendendo a relação com os irmãos Para que o candidato possa descobrir o projecto que Deus tem para

ele, e possa descobrir o Deus de Jesus e o possa seguir, a fraternidade conta com uma arma poderosa: a fraternidade, a comunidade, as relações interpessoais. Não oferecemos em primeiro lugar um convento, um lugar; oferecemos, isso sim, irmãos, relações, um compromisso de pessoas con-cretas, que já fizeram a mesma caminhada de vida e do evangelho, só que já vão um pouco adiantados... na nossa vida é fundamental o “cuidado mútuo”.

Quando São Francisco pensa na fraternidade, descreve as relações entre os irmãos, a partir do amor da mãe para com o seu filho.

O que está por detrás desta imagem maternal da fraternidade? Fran-

cisco, intuindo o que é verdadeiramente o nuclear cristão, joga aqui com a imagem da criação, onde são imprescindíveis uma “mãe” (seio acolhedor) e o Espírito (criador), que possibilita a vida e a própria criação. A frater-nidade só pode ser compreendida como uma realidade constantemente recriada pela graça do Espírito e graças à “mãe”-irmão que acolhe a obra do Espírito.

Isto dá a entender que a fraternidade para além de um grupo que

convive, trabalha e reza em conjunto, é um pequeno milagre diário do Pentecostes, onde cada um nasce para a vida e se sente vivo graças à cria-ção que torna possível a atitude mais que maternal de cada irmão. Eu posso ser eu mesmo, graças à atitude do irmão que me recria e é como uma mãe que prolonga o diálogo criador de Deus. O irmão é um presente do Senhor para que eu possa continuar a ser criado, e a construir-me até chegar à maturação. Assim como a criança recém-nascida necessita de escutar o diálogo amorosa de seus pais para continuar a crescer, também o candidato à nossa fraternidade necessita de escutar o diálogo materno do

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seu irmão que, com a sua vida, torna possível que eu exista, cresça, ame e viva... Crer no irmão, confiar, oferecer-lhe a nossa amizade e relação, é fundamental e imprescindível para uma boa formação inicial.

Este é o compromisso e a responsabilidade que os irmãos assumem

com o candidato: prestar-lhe o serviço de o fazer crescer, madurar, ajudá--lo a ser ele mesmo, porque a fraternidade está regida pela lei do amor recíproco e amar é algo mais que conviver, é algo mais que dar pequenas prendas em dias especiais.

Amar radicalmente, significa esquecer-se de si, gravar no coração o

nome do outro, cuidar do coração, carregando o outro com as próprias mãos. Amar é respeitar o outro; significa viver preocupado com a sorte do outro; amar não significa simplesmente desejar que o outro seja feliz, nem dar-lhe coisas... Amar significa que a pessoa que vive contigo durante anos, se converta em si mesma, que se «chegue a desenvolver o que ela tem e é desde sempre, segundo Deus.

1.4. Uma missão a desenvolver... Nós crescemos e desenvolvemo-nos como pessoas, quando

encontramos um tu a quem nos entreguemos e um trabalho que se desen-volva ao serviço dos outros. Identidade, fraternidade e missão, são as três chaves que tornam verdadeira a vida dos irmãos menores.

Por isso, para que o candidato se possa desenvolver mais e melhor,

oferecemos-lhe também um trabalho, um serviço á Igreja a partir da fra-ternidade, uma missão que se desenvolva a favor dos outros. Um trabalho, um serviço e uma missão que, em primeiro lugar, sejam uma vivência e um desdobramento da nossa própria forma de vida; o candidato, quando chegar a ser irmão menor na nossa Fraternidade/Província, oferecerá no seu ambiente o que ele mesmo viu e saboreou: primeiramente a alegria duma vida entregue, pondo em prática aquilo que o candidato viu na fra-ternidade e acompanhará os homens e as mulheres que vierem ao seu encontro para que aprendam a ser e a desenvolver-se em todos os âmbitos da vida; uma vez que experimentou o gozo da relação (não sempre isenta de cruz), acompanhará outros na descoberta da alegria e da responsabili-dade da relação, dos compromissos; primeiro através da sua vida, depois

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com a palavra e com todos os meios ao alcance da fraternidade anunciará o Evangelho de Jesus ressuscitado, a quem segue com todo o coração; quando a vida se tornar curta para os homens, ou estes emudeçam perante tantas situações difíceis, o irmão anunciará a esperança da vida plena, que já pode saborear neste mundo.

A vida dos irmãos menores oferece a grande sorte de desenvolver e desdobrar a missão segundo a graça que cada um recebeu; por isso na fraternidade menor, ajudamo-nos uns aos outros a descobrir a graça pes-soal do trabalho e da missão e a forma de a colocar ao serviço dos outros. É por esta razão que a fraternidade franciscana é multicolor, unida na sua identidade e fraternidade, mas diversa no seu modo de ser, nos seus servi-ços e na missão...

Tendo em conta quatro grandes características, apresentamos os

grandes capítulos da nossa identidade franciscana que, a meu ver, devem ser iniciados e desenvolvidos na formação inicial e permanente. De tal forma, que se conseguimos levar a cabo as tarefas aqui assinaladas, nos encontraremos com um homem-irmão com as seguintes características:

- valora e estima de forma natural a sua pessoa, e a aceita como original e única; aprendeu a desenvolver a sua personalidade, sobretudo a liberdade pessoal, a sua afectividade, a capacidade de relação e de trabalho; vive com gozo a sorte da sua vida, aceitando também o que a vida tem de cruz, de dor e de ausência. Estamos frente a uma pessoa com personalidade forte, com coluna verte-bral.

- como é pessoa livre, actua com autenticidade e sabe-se relacionar

com os outros com normalidade; relaciona-se transmitindo aos outros o que de mais valioso tem na vida, oferece a sua pessoa e recebe o apoio e o carinho dos outros; não idealiza as relações porque assume os seus riscos; é capaz de descobrir a grandeza e a miséria da fraternidade e ama os seus irmãos com realismo.

- na fraternidade franciscana aprendeu a fazer opções que o levam

a escolher o “tesouro escondido” ; descobriu a Deus com Pai e a Jesus como Alguém para seguir incondicionalmente; O Espírito é a sua força e defensor, que o vai conduzindo até tomar opções

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impensáveis; vai intuindo que tudo é “esterco comparado com o conhecimento de Cristo Jesus”; por isso ora e canta na Igreja e agradece a Deus o dom da fé; o dom da vocação e da fraternidade;

- desprendido de si mesmo, só se importa por ajudar os outros,

sobretudo os mais pobres; desapropriado de si mesmo investe as suas melhores energias em viver o caminho do evangelho de Jesus e por isso “evangeliza com a sua vida”, a todos os que vai encon-trando pelo caminho com a sua amizade e a sua pessoa, acompa-nha-os solidariamente e partilha com eles a vida; anuncia-lhes a boa notícia de Jesus, fala-lhes de Deus mais com a vida e o teste-munho que com os lábios; contagia e irradia uma grande espe-rança, porque a vida eterna é a sua grande esperança.

- Mas não é um homem perfeito; não é nenhum herói solitário; é um

irmão mais, que vive em fraternidade com os irmãos que como ele continuam a procurar e orando fazem o caminho da fraternidade evangélica. E como se sente pobre, necessita cada vez mais de irmãos a quem serve com humildade e de quem recebe o carinho e a amizade de uma mãe que torna possível o milagre do amor de cada dia.

Formação franciscana? É uma maravilha e continuo a afirmar que

dedicar as nossas energias e a nossa vida a ajudar a que outros desenvol-vam o seu ser, a sua riqueza e a sua vocação, é uma das grandes sortes da fraternidade, é verdadeiramente uma graça do Senhor e uma tarefa para todos nós. Mas tem as suas dificuldade, como veremos.

2. OS ACTORES E RESPONSÁVEIS DA FORMAÇÃO Se a virmos a partir dos resultados finais, do crescimento que as pes-

soas atingem, a formação parece muito formosa. Mas pelo caminho inter-vieram muitos factores e muitas pessoas.

Em que escola ou universidade se aprende a ser irmão franciscano?

Quem ensina a ser irmão menor? Que meios é que uma Província precisa de desenvolver para acompanhar os candidatos no caminho de que fala-mos antes? Sobretudo, como acompanhar os nossos candidatos a buscar a

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Deus e adorá-lo como único e total Bem numa sociedade secular que pla-nifica a sua vida á margem de Deus? Que capacidade necessita a fraterni-dade para que o jovem de hoje, individualista como é, se desenvolva com outros irmãos e até com os pobres? Sobretudo como acompanhar este processo de morte e ressurreição que supõe a entrega da vida pelos irmãos? Como conseguir que o candidato não só aceite, mas que ame e prefira a menoridade à riqueza, entregar-se aos outros em vez de viver para si mesmo?

Como? Por que caminhos? E como ajudar nesta delicada tarefa de

formação? É isto o que queremos ressaltar? Quem tornará possível este caminho de maturação vocacional?.

A fraternidade provincial: uma fraternidade peregrina Para além dos formadores como acompanhantes e dos professores e

especialistas da formação, devemos sublinhar o lugar destacado que a fraternidade local e provincial tem no tema da formação.

Pode-se afirmar que uma província anquilosada, que não se renova, normalmente não pode oferecer uma formação brilhante, audaciosa, reno-vada e franciscana; ao contrário, quando uma fraternidade ou uma provín-cia se renova, quando nela se respira vida e confiança, a formação sai muito beneficiada. Isto significa que ao perguntar-nos pelos responsáveis da formação, se deve sublinhar o papel e tarefa da fraternidade e da Pro-víncia.

Isto é tanto assim que, se nas fraternidades de uma província não há vitalidade, não há audácia evangélica, não há discernimento e formação permanente e conversão; se nelas não se respira um determinado ambiente de bem-estar e seriedade; se não é visível certa qualidade de sentido, de gozo na entrega vocacional... então seria legítimo abrir-se a novos candidatos? Para quê? Com que autoridade moral se podem convo-car novas vocações? Se às nossas fraternidades e província falta a mística necessária, o que podemos oferecer? É, pois, de sublinhar a necessidade duma fraternidade provincial em marcha, a caminho.

Para que se possa falar dum acompanhamento adequado aos nossos candidatos, a fraternidade provincial tem que clarificar bem o estilo de vida de irmãos menores e de fraternidade que deseja potenciar as priori-

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dades que a guiam nas suas opções, as orientações que quer tomar, as metas que persegue, considerando, evidentemente, uma legítima plurali-dade: isto é, uma província deve ter bem claro para onde se quer encami-nhar como fraternidade provincial, quais os meios para chegar a esse objectivo; qual a leitura do evangelho que quer sublinhar, que estilo de vida fraterna quer oferecer e quais os serviços que escolhe como prioritá-rios...

De acordo e em coerência com isto, deve-se esclarecer sobre o estilo de formação que quer implementar. Deve clarificar em debates internos da mesma província os objectivos concretos e a forma como os quer alcançar e buscar, os meios necessários para a formação que se pretende. Este debate interno pode plasmar-se primeiro no projecto provincial e depois no projecto formativo que recolhe a vida da província e aparece como resultado duma reflexão, de uma vida e de umas opções, e não à margem delas.

Partindo da pastoral vocacional, logo a partir do primeiro acolhi-mento do candidato, parece fundamental e prioritário ressaltar a necessi-dade de uma fraternidade provincial que possibilite o acolhimento e o crescimento do candidato.

Geralmente temos a tendência de “delegar”, de deixar em mãos de uns tantos “peritos” o tema da formação. Isso parece-me, sinceramente, um equívoco. A formação inicial e permanente é assunto de todos e, em primeiro lugar, na responsabilidade da fraternidade provincial; o primeiro que há a oferecer a um candidato é um ambiente, uma família, um sen-tido, um “humus”... e no interior desse ambiente haverá quem a seu tempo se responsabilize mais directamente dele; fazer o contrário (ter uns formadores à margem da vida de uma província), parece-me um grave equívoco.

Por tudo o que pude observar, e falando da minha própria experiên-cia de formador, posso afirmar que só a partir da fraternidade, com a fra-ternidade pela fraternidade provincial se pode pensar numa boa formação inicial. A vida fraterna, a comunhão fraterna, os “irmãos reunidos em nome do Senhor” e entregues solidariamente ao mundo, podem ser o lugar e a escola de aprendizagem da vida franciscana. Forma-se para a fraternidade franciscana a partir da realidade da fraternidade, mesmo que esta seja pobre muitas vezes.

Uma pessoa não se faz só, faz-se na inter-relação com as pessoas, com os outros, em fraternidade, em família. À fraternidade corresponde o

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serviço de ser fraternidade, lugar de experiência de vida franciscana. Por isso parece importante que o candidato possa entrar numa relação de irmãos que juntos buscam a Deus, O adoram e juntos vivem gozosamente as suas relações fraternas e anunciam juntos o evangelho com a vida.

Antes de falar propriamente dos formadores e até da responsabili-dade do próprio candidato, parece-me interessante sublinhar que o pri-meiro que se deve possibilitar a um candidato à Ordem são os irmãos, as fraternidades, que respeitando o mistério de Deus em cada um, criam um clima de acolhimento, de tal forma, que os candidatos se sintam “eles mesmos”, aceites, estimulados e apoiados, para seguir buscando, até que o evangelho se faça verdade em cada existência.

Ao lado de um estilo de formação sobretudo académica e conceptual, parece-me importante facilitar e possibilitar hoje uma vida, uma expe-riência evangélica, a oferta de irmãos disponíveis para Deus e para o evangelho; exercício evangélico em acto, de maneira que a teoria (o cur-rículo académico, muito importante, sem dúvida) acompanhe e resulte ser a explicação da “prática fraterna”, a explicitação da vida dos irmãos e não ao contrário. Neste sentido sublinharia o seguinte:

- Fraternidade provincial não ideal, mas viva: Sublinharemos a

importância de uma fraternidade viva, o que não quer dizer uma “frater-nidade ideal” ou “perfeita”; mas uma fraternidade real, feita de irmãos que buscam, se afadigam, amam e pecam, que estabelecem relações inter-pessoais e que rompem os laços de comunhão.

Pretender uma fraternidade “ideal”, como às vezes já aconteceu, uma espécie de “área protegida”, ou fraternidade em “tubo de ensaio”, corre-se um perigo duplo: o risco de ser irreal, algo que não existe em nenhuma parte; o risco de não ser formadora, pois é a caminhar, a fazer fraternidade no quotidiano, ali onde há vida e, por isso, também dificuldades, é ali onde é preciso o discernimento, a correcção: graça e paciência, esse é o lugar de aprendizagem da fraternidade. Por isso precisamos de uma fra-ternidade viva, ainda que não seja ideal.

- Fraternidade sem a pretensão de ser modelo. Pretende-se uma fra-

ternidade real, sem essa pretensão irreal de dar “bom exemplo”; essa ânsia desmedida e fora do contexto de pretender dar bom exemplo, acaba por não ser formativo, sobretudo quando desligado duma dinâmica viva e real; para que uma fraternidade seja formadora, tem que ser uma fraterni-

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dade que assuma a existência real, não perca a perspectiva da utopia evangélica, entre sombras e luz, entre a realidade constatada e a realidade sonhada. Inventar uma fraternidade com pretensões exemplaristas, ou fazer certas opções radicais fora do contexto da dinâmica real da provín-cia, é pretender oferecer o que não existe.

- Fraternidade franciscana com as seguintes marcas:

- um sentido transparente de pertença em relação aos irmãos, até ao ponto de não poder entender-se sem eles;

- busca e sentido de Deus, até se converter num lugar de encanta-mento da fé dos próprios irmãos, traduzido tudo isso numa expe-riência de encontro com Deus e numa vida de oração convincente e suficiente, onde a Eucaristia ocupe o centro da mesma vida de oração;

- comunhão fraterna, onde se experimente o acolhimento, a uni-dade, a ternura e a amizade, acompanhadas da reconciliação e cor-recção fraterna; fraternidade que busca a alegria do perdão mútuo; comunidade onde se dá prioridade e se potencia o “cuidado mútuo”;

- a alegria de conviver e crescer corresponsavelmente, respeitando a diversidade de carismas, caracteres e culturas;

- fraternidade onde se faz a experiência do serviço à própria fra-ternidade, em especial aos mais débeis e indefesos da mesma, como algo normal e habitual;

- fraternidade que tem de ser menor entre os menores, para que, de facto, se possa experimentar e tocar o débil, o menor, o pobre: que os pobres sejam, para além de belas palavras, os primeiros mestres e amigos;

- uma fraternidade, que pelo facto de experimentar o evangelho no seu seio, nas suas estruturas, se desenvolva em forma de boa notí-cia, em forma de abertura, solidariedade e entrega aos homens.

Tal fraternidade é possível? Certamente que não, se tomada a partir

do ideal. Mas uma fraternidade não é evangélica na medida em que é per-feita, sem fissuras, mas na medida em que vive em discernimento, a caminho, tendendo para o que Deus quer e que busca. Por isso mesmo, a formação deve ser adequada na medida em que a própria província, a

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fraternidade faça um caminho, entre num processo; na medida em que possibilita e potencia esse caminho e esse processo em cumprir a vontade de Deus.

3. PROBLEMÁTICA DUMA FORMAÇÃO INTEGRAL Quais são os desafios que se colocam hoje tanto à formação inicial e

como à formação permanente? Ou dito de outra forma. Com que realida-des se confrontam os formadores (como responsáveis directos da forma-ção) e os Ministros Provinciais, como responsáveis últimos da mesma? São muitas as questões para recordar; lembro só as que me parecem mais importantes.

3.1. Vidas feridas Aqueles que já dedicaram algum tempo à formação, sobretudo nestes

tempos, sabem que os candidatos que hoje batem às portas da fraterni-dade, chegam com profundas feridas existenciais e afectivas e estão mar-cados pela própria história.

São candidatos com “zonas escuras” a nível psicológico, com uma falta elementar de confiança em si mesmos, sem auto-estima; muitas vezes faltou-lhes a carícia da mãe, o abraço e o encorajamento do pai, que dá confiança às pessoas. Chegam, por isso, candidatos com vidas dês-feitas e desestruturadas.

A formação inicial e a formação permanente (isto é os formadores e o Ministro Provincial), sem perder energia com lamentações fáceis e inú-teis, têm que enfrentar a situação destas pessoas que são chamadas por Deus à vida franciscana, que constituem uma graça, mesmo quando che-gam neste estado.

Faz falta a perspicácia para detectar estas feridas, enfrentá-las, e curá-las com o carinho de mãe e a segurança do pai. É fundamental a perícia de bons formadores, mas talvez ainda mais necessária é uma fra-ternidade de irmãos onde o candidato se sinta acolhido sem ser julgado e acompanhado nas suas lutas e nas inumeráveis crises. Certamente que fazem falta formadores expeditos, mas talvez faça mais falta a presença de irmãos e fraternidades, onde se exerça o “ministério da fraternidade”, que com paciência, com ternura, com confiança, dêem apoio no caminho único e original que cada candidato está chamado a percorrer. Que o can-

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didato sinta que é amado, que se acredita nas suas possibilidades, que seja visto como mistério de Deus, que se apoie nas suas lutas internas e exter-nas...

Sem este serviço fundamental dos irmãos, dificilmente poderão fazer frente ás numerosas questões que a vida lhes coloca.

3.2. Decepção e inconsistência Um problema relativamente moderno e muito generalizado é o que

sói chamar-se a “pouca consistência vocacional dos nossos candidatos”, e que os leva abandonar a ordem passados poucos anos da profissão solene ou pouco depois da ordenação sacerdotal. Pelo que sei, isso não é um fenómeno só de algumas províncias, nem sequer de um continente; parece antes um fenómeno generalizado que muito tem preocupado os formado-res e Superiores Maiores e até a Cúria romana.

Que acontece com alguns dos nossos irmãos mais jovens que, poucos anos depois da sua opção definitiva na Ordem, pedem para sair? O que está a acontecer? Que problemática está por detrás?

Segundo parece, uma grande percentagem dos irmãos que abando-nam a Ordem, fazem-no por causa de problemas afectivos e sexuais pen-dentes ou não devidamente resolvidos. Creio que em muitos casos as cau-sas encontram-se numa formação e opção vocacional sem o discerni-mento suficiente, ou no acompanhamento feito por formadores sem preparação para acompanhar processos e para discernir as motivações profundas e inconscientes; também não devemos excluir a decepção que alguns recebem ao contactar com uma vida franciscana “aburguesada”, sem “mística”, longe do projecto evangélico que se professa...

São muitas as causas destas decepções e abandonos. A atitude mais madura não consiste em culpabilizar a instituição (nem os formadores, nem as fraternidades, nem a província... porque nem sempre se podem atribuir as crises aos que representam a instituição); ao contrário, o dis-cernimento e a autocrítica parecem ser uma boa ferramenta para sair desta grande crise. Não se culpabilizar nem culpabilizar, mas tentar melhorar as condições da vida fraterna das nossas fraternidades de formação e de todas as fraternidades da província, no sentido duma vida evangélica sim-ples, mas convincente.

Em muitas províncias e congregações iniciaram-se experiências de acompanhamento para os cinco ou dez primeiros anos depois da profissão

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solene. Esta parece uma ferramenta necessária para estes tempos. Mas também aqui o problema não está nos acompanhantes especialistas (embora seja essencial); o importante é fazer coincidir sinergias que todas em conjunto podem oferecer o melhor de si mesmas para acompanhar estes processos. Trata-se de sinergias que vêm dos próprios jovens, dos formadores que os acompanham, das fraternidades que os acolhem, da província inteira, dos ministros…

3.3. Formação dos formadores A partir do que pude observar nos últimos vinte e cinco ou trinta

anos, todas as ordens e congregações e todas as províncias fizeram um grande esforço para proporcionar uma boa formação aos formadores. Muitos frequentaram faculdades, participaram em cursos da especialidade em vista a obterem formação adequada e específica para se dedicarem á formação.

No entanto, a formação de formadores continua a ser um desafio e um problema que não nos deve fazer baixar os braços. Acontece que em zonas de determinada Ordem se criam as condições necessárias para uma boa formação, mas faltam as vocações em número suficiente (é o caso de muitas províncias da Europa e também da América anglófona).

Pelo contrário, noutras zonas de certas Ordens, existem muitas voca-ções, mas muitas vezes faltam formadores preparados em número sufi-ciente. Nestes casos a formação continua massificada, pouco personali-zada, sendo difícil o acompanhamento pessoal e uma formação como pro-cesso de discernimento das motivações que estão subjacentes a uma vocação; nestas zonas existe o risco de se oferecer uma formação pouco processual e personalizada, uma formação que não passa dum cumpri-mento de uma série de normas e horários e não como um impulso de uma vida que nasce desde dentro e se expande para fora buscando sempre a originalidade e riqueza de cada irmão; existem formadores capazes de fazer cumprir normas, horários e programas, mas muitas vezes falta-lhes experiência no acompanhamento pessoal e fraterno e no discernimento vocacional.

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3.4. Ruptura entre formação inicial e vida da província Refiro-me a uma problemática que é antiga, como a própria forma-

ção; uma espécie de esquizofrenia ou ruptura entre o que se oferece e promete na formação inicial e o que a seguir pode oferecer uma fraterni-dade ou uma província.

Por um lado, criam-se ambientes privilegiados, uma espécie de “reservas”, zonas especialmente preparadas para a formação inicial, mas que muitas vezes não correspondem à verdade e à vida dos irmãos na fraternidades, como já se disse. Existe em muitas província como que dois ritmos, dois estilos e modos de viver a vida franciscana: a do principiante, a quem se exige certa radicalidade, não isenta de rigidez e a do adulto que vive nas fraternidades à sua maneira, com um risco enorme de individua-lismo e até numas condições mínimas de sobrevivência vocacional.

Se é correcto o que aqui abordamos, na verdade falta esse ajuste entre a formação inicial e a formação permanente. Todos os irmãos e todas as fraternidades pedem e desejam novas vocações; acontece às vezes que irmãos e fraternidades não desejam a vinda de novos irmãos porque isso complica muito a sua caminhada e a sua vida; a presença de irmãos jovens torna-se molesta porque vêm com outros ares, outras exi-gências que põem a nu o vazio e o aburguesamento de algumas opções tomadas pelos mais velhos. Ao mesmo tempo, os candidatos aguentam estoicamente e com submissão a pressão e a rigidez da formação inicial, mas desejosos de chegar à profissão solene, para “finalmente fazerem o que fazem os outros”.

Em tudo isto existe algo de artificial que dificulta uma boa formação dos candidatos e que necessita de uma revisão feita por todos. Porque a formação, devemos reafirmá-lo, não é questão só dos formadores, é assunto de todos os irmãos e de todas as fraternidades da província.

3.5. Formação para a instituição? Quero fazer alusão a uma problemática que se vive em algumas

Ordens e Congregações e que, mais do que como constatação, vou for-mular como pergunta. A questão é a seguinte (e talvez soe como dema-siado simplista): quando acompanho um candidato em formação, faço-o para fortalecer a instituição para que esta possa continuar a prestar os ser-viços e assumir os compromissos já adquiridos, ou estou a acompanhar

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alguém para que em autonomia e liberdade, em discernimento perma-nente, possa desenvolver as suas qualidades pessoais e originais, tendo em vista o seu próprio desenvolvimento?

Ninguém duvida de que a instituição (uma fraternidade concreta, uma Província e até a própria Ordem) tem as suas próprias necessidades de pessoal, de novos irmãos! A instituição tem uma função a cumprir, uma missão a desenvolver e para isso requer novos reforços.

Por outro lado e tendo em conta a autonomia e a originalidade das pessoas, cada um é chamado e desenvolver as suas próprias qualidades, a ser criativo e original. Pode acontecer que esta criatividade e originali-dade me levem por roteiros que não coincidam com as necessidades ins-titucionais, ao ponto de parecer que se promove o personalismo...

É aqui que se situa a questão: formamos para a instituição ou forma-mos para a originalidade criativa das pessoas. É um problema que nem todas as províncias nem todos os candidatos o têm clarificado. É um pro-blema que não tem solução fácil, devido à sua complexidade. Existem dois perigos: ou o perigo da máxima institucionalização (esquecendo o ser e a originalidade das pessoas), ou o perigo da máxima personalização (esquecendo que pertencemos a uma fraternidade que tem uma missão a cumprir na Igreja).

À medida que se afirmam novas correntes que favorecem a autono-mia das pessoas e a criatividade, este problema vai adquirindo força. Gostaria de afirmar que São Francisco segue mais o caminho do respeito e da potenciação das pessoas ( “e os irmãos ... trabalhem no ofício que aprenderam” 1R 7,3); mas sem esquecer que temos responsabilidades para com uma fraternidade (local, provincial, e à Ordem), que tem uma missão para cumprir na Igreja.

Mas há outro aspecto. Estamos num tempo em que a Igreja e as Ordens se encontram empenhados na busca de novas identidades, novas presenças, novos serviços para oferecer; são tempos em que em alguns ambientes vai decaindo a procura religiosa e a pergunta torna-se mais aguda: devemos formar os nossos poucos jovens para que continuem fazendo o mesmo, para manter as mesmas presenças e os mesmos servi-ços ou devemos antes possibilitar-lhes e animá-los em novas buscas, novas formas de presença, novas formas de fraternidade, novos serviços, novas formas de inclusão evangélica?

Creio que não existe uma fórmula mágica que dê uma resposta válida e permanente. Mais uma vez se requer a maturidade e equilíbrio para

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poder discernir o que agrada mais a Deus e o que é mais necessário neste momento para a Província e a Ordem, tendo em conta esta tensão neces-sária entre a instituição e a pessoa, entre o afirmar a criatividade, tentando não cair na total institucionalização nem na absoluta personalização; tam-bém não devemos descuidar essa tensão necessária entre o abrir caminhos novos para semear a semente do evangelho e semear essa semente nos sulcos de sempre...

4. É A HORA DO IRMÃO MENOR 4.1. A hora do franciscano No fim desta reflexão, quero afirmar com toda a força que “esta é a

hora do franciscanismo”. Não quero ser ingénuo e estou consciente, ao menos em parte, das estruturas socio-económicas e culturais que nos envolvem e dificultam grandemente o nosso caminho; dou-me conta dos enormes problemas que a formação apresenta hoje; vejo também, com alguma dor, a paralisia e esclerose de que, com frequência, sofrem as nos-sas fraternidades. Estou muito consciente dos múltiplos problemas com que temos de nos enfrentar cada dia, envolvidos como estamos no meio de uma sociedade em contínua mudança e confrontação com muitos dos nossos valores e propostas.

No entanto, volto a afirmar: «é a hora do franciscanismo; é a nossa hora; é a hora da formação!». É a hora do franciscanismo porque os homens e mulheres de hoje exigem como nunca a presença dos irmãos franciscanos que louvem a Deus e cantem a vida nas suas múltiplas e mais ricas expressões; as gentes da civilização opulenta do Ocidente não buscam tanto nem só ter mais, mas buscam o sentido e o franciscanismo é uma alternativa ao sem-sentido; os pobres das latitudes do Sul buscam irmãos que os ajudem a fazer o seu caminho na busca da felicidade, agar-rados solidariamente às suas mãos.

É a hora do franciscanismo, porque a este a atitude de busca, da rela-ção e do encontro lhe é congénita. Os homens e as mulheres de hoje são buscadores, sobretudo de uma relação de qualidade, buscadores de encontro com Deus e com os irmãos. Estes são o seus anseios.

Mas também é a hora da convocatória vocacional. Sem alaridos, mas sem complexos, como irmãos. Todos os franciscanos devem repensar as estratégias de pastoral vocacional e lançarmo-nos decididamente a ofere-

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cer o que temos de melhor: a simples vida evangélica em fraternidade menor e solidária com todos os homens. Temos tanto que oferecer! Podemos oferecer tudo aquilo que faz crescer, amadurecer e desenvolver os seres humanos e isso não é outra coisa que o evangelho de Jesus vivido em fraternidade de menores.

É a hora do franciscanismo, porque o mundo do evangelho que o franciscanismo quer expressar não é um “status” estanque e definido de uma vez para sempre; o franciscanismo é a busca apaixonante de Deus e do homem nas novas circunstâncias e mutações da vida. Por isso cabe-nos a todos a honra de continuar a fazer caminho, caminhos novos para Deus, caminhos novos ao encontro de todos os homens.

4.2. A hora também é da fraternidade É a hora da fraternidade, a hora do irmão, a hora do cuidado mútuo.

A partir do que eu conheço da vida religiosa e franciscana, posso afirmar que hoje necessitamos de irmãos e de fraternidades. As províncias com mais jovens e que estão a começar, necessitam do apoio e do alento dos irmãos adultos e experimentados que os acompanhem no seu amadureci-mento e crescimento; as províncias que têm irmãos mais velhos, com poucas perspectivas de futuro, necessitam de irmãos mais velhos na vivência da sua vocação nas crises de envelhecimento; aquelas províncias que têm a graça de ter irmãos de meia idade, precisam de irmãos que as ajudem a vencer as primeiras crises de redução com realismo.

Muitas vezes, desorientados no meio de tantas ofertas, sem saber por onde cortar, como é importante que haja irmãos que possibilitem uma vida fraterna simples, sem grandes estruturas, mas que sejam “significati-vas”, que sejam sinal, apoio e luz para outros irmãos. O cuidado mútuo, o cuidar um e do outro, oferecendo-nos vocacionalmente, foi e é uma prio-ridade no nosso tempo.

4.3. É a hora da formação integral Para estas novas situações, requer-se de todos nós, jovens e adultos,

candidatos e irmãos já professos, uma formação sempre nova e perma-nente.

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Necessitamos duma boa formação inicial que possibilite aos nossos candidatos umas boas ferramentas para o desenvolvimento integral da sua vocação; por isso teremos que repensar permanentemente as nossas fer-ramentas formativas: a pastoral vocacional, as nossas casas de formação, os formadores, professores, os nossos centros de estudos. Devemo-nos interrogar, sobretudo, sobre se o que oferecemos responde verdadeira-mente à situação e necessidades dos candidatos, à nova situação da Igreja e do mundo, isto é, devemo-nos perguntar se a forma como encarnamos o nosso carisma responde à vontade de Deus...

Necessitamos também de uma boa formação permanente para que

todos os irmãos procurem corresponder à vontade de Deus nestes tempos tão interessantes e desafiantes ao mesmo tempo. “Senhor, que queres que eu faça?” foi a pergunta de Francisco de Assis e continua a ser a pergunta de todos os franciscanos. E não chega perguntar-se, mas temos que res-ponder à pergunta adequando os nossos corações e nossas estruturas às situações novas que se nos apresentam. Isto exige que repensemos a com-posição e sobretudo a qualidade das nossas relações fraternas, a qualidade da nossa busca de Deus, a qualidade do serviço evangélico que presta-mos... Porque, segundo o meu modo de ver, chegou a hora, sobretudo no Ocidente, de nos perguntarmos menos por “quantos” do que por “como”. Creio que temos que nos libertar um pouco da lógica da quantidade e do numérico e buscar mais a lógica da qualidade das nossas vidas e presen-ças.

Definitivamente, este tempo, exige-nos a todos entrar nessa dinâmica

franciscana da “vida em penitência” que não é outra coisa senão a conver-são, que hoje se entende como formação: formação inicial e formação permanente.

Traduziu fr. José António Correia Pereira

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“IRMÃS POBRES”

– UM TÍTULO QUE DEFINE UMA FORMA DE VIDA

por Ir. Maria Victória Triviño, osc1

————— 1 Publicado nas Selecciones de Franciscanismo, 2006, nº 104, p.231-240.

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IRMÃS POBRES” – UM TÍTULO QUE DEFINE UMA FORMA DE VIDA

O objectivo deste estudo é explicar os termos medievais aplicados às religiosas ou mulheres consagradas a Deus entre os séculos XI-XIII, e esclarecer como estes vocábulos não têm propriamente um sentido jurí-dico, mas sentido existencial que, naquela época, definem novas formas de vida.

Os estudos realizados pela professora Dolores Mariño2 sobre os

séculos IX-XII iluminam o sentido histórico dos termos que definem a nossa Forma de Vida: Irmãs Pobres. São termos que, como justifica a mesma professora, não devem ser tomados em sentido jurídico, nem tomados como tal, mas em sentido existencial.

1- UM PROCESSO DE MUDANÇA Nos séculos que precederam o passo profético de Francisco e Clara

de Assis, dava-se uma mudança nas formas de consagração a Deus, que tinham paralelo nas mudanças da própria sociedade. Ao lado dos três estratos em que estava fragmentada a sociedade, clero, nobreza e povo, emerge a burguesia. Com ela ganha importância e desenvolve-se o burgo ou cidade, onde cada pessoa é livre, com deveres e direitos em relação à comuna.

“A partir do século XI a XIII, as cidades separam-se pouco a pouco

da tutela feudal, uma vezes pela violência, outras por acordo pacífico.

————— 2 D. MARIÑO, “Las religiosas en las comunidades del medio ciudadano”, en Actas

del Simposium, La clausura femenina en España, vol. I, El Escorial, 126.

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Uma civilização rural dá lugar a uma civilização urbana; a uma sociedade hierarquizada sucede uma sociedade com tendência igualitária, ou melhor, mutualista; um sistema de troca de serviços, dá lugar a uma eco-nomia monetária; o cavaleiro dá lugar ao comerciante; uma nova classe nascia: a burguesia. (...) A vida da cidade significa sempre para a mulher uma certa promoção. Com efeito, a cidade medieval vai conceder-lhe alguns direitos cívicos.”3

Mesmo não conseguindo aceder ao estatuto de deputada e conse-

lheira, a mulher participa nas eleições e assembleias comunais, na quali-dade de solteira ou viúva. Por outro lado as “confrarias” da cidade, com-postas por homens, escolhiam, às vezes, uma mulher para as dirigir. Por fim, quando os ofícios de jurados obtiveram uma participação crescente nos governos urbanos, é provável que as corporações femininas, tendo como porta-vozes as suas “mulheres bravas”, tivessem alguma interven-ção.

“Por mais fracas que tivessem sido as participações femininas na

vida cívica, a Idade Média não lhe manifestou grande oposição. As tradi-ções germânicas prevaleceram sobre a legislação romana”.4 Com a promoção política e social da mulher, aumentaram também a suas possi-bilidades na actividade profissional.

A nova situação politico-social da mulher influiu na evolução das

formas de vida consagrada. A mulher vocacionada que assistiu a esta promoção citadina, levava em si mesma a capacidade de actualizar a vida consagrada com novas formas, transportando para o grupo a mentalidade política e social do seu espaço geográfico e do seu momento histórico.

Por sua vez o movimento religioso abre caminho à participação da

mulher, umas vezes no âmbito da ortodoxia, caso das Ordens Mendican-tes, outras vezes ostensivamente fora da ortodoxia. É o caso de alguns movimentos pauperísticos, hostis em relação á Igreja, não tanto por razões doutrinais, mas por razões de ordem moral e disciplinar.

————— 3 M. PIETTRE, La condición femenina a través de los siglos. Rialp, Madrid 1977,

178-179. 4,Ut supra 179-180.

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Por conseguinte as formas de vida solitária que sublinham a relação individual com Deus (ermitãs, emparedadas, etc...), tão admiradas então, perdem significado e estima perante a sociedade emergente. O apreço passa para formas comunitárias onde as pessoas, para além da relação pessoal com Deus, dão testemunho do seu amor a Deus e à comunidade. Mesmo as formas de vida eremítica que aparecem na Ordem da Penitên-cia, estão vinculadas a uma comunidade ou Ordem Terceira. “Estamos num processo em que a sociedade cristã considera que o sacrifício indivi-dual não é suficiente para alcançar a salvação. Por isso perdem importân-cia os eremitas e anacoretas em favor dos cenobitas, cujo peso documen-tal se deve aos efeitos exemplificadores das acções de uma comunidade de religiosas e/ou religiosos, mesmo quando se trate de um sistema misto de vida comunitária e individual.5

No seio da vida religiosa comunitária apareceram novas fundações,

com diferenças claras em relação à vida monástica anterior. Mais do que de um movimento religioso feminino, tratava-se de formas novas de vida religiosa. Estas formas novas aparecem na cidade, ou perto dela,, uma vez que a “polis” “representa de modo figurativo o modelo da sociedade glo-bal aplicável à compreensão de qualquer realidade política”.6 Estas comunidades tinham entre si características comuns uma vez que respon-diam com um testemunho evangélico requerido pela nova sociedade. É aqui que os termos políticos definem a intenção de cada grupo religioso. Esses termos são sanctimoniales, sorores, ancillae, etc.

As monjas ou sanctimoniales Sanctimoniales são as monjas por excelência, uma vez que personifi-

cam a vida sancta. Vivem em comunidades onde geralmente se professa a Regra beneditina e reconhecem a autoridade de uma abadessa com res-ponsabilidade e meios para a exercer no âmbito duma estabilidade colec-tiva. As relações entre as sanctimoniales e a abadessa reforçam-se e con-vertem-se em perpétuas, quando, desde os meados do século XI, se tornou obrigatório o mandato desta para ser transladada a outros mosteiros.

————— 5 D. MARIÑO, “Las religiosas en las comunidades...”, 128. 6 J. OLIVES PUIG, Contra la ciudade cautiva. Ensayos de teoría sociopolítica

fundamental, Barcelona 2004, Pro manuscrito, 5.

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No século XIII, a vida monástica não atravessava o seu melhor momento. Estratificada segundo o modelo feudal, apegou-se aos costu-mes que não eram bem aceites pela nova mentalidade da cidade. Como o nosso objectivo não é analisar a vida monástica, assinalamos somente dois aspectos. A diferença de classes, que fechava as portas a gente da classe baixa; e sobretudo toda a sua estrutura vertical que concentrava o poder numa abadessa que, com frequência, tinha tanta autoridade como um bispo.

“À medida que o regime feudal transformou as abadias em autênticos

senhorios, as abadessas foram investidas com grandes poderes: chegaram a ser verdadeiros dignitários eclesiásticos exercendo de pleno direito e conferindo cargos, nomeando curas, reunindo sínodos e até podiam julgar clérigos, por mediação do seu oficial (juiz eclesiástico)”7. Sob o grande poder e prestígio duma abadessa, eram visíveis as mesmas diferenças da sociedade. Só a mulher de família nobre podia ser monja. As da classe do povo não podiam aspirar a sair de sua condição. O mais que conseguiam era ingressar como servas. À volta do mosteiro trabalhavam os servos.

As irmãs ou sorores Para designar as mulheres religiosas fora da vida monástica, usavam-

-se vários apelativos: religiosae, ancilla, Christi ancilla, serva Dei, Deo vota, famulae Dei, que usadas no plural têm o sentido semelhante a soro-res8.

É de notar que na breve Forma de Vida que São Francisco deu a

Clara e a suas irmãs quando lhe prestaram obediência e que depois a Dama Pobre incluiu na sua Regra, usa o termo em uso Ancilla: “filias et ancillas altissimi, summi Regis Patris caelestis”.

“As religiosas sorores, vírgines, puellae, ancillae... integram collegia

que é uma estrutura comunitária e horizontal que une a todas e a cada uma, de tal forma que os seus mosteiros desaparecem quando há aban-dono ou se trasladam a outro lugar, não por falta de bens que se liquidam, se dividem ou transferem a outras comunidades... Desde o princípio deste —————

7 M. PIETTRE, La condición femenina… 192-193. 8 D. MARIÑO, “Las religiosas en las comunidades”, 125.

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período, as sorores transmitem a ideia de comunidade, cuja harmonia emana das qualidades das pessoas que as compõem. Mantêm-se a tutela, como função do grupo de sorores tutoras encarregadas de distribuir os bens recebidos. Como acontece com cada religiosa, os mosteiros regem--se por um padre espiritual e temporal, um abade, um presbítero abade, que aos poucos se vai ocupar mais de provê-las e administrá-las..., em conjunto com a superiora ou abadessa com as qualidades necessárias para actuar em conjunto com as associadas, mas impondo ao longo do século XI o dever institucionalizado da obediência, de acordo com a sua vida santa e as suas regulae” .9

Recolhemos uma síntese de dados, para nós altamente significativos,

que caracterizam as sorores nas suas formas novas de vida religiosa: - Uma relação colegial, numa união horizontal, onde é importante o

consenso na hora das decisões; - Uma harmonia fundamentada na virtude e qualidade espiritual das

pessoas; - Sob a tutoria de uma madre, ou domna, que posteriormente

receberia o título de abadessa; - Tutoria exterior de um guia ou padre espiritual; - Desde o século XI, profissão de uma Regula de santidade.

2- SORORES POBRES Nos alvores do século XIII encontramo-nos perante dois termos polí-

ticos que definem duas formas de vida religiosa nascidas com dois sécu-los de diferença. A inspiração fundamental é sempre o seguimento de Jesus Cristo. Não obstante, cada uma responde com a forma profética adequada à sensibilidade cristã do seu momento histórico. Esses termos são: Sanctimoniales ou moniales, relativos à vida monástica propriamente dita; e sorores, próprio duma forma de governo colegial.

Uma vez estabelecidos estes princípios e pondo de parte outros docu-

mentos que não saíram da sua pena, passamos ao texto da Forma de Vida ou Regra de Santa Clara10, único documento propriamente jurídico entre

————— 9 D. MARIÑO, “Las religiosas en las comunidades”, 128. 10 Seguimos o texto latino dos Escritos de Santa Clara y documentos

complementarios, de Fr. I. Omaecheverría, Madrid 1982, 2ª ed., BAC, 202 ss.

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os seus escritos. Observamos que não usa os termos sanctimoniales, nem moniales. Usa sempre, 62 vezes, a palavra sorores11.

É com este apelativo que se refere a suas companheiras, aquelas que

seguindo a divina inspiração se juntaram à fundação do mosteiro de São Damião e a todas as irmãs pobres que no futuro seguiriam a sua forma de vida.

Uma definição a partir da Cúria romana A bula Solet annuere, resposta do papa Inocêncio IV de 9 de Agosto

de 1253 à petição que Clara enviou e que precede a regra aprovada no ano anterior. As destinatárias são “Clarae abbatissae, aliisque sororibus monasterii Sancti Damiani Assisinatis.”

Duas observações importantes: Primeiro, o uso do termo chave soro-

res, em contraposição a moniales define uma comunidade de irmãs que se relacionam de forma colegial. Segundo, a diferença entre o “mosteiro de S. Damião”, fundado por Clara sob a obediência de São Francisco como pai espiritual, e a “Ordem de S. Damião”, fundada pelo cardeal Hugolino, como reunião de mosteiros aos quais se dava a regra beneditina e as cha-madas Constituições Hugolinas, que, por certo, pouco tinham a ver com o ideal de Clara.

A bula papal é seguida pela carta do cardeal Reinaldo. A saudação é

semelhante, ainda que com termos mais carinhosos: “carissimae sibi in Christo matri et filiae dominae Clarae, abbatissae Sancti Damiani Assi-sinatis, eiusque sororibus, tam presentibus quam futuris, salutem et bene-dictionem paternam”.

Mais adiante menciona São Francisco em termos que levam a reco-

nhecê-lo como tutor espiritual que foi na Fundação das Irmãs Pobres: “beatus pater vester sanctus Franciscus”.

Desta maneira é patente como estes breves documentos aportam

dados de valor extraordinário. Reconhecem a forma de vida comunitária que Clara instaurou como mulher profética, dando uma resposta evangé-—————

11 Sorores, 31vezes; soror, 2; sorori, 3; sororum, 11; sororem, 3; soróribus, 12.

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lica às necessidades do seu tempo, com formas apropriadas. Reconhecem também a paternidade de uma pessoa, exterior à sororidade, no caso São Francisco. Clara defendeu, a tempo e a destempo, esta paternidade e pro-curou garantir-lhe a estabilidade em relação às suas sucessoras e em rela-ção aos sucessores de Francisco.

Por outra parte o cardeal, que a tratava com intimidade e que vene-

rava Clara, chama-lhe Madre e domna, o mais própria para as sorores. Mas também a trata por abadessa.

Forma de vida de Santa Clara A Regra de Santa Clara começa com o nome oficial da família que se

juntou à volta da sua fundadora: Formae vitae Ordinis Sororum Paupe-rum...

Este começo define completamente a vontade de Clara acerca da

estrutura da Ordem por ela fundada. Era uma estrutura inovadora, compa-rada com as anteriores regras monásticas. O apelativo de madre, ao lado do termo jurídico abadessa, introduz uma aspecto novo.

Além disso encontramos, no decurso da regra constatações e exorta-

ções de teor novo para o tempo: Clara e suas irmãs prometem obediência ao fundador: “una cum

sororibus suis promisit...”. Prometeu, com suas irmãs, obediência ao pai S. Francisco e a seus sucessores: “Et alias sorores”, obedeçam ao suces-sor de Francisco; “Et sorori Clarae” e as demais abadessas suas suces-soras (RCl 1, 4; 6,1).

“Pro aliqua sororum in monialem consecrande”. É o único lugar em

que o termo sorores aparece ligado ao termo moniales. Segundo algumas interpretações, a expressão monialem consecranda era um termo técnico que era costume usar. Se seguirmos os textos parece evidente que Clara quis uma comunidade de irmãs. A sua fundação é nova, tem umas carac-terísticas próprias e inconfundíveis, mas tem também aspectos comuns com outras formas de vida do seu tempo, porque brota do mesmo espírito renovador.

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Também é claro que todas estão unidas por uma relação colegial,

horizontal, onde há participação e consenso. Não se mantém pelo prestí-gio do mosteiro nem da autoridade que o governa, o que conta é a quali-dade espiritual das pessoas. Encontramos a tutoria, serviço humilde, amo-roso e diligente de uma madre, ou domna, que recebeu contra a sua von-tade o título de abadessa.

Fala da tutoria externa dum padre espiritual. É visível na Regra e

mais ainda no Testamento, onde se faz menção continuamente de quem lhes deu a Forma de Vida e a quem prestaram obediência e que foi o “guia, coluna, e único consolo depois de Deus”, o bem-aventurado Pai S. Francisco.

Desde o século XI, era obrigatório professar uma Regula. O ideal do

seguimento de Cristo e a vida santa é dinâmico. Quando toma forma e cristaliza numa vivência comunitária, encontra a sua expressão apropriada numa Regula. Por sua vez, como essa regra é considerada como ajuda para uma vida santa, garante-se a graça divina para quem a observa em espírito e verdade. Isto é “verificável na estima em que é tida pela comu-nidade cristã, que associa a vida ascética à vida santa, e materializa o santo naquilo que é visível: as religiosas e os religiosos de uma comuni-dade”.12

Durante algum tempo Clara recebeu a Regra beneditina, por imposi-ção jurídica. Pela mesma razão as Constituições Hugolinas foram sendo aceites pelos mosteiros fundados em vários lugares. Lemos no preâmbulo dessas Constituições, entregadas, em 1228, às Damianitas de Pamplona: “Entregamo-vos a Regra de S. Bento, na qual se reconhece por norma a perfeição das virtudes e a máxima descrição, a qual foi recebida pelos santos padres e aprovada pela Igreja romana, para que a observeis em tudo aquilo que não prove estar contra a forma de vida que vos entrega-mos.”13 Foi uma formalidade jurídica durante alguns anos, até conseguir a aprovação da regra de Clara.

————— 12 D. Mariño, “Las religiosas en las comunidades”, 130. 13 Escritos de Santa Clara y documentos complementarios. Preparados por Fr. I.

Omaecheverrería. Madrid 1982, 2ª ed., BAC, 216.

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3- DEPOIS... “SORORES OU MONIALES” A estrutura comunitária própria das sorores, foi-se diluindo pouco a

pouco a favor do fenómeno que se costuma denominar de monaquização. Este desenvolvimento também foi influenciado pela situação política, relacionada com a organização das cidades, que lentamente passaram de um governo de consensos para uma oligarquia, uma forma de governo onde o poder é exercido por um grupo reduzido de pessoas de determi-nada classe social. Tais pessoas governam quase sempre para defender os seu próprios interesses.

Também se sentiu a influência da Igreja nas ordens mendicantes,

particularmente na forma de vida instituída por Clara de Assis, onde a partir de 1263, dez anos depois da morte da santa, se abria uma segunda via, com a Regra Urbaniana. As intervenções dos papas determinaram mudanças sucessivas nos diversos nomes com que eram designadas: soro-res pauperum; religio pauperum dominarum; pauperes moniales; Ordo sancti Damiani; Ordo Sanctae Clarae. A intenção era clara: “Orientar as diversas formas de vida feminina por uma normativa bem definida e for-temente influenciada pela tradição cisterciense: submeter os cenóbios directamente à Igreja Romana; identificar o novo monaquismo com a prática de uma estrita clausura, até então em vigor unicamente nos reli-giosos que se dedicavam à vida eremítica de reclusão. Tentou-se estender esta regulamentação às numerosas comunidades religiosas femininas que tinham nascido ou que se estavam a organizar à margem do monaquismo tradicional.

Nas comunidades de sorores, apesar da influência do governo, nem

sempre de acordo com a vontade profética da fundadora, foram-se man-tendo os valores tipicamente religiosos que unem as pessoas a Deus e entre si. A imagem da bondade, da paz, da alegria, da pobreza e da uni-dade no amor, está associada à comunidade que a reflecte. Quando isto é reconhecido e apreciado pela sociedade, tanto nos primeiros tempos como agora, as pessoas aceitam e apoiam aqueles que espelham estas virtudes e supostamente gozam o favor de Deus.

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CONCLUSÃO Entre as formas femininas de consagração a Deus no século XIII,

encontramos: A vida monástica mais ou menos estratificada, de acordo com a

sociedade feudal; um conjunto de formas novas, ortodoxas e heterodoxas. Para a sociedade, o elemento mais característico e novo das novas formas, era a pobreza e a igualdade na vida comunitária. Por isso ao caracterizar a Regra de Santa Clara e ao rectificar a sua força profética com a bula de aprovação, o papa Inocêncio IV define-a como “Regra da altíssima pobreza e de santa união”.

Ora bem, a base da vida de união em comunidade encontra-se no preceito evangélico do amor vivido até às últimas consequências na pobreza humildade. Já não conta nada a procedência nobre ou servil. Cada irmã é recebida e apreciada como um dom: “O Senhor me deu irmãs” para as amar e reverenciar e para lhes “lavar os pés”.

A forma de vida evangélica, constantemente renovada pela contem-

plação amorosa transformante “segundo o Espírito do Senhor e sua santa operação”, identifica-se com a missão da Igreja. Por isso Santa Clara fala no seu Testamento da aspiração mais importante, da sua missão na Igreja que é ser “exemplo e espelho”. Espelho do amor evangélico tornado rea-lidade na “sororidade”, através duma convivência pacífica e igualitária, sem esquecer o trabalho e a pobreza. Um espaço evangélico edificado na reconciliação, onde cada uma possa dizer o que sente e o que pensa, onde cada uma tem voz e voto, rosto e sorriso.

Hoje em dia os termos democracia, colegialidade, consenso, etc.,

fazem parte do vocabulário comum. Apesar deste ideal, cresce a erva daninha do divórcio nas suas mais diversas edições: a rejeição daquele que é diferente, a exclusão do que não serve os próprios interesses, dos que estão entorpecidos pelos anos ainda que levem consigo muita virtude e sabedoria...

Hoje, a voz profética de Clara tem capacidade para nos inspirar as

formas reclamadas pela sociedade com cada vez mais veemência. Não se nos pede o impossível, trata-se só de viver o evangelho.

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Também hoje as filhas de Clara têm de “sair do século”. Sair da mentalidade do mundo, edificado sobre o pecado do desamor. Sair dessa mentalidade individualista e subjectivista tão inclinada à exclusão daquela que pensa diferente, que põe de lado quem não concorda comigo ou me desilude, que rejeita quem é diferente, e exclui quem se opõe a ambições mal disfarçadas. Sair da cadeia imparável do consumo de coi-sas, de notícias, de ideias... sair pela iluminação do coração na busca da mentalidade evangélica e na busca incessante do espírito das bem-aventu-ranças.

Só assim, espelhando a sororidade do primado de Deus, a dita da

altíssima pobreza, a fruição da santa unidade, podemos tornar visível a glória do Pai que está nos céus e os frutos da paz, gozo, reconciliação, doçura..., em suma, Todo o Bem. Traduziu fr. José António Correia Pereira

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NO 5º CENTENÁRIO DE

S. PEDRO DE ALCÂNTARA

(1499-1999)*

Por Fr. Henrique Pinto Rema

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NO 5º CENTENÁRIO DE S. PEDRO DE ALCÂNTARA (1499-1999)*

Estamos no extinto Convento de São Pedro de Alcântara. O convento pertencera à Província da Arrábida. Deram-lhe como padroeiro do céu São Pedro de Alcântara, proclamado Santo pela Igreja em 1679. O “grande Marquês de Marialva, D. António Luís de Meneses, desejando que a cidade de Lisboa tivesse mais presentes os exemplos da santa vida de tão bons religiosos [os franciscanos arrábidos], quis que eles tivessem um convento dentro da sua povoação, do que ele se fez padroeiro, fazendo-lhe dar lugar em um sítio pouco distante da Casa de São Roque, da Companhia de Jesus, em uma nobre morada de casas que tinham sido de Marcos Rodrigues Tinoco, secretário que foi da Mesa da Consciência e Ordens, o qual, por sua muita piedade para fundarem o dito convento lhe deixou as suas casas, das quais tomaram posse os religiosos no ano de 1672, e no ano de 1681 se lançou a primeira pedra para a igreja, para a qual se mudou o Senhor em 18 de Abril de 1685. E deste dia se conta a antiguidade do mosteiro”1.

————— *Esreveu H. Pinto Rema, OFM, para dizer em reunião da Fraternidade de Jesus,

que decorrerá na tarde de 28 de Fevereiro 1999, domingo, no Instituto São Pedro de Alcântara, ao Largo de São Pedro de Alcântara, em Lisboa.

1Historia dos Mosteiros - Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, II, Câmara Municipal de Lisboa, 1972, pp. 162-163. Cf. Convento de S. Pedro de Alcântara, ed. S. Casa da Misericórdia de Lisboa, 1997, de 42 pp; Cf. Manuel Pereira Gonçalves, O Franciscanismo em Portugal, Actas, Fundação Oriente, 1996, pp. 318-330, citando do mesmo um artigo em “Paz e Alegria”, nº 9, 1987, 18ss, onde há outros informações, como, por exemplo, a de que os frades arrábidos ali teriam entrado no dia 12 de Agosto de 1680...

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Foi sempre um convento muito povoado. Podia acolher 50 frades. Na hora da sua supressão, a 31 de Dezembro de 1833, já com destino mar-cado: Recolhimento de Órfãs da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, contava nada menos de 26 frades, sendo então guardião Fr. António da Soledade. Como as Ordens Religiosas apenas seriam suprimidas por decreto de 28 de Maio do ano seguinte, os seus moradores foram distri-buídos por outros conventos: oito, para o convento de Ribamar; meia dúzia, para o Convento da Boa Viagem, ambos na área de Algés; dois para o Convento de Santo António dos Capuchos da Caparica; outros dois, para o Convento de Palhais (Barreiro); quatro para o Convento de Alferrara (Setúbal) e um para o da Arrábida; dois não se apresentaram; um apresentou-se e assinou, mas não se integrou em qualquer convento.

Os arrábidos também se dedicavam às letras, em ordem ao aposto-lado. Reparamos que no dia 8 de Janeiro de 1834 foram retirados de 25 estantes nada menos de 6024 livros e entregues à Biblioteca Pública de Lisboa. Uma biblioteca muito razoável para a época e para um convento arrábido.

Desde 1 de Outubro de 1943 que este Instituto dispõe de Irmãs da Congregação da Apresentação de Maria como educadoras. As educandas rondam hoje as sete dezenas.

O PADROEIRO São Pedro de Alcântara nasceu na vizinha Espanha no ano de 1499 e

morreu a 18 de Outubro de 1562 no convento de Arenas de São Pedro (Estremadura Espanhola), que lhe guarda os restos mortais.

São Pedro de Alcântara, de enorme austeridade, director espiritual de Santa Teresa, depois de ter sido Provincial da Província de São Gabriel na Espanha, a pedido de D. João de Lencastre, Duque de Aveiro, veio para Portugal, acompanhando, de 1542 a 1544, o Fr. Martinho de Santa Maria (de Benavides, falecido a 1546), que na Arrábida vivia uma reforma aus-teríssima iniciada por ele em 29 de Setembro 1539. Recorde-se que fora o mesmo Duque de Aveiro quem oferecera ao Ministro Geral Fr. Vicente Lunel a sua Serra da Arrábida, que a aceitou e entregou a Fr. Martinho de Santa Maria.

Provavelmente já depois do Capítulo Provincial de Outubro de 1541, o mesmo Duque de Aveiro escreve a Fr. Pedro de Alcântara certamente a

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pedir reforço de moradores para a Arrábida. Como estava livre da respon-sabilidade da Província de São Gabriel, pediu e obteve licença para ir ter com Fr. Martinho à Arrábida, aonde terá chegado pelos fins de 1541 ou começo de 1542, acompanhado por Fr. João de Águila e de Fr. Francisco de Pedrahita.

No convento da Arrábida e nos conventos que se foram fundando, seguiam os Estatutos que em 1540 Pedro de Alcântara impusera à Provín-cia de São Gabriel.

O novo Ministro Geral Fr. João Calvo, visitou a Arrábida em Maio

de 1542. Em face das ideias e dos ideais de São Pedro de Alcântara, Fr. João Calvo criou a Custódia da Arrábida, sediada no Convento de Santa Maria. Deu-lhes licença de admitir noviços e fundar três ou quatro novos conventos ou eremitérios. Assim é que fundaram logo o convento de Palhais, em terras do Conde da Vidigueira, tendo sido seu primeiro guar-dião e mestre de noviços Fr. Pedro de Alcântara. Entre Salvaterra e Bena-vente, no lugar de Jenicó, em terrenos do Infante D. Luís, implantaram o terceiro convento, dando-lhe como guardião Fr. Francisco de Pedrahita.

No dia 22 de Fevereiro de 1543, Fr. Pedro de Alcântara acha-se em Azeitão, onde assina o livro do B. Amadeu da Silva, Comentario al Apo-calipse”2.

A presença de São Pedro de Alcântara em Portugal é decisiva para a implantação do movimento de reforma franciscana que encabeçava. Embora não quisesse integrar-se na nova Custódia, que seria elevada a Província em 1560, a sua inspiração apalpa-se nos primeiros Estatutos. A sua experiência de governo e a sua acção decidida na reforma franciscana garantiam a passagem da letra à prática. A vinda do Ministro Geral à Arrábida é uma demonstração do seu prestígio e da sua fortaleza de ânimo. O ideal primitivo de Fr. Martinho de Santa Maria, mais vocacio-nado para a vida eremítica, toma nova dimensão com as iniciativas de Fr. Pedro de Alcântara, que não teme recorrer ao Duque de Aveiro e ao Infante D. Luís.

————— 2 Cf. Rafael Sanz Valdivieso, San Pedro de Alcántara y la Provincia de la

Arrábida, em “I-II Seminário ‘O Franciscanismo em Portuhgal’, Actas”, Fundação Oriente (Lisboa), 1996, p. 230. O Autor deste trabalho (pp. 225-257) coloca em grande relevo as relações de São Pedro de Alcântara com Portugal, incluindo transcrição de cartas suas e a ele endereçadas.

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Com o Ministro Geral Fr. João Calvo esteve na Arrábida Fr. André da Ínsua, eleito em finais do ano de 1543 Ministro Provincial dos Algar-ves. Embora partidário da reforma observante, era adversário da reforma descalça ou capucha. A Custódia tinha a sua autonomia, e a presença de São Pedro de Alcântara era um travão. Quando este retornou à sua Pro-víncia de São Gabriel e o elegeram Definidor no capítulo Provincial de Outubro de 1544, Fr. André da Ínsua ficou mais livre para intervir, até porque em 1545 houve o capítulo da Custódia, a que presidiu. Nomeou então Fr. André Varela para novo Custódio, na esperança de submeter os frades da Arrábida à recolecção dos Algarves e de abolir os Estatutos da Custódia.

Passados seis meses de governo, Fr. André Varela renuncia ao cargo de Custódio e para o seu lugar é nomeado o Fr. Luís Faleiro. Pressionado pelo infante D. Luís, pelo Duque de Aveiro D. João de Lencastre e, por-ventura, pelo próprio Fr. Pedro de Alcântara, o terceiro Custódio da Arrá-bida não executa uma patente do Ministro Geral, obtida por Fr. André da Ínsua, que ia no sentido da sua fusão na Província dos Algarves. Em causa estava também a forma dos hábitos, com grande variedade de remendos.

Em Agosto de 1546 morre o fundador da Arrábida, Fr. Martinho de Santa Maria.

Fr. André da Ínsua é eleito Ministro Geral a 28 de Maio de 1547, o que parecia reforçar as tentativas contrárias à Arrábida. Mas, de facto, não passaram de tentativas. Fr. Pedro de Alcântara e Fr. João de Águila ficam sem cargos, em 1548, no capítulo de eleições da Província de São Gabriel. Na Arrábida há Capítulo no ano seguinte, e é decisiva a interven-ção de Fr. Pedro de Alcântara, segundo consta de cartas do tempo e do próprio texto da Crónica da Província da Arrábida, da autoria de Fr. António da Piedade.

Uma destas cartas é do jesuíta Padre Francisco de Borja (São Fran-cisco de Borja) para o franciscano Fr. Pedro de Alcântara (São Pedro de Alcântara), redigida em Gandía a 13 de Fevereiro de 1549. Nela fala de reforço de religiosos para a Arrábida. Pedro de Alcântara estaria de novo em Portugal. Fr. André da Ínsua convoca capítulo dos arrábidos para o convento de Salvaterra. Nele sai eleito Custódio Fr. Luís Delna, da Pro-víncia da Catalunha. Fr. João de Águila é eleito guardião do convento de Palhais, onde morava Fr. Pedro de Alcântara. Este desloca-se a Lisboa com frequência a pedido das Infantas D. Isabel e D. Maria, das quais é

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confessor ou director espiritual. Parece que o nosso Santo regressou à sua Província para o Capítulo de Março de 1551 e, pela terceira vez, é eleito Definidor.

Em carta à infanta D. Isabel (viúva do infante D. Duarte), talvez de Novembro de 1551, Fr. Pedro de Alcântara fala assim da Custódia da Arrábida: “Tenho-lhe singular amor, porque sei o que nela há e porque tenho certamente mais amor às coisas de Portugal do que às de Castela, pela grande cristandade dos Príncipes desses Reinos. [...] Isso senti e sinto sempre, e digo-o em qualquer parte em que me acho”.

As diligências do infante D. Luís e São Pedro de Alcântara em Roma resultaram no breve pontifício Dum quo ad quid iustum, de 28 de Novembro de 1551, que derrogava o obtido por Fr. André da Ínsua. Este breve vinha confirmar os Estatutos primitivos da Custódia. Desta forma, a Custódia da Arrábida prosseguia o seu caminho.

Entretanto, Fr. João de Águila incorpora-se definitivamente na Arrá-

bida e é eleito Custódio no capítulo posterior ao Pentecostes de 1553. Na época já havia seis conventos: Arrábida, Salvaterra e Palhais, mais os novos da Caparica, Ribamar e Santarém (este edificado a expensas do Conde de Vimioso, ligado a São Pedro de Alcântara, conforme se deduz de duas cartas do punho do próprio santo).

Da Província de São Gabriel surgiu, em 1553, a Custódia de São José, em que entrou São Pedro de Alcântara. Seria erigida em Província passados seis anos, em 1559, sob a dependência do Geral dos Conven-tuais.

Fr. Pedro de Alcântara ansiava por viver na soledade. Mas os superiores não lho permitiram. Em 1557, o Mestre Geral dos Conventuais nomeou-o Comissário Geral dos conventuais reformados. Foi assim que fundou o eremitério de Pedroso/Palancar, dando-lhe Estatutos de grande perfeição: proibição de toda a espécie de síndicos; exigência de as casas continuarem na posse dos fundadores (e não da Santa Sé), aos quais todos os anos entregariam as chaves e só continuariam a habitá-las com o seu consentimento; o máximo de pequenez das igrejas, casas e celas; andarem descalços, sem sandálias; permissão de carnes e laticínios só aos enfer-mos; permissão de os superiores remendarem os hábitos com panos de várias cores; proibição de bibliotecas, mas concedendo a cada religioso os livros indispensáveis3. —————

3Cf. Lázaro Iriarte, Historia Franciscana, Valencia, 1979, p. 213.

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O nosso Santo foi o confessor e director espiritual do infante D. Luís

(falecido a 27 de Novembro de 1555), da infanta D. Maria (filha do nosso rei D. Manuel) e de D. Isabel (filha do duque de Bragança e esposa do infante D. Duarte, filho de D. Manuel). Apesar de tudo, não terá voltado a Portugal depois de 1556 ou 1557. Mas tinha em Portugal o meio irmão Pedro Barrantes Maldonado, a quem introduzira junto de pessoas da corte, o qual o informava do andamento das coisas em Portugal. Uma carta do P. Francisco de Borja, santo jesuíta e um dos padroeiros de Por-tugal, com a data de 22 de Agosto de 1557, refere-se ao cuidado do nosso São Pedro de Alcântara pelas coisas de Portugal e espera, no regresso de Portugal, parar no seu conventinho de Palancar.

Certamente, a elevação da Custódia da Arrábida a Província, por breve de 10 de Maio de 1560, executado a 22 de Dezembro imediato, muito terá alegrado a alma do iniciador do movimento reformista francis-cano que ficou na Espanha com o nome de reforma alcantarina.

ESPIRITUALIDADE DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA São Francisco, por insistência da Santa Sé, escreveu uma Regra

muito breve, mais inspiracional do que normativa. Foi aprovada, na forma definitiva, a 29 de Novembro de 1223. Por isso, é susceptível das mais diversas interpretações, que se foram fazendo em declarações pontifícias, a primeira das quais logo em 30 de Setembro de 1230, pela bula Quo elongati, de Gregório IX (em que teve alguma interferência o nosso Santo António de Lisboa).

As interpretações vivenciais da Regra franciscana provieram dos chamados Espirituais ou “Fraticeli”, reprimidos com certa violência por São Boaventura (no terceiro quartel do séc. XIII) e excomungados pelo Papa João XXII (no primeiro quartel do século XIV).

No entanto, foi das cinzas do movimento dos Espirituais que surgiu,

no final do séc. XIV e ao longo de todo o séc. XV e entrando pelo século XVI, a Observância. A tendência para a vida eremítica – esta com regu-lamento já dado pelo Fundador – acentuou-se com a reforma “villacre-ciana”, de Fr. Pedro de Villacreces (+ 1422), que, depois de ter levado muitos anos de vida eremítica, obteve bula do Papa para formar comuni-

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dade de estreita observância em Santa Maria de Salceda (Segóvia). Outros conventos se lhe seguiram e com frades que entraram na história da espiritualidade, incluindo São Pedro Regalado (+ 1456). Mantiveram--se sempre sob a dependência do Provincial, não obstante as pressões dos observantes para os integrar.

A reforma de Fr. João de la Puebla (+ 1495) e de Fr. João de Guada-lupe (1440 - +1506) retomou a tendência eremítica, na qual se inclui o Convento de Nossa Senhora da Piedade de Vila Viçosa, que dará origem à Província da Piedade, criada em 1517. Com o convento da Piedade de Vila Viçosa, fundado em 1500 por Fr. João de Guadalupe, introduz-se em Portugal a chamada reforma capucha.

Com os eremitérios que se foram fundando na Província dos Anjos, em Espanha, formaram-se as Custódias do Santo Evangelho e de São Gabriel. Nesta entrou em 1515 São Pedro de Alcântara. Em 1519 subiria a Província. Descalços (por não usarem sandálias), guadalupenses (por Fr. João de Guadalupe ser notável inspirador), alcantarinos (por São Pedro de Alcântara ser uma referência), capuchos (por causa da forma do hábito), arrábidos (por ter surgido na serra da Arrábida uma Província) são outras tantas designações da reforma franciscana em que andou envolvido o nosso herói São Pedro de Alcântara.

Todas estas reformas possuíam as suas “Ordenações” ou “Estatutos”, que regulavam a vida no concreto, a partir dos seguintes pressupostos: observância da Regra à letra e sem glossa, sem aquelas explicações e adaptações feitas pelos Papas; não aceitação dos Estatutos de Barcelona (pela primeira vez redigidos e aprovados num Capítulo celebrado em Barcelona em 1451 e adaptados e revistos em capítulos sucessivos, desti-nados à Família Ultramontana (para além dos montes Alpes), onde se encontravam as tais dispensas pontifícias.

A única explicação da Regra era o Testamento de São Francisco, que foi objecto de contestação logo no Capítulo Geral de 1230, em que parti-cipou Santo António de Lisboa.

As Constituições ou Estatutos da reforma dos arrábidos tiveram a sua origem nos citados Fr. João de la Puebla, Fr. João de Guadalupe e São Pedro de Alcântara. Acento especial é posto na pobreza extrema, na forma do hábito, na pregação do Evangelho (ao ponto de lhes chamarem frades do santo Evangelho), na máxima austeridade e rigor penitencial, na prática longa e metódica da oração em particular e em comum. Neste sentido é de recordar o Tratado da Oração e Meditação, redigido por São

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Pedro de Alcântara e destinado especialmente àqueles que não têm muito tempo nem muitos recursos, para que aproveite a todos os que buscam o Senhor. Curiosamente, a primeira edição conhecida é de Lisboa, sem data.

São Francisco de Assis viveu e ensinou uma espiritualidade susten-

tada nos três pilares: “ascese da pobreza penitente na forma e letra como a pormenorizou na Regra e exemplificou no comentário dela que foi a sua vida; a oração e devoção a que tudo o mais havia de servir, como espon-taneamente ele a praticou e São Boaventura depois teorizou ou cientifi-camente estruturou em seus tratados de vida espiritual; e a caridade no seu modo divino que é ajudar os homens, fiéis e infiéis, a amar a Deus, ou seja, o apostolado missionário e conquista dos homens todos à plenitude da luz e graça redentora”4.

A espiritualidade da reforma capucha segue nesta linha. O frade capucho crucificava o homem velho com os trabalhos da ascese. “Tinha de viver pobre como os que não têm nada; andar descalço, com os pés nus pelo chão; vestir apenas um hábito de burel grosseiro usado pelos mais pobres, estreito, curto, remendado; poisar em casas tão pobres como os tugúrios dos pobrezinhos; dormir em tarimba sobre cortiça ou tábuas, e só por curtas horas; comer de esmola como os pobres e jejuar mais de metade do ano; longos retiros, e depois pelos caminhos sempre a pé e à intempérie nas andanças do apostolado. [...] De noite e de dia as horas do Ofício coral, recitado com pausa e meditado cada verso, ou cantado na forma pobre do cantochão e baixo”5.

CONCLUSÃO

Quem olha para a figura escalavrada de São Pedro de Alcântara,

como aparece na iconografia, e percorre alguma literatura relativa à espi-ritualidade alcantarina, capucha ou arrábida, pode colher uma ideia dis-torcida da figura do homem e santo que deu nome a este extinto convento e ao Instituto que hoje é, bem como ao Largo que lhe fica defronte. Não se ignore, porém, que nasceu numa família distinta; como sacerdote e

————— 4 F. Félix Lopes, OFM, Colectânea de Estudos de História e Literatura, II, Lisboa,

1998, p. 243. 5 F. F. Lopes, Ibidem, p. 246s.

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franciscano mostra ser não um bisonho intratável, mas um homem austero de princípios muito firmes, inspirador de respeito e confiança, do melhor trato humano e social. Estimavam-lhe o convívio os grandes da nobreza e da Igreja. Os confrades elegeram-no para os mais altos cargos da Família, como Guardião, Definidor, Custódio e Provincial. Não é um qualquer que sobe tão alto. Para tal, é preciso reunir um conjunto de qualidades, onde impera uma visão larga dos homens e dos acontecimentos, apreciável bom senso e equilíbrio. Pedro de Alcântara, além duma santidade palpá-vel, era adornado de predicados de inteligência e de governo de homens que, passados cinco séculos após o seu nascimento, ainda se impõem à nossa consideração.

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O CONCEITO DE LIBERDADE

NA VISÃO TEOLÓGICA DA HISTÓRIA

DO FRANCISCANO PEDRO JOÃO OLIVI

(1248-1298).

por Joahnnes Baptist Freyer ofm1

————— 1 Publicado em Wissenschaft und Weisheit, 2002, nº 65/2.

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O CONCEITO DE LIBERDADE NA VISÃO TEOLÓGICA DA HISTÓRIA DO FRANCISCANO PEDRO JOÃO OLIVI

(1248-1298).

1- INTRODUÇÃO O início do novo milénio despertou em muitas pessoas uma certa

consciência pela evolução da história. História não tem aqui o sentido de ciência que investiga os factos históricos do passado, mas o decorrer do tempo, dos anos e dos séculos e a experiência humana do passado, do pre-sente e do futuro que lhe está inerente. A passagem dos anos e sobretudo dos milénios, proporciona a experiência humana do futuro nunca atingí-vel. Ao mesmo tempo que experimentamos o gozo da espera, adensam-se, nestes tempos de transição da história, os medos ancestrais da humani-dade. Para exorcizar esses imponderáveis encontraram-se ritos e celebra-ções como as que aconteceram por todo lado na passagem do segundo milénio. Outra possibilidade de ultrapassar estes medos ancestrais, con-siste em elaborar uma teoria, uma visão que explique os horizontes limi-tados do homem, com as suas expectativas e medos.

Assim chegamos a uma visão da história que ajuda os homens a

esclarecer a sua evolução, a compreendê-la e a encontrar-lhe um sentido que lhe dê a possibilidade de assimilar o seu passado, de vencer o pre-sente e de encarar o futuro. Assim, desde os tempos mais remotos, apare-ceram teorias para compreender a história e os milénios, teorias essas muito ligadas a vivências religiosas. Estas teorias pretendiam tornar mais compreensível a evolução do tempo, confrontando o mundo e o homem com a eternidade de Deus.

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2- VISÕES MILENÁRIAS Para esclarecer o tema proposto, vamos, de forma muito resumida,

recordar algumas visões milenaristas oriundas de contextos cristãos. Uma das visões mais conseguidas é a de AGOSTINHO

2: fundado numa teologia pneumática e cristológica, Agostinho desenvolve uma grandiosa visão na qual a história está marcada pela ultrapassagem do mal. Divide a evolução da história em várias épocas: de Adão a Noé; de Abraão até David; o tempo da escravidão em Babilónia; o tempo de Cristo e o fim do mundo.

RUPERT VON DEUTZ

3, fundado na teologia da Trindade, dá à história um sentido trinitário. O Pai está em relação com a criação, o Filho com a história da redenção e a história da salvação acontece sob a orientação do Espírito, que actua no tempo. No entanto para Rupert a história da salva-ção, estando sob a influência do Espírito, é uma época iniciada por Cristo. Assim estamos perante uma visão trinitária da história, que abarca a cria-ção, a redenção e a salvação, onde o tempo que vai de Cristo até ao último juízo é a época do Espírito Santo.

ONORIUS VON AUTUN

4, ao contrário, vê a história como um progresso linear. Nesta visão progressiva da história perde-se a dimensão escatoló-gica. A encarnação não tem aqui nenhum significado especial para o desenrolar da história.

ANSELM VON HAVELBERG

5 regressa ao sentido escatológico da histó-

ria. Os sete selos do Apocalipse simbolizam, na sua visão, as sete épocas

————— 2 Para uma visão mais completa deste tema em Agostinho, cf.: STAKEMEIR, E.:

Civitas Dei – die Geschichtstheologie des hl. Augustinus als Apologie der Kirche, Paderborn, 1955 ; WACHTEL, A. : Beiträge zur geschigtstheologie des Aurelius Augustinus, Bonn, 1960, (Bonner historische Forschung, 17).

3 Para uma visão mais completa, cf.: KAHLE,W., Gescichte als Liturgie – die Geschigtstheologie des Rupertus von Detz, Münster, 1960 (Aevum christianum, 3); ARDUNI, M.L., Rupert von Deuz (1076-1129 und der “status Christianitatis” seiner Zeit – symbolisch-prophetische Deutung der Geschichte, Colónia

1987 (Archiv für Kulturgeschichte, 25). 4 Cf., RATZINGER, J., Die Geschichtstheologie des Heiligen Bonaventura, ed.

facsimile, St. Ottilien, 1992, 103. 5 Ut supra, p. 104-106.

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da história depois de Cristo e explicam o crescimento da Igreja no tempo e na história.

Com JOAQUIM DE FIORE

6 (1130-1202), chegamos a um pensador que

havia de ser importante para a tradição franciscana7. A sua teoria pode designar-se também como visão trinitária da história.

Distingue a época do Pai, do Filho e do Espírito Santo e a cada pes-soa divina corresponde uma época e um reino. O reino do Pai corresponde ao Antigo Testamento que está sob a lei; os homens eram escravos. O reino do Filho começa com o Novo Testamento e dura, segundo a sua visão pessoal, até 1260. Esta é a época da graça; os homens são filhos e filhas ao serviço de Deus. Joaquim de Fiore aguarda depois o terceiro reino do Espírito que prepara o fim. Este tempo do Espírito8 trará a pleni-tude do conhecimento e da liberdade. Os homens serão verdadeiros ami-gos de Deus.

O terceiro reino, também designado como a época dos autênticos

monges espirituais, começou já com Bento de Núrcia. No tempo, Joaquim de Fiore toma formas visíveis que no futuro hão-de chegar à plenitude através dum grupo de monges carismáticos. Anuncia-se uma luta apoca-líptica entre estes homens espirituais e uma Igreja mundana. Esta Igreja do papa será substituída no fim por uma Igreja espiritual9. Através destes homens espirituais realiza-se a plenitude do Evangelho e o mundo vai-se preparando para a vinda definitiva de Cristo. Já não serão precisos os clé-rigos para mediar a relação com Deus, uma vez que os homens espirituais terão um conhecimento perfeito e uma relação directa com Deus. Entre estes homens “espirituais” surgirá um dux (chefe) que os há-de orientar. —————

6 Cf., BLOOMFIELD, M. W., Joachim of Flore. A Critical Review of his Canon, Sources, Biography and Influence, em Traditio 13 (1975) 249-311.

7 Cf., GARZÓN, F., Milenarismo joaquinista y su influencia en la naciente Orden franciscana (até 1257), em Francis 116-117 (1997); STANISLAUS DA CAMPAGNOLA: L’Angelo del sesto sigillo e l’alter Cristus. Genesi e svuiluppo di due temi francescani nei secoli XII-XIV, Roma 1971; ROTZETTER, A., Eschatologie und Utopie im franziska-nischen Denken. Die utopischen Vorstellung der resten Franziskanes, em FS 67 (1985) 107-113; REHO, C., Il messagio escatológico da Giorcchino da Fiore a Bonaventura da Bagnaregio, em Antón 54 (1979) 681-700.

8 Cf., Benz, E., Creator Spiritus. Die Geschichte des Joachim von Fiore, em Eranos Jahrbuch 25 (1956) 285-355.

9 Cf., BENZ, E., Ecclesia Spiritualis. Kirchenidee und Geschichtstheologie der franziskanischen Reformation, Stuttgart, 1934, p. 4-18.

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Na sua humildade e pobreza será o modelo do homem espiritual. Para Fiore o fim da Igreja clerical acontecerá no início do século XIII. A ver-dadeira Igreja espiritual aparecerá por volta de 126010. Esta visão espa-lhou-se entre os franciscanos, talvez a partir de 1243. Um abade da fun-dação de Joaquim de Fiore refugiou-se em Pisa, sob a protecção de Frede-rico II, e foi recebido no convento franciscano da cidade. Levou consigo os escritos de Fiore. Este acontecimento é descrito por Salimbene11, cro-nista franciscano, que teria sido testemunha ocular do sucedido.

Os primeiros franciscanos que aplicaram esta visão de Fiore à espiritualidade franciscana, viviam, por esta altura, em Pisa: Rudolfo von Sachen, Bartolomeu Guisculus, Gerardo de Borga S. Damiano12. S. Fran-cisco, o fundador da Ordem13, será reconhecido como dux (chefe) e a sua vida de humildade e pobreza como fundamento da Igreja espiritual, cha-mada a preparar a vinda definitiva de Cristo e os últimos tempos. Assim Francisco inaugura uma nova época, na qual será substituída a velha e mundana Igreja clerical por uma Igreja viva e espiritual, fundada no Evangelho.

Esta visão, aqui resumidamente apresentada, foi aproveitada pelo

movimento espiritual e serviu-lhes de fundamentação teológica14. O movimento dos espirituais dentro da Ordem franciscana, começou logo a seguir à morte de S. Francisco. Na generalidade reivindicavam o regresso às origens, defendiam uma leitura textual da Regra e a pobreza radical. Também se designou movimento espiritual15 porque seguiam a doutrina de Joaquim de Fiore, fazendo sua a ideia do milénio do Espírito. A influência das destas teorias ultrapassou as fronteiras do movimento fran-

————— 10 Cf., GERWING, M., Vom Ende der Zeit. Der Traktat des Arnald von Villanova

über die Ankunft des Antichrist in der akademischen Auseinandersetzung zu Beginn des 14. Jahrhunderts, Münster 1996 (Beitrag zur Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittealters, Neue Folge 45), 351-362.

11 Cf. SALIMBENE DE ADAM DA PARMA, Cronaca, em: MGH Scriptores 32. Hannoverae et Lipsiae 1905-1913, cf. o referente a Julho de 1248.

12 Cf. BENZ, Ecclesia Spiritualis, op. cit. p. 175-181. 13 Cf. Croco, A.., S. Francesco e Gioachino da Fiore 14 Cf. BENZ, E., Die Geschichtstheologie der Franziskanerspiritualen des 13. u.

14. Jahrhunderts nach neuen Quellen, em ZKG 52 (1933) 90-121. 15 Cf. sobre o movimento espiritual em geral BARONE, G., Da frate Elia agli

Spirituali, Milão 1999, 173-179.

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ciscano16. Séculos mais tarde17 havia de influenciar a filosofia da história de Hegel18 e Schelling19, voltando a aparecer na sua forma mais perversa com Mussolini e Hitler que se entendiam como dux dum milénio ariano que quiseram implantar, o reino da raça pura em vez dos homens possuí-dos pelo Espírito. Este exemplo mostra como é importante conhecer a história, para desmascarar ideologias perigosas.

3- PEDRO JOÃO OLIVI Pedro João Olivi20 nasceu em 1248, em Sérignan (Béziers), um

ambiente com forte presença dos cátaros e com um passado ligado às cru-zadas contra os albigenses. Entrou com doze anos, por volta de 1260,no convento franciscano de Béziers. Reconhecendo-lhe uma inteligência superior, as autoridades da Ordem destinaram-no para os estudos, em Paris. Interrompeu os estudos em Paris sem acabar o mestrado e regressou à sua Província para ensinar nas escolas da Ordem em Montpellier e Nar-bona.

Durante o governo do Ministro Geral Jerónimo de Ascoli foi denun-ciado pela primeira vez, sendo obrigado, em 1278, a destruir alguns escritos sobre mariologia. Em 1283, foi nomeada nova comissão para analisar os seus escritos filosóficos e teológicos., sendo-lhe apontadas algumas heresias. Nessa mesma altura é identificado com a doutrina dos espirituais, sobretudo no referente à pobreza, mais concretamente ao usus pauper (pobreza no uso das coisas). Depois do Capítulo Geral de Mont-pellier, em 1287, onde lhe foi concedida a oportunidade de se defender, foi nomeado docente da escola da Ordem de Florença. Depois de 1289 volta a Montpellier. Faleceu a 14 de Março de 1298. A sua sepultura tor-—————

16 Cf., LERNER, R.E., Refrigerio dei santi, Gioacchino da Fiore e l’escatologia medievale, Roma, 1995.

17 Cf., entre outros REEVES, M., Joachim of Fiore and the Myth of the Eternal Evangel in the nineteenth Century, Oxford 1987.

18 Cf., RIVERA DE VENTOSA, H., Tres Visiones de la historia: Joachin de Fiore, San Bonaventura y Hegel. Estudio comparativo, em SBM Vol. I, 770-808.

19 Cf., LUBAC, H. de, La postérité spirituelle de Joachim de Flore. Vol. I. De Joa-chim à Schelling, Paris 1979.

20 Cf., sobre a pessoa, vida e obra, a visão da história e valoração, PIETRO DI

GIOVANNI OLIVI: Scritti scelti. Vian Paolo(editor), Roma 1989, 7-46; FLOOD, D., Petrus Johannis Olivi. Ein neus Bilde des angebleichen Spiritualenführers, em WiWei 34 (1971) 130-141; GERWING, op. cit., p. 34, 51, 131.

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nou-se centro de veneração depois da sua morte. Para acabar com esta devoção, as autoridades eclesiásticas abriram a campa, cortaram o corpo em pedaços e fizeram-no desaparecer21. Entre 1299 e 1309, sendo Minis-tro Geral João de Murrovale, foram novamente condenados os espirituais e a doutrina de Olivi. No concílio de Viena, de 1312, foram condenadas duas teses teológicas relacionadas com Olivi, sem que o seu nome fosse citado: a doutrina sobre a pobreza radical e a ideia de que a alma não é a forma do corpo22. Entre os anos 1318 e 1326, o Papa João XXII nomeou uma comissão para analisar os comentários de Olivi ao Apocalipse, por causa da semelhança com as ideias de Fiore.

Todo o pensamento teológico e filosófico de Olivi arranca dos textos bíblicos23. Comentou quase todos os livros da Bíblia. A sua pessoa e a sua doutrina estiveram sob suspeita durante a sua vida. Passou alguns anos nas cadeias da Ordem e os seus escritos foram queimados. Mas nunca foi provada uma heresia nos seus escritos.

4- VISÃO TEOLÓGICA DA HISTÓRIA EM OLIVI Pedro João de Olivi parte duma compreensão progressiva e espiritual

da história24. A história evoluiu progressivamente até alcançar a maturi-dade espiritual. Vê a história como um crescimento interior em direcção a uma forma de vida evangélica. Começa com um nível espiritual baixo e primitivo. Cada nova época significa um crescimento cada vez mais pro-fundo da fé, uma compreensão cada vez mais aprofundada do amor de Deus e uma vida cristã cada vez mais coerente com o espírito do Evan-gelho. Assim a história se vai realizando como um progredir em direcção —————

21 Cf. FLOOD, D., ut supra, p. 131 22 Cf., BURR, D., The Persecution of Peter Olivi, Philadelphia 1976; JANSEN, B.,

Die Seelenlehre Olivis und ihre Verurteilung auf dem Vienner Konzil, em Scholastik 10 (1935) p. 241-244; LECLERCQ, J., Orante, Paris 1064, p. 1o9-113; SCHNEIDER, T., Die Einheit des Menschen. Die anthropologische formel ‘anima forma corporis’ im sogen-nanten Korrektorienstreit und bei Petrus Joahnnis Olivi. Ein Beitrag zur Vorgeschichte des Konzils von Vienne, Münster 1973 (BGPhMA), Neue Folge 8).

23 Cf., FLOOD, D., The Theology of Peter John Olivi. A Search for a Theology and Anthropologiy of the Synoptic Gospels; OSBORN, K. B. (editor), The History of Francisca Theology, New York 1994, p. 127-184.

24 Cf. BENZ, Ecclesia... op. cit. p. 265-274; BENZ, Geschichtstheologie... op.cit. p. 92-99; STADLER, E., Offenbarung und Heilsgeschichte nach Petrus Olivi, em FS 44(1962) p. 1-12; MARCIL, G., Peter John Olivi and the Joachimistic Interpretation of History, em MCELRATH, D. (editor), Franciscan Christology, New York 1980, 108-138.

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a uma vida cristã em plenitude. Cada época é como uma semente escon-dida que prepara o nível espiritual da época seguinte25. Esta semente desenvolve-se num processo espiritual orientado pela fé, em ordem a uma época de plenitude. Assim de uma época mais baixa se vai desenvolvendo um tempo espiritual mais concreto. Olivi usa a imagem da mulher que dá à luz e que na dor gera vida nova26. Assim uma nova época nasce das dores da época anterior. Cada ser humano pertence a uma época e é res-ponsável pela semente que deve crescer e amadurecer em direcção à época seguinte. É a responsabilidade humana que decide se no fim duma época uma nova e mais madura época aparece ou se, pelo contrário, acontece um retrocesso espiritual. No fim deste processo de amadureci-mento histórico está uma humanidade verdadeiramente evangélica que apresenta o mundo a Cristo na Sua segunda vinda. Segundo Olivi há um milénio dos fins dos tempos, uma última e decisiva época. Nesse fim dos tempos será decidida a luta entre o bem e o mal, entre a mensagem cristã e o anticristo. Estes últimos tempos que serão de renascimento, dor, morte e ressurreição, inaugurarão um tempo novo sobre a terra, com uma época histórica totalmente nova. Este será um milénio verdadeiramente evangé-lico para todos os homens e povos. A justiça e a paz serão instituídas. A pobreza evangélica como forma de vida solidária trará o fim das injusti-ças.

Encontramos aqui uma variante socio-política orientada pelo Evan-gelho. Os crentes vão unir-se numa Igreja universal do Espírito, tornando real a palavra católica. O primado será subtraído à igreja feudal de Roma27 e passará para homens plenamente espirituais28. Estes últimos

————— 25 Como exemplo de texto cf. os escritos de Olivi aos filhos de Carlos II de

Nápoles, de 18 de Maio de 1295, publicados em EHRLE, F., Petrus Johannis Olivi, sein Leben und seine Schriften, em Archiv für Literatur und Kirchengeschichte des Mittelal-ters 3 (1887) p. 409-552, este texto n p. 534...: “Universitatis considerandi ordinem oc-currit multiformiter nimiumque admirabiliter lex Christi ierarchica ab ipso sollemniter promulgata videlicet: ‘Nisi granum sementi cadens in terra mortuum fuerit, ipsum solum manet, si autem mortuum fuerit multiplicem fructum affert’. In hoc enim fundatus est universalis unius est generatio alterius” etc…

26 Cf., ut supra p. 535: “Hac etiam lege mirifica Christ ecclesia fuit in utero syna-goge concepta et cum parturitione amara erupit et exivit ab ipsa.”

27 Sobre a atitude de Olivi em relação ao papado, escreve WAREN, L., Peter Olivi Prophet of the Year 2000. Ecclesiology and Eschatology in the lectura super Apocalip-sam. Tübingen 1972 (manuscrito não publicado do Arquivo do Colégio de S. Boaventura, Grottaferrata), p. 250; SCHLAGETER, J., Zur Genese der Unfehlbarkeits-doktrin. Stellungnahmen zur päpstlichen Lehrautorität von Bonaventura bis Ockem, em

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tempos serão iluminados por uma figura simbólica, o anjo apocalíptico do sexto selo. Olivi vê em Francisco de Assis esta figura simbólica29. Fran-cisco restaurou a imagem de Cristo neste mundo através da humildade e da pobreza. Ele é o primeiro representante deste mundo novo formado por homens espirituais. A sua pessoa e a sua regra são, para as formas de vida espirituais do novo milénio, o modelo evangélico de vida. Os homens são desafiados pelo exemplo de Francisco a abandonar o mal e a voltar-se para Cristo. Desta maneira a semente dos últimos tempos vai amadurecer até florir definitivamente. A visão histórica termina assim num desafio teológico e ético. Trata-se dum ressurgimento decisivo para o novo milé-nio, que será totalmente penetrado pelos valores espirituais do Evangelho.

Esta ideia progressiva e espiritual da história é completada com uma

visão trinitária30. A história do mundo e da humanidade é interpretada à luz da fé no Deus trinitário. A história como tal, e com ela o processo que a conduz até aos últimos tempos, tem na imagem teológica da Trindade a

————— VANDERHEYDEN, I. (editor), Bonaventura Studien zu seiner Wirkungsgeschichte, Werl, 1976 (franziskanische Forschung, 28, p. 113-135; Cf. SCHLAGETER, J., Die Kirchenkritik des Petrus Johanis Olivi OFM und ihre ekklesiologische und soziale Relevanz, em FS (1038) p. 19-34; SCHLAGETER, J., Im Konflikt mit der empirische Kirche. Die Suche nach Kriterien von Kirche bei Petrus Johanes Olivi und Wilhelm von Ockam, em FS 69 (1987) p. 88-105.

28 Cf. WAREN, L., Peter Olivi... ut supra, p. 246; Cf. sobre isto a edição ebd. de

PETER JOHN OLIVI, Lectura super Apocalipsam, cap. 21; p. 24 p. 981: “possunt etiam per reges intelligi spiritualis prelati”.

29 Cf. WARREN, Peter John Olivi, op. cit p. 180-187; sobre isto cf. PETER JOHN

OLIVI, ut supra cap. 10: 1-3, p. 560. “Sciendum etiam quod sicut sanctissimus pater noster Franciscus est post Christum et sub Christo primus et principalis fundator et ini-tiator et exemplator sexti status et evangelice regule eius, sic ipse post Christum desig-natur primo angelum istum. » ; Cf. FREYER, J. B., Homo viator – Der mensch im Lichte der Heilsgeschichte. Eine theologische Anthropologie aus franziskanischer Perpective, Kevelaer 2001(Publicado pela Academia de João Duns Escoto para a história e a espiritualidade franciscana, Mönchengladbach, 13, p. 254...

30 Cf. WARREN, Peter John Olivi, op. cit. p. 180-187; PETER JOHN OLIVI, op. cit. cp.7, p. 47: “Et ideo congrue representatur per subsequens tempus renovationis orbis per vitam Christi, in quo prior populus Judeorum, qui fuerat patris imago, et populus gentium, qui, postquam Christum suscepit, iam fere totus a Christ integra fide defecit et sub antichristo plenis deficet, restituentur et reviventur sub vitali et vivifico calore et lumine vite Christi per unicum et unitivum spiritum eius et sui patris. Status vero eterne glorie tribus temporis predictis succedens assimilatur unitati assentie trium personarum, quia ibi erit ‘deus omnia in omnibus’, et omnia unum in ipso.”

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chave de interpretação. Olivi, no seguimento de Fiore, fala dos tempos do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Pai revelou-se de maneira especial no Antigo e Novo Testamento através do poder criador e da lei. Deus Pai representa algo como o elemento estático desta visão histórica. Ele é a origem criadora da história que lhe proporciona ao longo do percurso a sua lei e os seus mandamentos. As leis divinas possibilitam uma ordem segura ao longo da evolução da história. O desenvolvimento progressivo da história não decorre no caos. O crescimento e amadurecimento de épo-cas históricas cada vez mais espirituais tem a sua ordem interior, mesmo quando em momentos específicos isso não seja tão claro. Esta ordem é garantida, desde as origens, por Deus Pai.

No Filho, Deus salvou o mundo31. Cristo, o Filho, realiza esta salva-

ção durante o processo histórico. Ele entregou-se a si mesmo nesta histó-ria. Na sua vida, morte e ressurreição o decorrer da história recebeu uma nova qualidade. Ele virá nos últimos tempos para levar todo o mundo à plenitude. O Filho revelou-se de forma visível no Novo ou Segundo Tes-tamento. Enquanto o Pai representa mais o elemento estático, o princípio da ordem no decorrer da história, revela-se no Filho o novo, o imprevisto que a todos vivifica. Por isso o Filho está mais relacionado com o ele-mento vital, o qualitativamente novo do processo histórico. Com isto Olivi não defende uma história evolutiva, mas uma história progressiva, na qual Cristo traz uma nova e mais alta qualidade de vida. Podemos falar aqui de um salto de qualidade espiritual que actua sobre a vida material ao longo da história. Em Cristo, a ordem e a lei são ultrapassadas.

————— 31 Sobre os aspectos cristológicos, cf. MARCIL, Peter John Olivi, op. cit. p. 112 ss.;

WARREN, Peter John Olivi, op. cit. p. 146, 154 ss., 247 ss.; Cf. Per John Olivi, op. cit, cp. 6, 40 ss.: “Quantum ad sextum, quare scilicet in qualibet quinque visionum priorum premittitur quoddan quod se habet ad sequentia continens triformiter scilicet causaliter et exemplarites et etiam collective, et quare non fit hoc in sexta et septima, dicenum quod, cum in visionibus huius libri agatur de primordiali ac medio et finali statu ecclesie, Christum autem, prout in principio et fine huius libri dicitur esse Alpha et Omega, id est principium et finis, per que tanquam per extreme subintelligitur quod ipse etiam est medium et mediator, satis decuit quod in hiis visionibus premittretur Christus tanquam radicale et fontale principium totius ecclesie et omnium statum eius, ac deinde quod in medio processus statuum refulgeret eius mediatio, et fine quod ipse est omnium consummator et finis”.

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O tempo do Espírito Santo32 está relacionado com o novo milénio, o fim dos tempos. Pela acção do Espírito a vida evangélica torna-se critério dum modelo de vida espiritual que assume a luta contra o mal, que vence o mal, o anticristo e instaura o tempo de paz e justiça, anúncio da vinda de Cristo que tudo leva à plenitude33. Assim o Espírito termina aquilo que Cristo começou na sua vida terrena. O elemento dinâmico e transforma-dor da história está relacionado com o Espírito. Através do Espírito esta visão da história recebe uma forte dimensão escatológica34. O Espírito prepara um fim de plenitude. Mas o Espírito não está activo só neste tempo final. Desde o princípio que o Espírito é a força mobilizadora que conduz o processo de amadurecimento ao longo de todas as épocas histó-ricas. Todas as épocas estão sob a influência dinâmica e dinamizadora do Espírito.

Temos assim nesta visão histórica à luz da Trindade, um elemento

ordenador que é representado pelo Pai, uma dimensão vital e uma vida qualitativamente nova representada pelo Filho e uma força dinâmica que leve o processo de amadurecimento até à plenitude, representada pelo Espírito. Para Olivi cada tempo e época realiza-se sob o signo da Trin-dade. A partir daí ele fala duma história de salvação deste mundo35.

5- O CONCEITO DE LIBERDADE EM OLIVI O homem nascido no tempo não é simplesmente arrastado pela tor-

rente da história. Não é levado como um pedaço de madeira pela corrente sucessiva das épocas. Ele está envolvido e embrenhado de maneira espe-cial no decorrer da história, no crescimento e amadurecimento das épocas históricas, sobretudo na luta entre o bem e o mal que anuncia o milénio final. É aqui que entra em jogo a liberdade humana. Antes de reflectirmos

————— 32 Para os aspectos pneumatológicos, cf. WARREN, Peter John Olivi, op. cit. p.

248-257; cf. PETER JOHN OLIVI, op. cit. cap. 2, 7, 193: “...secunda vero ulterius moveret per spiritualem flammam et efficaciam spiritus sancti.”

33 Cf. BURR, D., Olivi’s Peaceable Kingdom. A reading of the Apocalypse Commentary, Philedelphia, 1993.

34 Cf., EMMEN, A., Die Eschatologie des Petrus Johanes Olivi, em WiWei 24 (196), p. 113-144, 25 (1962) p. 12-48.

35 Cf., Schlageter, J., Das Heil der Armen und das Verderben der Reichen, Werl, 1989 (Franziskanische Forschung, 34), p. 40-47.

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sobre o sentido da liberdade na sua visão da história, devemos primeiro considerar o que Olivi entende por liberdade, qual a definição que lhe dá.

O conceito de liberdade em Olivi está relacionado com a sua antro-

pologia, isto é: a liberdade é a ideia central do sua antropologia36. Olivi concebe o homem a partir do espírito37. O espírito é a energia activa da vida (vigor actualis et activus)38. O espírito é vida pura, vitalidade e ao mesmo tempo simplicidade e interioridade39. É o espírito que unifica o material, o corporal e o penetra, vivifica e determina. O espírito como força vital e energia é livre, e porque no verdadeiro sentido da palavra é independente, com sentido de si mesmo e capaz de interioridade, isto é de autoconhecimento, de percepção de si e de autonomia. O espírito não é estimulado, mas, ao contrário, como energia vital é fonte de todo o movimento. Para Olivi o espírito não está em oposição ao material e cor-póreo. Espírito e matéria não se digladiam, pelo contrário, o espírito é o dinamismo vital da matéria e do corpo.

Torna-se claro que só o ser espiritual e volitivo é um ser humano vivo e em movimento. Pois que é o espírito que estimula o homem, que lhe possibilita aquela interioridade do autoconhecimento, da percepção de

————— 36 Cf. FREYER, Homo Viator... op. cit. p. 88-91; BETONNI, E. La libertá come

fondamento dei valori umani nel pensiero di Pier Giovanni Olivi, em Atti del XII Con-gresso Intern. di Filosofia, XI, Florença 1960; JANSEN, B., Ein neuzeitlicher Anwalt der menschlichen Freiheit aus dem dreizehnten Jahrh., Petrus Joh. Olivi, em PhJ 31 (1918) p. 230.238, 382-408; LANG, J., Eine Art Geist-Tiere? Überlegungen zur Freihteslehre des Petrus Johannis Olivi (+ 1298), em ROSSMANN, H./ RATZINGER, J. (editores), Mys-terium der Gnade. Festschrift für Johannnes Auer, Regenburg, 1975, 259-267.

37 Cf. FREYER, Homo Viator... p. 287-291. 38 Cf. STADLER, E., Psychologie und Metaphysik der menschlichen Freiheit. Die

ideengeschichtliche Entwicklung zwischen Bonaventura und Duns Scotus, Munique 1971 (Editado pelo Grabmanninstitut, Neue Folge, 12), p. 171 ss. Cf. PETRUS JOANNIS

OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, Volumen II Quaestiones 49-71, ed. Bernardus JANSEN, Quaracchi 19222 (Bibliotheca Franciscana Scholastica Meddii Aevi, V) q. 51, 109 (= QS II) : « Cum enim forma, in quantum forma, dicat vigorem actualem et activum, et maxime forma nobilissima et actualissima, qualis est forma par-tis intellectivae : ergo corpus habebit operationem intellectualem et liberam et potes-tatem intelligendi et volendi ».

39 Cf. QS II q. 58, 412: “Omnis enim actus trahit a sua causa effectiva rationes suae essentiae essentialissimas et nobilissimas. Summae auten rationes quae sunt in actibus mentis nostrae sunt ratio seu vivi et simplicitatis et intellectualitatis et consimiles. Actus enim intelligendi et volendi sunt per essentiam suam vivi et simplices et spirituales et intellectuales. »

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si40 e da autonomia que são as condições da liberdade. Talvez possamos dizer que esta dimensão espiritual do homem é condição do ser pessoa. O espírito confere ao homem a possibilidade de dizer eu, numa autoreflexão e autoconhecimento. Este centro do eu pessoal que se abre ao espírito é para Olivi a vontade, que se pode determinar a si mesmo. A vontade como centro do eu41, da autodeterminação ultrapassa em Olivi toda a cria-ção e torna o homem semelhante a Deus. O eu volitivo que de forma soberana determina a totalidade da própria alma, é a imagem de Deus. O facto do ser humano se poder determinar a si mesmo, toca a liberdade. Só a vontade que se pode determinar a si mesmo, possibilita que o ser humano se torne no que é. Só o homem pode ter vontade própria, ser livre, pode agir, pode-se autodeterminar, e tem capacidade de se relacio-nar com o mundo. O homem pode sair do seu mundo e debruçar-se sobre si mesmo e determinar a sua acção e o seu agir. Hoje falaríamos sobre aceitação de si mesmo. Além disso o homem pode reflectir livremente sobre si mesmo, a sua vontade e o seu agir. Pode determinar as suas acções por sua livre iniciativa e tomar decisões sobre a sua relação com o seu mundo ou negar-se a essas relações. Liberdade é para Olivi a capaci-dade soberana da vontade sobre si mesmo e suas iniciativas. Ele acentua: “O ser livre como tal é idêntico com a sua essência e está em condição de se autodeterminar e de ser livre no agir”42.

Para Olivi a vontade está unida ao coração43, o coração é o centro da

pessoa, o centro misterioso que integra todas as dimensões da vida. Olivi identifica a vontade com o coração. Coração e vontade são uma só coisa. O coração e a vontade formam uma instância íntima e espiritual que nenhum poder do mundo pode violar. Só eu posso dispor sobre o meu coração e vontade. Só a vontade livre determina a quem eu devo abrir o meu coração ou a quem não devo abrir. Mesmo sem liberdade exterior,

————— 40 Cf., BETTONI, E., Le dottrine filosofiche di Pier Giovanni Olivi, Milão, 1959, p.

399 ss. ; Cf., também QS II q. 57 ; SCHLAGETER, J., Die Auseinandersetzung zwischen griechischen und biblischen Menschenbild im franziskanischen Freiheitsverständnis des Petrus Johannnis Olivi (+ 1298), em WiWei 60 (1997), p. 65-86, com idicações a QS II q. 57, 325 ss..

41 Cf. STADTER, Psychologie..., op. cit, p. 179 ss., 195-206, com indicações de QS II, sobretudo q. 57.

42 Cf. QS II q. 51, 172: “et liberum, in quantum liberum, est idem quod potens dominari et libere agere”.

43 Cf. STADTER, Psychologie... op. cit., p. 200 ; cf. Qs q. 57, 330-335.

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continua este espaço interior do coração e da vontade, esta última liber-dade de abrir ou não abrir o coração a alguém. Chegamos assim ao cerne da teoria da liberdade de Olivi.

A verdadeira liberdade só existe para Olivi quando há decisão livre de se abrir ao outro num diálogo interpessoal. A pessoa livre está aberta em liberdade à relação44. Só a pessoa livre que voluntariamente pode dis-por do seu coração, capaz de se autodeterminar, é capaz e está em condi-ção de, por iniciativa própria, na gratuidade, ir ao encontro de um outro tu. A liberdade realiza-se e plenifica-se na relação gratuita com um outro tu45. A vontade livre, que se fecha em si mesmo em pura autodetermina-ção, definha e a liberdade torna-se em prisão de si mesmo. O ser humano que se fecha em si, torna-se escravo de si mesmo. Só a doação livre per-mite que a liberdade se torne realidade. Por isso para Olivi a amizade como expressão da doação de si é a expressão mais profunda e verdadeira da liberdade. A mais alta expressão e plenitude da liberdade é a amizade com Deus. A mais nobre expressão da liberdade é o amor46.

Este conceito de liberdade é para Olivi o fundamento da vida moral e pessoal. Liberdade como livre doação é a condição, isto é o fundamento indispensável da perfeição. Com a liberdade mantém-se ou desaparece todo o âmbito dos valores humanos. Para Olivi não há nenhuma ética ou direito, nenhuma vida social, nenhuma política, ou economia, nenhuma cultura ou religião sem liberdade. Tudo depende da questão da liberdade e tudo está ao serviço da promoção desta liberdade que essencialmente é autodoação na amizade. Por isso o objectivo principal da sociedade é educar para a liberdade47. Cada ser humano tem de crescer na liberdade, ao mesmo tempo que aprende, num processo espiritual, a orientar de maneira correcta a sua vontade e o seu coração, para ser capaz duma

————— 44 Cf. STADTER, ut supra, p. 202 ss.; SCHLAGETER, Auseinandersetzung... op. cit. p.

85 ss.. 45 Cf. QS II q. 57, 330: “Hinc etian est quod, quia nihil dicimus fieri gratis, nisi

quando operans hoc facit tanquam ab alio impulsus et modus, dona autem nunquam habent plene rationem doni seu liberalitatis, nisi fiant gratis et tanquam ex se, quod nunquam aliquam rem dicimus esse donatam, nisi manaverit ex libero et gratuito consensu, nec aliquem dicimus posse aliquid liberaliter dare nisi solum illum qui potest habere huismodi consensum. Et eadem ratio est quod nec rationem amici aut amicitiae atribuimus nisi solum illis qui ex consensu libero et gratuito suum amorem et etiam se ipsos per viam amicitiae suis amicis donant… sicut amicus dat se ipsum amico”.

46 Cf. Schlageter, Auseinandersetzung... op. cit. p. 80 ss.. 47 Cf. Bettoni, Dottrine filosofiche... op. cit., p. 403.

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autodoação. Neste sentido o ser humano não tem a sua liberdade, antes a deve adquirir e construir todos os dias. À medida que cresce progressiva-mente na doação livre é toda a vida que se desenvolve.

Para Olivi tudo isto não é mera teoria, mas tem incidência na prática, como mostrou quando reflectiu sobre a ética do crédito no comércio ban-cário da Idade Média48. Esta liberdade só traz resultados concretos no dia--a-dia, se o homem quiser dar ao seu mundo uma forma de vida espiritual. Desta maneira a liberdade não é só a base duma amizade pessoal e pri-vada, mas é também o fundamento da convivência, essencial na constru-ção da vida do estado e da igreja.

Jesus Cristo é o exemplo vivo do homem livre, que realizou plena-mente a sua liberdade na doação de si mesmo. Em Jesus Cristo o ser humano encontra o homem verdadeiramente livre49. Mesmo preso, sem liberdade exterior, condenado à morte, ele é o homem livre, com um coração capaz de perdoar aos seus algozes.

6- O SIGNIFICADO DA LIBERDADE NA SUA VISÃO DA

HISTÓRIA Este modelo de liberdade tem uma importância decisiva para a visão

da história. Como já vimos, Olivi parte duma compreensão progressiva e espiritual da história50. As épocas espiritualmente mais superiores, nas-cem da semente lançada à terra nas épocas anteriores. Esta tem de ser levada ao crescimento e à floração para que uma nova época possa desa-brochar51. Como já vimos, Deus Pai, origem deste crescimento espiritual progressivo, dá o seu mandamento, dá a sua lei, o Filho de Deus que representa a nova dimensão vital e o Espírito a dinâmica necessária. Neste processo histórico de amadurecimento espiritual, o crescimento na liber-dade é o contributo que o ser humano pode dar. Na medida em que o homem duma época valoriza a sua liberdade, está a favorecer o cresci-mento e o amadurecimento da semente de uma nova época mais espiri-—————

48 Cf. SPICCANI, Amleto: La mercatura e la formazione del prezzo nella riflessione teologica medievale, em Me. Sc. Mor. Stor. Fils. 20 (1977), p. 127-293 ; Pietro Gio-vanni Olivi, Verso una nuova età. Chiese, società, economia, em Zenit 4 (1989), p. 1-38; ZAVALLONI, R., L’uomo e il suo destino nel pensiero francescano, S. Maria degli Angeli 1994, p. 315, ss..

49 Cf. MARCIL, Peter John Olivi…, op. cit., p. 112 ss.. 50 Cf. WARREN, Peter John Olivi, op. cit. p. 140. 51 Ut supra, p. 143.

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tual. O desabrochar duma nova época está, por isso, dependente da doa-ção livre dos seres humanos. A liberdade na doação é o elemento decisivo para originar uma nova época52. Olivi não considera isso só ao nível da piedade. Não se trata duma espiritualização do mundo e da história, mas de que o mundo e a história sejam penetrados pelo espírito. Uma época nova e mais espiritual cresce da liberdade que o ser humano comprome-tido transmite para a sociedade, a cultura, a economia e a política. A falta de liberdade, isto é, a falta de doação de si, leva à decadência, enquanto que a liberdade da doação de si mesmo leva a um triunfo cada vez mais evidente do espírito no mundo e na história e faz crescer o nível espiri-tual. É opinião de Olivi que bastam poucos justos para fazer crescer o nível espiritual. A doação livre de um único justo, Jesus Cristo, foi o sufi-ciente para salvar o mundo.

A liberdade favorece não só o nível espiritual duma época mas, uma

vez que aponta para a amizade, favorece também um crescimento harmó-nico da humanidade. Mais ainda, uma vez que a liberdade coloca a ami-zade com Deus no caminho da história, fortalece a união com Deus. À medida que cresce o nível espiritual duma época, sobe também o grau de possibilidade da liberdade humana até chegar à plena realização nos últi-mos tempos. Nas épocas de nível espiritual mais baixo, também é mais limitada a possibilidade de realização da liberdade humana. Mas na medida em que esta é vivida, apesar das possibilidades e as limitações que tem pela frente, favorece não só o crescimento espiritual da história, mas contribuiu também para alargar o espaço onde a liberdade é possível. Assim os homens tornam-se essencialmente livres. No novo milénio, nos últimos tempos, tanto a história como a liberdade serão levadas à perfei-ção. Nesta última etapa da história, o ser humano crescerá na liberdade em direcção às puras formas da relação com Deus e da doação a Deus. Assim realiza-se a época da história do mundo na doação absoluta e livre dos seres humanos a Deus.

—————

52 Cf. por ex. PETER JOHN OLIVI, op. cit. cp. 9, 75: “Datur etiam alio ratio. Ne si prior status omnino desineret ante initium sequentis, desolaretur terra a lumine utriusque. Est etiam et quarta. Aliquando enim inchoatur sequens ante finem prioris, ut probetur et impugnetur a zelatoris primi; et hac ratione Christus cepit statum suum sub veteri lege, et sextus status cepit sub fecibus quinti. Aliquando vero sequens inchoatur ante finem prioris et perfecionis, ut sequentis initium exemplaris et plenius participet perfectionem prioris”.

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Olivi vê em Francisco o anúncio do último milénio, como uma época que encaminha a história para a realização plena. Francisco que viveu na total doação a plenitude da sua liberdade no espírito do evangelho e no seguimento de Cristo, é o modelo do homem livre para a doação e a ima-gem viva que anuncia a segunda vinda de Cristo. Segundo Olivi para entrar no novo milénio é preciso seguir Francisco, isto é, desejar com toda a liberdade aquela doação que torna Cristo presente.

Aqui a liberdade como doação de si identifica-se com a renúncia à

posse das coisas. Apropriação, a obsessão pelo ter é o contrário da liber-dade. Totalmente identificado com o pensamento do fundador da sua Ordem, Olivi liga o sentido da liberdade com a ideia de pobreza enten-dida como desapropriação53. Esta ideia de liberdade traz como conse-quência que não nos devemos apropriar das coisas deste mundo, de tal forma que os outros delas fiquem privados. Apropriar-se dos bens, esque-cendo-nos dos outros e de Deus, mata a liberdade como doação de si. Para Olivi a pobreza franciscana ou, na linguagem de hoje, a solidariedade é irmã da liberdade54. É precisamente nesta relação, onde a liberdade anda ligada à solidariedade e não ao egoísmo, que Olivi lança as bases das transformações sociais. Os bens e as riquezas deste mundo devem estar ao serviço de todos. Assim esta visão da história fundada num crescendo de conteúdo espiritual é um desafio concreto a um compromisso cada vez maior pela realização da justiça neste mundo. Esta liberdade orientada para o amor oferece uma alternativa cristã ao egoísmo e ao domínio brutal de alguns ricos que concentram em si todas as riquezas. O desabrochar dum novo milénio, significa também, segundo Olivi, o desabrochar duma ordem social mais justa.

7- RESUMO Nesta visão de Olivi fica claro que a história não é uma evolução

pura onde o ser humano anda à deriva. Neste sentido história entende-se como espaço onde se realiza uma aliança entre Deus e o ser humano. A história está nas mãos de Deus. De Deus recebe a ordem, a vida nova e uma dinâmica que a encaminha para a perfeição final. O ser humano tem a sua parte de responsabilidade. A história também foi depositada nas —————

53 Cf. FREYER, Homo Viator... op. cit. p. 290. 54 Cf. SCHLAGETER, Auseiandersetzung... p. 85.

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suas mãos. O ser humano é chamado por Deus para a liberdade, para uma colaboração específica. O ser humano realiza esta liberdade na medida em que se compromete com o mundo, com o seu semelhante e com Deus. Quanto mais o homem dá de si mesmo ao mundo e à história, quanto mais se compromete na história concreta, mais se encontra consigo mesmo, mais realiza a sua liberdade. A realização da liberdade humana anda inti-mamente ligada à configuração do futuro. O desabrochar dum novo milé-nio tem pouco a ver com uma data concreta. Não pretende prever o fim do mundo nem tem a ver com uma mentalidade de destruição, mas com os últimos tempos que são já hoje realidade palpável e que exigem a colabo-ração de todas as forças do coração e da vontade com vista a preparar a realidade futura da vinda do Senhor. Este desabrochar dos tempos novos está relacionado com o desenvolvimento da liberdade humana até à sua total maturidade. Esta maturidade desafiadora da liberdade humana desenvolve-se em várias dimensões da vida pessoal e pública. São estas dimensões que ajudam a perceber a actualidade deste autor da Idade Média.

A dimensão pessoal da liberdade: A dimensão pessoal é caracteri-

zada pelo conhecimento de si próprio, pela capacidade de autoreflexão e pela doação de si mesmo. Trata-se de uma abertura à dinâmica da acção do espírito que integra todas as dimensões do coração e da vontade. Par-tindo da presença viva do espírito no centro da pessoa, no coração e na vontade, todas as dimensões da vida são dinamizadas em vista a alcançar a meta da plenitude cristológica. O objectivo é o homem espiritual.

A dimensão da fé: O coração e a vontade, estimulados e orientados

pela fé, devem-se motivar e deixar-se conduzir pela força dinâmica do Espírito de Deus, e abrir-se totalmente à plenitude da vida em Cristo. Trata-se de orientar a vida de acordo com a lei divina.

Dimensão eclesial: A primazia está, segundo Olivi, no Espírito que

sopra onde quer55. Na nova ordem do reino de Deus, deve-se desejar uma

————— 55 Cf. Peter John Olivi, op. cit. cap. 2: 7, 193 ss.: “Nota etiam quod in prima

dirigitur sermo Christi ad episcopum; in secundo vero sermo spiritus sancti dirigi ad ecclesias, cuius prima ratio est, quia episcopus gerit vicem et imaginem Christi tanquam pastor et sponsus ecclesiae vice eius: ecclesia vero gerit formam spose per Christi spiritum fecundae et sanctificate. Secunda est, quia sicut episcopus habet auctoritatem in

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realização espiritual da fé, onde se dá uma actualização radical do ideal evangélico. O cargo torna-se serviço à acção do Espírito, onde se valoriza a presença do Espírito em todos os fiéis. A Igreja não será mais pensada como o rebanho dos fiéis orientado pela hierarquia, mas entendida a partir da acção dinâmica do Espírito de Deus, de onde os cargos eclesiásticos recebem a luz. Em primeiro plano não está tanto a desejada obediência da fé perante o único e autêntico magistério, mas a vivência dos valores evangélicos, vividos pela força do Espírito, que encaminham todo o povo de Deus, sob a orientação e exemplo do magistério para o encontro defi-nitivo com Jesus Cristo, o Senhor da história.

Dimensão social e política: A configuração do mundo entende-se a

partir da responsabilidade de cada um. O objectivo é conseguir uma igualdade económica entre ricos e pobres, o combate pela justiça e o fim da pobreza através duma autêntica solidariedade.

Traduziu Fr. José António Correia Pereira

————— ecclesiam et ipsa sequitur ipsum ut primum et primatem, sic Christus habet originalem auctoritatem in spiritum sanctum et spiritus sanctus se habet ad eum sicut ad suum originale principium, quanvis nulla sit superioritas aut, subiectio sicut est illic”.