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ANAIS DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PRÁTICAS RELIGIOSAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO Laboratório de Estudos sobre Religiões e Religiosidades (LERR) Universidade Estadual de Londrina (UEL) 20 a 22 de setembro 2016

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ANAIS DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PRÁTICAS

RELIGIOSAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Laboratório de

Estudos sobre Religiões e Religiosidades (LERR)

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

20 a 22 de setembro

2016

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In: Seminário Internacional de Práticas Religiosas No Mundo Contemporâneo (LERR/UEL), 4, 2016, Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2016.

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REPRESENTAÇÕES DA MORTE NAS PRÁTICAS IURDIANAS

Wander de Lara Proença (UEL-PQ) 1 Resumo: Quase que por ironia, o movimento que iniciou suas atividades em 1977 nas instalações de uma funerária, adotou um comportamento bastante peculiar em relação à morte, quando comparado às tradições de origem judaico-cristãs ou africanas. Estudos referenciais de Philippe Ariès e João José Reis demonstram o significado valorativo devotado à morte nas práticas do cristianismo, na longa duração histórica, ao ponto de, até o período Oitocentista, sepultamentos ocorrerem no interior de templos católicos, sacralizando uma íntima relação entre os mundos de vivos e mortos. Rompendo incisivamente com estas representações, a IURD associa a morte ao demônio; não realiza rito fúnebre quando do falecimento dos seus fieis, nem noticia o ocorrido; concebe o cemitério como lugar sob controle de forças do mal – daí porque em seu discurso muitas das ações demoníacas que afligem os que recorrem a seus templos são associadas a algum rito maléfico realizado naquele espaço obituário. Uma das explicações possíveis para esse comportamento iurdiano reside na concepção de ser a morte um incômodo sinal de que os ritos da igreja não foram capazes de assegurar aos devotos o livramento de uma enfermidade ou de um acidente fatais, ou seja, a morte resulta do fracasso de uma fé que foi insuficiente para impedi-la ou adiá-la. Estas e outras possibilidades interpretativas são abordadas nas reflexões desse artigo. Palavras-Chaves: Morte. Representações. Práticas. IURD. INTRODUÇÃO

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) promove significativas mudanças

em relação à “geografia do Além”, assim como nas relações entre “a sociedade dos vivos e a

sociedade dos mortos” (LE GOFF, p.63). Curiosamente, a igreja que nasceu numa antiga

funerária mantém absoluto silêncio ou indiferença - quando não, atitudes combativas - em

relação ao temário da morte.

Em suas três primeiras décadas de existência, podem ser destacados como

principais aspectos do comportamento iurdiano: primeiro, a ausência de discurso em relação à

morte, como geralmente ocorre nos demais segmentos cristãos - que priorizam em suas

formulações escatológicas uma ênfase tanto na preparação vigilante para a chegada da morte,

quanto nas expectativas criadas para o advento apocalíptico em que se apregoa a ressurreição

de mortos -; segundo, a antecipação para o “terrestre presente” das benesses do paraíso,

tradicionalmente projetado pelo cristianismo para a vida futura; e, terceiro, a antecipação das

representações do inferno para o mundo presente, expressas nas ações atribuídas ao demônio.

As descrições feitas pela IURD do que o demônio faz na vida das pessoas

apontam para ações que o cristianismo normalmente projetava para o mundo pós-morte.

Jacques Le Goff, quando descreve as representações do inferno no mundo medieval, cita, por

1 Doutor em História. Professor da Universidade Estadual de Londrina. E-mail de contato: [email protected]

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exemplo, “torturas sobre o corpo, gritos, urros, vociferações espetaculares e aterradores” (LE

GOFF, p.67), provocadas pelos demônios. O segmento iurdiano toma essas imagens

projetadas para o futuro e as antecipa, identificando sua ocorrência principalmente nos ritos

dos terreiros de matriz religiosa africana. As sessões de exorcismo, inclusive, feitas no

templo, encarregam-se de reproduzir tais representações, tornando-se momentos estratégicos

para demonstração de que o diabo já está antecipando para o tempo presente, o que

anteriormente se costumava projetar para o devir.

Jacques Le Goff também mostra que o conjunto gestual medieval proposto para o

cristão se caracterizava pelo gesto da “subida e o da interiorização; uma atração do alto e

interior”. Na Igreja Universal, há uma inversão: as representações estão voltadas para “baixo”,

para o terreno, para o plano material e para o “exterior”, o que é demonstrado na ostentação

de riquezas, saúde e prosperidade financeira. Esse “terrestre presente” também promove uma

alteração na própria escatologia cristã: na IURD, ao invés da “nova Jerusalém” - descrita

como a cidade celestial, na mensagem do Apocalipse, capítulo 22 – a ênfase recai sobre a

Jerusalém atual, geograficamente localizada no continente asiático; essa é que tem valor

simbólico, razão porque se tornou centro de peregrinação de líderes e fieis iurdianos, seja para

a realização de ritos ou como fonte de transposição para o solo brasileiro de objetos

representativos da cidade santa. O ícone dessa simbologia é a recente e suntuosa construção,

na capital paulista, da ensejada réplica do Templo de Salomão.

VIVÊNCIAS DA MORTE NAS TRADIÇÕES AFRO E CRISTÃ

Em relação à morte, inegavelmente é um bem simbólico valorativo na cultura e

religiosidade brasileiras, ocupando, na longa duração histórica importante espaço na vivência

da fé, sobretudo nas tradições cristãs e de matriz africana. O historiador Philippe Ariès, em

referencial pesquisa sobre as atitudes do ser humano diante da morte, no Ocidente católico -

entre a Idade Média e meados do século XVIII - destaca uma relação de proximidade entre

vivos e mortos. Usa a expressão “morte domesticada” para se referir à maneira como

parentes, amigos, irmãos de confrarias e vizinhos acompanhavam no quarto dos moribundos

seus últimos momentos. Observa também, como prática característica, a partir do século V, o

costume cristão de se enterrar os mortos no interior das igrejas que frequentavam ou em

cemitérios absolutamente integrados à vida da comunidade.

Essa prática cultural-religiosa de proximidade e inter-relação entre os mundos dos

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vivos e dos mortos fincou também raízes no Brasil desde o período colonial. O historiador

João José Reis afirma que na Bahia da primeira metade do século XIX havia “uma sociedade

em que coabitavam os vivos e os mortos, em que o cemitério se confunde com a igreja no

coração da cidade” (REIS, 1991, p.73). Destacando a existência de “uma cultura funerária

com as características de raízes em Portugal e África”, fala que em ambos os lugares

prevalecia a ideia de que o indivíduo devia se preparar para a morte, arrumando bem a sua

vida, cuidando de seus santos de devoção ou fazendo sacrifícios a seus deuses e ancestrais:

Tanto afr icanos como portugueses eram minuciosos no cuidado com os mortos [ . . . ] Em ambas as t radições aconteciam cer imônias de despedida, vigí l ias durante as quais se comia e bebia com a presença de sacerdotes, famil iares e membros da comunidade. Tanto na Áfr ica como em Portugal , os vivos – e quanto maior o número destes melhor – mui to podiam fazer pelos mortos, tornando sua passagem para o além mais segura, def in i t iva, até alegre [ . . . ] . Os mortos ganharam maior importância no catol ic ismo popular , a inda impregnado de for tes componentes mágicos e pagãos (REIS, 1991, p.90).

Reis observa que os africanos mantiveram no Brasil muitas de suas maneiras de

morrer, mas também incorporaram maneiras portuguesas. Isso se deveu em grande parte à

repressão da religião africana no Brasil escravocrata, mas também à dramaticidade ritualista

dos funerais portugueses que se aparentava à dos africanos (REIS, 1991, p.91).

Esse autor também se refere à tradição de sepultamento dos corpos no interior dos

templos, mantendo um convívio com os vivos: “Por mais de dois mil anos tinha sido direito

de ricos e pobres, senhores e escravos a sepultura no interior dos templos”, acrescentando-se

que ficavam excluídos dessa graça “só os hereges, pagãos, excomungados, pecadores

públicos, autores de crimes hediondos” (REIS, 1991, p.267). Católicos buscavam o

sepultamento não apenas dentro dos templos, mas preferencialmente perto do altar ou dos

santos – posição geográfica essa definida pela condição social do sepultado.

Esse mesmo autor, em artigo publicado na obra História da vida privada no

Brasil, intitulado O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, analisa detalhadamente ritos

fúnebres praticados pelos africanos no país ao longo do século XIX. Destaca que os africanos

recriaram práticas funerárias de seus países de origem. As cerimônias eram chamadas de

sentinela e não de velório, marcadas por cortejos, músicas, danças, capoeiras, acrobatas,

comidas e bebidas; os sepultamentos ocorriam ao pôr-do-sol - numa metáfora para o fim da

vida ou associação com o sono - daí a procissão com luzes. Acrescenta o autor: “[...] enquanto

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do lado de dentro acontecia a cerimônia de sepultamento, nos moldes católicos, do lado de

fora fervia a celebração ao estilo africano” (REIS, p. 121-122).

Fei tos de velas e pobres, além de outros elementos, esses funerais em grande est i lo [ . . . ] funcionavam como uma solução para a dor dos sobreviventes [ . . . ] Além de mui tos padres, todo funeral respei tável devia ter orquestra [ . . . ] A celebração da morte dispensava o s i lêncio: os pobres rezavam em voz al ta, as carpideiras pranteavam, os músicos tocavam, o sacr istão repicava o s ino. (REIS, p. 119, 120).

O cortejo e a pomposidade eram fundamentais, pois “a saída triunfante do mundo

dos vivos anteciparia uma entrada equivalente no Além” (REIS, p. 124). Levavam o morto

pelos lugares que ele mais havia frequentado em vida. Os enterros eram realizados de

preferência perto da casa do falecido e em terreno sagrado.

Esses grandes funerais-festas além de homenagem e pedido de proteção aos

mortos, eram também para “pressionar os dignatários celestiais a receberem bem o morto”

(REIS, p.120). Participavam diretamente parentes, vizinhos, irmandades, passantes pelas ruas;

a capacidade de mobilizar muita gente era sinal de prestígio do morto e família e ao mesmo

tempo “proteção extra para a alma do defunto" (REIS, p.116). Reis enfatiza que a “boa morte”

era necessária para que houvesse uma vida boa após ela. O ritual funerário tornava-se, por

conseguinte, muito importante. Daí a estratégia de vínculo ou pertencimento a irmandades

católicas, pois era uma forma de garantir um enterro digno.

Na tradição africana, o vínculo com o mundo dos mortos ocorre também pela

concepção de “família intergeracional”. O historiador Robert Slenes em sua obra Na senzala,

uma flor: esperança e recordações da família escrava - Brasil Sudeste, século XIX, cita o

depoimento de um viajante estrangeiro que, ao passar pelo Brasil no século XIX, registrou em

seu diário a existência de um fogo aceso diuturnamente nos lares dos africanos: “Na choça do

cativo ardia um fogo, que era mantido permanentemente aceso mesmo nos dias mais quentes -

Robert Walsh, 1840” (SLENES, 1999, p.240). O fogo era um símbolo mediador dessa

temporalidade intergeracional, representando o vínculo com os ancestrais; ao ligar o lar aos

lares ancestrais, contribuía para manter a linhagem dos vivos e dos mortos. Acrescenta Slenes:

No Brasi l , o fogo domést ico dos escravos, além de esquentar, secar e i luminar o inter ior de suas moradias, afastar insetos e estender a vida út i l de suas coberturas de colmo, também lhes servia como arma na formação de uma ident idade compart i lhada (SLENES, 1999, p.256)

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Esse significado espiritual, que mantinha ligação com o mundo dos espíritos, também se observava no cotidiano do trabalho: “No campo onde as mulheres trabalham sempre se acende um fogo com um tição que elas trazem consigo do fogo doméstico” (SLENES, p.245). Isso representava um tipo de proteção (“medicina”) dos espíritos no local de trabalho, ou mesmo proteção aos filhos. O fogo também tinha um papel representativo importante no momento da morte: os africanos tiravam um tição para colocar nas mãos dos que estavam prestes a “viajar” através do kalunga para a própria terra dos ancestrais; o tição de fogo sagrado chamaria os espíritos dos parentes mortos para conduzi-lo com segurança ao outro mundo (SLENES, p.254).

Tanto em relação às crenças de matriz africana, quanto no kardecismo, em

período mais recente, há em suas práticas, portanto, fortíssimos vínculos estabelecidos entre o

mundo dos vivos e dos mortos. Por meio de seus rituais, acredita-se que o médium estabelece

contato com o mundo além, comunicando-se com espíritos dos que já morreram.

Em relação ao protestantismo que se desenvolveu no Brasil, também se

configuraram representações muitos fortes voltadas ao chamado “celeste porvir”. Para isto

dava-se grande ênfase nas prédicas à mensagem de conversão visando preparar o indivíduo

para a vida do além-pós-morte. Houve igualmente especial cuidado com o local de

sepultamento, construindo-se inclusive cemitérios próprios, em razão de conflitos com o

catolicismo local, sobretudo no século XIX, razão porque esses “cemitérios protestantes” são

até hoje encontrados, por exemplo, na capital e em cidades do interior do Estado de São

Paulo, assim como na região Sul do Brasil.

Esse cuidado para com a morte, e os mortos, decorre da herança protestante,

especialmente norte-americana. Naquele contexto, não obstante os esforços empreendidos a

partir da Inglaterra, por autoridades anglicanas e pastores calvinistas, visando a simplificação

ritualística dos funerais, acabou prevalecendo a resistência do povo: “os cadáveres geralmente

deixaram de ser enterrados no interior das igrejas, mas permaneceram ocupando seus adros,

sinal de resistência ao distanciamento entre vivos e mortos”. Por esse motivo, na Nova

Inglaterra, “no século XVIII, a maioria dos cemitérios se aproximou dos templos e os

funerais, antes de chegarem ao cemitério, paravam na igreja onde o pastor fazia um sermão

fúnebre, conclamando os presentes a abandonarem seus pecados” (REIS, 1991, p.80).

Sobretudo nas regiões interioranas do Brasil, a morte ainda hoje consiste num

momento acercado de procedimentos quase que litúrgicos, que rompe a fronteira do privado

para tornar-se público: parentes, vizinhos e até estranhos têm acesso livre ao interior da casa e

ao leito do moribundo, denotando solidariedade própria dessas horas. Todos, de algum modo,

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revezam-se na preparação para a morte, na preparação do corpo, no velório e no enterro. Esse

envolvimento comunitário expressa a concepção de que, embora o morto seja da família, a

morte, ao contrário, é assunto da comunidade.

O COMPORTAMENTO IURDIANO EM RELAÇÃO À MORTE

A IURD, entretanto, promove em suas práticas alteração destas representações.

Em relação às práticas de matriz africana, em particular, é notável essa ruptura. Desde o início

de suas atividades, o movimento iurdiano tem nas crenças afro-brasileiras sua grande

plataforma de observação, que serve para a construção de seu discurso, seja para combater ou

mimetizar. Assim, nesse quesito, optou por desprezar por completo um bem simbólico do

campo religioso brasileiro.

Esse posicionamento da IURD, que confronta um habitus incorporado no campo

religioso brasileiro, pode ser observado nas próprias atribuições dos pastores. Em seu

regimento interno, artigo 32, que trata das funções do pastor, não há nenhuma menção à

assistência às famílias enlutadas. Em outras igrejas evangélicas é comum os pastores

dirigirem ofícios fúnebres nos velórios, templos, casas de família ou cemitérios. Já os pastores

iurdianos, simplesmente se calam diante da morte.

Os procedimentos da IURD quando do falecimento de algum de seus membros,

seguem um discreto roteiro: estando ainda hospitalizado, o doente - nos casos em que há

solicitação da família – recebe a visita de um dos obreiros da Igreja, que faz oração pela cura

do enfermo, desafiando-lhe a acreditar que é possível ocorrer um milagre. Em havendo o

óbito, após liberação do hospital, a própria família realiza o funeral do corpo em local

convencional do setor público; não há rito religioso feito pela igreja ou presença do pastor no

ato, nem mesmo se noticia no púlpito, boletim ou jornal da igreja. Nesse sentido, chama a

atenção o que ocorre com o jornal Folha Universal – órgão oficial da igreja, com tiragem

semanal de milhões de exemplares -: nele não se encontra uma nota sequer referente a

falecimento de membros da igreja, fato que é bastante comum em outros jornais ou boletins

evangélicos.

São oportunas as observações feitas por Philippe Ariès sobre as mudanças de

comportamento diante da morte no mundo contemporâneo:

Hoje, nos hospi ta is, e c l ínicas em part icular , não há mais comunicação com o moribundo. Ele não é mais escutado como

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um ser racional , é apenas observado como um caso clín ico, isolado, na medida do possível , como um mau exemplo [ . . . ] Na medida do possível , e le se benefic ia de uma assistência técnica mais ef icaz que a companhia cansat iva de parentes e vizinhos. Mas tornou-se, ainda que bem cuidado e por mui to tempo conservado vivo, uma coisa sol i tár ia e humi lhada (ARIÈS, 1977, 298, 299).

Quais seriam as razões para tais silêncios? Uma das possibilidades explicativas

é que, procurando ser coerente com a teologia da prosperidade - que prega o usufruto de

saúde, riqueza, bem-estar e vida longa - a mensagem iurdiana demonstra grande dificuldade

para lidar com qualquer situação que lembre “fracasso”; a morte representa um tipo de derrota

de todos os procedimentos ritualísticos criados pela igreja para conferir aos seus fiéis o

sentimento de êxito e sucesso.

Outro aspecto é que a morte, a dor e o sofrimento - situações-limite da vida

humana - na cosmovisão iurdiana estão assim diretamente associadas à atuação do demônio.

De forma recorrente, tanto em suas reuniões como nos programas de rádio e TV, é citado o

texto bíblico de João 10:10, que diz: “O Diabo veio para matar, roubar e destruir”. Em um

depoimento ao programa de televisão “Em que posso te ajudar?”, exibido pela TV Record,

um recém-convertido à IURD enfatizou a morte como tragédia provocada pelos demônios

contra a sua família, antes de sua conversão à Igreja:

Eu não conhecia a Deus. Por isso, t rabalhos de bruxar ia e fe i t içar ia t rouxeram desgraças contra a minha famí lia, me fazendo perder um bom emprego que possuía, mas pr incipalmente, perder minha i rmã doente no hospi tal e um i rmão em acidente de carro. . . Em busca de ajuda, recorr i aos terrei ros para fazer “ trabalhos” que pudessem desfazer o mal que estava contra mim.. . Mas vi as coisas cont inuarem indo de mal a pior . . . Até que conheci a Igreja Universal e tudo mudou na minha vida.. . (PROGRAMA DE TV, 2005).

Igualmente os hospitais são vistos como espaços de atuação de “concorrentes” -

médicos e enfermeiros, que disputam pelos meios da ciência o controle sobre os corpos

daqueles que deveriam recorrer aos meios sobrenaturais disponibilizados pela Igreja para a

solução de seus problemas. Por isso, o cofundador da IURD, o missionário R.R. Soares,

quando interrogado sobre a função dos médicos respondeu: “Alguém uma vez me disse, ‘mas

Deus não colocou os médicos no mundo?’ Eu respondi: É verdade. Ele é tão bom que pensou

nos crentes incrédulos.” (SOARES, 1987, p.40) Soares apresenta sua própria experiência

como argumento:

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Um dia l i o l ivro 'O Nome de Jesus', de Kenneth Hagin. Acabei de lê-lo no dia 2 de dezembro de 1984 e de lá para cá nunca mais tomei um comprimido sequer, com exceção de um ant iácido que tomei quinze dias após, numa madrugada, por causa de uma indisposição estomacal (SOARES, 1987, p.16).

Também está associado a essa mensagem de “vida abundante”, fundamentada na

teologia da prosperidade, o fato de que gastar o dinheiro com médicos e remédios é algo

profano, afinal esse recurso teria melhor utilidade se destinado às finalidades da Igreja.

Assim, nas práticas da IURD os médicos acabam desempenhando um papel importante

apenas em duas circunstâncias: para diagnosticar a doença e, posteriormente, constatar a cura.

Em relação ao primeiro caso, os profissionais da medicina servem para demonstrar os limites

da ciência, emitindo pareceres de que alguém está “desenganado” pela medicina. Isto fica

bastante evidente quando, depois de ter procurado a Igreja e recebido o “milagre”, o fiel

enfatiza em seu “testemunho” que conseguiu êxito quando “não mais havia recursos

humanos” para a solução do problema. No segundo caso, a figura do médico é novamente

utilizada como prova do “milagre alcançado”, ou seja, é comum se observar afixados nos

templos ou expostos nos programas de TV laudos ou atestados médicos comprovando que

determinado fiel não mais é portador da antiga enfermidade que o acometia.

Outro fator importante diz respeito às representações que envolvem o cemitério.

Tido como “campo santo” ou extensão da própria igreja no Brasil colonial ou imperial –

sendo por isso mesmo agregado aos templos na longa tradição do Brasil católico – este espaço

passa a ser visto pela IURD como “lugar de maldição”. Para detectar a origem do mal ou dos

trabalhos de feitiços praticados contra as pessoas que recorrem aos seus templos em busca de

ajuda, a Universal emprega com frequência os seguintes diagnósticos: “foi feito um trabalho

espiritual com terra de cemitério”; “alguém, tomado de inveja e de maldade, pegou terra de

cemitério e jogou no quintal da sua casa ou no pátio da sua empresa” – costumam alertar os

pastores. Assim, como parte de sua atividade, pastores e obreiros periodicamente deslocam-se

até aos cemitérios, às vezes durante a noite, para travar uma “batalha espiritual” e desfazer os

trabalhos de feitiçaria realizados naquele local contra a vida de pessoas que passaram a

frequentar os seus templos.

Também por essas razões no túmulo de adeptos da IURD não se observa nenhuma

representação imagética que lembre, por exemplo, os costumes católicos. Uma sepultura

comum, sem inscrições lapidais ou ornamentação sacra, é o modelo normalmente adotado. A

ida ao cemitério no Dia de Finados - outro costume religioso presente no contexto brasileiro -

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também só ocorre com um propósito: entregar panfletos evangelísticos e fazer convite para

que as pessoas compareçam à igreja. Em síntese, o cemitério é visto como representação viva

das mazelas realizadas por aquele que “veio para matar, roubar e destruir”, o Diabo.

CONCLUSÃO

Concluindo, vale citar o depoimento de Mário Justino, um ex-pastor da IURD. Em

livro de sua autoria, narra um episódio pitoresco envolvendo sua mãe, que frequentava um

dos templos iurdianos no Rio de Janeiro. Seis meses após o falecimento dela, a família teria

recebido uma carta do pastor, redigida nos seguintes termos:

Prezada i rmã: ul t imamente temos sent ido a fa l ta de sua preciosa presença nos cul tos de louvores ao Divino Espír i to Santo. Lembre-se: “resist i ao diabo e ele fugirá de vós”. Espero ver -te na próxima Ceia do Senhor. Paz seja convosco. Seu escravo em Cristo, Pastor Ricardo Pelegr ini . P.S: O díz imo da i rmã está atrasado em cinco meses. (JUSTINO, 1995, p.65)

E, por fim, cabe ainda dizer que, decorrido um tempo de mais de quatro décadas

de existência, a IURD passa agora a conviver com novas realidades e desafios, sendo um

deles bastante emblemático: o envelhecimento dos líderes fundadores e da primeira geração

de fieis. Para atender a essa emergente demanda, haverá então o movimento irudiano de

redefinir suas práticas e (re)significar representações de um tema até aqui demonizado ou

mantido sob indiferença e silêncio, a morte?

REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

JUSTINO, Mário. Nos bastidores do Reino. A vida secreta na Igreja Universal do Reino de

Deus. São Paulo: Geração Editorial, 1995.

LE GOFF, Jacque. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições

70, 1983.

PROENÇA, Wander de Lara. Sindicato de mágicos. Uma história cultural da Igreja

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Universal do Reino de Deus. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

PROGRAMA de TV. Em que posso te ajudar? São Paulo, Rede Record, veiculado em 10 de

maio 2005.

REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

______. O cotidiano da morte no Brasil Oitocentista. In: NOVAIS, Fernando (Coord.).

História da Vida Privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional Vol. 2. São

Paulo, Companhia das Letras, 1997.

SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperança e recordações da família escrava

(Brasil Sudeste, século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

SOARES, R. R. Como tomar posse da benção. São Paulo: Graça Editorial, 1987.

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