a retórica- cap. 01

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  • 5/20/2018 A Retrica- Cap. 01

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    1

    o

    q u e

    a r et r ic a ?

    A n ti g a e n o va r et r ic a: d a c i nc ia d o i n di st in to

    c i n c i a d a r e sp o s ta m l ti p l a

    Para muitos, e desde suas origens, a retrica goza de m re-

    putao. Ela vista como o saber do indistinto . Seu terreno o

    incerto e o vago, o duvidoso e o conflitante. Alis, foi assim que

    ela surgiu na Siclia, quando - uma vez desmoronada a tirania -

    se tratou de permitir aos proprietrios espoliados que defendes-

    sem sua causa, a fim de recuperar seus bens. Os primeiros advo-

    gados foram osintelectuais chamados de sofistas, pois professavam

    o emprego da sabedoria para intervir em favor do destino das

    vtimas espoliadas. Rapidamente, elesvenderam seus prstimos a

    todas ascausas, o que Plato lhes reprovou. Ele foi sempre infati-

    gvel em opor a retrica - falso saber, ou sofstica - filosofia,

    que se recusa a sujeitar-se s aparncias de verdade para dizer

    tudo e tambm seu contrrio, o que condenvel, mesmo que

    rentvel. Disso nasceu a idia de que sofisma um raciocnio

    falacioso e enganador, mas que no aparece como tal. Tem todos

    os indcios de verdade, salvo um, o que conta: ele um erro. O

    sofista a anttese do filsofo, assim como a retrica o contrrio

    do pensamento justo.

    A condenao de Plato foi determinante na histria da re-

    trica. Ora assimilada propaganda, ora seduo, a retrica

    tem sido, a partir da , freqentemente reduzida manipulao

    dos espritos pelo discurso e pelas idias, enquanto filosofia

    coube liber-los, como aos prisioneiros da Caverna. Dito isso, a

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    M ic he l M ey er

    retrica poderia ter ultrapassado a deficincia desse antema, ti-

    vesse ela se dotado de contornos claros e de definio precisa, o

    que no foi o caso, mesmo em Aristteles, e muito menos ainda

    na obra de Plato. Aristteles, entretanto, a leva a srio e atribui

    a ela um papel positivo, na realidade uma certa dignidade. Para

    ele, a retrica o inverso necessrio da cincia: esta confere cer-

    teza em suas concluses, mas um bom nmero de questes da

    vida cotidiana, assim como da vida intelectual, no oferece certe-

    za alguma. Devem estas, em virtude disso, sair do campo da ra-

    zo?fu opinies divergem, os pontos de vista se enfrentam e, na

    pol tica, assim como na moral , osindivduos tm modos de pen-

    sar divergentes e legt imos. verdade que podemos manipular e

    enganar, mas tambm podemos aderir de boa-f e com convico

    a proposies no necessariamente compartilhadas por outros.

    Nem todos temos os mesmos interesses, as mesmas concepes,

    os mesmos pontos de vista, mas preciso que convivamos uns

    com os outros e que discutamos tudo o que suscita dif iculdades,

    para chegarmos a um esboo de bem comum na Cidade. Assim,

    talvez a retrica seja um mal, mas um mal necessrio, que mais se

    assemelha a um comunicar do que a um mandar fazer. Da pol-

    tica ao direito e a suas argumentaes contraditrias, do discurso

    literrio ao da vida cotidiana, o discurso e a comunicao so

    indissociveis da retrica. Se esta tem suas armadilhas, tambm

    oferece a possibil idade da decodificao e da desmistif icao.

    Dessa forma, o melhor antdoto retrica continua sendo a pr-

    pria retrica.

    Setodos osdomnios a que ela seaplica so dspares, e inclu-

    sive se multiplicam, isso se deve ao desmoronar das velhas certe-

    zas e das respostas mais bem-estabelecidas, as quais a histria -

    que tem pressa - tende a tornar caducas, umas aps as outras.

    Tudo fica mais problemtico, mais discutvel , e o que se tomava

    aop da letra seimpe como mais metafrico. H algo mais a ser

    visto atrs, que deve ser investigado, pois no podemos nos agar-

    A re t r ic a

    rar svelhas respostas com a mesma inocncia. A histria, ns o

    sabemos, sinnimo de paraso perdido e portanto de conflitos,

    porm, mais simplesmente, de

    diferena:

    as coisas j no so em

    absoluto o que eram, elas j no o so seno metaforicamente,

    no literalmente. A retrica se inscreve, ento, nesse vazio entre

    () literal e o metafrico, entre a presena imediata e aquilo que

    existe atrs - da, sem dvida, a predileo dos espritos religiosos

    pela retrica, mas tambm dos criadores de literatura, que jogam

    com a linguagem figurada, tanto na poesia quanto no romance.

    2 As g r a nd es d ef i ni e s d e r et r ic a

    As diferentes definies de retrica podem ser classificadas

    em trs grandes categorias:

    (1) a retrica uma manipulao do auditrio (Plato);

    (2) a retrica a arte de bem falar

    ar s b en e d ic en d i,

    de Quinti-

    liano):

    (3) a retrica a exposio de argumentos ou de discursos que

    devem ou visam persuadir (Aristteles).

    Da primeira definio decorrem todas as concepes de ret-

    rica centradas na emoo, no papel do interlocutor, em suas rea-

    es, o que atualmente implica propaganda e publicidade. Da se-

    gunda, tudo o que diz respeito ao orador, expresso, ao simesmo,

    inteno e ao querer dizer. Quanto terceira definio, ela diz

    respeito quilo que referimos anteriormente sobre asrelaes entre

    o explcito e o implcito, o literal e o figurado, as inferncias e o

    literrio. E foi a mescla, ou a adio de tudo isso, que fez da retri-

    ca uma disciplina de contornos mal definidos, que, por tratar de

    muitas questes, parece ela mesma confusa e sem objeto prprio.

    Se verificarmos atentamente, cada um desses trs tipos de

    abordagem focaliza uma das trs dimenses da relao retrica.

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    M ic he l M ey er

    Quais so os trs componentes bsicos que fazem com que haja

    retrica? preciso um orador, um auditrio ao qual ele se dirija

    e uma mdia por meio da qual elesse encontrem, para comuni-

    car o que pensam e trocar pontos de vista. Essa mdia sempre

    uma linguagem, que pode ser falada ou escrita, mas tambm pic-

    trica ou visual . A televiso e o cinema combinam os efeitos re-

    tricos tirando partido da imagem, da msica e da linguagem

    falada; da a sua fora.

    Senos reportarmos s trs definies mencionadas acima, que

    encontraremos ao longo de toda a histria da retrica, sob uma

    forma ou outra, veremos claramente que a primeira privilegia o

    papel do auditrio; a segunda, a importncia do orador; e a tercei-

    ra, o peso das proposies e da linguagem que as veicula, o que

    confere a aparncia de tornar a retrica mais objetiva e racional.

    Mas ser que podemos privilegiar uma das trs dimenses da

    relao retrica e ignorar as duas outras? Isso no possvel, o

    que faz com que essas definies tenham necessitado evoluir com

    o tempo, para integrar asduas dimenses negligenciadas, mesmo

    sob o risco de assumir um

    status

    subordinado, relativamente

    quela que havamos escolhido adotar.

    Tomemos Aristteles. Para ele, a retrica questo de dis-

    curso, de racionalidade, de linguagem. Uma palavra para definir

    essas trs dimenses:

    lgos.

    O

    lgos

    subordina a suas regras pr-

    prias o orador e o auditrio: ele persuade um auditrio pela fora

    de seus argumentos, ou agrada a essemesmo auditrio pela bele-

    za do estilo, que comove aqueles a quem se dirige. Uma palavra

    para qualif icar o auditrio que sequer seduzir , convencer ou en-

    cantar:

    pthos.

    O auditrio passivo, ele se submete ao orador

    como se submete a suas prprias paixes, termo cuja etimologia

    precisamente

    pthos,

    em grego. Mas o

    lgos

    que faz a diferena

    entre o discurso racional e aquele que provoca paixes, criando a

    emoo e chegando mesmo a fazer com que a razo seja esqueci-

    da. A retrica, para Aristteles, um discurso que um orador

    22

    A re t r ic a

    possui e que adequado a persuadir um auditrio, ou a comov-

    lo. As trs dimenses esto bem presentes, mas integradas fora

    do verbo. ele que produz efeito sobre o auditrio, e essafora

    que o orador tem em vista.

    Para Plato, o inverso. O pthos, e no a verdade, comanda

    o jogo da linguagem, mas tambm a postura do orador, que s se

    preocupa com os efeitos, e por vezes muda de lado, no se inco-

    modando em defender pontos de vista opostos, ou em obter efei-

    tos contraditrios. A razo estranha retrica, porque ela se

    pretende unvoca e, conseqentemente, de competncia exclu-

    siva da filosofia.

    Depois do

    lgos

    e do

    pthos,

    resta o

    thos,

    ou a dimenso do

    orador. Essa abordagem tipicamente romana. A eloqncia s

    tem sentido se se subordinar virtude

    thos

    do orador, a seus

    costumes exemplares, que so vlidos para todos, qualquer que

    seja a profisso ou a origem social.

    thos

    deu origem palavra

    t ica , mas tambm h

    mores-

    costumes , em latim. A eloqn-

    Lia,o bem-falar, a verdade dessa retrica em que aquele que fala

    possui a legit imidade e a autoridade moral para faz-lo. Mas essa

    retrica baseada na eloqncia deve, ela tambm, integrar as duas

    outras dimenses - no caso, o lgos e o p th os -, mesmo que seja

    para subordin-las. Para Quintiliano, a retrica a cincia do

    bem-dizer, pois isso rene ao mesmo tempo todas asperfeies do

    discurso e a prpria moralidade do orador, uma vez que no se

    pode verdadeiramente falar sem ser um homem de bern . Mesmo

    integrando implicitamente tanto o

    pthos

    quanto o

    lgos

    ao valor

    oratrio do

    thos,

    estes aparecem como secundrios. A eloqncia

    va i

    levar, ento, tanto aos efeitos de estilo lgos como emoo

    ou ao atraente

    pthos ,

    um agradar tpico das sociedades de corte.

    retrica romana a primeira a desenvolver uma teoria das figu-

    l.IS de estilo, assim como a enfatizar a emoo na linguagem lite-

    I Qulntilien

    Les ins t it u ti ons o rat o ir es,

    1115

    23

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    M ic he l M eye r

    rria, potica e romanesca. Uma retrica da eloqncia no pode-

    ria ignorar o auditrio e a forma, assim como uma retrica

    reduzida manipulao das paixes no poderia negligenciar os

    aspectos sofsticos da linguagem aplicada e as intenes do rtor.

    Com o pdthos, centrado na dominao, encontram-se portanto

    um lgos e um thos, talhados sob medida.

    Quanto ao

    lgos,

    ele foi rapidamente inserido em um quadro

    no qual havia uma pessoa que se dirigia a outra. Para Aristteles,

    a retrica era to-somente o estudo de tcnicas destinadas a per-

    suadir. Dois mil e quinhentos anos depois, em 1958, para Perel-

    man a retrica continuou sendo o estudo que consiste em pro-

    vocar ou aumentar a adeso dos espritos s teses que se lhes

    apresentam ao

    consentimento .

    Ao fazer isso, algum age, visan-

    do obter o acordo do auditrio. Os argumentos justos permitem

    consegui-lo: basta simplesmente que o orador se amolde, e o

    auditrio o seguir. Estamos no quadro de uma racionalidade

    imanente do

    lgos,

    mas tanto o orador como o auditrio vem-se

    dessa vez explicitamente presentes na definio, ainda que conti-

    dos pela razo do razovel e do verossmil. Destitudo de paixo,

    como em Aristteles, porque em Perelman o lgos somente

    argumentativo, e o aspecto formal do estilo agradvel ou emocio-

    nal esvaziado, ou, antes, disciplinado, ao passo que em Arist-

    teles ele ainda era dominante, sem dvida em razo da condenao

    platnica que Aristteles queria delimitar.

    Toda essa impreciso fez com que asdefinies de retrica se

    desviassem ao longo do tempo, se cindissem e at fossem de en-

    contro uma outra, pois a retrica que visa agradar ou at mes-

    mo agitar aspaixes no a mesma coisa que uma argumentao

    que se esfora para convencer por meio de

    razes.

    Encontramos,

    assim, a retrica no jogo de paixes, na literatura, na pol tica, no

    tribunal, na linguagem natural, no raciocnio no-cientfico, na

    2.Perelman e Olbrechts, Letrait de/ argumentation p.S.

    24

    A re t r ic a

    opinio, no bem-falar , no implcito, na inteno que se esconde

    atrs do implcito, no figurativo, portanto no inconsciente que

    codifica sua linguagem; em resumo, a retrica, longe de se res-

    tringir, se propagou, em decorrncia da perda de sua unidade

    primeira. O desafio atual consiste em tentar dar a ela novamente

    uma d ef in i o, abrangente mas especfica, que permita acomodar

    tanto a argumentao judiciria quanto o discurso publicitrio,

    tanto o raciocnio provvel quanto a linguagem literria e suas

    figuras de estilo, tanto a retrica do inconsciente quanto asregras

    do debate pblico, em que as opinies se afrontam ou se esva-

    ziam pela ideologia.

    Da a pergunta: onde encontrar tal viso unificada da retri-

    ca? No constitui um autntico desafio, depois de dois milnios

    de fragmentao?

    3. U m a n o va d ef in i o d e r et r ic a

    De tudo o que foi dito, decorre que o thos, o

    pdthos

    e o

    lgos

    devem ser postos em p de igualdade, se no quisermos cair em

    uma concepo que exclua as dimenses constitutivas da relao

    retrica. O orador, o auditrio e a linguagem so igualmente es-

    s nciais. Isso significa que o orador e o auditrio negociam sua

    diferena, ou sua distncia, se preferirmos, comunicando-a reci-

    procamente. O que constitui a sua diferena, e mesmo o seu di-

    r

    .rencial, certamente mltiplo, e pode ser social, poltico, tico,

    ideolgico, intelectual- e sabe-se l o que mais - , mas uma coisa

    ( certa: se no houvesse um problema, uma pergunta que os se-

    parasse, no haveria debate entre eles, nem mesmo discusso. A

    linguagem, o

    lgos,

    tem por vocao traduzir o que constitui pro-

    lilcrna. Se nada fosse questionvel, um nem sequer se dirigiria ao

    CHilro,e, se

    tudo

    fosse um problema, eles no poderiam faz-lo.

    Assim

    sendo, a r et r ic a a n eg oc ia o d a d ife re n a e ntr e o s i nd iv -

    dl S s ob re u ma q ue st o d ad a.

    5

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    M ic he l M ey er

    Essa questo inclusive a medida dessa diferena, do que

    separa, e que ope mesmo os protagonistas, uma medida da dis-

    tncia simblica que traduz sua diferena. Sem questes, j dizia

    Aristteles, no haveria duas escolhas contrrias, todos teriam o

    mesmo ponto de vista e no consultariam seno a si prprios

    para esclarecer as coisas. Dessa forma, a retrica a anlise dos

    questionamentos que so feitos na comunicao interpessoal e

    que a suscitam ou nela se encontram.

    O que negociamos pela retrica? A identidade e a diferena,

    a prpria, a dos outros; o social que as enrijece, o poltico que as

    legit ima e por vezes assacode, o psicolgico e o moral em que elas

    flutuam. Observemos que a distncia simblica, que o estatuto

    social consagra, afirma-se retoricamente pela excluso de todo

    questionamento possvel, o que exige formas que reafirmem a

    distncia. No limite, o uniforme especfico da patente no exr-

    cito, do bispo na Igreja, do chefe no trabalho, com sua vestimen-

    ta e seu protocolo prprio. A diferena negociada por esses sm-

    bolos que a perpetuam, e uma retrica: ela resolve, a seu modo,

    o problema de uma distncia que assim seafirma e seconfirma.

    Negociar a distncia no acertado antecipadamente, na

    maioria dos casos, e a relao interpessoal ento marcada por

    uma problematicidade que no desti tuda de

    autoridade.

    A ne-

    gociao da distncia no consiste forosamente em reduzi-la. O

    insulto, por exemplo, um procedimento retrico que tem por

    funo assinalar ao outro que o fosso que o separa do locutor ,

    dali em diante, no-negocivel. Isso explica sem dvida por que

    se utilizam nomes de animais, com essa finalidade: eles acentuam

    uma distncia intransponvel ou, de qualquer forma, que no

    desejamos ver abolida. Mas a negociao habitual felizmente tem

    outros objetivos.

    verdade que se trata de obter uma resposta,

    mas esta sinnimo de acordo; de onde a idia de adeso ou de

    persuaso, pela qual, de Aristteles a Perelman, a argumentao

    foi singularizada.

    6

    A re t r ic a

    Para concluir, a retrica atua na identidade e na diferena

    entre indivduos, e desse tema que ela trata, por meio de ques-

    tes particulares, pontuais, que concretizam sua distncia. Quan-

    do a negociamos a part ir da questo, do que constitui uma ques-

    to, estamos no ad rem res

    =

    coisa , em latim, portanto a causa,

    o que est em causa), e quando o fazemos a part ir da intersubje-

    rividade dos protagonistas, estamos no

    ad hominem

    pois nos di-

    r igimos aos homens, ao que eles so, ao que acreditamos que eles

    ejam, ao que gostaramos de acreditar que elesfossem, ou aoque

    recusamos que eles sejam. Todavia, no pode haver uma real se-

    parao entre o ad rem e o ad hominem; alm disso, freqente-

    mente ofendemos as pessoas, quando no aderimos ao

    que

    elas

    dizem ou propem, prova de que elas se identificam com o que

    dizem. Assim sendo, uma boa retrica passa muitas vezes de um

    plano a outro, do

    ad rem

    ao

    ad hominem

    sobretudo se os argu-

    mentos acabam por faltar.

    4 R e t ri c a e a rg u m en ta o

    Aristteles opunha a dialtica, que pertence ao domnio da

    disputa oratria, retrica. Atualmente, fala-se de argumentao

    e no mais de dialtica. Ele as v como as duas facetas de uma

    mesma pea, mas no precisa jamais em que consiste sua comple-

    mentaridade. O lgospode agradar, comover, instruir, mas tam-

    bm convencer por meio de argumentos. Como dar conta de

    todas essas diferenas?

    A, uma vez mais, essencial nos remetermos ao questiona-

    mento. Ele define a originalidade da concepo integrada da re-

    trica que ns defendemos.

    A grande diferena entre a retricae a argumentao deve-seao

    foto de que aprimeira aborda apergunta pelo visda resposta apre-

    sentando-a como desaparecida portanto resolvida ao passo que a

    argumentaoparte daprpria pergunta que ela explicitapara cbe-

    7

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    M ich el M ey er

    g ar a o q ue r es ol ve a d ife re n a, o d ife re nc ia l e ntr e o s i nd iv d uo s.

    No

    fundo, no h incontveis maneiras de proceder, mas somente

    duas: ou partimos da pergunta, ou da resposta, e agimos como se

    a pergunta nela contida no mais fosse feita, estando resolvida

    por esse procedimento, que se assemelha a um gesto de varinha

    de condo, a uma fico, a um

    w i sh f ul t h in ki ng .

    Isso explica o

    lado manipulatrio da retrica. Abordar uma pergunta pelo vis

    daquilo a que ela responde pode ser ilusrio. Pois o simples fato

    de oferecer a resposta a respeito do que problemtico, como se

    a pergunta, s por isso, tivesse desaparecido, revela por vezes um

    ato de fora: a soluo no uma nica, no argumentamos, s

    fizemos uso de um belo estilo para anestesiar ou cativar o lei tor

    ou o cliente. A questo fica resolvida unicamente pelo fato de a

    termos abordado pelo ngulo da resposta? Seria timo, mas no

    assim que funciona. A forma e o estilo preenchem a funo de

    revestir o problemtico como se ele t ivesse desaparecido. Da o

    papel da forma e do bem-falar , em retrica, que desempenham

    um papel menor na argumentao. A verossimilhana da respos-

    ta pode alis ser um excelente procedimento retrico: um roman-

    ce policial cativa o lei tor desenvolvendo a resoluo de um enig-

    ma gradativamente ( a investigao), mesmo a histria toda

    sendo fictcia.

    Compreendemos ento que a retrica se tenha identificado,

    ao longo dos sculos, quilo que chamamos de

    gnero epid c ti c o .

    O que vem a ser isso, mais exatamente?

    5.

    O s g n er o s r et ri c os

    Aristteles distinguiu trs grandes gneros em retrica, com-

    parveis aos que se encontram em literatura, como o romance ou

    a poesia. Em retrica, trata-se do

    gnero epidc ti co ,

    centrado no

    estilo atraente e agradvel , em que o auditrio desempenha um

    papel preciso, pelo fato de comandar o louvor ou a aclamao ou

    A re t r ic a

    ,I

    censura. Tem-se o

    gne ro jud ic idr io ,

    em que se determina se

    uma ao justa ou no; e o

    gnero de li bera t ivo ,

    em que se deve

    decidir agir em funo do ti l ou do prejudicial.

    Esses trs gneros tm todos um componente de

    thos,

    de

    f/ Ithos

    e de

    lgos.

    O auditrio julga se belo (epidctico), justo

    (judicirio) ou ti l (deliberativo). Temos a o

    pdthos,

    quer dizer,

    ,IS

    reaes da alma, das paixes, que so ativadas. O orador, ou

    rthos,

    intervm igualmente nesses trs gneros de modo distinto,

    pois defende, ornamenta ou delibera. Quanto ao

    lgos,

    nos trs

    I ,ISOS

    ele repousa sobre o possvel: o que teria sido possvel , o que

    e o que o ser. Mas o verdadeiro problema aqui no distin-

    gllir o

    thos,

    o

    pdthos

    e o

    lgos

    nesses trs gneros, mas sim com-

    prccnder por que estes se reduzem a trs, o que limita a retrica

    I somente trs tipos de problemtica, uma vez que os gneros,

    rrn retrica como em literatura, definem

    a pr i ori

    as questes que

    ,lO tratadas e portanto colocadas pelo auditrio ou pelos leitores,

    pcrrnitindo-lhes saber

    a p ri or i

    do que se trata e, conseqente-

    nu-rue, aquilo que eles aguardam, como forma de respostas.

    Os trs grandes gneros retricos correspondem a uma gra-

    l r a o

    no tratamento das respostas. Tem-se uma questo, portan-

    10 lima alternativa, ou inmeras, e nenhum meio de decidir - o

    .k hate ganha entusiasmo, o

    pdthos

    muito forte, pode-se inclu-

    IVI falar de paixes que se desencadeiam: o gnero deliberativo

    1111

    poltico. A problemtica diminui, mas h os meios de resolv-

    1 1 :

    o direito. E, por fim, o problema consiste em fazer de tal

    uunlo que no haja problema: o gnero epidctico, que se en-

    1IIIIIra

    no elogio fnebre ou na conversa cotidiana. Fazemos de

    III0do

    a no colocar em dvida a imagem do defunto; seja o que

    1II1 que ele tenha feito em vida, aparamos as arestas e os proble-

    111.1\

    o discurso suave e, portanto, no pode ser seno belo e

    1 luqucnte. Em nossa vida diria, quando perguntamos a algum

    1

    lido

    bem? e o outro responde E voc, tudo bem? , damos a

    nnprrsso de nos interessarmos pelo que acontece com a outra

    29

  • 5/20/2018 A Retrica- Cap. 01

    8/9

    M ic he l M ey er

    pessoa, o que ela tambm faz, para evitar qualquer questiona-

    mento possvel sobre um assunto mais sensvel, a fim de ameni-

    zar o aspecto agressivo que possa decorrer do fato de nos dirigir-

    mos a ela como que mirando um alvo, e de por vezes nos

    impormos a ela, unicamente pela presena corporal . Sempre so-

    mos uma pergunta para o outro e,ao afast-la numa expresso de

    polidez, tentamos ser agradveis para ele e minimizar a agressivi-

    dade potencial que toda diferena implica .

    Ai

    ainda, a distn-

    cia entre os indivduos que precisa ser negociada, e o epidct ico,

    porque visa anul-la, cumpre sua funo com perfeio.

    Na realidade, o prprio Aristteles o diz, esses trs gneros se

    sobrepem com muita freqncia. Invocamos o justo em pol ti-

    ca, ou o que til ao bem comum em direito, o que torna pouco

    defensvel essatipologia das questes retricas. Qual ento nos-

    sa soluo para essa questo dos gneros retricos? Caberia, de

    preferncia, falar de

    thos,

    de

    lgos

    e de

    pdthos

    como fontes de

    respostas, que podem ser argumentos ou espaos para argumen-

    tar , mais do que isol-los em gneros distintos, o thos para o di-

    reito, o

    pdtbos

    para a poltica e o

    lgos

    para o raciocnio argumen-

    tativo ou para as figuras retricas.

    Foi isso que cindiu a retrica, j que uma vez mais se isola

    uma dimenso retrica das duas outras, mesmo em seu detri-

    mento, levando ao limite a autonomizao da dimenso privile-

    giada, para fazer dela

    a

    retrica como um todo. Com o

    thos,

    o

    pdthos

    e o

    lgos,

    somos remetidos aos trs problemas extremos e

    inseparveis que o homem coloca para simesmo desde sempre: o

    eu com o

    thos,

    o mundo com o

    lgos

    e o outro com o

    pdthos.

    Com a retrica, o eu, o outro e o mundo so implicados em uma

    interrogao em que o outro solicitado como auditrio, como

    juiz e como interlocutor, posto que instado a responder e a

    3.Cf. , em relao a esse aspecto, Esther Goody,

    Questions and polit n ss

    Cambridge,

    1978.

    30

    A r e t r ic a

    negociar . Com a cincia, dada a obrigao de objetividade, no

    deveria haver essa tripla dimenso, mas a vida em sociedade

    f(:irade forma tal que as opinies so mltiplas, problemticas, e

    t

    essaproblematicidade que a retrica se esfora para afrontar.

    6 . O s m o m e nto s c ha v e d a h is t ri a d a r et ri ca

    Mal havia nascido, a retrica ficou deslocada. A oposio

    entre retrica e argumentao, ao lado da pulverizao de gne-

    lOS,

    rapidamente prejudicou sua unidade. Para os gregos, a ret-

    r i ca encarna a pluralidade das vozes na pol tica, a possibilidade

    d.1democracia, que se baseia na discusso dos meios e dos fins na

    (:iuade. Plato no aprecia nem um pouco essa disciplina, ao

    passo que Aristteles v nela uma utilidade e quer integr-la sua

    filosofia, porque v o bem comum como o fruto de uma elabora-

    ~.l

    progressiva, que seja discutida por todos e entre todos no seio

    d.ls assemblias democrticas. Em todo caso, ele no revelado

    de imediato ao esprito daqueles que o nascimento ou a fortuna

    pl ivi legiaram. Com Ccero e Quintil iano, ainda estamos no rei-

    110

    do

    t o s

    apesar de o primeiro encarnar a Repblica que fin-

    d.lva, e o outro, um sculo e meio depois, o Imprio que nascia.

    I lm elege o direito e a defensoria como local privilegiado do re-

    i r i c o ali onde Quintiliano se preocupa em especial com uma

    r l oq nc i a da corte, j invadida pelas figuras destinadas a agradar.

    A retrica renasce sempre que um modelo dominante de

    p lIsamento empalidece e que aquele que o suceder sefazespe-

    1.11. ornpreende-se que, quando a mitologia grega se imps

    111110

    uma fico e deixou de ser tomada ao p da letra, a retri-

    tenha surgido como a anlise e a descrio dessa linguagem

    I11l

    j no se pode mais considerar de forma literal. Mas tam-

    111 11\,

    na ausncia de um discurso nico que seja tido por todos

    10 ideologicamente vlido, os homens desenvolvem diferen-

    11 \

    pontos de vista sobre uma mesma questo e se enfrentam

    31

  • 5/20/2018 A Retrica- Cap. 01

    9/9

    M ich el M ey er

    naquilo que acreditam serem as boas respostas. A Grcia dos so-

    fistas se completa, com a Cidade livre e autodeterminada, na sis-

    tematizao de Aristteles.

    A retrica conheceu um florescimento comparvel ao da Re-

    nascena, quando o velho modelo escolstico-teolgico, por seu

    turno, desmoronou. D-se o mesmo no sculo XX, quando des-

    falecem asideologias que tanto o marcaram com o Muro de Ber-

    lim: Toulmin e Perelman antecipam essa renovao. Sua aborda-

    gem centrada no lgos; Habermas e Burke, nos Estados Unidos,

    privilegiam o papel do thos, enquanto a retrica americana ou a

    hermenutica sevoltam principalmente ao papel do auditrio, do

    leitor, do interlocutor - em resumo, do pthos. Essa pulverizao

    tambm nos lembra o que aconteceu na Renascena, pois thos,

    pthos e lgos voltam ao primeiro plano, mais uma vez em ordem

    dispersa. Na Renascena, a argumentao - a dialtica - desapa-

    recepouco a pouco, engolida pelo discurso do mtodo e pela cin-

    cia. Quanto retrica que se preocupa com o thos ou com o p -

    thos, ela rapidamente se faz tragar pela moral, pela religio. A

    paixo no antes de tudo pecado? A concupiscncia, a luxria, a

    vaidade pertencem ao domnio do pecado original. Como todos

    os interesses sensveis, elas so objeto de teologia, da relao de

    Deus (que intelecto puro) com a natureza humana, que pro-

    priamente centrada neste mundo em razo do pecado, de paixes,

    do sensvel. Assim, da retrica no resta seno o lgos das figuras

    [de linguagem] da linguagem estilizada, que pura ornamenta-

    o, o que d lugar a essecatlogo de tropos, ou floreios de lingua-

    gem, que atravancam a retrica desde Dumarsais (1730) e Fonta-

    nier (1830). A retrica no outra coisa a no ser epidctica,

    quando Perelman, em 1958, a revoluciona, identificando-a ar-

    gumentao, recolocando esta ltima na ordem do dia.

    Tem-se o sentimento, sem dvida exagerado, de que o mo-

    delo dominante da Antigidade foi , apesar de tudo, o thos, com

    sua retrica centrada no orador, a despeito de Aristteles e Pla-

    32

    A re t r ic a

    to. Esse movimento se acentua sob a influncia do mundo ro-

    mano, mas j os gregos privilegiavam a virtude. Em seguida, a

    part ir da Renascena, tem-se direito preeminncia do pthos:

    podemos ver, a, a relao com Deus, mais transcendente e enig-

    mtica do que nunca (protestantismo, Contra-Reforma), a emer-

    gncia do poltico e da poltica (o outro) nas cidades-estado da

    Itlia, mas ele tambm discurso anestesiado na figuratividade

    das imagens ornamentais, em conformidade com o que se exige

    na corte dos monarcas europeus, que se pretendem absolutos.

    Por fim, na poca contempornea o lgos que domina. A ret-

    rica torna-se discurso sobre o discurso racional, que nem por isso

    c :

    cientf ico, com suas concluses to-somente verossmeis, e

    issoque se entende por argumentao .

    Hoje em dia, no se pode mais privilegiar a argumentao

    em desfavor da retrica, ou o contrrio, e realmente necessrio

    1111

    ificar a disciplina.

    33