03 reflexoes sobre a hagiografia iberica medieval

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Estudo sobre essa forma importante que está na origem das literaturas em língua vernácula em toda a Europa.

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REFLEXÕES SOBRE A

HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

UM ESTUDO COMPARADO DO LIBER SANCTI

JACOBI E DAS VIDAS DE SANTOS DE

GONZALO DE BERCEO

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REFLEXÕES SOBRE A

HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

UM ESTUDO COMPARADO DO LIBER SANCTI

JACOBI E DAS VIDAS DE SANTOS DE

GONZALO DE BERCEO

UNTADE GALICIA

Niterói/RJ 2008

Andréia Cristina Lopes Frazão Silva

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Copyright © 2008 Editora da Universidade Federal Fluminense – EdUFFDireitos dessa edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal FluminenseRua Miguel de Frias, 9 – Anexo – Sobreloja – Icaraí – Niterói – CEP 24220-900 – RJ – BrasilTel.: (21) 2629-5827 – Fax: (21)2629-5288 – http://www.propp.uff.br/eduff – e-mail:[email protected]

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da Editora.

Normalização: Caroline BritoEdição de texto: Maria do Amparo Tavares MalevalEditoração eletrônica: Jougi Guimarães YamashitaRevisão: Fernando Ozorio Rodrigues e Isadora Tavares MalevalCapa: Guilherme Antunes JúniorSupervisão gráfica: Paulo França

Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIPS586 Silva, Andréia Cristina Lopes Frazão

Reflexõessobreahagiografiaibéricamedieval:umestudocomparadodoLiber Sancti Iacobi e das Vidas de Santos de Gonzalo de Berceo / Andréia Cristina Lopes Frazão – Niterói : Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.

263 p. : il. ; 23 cm. – (Coleção Estante Medieval, v. 3, 2008) Bibliografia:p.237 ISBN 978-85-228-0492-4 1.Históriacomparada.2.Hagiografia.I.Título.II.Série CDD 869.899

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEReitor: Roberto de Souza Salles

Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de AndradePró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação:

Humberto Fernandes MachadoDiretor da EdUFF: Mauro Roberto Leal Passos

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Lívia de Freitas Reis Teixeira Márcia Maria Mendes MottaMaria Laura Martins CostaMariângela Rios de Oliveira

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Coleção Estante MedievalDireção: Fernando Ozorio Rodrigues (UFF)

Maria do Amparo Tavares Maleval (UFF/UERJ)

Conselho ConsultivoÂngela Vaz Leão (PUC-Minas)Célia Marques Telles (UFBA)

Evanildo Cavalcante Bechara (UERJ/UFF/ABL)Gladis Massini-Cagliari (UNESP)

Hilário Franco Júnior (USP)José Rivair de Macedo (UFRGS)Leia Rodrigues da Silva (UFRJ)

Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP)Luís Alberto de Boni (PUC-RS)

Mário Jorge da Motta Bastos (UFF)Massaud Moisés (USP)Vânia Leite Fróes (UFF)

Yara Frateschi Vieira (UNICAMP)

Editora filiada à

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“[...]de fazer est travajo ovi muy gran deseo, riendo gracias a Dios quando fecho lo veo[...].”

(VSD 757)

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Dedico essa obra a quatro pessoas muito especiais:Elias, meu pai,

Lêda, minha mãe,Márcio, meu esposo, e

BrunoLeonardo,meufilho.

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer a algumas pessoas que foram fundamentais na elaboração deste trabalho.

Primeiramente, à minha orientadora no doutorado, Maria Sonsoles Guerras Martin, já que foi o texto formulado naquela ocasião o ponto de partida deste livro. Também agradeço aos membros da banca de defesa, em especial à professora AdelineRucquoi,pelassuasinestimáveisobservações.

Agradeço a Maria do Amparo Tavares Maleval, que me apresentou às “maravilhas de São Tiago” e tornou possível a publicação deste trabalho.

ÀFaperjeaoCNPq,quevêmfinanciandooprojetodepesquisacoletivoHagiografia e História: um estudo comparativo da santidade, ao qual esta pesquisa está vinculada.

Ao Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ, espaço no qual tenho aprendido a desenvolver a comparação histórica.

Aos alunos, colaboradores e pesquisadores vinculados ao Programa de Estudos Medievais da UFRJ, companheiros na luta cotidiana pela consolidação dos estudos medievais no Brasil. Como são muitos, é impossível listá-los todos aqui. Muitas idéias presentes neste trabalho surgiram a partir da leitura de materiaisproduzidosporessaequipeeemdiscussõesdogrupo.

Um agradecimento carinhoso à minha amiga Leila Rodrigues da Silva, que esteve presente e acompanhou todas as etapas da produção deste material, desde o período emque cursávamosoDoutorado.Obrigadapelasmuitas sugestões,críticas,observaçõese,sobretudo,peloincentivo.

Quero registrar um agradecimento especial ao meu pai, Elias Nunes Frazão, que,alémdoapoio,leuosoriginaisefezvaliosascontribuições.

Finalizando, agradeço aos meus familiares, em especial minha mãe, Lêda, meuesposo,Márcio,emeufilho,BrunoLeonardo,pelaajudaincondicionalemtodas as fases de produção deste livro.

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Sumário

Reflexões sobre hagiografias na estante medievalMaria do Amparo Tavares Maleval....................................................................15

Prefácio Leila Rodrigues da Silva ....................................................................................17

Introdução ........................................................................................................19

Capítulo I : Autoria e contexto social de produção das obras.......................351.1 A autoria do Liber Santi Jacobi....................................................................351.2. O Bispado de Compostela no século XII..............................................381.3.A biografia de Gonzalo de Berceo e o contexto social de produção dasVidas....................................................................................................................47 1.3.1. “Natural de Verceo ond’ Sant Millán fue nado...”...............................49 1.3.2. “... En Sant Millán de Suso fue de niñez crïado...”..............................52 1.3.3. “Don Gonzalvo de Berceo preste”.......................................................55 1.3.4. “Quiero fer una prosa...”.....................................................................58 1.3.5. “Maestro Gonçalvo de Verceo, nomnado...”........................................60 1.3.6. “... del abat Johan Sanchez notario por nombrado...”........................62 1.3.7. “... yo la vi...” : as viagens realizadas por Gonzalo de Berceo............63 1.3.8. “Quiero em mi vegez, maguer so ya cansado...”.................................641.4. Autoria e contexto social de produção das obras em análise: considera-ções.....................................................................................................................64

Capítulo II: O ambiente literário de produção do Liber Sancti Jacobi edas Vidas berceanas..........................................................................................672.1. O Liber Sancti Jacobi e a literatura latina hispânica no século XII.............672.2. As Vidas berceanas e o Mester de Clerecia.................................................702.3. Reflexões sobre as relações entre hagiografia e história nas obras emanálise.................................................................................................................742.3.1.HagiografiaeHistórianoLiber Sancti Jacobi (II e III).......................782.3.2.HagiografiaeHistórianasvidasdesantosberceanas..........................83 2.3.3. A História no Liber Sancti Jacobi (II e III) e nas Vidas de San Millán e Santo Domingo.................................................................................................88

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Capítulo III: Aspectos formais e difusão......................................................913.1. Ordem de composição e datação.................................................................913.2. Organização e forma...................................................................................953.3. A língua.......................................................................................................993.4. As fontes....................................................................................................102 3.4.1. Uma fonte comum: a Bíblia...............................................................1093.5. A construção da narrativa...........................................................................114 3.5.1. O narrador..........................................................................................115 3.5.2. A audiência.........................................................................................116 3.5.3. A narração..........................................................................................1173.6. A difusão....................................................................................................125

Capítulo IV: O espaço e o tempo.....................................................................1314.1. O espaço.....................................................................................................132 4.1.1. O espaço no Liber Sancti Jacobi (II e III)........................................132 4.1.2. O espaço nas Vidas de San Millán e Santo Domingo........................1364.1.3.Algumasconsideraçõessobreoespaçoemperspectivacomparada..1484.2. O tempo......................................................................................................151 4.2.1. O tempo no Liber Sancti Jacobi (II e III).........................................151 4.2.2. O tempo nas Vidas de San Millán e Santo Domingo.........................1544.2.3.Reflexõessobreacomparaçãodasrepresentaçõesdotempo............158

Capítulo V: Os personagens..........................................................................1595.1. Os seres espirituais.....................................................................................1595.2. Os homens piedosos...................................................................................1675.3. Os pecadores..............................................................................................1705.4. Os reis........................................................................................................1735.5. Os pobres...................................................................................................1765.6. As mulheres...............................................................................................1795.7. Os “outros”................................................................................................1825.8. Os personagens: uma visão comparada e de conjunto.................................184

Capítulo VI: O cotidiano.................................................................................1876.1. O nascimento e a morte.............................................................................1876.2. A vida familiar...........................................................................................1916.3. O casamento e o sexo.................................................................................1936.4. A aparência e os cuidados pessoais............................................................1956.5. A doença.....................................................................................................1976.6. A educação.................................................................................................199

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6.7. A vida religiosa e as crenças e práticas da religiosidade............................201 6.7.1. A vida eclesiástica..............................................................................202 6.7.1.1. A vida monástica........................................................................202 6.7.1.2. O clero secular...........................................................................2066.7.1.3.Asrelaçõesentreregulareseseculares......................................209 6.7.1.4. A Igreja hispânica frente ao papa e aos reis ibéricos.................211 6.7.1.5. Os problemas eclesiásticos........................................................212 6.7.2. A prática sacramental.........................................................................213 6.7.3. A religiosidade...................................................................................2156.8. As atividades produtivas............................................................................2206.9. A alimentação.............................................................................................2226.10. As viagens e os viajantes.........................................................................2246.11. As guerras.................................................................................................2256.12. O cotidiano como cultura.........................................................................226

Conclusão.........................................................................................................229

Referências Bibliográficas..............................................................................2371. Textos medievais impressos..........................................................................2372. Obras de caráter teórico-metodológico.........................................................2393. Instrumentos de estudo.................................................................................2404. Obras gerais..................................................................................................2415.ObrasespecíficassobreoLSJ,aVSMeaVS.............................................253

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REFLEXÕES SOBRE HAGIOGRAFIAS NA

ESTANTE MEDIEVAl

O terceiro número da coleção Estante medieval da EdUFF acolhe a tese de doutorado, revista, de Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Professora AdjuntadaUFRJonde,noInstitutodeFilosofiaeCiênciasHumanaseSociais(IFCHS), vem trabalhando na direção do Programa de Estudos Medievais (Pem). Neste labor, que divide com a Professora Doutora Leila Rodrigues da Silva, vem contribuindo de forma incomparável para a divulgação de fontes e estudos sobre a Idade Média no Rio de Janeiro (e não só), através da realização de numerosos eventosepublicações.Enolaboratóriodepesquisaqueaícriou,concorreparaaformaçãodenovasgeraçõesdemedievalistas,oquefaztambémnoscursosqueministra, conquistando numerosos alunos para as pesquisas relativas ao medievo, que leva a cabo inclusive como bolsista do CNPq a partir de 2001.

A tese de doutorado defendida em 1996 se debruçara sobre as vidas de santos escritas por Gonzalo de Berceo, no século XIII. O texto que ora se publica compara os textos berceanos a milagres e outras narrativas do Livro de São Tiago (Liber Sancti Jacobi) do século XII, através do Codex Calixtinus, que constitui a versão mais completa do Liber, conservada na catedral de Santiago de Compostela. Esse estudo comparado, realizado pela autora, comprova a importância da interdisciplinaridadenosestudoshistoriográficos,pondoemrelevo inclusiveacontribuição da lingüística e da teoria da literatura para o exame do texto.

Certamentequeaautoraconseguiu,atravésdestassuasReflexõessobreahagiografiaibéricamedieval,destacar,comosepropôs,“ovalordashagiografiascomo monumento, visão e memória”; a relação entre os textos e o seu “contexto deprodução”,identificandoeanalisando“ascorrentesculturaisqueinfluenciarama composição dos textos hagiográficos analisados”, além de “discutir o papeldos hagiógrafos na Península Ibérica medieval como construtores de memória e divulgadores de uma dada visão sobre o mundo social”.

Prefaciando este livro, Leila Rodrigues da Silva nos fornece importantes informações sobre a autora e sua trajetória acadêmica, seu dedicado labor àpesquisaeàdocência,suaproduçãobibliográficaeseuempenhonaformaçãode novos pesquisadores sobre o medievo. Como também nos deixa entrever a pessoa humana, a colega solidária, a grande amiga – o que não é muito fácil de ser encontrado no espaço competitivo em que vivemos. E, na orelha, José Rivair de Macedo a prestigia com o seu precioso aval.

Portanto, a Estante medieval se alegra em poder veicular tal trabalho, sob os auspícios da Xunta de Galicia, que nos permite, através do Programa de Estudos Galegos da UERJ (PROEG) e do Núcleo de Estudos Galegos da UFF (NUEG), a publicação de obras como a que ora temos a satisfação de apresentar.

Maria do Amparo Tavares Maleval

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Prefácio

É com imenso prazer que prefacio o livro Reflexões sobre a hagiografia ibérica medieval: um estudo comparado do Liber Sancti Jacobi e das vidas de santos escritas por Gonzalo de Berceo, de Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Tal sentimento decorre, não somente do fato de que compartilho com ela uma amizade que remonta à década de 80, mas, sobretudo, pela oportunidade de destacar publicamente as qualidades acadêmicas dessa pesquisadora, cuja trajetória admiro e tenho acompanhado de perto.

Andréia iniciou sua graduação em 1983 e desde então tem se dedicado com competência e criatividade à vida acadêmica. Em 1990 terminou o mestrado em História Antiga e Medieval pela UFRJ, com a dissertação Eusébio e a formulação de uma ideologia de apoio ao Estado Romano, e, em 1996, concluiu o doutorado em História Social, na mesma instituição, com a tese intitulada ... Quiero fer una prosa en román paladino...: as vidas de santos de Gonzalo de Berceo. Na ocasião,estudoudoistextoshagiográficosescritosnaprimeirametadedoséculoXIII pelo hispano Gonzalo de Berceo, a Vida de San Millán de la Cogolla e a Vida de Santo Domingo de Silos.

Professora de História Medieval da UFRJ desde 1992, já orientou dezenas demonografiasedissertaçõesdemestradorelacionadasaomedievo.Aolongodesses anos, tem se preocupado não apenas com seu próprio crescimento intelectual, mas, em sintonia com essa meta, igualmente tem buscado fomentar a discussão acerca da Idade Média. Nesse sentido, criou, no Programa de Estudos Medievais da UFRJ, laboratório de pesquisa que co-coordena desde 1996, grupos de estudos nos quais a formação de jovens pesquisadores se tornou elemento chave ao aprofundamento do estudo das temáticas voltadas ao período medieval.

Seu intenso envolvimento com a investigação do medievo pode ser mensurado, entre outros aspectos, pela sua numerosa e academicamente significativaproduçãobibliográfica.AndréiaCristinaLopesFrazãodaSilva éautora de vários capítulos de livros, artigos e trabalhos completos publicados em anaisdecongressoseencontroscientíficos.Ressalta-seaindaemseupercursoumconjunto de aproximadamente duas dezenas de itens, entre resenhas, editoração delivrosetraduçõesdetextosmedievais.

Deseuinteressepelaabordagemdahagiografiacomoobjetodahistóriaede sua determinação em dar continuidade e ampliar o estudo que teve como marco a já mencionada tese de doutorado, decorreu a elaboração do projeto coletivo de pesquisa, Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade. Ao proportalprojeto,Andréiaobjetivavaanalisarostextoshagiográficosproduzidosnas Penínsulas Ibérica e Itálica, dos séculos XI ao XIII, tendo como eixos centraisastransformaçõesdoperíodo,emparticularasreferentesaocrescimentoda espiritualidade leiga, à organização da Igreja sob a liderança do Papado, à coexistênciaeaosconflitosentreascrençaseaféimpostaporRoma,àexpansão

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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daespiritualidadefemininaeàsquestõesdegêneropresentesnoperíodo,eaosurgimento de novos centros intelectuais urbanos. Cabe ressaltar que o referido projeto se encontra em desenvolvimento e que a ele se vincula a bolsa de produtividade do CNPq que mantém desde 2001. O referido projeto também recebeauxíliofinanceirodaUFRJedaFaperj.

Da sua preocupação com os estudos hagiográficos tem decorrido, alémdasmuitasorientações,publicaçõesecursosministradosnagraduaçãoenapós-graduação, a preparação e coordenação do livro Hagiografia & História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central, escrito em conjunto com orientandos e ex-orientandos, integrantes de um dos grupos de pesquisa anteriormente mencionados, recentemente aprovado pela FAPERJ, em seu penúltimo edital de auxílio à editoração, com previsão de lançamento ainda para o ano de 2008.

Assim,fielàlinhadeorientaçãoadotadaháalgunsanos,AndréiaCristinaLopesFrazãodaSilvareúnenestelivroasconclusõesdeumapesquisahistórico-comparativa que privilegia um tipo determinado de texto: o hagiográfico.Arelevância desta iniciativa, devo lembrar ainda, explicita-se na medida em que contribui para o fortalecimento de uma tendência ora inserida no âmbito da historiografia: os estudos hagiográficos. Embora o reconhecimento dascolaborações fornecidas sobretudo pelas abordagens filológicas e teológicasdesses materiais seja inegável, apenas a partir da década de 80 passaram a assumir perfildedistinçãoentreoshistoriadores.Nesseprocesso,valorizou-seofatodeque, não obstante a existência de lugares-comuns seja um dos componentes desta formanarrativa,suacomposição,viaderegra,invocaespecificidadesprópriasdoentorno de sua produção. Assim, para além dos topoi, podem fornecer inestimáveis elementosparaareflexão.Essaéapropostaaquidesenvolvidapelaautora.

Em suma, o presente trabalho resulta da retomada da tese de doutorado defendidahápoucomaisdedezanosàluzdenovasreflexões.Asconclusõesdateseforamconfrontadasàsdaanálisesistemáticadedois livrosquecompõema compilação conhecida como Liber Sancti Jacobi, material organizado no século XII: o Liber secundus, que descreve milagres atribuídos a Santiago, e o Liber tercius, que trata da translação do corpo de Santiago para a Galiza e de suas festas. Mas o livro ora prefaciado não é apenas isso, é fruto direto dos anosdedicados aos estudosmedievaispela autora.As inquietaçõesnascidas àépocadoDoutoradoforamdevidamente trabalhadas,novasproposições foramincorporadas, temas perifericamente abordados receberam enfoque privilegiado, o domínio da bibliografia foi ampliado com novas e numerosas aquisições,os referenciais teórico-metodológicos foram enriquecidos com a perspectiva comparativa, enfim, trata-se de uma cuidadosa e impecável demonstração doexercício do historiador realizado com zelo e qualidade.

Leila Rodrigues da Silva

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Introdução

O culto aos santos iniciou-se ainda na Igreja Antiga, porém foi na Idade Média, com a expansão do Cristianismo, que se difundiram e consolidaram os centros de veneração aos santos, surgiram estratégias institucionais para o reconhecimentooficialdasantidadeedesenvolveram-seostextoshagiográficos,quesãoosprincipaisdocumentosnareconstruçãodofenômenodasantidadenoperíodo.1Dentreostextosdenaturezahagiográfica,ouseja,quetêmcomotemáticaa vida e/ou os feitos de uma pessoa considerada santa ou qualquer aspecto ligado ao seu culto, podemos destacar os Martirológios,osLegendários,asRevelações,as Atas de Mártires, as Vidas, os Calendários, os Tratados de Milagres, os Processos de Canonização, os Relatos de Trasladação e de Elevações.

Emnossapesquisa,selecionamosdoisconjuntosdetextoshagiográficospara uma análise comparativa. No primeiro encontram-se os livros II2 e III3 dacompilaçãoanônimaconhecidacomoLiber Sancti Jacobi, que reúne cinco livros.4 O LSJ II é um tratado de milagres atribuídos a São Tiago e o LSJ III narra a translação do corpo de São Tiago da Palestina para a Galiza e apresenta a festa dedicada ao santo. Esses livros foram elaborados no século XII, a partir de fontes diversas, e provavelmente organizados por distintos editores. No segundo grupo estão as obras Vida de San Millán de la Cogolla5 e Vida de Santo Domingo de Silos,6 compostas por Gonzalo de Berceo na primeira metade do século XIII.

Vale destacar que este livro é fruto da retomada de nossa tese de doutorado, aprovada em 1996, na qual analisamos somente as obras de Gonzalo de Berceo. O materialapresentadoaquiincorporounovasreflexõesresultantesdeumapesquisahistórica comparativa. Neste sentido, as conclusões da tese de 1996 foramconfrontadas com as da análise sistemática dos LSJ II e III. Na realização dessa comparaçãoforammantidosoarcabouço teórico,asquestõesnorteadoraseastemáticas de análise da tese, a saber: o tempo, o espaço, os personagens e aspectos davidacotidiana,aindaquealgunsdessestemasnãofiguremnoslivrosIIeIII

1.Parauma síntesedodesenvolvimentodahagiografianomedievoverVelázquez (2002,p.7-124).2.Apartirdesseponto,anãosernostítulose/ousubtítulosdasseções,utilizaremosasiglaLSJIIpara nos referirmos a essa obra. Sempre que citarmos um capítulo do LSJ, ele será indicado, após a referência em romanos ao livro, em números arábicos.3. A partir desse ponto empregaremos a sigla LSJ III para nos referirmos a essa obra.4. Alguns autores denominam essa compilação como Codex Calixtinus. Contudo, seguindo a Jo-seph Bédier, optamos por intitular como Líber Sancti Jacobi, reservando o título Codex Calixtinus para indicar unicamente o manuscrito conservado na Catedral de Santiago de Compostela (BÉ-DIER, 1912a).5. A partir desse ponto usaremos a sigla VSM para nos referirmos a essa obra. Indicaremos as estro-fes, também denominadas coplas, com algarismos arábicos, e os versos com as vogais a, b, c, d. 6. A partir desse ponto utilizaremos a sigla VSD para nos referirmos a essa obra. As estrofes e ver-sos serão indicados como os da VSM, conforme nota anterior.

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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do Liber Sancti Jacobi. Esse dado, aliás, fundamenta o pressuposto central deste trabalho: a despeito da temática religiosa de tais obras, da presença de diversos topoi cristãos,deseucarátermodelaredesuasintençõespropagandísticas,elassão materiais imprescindíveis para o conhecimento histórico das sociedades em que foram formuladas. Desta forma, são abordadas como produtos do diálogo com seus contextos históricos e dos interesses dos grupos específicos que aspromoveram. Logo, os LSJ II e III ocupam, na comparação, o papel de uma espéciedevariáveldecontrole,quepermiteaprofundarasconclusõeselaboradasnofimdatese.

Mas por que comparar a VSM e a VSD com os LSJ II e III? A opção pela análise comparativa de tais obras repousou em alguns critérios que passamos a enumerar.Emprimeirolugar,ocaráterhagiográficoeaproximidadetemáticadosLSJ II e II e das vidas de santos berceanas. Em segundo, como aponta Salvador Miguel, São Tiago, San Millán e Santo Domingo de Silos foram “competidores” (2003, p. 231), sobretudo no tocante à libertação de cristãos face aos muçulmanos. E, como sublinha Adeline Rucquoi, “a maior parte das cidades e dos vilarejos que pontuam o iter francigenus tal como descrito no Liber Sancti Jacobi não remontam além de 1100 e conheceram extraordinário desenvolvimento durante o século XII, suscitando assim a cobiça dos grandes mosteiros” (2007, p. 119). Em terceiro, pelo fato de tais obras serem frutos de ambientes diferentes e de teremsidocompostasvisandopúblicosespecíficoserespondendoamotivaçõesparticulares. Desta forma, enquanto o LSJ é um texto em latim e em prosa, vinculado ao bispado de Santiago de Compostela, as Vidas berceanas foram compostas em castelhano e em verso, incorporando diversos elementos da cultura urbana e universitária nascentes, e relacionadas ao Mosteiro de San Millán de la Cogolla.

Não encontramos trabalhos que se dedicassem a comparar, de forma sistemática, essas duas obras. Contudo, tanto os estudos sobre o LSJ quanto os dedicados às obras berceanas se iniciaram há mais de um século.

Segundo Pérez-Embid, “los orígenes y expansión del culto a Santiago en Galiciayfueradeellahanatraído,comoningúnotroaspectodelahagiografiahispânica, la atención de los historiadores” (2002, p. 55). Incontestavelmente foram elaborados dezenas de trabalhos sobre o culto a São Tiago de Compostela, particularmente sobre as peregrinações;7 contudo, poucos pesquisadores se dedicaram a analisar o LSJ e, em especial, os livros II e III,8 talvez por ter sido publicado integralmente há pouco mais de sessenta anos.

O LSJ foi redescoberto por Fidel Fita,9 pesquisador jesuíta vinculado à Real

7.Para um balanço dos estudos desenvolvidos no século XX, ver López Alsina (1994).8. A maioria dos trabalhos sobre o LSJ dedica-se a estudar o livro V, mais conhecido como Guia do peregrino. 9. Sobre Fidel Fita e sua obra, ver Abascal Palazón (1999).

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INTRODUÇÃO

Academia de la História de Madrid, por volta de 1880.10 Só em 1944 foi publicada a transcrição da obra, a partir do Codex Calixtinus, elaborada por Muir Whitehill. DuranteoséculoXX, foramrealizadasdiversasedições, tantodoconjuntodacompilação como de livros isolados, que também foram traduzidos para diversas línguas.11 No Brasil, foi publicada uma antologia bilíngüe, preparada por Maria do Amparo Tavares Maleval, com extratos dos livros II, III e IV, em 2005.

Igualmente no decorrer do século passado, vários autores se dedicaram a estudar o LSJ, objetivando discutir o seu processo de composição, autoria, datação, objetivos, etc. Dentro desse grupo, destacam-se os trabalhos de Gaston Paris, P. David, J. Bédier, A. Moisan, Díaz y Díaz, C. Hohler, K. Herbers, Mario Martins, K. J. Conant e Filgueira Valverde. Mais recentemente, em 2003, B. Gicquelvoltouaessasquestões.

Além dos aspectos relacionados à produção, o LSJ tem sido alvo de algumas análises em diversos campos do conhecimento. A partir do levantamento bibliográficoquerealizamos,identificamosalgumastendênciasquepassamosaapresentar. Em primeiro lugar, os estudos sobre os códices, como os de Jan Van Herwaarden,publicadoem1985,eAlainGuerry,de2004.Emsegundo,reflexõessobreasindicaçõestoponímicaspresentesnoLSJ,comonostrabalhosdeAnguitaJaén, Martínez Ortega e Santamaría Gómez. Em terceiro, as investigaçõesdesenvolvidas pelos historiadores da música, devido, sobretudo, ao caráter polifônico de alguns dos hinos, cujas partituras figuram na versão doLSJ doCodex Calixtinus.Uma amostragemdessas reflexões pode ser encontrada nosartigos reunidos em El Códice Calixtino y la música de su tiempo. Em quarto, a relaçãodoLSJcomoutrostextosmedievais,inclusiveoutrasversõesmedievaisdos milagres de São Tiago.12 Em quinto, os usos políticos do LSJ, como os de Menaca e Rucquoi. Em sexto, trabalhos de caráter filológico e semiológico,que visam discutir o sentido dos termos e símbolos presentes na compilação.13 E,porfim,destacamosostrabalhosquevisamanalisarepisódiosouelementosespecíficosdoLSJ,comomilagresouacaracterizaçãodosnavarros.14

Vale destacar que além de ser objeto de estudos específicos, o LSJ éfonte imprescindível para as pesquisas que tratam do culto a São Tiago ou das peregrinaçõesnoséculoXII,comonotrabalhoclássicodeParga,LacarraeRiue o de Hilário Franco Jr..

No Brasil, poucos se dedicaram a estudar essa compilação. Além das

10. Fita e Julien Vinson publicaram o livro IV pela editora Maisonneuve, em 1882.11. Dentre outros, destacamos, Moralejo (1951); Coffey; Davidson; Dunn (1998); Gicquel (2003); Bravo Lozano (1989).12. Cf., por exemplo, os trabalhos Ramirez Pascual (1995); Barbanès (2005); Molina Rueda; San Martín Vadillo (2003); Bravo Lozano (1993); Díaz y Díaz (1999); Yzquierdo Perrín (1999); Iñarrea Las Heras (2000, 2005); Valle Pérez (1989). 13. Como, por exemplo, os de Anguita Jaén (1996a, 1996b); Sánchez De La Torre (1998). 14.Destacamos,atítulodeexemplificação,Guiance(1991);Plötz(2007);Anieszka;LeVot(2001);García Dominguez (2003); Anguita Jaén (1999a, 1999b).

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já citadas obras de Maria do Amparo Tavares Maleval15 e Hilário Franco Jr., encontramos a dissertação de mestrado elaborada por Maria Carmen Martiniano, As facetas de São Tiago no Liber Miraculorum do Codex Calixtinus, orientada por Néri de Barros Almeida e defendida na UNESP em 2002, e o artigo de Maria Guadalupe Pedrero-Sanchéz sobre o sermão Veneranda dies, presente no livro I do LSJ.

Os estudos sobre Gonzalo de Berceo e sua obra iniciaram-se no século XVIII, momento em que foram feitas cópias manuscritas de seus poemas e vieramapúblicoasprimeirasediçõesimpressas.Noséculoseguinte,ostextosberceanos foram objeto de investigações de romanistas, hispanistas, filólogose historiadores.16 Estes pesquisadores acabaram por desenvolver e cristalizar uma visão romântica sobre o autor, considerado “[...] un poeta rural y popular, sencillo, humilde, ingenuo y candoroso, cuyos conocimientos de la lengua latina no pasaban de un nivel elemental” (ÚRIA MAQUA, 1992, p. 99).

Durante a primeira metade do século XX, as pesquisas sobre Gonzalo de Berceo e sua produção literária foram praticamente abandonadas. As poucas que surgiram mantiveram a imagem romântica construída no século anterior. A partir dadécadade60,porém,asinvestigaçõesforamretomadas,desencadeandoumaverdadeirarenovaçãoerevisãodasconclusõesdostrabalhosanteriores.Entreasdécadasde60e80multiplicaram-seosestudosmonográficoseapublicaçãodetextos que defendiam o caráter eminentemente culto deste autor e de sua obra.17

Dentre os trabalhos desenvolvidos na década de 60, destacam-se os de Brian Dutton. Segundo o historiador inglês, todas as obras escritas por Gonzalo de Berceo encontravam-se relacionadas ao Mosteiro de San Millán de la Cogolla, instituição da qual, defende o autor, fora notário e, portanto, um homem culto. Este, ao redigi-las, teria tido um objetivo bem pragmático: estimular as ofertas para o cenóbio.

Sem romper com a tese de que Gonzalo de Berceo era um letrado, a partirdefinsdadécadade70,algunstrabalhos,comoodeGarciadelaConcha,defenderam a hipótese de que o autor teria composto toda a sua obra com objetivoscatequéticos,nãopormotivaçõeseconômicas.Estatendênciaganhouadeptos, como Gregory P. Andrachuc, Cátedra, Menendez Peláez e Ardemagni, que sustentaram que o poeta castelhano teria sido um propagador dos cânones do

15. Maleval também é autora de um artigo sobre o sermão referente à festa de 24 de julho, presente no capítulo II do LSJ I. Cf. Maleval (2007). 16. Entre outros, Romero (1883); Fernández y González (1860); Cornu (1880); Ferotin (1900); Lanchetas (1900); Fitz-Gerald (1910).17. Para a renovação destes estudos, a criação do Centro de Estudios de Gonzalo de Berceo, em 1976,foifundamental,poispassouapromoverencontroscientíficoseapublicaredivulgarasobrase os trabalhos críticos sobre Gonzalo de Berceo e sua produção literária, estimulando novas inves-tigações.OCentrodeEstudiosdeGonzalodeBerceoestáligadoaoInstitutodeEstudiosRiojanos,órgãodoGovernodeLaRioja,eencontra-sesituadoemLogroño.Maioresinformaçõesnositeoficialdoinstituto:<http://www.larioja.org/ier/>.

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INTRODUÇÃO

IV Concílio de Latrão.No início dos anos 90, as pesquisas sobre Gonzalo de Berceo e sua produção

literária foram se tornando mais escassas. Entretanto, conforme apontava Isabel Úria, este fenômenonão significava “[...] un desinterés [...] sinomás bien uncompás de espera, una especie de tregua tras un período de intensidad investigativa” (1992,p.107).Assim,sobretudonofinaldaqueladécada,asinvestigaçõesforamrenovadas com o uso de novas perspectivas de análise, como a Antropologia,18 a História da Leitura,19 os Estudos de Gênero,20 a História da Sexualidade e do Corpo,21 e a História das Mulheres.22

Dos poemas VSM e VSD, há edições críticas23 e alguns estudos que abordamquestõesparticulares,24 tais como o vocabulário, as fontes e público de taisobras,bemcomoaanálisedealgumasestrofesespecíficas,ouainda,trabalhosde caráter geral e introdutório. Entretanto, praticamente não há pesquisas que procurem estudar a VSM e a VSD em conjunto. Só encontramos um trabalho nesta linha: um artigo que procura reconstruir a ordem cronológica e compara o processo de composição literária desses dois poemas, elaborado por Frida Weber de Kurlat e publicado em 1961.

Os estudos sobre Gonzalo de Berceo e a sua obra ainda são escassos noBrasil.Onúcleode pesquisas que reúneomaior númerode investigaçõessistemáticas sobre o poeta é o Programa de Estudos Medievais da UFRJ, onde atuamos.25Alémdemonografiasedissertaçõesquesededicamaestudarasobrasdo poeta, a cada ano são elaborados diversos textos, visando a apresentação em eventos de caráter acadêmico e publicação em periódicos.

FazendoumbalançodaproduçãobibliográficasobreGonzalodeBerceoesuaobra,podemosverificarquetrêsgrandeslinhasdeabordagemmarcamasreflexõesdesdeadécadade60:osqueclassificamoautoresuaobrade“ingênua

18. Como os trabalhos de Pérez Escohotado (1994); Quijera Pérez (1995).19. Dentro desse campo, destacam-se os trabalhos de Bower (2005); Fernández Pérez (2006); Pérez Escohotado (1993); Roberto González (2005).20. Dentre os trabalhos publicados, além dos artigos de nossa própria auto-ria, que estão listados na bibliografia final, destacamos o de Weiss (1996).21. Sobre a História da Sexualidade e do corpo ver Kelley (2005); Bower (2003); Balestrini (2000); Silva (2001b).22. No campo da História das Mulheres, ver, dentre outros, Benito Vessels (2003); Beresford (2002); Uría Maqua (2004); Josset (2000). 23. Segundo o Diccionario biobibliográfico de autores riojanos, já foram publicadas cerca de três ediçõescríticasdaVSMedezesseisdaVSD,contandocomasreedições.Cf.MartínezLatre(1993,p. 157-172).24. Faz-se importante ressaltar que o número de trabalhos dedicados ao estudo da VSD é superior aos que tratam da VSM. Cf. Martínez Latre, 1993, p. 172-214. Ver também o recente levantamento elaborado por Jaime González Alvarez, publicado na revista Memorabilia, n. 9, disponível em: <http://parnaseo.uv.es/Memorabilia/Memorabilia9/BiblioClerecia.htm>.Acessoem:10set.2007.25.Umaamostragemdessaspesquisaspodeservistaentreasmonografiasedissertaçõesdesenvol-vidas junto a esse núcleo de pesquisa: http://www.pem.ifcs.ufrj.br/colaboradores.htm

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e popular”, os que sublinham o caráter “culto e pragmático” de seus poemas e,porfim,osqueo caracterizamcomocatequista epropagadordos ideaisdaIgreja Papal. Assim, apesar da renovação e revisão dos estudos sobre Gonzalo de Berceo e sua obra nos últimos anos, ainda há muito a ser investigado.

Mas quem foram Tiago, Millán e Domingo, os homens considerados santos que motivaram a escrita de episódios de suas vidas?

Tiago,26 segundo os evangelhos, era um pescador (Mt. 4, 21-22) oriundo deBetsaidaJúlia(Jo.1,44),filhodeSalomé(Mt.27,56)eZebedeu(Mt.10,2;Mc. 3, 17) e irmão de João, conhecido como o Evangelista. Possuía uma espécie de sociedade para pesca, junto com o seu pai, seu irmão e Simão27 (Lc. 5,10), tarefa que abandonou para seguir a Cristo (Mt. 4, 18 - 22; Lc. 5, 1-11). Recebeu do Mestre, juntamente com seu irmão, o nome de Boanerges, termo que, como opróprioevangelhodeMarcosexplica(Mc.3,17),significafilhosdo trovão.A expressão talvez se refira ao temperamento exaltado e agressivo de ambos,conforme registrado em Lc. 9, 51 a 55. Quando os habitantes de um povoado da Samaria se recusaram a receber Jesus, eles teriam perguntado ao Mestre: “queres que ordenemos ‘desça fogo do céu para consumi-los’?” (Lc. 9, 54).28

EmdiversaspassagensdosevangelhosTiagofiguraacompanhandoJesus,tais como no episódio da cura da sogra de Pedro (Mc. 1, 29-31), da ressurreição dafilhadeJairo(Mc.5,35-43;Lc.8,51),datransfiguração(Mt.17,1-8;Mc.9,2-8; Lc. 9, 28) e no Getsêmani (Mt. 26, 36-46; Mc. 14, 33). Em 42, segundo Atos 12, 1-3, Tiago foi martirizado por ordem de Herodes Agripa.

Segundo Peretto, “a legenda apossou-se da figura de Tiago” (2002, p.1361). Assim, já no século III, circulava a notícia de que, ao ser conduzido ao tribunal, o apóstolo teria convertido o servo que o acompanhava. Nos séculos seguintes, alguns textos dedicados ao apóstolo foram elaborados, como Atos e Paixões do Pseudo-Abadias, composto por volta do ano 400, que introduz o relato da conversão dos magos Hermógenes e Fileto. Segundo López Pereira, em finsdoséculoVouiníciodoVIfoicomposto,naregiãodeNarbona–Lyon–Marselha, a Passio Iacobi (2001, p. 101).

Como ressalta Casariego, é possível inferir, pelas referências à presença de relíquiaseevocaçõesaSãoTiago,queocultoaosantojáestavadifundidoemdiversasregiõesdaHispânianoséculoVII(1979,p.13).Parailustrarasuatese,

26. O Novo Testamento menciona três Tiagos: Tiago, conhecido como Tiago Maior, um dos doze discípulosdeJesus;Tiago,filhodeAlfeu,tambémumdosdozeequeficouconhecidocomoTiagoMenor (Mt. 10,3; Mc. 15,40; Atos 1,13) e o Tiago que não se encontrava entre os doze, mas foi um dos dirigentes da comunidade cristã de Jerusalém e é denominado como “irmão do Senhor” (Mt. 13, 55; Mc. 6, 3; Atos 12,17; 15, 13- 19; I Co. 15, 7; Gl. 1, 19; 2, 9). 27. Jesus deu a Simão o apelido de Pedro (cf. Lc. 6, 14). Simão Pedro é considerado, pela tradição, como o primeiro papa.28. Outro episódio relacionado aos irmãos e registrado nos evangelhos é o pedido de sua mãe para que eles se sentassem um à direita e outra à esquerda de Cristo em seu Reino (Mt. 20, 20 a 23; Mc. 10, 35-40). Segundo Mc. 10, 41, esse fato causou indignação entre os demais discípulos.

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INTRODUÇÃO

oautortranscreveasinformaçõespresentesemumalápideconservadanaIgrejade Santa Maria de Mérida, datada da primeira metade do século VII:

Dedicata est hac aula ad nomem ([...]glo)riosissime Matri Domini nostri Hi (seu Xpi secun)dum carnem, omnium virginum princ (ipi atque regi)necunctorumpopulorumcatolicefidei([...]subcu)ius sacre are sunt recondite [[...]]de cruce Dni nostri, sci Iohanni Baptiste, sci S(tefani…)sci Pauli, sci Iohanni Evangeliste, sci Iacobi, sci Iuli (sani…)sci Eulaliae, sci Tirsi, sci Genesi, sce MarcelleSub d. VIII Kal. Febru (arias). (CASARIEGO, 1979, p. 13)

Outro vestígio da difusão do culto ao Apóstolo na Hispânia é a composição de dois hinos dedicados ao santo, compostos entre os séculos VIII e IX. Um deles, o Dei verbum, foi, com grande probabilidade, elaborado no Reino de Astúrias durante o governo do rei Mauregato, talvez por ocasião da dedicação de uma igreja(DIAZyDIAZ,1976.p.233).Ooutro,Gaudeat cum pia, foi transmitido de forma incompleta. Para Díaz y Díaz esse poema foi composto em Toledo e “puede representar el modo de pensar y venerar a Santiago en la antigua sede primacial de España” (1976, p. 234).

Se o culto a São Tiago na Península Ibérica é incontestável desde o período visigodo, as notícias sobre a sua pregação na região e sobre a descoberta de seu túmulo são tardias. Segundo Singul, o primeiro texto que indica a missão de SãoTiagonaHispâniaéacrônicadeMáximodeSaragoça,elaboradaemfinsdo século VI. Ele teria escrito, ao narrar os acontecimentos de 571: “existe em Saragoça um célebre e sagrado templo da mãe de Deus, chamado de a coluna, edificadopelodivinoSãoTiago”(apudSINGUL,1999,p.25).Paraohistoriadorgalego, essa passagem é uma evidência da pregação de Tiago na Hispânia. Não encontramosoutroautorquefizessemençãoaessacrônicacomoevidênciadapresença do apóstolo na Ibéria.

A segunda notícia figura na versão latina do Breviarium Apostolorum, datado do século VII: “Iacobus Spaniae et occidentalia loca predicat” (apud LÓPEZPEREIRA, 2001, p. 101). Segundo Peretto, “trata-se de uma evidente interpolação: o original grego não traz esta informação”. Para esse autor, contudo, “apóiam-se nesta interpolação, os futuros desenvolvimentos legendários” (2002, p. 1361). Por volta de 650, essa notícia foi inserida em uma obra de Isidoro de Sevilha, De ortu et obitu patrum (LÓPEZPEREIRA, 2001, p. 101), dando prosseguimento à lenda referente ao apóstolo.

Datadas do século VIII são as referências presentes em Beda, que menciona o traslado do corpo de Tiago para a Hispânia; em Beato de Liébana, que trata da pregação do santo em terras hispânicas, e em Adelmo de Malmesbury, que no

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Poema de Aris também menciona a prédica jacobéia (SINGUL, 1999, p. 29-35). O culto a Tiago se incrementou a partir do século IX, quando o suposto

túmulo do santo foi descoberto na diocese de Iria, na Galiza, por volta de 820-830.Anotíciafoiprontamentedivulgada,figurandonoMartirológiodeUsardo,no Martirológio de Floro de Lyon e em Adão de Toul, já em meados do século IX (CASARIEGO, 1979, p. 16). A partir do século X o túmulo passou a atrair peregrinosdediversasregiõesdaEuropaOcidental.NasegundametadedoséculoXI,foramsefixandorotasdeperegrinaçãoeaolongodasviasforamconstruídaspontes, cami nhos, calçadas, albergues, hospitais, tanto por iniciativa real quanto eclesiástica e laica, com o objetivo de dar segurança e comodidade aos peregrinos. Por volta do século XII, momento em que o LSJ foi compilado, cerca de 200.000 a500.000pessoas,dediversasregiõesdoOcidenteedevariadasorigenssociais,dirigiam-se anualmente para Compostela.29

No decorrer dos séculos, a lenda de São Tiago continuou se desenvolvendo, ganhando novos detalhes e aspectos. Vários textos foram elaborados para a divulgaçãodeseuculto,comooLSJ,ecristalizaram-serepresentaçõesdosanto.Segundo Ana Garcia Páramo, o Apóstolo era representado no medievo “siempre barbado, con el cabello cayéndole sobre los hombros, y de mediana edad. Puede aparecer en tres formas distintas, como apóstol, como peregrino y como caballero, aunque es frecuente quemotivos iconográficos de dos de estas situaciones sesuperpongan en una representación” (1993, p. 93). Sua festa é comemorada no dia 25 de julho, ainda que o LSJ apresente outras datas festivas relacionadas à trasladação, sepultamento, etc (LSJ III, 3).

Millán30 nasceu por volta de 474 no povoado riojano de Berceo.31 Ele foi um dos muitos que se dedicaram à vida eremita em La Rioja no período visigodo, porém, o que se tornou mais conhecido. Segundo Menjot, Millán “[...] c’est un des saints les plus grands, les plus célébres, les plus vénerés, les plus anciens de la péninsule ibérique” (1979, p. 158). Abraçou a vida eremítica com cerca de vinte anos, quando se tornou discípulo do eremita Felices, também conhecido como Félix de Bilibo, com quem aprendeu os rudimentos da vida eremítica.32

Após deixar o mestre, Millán viveu nas proximidades do povoado de Berceo como eremita. Com cerca de 60 anos, foi ordenado sacerdote pelo Bispo Dímio de

29. Sobre o número anual de peregrinos, ver a discussão realizada por Franco Jr. (1990, p. 100-102).30. O santo também é conhecido como Emiliano, mas optamos por utilizar a forma do nome em-pregada por Gonzalo de Berceo.31.OprimeirohagiógrafodeMillán,BráuliodeZaragoza,nãoinformaolocaldenascimentodosanto.SobreasdiscussõesquantoaolocaldenascimentodeSanMillán,veroartigodeGaiffier(1933).SobreBráuliodeZaragozaesuaobra,verolivroclássicodeLyncheGalindo,publicadoem 1950.32. Segundo Atienza, esta ida de Millán para junto de Felices possuía um caráter iniciático, manten-do, assim, traços de continuidade com a religiosidade pagã anteriormente estabelecida nesta região (ATIENZA,1994.p.65).

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INTRODUÇÃO

Tarazona, tornando-se membro do corpo eclesial de seu povoado natal.33 Como clérigo,passouautilizaropatrimônioeclesiásticoparadaresmolas,acabandopor levar à insatisfação o restante do clero berceano, o que culminou com o seu desligamento da vida eclesiástica secular. Millán voltou, então, a viver como eremita, dedicando-se à cristianização da população dos vales dos rios Najerilla e Cardeñas, bem como das montanhas Cantábricas, reunindo diversos seguidores, entre homens e mulheres.

Millán morreu em 574, sendo enterrado na cova em que vivera como eremita, que se transformou em local de peregrinação. Em 1067 seus restos mortais foram trasladados para a Igreja do Mosteiro de San Millán de Yuso,34 onde permanece até os dias atuais. A festa de San Millán é comemorada no dia 12 de novembro. Como a tradição lhe atribui a fundação do mosteiro que leva o seu nome, costuma-se representá-lo como monge, mas com um báculo abacial, fazendo uma alusão ao seu papel de abade da comunidade emilianense primitiva, ou, ainda, como pastor ou eremita.

San Millán é considerado o patrono de Castela, já que lhe é atribuído um milagre ocorrido no século X, quando, junto a São Tiago, teria sido visto lutando ao lado dos reis cristãos contra os mouros na batalha de Simancas.35 Por este motivo, também é representado montado a cavalo, com uma espada na mão.

Domingo nasceu no início do século XI, no povoado riojano de Cañas, La Rioja Alta.36 Oriundo de uma família nobre, foi ordenado sacerdote em 1030. Após certo período atuando como clérigo secular, optou pelo eremitismo, estilo de vida religiosa que persistia nas montanhas riojanas. Posteriormente, decidiu tornar-se monge, sendo admitido no Mosteiro de San Millán de la Cogolla. Ali permaneceu por cerca de dez anos, chegando a ser o encarregado de Santa Maria de Cañas, um dos cenóbios dependentes do emilianense, e ordenado prior do Mosteiro de San Millán de la Cogolla.

ApósconflitoscomomonarcaGarciadeNájera,pornegar-seaentregarrendas do mosteiro emilianense,37 Domingo exilou-se em Castela, sendo nomeado pelo rei Fernando I38 abade do então mosteiro de São Sebastião de Silos, com o

33.SobreascontrovérsiashistoriográficasquantoàordenaçãodeMillánpeloBispodeTarazona,verojácitadoGaiffier;SáinzRipa(1994,p.92–93).34. San Millán de Yuso é o nome dado à nova Igreja do mosteiro emilianense que foi construída na primeira metade do século XI (DUTTON, 1992, p. 120).35. Nesta ocasião, segundo o Privilegio de Fernán Gonzalez, os castelhanos teriam feito um voto a San Millán, pelo qual entregariam periodicamente tributos ao mosteiro emilianense. Cf. Dutton (1984a, p. 1-25).36.ParamaisdadossobreabiografiadeDomingodeSilosverMorenoMartinez (2003).37.OreiGarciadeNájeraerafilhodeSancho III,oMaior,e irmãodeFernando IdeCastela.Governou o Reino de Pamplona entre 1035 e 1054. Nesse momento, La Rioja pertencia ao reino pamplonês, cuja corte encontrava-se na cidade de Nájera. Sobre o Reino de Nájera, ver Pradilla Mayoral (1991).38. Fernando I foi um patrocinador da Reforma Eclesiástica na Igreja Ibérica. Sobre o tema ver

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objetivo de restaurá-lo. Segundo a tradição, o mosteiro de Silos teria sido fundado pelo rei visigodo Recaredo, em 593.39 Após um período de esplendor no início do século XI, depois das campanhas de Almanzor, este cenóbio encontrava-se praticamente abandonado.

Domingo foi abade de Silos entre 1041 a 1073. Promoveu a restauração dos edifícios da abadia, introduziu a reforma disciplinar, organizou a biblioteca e o scriptorium.Osrecursosvieramdasvolumosasdoaçõesdetrêsreiscastelhanosconsecutivos: Fernando I, Sancho II e Alfonso VI. Foi durante esse período que seiniciouoflorescimentoeconômicoeintelectualdocenóbio,que,apósamortedo santo, passou a chamar-se Mosteiro de Santo Domingo de Silos.

O abade Domingo também participou da corte castelhana. Acompanhou reis em diversas viagens, passou temporadas na corte e foi um dos responsáveis pela trasladação dos mártires hispânicos Vicente, Sabina e Cristela e dos santos Isidoro de Sevilha e Alvito.

Domingo faleceu em 1073. Ele não foi canonizado pelo papa. Dois eventos, contudo,apontamparaoreconhecimentooficialdesuasantidade:amudançadonome do mosteiro em que foi abade, de São Sebastião de Silos para São Domingo de Silos, em 1076, e a consagração, em 1088, de um altar sob a sua proteção em Silos, na presença do legado de Gregório VII (GARCIA DE LA BORBOLLA, 2003, p. 449). Seu culto foi logo difundido. No mosteiro de San Millán de la Cogolla, por exemplo, eram encontradas, no século XIII, relíquias deste santo (GAIFFIER, 1935, p. 96). A festa dedicada a Domingo, que se tornou famoso como libertador de cativos cristãos junto aos mouros,40 é comemorada em 20 de dezembro. Este santo quase sempre é representado junto a mendigos, crianças e prisioneiros, vestido como bispo, com mitra e báculo, tendo, por baixo dos ornamentos, o hábito negro beneditino.

***

Nossa pesquisa teve como objetivos principais debater o valor das hagiografiascomomonumento,visãoememória,destacandoarelaçãoentreosLSJIIeIII,aVSMeaVSDcomseucontextodeprodução;identificareanalisarascorrentesculturaisqueinfluenciaramacomposiçãodostextoshagiográficosanalisados; e discutir o papel social dos hagiógrafos na Península Ibérica medieval, como construtores de memória e divulgadores de uma dada visão sobre o mundo social. Para problematizar a questão, optamos por analisar as obras a partir dos

Sanz Sancho (1998); Orlandis (1976).39. Entretanto, o primeiro documento preservado que apresenta referências a este mosteiro data de 919. Cf. Linage Conde (1972, p. 617).40. Por volta de 1294 ou 1295, um monge de Silos, Pero Marin, redigiu uma obra que narra os mila-gres de redenção de cativos cristãos entre muçulmanos realizados por Domingo no período de 1232 a 1293, intitulada Los Milagros romançados. Essa obra foi editada em 1988 por Karl-Heinz.

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INTRODUÇÃO

seguintes temas: espaço; tempo; alguns tipos sociais, como homens piedosos, pecadores, pobres, reis e mulheres; e aspectos do cotidiano, como o nascimento, a morte, a vida familiar, a educação, as atividades produtivas, etc., debatendo como foram apreendidos e representados nas obras selecionadas.

Por sua problemática e objetivos, nossa pesquisa insere-se no campo da História Cultural, pautada no paradigma pós-moderno. Assim, dentre outros pontos, realçamos a subjetividade dos sujeitos e da linguagem; defendemos que a apreensão do real só é possível através dos signos, das interpretações,dasrepresentações;elegemosoestudodoparticular,renunciandoàbuscapelasorigens,regularidadesouleiscausaisegeraisparaaexplicaçãodosfenômenos;privilegiamosasinvenções,asinconstâncias,ascontradições;problematizamosa configuração das identidades. Partindo desse paradigma, elaboramos quatropressupostos teóricos básicos.

O primeiro pressuposto é que o homem é o único ser capaz de simbolizar. A esta capacidade humana de simbolizar, criar e recriar, e aos produtos dessa simbolização, que permite aos indivíduos compreenderem e relacionaram-se com o mundo social, denominamos cultura. A cultura compreende, portanto, todas as criações humanas, sejam configurações intelectuais, identidades, práticase instituições.41 Contudo, a cultura não é um dado universal; é dinâmica e transforma-se com o desenrolar do tempo; varia em função do lugar, do grupo social e, até, de indivíduo para indivíduo (HUNT, 1992, p. 18).

O segundo baseia-se no papel da linguagem, no sentido amplo de forma de expressão, como meio pelo qual os homens organizam a construção, apreensão e interpretação do mundo social (CHARTIER, 1990, p. 17). Logo, há uma constante inter-relação entre o homem, o que é criado ou apreendido, e a linguagem.

O terceiro aponta para a dimensão social do homem, que vive interagindo comoutros.Éjustamenteapartirdoscontatos,diálogos,confrontos,tensõesecompromissos que os homens estabelecem constantemente entre si, “[...] que cadaindivíduo“recebe”[informações,idéias,valoresetc[...]]etemcondiçãode“reproduzir” [...] e/ou reelaborar [o que recebe]” (CHARTIER, 1990, p. 22). É nesta interação do homem com o mundo social e do homem com outros homens quevãoseestabelecendoaspráticas,asrepresentaçõeseasinstituições.

O quarto e últimopressuposto teórico que norteou nossas reflexões é aidéiadequeéimpossívelclassificarashagiografiasmedievaisnumaperspectivaunilateral e geral, seja como obras “populares”, “cultas”, de “catequese” ou “propaganda eclesial”, porque cada uma delas reúne um grande número de objetivos e elementos culturais diferentes. Como destaca Chartier: “[...] já não parece mais possível persistir na tentativa de estabelecer correspondências estritas

41. Como ressalta Chartier, o conceito de representação “[...] permite articular três modalidades da relaçãocomomundosocial:[...]comoconfiguraçõesintelectuais,[...]comopráticasqueobjetivamuma identidade social e [...] como formas institucionalizadas e objectivadas [...]”. (CHARTIER, 1990, p. 23).

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entredicotomiasculturaisehierarquiassociais,criandorelaçõessimplistasentredeterminados objetos ou formas culturais e grupos específicos” (CHARTIER,1992, p. 230). Assim, em nossas reflexões, defendemos que só é possívelcompreender a complexidade da cultura medieval, da qual as hagiografiasmedievais selecionadas são vestígios, quando nos libertamos das dicotomias, como clérigo versus leigo, culto versus popular, dominantes versus dominados.

Em nosso trabalho, portanto, analisamos as hagiografias selecionadasnuma perspectiva que rejeitou as classificações e oposições totalizadoras.Buscamosidentificarapluralidadedaspráticaserepresentaçõesculturais,atentosaos empréstimos e intercâmbios culturais presentes no seio das sociedades (CHARTIER, 1992, p. 231). Nesse sentido, nos concentramos nos processos de apropriação cultural, em que há espaço para a “invenção criativa”, e utilizamos os conceitos de apropriação e representação propostos por Roger Chartier (1992, p. 231).

Ao abordamos as hagiografias, enfatizamos o estudo dos processos designificação,poisnãoconsideramosqueexistamsentidosnaturaisouatemporais.Desta maneira, refletimos sobre as intenções e estratégias que motivaramseus autores, sua intradiscursividade, sua interdiscursividade e seu contexto (CORTINA, 2000, p. 261-265). Como destaca Molino, o texto é somente o traço visível do processo comunicativo, a ponta do iceberg que deve ser conectada às outras dimensões do fenômeno simbólico: as estratégias de produção e derecepção, que fazem parte do processo simbólico da mesma forma que o texto (MOLINO, 1989, p. 15). Em outras palavras, os textos, por si só, não contém todasasexplicaçõesquantoasuaprodução,fazendo-senecessáriolê-losàluzdeseu ambiente de produção, enunciação e transmissão.

Para a análise dos textos selecionados, optamos pelo uso de diferentes técnicas:alexicográfica,asemântica,anarrativa,adiacrônicaeasincrônica.Naanáliselexicográfica,nosdetivemosnoestudodosentidodaspalavrasempregadaspelo autor como indícios de seu discurso. Partindo da idéia de Joan Scott, de que“meaningsarenotfixedinaculture’s lexicon”(1988,p.5),selecionamosunidades de análise, ou seja, alguns termos e suas variações, e verificamosque sentidos produzem. Na semântica, optamos por analisar o texto a partir de categorias, como, por exemplo, os adjetivos associados a um personagem em certa narrativa, ou palavras dentro do mesmo campo semântico. Em alguns casos tambémutilizamosaanálisedanarrativa,quandobuscamosidentificareanalisarosdiversoselementosqueconfiguramanarrativaequeatornamum“tododesentido”, como o enredo, as personagens e sua caracterização, a presença ou ausênciadeumnarradoreasuaformadeinserçãonanarração,seháindicaçõestemporaise/ouespaciais,etc.Porfim,destacamosousodasanálisessincrônicaediacrônica,pelapróprianaturezacomparativado trabalho.Aoempregarestatécnica,analisamosostextosemseucontextoliterárioemperspectivasincrônica,ou seja, dos textos que lhe eram contemporâneos; e diacrônica, dos que o

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INTRODUÇÃO

antecederam.42 Comometodologia, utilizamos ométodo comparativo tal como propõe

Kocka (2003, p. 41). Para esse autor, a comparação histórica não deve partir do pressuposto de que os fenômenos comparáveis possuem continuidade ousão mutuamente influenciados, mas da noção de que cada caso é particular,independente.Aoanalisarmosashagiografias,portanto, levantamosdadosqueforam tratados, primeiramente, de forma particular, à luz de seus contextos de produção/reprodução, e que, posteriormente, foram reunidos através da análise comparativa. Assim, através da comparação, foi possível detectar as particularidades de cada texto hagiográfico, a despeito de suas característicasexemplares e propagandísticas. A metodologia comparativa de Kocka ajusta-se, portanto,ànossareflexãodematrizpós-moderna,quevisaprivilegiaroqueéincomum.

Nossasinvestigaçõessepautaramemdocumentosmedievaisescritosquese encontram divididos em três grupos. No primeiro, reunimos o LSJ e as vidas de santos escritas por Gonzalo de Berceo, a VSM e a VSD, que foram nossos objetos de estudo. No segundo, as fontes destas obras e, no terceiro, documentos de caráter público e privado, tanto laicos quanto eclesiásticos, que permitiram discutir o contexto de produção das obras.

O Codex Calixtinus, conservado nos arquivos do capítulo da Catedral de Compostela, é o mais antigo e completo exemplar do LSJ (VIANT, 2005, p.49).Elefoiabaseparaaelaboraçãodasduasediçõesqueutilizamosnessetrabalho. A de Moralejo, que contém todo o texto da compilação, e a de Maleval, edição bilíngüe, latim-português, dos livros II, II e IV. Ao transcrevermos essa obra,utilizamosasduasedições.Priorizamosaemportuguês,masutilizamosatraduçãoespanholaquandootextocitadonãofiguranaediçãobrasileira.

A VSM só foi transmitida completa por meio de cópias tardias, realizadas noséculoXVIII,porém,segundooscríticos,muitofiéisaotextooriginal.Dentreessas cópias, duas tomaram como base um manuscrito datado de mea dos do século XIII, hoje perdido, denominado Q: as cópias O e M que, de fato, são partes do mesmo texto copiado por Diego Mecalaeta,43 e a cópia conhecida por I, realizada sob a direção do Padre Domingo Ibarreta e que está no Mosteiro de Santo Domingo de Silos. No Arquivo de Valladolid, encontra-se a cópia denominada L. Nesta há duas estrofes consideradas espúrias: 480a e 480b. Não se sabe ao certo que manuscrito anterior lhe foi tomado como base. Há também um manuscrito datado do século XIV, o F, que está na Academia Española de La Lengua, que contém fragmentos do poema. Em nosso trabalho, para o estudo da VSM empregamos dois textos críticos preparados por Brian Dutton,

42. Sobre essas técnicas de análise, ver nosso artigo Reflexões metodológicas sobre a análise do discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero, já citado.43. O contém as estrofes 1 a 205 e pertence ao acervo da Biblioteca Nacional de Madrid e M, as estrofes 206 a 489, e acha-se no Arquivo dos Beneditinos de Valladolid.

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publicados em 1984 e 1992, respectivamente, que tomam o ma nuscrito I como base,corrigindo-o,quandonecessárionotocanteàsgrafias,porF e M.

A obra VSD foi conservada por três ma nuscritos medievais. O primeiro, o S, que se encontra no Mosteiro de Silos, é datado de 1240. Acredita-se que é uma cópia, feita em San Millán de la Cogolla por um monge silense. O segundo é o manuscrito H, da Real Academia de la Histo ria, datado de 1360. Trata-se de uma cópia de S, provavelmente realizada para o Mosteiro de San Martin de Madrid, entãofiliadoaoMosteiro de Santo Domingo de Silos. O terceiro, o manuscrito E, que também perten ce à Real Academia de la Historia, é uma parte do manus crito F, acima apresentado, que também contém fragmentos da obra VSM.

Para o estudo daVSD, graças aomaior número de edições da obra jápublicadas disponíveis, tomamos como base para nossas análises quatro textos críticos: o de Brian Dutton, de 1979, baseado em S, corrigindo-o por H e E; os preparadosporAldoRuffinato,de1978e1992,tambémbaseadosem S e corrigidos por E, e o texto crítico de Teresa Labarta Chaves, de 1984, que reconstrói o texto dopoemaberceanobaseando-senosmesmoscritériosdeRuffinatto.44

A fim de nos aprofundarmos no estudo das hagiografias selecionadas,reconstruindoaspráticasdeleitura,aoriginalidadeeasadaptaçõeselaboradaspor seus autores/editores,45 também consultamos um tratado de milagres de São Tiago, que foi composto no mesmo período que o LSJ II, e as principais fontes das obras berceanas.

Em 2004, Ramírez Pascual publicou uma coletânea de 14 milagres atribuídos a Tiago, preservados no Códice II do Archivo Catedral de Santo Domingo de la Calzada.46 Segundo o editor, tal coletânea foi elaborada no século XII,provavelmentenaprimeirametade(2004,p.110).Nessaobrafiguramsetemilagres que também foram incorporados no LSJ II e que, para o estudioso, “proceden claramente de un mismo texto original” (RAMÍREZPASCUAL, 2004, p. 111). Utilizamos essa edição para a confrontarmos com os milagres do LSJ II.

Uma das principais fontes da VSM, a Vita Sancti Emiliani de Bráulio deZaragoza, foi transmitidapordiversosmanuscritos.Cincoencontram-senaBiblioteca de la Academia de História, todos proce dentes do Mosteiro de San Millán de La Cogolla; um na Bibliote ca de Alcobaça; um na Biblioteca de El Escorial; e dois na Biblio teca Nacional de Madrid. Os mais antigos manuscritos provêm do século X. Essa obra foi editada e impressa várias vezes, datando de 1601 sua primeira publicação. Em nosso trabalho utilizamos a edição de Luis Vazquez de Parga, baseada nos melhores manuscritos medievais, datada de 1943. Para o estudo das demais fontes da VSM, como o Privilegio de Fernán Gonzalez

44.Aindaquetenhamosutilizadodiversostextoscríticosnodecorrerdenossasinvestigações,op-tamos por transcrever os poemas de Gonzalo de Berceo segundo a edição organizada por Isabel Úria Maqua.45. Sobre a questão dos autores/editores trataremos no próximo capítulo.46. Em 1993, o autor apresentou uma primeira edição desses milagres na Revista Peregrino.

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INTRODUÇÃO

e as obras de Fernandus, monge emilianense, também contamos com a edição crítica de Brian Dutton, já citada.

A Vita Dominici Silensis é a fonte latina da VSD. Essa obra também foi preservada em vários manuscritos. Desses, os mais importantes são o nº 5 da Real Academia Española, datado do século XV, e o Códice nº 5, do século XIV, perdido no século XIX, e reencontrado em 1915. Essa obra foi impressa pela primeira vez por Sebastián Ver gara, em 1736, valendo-se de todos os manuscritos então conhecidos. Em nosso trabalho, utilizamos uma edição crítica publicada em 1982, elaborada por Vitalino Valcárcel.

ParaareconstruçãodoambienteculturaldeproduçãodashagiografiasemanáliseedabiografiadeGonzalodeBerceo,detivemo-nosnoestudodeváriosdocumentos impressos disponíveis, organizados em coletâneas ou publicados em revistas especializadas. Empregamos a História Compostelana para o estudo da diocese de Compostela no século XII. Utilizamos a edição crítica da obra preparada por Ema Falque Rey, publicada em 1994. Para o estudo de Gonzalo de Berceo e seu contexto, utilizamos a edição de documentos riojanos, de diversas naturezas,datadosde923afinsdoséculoXIII,preparadaporIldefonsoRodríguezR. de Rama, e duas coletâneas de documentos do Mosteiro de San Millán de la Cogolla,organizadasporUbietoArtetaeMariaLuísaLedesmaRubio.E,porfim,os documentos coletados e publicados por Menéndez Pidal, Bujanda, Joaquín Peña de San José e Hergueta.

Para o estudo dos discursos oficiais da Igreja Romana nos remetemosaos cânones dos Concílios de Latrão. As Atas originais desses concílios não foram preserva das. Há, entretanto, cópias elaboradas ainda na Idade Média: do I Concílio de Latrão, através da obra Historia regum, de Simão de Durham; do II, pelo Decreto de Graciano; do III, na Crônica de Roger de Hoveden e na Gesta Regis;edoIV,porumacópiaelaboradaem1216.Apesardasdiversasediçõesdoscânones,elaboradasapartirdoséculoXVII,sóháduasediçõescríticascomvalorcientíficoequeforamutilizadasemnossaspesquisas:adeHefele-Leclerq,organizada no início do século XX, e a de Raimunda Foreville, da década de 1960, a edição crítica mais completa.

Elaboramos duas hipóteses iniciais de trabalho. A primeira: os textos LSJ II, LSJ III, VSM e VSD, ainda que com caráter modelar, propagandísticos e construídos repletos de topoi, apresentam recursos textuais que visam alcançar objetivosespecíficos.AmetaprincipaldoLSJédivulgarafestadeSãoTiagoe reforçar o caráter apostólico do bispado de Compostela. As Vidas berceanas buscam engrandecer a vida monástica tradicional, face aos novos movimentos religiosos, em especial osmendicantes e os cônegos regulares.A segunda: asobras LSJ II, LSJ III, VSM e VSD, ao reconstruir e representar o espaço, o tempo, as personagens e o cotidiano, apreenderam e representaram o mundo social de formacriativae crítica, elaborando,porum lado, reflexõesquedestoavamdodiscurso oficial da IgrejaRomana ou não estavam em sintonia completa com

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o saber escolar e, por outro, divulgam, a partir de um lugar de autoridade, uma dada perspectiva sobre aspectos do mundo social, fruto das experiências e compromissos dos autores/editores.

Nosso trabalho está dividido em seis capítulos, finalizando com umaconclusão. No primeiro, fazemos uma discussão sobre a autoria do LSJ, apresentamosumabiografiadeGonzalodeBerceo e tratamosdo contextodeprodução das obras em estudo. No segundo, contextualizamos o LSJ e as vidas de santos berceanas no ambiente literário de sua produção, discutindo a natureza historiográfica dessas obras hagiográficas. No terceiro, estudamos diversosaspectos das obras selecionadas: cronologia, organização, fontes, processo de composição e público a que estavam destinadas. No quarto, discutimos como espaço e tempo são representados nas hagiografias analisadas. No quinto, ospersonagens. No sexto e último capítulo, apresentamos um estudo sobre as representaçõesdeaspectosdocotidiano.

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Capítulo I

Autoria e contexto social de produção das

obras

O objetivo deste capítulo é discutir a questão da autoria do LSJ e analisar o contexto social de produção dessa obra, bem como o das Vidas berceanas. Vale destacar que, enquanto a autoria do LSJ ainda é um tema controverso, Gonzalo de Berceo é, unanimemente, aceito como autor da VSM e da VSD. Além do nome, diversos documentos preservados permitem construir, ainda que com lacunas, a trajetória do poeta e seu contexto social. Em contrapartida, ainda que nãopossamosafirmarcomcertezaquemfoioautor/redatordoLSJ,éevidentealigação dessa obra com o episcopado compostelano no século XII, sobre o qual háabundantedocumentação,oquetornapossíveltraçarconsideraçõessobreaconjuntura social na qual se produziu a compilação.

Os contextos sociais de produção das obras foram analisados de forma diferente. No tocante ao LSJ, primeiro apresentamos a discussão sobre a autoria, finalizandocomanossaposição.Aseguir,tratamosdoBispadodeCompostelano século XII. Em relação às obras berceanas, elaboramos uma biografiacontextualizada de Gonzalo. Esse diferente tratamento resulta dos tipos de testemunhosquetemosdisponíveisparatratardecadaumadashagiografiasemestudo.

1.1 A autoria do Liber Santi Jacobi

A autoria do LSJ é atribuída ao papa Calixto II (1119-1124), já que aparece comoautordeumgrandenúmerodostextosqueformamaobra,comosermões,milagres e cartas (MORALEJO, 1951, p. 7). Esse papa, natural da Borgonha, foiabadedeCluny.FicouconhecidoporfirmarcomoimperadorEnriqueVaConcordata de Worms, em 1122; opor-se ao antipapa Gregório VIII; convocar e dirigir o Concílio de Latrão I; e promover a Segunda Cruzada. Ele era irmão de RaimundodeBorgonha,primeiroesposodeDonaUrraca,filhadeAfonsoVI,que foi rainha de Leão e Castela.1

Nenhum pesquisador contemporâneo aceita essa autoria para o LSJ. Além do próprio códice, não há qualquer outro testemunho que o corrobore. As demais obras de autoria de Calixto II preservadas não mencionam essa compilação, e o texto apresenta incoerências cronológicas face à trajetória desse pontífice,além de um estilo literário bem diferente (GUERRY, 2004, p. 22). Assim, Díaz

1. Sobre o governo de Calixto ver, dentre outros, a edição dos Lateranenses I, II, III elaborada por RaimundaForeville,quefazalgumasreflexõessobreapolíticadestepontífice.

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y Díaz (1988, p. 81) opta por denominar o possível autor como Pseudo-Calixto. Outro autor apresentado na obra é o bispo Turpin, arcebispo de Reims, a quem é atribuída a redação do livro IV.2 Mas essa autoria também não é aceita pelos estudiosos modernos.

Várias hipóteses foram formuladas e muitos textos escritos visando apontarumnomeparaaautoriadoLSJou,aomenos,identificaromeiosocialdesuacomposição.UmdosprimeirosarefletirsobreaquestãofoiBédier.Paraesse pesquisador, o LSJ é fruto do trabalho de cluniascenses da Gália, que se preocuparam, sobretudo, em introduzir a liturgia romana no culto a São Tiago (BÉDIER, 1912b, p. 88-91). As conclusões desse autor foram seguidas pordiversos estudiosos, como Conant, Mário Martins e Filgueira Valverde. Franco Jr.,quetambémaceitaessahipótese,chegaaafirmar:

Quanto às dúvidas que existiram num certo momento historiográficosobreapaternidadecluniascensedoLiber Sancti Jacobi, elasabsolutamentenãoprocedem,comoseverificafacilmenteporumaanálise interna do texto e pela simples observação do colofão da obra: este códice foi escrito em vários locais, a saber, em Roma, em terras de Jerusalém, na Gália, na Itália, na Alemanha e na Frísia e principalmente em Cluny. (FRANCO JÚNIOR, 1990, p. 125, nota 49)

Alguns autores rejeitaram essa hipótese e defenderam, como Lambert (1946-1947, p. 375), que o autor era um clérigo, mas não regular, francês,3 e ligado ao bispo compostelano Diego Gelmírez. Vários pesquisadores acolheram essa hipótese, ainda que com variantes, e um nome foi proposto: Aymeric Picaud, que aparece duas vezes no LSJ: no fólio 190v -191 e no 192 (GUERRY, 2004, p. 24).

SegundoPaulaGerson,Aymeric era um antropônimomuito comumnoperíodo e pelo menos outras duas pessoas com esse prenome estavam associadas ao bispado de Compostela no século XII, segundo a Historia Compostelana: um chanceler da cúria romana entre 1120 a 1141, período que inclui o governo de

2. “Turpin, por la gracia de dios arzobispo de Reims y constante compañero del emperador Carlo-magno en España, a Luitprando, Dean de Aquisgran, salud en Cristo. Puesto que ha poco, mientras me hallaba en Viena algo enfermo por las cicatrices de las heridas, me mandasteis que os escribiera cómo nuestro emperador, el famisísimo Carlomagno, liberó del poder de los sarracenos la tierra española y gallega [...] Puesto que vuestra autoridad no ha podido encontrar completas, según me escribisteis, las hazañas que el rey realizó en España, divulgadas en la crónica real de San Dioni-sio, sabed, pues, que [...] en modo alguno escribió en ella detalladamente y, sin embargo, en nada difieredeellaestevolumen.QueviváisconsaludyseáisgratoalSeñor”(LSJIV,Prólogo).Comojáassinalamosnatradução,astranscriçõesdoLSJforamretiradas,quandoemespanhol,daediçãode Moralejo e, em português, do trabalho de Maleval. 3. A procedência francesa da compilação também é destacada por Moralejo, ainda que sublinhe que o Codex “tenga adherencias hispánicas”. (MORALEJO, 1951, p. 72).

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AUTORIA E CONTEXTO SOCIAL DE PRODUÇÃO DAS OBRAS

Calixto II, e um monge de Jerusalém enviado pelo patriarca Estevão por volta de 1131.4HápouquíssimasinformaçõessobreAymericPicaudnadocumentaçãodo período preservada: ele era presbítero em Parthenay-le-vieux, localizado em Poitou (GUERRY, 2004, 24).

Para René Louis e Moisan, todo o LSJ é obra de Aymeric. Para Vielliard, ele só foi autor do Livro V, o chamado Guia do Peregrino.5 Segundo Bodelon, esse presbítero foi o responsável por reunir e levar textos diversos, em meados do século XII, para o bispado de Compostela. Esse material foi unido a poemas escritosnaprópriadiocesenofinaldoséculoXII(1989,p.92-96).ParaVázquezde Parga, Lacarra e Úria Riu, Aymeric foi o coordenador da compilação: reuniu e ordenou o material que integra o LSJ, mas sem qualquer relação com Cluny (1949, p. 175 e 178). Para David, ele foi um dos editores da obra (1945, p. 25-26).

Alain Guerry, que também defende a autoria ou coordenação de Aymeric, fundamenta a sua hipótese com alguns argumentos. O LSJ não fala bem dos espanhóis, só menciona uma rota de peregrinação espanhola, quando apresenta quatro francesas, e a maioria dos milagres narrados aconteceram na França; logo, o autor era francês. Grande parte dos textos presentes nos livros I, II e III trata de milagres e liturgia e foram escritos com um espírito moralizador e imerso em uma grande cultura teológica; assim, o autor era um clérigo. O códice, em dois pontos, cita “Aymericus Picaudi presbiter de Partiniaco”, que, para o autor, é o nome desse clérigo francês (GUERRY, 2004, p. 22 -24).

Estudos mais recentes rejeitam a busca de um único autor, insistindo, portanto, no caráter coletivo da obra. Assim, para Gicquel, o LSJ é resultado de um lento trabalho de redatores sucessivos, a partir de textos mais antigos (GICQUEL, 2003, p. 181, 184 e 198). Pérez-Embid (2002, p. 170) destaca que, enquantoo livro I possuiumaclara influênciadeClunyeos IVeVmantêmestreita relação com as lendas elaboradas na abadia de Saint Denis, o livro III deve ser de autoria de um autor vinculado a Compostela.

Díaz y Díaz, que fez um estudo minucioso do Codex Calixtinus, também concluiu que o LSJ é resultado da reunião de peças litúrgicas elaboradas por franceseseitalianosnosséculosXIeXIIedemateriais,comosermões,narrativasde milagres e de trasladação, elaborados em Compostela, ainda que querendo dar aimpressãoqueeramtextosdeautoresfranceses(DÍAZYDÍAZ,1993,p.393).A mais importante contribuição desse autor, contudo, foi sublinhar o papel de Diego Gelmírez na produção da compilação. Segundo o pesquisador, “a idéia do LSJsaiudeambientesgelmirianos”(DÍAZYDÍAZ,1988,p.85-86,89).

4. Cf. o artigo de Paula Gerson: Aymery Picaud: Author of the Pilgrimins Guide to Santiago de Compostela, or JustAnotherSingingPilgrim? [19--].Disponível em:<http://tell.fll.purdue.edu/RLA-Archive/1994/French-html/Gerson,Paula.htm>.Acessoem:31ago.2007.5. Cf. Vielliard (1938, p.13). Essa idéia foi aceita por outros autores, como Rubio Tovar (1986, p. 42-43).

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Em artigo publicado em 2007, Rucquoi retoma essa hipótese. Analisando brevementecadaumdoslivrosquecompõeoLSJ,aautoradestacaqueaobrafoi organizada em Santiago, sob o episcopado de Diego Gelmírez, visando inventar “um caminho, ao mesmo tempo real e maravilhoso, que leva os grandes santuários de peregrinação do século XI – Jerusalém, Roma, Saint Martin de Tours, Vézelay, Le Puy, Saint Gilles – em direção à basílica de Santiago de Compostela” (RUCQUOI, 2007, p. 117).

Como já assinalamos, o LSJ é uma compilação. Neste sentido, apesar de manter uma grande coerência interna, já que seu conteúdo está todo relacionado a São Tiago, certamente é o resultado da junção de textos variados, elaborados por pessoas diferentes e em momentos diversos. Assim, o conjunto hoje conhecido como LSJ é fruto da ação de múltiplos autores e também de um ou mais redatores, que reuniram diretamente ou coordenaram a integração dos diversos materiais que hoje formam a obra. Por isso, ao nos referirmos ao LSJ, acreditamos ser impossível falar de um autor, mas de muitos autores/redatores que contribuíram para a sua construção.

Defendemos, seguindo a Díaz y Díaz e Rucquoi, que esse redator/coordenador elaborou a compilação por ordem de Diego Gelmírez. Como destaca Pérez-Embid, no LSJ foi feita uma utilização ideológica da lenda de São Tiago, compreensível no contexto de luta de poder entre as diversas dioceses ibéricas que se reconstruíam com o avanço da chamada Reconquista (PÉREZ-EMBID, 2002, p. 168). Assim, independentemente da origem dos diversos extratos que a compõem,aobraacabouconstituindo-secomoumtextocoerente,um“tododesentido”, que visava propagar uma dada memória sobre o bispado compostelano e uma visão sobre o culto ao seu patrono, perpetuando-se como documento.

1.2. O Bispado de Compostela no século XII

Para o estudo do Bispado de Santiago de Compostela nos séculos XI e XII, contamos com a Historia Compostelana,6 também conhecida como Registrum Venerabilis Compostellanae Ecclesiae Pontificis Didaci Secundi, redigida por ordem do bispo Diego Gelmírez, com o objetivo de registrar toda a sua atividade episcopal. A obra foi transmitida por dezoito manuscritos e é, sem dúvida, o testemunho fundamental para tratar da Igreja compostelana nas primeiras quatro décadas do século XII. Foi composta em etapas, entre 1107 e 1149, por diversos autores, pessoas próximas e aliadas do prelado. Como destaca Barbanès, “si l’impartialité des auteurs de l’Historia Compostellana laisse parfois à désirer,[...], la qualité de l’information détenue par ces derniers ne saurait être

6. Empregamos a sigla HC, a partir deste ponto do trabalho, para nos referirmos à obra Historia Compostelana. O número em algarismo romano, que segue a sigla, designa o livro e o em arábico, ocapítulo.Oquefiguraapósavírgulaindicaumasubdivisãodocapítulo.

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AUTORIA E CONTEXTO SOCIAL DE PRODUÇÃO DAS OBRAS

mise en doute”.7

Durante o século XI, o bispado compostelano sofria graves problemas. Vamosdestacardois.Emprimeirolugar,asrelaçõesentreRomaeCompostelaeram tensas. Em 1049, o então prelado de Santiago, Cresconio, foi excomungado por utilizar o título de Bispo da Sé apostólica e porque um legado papal, que esteve na diocese entre 1065-1068, foi mal recebido (SINGUL, 1999, p. 109). A HC, que faz uma avaliação desse comportamento, sublinha que “la iglesia compostelana há sido una iglesia soberbia y arrogante, [...] ha visto a la iglesia romana no como a su señora, sino como a una igual y estuvo a su servicio en contra de su voluntad” (HC II 3,3).

Outro traço que caracterizou a história do bispado compostelano no século XI, como é possível inferir pela HC, foi uma sucessão de governos episcopais marcadamente simoníacos. Diego Peláez (1071-1088), por exemplo, segundo a HC, “[...] vivió hasta tal punto entregado a las preocupaciones del mundo que no adaptó, como era su deber, su vida interior a la norma del hábito eclesiástico” (HC II 1 HC I 2, 12). Em 1088 ele foi deposto, acusado de conspirar contra o reino e o rei Afonso VI (SINGUL, 1999, p. 110). Seu sucessor, Pedro, governou obispadopordoisanos.Apósasuamorte,asedeficouvagaporcertoperíodo,durante o qual leigos passaram a administrar o bispado. Primeiramente, Pedro Vimara, que era, segundo a HC, “cruel e ladrão” (HC I 3, 2). Depois, Airas Díaz, caracterizado pela HC como “[...] una persona cruel, llevado por sus ardientes deseos[...]” (HC I 3, 2). Sua administração teria, como aponta a HC, assolado o bispado compostelano:

Los canónigos de esta iglesia, que debían ser los administradores de la dignidad eclesiástica, llegaron en aquel momento a tal grado de indigencia que obligados por la pobreza en la misma canónica pidieron limosna de todas las maneras para comprar alimentos para su sustento. Y lo que es totalmente indigno y há de lamentarse hasta las lágrimas: vestidos incluso con ropas vilísimas y diversas, sin seguir las costumbres dictadas por la doctrina eclesiástica, cantaban de forma desordenada en el coro las alabanzas a Dios. (HC I 3, 2)

O quadro começa a mudar nos últimos anos do século XI, quando assume o episcopado Dalmácio, ex-monge cluniacense, que foi prelado compostelano durante os anos de 1094 e 1095. Durante o seu governo, foi feito o reconhecimento oficialdotrasladodasedeepiscopaldeIriaparaCompostela(HCI5,2)eestadiocesetornou-seisentadeBraga(HCI16,6;II,1),ficando,assim,subordinada

7. O artigo de Barbanès, Écrire l’histoire d’un évêque et de son Église au XIIe siècle: le cas de Diego Gelmírez (1100-1140) et de l’Historia Compostellana, foi publicado na revista on line Ri-ves nord-méditerranéennes,n.22,2005.Estádisponívelem:<http://rives.revues.org/document85.html>.Acessoem:17set.2007.

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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diretamenteaobispodeRoma(HCI5,1-2).Ouseja,asrelaçõesentreRomaeCompostelaseencontravamemprocessodepacificação.

Nos últimos anos do século XI, Diego Gelmírez também entra na cena político-religiosa compostelana, quando Raimundo de Borgonha e Urraca8 o elegeram para o cargo de chanceler em 1090.9 Na ocasião, ele já era cônegoda Catedral de Compostela, onde estudou. Posteriormente, completou os seus estudos na corte do rei Afonso VI.10 Segundo Barbanès, Gelmírez conquistou a confiança dos governantes da Galiza. Assim, quando a sé compostelanaficouvaga,entre1093e1094,elefoinomeadovicário,ouseja,administradorda diocese e governador do senhorio da Igreja de Compostela. Após a morte de Dalmácio, ocupou novamente esse cargo, entre 1096 e 1100. Em 1100 foi finalmenteescolhidocomobispo,sendoconsagradonacatedraldiocesanaem21de abril de 1101.

As primeiras décadas do século XII foram marcadas pela presença de Diego Gelmírez como líder do episcopado compostelano. Apesar dos diversos problemas vividos pela Galiza nesse momento – tais como a guerra civil que assolou a região durante o reinado de Urraca (HC I 83; 88; 101,3; 114), a rebelião dos habitantes da cidade de Santiago, sobre a qual trataremos ainda nesse item (HC I 79), e o perigo almorávida (HC I 103; II 24; 78)11– o bispado foi se consolidando graças, sobretudo, às açõesdopreladoe seusaliados.SegundoFernándezConde, “laejecutoriapolítico-militardelpreladogallegopuedecalificarsedeexcepcional.Tomó parte en muchos de los acontecimentos de relieve que fueron sucediendo a lo largo de casi medio siglo en los distintos reinos del noroeste peninsular, y a veces su actación resultará decisiva para el desenlace de los mismos” (FERNÁNDEZCONDE, 1984, p. 324).

Emlinhasgerais,apolíticadeDiegoGelmírezobjetivavaasboasrelaçõescom os reis de Castela e Leão (HC I 16, 1; 27; 28; 107 ss), com Cluny (HC I 16, 5), com o Papado (HC I 7, 3; 9, 2-3; 10, 1-3; 16, 6; 17,1; 26,1) e com as igrejas galegas, consolidando o poderio de sua diocese e reformando-a seguindo o modelo romano. Para levar à frente os seus projetos, o prelado contou, sobretudo,comasmúltiplasrelaçõespessoaisqueconstruiuaolongodesuavidae as receitas provenientes das ofertas dedicadas a São Tiago.12 Há que destacar

8. Sobre Urraca ver Bejder (1998).9.MaisinformaçõessobreatrajetóriadeDiegoGelmírezverBiggs(1949)eFletcher(1984).10. Segundo Fernández Conde (1982a, p. 324), a preparação literária de Gelmírez era “brillante y de talante universalista”. Já Fletcher (1984, p. 324) destaca que “Diego himself was not a intellec-tual. He possessed the skills that a man in his position needed: familirity with Visigothic law and with canon law”. 11. Os almorávidas eram berberes que se caracterizavam por seguir o islamismo com grande fervor religiosoedisciplina.UnificaramonortedaÁfricaedesdefinsdoséculoXIseexpandirampelaPenínsula Ibérica, guerreando e retomando terras já sob controle cristão. 12. Como aponta Singul (1999, p. 111), para ampliar os ingressos da diocese, Gelmírez enviava mensageirosparadiversasregiõesdaEuropa,paracoletar“esmolas”paraaconstruçãodacate-

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quenoséculoXIasperegrinaçõesreceberamgrandeimpulso,sendoaindamaisincrementadas em seu governo. Como destaca Rucquoi, em trabalho já citado, a própria organização do LSJ visou reforçar a política dos reis ibéricos de atração de peregrinos para Compostela (RUCQOI, 2007, p. 120).

Diego foi bispo durante o governo de três monarcas. Apoiou Afonso VI, que governou até 1109, nas campanhas contra os almorávidas. Deste rei recebeu o privilégio, em 1108, de cunhar moeda (HC I, 29). Quando Urraca, que reinou de 1109 a 1126, assumiu o governo e casou-se com Alfonso I de Aragão, o prelado,emumprimeiromomento,manteve-sefielàrainha.Porém,quandooseu casamento foi considerado nulo pelo Papa Pascoal II, em 1111, o bispo aderiu ao partido antiaragonês e passou a defender a ascensão de Afonso Raimundez, filho deUrraca com seu primeiro esposo e de quemera tutor desde 1107, aotrono castelhano-leonês. Quando Urraca e Afonso I entraram em choque, após 1114, Gelmírez se alinhou em alguns momentos aos partidários da rainha. Por exemplo, apoiou as suas investidas militares contra Portugal. Após a morte da soberana,em1126, seufilho foicoroadocomoAfonsoVII.Obispopassouaparticipardacorte.Suainfluêncianogovernopodesermedidapelofatodequea partir desse momento os chanceleres do soberano estavam ligados a ele.13 Mas tambémocorreramconflitoscomessemonarca,devido,sobretudo,àsexigênciaseconômicas que impunha ao arcebispado, bem como ao prestígio e poderalcançados pela sede compostelana (HC 46).

Cluny teve um papel de destaque na promoção das peregrinações aCompostela e na introdução da liturgia romana na Península Ibérica. 14 Sua expansãonaregiãorecebeuapoiodosreis,quefizeramsuntuosasdoaçõesaessemosteiro e aos cenóbios que lhe eram vinculados.15 Diego Gelmírez manteve boas relaçõescomCluny:visitouomosteiro(HCI16,5);construiurelaçõespessoaiscom abades dessa comunidade – como Pedro, o Venerável (HC III 26,2) –, que, provavelmente, intercederam pelo prelado junto ao papa; e, certamente, acolheu diversos religiosos cluniacenses em sua corte episcopal, utilizando a força dessa instituição monástica reformadora para consolidar o seu poder.

AsrelaçõesentreobispadodeSantiagodeCompostelaeopapadonesse

dral.13. Esse costume manteve-se no governo dos sucessores do prelado. Cf. Sanchéz Herrero (1984, p. 202).14.SobreoimpactodeClunynaPenínsulaIbérica,relacionadoaocrescimentodasperegrinaçõesaCompostela,verasreflexõesdeHilárioFrancoJr.nocapítulo3daobrajácitada.15. Por exemplo, em 1079, Alfonso VI de Castela entregou a Cluny o mosteiro de Santa Maria Real de Nájera (LAMA, 1979, v. 2, documento n. 36). Vale destacar que esse apoio não foi exclusivo a essa ordem. Diversos mosteiros e ordens religiosas que se estabeleceram na Península também foram alvo do apoio real, tais como os cistercienses e os templários. Não podemos nos esquecer de que os reis hispano-cristãos viam-se como responsáveis pelo governo temporal e espiritual de seus reinos.Alémdisso,nalutacontraoinfielenamanutençãodesuasoberaniafaceànobreza,aIgrejafoi em diversos momentos uma grande aliada.

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período merecem grande destaque. Foram estreitadas fundamentando-se em dois elementos interligados, que explicam, ao menos parcialmente, os privilégios concedidos a Diego Gelmírez e a sua Igreja. Em primeiro lugar, o perigo iminente que a sé compostelana representava para o projeto de centralização e fortalecimento de toda a Igreja sob o domínio do bispo de Roma. E, em segundo lugar, a disposição demonstrada pelo bispo Diego II em submeter-se à autoridade de Roma (HC I 17,3).

Para a HC, Diego Gelmírez reivindicou uma ampliação dos poderes de sua diocese junto à Sede Apostólica, baseando-se no fato de que em todo o lugar em que descansava o corpo de um apóstolo existia ou o próprio papado, ou um patriarcado, ou, ao menos, um arcebispado, o que não ocorria em Santiago de Compostela (HC II 3,1). Conforme assinala a HC, para o bispo compostelano, o fato de sua diocese não deter dignidades eclesiásticas “le parecía casi ultrajante e injurioso, principalmente porque Santiago había sido pariente del Señor, uno de sus más familiares y predilectos discípulos” (HC II 3,2). Porém, ainda assinala a HC, o papado negava-se a conceder privilégios ao bispado compostelano, com medo de que este, por abrigar o túmulo de um dos discípulos de Cristo, e, portanto, ser tão apostólico quanto o de Roma, buscasse suplantar a sua autoridade junto às igrejas ocidentais:

La iglesia romana temía, en efecto, que la iglesia compostelana, apoyada en tan gran apóstol y tras obtener los derechos de la dignidad eclesiástica, asumiera la cumbre y el privilegio del señorio entre las iglesias occidentales y, como la iglesia de Roma presidía y dominava a las otras iglesias por causa de un apóstol, así también la iglesia de Compostela presidisse y dominasse a las otras iglesias por causa de su apóstol. (HC II 3,3)

Esse dado não é, certamente, uma criação sem fundamento do redator da HC, já que a atitude de Roma perante o bispado compostelano só mudou no momentoemqueDiegoGelmírez juroufidelidadeaopapado.EssafidelidadeficouregistradanaHC,quereconheceaautoridadeeapreeminênciadopapadonasquestõeseclesiais.Nestesentido,emalgumaspassagens,opoderdaIgrejaRomana sobre as outras igrejas é destacado, tais como: “[...] la iglesia romana es cabeza y modelo de todas las Iglesias [...] (HC I 16, 6); “[...]siempre há estado permitido a la sede apostólica desunir lo unido, unir lo desunido, cambiar las sedes a otras sedes [...]” (HC I 5, 2); “la iglesia romana, madre de todos los católicos” (HC I 7, 3).

Acreditamos que Diego Gelmírez não aspirava ao domínio reivindicado por Roma para a sua diocese, mas, sim, ampliar os seus poderes, principalmente sobre as metrópoles de Braga e Toledo. Ou seja, seu objetivo era tornar o bispado de Santiago de Compostela o mais importante da Igreja Ibérica. Desta forma,

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a fimde fortalecer a sua Igreja, este prelado submeteu-se e aliou-se aRoma,prometendoobediênciatotalaopapa:“desdeestahorayparasiempreseréfiela San Pedro y a la santa, apostólica y romana iglesia y al papa Pascual y a sus sucesores que hayan de ser nombrados canonicamente [...] Ayudaré a mantener y defender al Papado romano y las regalias de San Pedro [...]” (HC I 17, 3).

AHCbuscadestacarqueopapadoencontrava-seinteiradodasquestõeshispânicas (HC I 39; 46; 79; 101,3; 105, 2) e, especialmente, do que ocorria no bispado compostelano (HC I 43, 3; 44; 45; 69). Assim, transcreve diversas cartas que demonstram a preocupação de sucessivos papas em relação aos problemas da Península Ibérica (HC I 7; III 10, 2; 22, 1-3); narra as visitas de legados papais (HC I 16, 6); relata as viagens de autoridades eclesiásticas locais a Roma (HC I 17); e, sobretudo, procura ressaltar a harmonia existente entre o papa e os soberanos hispano-cristãos (HC I 9, 4; 16, 1; II 1).

O papado, provavelmente como uma estratégia para ampliar o seu controle sobre toda a Igreja, concedeu as dignidades eclesiásticas almejadas por Gelmírez e sua Sé, transformando-o em um importante aliado para a propagação de seu projeto de reforma eclesiástica nos reinos hispano-cristãos. Em 1104, Gelmírez recebeu o privilégio do Palio (HC I, 17, 1). A diocese compostelana tornou-se, assim, um arcebispado, mesmo sem possuir sufragâneas (HC I, 17, 1). Em 1120, este bispo foi instituído legado papal nas metrópoles de Braga e Mérida (HC II 18,1; 60; 63). O ponto culminante desse processo de consolidação de Compostela deu-se em 1124, quando a metrópole de Mérida, então sob domínio muçulmano, foitrasladadadefinitivamenteparaCompostela(HCII64).Em1120,atrasladaçãojá ocorrera, porém em caráter provisório. Com a transferência, a Sé Compostelana incorporou as dioceses de Salamanca, Ávila, Coria e Lisboa. Em contrapartida, conformedemonstraaHC,obispo,fortalecidopelaspromoçõesrecebidaspelopapado, acabou por tornar-se um propagador da chamada Reforma Gregoriana na região.

Dessa forma, a HC posiciona-se, explicitamente, como favorável à introdução da Reforma na Península Ibérica. Para essa obra, a Igreja hispânica vivera dois grandes momentos: o da ignorância, quando era seguida a lei toledana, e o da obediência, quando foi adotado o rito romano:

[...] siendo casi toda España ruda e ignorante, pues ningún obispo de los hispanos rendía entonces algún servicio u obediencia a nuestra madre la santa iglesia romana. España seguía la ley toledana, no la romana, pero después que Alfonso, rey de buena memoria, entregó a los hispanos la ley romana y las costumbres romanas, desde entonces, borradas por completo las tinieblas de la ignorancia, empezaron a desarrollarse entre los hispanos las fuerzas de la Santa Iglesia. (HC II 1)

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AHCfazquestãodesempreapresentarasaçõesdobispoemconformidadecomoprogramadereformaeclesiásticadopapado.Nestesentido,afirmaqueaeleiçãoeconsagraçãodessepreladoprocessaram-sedentrodasregrascanônicas(HC 9; 10) e ressalta que Gelmírez já era clérigo, ordenado em Roma, ao ser alçado bispo. A HC tampouco se esquece de apontar o papel do rei na escolha de Gelmírez para o cargo episcopal (HC I 8,1; 16,1).

Segundo a HC, Gelmírez procurou, durante o seu bispado, reformar a sua diocese, tendo como principais metas a restauração espiritual e material de sua Igreja.Assim,elevouasituaçãomoraleeconômicadosclérigos(HCI20,3,7);prestigiouocabido(HCI23);impulsionouasconstruçõesdacatedral,dopalácioepiscopal e de templos paroquiais (HC I 18; 19; 20; 21; 22; 32; 33; II 23; 25; 55; 57;III1);aumentouonúmerodecônegosdevinteequatroparasetentaedois;16 intensificou a atividade conciliar provincial, realizando assembléias em 1121,1122, 1123, 1124 e 1125 (HC II 26; 52; 71; 78); implantou o rito romano (HC I, 28); trasladou a Compostela diversas relíquias que se encontravam na diocese de Braga, como as de São Silvestre, Santa Susana, São Cucufate e São Frutuoso (HC I 15).

O comprometimento com a Reforma Romana fica aindamais evidentequando analisamos a legislação episcopal compostelana do período. Nela encontramos diversos elementos preconizados pela cúria romana e presentes nos decretos do I Concílio de Latrão, primeiro concílio convocado pelo papa que foi considerado universal e que sintetiza o programa de reforma papal em implantação.17 Durante essa assembléia, realizada em 1123 sob a direção de CalixtoII,ratificou-seoacordodeWorms;18 discutiu-se a jurisdição metropolitana de alguns bispados; foram apresentadas queixas contra os mosteiros isentos da jurisdiçãoepiscopal,bemcomocontraausurpação,pelosmonges,de funçõeseclesiásticas; e foram aprovados dezessete decretos reformadores.19 Esses decretos tratavam de diferentes matérias: eliminação da intervenção dos leigos nos assuntos eclesiásticos (cânones VIII, XII, XVII); legislação sobre casamentos (cânone IX) e sobre herança (cânone XI); segurança para os leigos, em especial cruzados e romeiros (cânones X, XIV e XV); condenação para os que fabricavam e propagavam moedas falsas (cânone XIII); combate à simonia, ao nicolaísmo e ao nepotismo (cânones I, VI e VII); ampliação dos poderes episcopais (cânones IV e XVI), dentre outros temas.

16.EstainiciativaéjustificadanoLSJ:“tieneestaiglésia,segúntradición,72canónigos,deacuer-do con el numero de los 72 discípulos de Cristo, y que observan la regla del doctor de las Españas san Isidoro” (LSJ V, 10).17. Sobre esse Concílio, ver a já citada obra de Foreville. 18. Trata-se da Concordata de Worms, mencionada no início do capítulo.19. Para uma análise comparativa sistemática da legislação episcopal compostelana e dos concílios do lateranense I ver o nosso artigo A Reforma Gregoriana e o Bispado de Santiago de Compostela segundo a Historia Compostelana, publicado no número 10 do Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos.

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Destacamos um desses cânones, o V, que possui relação direta com a questão compostelana.EledeclaranulasasordenaçõesfeitasporBurdino,provenientedadiocese bracarense – sede rival de Santiago de Compostela na luta pelo título de metrópole–, qualificado comoheréticopor ter sido escolhidopapa, em1118,pelo imperador Enrique V.

Dentre a legislação estabelecida por Diego Gelmírez para a sua diocese, durante os primeiros anos de seu governo, encontramos decretos que proibiam os leigos de entrar violentamente ou tomar bens das igrejas, sem a licença do vicário do bispo (HC 96, 1); que instituíam, na sé compostelana, a paz e a trégua de Deus, que visavam à proteção física e dos bens de mercadores e peregrinos; insistiamnaseparaçãoentreleigoseclérigos;preocupavam-secomopatrimôniodos cativos, isto é, daqueles cristãos que se encontravam como prisioneiros dos mouros;legislavamsobrequestõesfinanceiras,comoheranças,tributos;tratavamdequestõesjurídicas;protegiamospobres,etc.(HC96,2,3,4,6,8,9,11,12,17,20, 22, 23, 24). Ou seja, diversos temas também contemplados por Latrão I.

Não havia uma identidade total entre a legislação e os atos de Gelmírez e os cânones do Lateranense I; isto não significa, porém, que não houvesse,durante o seu episcopado, uma preocupação por introduzir a Reforma Romana na diocese, mas que foram selecionados aqueles elementos que, de alguma forma, estavam relacionados à realidade social vivida pelo bispado compostelano. Dessa forma, tanto nos atos do arcebispo, como em sua legislação, encontramos uma clarapreocupaçãoemseguirasregrascanônicasquantoadiversosaspectos:aconsagração sacerdotal; a elevação da situação moral e material dos clérigos; a ampliaçãodospoderesepiscopais;aeliminaçãodainfluêncialaicanasquestõeseclesiásticas; a busca pela segurança física e material dos leigos.

Nesse sentido, não consideramos que a incorporação do projeto de reforma papal pela Sé Compostelana tenha ocorrido de forma automática e servil, ou ainda, somente em virtude dos interesses pessoais de Diego II. Incontestavelmente, a conjuntura era favorável: Calixto II era tio de Alfonso VII e possuía um especial interesse pelas questões hispânicas e Burdino, bispo bracarense, conforme jáassinalamos, fora condenado no Concílio. Entretanto, tal como é possível inferir pelosdocumentos,asituaçãodocleroedosfiéiscompostelanoscareciadeumareformulação urgente, devido às práticas simoníacas e ao baixo nível educacional do clero. A Reforma Romana, independente das pretensões políticas papais,efetivamente apresentava um modelo de Igreja que, em alguns pontos, vinha ao encontro das necessidades dos diversos bispados dispersos por toda a Cristandade. Acreditamos, portanto, que houve uma apropriação criativa, por parte da Igreja compostelana, dos preceitos ditados por Roma.

Com efeito, durante o episcopado de Diego Gelmírez, seguindo o modelo de Igreja proposto por Roma, a autoridade do bispo foi ampliada, apoiando-se em um corpo eclesiástico secular fortalecido mediante a sua restauração moral, econômicaeintelectualenalutacontraospodereslaicos.Avidareligiosaregular

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sob a jurisdição episcopal também foi alvo de uma reforma disciplinar. E, como grande parte do poderio de Compostela provinha do fato desta cidade ser um centro de peregrinação, também foram incorporados decretos que zelavam pelos romeiros e comerciantes e instituíam a paz e a trégua de Deus.

O prelado também trabalhou para ampliar os limites jurisdicionais de sua sé,oque redundouemconflitos.Dentreesses sedestacamadiscussãocomaDiocese de Mondoñedo sobre a propriedade de cinco arciprestados, questão resolvidaem1122,eadisputapelaincorporaçãodadiocesedeZamoracomosbispados de Astorga, Salamanca e Toledo. Nesse contexto, Compostela conseguiu tornar-se vicária de Alba e Aliste.

Diego Gelmírez também foi alçado, entre 1117 e 1120, ao posto de Senhor da Terra de Santiago, conseguindo que os grandes de Galiza lhe prestassem homenagem (HC II, 29). Como assinala Pérez-Embid, “los obispos se vieron aupados desde princípios del siglo XII al más alto escalón de la autoridad urbana, compartida desde luego con el representante del Palatium en las ciudades de realengo pero ejercida ‘in solidum’ en las de señorio episcopal” (PÉREZ-EMBID, 2002, p. 140).

Justamentenesseperíododeafirmaçãodeseupodertemporal,opreladoteve de enfrentar uma rebelião comunal, que efetivamente governou a cidade por cerca de um ano. A comuna era formada por mercadores e alguns clérigos descontentes. Segundo Fernández Conde, essa rebelião “se sitúa en el contexto más general de un movimento de emancipación de este estamento social que surge en muchas ciudades peninsulares y europeas” (FERNÁNDEZCONDE, 1984, p. 326). Com apoio real e dos principais nobres, Diego recuperou o domínio da cidade (HC I, 116). Anos depois, em 1136, houve um novo levante, que também foi controlado (HC III, 46 47).

Detendo também poderes temporais, os atos de Diego foram além das questões religiosas.Assim, ele igualmente foi responsável por construções dealbergues para os peregrinos (HC I, 30) e de um aqueduto (HC II, 54); restaurou portos da Galiza (HC I, 103); formou uma frota naval para resistir aos ataques muçulmanos (HC II, 75 e III, 28); regulamentou o comércio (HC III, 33), etc. Com a política levada a cabo pelo prelado, Compostela se tornou, no século XII,“elcentrocomercialmásimportantedetodaEspañacristiana”(SANCHÉZHERRERO, 1984, p. 246).

Após a morte de Gelmírez, a sede compostelana entrou em crise. Como destaca Pérez-Embid, durante o período de 1140 a 1173, houve uma sucessão de episcopadosbreves,divisõesnocabido,novosconflitoscomBragaeintervençõeslaicas, sobretudo de nobres galegos e do rei Fernando III (PÉREZ-EMBID, 2002, p. 171). Mas, a despeito dos problemas, o culto a São Tiago se expandia pela Europa, e, a cada ano, milhares de peregrinos continuavam a dirigir-se para a cidade.

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1.3. A biografia de Gonzalo de Berceo e o contexto social de produção das Vidas

Não há necessidade de discutir a autoria da VSM e da VSD. Essas obras foramasprimeiraselaboradasemcastelhanocujoautoridentifica-se:GonzalodeBerceo.

Plácido Romano e Tomás Antonio Sanchez foram os primeiros que se dedicaramaoestudosistemáticodabiografiadeGonzalodeBerceo,aindanoséculo XVIII. Tais autores construíram uma imagem do poeta como um clérigo ruraleincultoque,comojádestacamosnaintrodução,permaneceuhegemônicaaté a primeira metade do século XX. Só na década de 60 o historiador inglês Brian Dutton apresentou novas hipóteses.

NãoconsideramosqueaconstruçãodabiografiadeGonzalodeBerceojásejaumatarefaplenamentefinalizada.Paraacompreensãohistóricadopoetaedeseusescritosnãobastalevantarosdadosbiográficos,organizando-osdeformacronológica; nem analisar a produção berceana como um conjunto homogêneo, confundido obra e criador; e, fundamentalmente, rotular o autor e seus textos literários de forma reducionista e radical, seja como “culto” ou “popular”. Há que se levar em consideração o ambiente cultural em que Gonzalo viveu e trabalhou eodinamismoeacomplexidadedosfenômenoshistóricos.Nossaabordagem,portanto, rejeita as classificações e propõe uma volta aos textos medievais,buscando identificar os elementos que ligavam e separavam o poeta de seuscontemporâneosedeseuambiente,enfim,deseucontextohistórico-cultural.20 Paraaconstruçãodabiografiaberceana,contamoscomdadospresentesemsuasobraseinformaçõesqueseencontramemumasériededocumentosnotariais.21

Em alguns de seus versos, Gonzalo de Berceo apresenta-se,22 como em Mil 2 a,23 VSM 489a e VSD 109a: informa que nasceu em Berceo, povoado de La Rioja (VSM 489c), e que foi criado no Mosteiro de San Millán de Suso (VSM 489beVSD757b).Ospoemasberceanostambémfazemmençõesa lugaresepessoas. Por exemplo, faz referências a D. Tello Téllez de Meneses, bispo de

20.Sobreasdiscussõesatuaisacercadabiografiahistórica,verBourdieu,1998;HernándezSandoica,texto disponível em: <http://asclepio.revistas.csic.es/ index.php/asclepio/article/viewFile/27/26>.Acesso em: 2 ago. 2007; Le Goff, entrevista concedida a Hugues Salord e Anne Rapine e dispo-nívelem:<http://www.ambafrance.org.br/abr/label/label24/sciences/le_goff.html>.Acessoem:2ago.2007;Loriga(1998);Schmidt(1997);Zimmermann(2004).21. Tais documentos notariais foram editados por Lama (CDRM); Menendez Pidal (1919 - MP); San José (JPJ); Hergueta Martin (1904 - HM). As siglas apresentadas entre parênteses indicam estas obrasnodecorrerdo trabalho.Faz-se importanteressaltarqueas transcriçõesmantêm-sefiéisàortografiadostextosapresentadosnasediçõesimpressasselecionadas.22.Nãoera comum,no séculoXIII, ospoetas introduzirem indicaçõespessoais emsuasobras(RAMONEDA, 1980, p. 10).23. Mil é a sigla adotada para indicar a obra Milagros de Nuestra Señora, também de autoria de Gonzalo de Berceo. Em todas as referências às obras berceanas, os números arábicos após a sigla indicam as estrofes, e as letras, os versos.

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Palênciaentre1207e1246,comfamiliaridadeeironia(Mil325);afirmatervistoa pequena cozinha do Mosteiro de Santa Maria de Cañas (VSD 109); descreve os rios24 localizados próximos ao Mosteiro de Santo Domingo de Silos (VSD 230) e o túmulo de Santa Oria (Oria 184). As obras berceanas também apresentam indícios de que Gonzalo possuía conhecimentos musicais (Mil 8), bíblicos,25 doutrinários26ehagiográficos.27

Quanto aos documentos notariais, a grande maioria foi descoberta e divulgadaemfinaisdoséculoXVIII,peloentãoarquivistadoMosteirodeSanMillán de la Cogolla, Frei Plácido Romero, e pelo primeiro editor das obras berceanas, Tomás Antonio Sanchez. Posteriormente, diversos documentos emilianenses desapareceram, dentre eles aqueles em que figuravaGonzalo deBerceo, sendo, todavia, recuperados, praticamente em sua totalidade,28emfinsdoséculo XIX. Contamos ainda com um documento, datado de 1228, encontrado no Arquivo da Catedral de Calahorra. Em todos esses diplomas o nome de Berceo consta como testemunha, ates tando o valor e legalidade das atas nos mais diversos tiposdetransações,emlocaisemomentosdiferentes.

Os primeiros documentos são sete escrituras provenientes do Mosteiro de San Millán de la Cogolla - seis de 1221 e uma de 1222 - referentes a compras e trocas de terras em Badarán, situado entre Berceo e Cárdenas (JPJ, n. 1-7). O documento de 22 de junho de 1228, elaborado em Bañares, localidade a 5 Km de Santo Domingo de la Calzada, trata da venda de propriedades em Logroño pelo entãobispodeCalahorra,JuanPérez,afimdesaldardívidascontraídasemRoma(MP, n. 87; CDRM, IV, n. 86). É de 14 de junho de 1237 o documento elaborado em San Millán de la Cogolla (MP, n. 91; JPJ, n. 8; HM, p. 179; CDRM, IV, n. 121), no qual é apresentado o acerto, mediado pelo abade Juan Sánchez, entre o concelho de Madriz, povoado localizado próximo ao mosteiro emilianense, e os bairros de Santurde e Barrionuevo sobre o pagamento de pechos.29 Em Fonzaleche, situado entre Haro e Pancorbo, foi redigido, em 1240, um documento no qual Berceo novamente é apontado como testemunha (JPJ, n. 9 e 10, a versão latina do documento). Este apresenta um acordo realizado entre o abade emilianense e os clérigos do povoado que, em juramento, reconheceram o senhorio desse mosteiro. Há um documento datado de 25 de julho de 1242 (CDRM, IV, n. 142; MP, n. 94), elaborado em San Millán de la Cogolla, segundo Menendez Pidal,

24. Trata-se dos rios Ura ou Mataviejas e do rio do Santo.25. Sobre os conhecimentos bíblicos de Berceo, ver Ruiz Dominguez (1990), que apresenta um inventário dos textos da Bíblia citados pelo poeta.26. Tal como os apresentados, por exemplo, em Del Sacrificio de la Misa. Cf. estrofes 22, 32, 96, dentre outras.27. Em VSD 61, Berceo revela conhecer as Vitae Patrum, coleção de relatos e sentenças sobre a vida dos padres do deserto e demais santos, redigida a partir do século VI.28. Dos 13 documentos mencionados por Romero no século XVIII, só foram transmitidos 12.29. Pecho é um termo castelhano utilizado do século XIII ao XV que designava o tributo que se pa-gava ao rei ou ao senhor territorial, sobre bens ou terras. Cf. Martin Alonso (1986, t. 2, p. 1481).

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que trata da compra de propriedades em Madriz por Juan Sanchéz, o abade, no qualGonzalodeBerceofigura,aoladodeseuirmãoJuan.Oúltimodocumentoem que Berceo aparece como testemunha foi com posto também em San Millán de la Cogolla, em 31 de dezembro de 1246 (MP, n. 95; CDMR, IV, n. 170; JPJ, n. 12; HM, p. 179). Ne le, Don Rodrigo Pérez de Agoncillo, arcediago de Nájera, renuncia aos direitos sobre uma casa de Ávila.

Há ainda dois documentos que merecem atenção pelas discussões quesuscitam. O primeiro é datado de 12 de setembro de 1264 e foi redigido em San Millán de la Cogolla (JPJ, n. 13; CDMR, IV, n. 272). É uma doação feita ao mosteiro em questão por Sancho Ruiz, para “redenção de sua alma”, como compen sação por rendas não pagas por seu pai, Roy Sanchéz de Bouadie lla, pelas terras cultivadas de Rio Coia, dadas ao mosteiro pelo tio deste, Garci Gil de Baños. Este texto faz referências a Gonzalo de Berceo como maestro de confession e cabeçalero30 de Don Garcia. O outro documento é um manuscrito do Libro de Alexandre, o chamado Manuscrito de Paris, datado do século XV e encontrado em 1888. Na última copla do poema presente neste ma nuscrito, há dados sobre Berceo:“syqueredessaberquienfizoestiditado,/GonçalvodeBerceoespornombre clamado,/ natural de Madriz, en Sant Mylian criado,/ del abat Johan Sanchez notario por nombrado”.31 A historicidade desta estrofe vem sendo alvo de muitos debates. Ao passo que Brian Dutton e seus seguidores aceitam averacidadedestas informaçõeseasutilizampara fundamentarahipótesedeque Berceo fora notário, alguns autores, como Isabel Úria e Ruiz Dominguez, a combatem.

A partir dos documentos acima apresentados, é possível reunir um grande número de dados sobre o poeta em questão. A seguir, tomando por base o estudo docontextoemqueviveuGonzalodeBerceo,apresentamosasconclusõesdaanálisedasinformaçõesbiográficasinventariadas.

1.3.1. “Natural de Verceo ond’ Sant Millán fue nado...”

Durante os séculos XVII e XVIII, Nicolás Antonio e Prudêncio Sandoval concluíram que Gonzalo de Ber ceo vivera no século XI. Posteriormente, através dos documentos notariais reunidos por Romero, foi possível calcular, de forma aproximada, o ano de nascimento do autor.

NoséculoXVIII,TomásAntônioSanchez,fundamentando-senasdecisõesdo Concílio de Trento, que exigia a idade mínima de 23 anos para o diaconato, propôsoanode1198comoodonascimentodeBerceo(ANTONIOSANCHEZ,1966, p. 20-26). No início do século XX, Corro del Rosário apresentou o ano de

30. Cabeçalero ou cabezalero era o termo utilizado entre os séculos XIII e XV para designar os testamenteiros. Cf. Martin Alonso (1986, t. 1, p. 571-572).31. Essa copla é transcrita por Úria Maqua (1981a, p. 13).

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1180, baseando-se em dois argumentos (1925, p. 404-406). Primeiramente, no título Don dado a Berceo já nos documentos de 1221, que, segundo este autor, só era utilizado em relação a um homem mais velho, não para um jovem. O segundo, nos versos Mil 705ab, nos quais o narrador faz referência a um rei, recentemente falecido, que denomina como Ferrando, señor d’Estremadura. Contrariando a grande maioria dos críticos, este historiador crê que Berceo se referia não a Fernando III, que vivera até 1252, mas sim a Fernando II, rei de Leão, morto em 1188. O autor defende, então, que o poeta teria se tornado diácono aos 40 anos de idade.

Segundo o Decreto de Graciano, a idade mínima para ascender ao diaconato era 25 anos e, para o sacerdócio, 30. Já nas Siete Partidas,32 eram exigidos 26 anos de idade para o diaconato e 30 para preste. Pautado nestes documentos, Brian Duttan conclui que Gonzalo de Berceo teria nascido por volta de 1195 (1978, p. 267) ou um pouco antes, no que é apoiado por outros pesquisadores (ÚRIAMAQUA,1981,p.9;RUIZDOMINGUEZ,1990,p.17).

Não nos preocupa encontrar o ano exato em que nasceu o poeta, mas sim a conjuntura em que viveu. As diversas datas propostas são unânimes em um dado, e é o que fundamentalmente nos interessa: Gonzalo de Berceo viveu a maior parte de sua vida na primeira metade do século XIII.

Em relação ao local de seu nascimento, conforme o próprio poeta indica, ocorreu em um povoado denominado Berceo ou Verceo, antiga cidadela fundada pelos romanos situada no lado oriental da Serra da Demanda, em La Rioja Alta, a umquilômetroemeiodoMosteirodeSanMillándelaCogolla.33

La Rioja é o nome dado a uma pequena região,34 com cerca de 5.000 Km2, localizada no centro-norte da Península Ibérica. Trata-se de uma zona de transiçãogeográficaemrazãodapresença,aOeste,doSistemaIbérico-conjuntode montanhas chegando a mais de 2.000m - e, a Leste, da Depressão Ibérica - área de planície. Costuma-se dividi-la em La Rioja Alta, mais ocidental, montanhosa e úmida, e La Rioja Baixa, mais oriental, plana e com um clima semelhante ao dolitoralmediterrâneo.EmvirtudedapresençadoRioEbroedeseusafluentes,o território era muito fértil e propício para a agricultura. Nas montanhas, era

32. Ley XXV, Tit. VI, Partida 1ª (ALFONSO X, O SÁBIO, 1975, p. 151-152).33.AsrelaçõesentreoshabitantesdopovoadodeBerceoeomosteirodeS.MillándelaCogollapodem ser atestadas pelo documento n. 439 editado por Rubio, em 1989. Este documento registra doaçõesfeitasaocenóbioporDomingoNuñodeBerceoesuasirmãs,em1183.Apartirdestanota,utilizaremos a sigla CSM2 ao nos referirmos a esta edição do cartulário emilianense.34. Durante a Idade Média esta região foi chamada por diversos nomes. O nome La Rioja, cuja etimologiaéincerta,foi-seafirmandonasegundametadedoséculoXIIIparadenominararegião.QuantoaoslimitesgeográficosdeLaRiojamedieval,seguimosospropostosporLama.Segundoeste autor, a região compreendia: “[...] ambas orillas del Ebro, desde la desembocadura del Bayas en Miranda, hasta el Alhama en Alfaro; desde las sierras de Cantabria, La Población y Codés, hasta las de Cameros, con el limite de sus picos, San Lorenzo, Piqueras, Oncala y las proximidades del Moncayo en Cervera, Agreda y Fitero (CDRM, v.1, p. 8).

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possívelodesenvolvimentodeoutrasatividadeseconômicas,comoapecuária.Após ter sido terra de celtiberos, romanos e visigodos, no início do século

VIII, a região foi conquistada pelos muçulmanos, passando a constituir a fronteira superior do Al Andalus. A expansão muçulmana foi estável somente até a altura de Nájera, principal bastião do Islã na zona durante os séculos IX e X. La Rioja ocupou, portanto, durante séculos, o papel de fronteira entre muçulmanos e cristãos no nordeste da Península.

As primeiras tentativas de expansão cristã em La Rioja datam do início do século X, tornando-se efetiva a partir de 923, quando, em uma ação conjunta deleonesesenavarros,foramconquistadasasregiõesdomeioEbro.LaRiojaBaixa permaneceu mais tempo sob o con trole muçulmano. A última região a ser reconquistada foi o vale do rio Alhama, nas primeiras décadas do século XII.OséculoXIIImarcouofimdaocupaçãodoespaçoriojanoreconquistado:consolidaram-se as atividades de pecuária e agricultura, especialmente da vinha, e foi estabelecida uma rede de vilas instaladas nos vales, planícies e, em menor número, nas montanhas.

Ainda que o início da reconquista da região tenha resultado de uma ação conjunta de navarros e leoneses, em razão de problemas políticos internos do Reino de Leão, La Rioja foi incorporada ao Reino de Pamplona,35 cujo domínio efetivo durou cerca de 150 anos (923 - 1076). Nájera, a antiga cidade muçulmana, tornou-se o centro do poder real pamplonês. Ali residiu a corte pamplonesa nos séculosXeXI.NasceuassimoReinodeNájera,queidentificadoàregiãoriojana,nãoperdeuasuaautonomia,mesmoapósofimdoprotagonismopamplonês.36

Após o período de hegemonia pamplonesa, “[...] La Rioja es un escenario continuo de golpes de mano, saqueos y domínios alternativos de castellanos, aragonesesynavarros”(GARCIATURZA,1993,p.74).Pertenceu,de1076a1109 a Castela, de 1109 a 1135 a Aragão, novamente a Castela de 1135 a 1162, a Navarrade1162a1176edefinitivamenteaCastelaapós1176.37

La Rioja, como terra de fronteira entre cristãos e muçulmanos, e, posteriormente, entre reinos cristãos, ocupou um importante papel como um dos

35.UtilizamososnomesPamplonaeNavarrareferindo-nosàmesmaregiãogeográfica,vistoqueos seus reis, até meados do século XII, apresentavam-se como rex in Pampilona. A troca do título ocorreapartirde1147,quandonosdocumentosfiguraotítulorege in Pampilona et en Navarra e já em 1150, rex Navarre (CDRM, II, n. 1, 4, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 18, 20, 21, 22, 23; CSM2 n. 387, 389).36. Em documentos dos séculos XI, encontramos, por exemplo, Alfonso VI intitulando-se como Regnante rex Adefonso in Lione et in Naiera (CMS2, n. 3); Alfonsus rex in Legione, in Castella et in Naiera (CMS2, n. 4). Posteriormente, esta região foi subordinada a um comitê: comite Garsea dominante Naiera et Calahurra (CSM2, n. 309, 384).37. Por um acordo de 1177, entre os reis de Castela, Alfonso VIII, e o de Navarra, Sancho, o sábio, mediadoporEnriqueIIdeInglaterra,algumasregiõesdeLaRioja,antespertencentesaNavarraetomadas por castelhanos em períodos sucessivos, deveriam ser devolvidas. Contudo, o rei castelha-no não aceitou o acordo. Sobre a questão ver Saínz Ripa (1982, p.198-221); Díaz Bodegas (1995, p. 57-76).

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eixos de articulação peninsular, de leste a oeste, cuja principal via era o Caminho Francês para Santiago de Compostela. Desta forma, ali se estabeleceram e conviveram homens de outras regiões ibéricas como de além-Pirineus; estesúltimos denominados genericamente de francos.38

Contudo, ao ser incorporada efetivamente a Castela, La Rioja tornou-se um território integrado a este reino, não só politicamente, mas também em termos religiosos, econômicos, intelectuais, administrativos e lingüísticos.39 Dessaforma,desdefinsdoséculoXII,aáreafoiperdendoaimportânciacomoterra de passagem, o caráter de território de conflitos e a relativa autonomia,tornando-se um território castelhano a mais. Durante o século XIII, com o avanço da Reconquista em direção ao sul, a organização das Cañadas40 e a consolidação das fronteiras riojanas, cada vez mais o eixo norte-sul cresceu em importância. GonzalodeBerceoviveujustamentenessemomentodetransformações,quando,passo a passo, a região riojana ia incorporando-se ao “espírito castelhano“.

Quantoàsuafamília,sópodemosafirmarquepossuíaumirmão,tambémclérigo, o que não nos permite ir além de hipóteses: Gonzalo de Berceo e seu irmão foram acolhidos em um mosteiro por terem se tornado órfãos, ainda bem pequenos? Eram de uma família de posses, o que teria permitido a dedicação ao estudo e à carreira religiosa? Eram oblatos, isto é, crianças entregues a um cenóbio?Infelizmentefaltamdadosparaconclusõesmaisconcretas.

1.3.2. “... En Sant Millán de Suso fue de niñez crïado...”

As evidências documentais apresentam indícios de que Gonzalo de Berceo manteveestreitosvínculoscomavidamonástica.Primeiramenteopoetaafirma,emduasocasiões,tersidocriado no Mosteiro de San Millán de la Cogolla (VSM 489b,VSD757b).Qualosentidodetalafirmativa?SegundoDomingoYndurain,o termo criado,utilizadoporBerceo,concordacomMil354esignificaeducado(1976, p. 5). JáMartinAlonso define criado de forma mais ampla: ou como pessoa criada por alguém, ou discípulo educado em casa de seu senhor (MARTIN ALONSO,1986,t.1,p.812).Combinandoasdefiniçõespropostasporestesdois

38.ParaorepovoamentodeLaRioja,desdeoséculoXdirigiram-sehomensdasdiversasregiõesdaprópria Península Ibérica. Além dos mouros que ali já se encontravam e dos moçárabes, provenien-tesdeAndaluziaeZaragoza,comaincorporaçãodeLaRiojaaoreinodePamplona,forammuitososbascosaestabelecerem-senaregião.AofinaldoséculoXIchegaramcastelhanos,noiníciodoXII,aragonesese,aofinaldoXIIenodecorrerdoXIII,novamentebascosecastelhanos.Tambémse instalaram na região, em especial entre meados do século XI e meados do XII, os chamados “francos”,pessoasdasmaisvariadasorigens:lombardos,alemães,flamencos,ingleses,catalães,provençais, gascones, normandos, borganheses, etc.39. CDRM (IV, n. 127); Saínz Ripa (1982, p. 198-221).40. As cañadas são caminhos reservados ao gado em transumância entre o sul e o norte da Penín-sula Ibérica, desenvolvidas a partir do século XIII.

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autores, podemos concluir que o poeta não só recebeu educação, como também residiu no mosteiro emilianense.

ApesardeGonzalodeBerceofigurarcomo testemunhaemdocumentosdestecenóbio,emnenhumdelesháquaisquer indicaçõesque revelemaexatanatureza do vínculo entre o poeta e o mosteiro. As obras berceanas também apresentam evidências de que Berceo conhecia pessoalmente outros cenóbios, especialmente Silos,41masnãoesclarecememquesituaçõesouporqueosvisitou.Diantedessesdados,eparaumamelhorcompreensãodasrelaçõesedoimpactoda vida monástica no cotidiano riojano e na formação intelectual e religiosa de Gonzalo de Berceo, interessa-nos discutir como se encontrava organizada a vida monástica na região no século XIII, especialmente no Mosteiro de San Millán de la Cogolla.

La Rioja foi, desde o período visigótico, um “núcleo de espiritualidad fundamentalalolargodetodalaEdadMedia”(ATIENZA,1994,p.68),tendosido, desde o século V, cenário de um grande movimento eremítico.42 A vida eremita visigótica nas regiões montanhosas riojanas, como propõe Garcia deCortázar, manteve-se durante o período de dominação islâmica (1969, p. 24-28), tal como atestam os centros eremíticos rupestres.43 Essa sobrevivência foi possívelporqueapresençaislâmicafoipoucoestávelnasregiõesmontanhosas.Com a expansão cristã, repovoamento e colonização, esses grupos sofreram algumasmodificações, adaptando-se à nova situação histórica. Provavelmentefoi o que também ocorreu com o Mosteiro de San Millán de la Cogolla.

Durante o período em que La Rioja foi terra de fronteira, a posição geográficaemqueseencontravaomosteiroemilianense,entreCastelaePamplona,transformou este cenóbio em alvo de favores por parte de ambos os reinos. Dessa forma, mesmo quando La Rioja ainda integrava o reino de Pamplona, San Millán delaCogollajáseachavasobforteinfluênciacastelhana.Estedadodistinguiuoemilianense face às demais casas monásticas riojanas (CMS2 n. 2, 4, 5, 153, 332, 265, 453; CDRM, II, n. 26).

San Millán de la Cogolla, por sua riqueza e localização estratégica, foi um “[...] punto de encuentro de gentes, textos y costumbres de las distintas regiones“ (DÍAZYDÍAZ,1991,p.155).Aliseestabelecerammongesprovenientesdasmais diversas regiões da Península Ibérica e de além-Pirineus. Estes homens

41. Essa idéia é defendida por Dutton (1961, p. 113); Solalinde (1922, p. 399); Diáz y Díaz (1991, p. 267,n.45).EsteúltimoautorchegaaafirmarqueBerceosópôdeescreverVSD,graçasaomaterialpresente na Biblioteca de Silos.42. Sobre o movimento eremítico riojano no período visigodo, ver nosso artigo A consolidação do Cristianismo hispano-visigodo em La Rioja, disponível em:<http://www.vallenajerilla.com/ber-ceo/frasaodasilva/consolidacionCristianismoenlarioja.htm>.Acessoem:24set.2007.43. Um traço marcante no desenvolvimento da vida ascética riojana foi o uso de covas como celas e oratórios. Achados arqueológicos atestam a existência de centros eremíticos ruprestes em toda a região riojana, tais como em San Millán, Valvanera, Anguiano, Bobadilla, Matute, Nájera, Castaña-res de las Cuevas, Clavijo, dentre outras muitas localidades.

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trouxeram manuscritos e técnicas para confeccioná-los e, em muitos casos, mantiveram contatos com suas casas de origem, o que redundou em freqüentes e constantes novidades. Também como local de assistência aos peregrinos, viajantes e necessitados em geral, o mosteiro foi um espaço privilegiado na recepção de pessoas e transmissão de idéias. Dentre os muitos mosteiros que mantiveram contatos sistemáticos com a abadia emilianense, destaca-se o de Santo Domingo deSilos,localizadoemBurgos.Asrelaçõesentreosdoiscenóbiossãoatestadasdesde o século XI, e desde 1190 estavam unidos por uma Carta de Hermandad, que foi renovada em 1236 (DUTTON, 1978, p. 12), o que aponta para o dinamismo e a continuidade dos vínculos entre os dois mosteiros.

No mosteiro emilianense funcionava uma escola, um scriptorium e uma biblioteca. A partir dos inventários das obras que foram preservados, é possível reconstruir o acervo da biblioteca de San Millán de la Cogolla. Os livros presentes nestabibliotecapodemserclassificadosemcincogruposbásicos:textosbíblicos,incluindo aí não só Bíblias, mas também comentários de textos bíblicos; litúrgicos, imprescindíveis para os serviços religiosos; obras de caráter histórico, tais como crônicas, hagiografias, genealogias, calendários etc.; de caráter jurídico, comotextoscanônicosecódigoselaboradosnoperíodovisigodo;e,porfim,textosdedisciplinaeespiritualidademonásticas.Frenteàstransformaçõesprocessadasnoséculo XIII, o acervo emilianense, como o das demais bibliotecas de cenóbios hispânicos, manteve como traço marcante o conservadorismo: apresentam uma grandefidelidadeparacomatradiçãovisigóticaeevidenciamaescassapenetraçãodeobrasrelacionadasaodireitocanônicoouàfilosofiaaristotélica.44

Os mosteiros riojanos, incluindo aí o de San Millán de la Cogolla, alcançaram grande vigor nos séculos X e XI, como principais patrocinadores do repovoamento e da colonização. Contudo, começaram a apresentar sinais de crise nofimdoséculoXII,umavezqueasdoaçõesdecrescerameforamconstantesos litígios com o episcopado calagurritano pelas rendas eclesiásticas e a isenção jurisdicional dos mosteiros.45 A organização e fortalecimento do poder episcopal, adiminuiçãodasvocações,odesenvolvimentodeumanovareligiosidadequepropunha o ingresso no saeculum, o crescimento das cidades, o aumento da autoridade dos senhores leigos e do poder episcopal são alguns dos muitos fatores que afetaram a vida monástica riojana.

Aperdadopapelhegemônicoocupadooutrorapelosmosteiros riojanosera visível no século XIII. Contudo, com o apoio papal, mantiveram-se ativos, mesmo sem o esplendor e o protagonismo dos séculos anteriores.46 O mosteiro

44. Cf. Aguadé Nieto (1992, p. 53-54); Díaz y Díaz (1982, p. 8-12).45. Dentre outros, cf. os seguintes documentos: CMS2 (n. 402, 407, 474); CDRM (II, n. 177, 178, 217); CDRM (III, n. 237, 238, 261, 269, 299, 331, 334, 335, 336, 337, 342, 351, 424, 439); CDRM (IV, n. 133, 177).46. Cf. CDRM (IV, n. 28, 118); CMS2 (n. 480, 481); Diaz Bodegas (1995, p. 259); Linage Conde (1982, p.152-156); Sainz Ripa (1994, p. 514-515).

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de San Millán de la Cogolla, por exemplo, tornou-se dependente diretamente do papado,preservouseupatrimônioeparticipouativamentedavidaeclesiásticaepolíticadesuadiocese,mantendosuaforçaeconômica,socialereligiosa.Contudo,como ocorrera com outros mosteiros riojanos, deixou de ter a exclusividade e preeminência como centro intelectual e local de peregrinação e na organização da produção e na prática da assistência. Ante as novas necessidades riojanas, as ordens mendicantes e o clero secular passaram a ocupar um papel preponderante.

Gonzalo de Berceo, ao manter contatos com a vida monástica riojana, foi receptordeumalongatradiçãocultural,síntesedediversosinfluxos.Nomosteirode San Millán de la Cogolla foi educado, tendo sido, portanto, instruído nas SeteArtesLiberais.Aindanestemosteiro,pôde ter acessoa livrosque,diretaou indiretamente, influenciaram a sua perspectiva sobre aspectos do mundosocialeconheceuastradiçõeseamemóriadoperíododeesplendordestegrandecenóbio.

Como já assinalamos, são muitas as hipóteses sobre os motivos que levaram Gonzalo de Berceo a ser educado no Mosteiro de San Millán de la Cogolla. Em qualquer dos casos, o poeta provavelmente criou laços de conhecimento e amizade com a comunidade monástica emilianense que, por certo, foram além dos institucionais. Além disso, como clérigo atuante na paróquia de Berceo, distantesomenteumquilômetroemeiodomosteiroemilianense,comoveremosnopróximoitem,pôdemantercontatosconstantescomosmonges.

NãonosinteressaprecisaranaturezaexatadasrelaçõesentreGonzalodeBerceoeomosteirodeSanMillán,masverificarque, independentementedasrelações,opoetaparticipoudouniversomonásticoedele incorporoudiversoselementos, que marcaram a sua formação intelectual e espiritual e o inspiraram na escrita sobre santos riojanos que mantiveram vínculos estreitos com o monasticismo desta região.

1.3.3. “Don Gonzalvo de Berceo preste”

Conforme demonstram os documentos notariais em que figura comotestemunha, Gonzalo de Berceo era clérigo secular na diocese de Calahorra, uma das maiores da Península Ibérica no século XIII, já que absorvera os centros episcopais de Álava e Nájera. Mas os primeiros anos deste século foram marcados por problemas: durante quatro anos o bispado de Calahorra esteve vago em virtude de um cisma que redundou na eleição, por parte do cabido, de dois bispos,que,apósmuitasdiscussões,foramconsideradosinválidospeloPapa.Onovo prelado de Calahorra, Juan Pérez,47 fora escolhido pelo arcebispo de Toledo apedidodopapa.Apesardefigurarcomoeleitonadocumentaçãodesde1220,

47. Juan Pérez era arcediano de Segóvia e amigo particular do arcebispo de Toledo, que o acompa-nhou até Roma por ocasião do IV Concílio de Latrão.

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só chegou a ser consagrado em 1227. Assim, com a ausência de um epíscopo consagradoàfrentedadiocese,foramconstantesasintromissõesdosleigosemquestõeseclesiais, tomandopossedebensebenefíciosdiocesanos.Obispadoperdeu ou teve a suspensão de diversos direitos e privilégios, ocorreram diversas irregularidadescanônicas,opreladonãofoireconhecidooficialmenteporpartedos reis de Castela e Navarra e houve uma revolta contra o senhorio jurisdicional do bispo.

Diante de tantos problemas, JuanPérez buscou apoio no papado, a fimde reorganizar a diocese: engajou-se na Reforma Eclesiástica; participou do Concílio de Valladolid, realizado em 1228, sob a direção de Juan de Abeville, legadopapal,comoobjetivodeintroduzirasresoluçõesdoIVConcíliodeLatrãonaIgrejaIbérica;eprocuroudivulgareaplicartaisresoluçõesemsuadiocese.48 O esforço pela organização eclesiástica do episcopado calagurritano, sob inspiração papal, manteve-se por todo o século XIII, como é possível constatar através dos cânones dos sínodos realizados neste século na diocese.49

Outro traço que caracterizou o episcopado calagurritano, no século XIII, foiacrescenteinfluênciadobispadotoledano,representada,deformaespecífica,por seu prelado, Rodrigo Jiménez de Rada. Dois dos bispos calagurritanos da primeira metade do século XIII eram pessoas ligadas a ele,50 o que demonstra suainfluêncianaseleiçõesepiscopaiseumacrescenteaproximaçãodobispadocalagurritano a Castela. Por outro lado, esta diocese distanciava-se paulatinamente de Tarragona.51 Nos Concílios provinciais convocados pelo Metropolitano da Tarraconensis, o bispo calagurritano não esteve presente. A própria trasladação da sede episcopal, de Calahorra para Santo Domingo de la Calzada, demonstra a crescente integração eclesiástica ao reino castelhano.

Nas primeiras décadas do século XIII, como outras dioceses européias, a de Calahorra também sofreu o impacto da presença franciscana. Atribui-se ao próprio Francisco, quando de sua peregrinação a Compostela, a organização do primeiro mosteiro franciscano da região, em Logroño. Alguns autores consideram lendária esta fundação, como Abad Leão (1982, p. 232), contudo, a presença franciscana no episcopado pode ser constatada pela eleição, pelo papado, do bispo calagurritano como um dos responsáveis pela nova ordem na Península

48.Segundoépossível ler aofimdasatasdo sínodocalagurritanode1240,provavelmente foirealizada, durante o governo episcopal de Juan Pérez, ao menos uma assembléia local: “estas cons-titucionesqueNosfeciemos,elasotrasquefizoelObispodonPeréz[...]”.Contudo,essasatasnãoforam preservadas. Cf. Bujanda (1946, p. 127).49. Durante o século XIII, foram realizados quatro sínodos reformadores na diocese de Calahor-ra: um no governo de Juan Pérez, cuja data não é conhecida e cujas atas não foram preserva-das, como assinalado na nota anterior; dois no de Aznar López de Cradeíta, em 1240 e 1256; e um no episcopado de Almoravid del Karte, último prelado do século, realizada em 1297. 50. Juan Perez era amigo pessoal de Rodrigo Jimenez de Rada e Aznar Diaz era seu sobrinho.51. O bispado de Calahorra, apesar de pertencer ao Reino de Castela, estava subordinado à Provín-cia Eclesiástica Tarraconensis.

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AUTORIA E CONTEXTO SOCIAL DE PRODUÇÃO DAS OBRAS

Ibérica.NãoencontramosnotíciasdedominicanosantesdofimdoséculoXIIIem La Rioja, contudo, a proximidade do Caminho de Santiago faz-nos supor que mesmo não existindo casas dominicanas estabelecidas na região, estes também deveriam circular por aquela área.

Porfim,faz-seimportantesublinharque,àsemelhançadoqueocorriaemoutras dioceses hispânicas, na Catedral de Calahorra existiam uma escola, um scriptorium e uma biblioteca, fundados durante o século XII. Eram dirigidos pelos membros do cabido e estavam submetidos ao bispo, atendendo a clérigos e estudantes pobres. Ali se estudavam as Artes Liberais, com destaque para o trivium, apresentando,contudo,inovaçõesfaceaosestudosdesenvolvidosnosmosteiros,voltados, sobretudo, para o cultivo da espiritualidade ascética. Assim, as escolas catedralescasdoséculoXIIIespecializaram-seemdireitocanônico, teologiaefilosofia,oqueprovavelmentetambémocorreunadiocesedeCalahorra.

Mesmo não possuindo informações diretas sobre a escola catedralesca,graças às atas dos sínodos calagurritanos do século XIII,52 sabemos que a educação foi uma preocupação constante dos bispos, atentos para com a formação intelectualdosclérigos,apastoraleacatequesedosfiéis.Oprópriocrescimentoda escola, comparada a Bolonha e Paris nas atas sinodais,53 ao menos aponta para um aumento no número de alunos.54

Gonzalo de Berceo seguiu carreira eclesiástica, uma vez que figura nadocumentação notarial primeiro como diácono, e, posteriormente, como preste. Provavelmente fora ordenado pelo próprio Juan Pérez, no momento de grandes conflitos internos nadiocese.Ao constar comoumadas testemunhas emumadastransaçõesrealizadasporestebispo,podemosconcluirqueforaumdeseuspartidários e mais um sacerdote comprometido com o esforço de reorganização eclesiástica pautado no modelo papal.

52. CDRM (IV, n. 132); Bujanda (1946).53. Bujanda (1946, p.124), como cânone 31, e CDRM (IV, n. 132, p. 127), como cânone 22.54. Muito se tem falado do baixo nível intelectual dos clérigos castelhanos. Lineham, por exemplo, baseado em uma carta de Honório III e na obra Planeta, de Diego Garcia, traça um quadro caótico do corpo eclesiástico hispano, que seria composto de simoníacos e ignorantes. Sem cairmos no extremo oposto, acreditamos que, ao menos na diocese calagurritana, havia uma preocupação cons-tante com a formação dos clérigos, o que é reforçado pela presença de diversos centros de instrução nesteepiscopado.NocasoespecíficodaobraPlaneta, naqualLinehampauta suasconclusões,deve-se levar em conta que o autor é um dos representantes da nova educação universitária e po-deriaestarridicularizandoaquelesclérigosquesemantinhamfiéisàantigaformaçãointelectual,de forte influênciamonástica.Contudo,comoressaltaDíazBodegas,existiamna regiãomuitasigrejas próprias em que os clérigos paroquiais eram escolhidos pelos poderosos senhores leigos locais, como os Vizcaya, os Lopes de Haro, os Cameros e os Díaz. Estes clérigos estavam fora do alcance da vigilante disciplina episcopal, sendo apoiados e fortalecendo os poderes laicos locais que, especialmente na primeira metade do século XIII, rivalizam com os bispos calagurritanos. Logo, quando as fontes mencionam a ignorância dos clérigos, faz-se importante levar em conta as diversas diferenças internas presentes no corpo eclesial. Cf. Linehan (1975, p. 8-11); Aguadé Nieto (1994, p. 168); Díaz Bodegas (1995, p. 143-146).

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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Conforme indicam os documentos, o poeta era clérigo secular, atuando junto à paróquia do povoado de Berceo ao lado de outros clérigos, inclusive seu irmão, com a função de preste. Como tal, recebia benefícios e encontrava-se subordinado a um pároco, exercendo todas as atividades comuns aos clérigos: pregar, catequizar, cantar a missa, celebrar a eucaristia, etc.

Em alguns casos, os clérigos, principalmente os letrados, acumulavam funções, e tambémbenefícios, comoutras atividades, a fimde aumentar suasrendas. Poderiam ser notários, exercer cargos administrativos junto aos mosteiros ou atuar como professores. Dessa forma, podemos supor que Gonzalo de Berceo, além de sacerdote, como o título de Maestro permite inferir, já que era letrado, poderia ter sido professor na escola paroquial de Berceo ou junto ao Mosteiro deSanMillándelaCogolla,poisconstantementefiguranadocumentaçãodetalcenóbio.

Apesar de clérigo secular, Gonzalo de Berceo não se tornou uma pessoa deslocada de seu ambiente cultural, mas integrado a ele. Não devemos idealizar o clero medieval como detentor de todo o saber e atento regulador da vida social. Quando nos atemos às entrelinhas dos documentos e constatamos tantaspreocupaçõesdas autoridades eclesiásticasquantoàs rendaseclesiais, àincontinência dos clérigos, à ausência de uma rigorosa formação intelectual, à manutenção da tonsura e ao cuidado para que os clérigos não acompanhassem a moda ou usassem cores fortes, como o vermelho e o verde,55 dentre outras recomendações, perguntamo-nos se a diferença do comportamento da grandemaioriadoseclesiásticoseodosleigosenãoerabemmenordoqueahistoriografiatradicionalafirma.

1.3.4. “Quiero fer una prosa...”

As obras de Gonzalo de Berceo56 apresentam grandes semelhanças formais com os demais poemas da chamada primeira fase do Mester de Clerecia: Livro de Alexandre; Libro de Apolonio e o Poema de Fernán Gonzalez. A unidade formal demonstra, segundo Isabel Úria, que as obras foram fruto da aplicação de uma técnica que não foi desenvolvida nem por um único poeta, nem por diversos poetas isolados (1979, p. 187). Logo, a semelhança entre os poemas não seria uma mera coincidência. Por outro lado, a técnica usada nessas obras não foi transmitida unicamente através dos textos, já que estes não elucidam, por si

55. Cf. Os cânones 10, 11,14, 15, 16, 17 do IV Concílio de Latrão e os 2, 15, 16, 18, 19, 20, 23 do sínodo calagurritano de 1240.56. Além das vidas de San Millán e Domingo de Silos, Gonzalo de Berceo escreveu outros poemas de caráter religioso: Vida de Santa Oria, Martírio de San Lorenzo, Milagros de Nuestra Señora, Loores de Nuestra Señora, El duelo que hizo la Virgen, El sacrificio de la Misa, Los signos del Juicio Final e três hinos - dedicados a Jesus, ao Espírito Santo e à Virgem.

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mesmos, todos os princípios e regras utilizados em sua composição. Para a autora, é improvável que essa técnica poética tivesse se desenvolvido simultaneamente em diversas escolas catedralescas e monásticas do Norte da Península e que, em todos os centros, sofresse asmesmas transformações.57 Ou seja, com grande probabilidade, os autores aprenderam esta técnica em um mesmo local, durante a primeira metade do século XIII. Mas, que centro ou escola seria este? Isabel Úria, MenendezPeláez,AguadéNietoeFranciscoRicopropõemqueesta“[...]escuelapoética pudo muy bien desarrollarse en la entonces recién fundada Universidad palentina” (ÚRIA MAQUA, 1979, p. 188).

Gonzalo de Berceo teria estudado nesta universidade? Sem dúvida, para ter escrito os poemas dentro da nueva maestría, o autor empregou maiores conhecimentos técnicos do que a formação monástica o dotara. Mas os teria adquirido em Palência?

Para Brian Dutton, Isabel Úria e Menendez Peláez, Gonzalo de Berceo estudou em Palência. Brian Dutton (1964, p. 253), para comprovar esta hipótese, aponta, além das próprias técnicas usadas nas obras berceanas, as ausências do poeta figurando como testemunha em documentos emilianenses, entre 1222 a1237,easreferênciasirônicasaD.Tello,comoseestefosseumíntimoconhecido(Mil325),bemcomoasalusões,emsuaobra,àprópriacidadedePalência(VSD462).

Yndurain nega a educação palentina de Berceo, baseado no fato de que ele não faz propaganda de sua formação universitária, destacando somente a educação obtida em San Millán de la Cogolla (1976, p. 5). Faz-se importante ressaltar que o poeta só informa sobre sua educação no mosteiro emilianense emduasdesuasobras,VSM489eVSD757,nasquaisapresentaabiografiade santos relacionados diretamente ao cenóbio. O poeta provavelmente destacou essainformaçãopessoalsomenteparademonstrarsuaidentificaçãocomossantosbiografados e com o cenóbio emilianense, que visava engrandecer.

Francisco Rico apresenta uma posição intermediária. Como não há provas diretas de que Gonzalo de Berceo tenha estudado em Palência, acredita que o poeta teve acesso à técnica do Mester de Clerecia por intermédio de livros ou de estudantes e mestres que passaram por essa Universidade. Conclui, porém, que este autor riojano possuía a cultura dos scolares clereci (1985, p. 143).

Para Dutton, como Gonzalo de Berceo não figura na documentaçãoemilianense por cerca de 15 anos, provavelmente não se encontrava junto ao cenóbio (1964, p. 253). Neste período o encontramos em Bañares, ao lado do bispo calagurritano Juan Pérez, em 1228. Durante todo o tempo, o poeta poderia ter estado viajando, chegando talvez até Roma, como sugeriu Cátedra (1992, p. 939), ou estudando em Palência, Calahorra ou Paris. Ainda segundo o pesquisador inglês, a primeira obra berceana, VSM, foi composta por volta de

57. Úria Maqua (1979, p. 188) conclui: “[...] nuestros poemas no solo constituyen una unidad técni-ca, sino, que suponen, además, una unidad de escuela en el sentido riguroso de la palabra”.

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1230 (DUTTON, 1976, p. 70). Para escrevê-la, Gonzalo de Berceo deveria ter tido à mão diversos manuscritos emilianenses que lhe serviram de fonte. Logo, opoetajádeveriaestarmantendo,novamente,estreitasrelaçõescomomosteiro,talvezdesdefinsdadécadadevinte.

Como não possuímos documentos diretos, não podemos ir além de conjecturas. Contudo, tomando por base esses dados, propomos uma hipótese. Acreditamos queGonzalo deBerceo pôde ter estudado em Palência, sem terchegado a alcançar o grau de Doutor. De 1223 a 1230 somam-se oito anos, o suficiente para o estudo de gramática. Posteriormente, obteve uma licentia docendi para atuar em seu bispado. Por determinação do III e IV Concílio de Latrão, era permitido ao magister scholae conferir licentia docendi, ainda que restrita à diocese a que o novo mestre pertencia. O novo magister passava a atuar nas igrejas paroquiais e conventuais.58 Logo, o título de Mestre que Gonzalo de Berceo ostentava não seria, necessariamente, um título adquirido junto a uma universidade ou Estudo Geral.

Se aceitarmos a possibilidade proposta por Rico, de que Berceo teria conhecido a arte da clerecia indiretamente, podemos supor, ainda, que este poderia ter estudado na própria escola catedralesca de Calahorra, tendo conhecido a nova técnica por meio de um aluno ou professor, proveniente de Palência ou da Gália. Afinal,Berceoencontrava-sejuntoaJuanPérezem1228e,mesmoseguindoastécnicas do Mester de Clerecia, como veremos no próximo capítulo, aplicou-as com um estilo próprio.

Apontamos uma última possibilidade. Berceo poderia ter estudado em Calahorra, mas ter estado durante algum tempo em Palência, talvez a convite do próprio D. Tello, que poderia ter conhecido em Silos, por intermédio de Juan Pérez, ou ainda no Concílio de Valladolid, de 1228, no qual, talvez, como era clérigo secular, estivera presente. Há que ressaltar que neste mesmo ano encontrava-se com Juan Pérez, o bispo calagurritano, em Bañares.

Nãopodemosapresentarconclusõesfechadas.Podemosafirmar,contudo,que Berceo conhecia, dominava e cultivou a nueva maestria por vários anos, o que o vincula, de alguma forma, ao mundo universitário e urbano.

1.3.5. “Maestro Gonçalvo de Verceo, nomnado...”

Em todos os documentos notariais em que Gonzalo de Berceo é mencionado oufiguracomotestemunhaéapresentadocomoDon. Segundo Martin Alonso, o termo DonfoiusadonosséculosXIIIeXIVcomo“[...] títulohonoríficoydedignidad, que antepuesto solamente al nombre proprio, no al apellido, se daba a muy pocos” (MARTIN ALONSO, 1986, t. 1, p. 969). Em um primeiro momento,

58. Cf. Cânone 18 do III Concílio de Latrão e cânone 11 do IV Concílio de Latrão.

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AUTORIA E CONTEXTO SOCIAL DE PRODUÇÃO DAS OBRAS

foi utilizado para a primeira nobreza, posteriormente, para todos os nobres e, finalmente, para qualquer pessoa considerada “[...] bem portada” (MARTINALONSO, 1986, t. 1, p. 969). Nos documentos nos quais o poeta é apresentado, nemtodososquefiguramcomotestemunharecebemotítulodeDon. Sendo um títulohonoríficodedistinção,podemossuporqueeleprovinhadeumafamílianobre, ou, ao menos, de posses.59

Em Mil. 2a, o autor se auto-apresenta como “[...] Maestro Gonçalvo de Verceo, nomnado [...]”. Para o título Maestro, em uso do século XII ao XV, Alonsopropõedoissignificados(1986,t.2,p.1336).Oprimeiro,designandoumaobra excelente e perfeita dentro de um conjunto de objetos semelhantes, como encontramos em VSD 35abc. O segundo, como aquele que ensina uma ciência, arte ou ofício, ou que possui um título para fazê-lo. Este seria, segundo Alonso, o sentido utilizado pelo riojano ao intitular-se como tal. Lama sublinha, porém, que, só a partir do século XIII, Maestro passouasignificardoutorou,aomenos,alguém que se sobressai em alguma ciência ou especialidade. Anteriormente designava o cura da igreja, que ensinava a religião e o catecismo.60 Ou seja, no início do século XIII o termo Maestro não designava unicamente um grau universitário, mas também aqueles que possuíam um saber e o partilhavam.

Nossa documentação também apresenta Gonzalo de Berceo como Maestro de Confission, título que, segundo Garcia Turza (1992, p. 570, nota 2a) e Yndurain (1976, p. 5), poderia intitular um clérigo confessor ou diretor espiritual. Cátedra (1992, p. 940), que defende a idéia de que o poeta fora próximo do bispo de Calahorra e um clérigo comprometido com a reforma eclesiástica, destaca que um cânone do Concílio de Valladolid, de 1228, estabelece “[...] que en todas las iglesias conventuales por el bispo sea escogido uno de los maes idóneos e maes letrados que hi fueren para predicar e oir las confesiones generalmente” (apudSAINZRIPA,1994,p.483).Comonomesmoanoopoetafiguracomotestemunha emumadas transações realizadas pelo bispo deCalahorra, talvezo prelado, comprometido com o papado e a reforma eclesiástica e ciente de sua formação educacional, poderia ter ordenado o autor riojano ao sacerdócio e tê-lo instituído,comopropõeocânonedeValladolid,parapregareouvirconfissõesnomosteiro em que fora criado.

Estahipóteseexplicaatitulaçãodemestredeconfissão,comaqualopoetaéapresentadonadocumentaçãonotarial,eelucidaasfunçõesque,comoclérigosecular, Gonzalo de Berceo deveria desenvolver, tanto em sua paróquia, quanto junto ao mosteiro emilianense: “predicar e oir confesiones”.

59. Em uma postura contrária, Varaschin acredita que Gonzalo de Berceo teria tido uma origem humilde, ascendendo socialmente através do seu ingresso na vida eclesiástica. Cf. Varaschin (1979, p.14).60. CDRM (I, p. 211).

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1.3.6. “... del abat Johan Sanchez notario por nombrado...”

Baseado nas notícias presentes no manuscrito de Paris do Libro de Alexandre, Brian Dutton defendeu a hipótese de que Berceo fora notário do abade de San Millán de la Cogolla, Juan Sanchez (1968).61 Para reforçar sua teoria, o historiador aponta que as obras berceanas revelam familiaridade com a linguagem jurídica ecomasformalidadeslegais,aindaquemuitasdessasinformaçõesestivessempresentes em suas próprias fontes. Igualmente demonstram antipatia para com os merinos,62 já que, como notário do abade, Gonzalo, ao proteger os interesses domosteiroemilianense,poderiatertidodificuldadesjuntoàsautoridadescivis.Para o historiador inglês, o fato de Gonzalo de Berceo ter sido notário explicaria a sua ligação com a vida monástica, apesar de clérigo secular, bem como o acesso aos documentos e à biblioteca do cenóbio. Esta hipótese recebeu a guarida de muitos historiadores, como Labarta Chaves, Gerli, Rozas, dentre outros.

Isabel Úria rejeita totalmente tal hipótese, baseando-se no fato de que o único testemunho apontado por Brian Dutton é uma estrofe do Libro de Alexandre, proveniente de um manuscrito tardio, apesar dos versos conterem outras informações sobre Gonzalo de Berceo em conformidade com outrasfontes (1981, p. 11). Já Francisco Rico faz uma interpretação diferente do último verso do manuscrito de Paris: Berceo teria estado a serviço ou fora nomeado porJuanSanchezparatratardequestõesforadomosteiro,nãosendo,portanto,necessariamente notário (1985, p. 145).

Apesar do nome do poeta constar em diversos documentos emilianenses, semprefiguracomotestemunhadaparóquiadeBerceo,nãocomonotário.Poroutrolado,asrelaçõesdeGonzalodeBerceocomSanMillándelaCogollasãoinegáveis: ali ele fora criado. Portanto, poderia ter consultado os documentos do cenóbio, mesmo sem ter sido seu notário. Como possuímos fontes que indicam o empréstimo de livros e a participação de leigos na confecção dos mesmos, podemos supor que a biblioteca emilianense não era um órgão fechado.

O poeta fora clérigo em Berceo, povoado localizado próximo ao mosteiro de San Millán de la Cogolla. Conforme já assinalamos, como era comum na época, Gonzalo poderia ter acumulado a função com outra atividade, talvez como confessor ou docente, junto ao cenóbio. O mosteiro emilianense, apesar dos litígios mantidos por rendas eclesiásticas, não perdera totalmente o seu esplendor nasprimeirasdécadasdoséculoXIIIemantinha-sefielàtradiçãomonásticadeséculos anteriores. O autor, homem letrado que detinha o saber da nova clerezia, que fora criado no próprio cenóbio e era pároco de um povoado vizinho, não poderia ter sido acolhido em uma tentativa de renovação intelectual?

61. Cf. Dutton (1968).62.Osmerinoseramsenhoresquegovernavamumaprovíncia(merindad)ouregiõesmenores,emnome do Rei, com poderes administrativos e jurídicos. Cf. Gerbet (1992. p. 396).

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Gonzalo de Berceo estava ligado ao mosteiro emilianense. Apesar de ter elaborado textos de caráter universal, como poemas marianos, obras teológicas e hinos, dedicou-se a apresentar vidas de santos riojanos que mantiveram estreita ligação com o cenóbio.

Como Isabel Úria, rejeitamos a hipótese de Brian Dutton, e, como Francisco Rico,nãonegamospossíveisrelaçõescomomosteiro.AcreditamosqueGonzalode Berceo trabalhou junto ao cenóbio emilianense, seja como Maestro Confessor, professor ou até como poeta contratado para louvar o mosteiro através de seus versos. Mas, em qualquer dos casos, ali atuou justamente por ter sido o lugar em que fora criado. É bem verdade que, como detentor das técnicas da nueva maestría, o poetapôdetersidocontratadoparacomportaisobras;porém,tendosido educado no mosteiro emilianense, possuía com esta casa monástica mais do que uma ligação jurídica ou institucional; incontestavelmente, possuía, também, vínculos emocionais com os monges emilianenses.

1.3.7. “... yo la vi...” :63 as viagens realizadas por Gonzalo de Berceo

Não é possível saber com certeza se Gonzalo de Berceo realizou muitas viagens e para onde se dirigiu, já que não há evidências documentais diretas. Contudo, atuando como clérigo no povoado de Berceo, encontrava-se próximo de dois importantes eixos de comunicação e circulação da Península Ibérica: a leste-oeste, o Caminho Francês para Santiago, e a norte-sul, o vale do Ebro.

Pelos indícios presentes nos documentos notariais e nas obras berceanas conservadas, podemos concluir que o poeta visitou algumas localidades de Castela: Cañas (VSD 199), Logroño (VSM 292),64 Bañares (MP, n. 87; CDRM, IV, n. 86), Arlanza (VSD 265) e Silos (VSD 230), dentre outras. Mas, Gonzalo de Berceo teria estado em Santo Domingo de la Calzada, tão próxima a Bañares? Ou no importante centro de peregrinação que era Santiago de Compostela?

Comonãohádadosconcretospara respondera taisquestões,podemos,contudo, traçar algumas conjecturas. Como clérigo secular, Gonzalo de Berceo poderia realizar viagens. Para obter a formação intelectual, certamente ausentou-se do povoado natal e conheceu a vida urbana, seja por ter estudado em Palência, Calahorra, ou até Paris ou Roma. Por outro lado, o poeta, além de viajar, manteve constantes contatos com viajantes, já que sua paróquia estava próxima do Caminho Francês de peregrinação a Santiago de Compostela. Assim, seja como viageiro, seja através do contato com viajantes, ele conheceu ambientes culturais diferentes, o que enriqueceu sua apreensão e representação do mundo.

63. Esta expressão, presente em VSD 109, faz referência a uma visita, realizada por Gonzalo de Berceo, ao cenóbio de Santa Maria de Cañas.64. Berceo intitula esta cidade pelo antigo nome de Cantábria.

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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1.3.8. “Quiero em mi vegez, maguer so ya cansado...”

GonzalodeBerceomanteve-seprodutivointelectualmenteatéofimdasuavida. O Martírio de San Lorenzo, poema que foi transmitido incompleto, teria sido o último trabalho, iniciado antes de 1264. Dutton acredita que Berceo morreu quando o redigia (1976, p. 75). O ano de 1263 é apontado por Dutton como o último de vida do poeta, uma vez que o documento de 1264, que o menciona como Maestro de confission e cabeçalero de Garcia Gil, não o apresenta como testemunha (DUTTON, 1964, p. 254).

Este dado não pode ser visto como uma evidência direta do ano da morte de Berceo, já que este poderia estar enfermo ou viajando na ocasião da redação do documento, e, portanto, não estaria apto ou presente para testemunhar. Contudo, se tomarmos o ano 1196 como o do seu nascimento, em 1263 ele já teria 67 anos deidade,oquejáseriaumamédiadevidamuitoavançadaparaospadrõesdeLaRioja medieval.65 Aceitamos, portanto, a hipótese de Brian Dutton e consideramos 1263 como o ano da morte do poeta.

1.4. Autoria e contexto social de produção das obras em análise: considerações

Conforme demonstramos no decorrer do capítulo, o LSJ é fruto da reunião dediversostextoscompostosporautoresdiferentesemvariadasocasiões,masque foram unidos sob a direção de Diego Gelmírez. Certamente ele não foi o responsável direto pela compilação, mas foi o seu idealizador. O LSJ, portanto, foi formado em sintonia com a política levada a cabo pelo prelado. Numa política quesecalcoumaisemaliançasdoqueemoposições,obispoprocurou,comaobra, destacar o caráter apostólico de sua sé e a harmonia com Roma, legitimando e fundamentado todas as conquistas no campo da política eclesial. Para legitimar efortaleceroArcebispadodeCompostela,buscou-se,então,enaltecerafiguradopatrono, São Tiago, que fora um dos apóstolos de Cristo, primeiro mártir, e cujos restos mortais, acreditava-se, estavam sepultados na Galiza.

Já as Vidas berceanas são o produto do trabalho intelectual de um homem, Gonzalo de Berceo, a partir de uma releitura de textos mais antigos à luz do contexto e dos compromissos e experiências pessoais. O poeta viveu em um momento em que La Rioja era incorporada ao reino de Castela, o bispado de Calahorra consolidava-se fundamentado na Reforma Romana, o saber urbano se estruturava, novas formas de vida religiosa se expandiam na Península e a vida religiosa tradicional encontrava-se em desagregação. Justamente por seus

65. Um estudo realizado com os restos humanos na necrópole do mosteiro de San Millán de la Co-golla demonstrou que a média de vida nesta região, durante os séculos XI ao XIII, não ultrapassava os 60 anos. Cf. Riu Riu (1984, p. 89).

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AUTORIA E CONTEXTO SOCIAL DE PRODUÇÃO DAS OBRAS

múltiplos pertencimentos, já que foi criado em um mosteiro, mas seguiu a carreira de clérigo secular; teve acesso aos ensinamentos universitários, mas dedicou-se a escrever obras com temas tradicionais; e provavelmente foi o escolhido para escrever versos dentro da “nuova maestria”, mas visando realçar a superioridade da vida monástica.

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Capítulo II

O ambiente literário de produção do Liber

Sancti Jacobi e das Vidas berceanas

O presente capítulo tem como temática, primeiramente, o estudo dos ambientes literários em que o LSJ e as Vidas berceanas foram compostos. Realizamosumaanálisesincrônica,quepermiteverificarasvinculaçõesdessasobras com a literatura que lhes era contemporânea, bem como sublinhar as suas particularidades.

Emsegundolugar,objetivamosdiscutirocaráterhagiográficodosmateriaisem análise, relacionando-os, sobretudo, com as concepções de história entãocirculantesnasregiõesdeLeãoeCastela.Interessa-nosdiscutircomotaisobrasdialogaram com o passado e o presente, ao apresentar os eventos relacionados aos santos que propagam.

2.1. O Liber Sancti Jacobi e a literatura latina hispânica no século XII

Comojáassinalamosnocapítuloanterior,seguindoasconclusõesdeDíazy Díaz, Pérez-Embid e Adeline Rucquoi, consideramos que o LSJ foi compilado durante o governo de Diego Gelmírez na escola vinculada à Catedral de Compostela. Ali, um ou mais redatores reuniram diversos materiais que tinham como eixo central o culto a São Tiago.

Segundo Bodelón,

Durante la época del arzobispo Gelmírez al frente de la sede compostelana (1100/1140), Santiago fue el principal centro cultural de España; a ello contribuyó en gran medida la ruta jacobea, que aportó una notableinfluenciafrancesaatravésdelasperegrinaciones,combinadacon la reforma cluniacense que también transplantó a España multitud de monjes de forma permanente. Los juglares de allende el Pirineo trajeronnuevossaborespoéticose influyeronen la líricahispanadelmomento. (1989, p. 92-93)

É provável que desde o episcopado de Cresconio (1037-1066) já funcionasse uma escola episcopal em Compostela (SOTO RÁBANOS, 2000, p. 228-229). Ao menos permitem supor os decretos dos concílios de 1056, 1060 e 1063, que instituem que os clérigos da diocese deveriam ser educados em escolas associadas às catedrais e exigem que os diretores dessas escolas tenham formação teológica,bíblicaejurídico-canônica(RIBESMONTANE,1981-1982,p.476).

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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Certamente ela já estava em vigor por volta de 1080, pois Gelmírez iniciou ali a sua educação.

Ao tornar-se bispo, Diego reorganizou a escola como uma das estratégias para introduzir a disciplina eclesiástica na diocese, seguindo as diretrizes romanas, como já salientado no capítulo anterior. Para tanto, enviou clérigos para estudarem naGália,iniciativapioneiranaPenínsula,eatraiumestresdediversasregiõesdealém-Pirineus(SANCHÉZHERRERO,1984,p.205).Assim,seestabeleceramnaregiãoGeraldodeBeauvais,quefoicônegode1112a1118,quandosetornoumagister scolarum, permanecendo na função até 1134; Rainerio de Pistóia, que se formou em Winchester e sucedeu a Geraldo; o mestre Reucellino; o médico Roberto de Salermo, dentre outros (FERNÁNDEZ CONDE, 1982a, p. 329). Nessa escola formavam-se juristas que passavam a atuar como notários e chanceleres, exerciam suas atividades junto ao bispado, as cortes senhoriais e reais, ou até mesmo em mosteiros.

Além da escola, na catedral compostelana existia um scriptorium onde, além do LSJ, foram organizadas, produzidas ou copiadas outras obras, como textos litúrgicos, que visavam substituir os antigos livros litúrgicos visigodos pelosquecontinhama recém introduzida liturgia romana;coleçõescanônicas,como o Polycarpus, elaborada pelo presbítero Gregório e dedicada a Gelmírez; e cartulários, como o Cartulário da Catedral, que reúne documentos reais relacionados à diocese que foram emitidos entre 1129 a 1131 (FLETCHER, 1984, p. 326; RIBES MONTANE, 1981-1982, p. 477).

Um dos principais textos elaborados nesse scriptorium foi a História Compostelana, um misto de gesta y registrum, que transcreve documentos, narra e comenta os acontecimentos considerados mais relevantes do episcopado de Gelmírez. Atuaram na composição desse texto várias pessoas, como os já citados Geraldo e Rainerio, além de Nuño Afonso, que foi tesoureiro da Igreja de Santiago e,posteriormente,bispodeMondoñedo;ocônegoHugo,quedepoisfoipreladodo Porto, e o capelão Pedro (SINGUL, 1999, p. 114). Nela são citados vários autores, como Agostinho, Boécio, Cícero, Gregório Magno, Horácio e Virgílio. Essa obra, como o LSJ, narra a translatio do corpo de São Tiago da Palestina à Galiza (HC I 1, 2).

Outro documento elaborado em Compostela relacionado ao apóstolo é o Voto de Santiago.Composto apartirde tradiçõesmais antigas emmeadosdoséculoXIIpelocônegoPedroMárcio(PÉREZ-EMBID, 2002, p. 170), baseou-se, segundo González Jiménez, “en un hecho real – la batalla que tuvo lugar cerca de Albelda, en Monte Laturce, en 844” (GONZÁLEZJIMÉNEZ, 2003, p.160). O voto foi redigido como se fora um texto do século IX. Nele, o rei Ramiro I e sua esposa Urraca instituem um tributo em favor de São Tiago, como agradecimento por sua ajuda na luta contra os muçulmanos (CASARIEGO, 1979, p. 25).

Na catedral também havia uma biblioteca, que foi implantada por Gelmírez. Nela eram encontrados livros litúrgicos, um librum pastoralem, livros de cânones,

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um librum de fide trinitatis et allis sententiis, um librum de vita episcoporum, algumasobrashagiográficaseumcompêndioteológicodenominadonaHCcomolibrum ex diversis sententiis.1

Toda a atividade intelectual desenvolvida junto à Catedral de Santiago de Compostela, segundo Fletcher, “seems to have been directed almost exclusively to the consolidation and defense of rights claimed or exercised by bishop and chapter” (1984, p. 325-326). Essa meta deve ser compreendida levando-se em conta que no século XII, com o avanço da Reconquista, as dioceses se reorganizavam à luz das diretrizes romanas. Assim foram se constituindo como centros de poder, locais de formação escolar, cuja produção literária era um instrumento para “alterar a correlação de forças no domínio do espaço” (PÉREZ-EMBID, 2002, p. 365), visando ampliar a área dos bispados, consolidarem-se como centros de saber e atrair peregrinos e ofertas.

Nesse esforço, as dioceses rivalizaram com os grandes mosteiros, os principais núcleos de produção literária até então. As escolas que, no século XII, foram se implantando junto às catedrais, nas cidades, tornaram-se espaços de labor intelectual ao lado dos cenóbios.2 Como ressalta Pérez-Embid, em muitos aspectos essas escolas urbanas adotaram os métodos e conteúdos de ensino monásticos, devido à formação e origem dos primeiros titulares das dioceses, clérigos regulares (2002, p. 369). Guijarro González sublinha que nessas escolas se conservam

elementos del canon de autores y curriculum escolar de herencia visigótica [...] un programa que se materializó a partir de la práctica de un magisterio carismático del maestro, de una gramática con orientación moralizante en simbiósis con la retórica, como materias centrales. Todo ello encaminado a hacer del clérigo un hombre de scientia y mores. (2000, p. 95)

Pouco a pouco, nesses novos centros de saber a tradição isidoriana foi sofrendomudançascomachegadadeinfluxosprovenientesdealém-Pirineusecomasprópriastransformaçõesdasociedade.

Dessaforma,noséculoXII,nasregiõesdeLeãoeCastela,elaborou-seumavasta produção literária em latim, em diversos centros episcopais, como Toledo, Osma, Oviedo, Leão e o já citado Santiago, e nos grandes mosteiros, como Santo Domingo de Silos e San Millán de la Cogolla. Foram produzidas diversas obras,3 hinos, como o Plaudat phalanx angelica; poemas, como o Poema de Almeria; crônicas,comoaChronica Adefonsi Imperatoris e a Cronica Silense;hagiografias,

1. Fletcher levanta a possibilidade de que alguns desses textos sejam cópias de obras de Gregório Magno e de Agostinho. Cf. Fletcher (1984, p. 325).2. Sobre as escolas das catedrais castelhano-leonesas, ver Guijarro González (2000, p. 61-95).3. Para um panorama sobre a literatura latina do período, ver o livro já citado de Bodelón.

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como as Vita Sancti Petri Oxomensis e Vita Sancti Isidori, auctore canonico coenobii Legionensis; compilações, como o Corpus Pelagianum; cartulários, alémdasdiversastraduçõesdetextosdemedicina,filosofiaeastronomia.4

Santiago de Compostela, no século XII, despontou como um grande centro desaber,queacolheupessoasdediversasregiões.JuntoàCatedraldesenvolveu-se uma escola, um scriptorium e uma biblioteca que visavam elevar o nível intelectual dos clérigos para o desenvolvimento da pastoral, para o enfrentamento jurídico em disputas políticas com outras dioceses ou mosteiros, para construir uma mémoria local e para consolidar o poder do arcebispado face aos outros centrosreligiosos.Énesseambientedeflorescimentoliterárioedisputadepoderque o LSJ é organizado.

2.2. As Vidas berceanas e o Mester de Clerecia

Gonzalo de Berceo foi o primeiro poeta de nome conhecido a escrever em castelhano, porém não foi nem o primeiro nem o único a elaborar obras nessa língua nas primeiras décadas do século XIII. O riojano, portanto, não foi um escritor isolado. A produção literária castelhana contemporânea à composição das vidas de santos berceanas era abundante e variada. Incluía textos épicos, como o Poema de Mio Cid; inspirados no mundo antigo, como o Libro de Alexandre; disputas, como a obra Denuestos del agua y el vino; vidas de santos, como a Vida de Santa Maria Egipcíaca; passionários, como O martírio de S. Lorenzo; inspiradas na Bíblia, como o Libro dels tres reys d’Orient; catecismos, como Los Diez Mandamentos;etextosoficiais,comooTratado de Cameros. Abundavam também as traduções: da Bíblia, de sentenças de sabedoria, de manuais deconfessores,bemcomodelivroshistoriográficos,taiscomoAnales Toledanos, Liber Regnum e Historia Roderici, obras das quais eram realizados resumos.5

Tais textos, já redigidos em castelhano ou traduzidos para essa língua, diferenciavam-se entre si não só pela diversidade temática, mas também pela formaeinfluênciasrecebidas.Foramcompostosemprosaouemverso,e,nestesegundo caso, com métrica e rima variada; preservados em manuscritos que apresentam variações dialetais;6 e inspirados por literaturas diversas, como a latina,aprovençal,abíblica,bemcomonastradiçõeslocaisorais,etc.Dentreaprópria produção literária berceana, encontramos diferenças. Em vista da VSM e

4.Sobreastraduções,verGil(1985);Jacquart(1992);BrasaDíez(1997);El-MadkouriMaataoui(2000); Foz (1999). 5. Para um panorama da literatura castelhana no século XIII ver: Lopez Estrada (1987); Deyermond (1991); Yndurain (1985); Úria Maqua (1992).6. Como assinala Lopez Estrada, o “[...] castellano medieval ofrece unos rasgos linguisticos que teoricamente son uniformes, pero que en la realidad de cada texto literario conservado se matizan deacuerdocon lasvariedades localesy losgrados socialesdel autor[...]” (LOPEZESTRADA,1987, p. 44).

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da VSD, as demais obras apresentam novas temáticas. São poemas doutrinários, marianos, literatura místico-visionária e de martírio. Estas também variam quanto à organização do conteúdo, ao número total de coplas e ao uso ou à ênfase em um ou outro recurso retórico.

As obras berceanas, o Libro de Alexandre, o Libro de Apolônio e o Poema de Fernán Gonzalez são considerados, como ressaltamos no capítulo anterior, poemas da chamada primeira fase do Mester de Clerecia.7 Essas obras, como sublinha Isabel Úria, possuem uma “unidade técnica” (1981, p. 188). Foram escritas na primeira metade do século XIII, utilizando-se da cuaderna via e aplicando recursos teóricos presentes nos manuais de Ars medievais. Basearam-se em fontes escritas, de caráter culto e possuíam objetivos didáticos.8 Esses textos apresentam cultismos e semicultismos,9 fazem o uso da dialefa10 e contêm versos isossilábicos.11

Como já assinalamos anteriormente, o local de formação e difusão dessa técnica literária, segundo Isabel Úria, Menendez Peláez, Aguadé Nieto e Francisco Rico, foi a Universidade de Palência. Segundo estudos de Adeline Rucquoi, o Studium de Palência, provavelmente derivado da escola episcopal ali existente, já seencontravaemplenovigordesdefinsdoséculoXII(1998,p.748).Apósumperíodo de crise, que se seguiu à morte de Afonso VIII, foi reinaugurada no início do século XIII pelo bispo D. Tello Téllez de Meneses. A nova fundação inspirou-se no modelo parisiense. Segundo apontam os documentos, no studium existiam quatrocátedras:Teologia,DireitoCanônico,LógicaeArtes(Gramática).12 Destas, aGramática,comgrande influência francesaecatalã,ganhoumaiordestaque,exigindo o estudo do trivium, do latim e, sobretudo, da prosódia.13 Indícios do programa intelectual são os livros que foram utilizados pelos alunos e professores nessa Universidade e conservados.14

7. Pela forma, temática e uso de fontes, as vidas de santos berceanas são consideradas obras do Mester deClerecia. Sobre as relações entreGonzalo deBerceo e as obras da primeira fase doMester de Clerecia, ver Úria Maqua (1986); Garcia Turza (1986); Menendez Pélaez (1984); Rico (1985).8.Estedictatismoérelativo,jáque,comoafirmaRico,nospoemas,“[...]enunosaspectos,elautorponía sus conecimientos a la altura del lector; en otros, el lector tenía que subir hasta la del autor” (RICO, 1985, p. 23).9. Sobre esta questão trataremos, mais detidamente, no próximo capítulo.10. A dialefa é a “pronunciación e computo independente das vogais en contato de palabras distin-tas”. Cf. Garcia Turza (1986, p. 13).11. Os versos isossilábicos são frutos da segmentação dos versos provocada pela inversão e hipér-bato dos elementos da frase e do ritmo acentuado pela pronunciação das sílabas.12. Ver documentos publicados por Mansilla Reoyo (1945, p. 258-262, notas 23, 24, 26-30, 33-35).13. A prosódia, para os gramáticos medievais, era o estudo da pronúncia das palavras. Cf. Rico (1985, p.19); Úria Maqua (1986, p. 20, nota 40).14. Segundo os autores, esses textos são: um formulário notarial, com documentos dos anos de 1220 a 1226, que apresentam o Alexandreis de Gautier de Chatillon - modelo e fonte para o Livro de Alexandre - como uma das obras estudadas nesta escola; o Verbiginale, tratado de morfologia

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A Universidade de Palência foi um centro intelectual15 que, por volta do início do séculoXIII, floresceunoNorte daPenínsula Ibérica. Sob influênciafrancesa e com dimensão européia, seus alunos e professores - com uma preparação intelectual distinta da recebida nos centros monásticos, da qual eram conscientes eseorgulhavam-utilizaramumanovaformadeversificação,comoummanifestode um novo tipo de saber, o universitário (AGUADÉ NIETO, 1994, p. 168).

Segundo Úria, nessa escola teria sido escrito o Libro de Alexandre, a primeira obra em castelhano que empregou a cuaderna via e a chamada nueva maestría, por volta de 1220-1230. O poema teria sido fruto de um trabalho de equipe, tendoà frenteumdiretorqueplanificaraaobra,organizarao trabalhoe dirigira sua confecção. A técnica utilizada, completamente nova na Península Ibérica para a elaboração de textos em língua vernácula, tinha como ponto de partida um texto-fonte básico, ao qual foram incorporados diversos outros elementos provenientes de fontes diversas, criando, assim, uma obra de estrutura complexa, mas com grande unidade.16

Ou seja, a técnica que permitiu a elaboração dos poemas da primeira fase do Mester de Clerecia surgiu no meio universitário e urbano, e estava intimamente ligada a um novo tipo de homem culto. Esses novos intelectuais, procedentes dos meios universitários recém-organizados, tinham como objetivo obter e difundir o saber, ao mesmo tempo que possuíam gosto pela fama e pelo dinheiro. Estes letrados, pela sua formação, em leyes,teologia,filosofiaougramática,aindaquefossem, majoritariamente, clérigos ordenados, encontravam ocupação junto às chancelarias senhoriais, reais, monásticas e episcopais, espaços em que, sobretudo através do trabalho administrativo e jurídico, alcançavam prestígio social e um novo statuseconômico(RICO,1985,p.135).

A expressão Mester de Clerecia provém da estrofe 2 do Libro de Alexandre: “mester traygo fermoso non es de joglaría / mester es sen pecado ca es de clerecia: / fablar curso rimado por la cuaderna via / a sillavas cuntadas, ca es grant maestria”. No século XIX foram denominados como poemas do Mester de Clerecia aqueles escritos em cuaderna via, produzidos entre os séculos XIII eXIV. Posteriormente, ampliou-se a definição para acolher todas as obras decaráter culto desse período, seja pela temática tratada, pela forma ou pelo uso de fontes escritas. Atualmente, são designados como poemas do Mester de Clerecia um grupo heterogêneo de obras, tais como La razón de amor, Disputa de Elena e

verbal e prosódia, escrito em dois mil versos, por volta de 1215 a 1220, por Pedro de Blois, mestre de Chartres e dedicado a D. Tello; o Serviolus ou Opusculum Servioli, outro manual de prosódia, em versos; o Ars dictandi palentino,cujoconteúdoseguefielmenteateoriadosdictadoresdeÓrleans;e um sumário de prosódia (AGUADÉ NIETO, 1994, p. 164; RICO, 1985, p. 9 et seq.).15. Não foram preservados muitos documentos que permitam reconstruir, de forma mais completa, ahistóriadestauniversidade,masépossívelafirmarqueseusmomentosdeesplendorforamosanosde 1215 a 1217 e, posteriormente, 1220 a 1225. Cf. Rico (1985, p.15).16. Esta técnica foi a mesma utilizada posteriormente por Afonso X, o sábio, e seus colaboradores. Cf. Menéndez Peláez (1984, p. 35 et seq.).

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Maria, O Poema de Fernán González, Ay Jerusalém, dentre outras. Em contraposição a essa produção considerada culta, forjou-se o conceito

de Mester de Juglaria. Identificandoépicacomjuglaria,passou-seautilizaraexpressão para denominar aqueles textos que não possuíam temática ou forma culta, bem como não eram conhecidas suas fontes. Contudo, estudos a partir da década de 80 demonstram “[...] que no es posible un reparto sistemático asignando al llamado ‘Mester de Juglaria’ el verso de las series anisosilábicas y la expresión de los asuntos ‘populares’ y al llamado ‘Mester de Clerecia’, la cuaderna vía y la expressiónculta”(LÓPEZESTRADA,1987,p.315).

Apesar das diversas semelhanças que aproximam as vidas de santos berceanas das demais obras da primeira fase do Mester de Clerecia, encontramos também alguns elementos que figuram nas poesias épicas e juglarescas do período: incluem fórmulas e epítetos épicos, apresentam diálogos, muitas referênciasgeográficasedestacamosgestosdosanto,queérepresentadocomoum herói (VSM 32b, 56cd, 62a, 123ab, 254c, 265c, 481c e VSD 29c, 58b, 84a, 86a, 273b, 309b, 405a, 416b, 423, 425c, 530c, 552d, 688c). Entretanto, tais obras não revelam simpatia para com os juglares (jograis). Em VSD 89 dc, por exemplo, afirma-sequeoqueéditoporjuglaria deve ser considerado como falso e leviano: “por nulla jonglería no lo farién reír, nin liviandad ninguna de la boca decir”.

Juglar é um termo de significação ampla. Segundo Menendéz Pidal,um juglar era um homem ou mulher que ganhava a vida atuando diante de um público, visando a diversão (1957, p. 3). Um joglar (juglar/jogral) era um artista que cantava, dançava, fazia truques e jogos nas cortes reais e senhoriais, bem como nas cidades e vilas. Eram numerosos e populares. Poderiam ser poetas, mas na maioria das vezes eram somente recitadores ou cantores daquilo que outros compunham, fossem poemas narrativos, como os épicos, ou líricos. Poderiam ainda ser musicistas, acrobatas, dançarinos ou realizar performances circenses. Afonso X, em uma carta-resposta a Guiraut Riquier, elaborada em 1275, na qual distingue os diversos tipos de artistas, caracteriza os juglares como “todos aquellos que sepan hacer algo interesante, o bien tocar instrumentos, o cantar, u otra cosa, en quienes el bienhacer quede a salvo, gente instruida y cortés, que entre los buenos está siempre con buena voluntad siguiendo las cortes, es conveniente razonable y averiguado que sean llamados juglares[...]”.17

As diferenças sociais entre os artistas desse grupo eram muito grandes: possuíam origens étnicas diversas, poderiam ter tido uma formação intelectual ou não, ser mendigos ou ricos. Os juglares eram mal vistos pela Igreja Ibérica. O Concílio de Valladollid de 1228 pronunciou-se contra os juglares, já que os via como possuidores e difusores de costumes mundanos, o que pode explicar as críticasdopoeta(MENÉNDEZPIDAL,1957,p.23).

Não consideramos uma contradição o fato de Gonzalo de Berceo ter utilizado fórmulas épicas em suas vidas de santos e ter reprimido os juglares,

17. Transcrevemos o texto publicado por Rodríguez Velasco (1999, p. 276).

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justamente porque o juglareraumartistaeaépica,umtipoespecíficodepoesia.Logo, as vidas de santos berceanas incorporam elementos de textos épicos contemporâneos-poropçãodoprópriopoetae/oucomoinfluênciadaépicadeseu tempo - e, simultaneamente, criticam os juglares.

A VSD é apresentada como uma gesta (VSD 487c, 571d, 754c) e, face à VSM, reúne um número maior de topoi épicos. Para Trend isto ocorre porque Berceo, como Francisco de Assis, queria ser um menestrel de Deus (1956, p. 143-144). Tal hipótese é plausível, visto que, quando o poeta escreveu a VSD, na segunda metade da década de 40, os franciscanos já se encontravam na PenínsulaIbéricaeasbiografiasfranciscanas,comoaVidaIdeTomásdeCelano,circulavam. Contudo, em alguns versos, o autor parece criticar os mendicantes. Animado ou não pelo espírito franciscano, acreditamos que o riojano construiu sua VSD inspirado pela épica, ressaltando o heroísmo do santo.

AsvidasdesantosdeBerceo,portanto,não foramfenômenos literáriosisolados, mas encontravam-se em meio a uma corrente. Se, por um lado, foram receptoras de uma longa tradição literária latina, também incluíram as novidades de seu tempo. Essas obras possuem, porém, particularidades que as tornam singulares: estão relacionadas ao universo monástico riojano; empregam elementos cotidianos na aplicação das técnicas retóricas, como veremos no próximo capítulo; incorporam traços formais próprios, tais como a forma de enlaçamento da estrofe, o uso de diminutivos; as intromissões constantes doautor e narrador; e quanto ao vocabulário. Esses elementos peculiares podem ser explicados pelo ambiente cultural em que foram redigidas, bem como pelas opçõesevivênciaspessoaisdopoeta.

2.3. Reflexões sobre as relações entre hagiografia e história nas obras em análise

OsLSJ II e III e asvidasde santosdeBerceo sãoobrashagiográficas.Masoqueéumahagiografia?Otermohagiografiapossuiraízesgregas(hagios = santo; grafia = escrita)18 e é utilizado desde o século XVII, momento em que se iniciou o estudo sistemático e crítico sobre os santos, sua história e culto, para designar tanto o novo ramo do conhecimento como o conjunto de textos que tratam de santos com objetivos religiosos. Como ressalta Hippolyte Delehaye, um dos principais estudiosos dos textos hagiográficos no século XX: “On levoit, pour être strictrement hagiographique, le document doit avoir un caractère religieuxetseproposerunbutd’edification.Ilfaudradoncréservercenomàtoutmonument écrit inspiré par le culte des saints, et destiné à le promouvoir” (1973, p. 24).

18.SobreodesenvolvimentodotermohagiografiaverPhilipart (1994).

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Sãoconsiderados textosdenaturezahagiográficaosquepossuemcomotemáticacentralabiografia,osfeitosouqualquerelementorelacionadoaocultode um personagem considerado santo, seja um mártir, uma virgem, um abade, um monge, um pregador, um rei, um bispo ou até um pecador arrependido. 19

A literatura hagiográfica cristã iniciou-se ainda na Igreja Primitiva,quando, a partir de documentos oficiais romanosoudo relatode testemunhasoculares, eram registrados os suplícios dos mártires.20Ahagiografiadesenvolveu-se e consolidou-se na Idade Média, com a expansão do Cristianismo e a difusão do culto aos santos. Durante o Medievo foi produzida uma grande quantidade de hagiografias. Tais obras possuíam caráter privado e foram redigidasprincipalmente pelos eclesiásticos. Num primeiro momento foi utilizado o latim, língua dos cultos e da Igreja, para a redação, já que o público era formado prioritariamente por clérigos regulares e seculares. A partir dos séculos XI, XII e XIII,faceàsinúmerastransformaçõesqueseprocessaramnaEuropaOcidental,as hagiografias foram escritas, ou traduzidas, nas diversas línguas vernáculas,passando a alcançar, portanto, um público mais amplo.21

O objetivo dessas obras era múltiplo: propagar os feitos de um determinado santo, atraindo, assim, ofertas e doações para os templos emosteiros que ostinham como patronos; produzir textos para o uso litúrgico, tanto nas missas como nos ofícios monásticos; servir para leitura privada ou para uso nas escola; instruireedificaroscristãosnafé;divulgarosensinamentosoficiaisdaIgreja,etc(DUBOIS; LEMAITRE, 1993, p. 74).

As hagiografias medievais não possuíam uma unidade, seja quanto àforma, organização temática ou processo de composição.22 Por outro lado, muitas dessas obras também sofreram adaptações, revisões, compilações e traduçõescom o passar dos anos.23 Fixemo-nos no caso dos textos dedicados a Millán. BráuliodeZaragozaescreveusuaVita Sancti Emiliani no século VII, em latim. No século XIII, Fernandus, monge emilianense, redigiu duas obras sobre o santo:

19. O Instituto Interdisciplinar de Estudos Medievais da Universidade de Louvaine vem organizan-do uma coleção, sob o título Typologie des Sources du Moyen Âge Occidental, publicada pela edi-toraBrepols,naqualcadafascículotratadeumtipoespecíficodetextoproduzidoentreosanos500e1500.Nestesentido,nocampodaHagiografiajáforampublicadosvolumessobreoslegendárioslatinoseoutrosmanuscritoshagiográficos(24-25),osmartirológios(26),osrelatosdetraslaçõese outras fontes de culto às relíquias (33), as gestas sobre bispos e abades (37), os textos de viagens eperegrinações(38),osexempla(40)easrevelações(57).Tambémestãoprevistosvolumessobreas vitaeepaixões.20.AliteraturahagiográficanãoselimitouàIdadeMédianemaoCristianismo.Emnossainvesti-gação,contudo,privilegiamosunicamentealiteraturahagiográficacristã,ocidentalemedieval.21.Osprimeirostextoshagiográficosemlínguavernáculaforamtraduçõesdetextoslatinosreali-zadasnaGália,jáapartirdoséculoXI.FenômenosimilarocorreunaPenínsulaIbérica,noséculoXIII,enaItálica,noXIV.Cf.Ruffinatto(1978).22. Sobre a questão ver Aigrain (1953).23. Todas essas obras foram editadas por Brian Dutton em sua edição londrina da Vida de San Millan de la Cogolla, publicada em 1984.

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Liber Miraculorum ipsius, dedicado a narrar os milagres efetuados por intermédio de S. Millán, e De Translatione Sancti Emiliani, que relata a trasladação dos restos mortais do santo, ambas em latim. Ainda no século XIII, contamos com Privilegio de Fernán Gonzalez, redigida tanto em latim quanto em castelhano, e a Vida de San Millan de la Cogolla, de Gonzalo de Berceo, em verso, redigida em castelhano.

Faz-se importante ressaltar que as hagiografias não eram consideradaspelosmedievaiscomomaterialcanônicoouteológico.Eramvistascomotextosfestivos que objetivavam comemorar a vitória do santo contra o mal e a morte. Éporissoqueashagiografiaseramlidasnasfestas,nosrefeitóriosmonásticos,nas escolas e nas praças pelos juglares. Esse caráter comemorativo é explicitado no Prólogo do LSJ II: “que este códice sea leído atentamente en las iglesias y refectorios en los días festivos del santo apóstol y otros, si place”.

Muitos autores consideram a hagiografia como um tipo específico deliteratura.24 Como assinala Carbonell: “[...] o próprio facto de tal literatura ser designadapelotermo,tornadopejorativoentreoshistoriadores,dehagiografia,podem fazer crer que já não se trata de história” (1987, p. 58-59). Porém, concordamoscomLeclerqaoafirmarque,paraoshomensdaIdadeMédia,quandoestes escreviam sobre santos, acreditavam estar fazendo História (LECLERQ, 1957, p. 154). Em um trabalho que discute como os estudiosos, de Gibbon a Gadamer, compreenderamahagiografia,Thomas J.Heffernandefendequeoshagiógrafosmedievaisconsideravamseustextoscomohistóricose,paracompô-los,desenvolveramcategoriasespecíficas (HEFFERNAN, 1992, p. 66).

Ainda que não empregue o termo história, os LSJ II e III têm a preocupação de narrar acontecimentos passados, considerados pelos autores/redatores como verdadeiros,25 nos quais inclui detalhes, como referências a pessoas e lugares. Por exemplo, para apresentar a trasladação do corpo de São Tiago da Palestina para a Galiza, fato fundamental para o desenvolvimento das peregrinações aCompostela, há dois relatos: um no capítulo 1, cuja autoria é atribuída a Calixto II, e outro, no capítulo 2, que é identificado como uma carta elaborada pelopapa Leão III, contemporâneo da descoberta do túmulo do apóstolo. Os dois materiais são harmonizados pelo Prólogo, que explica alguns detalhes de ambos ostextos.Jáospoemasberceanosafirmam explicitamente que apresentam uma istoria sobre os santos que o autor biografa. Assim, logo na primeira estrofe da VSM, lê-se: “qui la vida quisiere de sant Millán saber, e de la su istoria bien certano seer, meta mientes en esto que yo quiero leer”. O mesmo ocorre na VSD 3acb: “quiero que lo sepades luego de la primera, cuya es la istoria, metervos en

24. Dentre esses, destacamos: Delhaye (1973, p. 30); Certeau (1982, p. 266); Baños Vallejo (2003, p. 107-134).25.ParaCarbonell,umtextohistoriográficoéoquefocalizaopassadoeseafirmacomoverdadeiro(1987, p. 6). Vale destacar, contudo, que não existe um sentido universal para verdade, mesmo em se tratando do próprio período medieval.

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carrera: es de Sancto Domingo toda bien verdadera”. O termo istoria aparece, além das passagens transcritas, nos versos VSM 318c, 482b e VSD 316b, sempre em referência à própria obra.

Durante a Idade Média, a História foi cristianizada. Mesmo sem romper radicalmente com a tradição historiográfica clássica, os pensadores cristãoscriaram novas formas textuais e conceitos, pois se inspiravam fundamentalmente na Bíblia, considerada o livro histórico por excelência. Não é estranho, portanto, paraumhistoriadormedieval,incorporardiscursosfictíciosaoseurelatoounarrarfatos maravilhosos, uma vez que a Bíblia está repleta deles e era vista como “pura” História. Além disso, a História era considerada uma grande unidade: tudo o que fora relatado no Antigo Testamento era prenúncio do que se cumpriu no Novo; e quando os homens da Idade Média pensavam a sua própria História, viam-na como a realização do anunciado por Cristo e seus apóstolos.26 Nesse sentido, nasceramaHistóriaEclesiástica,aHagiografiaeaconcepçãoprovidencialistada História. Para os homens medievais, portanto, a História tinha um sentido: a salvação dos homens; um começo: a criação; um ponto central: a economia de Cristo;umfim:omundoterrenoacabaráeosfiéisviverãonoparaíso.AHistória,portanto, era, antes de tudo, uma questão de fé.

Dessa forma, como destaca o já citado Heffernan,

The saint is the medieval symbol for the interplay between the known and the unknown. Within this medieval system of belief, it followed that if a narrative pretended to describe the saint´s life, it had to confront this intersection of the human and the divine. Such a narrative was thus concerned simultaneously with the historical – the story of the saint´s life – and the metahistorical - the divine in-dwelling. (HEFFERNAN, 1992, p. 38)

Essas narrativas, portanto, assentam-se em uma concepção de História distinta da nossa, que procura, como sublinha SesmaMuñoz, “justificar unasituación que se quería mantener o provocar, y se leva acabo de manera mucho conscienteymeditada”(2003,p.18-19).OdivórcioentreaHistoriografiaeaHagiografiaocorreuapósaIdadeMédiacomasecularização,quandoaHistóriadeixou de ser vista como uma manifestação do divino e sim obra humana: não havia mais espaço na História para os santos. 27

Os autores/redatores das obras em estudo foram, como hagiógrafos, historiadores.Aoescreversobreossantosseguiramosprincípiosdahistoriografiamedieval. Nas bibliotecas monacais e episcopais ibéricas dos séculos XII e XIII eram encontrados exemplares de livros considerados históricos no período, tais

26.SobreasconcepçõesmedievaisdeHistóriaver,dentreoutros,Bermejo(1989)eGomézRe-dondo (1990). 27.Sobreestaquestãover,alémdosautoresjácitados,Löwith(1991).

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como Cidade de Deus, deAgostinho,textoshagiográficosdeValeriusduBierzo,De Viris illustribus, de Isidoro de Sevilha, que, segundo Márquez Villanueva, nortearam a produção historiográfica castelhana até Afonso X (MÁRQUEZVILLANUEVA,1994,p.136).Osautores/redatoresdashagiografiasestudadascertamente tiveram contato direto ou indireto com tais obras, porém, em face desses modelos, como escreveram as suas histórias?

2.3.1. Hagiografia e História no Liber Sancti Jacobi (II e III)

Não encontramos trabalhos que se preocuparam em discutir a concepção de História presente nos LSJ II e III,28 mas defendemos que, a despeito de serem textosoriginariamenteproduzidosemambientesdiferentes,épossívelidentificaruma visão de história que fundamenta os relatos. Infelizmente não possuímos as fontes diretas dessa obra para contrapô-las, o que nos permitiria verificaros elementos originais introduzidos pelos autores. Assim, só podemos propor hipóteses.

Os LSJ II e III apresentam, como outros textos medievais, uma visão providencialista da História. Os acontecimentos narrados são sempre acrescidos deexpressõesquedestacamaintervençãodivina:“foicomaajudadivina”(LSJII, 1); “isto foi realizado pelo Senhor” (LSJ II, 20); “levado às costas de Espanha por vontade de Deus” (LSJ III,1); “tão grande benefício que Deus lhes havia concedido” (LSJ III, 1); “por súbita determinação de Deus onipotente” (LSJ III, 1); “pordesígniodeDeus”(LSJIII,2),dentreoutraspassagens.Anarrativareafirma,insistentemente, que Deus está no controle de tudo, não deixando espaço para a ação humana. Esse elemento é evidente, sobretudo, nos relatos da trasladação dos restos mortais do apóstolo.

O providencialismo do LSJ é, portanto, fatalista: Deus tudo sabe, tudo vê, tudo faz. Acreditamos que essa concepção de História adotada pelos autores/redatores é intencional e está diretamente relacionada aos objetivos da obra. Ao destacar que a chegada do corpo de Tiago a Compostela não foi obra do acaso ou decisão humana, mas resultado unicamente de um plano divino, legitima-se a diocese que acolheu as relíquias do santo: ela fora escolhida diretamente por Deus.

Um segundo traço dos LSJ II e III é a ausência de milagres coletivos, ou

28. Há um artigo de Colin Smith intitulado The Geography and History of Iberia in the Liber Sancti Jacobi, que analisa a imagem da Península Ibérica construída pelos peregrinos a partir da divulga-ção de livros de viagem, em especial o LSJ V, o chamado Guia do peregrino. Ele conclui que os peregrinosficavam“badlyconfusedbytheauthoritiesaboutthereligioushistory,thepoliticalandphysical geography, the cities, and much else in the Peninsula” (p. 36). Esse artigo está publicado em Dunn e Davidson (2000).

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seja, que envolvem muitas pessoas. Na grande maioria dos milagres os agraciados são pessoas que padeciam de alguma doença, encontravam-se em perigo de vida ou haviam perdido a liberdade. Há que destacar que foi só no decorrer do século XII que se consolidou a imagem de São Tiago como Matamouros.29 Além disso, como já realçamos, o principal objetivo do LSJ era destacar o caráter apostólico daSéCompostelana,afimdelegitimaroseugraudearcebispado,suasmúltiplasisençõesesuapolíticafaceàsdemaisdioceses.Nessesentido,sóduasbatalhassãocitadas,nãodescritas.Apartirdaanálisedessesrelatos,foipossívelidentificaroutros aspectos relacionados à concepção de História nos LSJ II e III.

A primeira é mencionada no LSJ II, 1. A referência é meramente contextual, já que o milagre narrado trata dos cristãos que se tornaram cativos após o embate:

Quando em tempos do rei Afonso em terras de Espanha tornava-se cada vez mais áspero o furor dos sarracenos, certo conde chamado Ermengol, vendo a religião cristã oprimida pela força dos moabitas, se lançou, rodeado da força de seu exército a debelar a crueldade daqueles, ao que tudo indicava em uma luta vitoriosa; mas, exigindo-o assim nossos merecimentos, foi vencida sua tropa e deu-se o contrário do triunfo. Com o qual a feracidade inimiga, aumentada com a exaltação do orgulho ao cume da soberba, levou como troféu à cidade de Saragoça [...]. (LSJ II, 1)

Nãoéumatarefasimplesidentificarabatalhaaqueomilagrefazreferência.

Diferente do que ocorre na maioria dos outros milagres narrados, não é apresentada uma data para o acontecimento. O texto, porém, informa que o embate ocorreu no tempo do rei Afonso, provavelmente o VI, que foi contemporâneo do avanço dos almorávidas, denominados no texto como moabitas. Também menciona um conde, Ermengol. Nos séculos XI e XII, vários condes de Urgel receberam esse nome: Ermengol II, morto em 1069, Ermengol IV, em 1092; Ermengol V, em 1102, e Ermengol VI, 1154. Outro dado relevante é a indicação de que os cativos foram levados para Saragoça, que era uma cidade muçulmana, a capital do reino de Taifa, que só foi conquistada pelos almorávidas em 1110.

Suárez Fernández informa que um pouco antes da conquista almorávida, al-Musta´in, rei de Saragoça, lançou-se sobre a fronteira cristã (1970, p. 209). Contudo, não apresenta mais detalhes. Como Afonso faleceu em 1109 e nessa

29. Cf. Casariego (1979, p. 20). Como destaca García Páramo, “como caballero-guerrero aparece montado en un caballo blanco atacando a los moros, vestido de guerrero o caballero medieval cubierto con manto. Esta iconografía se extiende al amparo de la Cruzada de la Reconquista y es difundida por la Orden de Santiago. Aunque aparece ya en un relive del siglo XII en la catedral de Santiago, no se adoptará de forma general hasta bastante más tarde, y es casi exclusivamente espa-ñola. Se hace muy frecuente en el siglo XVI, se mantiene durante el barroco, y acaba decayendo en el XIX” (1993, p. 94).

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época Saragoça ainda não estava dominada pelos almorávidas, podemos supor que o embate ocorrera no tempo dos reinos de Taifa independentes, ou seja, nos primeiros anos do século XII.

Porqueétãoimportanteidentificaressabatalha?Porqueoautor/redatordo LSJ explica o fracasso cristão como resultado de “merecimentos”. Ou seja, a derrota é vista como um castigo. Mas castigo por quê? Algum acontecimento próximo à composição do relato? Após a morte de Afonso, Leão e Castela sofreram com vinte anos de guerras internas. Urraca casou-se com Afonso I de Aragão e organizou-se um partido contrário à rainha, que lutava para garantir a ascensão doseufilho,AfonsoRaimundez,aopoder.Assim,épossívelsuporqueaderrotafoi considerada como um castigo pela desunião dos castelhanos e leoneses, e um julgamento, pela perspectiva galega, dos acontecimentos políticos que colocavam em xeque a sua relativa autonomia e a preponderância da Sé Compostelana.

Independentemente da batalha ou do castigo a que o milagre se refere, a observação inserida pelos autores/redatores do LSJ aponta para uma visão moralizadora da História: o desenrolar dos acontecimentos é visto como resultado dos pecados ou das virtudes dos homens. Assim, Deus dirige a História para punir ou premiar os homens de acordo com os seus atos.

A segunda menção a uma batalha ocorre em LSJ II, 19. Nessa narrativa destaca-se a relação entre mito e História. O milagre conta que Estevão, um bispo grego, estabeleceu-se em Compostela, passando a morar em uma espécie de cela,construídadejunco,pertodacatedralcomapermissãodos“guardiõesdotemplo”. Ali levava “uma vida celibatária e santíssima”. Um dia, um grupo de aldeões(rusticorum) que realizava uma festa para São Tiago começou a invocar o Apóstolo,chamando-odebomcavaleiro.Oclérigoficouindignadoeoscorrigiu:“aldeõesburros,gente ignorante,aSãoTiagodevéischamá-lopescadorenãocavaleiro. E lembrou a passagem bíblica segundo a qual à conclamação do Senhoroseguiu,deixandoooficiodepescador,efoifeitoemseguidapescadorde homens” (LSJ II, 19).

Nesse mesmo dia, à noite, o santo surgiu para Estevão vestido como cavaleiro e lhe disse que lhe aparecia daquela forma para que ele não duvidasse que “milito a serviço de Deus e sou seu campeão na luta contra os sarracenos, precedo aos cristãos e saio vencedor por eles. Tenho conseguido do Senhor ser protetor e auxiliador de todos os que me amam e me invocam de todo o coração em todos os perigos” (LSJ II, 19). Depois disso, informou que abriria as portas da cidade de Coimbra, que já estava sitiada há sete anos pelos cristãos liderados porFernandoI,àsnovehorasdodiaseguinte.Omilagrefinalizadestacandoquea profecia foi cumprida30equeogrego“afirmouqueSãoTiagodavavitóriaatodos os que na milícia o invocavam e recomendou que o invocassem todos os que lutam pela verdade” (LSJ II,19).

30. A tomada de Coimbra ocorreu em 1045 e é um dos primeiros embates cuja vitória é atribuída à intervenção de São Tiago (HIDALGO HOGAYAR, 1991, p. 1).

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Dentre todos os milagres presentes no LSJ II, esse é o único que caracteriza São Tiago como Matamouros. O que nos interessa destacar a partir desse relato é justamente o debate que a própria narrativa introduz entre o Tiago ‘histórico’, ou seja, aquele que é apresentado no Novo Testamento como pescador, e o Tiago Mito, ou seja, o transformado em miles Matamouros.

A criação de mitos não foi uma exlusividade do medievo. Contudo, os mitos, carregados de elementos maravilhosos, proliferaram-se na Europa Ocidental nesse período porque tudo o que escapava à compreensão racional da realidade era considerado possível devido à intervenção divina ou à ação de demônios.Dentro dessa lógica, como destaca Diago Hernando, muitos mitos foram criados a partir de personagens históricos, que foram ganhando características e atributos muito distintos dos originais. Em alguns casos, “un mismo personaje histórico con frecuencia dio origen de hecho a múltiples leyendas de muy variado signo, en cadaunadelascualesadoptabaunperfilmuydiferente,llegandoaconsolidarsede esta manera como un auténtico mito polifacético”. O autor ainda destaca que, em muitos casos, a gestação desses mitos e sua difusão foi propiciada por diversas instâncias de poder com claros objetivos políticos (DIAGO HERNANDO, 2003, p. 233-234).

NocasoespecíficodeSãoTiago,apartirdasinformaçõesneotestamentárias,que não narram fatos maravilhosos, foram construídos na Península Ibérica os mitos do peregrino e do cavaleiro. A indignação de Estevão e seus desdobramentos, presente no LSJ 19, visa justamente harmonizar a história e o mito que, dentro da lógica medieval não estavam em contradição. Essa junção de história e mito podetambémserencontradanoLSJIII,3.ParajustificaradatadafestadeSãoTiago, os autores/redatores utilizaram-se de diversos testemunhos e argumentos de personagens considerados históricos em sua época, como o evangelista Lucas e Jerônimo, assim como de uma visão espiritual tida por um certo fiel, seuconhecido.31

Um terceiro aspecto que gostaríamos de ressaltar são as referências negativasaosnavarrosnoLSJIIque,comoveremos,tambémfiguramnasvidasde santos berceanas. Na nossa perspectiva, esse antinavarrismo resulta de uma inserção de julgamentos referentes às questões do presente na obra. Há quedestacarquenosoutroslivrosquecompõeoLSJtambémháreferênciasnegativasaos navarros. Contudo, como só nos propusemos a analisar os LSJ II e III, apenas nos detivemos neles.

Em um artigo publicado em 1999, Anguita Jaén se dedica ao tema, analisandotodasasalusõesaosnavarrospresentesnoLSJ.Oautorconcluique“Pamplona no le es simpática a nuestro autor, ni demuestra conocerla demasiado bien, aunque le guarda cierto tratamento respetuoso, quizá causa de los muchos compatriotas franceses residentes en la ciudad” (1999b, p. 221). Fica evidente

31.EssecapítulotambémdestacaopapeldeAfonsoVInaconsolidaçãodascelebraçõesdedicadasaSãoTiagoe,certamente,visavamreforçarasrelaçõesentreamonarquiaeaSécompostelana.

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que o estudioso considera que o autor da compilação é um francês. Aliás, um dos argumentos levantados por Guerry e apresentado no capítulo anterior para sustentar uma autoria francesa para o LSJ é o fato de que a obra não fala bem dos espanhóis (2004, p. 24). Na verdade, essas referências negativas são dirigidas unicamente aos navarros.

Anguita Jaén faz uma advertência antes de analisar o LSJ: ainda que geograficamenteNavarraestivessedivididaemduaszonasprincipais–aTellus nauarrorum, que compreendia as províncias de Álava e Vizcaya, a Tellus Basclorum, que se constituía da merindad de Ultrapuerto, a Baixa Navarra e os territórios bascos-franceses – a “delimitación del territorio navarro que encontramos en el LSJ está feita com critérios etnográficos y lingüísticos”.Assim, os navarros seriam os bascos de “aza e lengua” (1999b, p. 217).

O LSJ II cita os navarros duas vezes. No capítulo 4, que no texto latino são caracterizados como “barbare gentis Basclorum impiorum”,eno6,noqualfiguraum hospedeiro (hospes iniquus) pamplonês (urbem Pampiloniam). Para Anguita Jaén, no capítulo 4, não são os navarros que são injustos, mas os bascos que vivem no Tellus Basclorum.MasseoLSJtrataosbascoscomcritériosetnográficosylinguísticos, por que esses bascos não são navarros? Em relação ao milagre 6, o autordestacaquecomoohospedeiroéidentificadocomopamplonêsnãoeraumnavarro, mas um imigrante franco que ali residia (1999, p. 220-221).

Discordamos das interpretações do autor e acreditamos que em ambosos casosoLSJ se refere anavarros.Os conflitos entreoReinodePamplona,posteriormente chamado de Navarra,32 e os leoneses e castelhanos remontavam ao governo de Fernando I e foram reacendidos durante o reinado de Afonso VI. Posteriormenete, Navarra uniu-se à Coroa de Aragão, reino rival dos castelhanos-leoneses. Como destaca Adeline Rucquoi, “a história de Navarra na Idade Média é caracterizada por uma luta incessante pela sua própria existência, luta no decorrer da qual o reino escolheu aliar-se com Aragão contra Castela” (1995, p.192).Nãoédeseestranhar,portanto,quefaceàjátradiçãodeconflitoscomNavarra e a busca de hegemonia por parte dos reinos hispanos ocidentais, que noLSJ II,para reafirmaraparticularidadeculturaldoOcidentepeninsular,osnavarros tenham sido apresentados negativamente. Assim, são caracterizadas como pessoas bárbaras e ímpias que colocavam em risco, inclusive, o sucesso das peregrinações.Vale destacar que no códice calcatense, contemporâneo aoLSJ e que contém milagres jacobeus, não há qualquer referência aos bascos ou navarros.

Ou seja, os LSJ II e III apresentam uma perspectiva providencialista da história marcada pelo fatalismo, pela presença de poucos milagres coletivos, pela

32. Como destacamos na nota 80 do capítulo 1, os nomes Pamplona e Navarra referem-se à mesma regiãogeográfica,vistoqueosseusreis,atémeadosdoséculoXII,apresentavam-secomorex in Pampilona. Atrocadotítuloocorreapartirde1147,quandonosdocumentosfiguraotítulorege in Pampilona et en Navarra e, já em 1150, rex Navarre.

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moralização e pela propagação de mitos. Como todo texto que trata do passado, éinfluenciadopelasquestõesdopresente,oqueexplicaainserçãodejuízosdevalor em relação aos navarros.

2.3.2. Hagiografia e História nas vidas de santos berceanas

Varaschin, o único historiador até hoje preocupado em refletir sobre asconcepções históricas nas obras berceanas, afirma que “[...] l’histoire quepropose Berceo est essentiellement celle de l’Eglise [...]” (1978, p. 5). Em nosso estudoconstatamos,entretanto,que,apesardeseguirospadrõeshistoriográficosmedievais, o poeta apresenta alguns traços de originalidade ao redigir suas vidas de santos.

Em primeiro lugar, quanto à idéia da Providência. Como diversos outros escritores medievais, Gonzalo de Berceo acreditava que a História era dirigida pela ProvidênciaDivina.Assim,naVSM9,onarradorafirma:“MaselReïdegloriaque es de grand ambisa, quiso est’ ministerio cambiar en otra guisa, levantarlo del polvo, darli mayor divisa, lo que, quando Él quiere, aína lo aguisa.”

Nas vidas de santos berceanas, Deus controla todas as coisas. Pode, inclusive, favorecer os muçulmanos, inimigos dos cristãos, se assim desejar, ou ainda transformar o mal em bem. Na VSM 368b, afirma que “dio grandpodestadía Dios a la gent’ pagana”. E acrescenta na estrofe 375: “La cuita e el planto,elduelogeneral,tanfieraperdición,pecadotanmortal,doliódecoraçónalReïcelestial,elqequandoÉlquiere,rehezviedaelmal”.SegundoGonzalodeBerceo,nadapoderiadeteraaçãodivina,umavezque“aDiosnosedefiendennin cárceres nin cuevas” (VSD 371c), porque ele é “Padre que abre e que cierra” (VSD 181a). Mesmo o que aparentemente era um mal, como o exílio de Domingo emCastela,apósosconflitoscomoreiGarciadeNájera,poderiaservistocomoum bem realizado por Deus. Isto é declarado pelo narrador na VSD 206: “prior de San Millán es entre nos caído, omne de sancta vida e de vondad complido; es por qualque manera de su tierra exido, por Dios abino esto como yo so creído”. Em alguns pontos das obras, Deus intervém na História de forma sobrenatural e fantástica, como nos episódios dos sinais que antecederam a instituição dos votos a San Millán e a aparição milagrosa deste e de São Tiago, em meio à batalha de Simancas, narrados em VSM 362 a 461.

O Providencialismo de Berceo, entretanto, não é fatalista, já que concede espaço para a escolha humana.33 Desta forma, os acontecimentos não se processam como conseqüência do prejulgamento ou decreto divino, mas desenrolam-se de

33. O Providencialismo Histórico não é uma concepção teológica una e invariável. Desde a An-tigüidade até suas formulações contemporâneas, sofreu ajustes, adaptações e influxos diversos.SobreasdiversasinterpretaçõesdoProvidencialismonaHistória,verFrangiotti(1986).

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forma dinâmica: quando o homem se afasta de Deus e age por conta própria, Deus também se afasta do homem, mas lhe dá chances para um recomeço. Atentemos para um exemplo.

Quando a VSM informa que o tributo das sessenta donzelas, pago pelos cristãos aos muçulmanos, irava a Deus, apresenta-o como um ato da escolha e responsabilidade dos cristãos. Deus teria demonstrado seu descontentamento enviando alguns sinais.34 Os cristãos, então, reconheceram a culpa e reagiram (VSM 366, 370, 371, 376). Após terem sofrido com os sinais sobrenaturais enviados por Deus, os cristãos arrependeram-se, reataram o relacionamento com a divindade e reagiram: decidiram não pagar mais o tributo das donzelas aos muçulmanos.Taldesobediênciaresultou,segundoorelatohagiográfico,emumaguerra, a batalha de Simancas (VSM 393 - 394). A VSM registra que Deus ajudou os cristãos na batalha, de forma maravilhosa e sobrenatural,35 mas iniciar a luta foi resultado de uma decisão humana. E justamente porque foram ajudados por Deus, diz a obra, “Los christianos con esto foron más esforzados” (VSM 440).

NaVSD a questão fica ainda mais explícita. Nesse sentido, apesar dedemonstrar tantaconfiançanaProvidênciaDivina,ao refletir sobreocaosemque se encontrava o mosteiro São Sebastião de Silos antes de Domingo tornar-se abade nesta casa, o narrador questiona: “Todo es menoscabo, esta tan grand fallencia vinié por mal recabdo e por grand negligencia, o avié enna casa puesta DiostalsentenciaporasanctoDomingodarhonorificencia”(VSD189).

Responsabilidade humana ou providência divina? Eis o questionamento da obra. Em nenhum ponto da narrativa as vidas de santos berceanas negam a intervenção divina na História. Mas a História em Berceo é feita com a participação humana. O homem não é um simples executor das ordens divinas: pode, ou não, optar pela ajuda de Deus. Assim, nas vidas de santos de Gonzalo de Berceo, a História é também responsabilidade humana.

Como para outros homens de seu tempo, para Berceo, a História era transitória e efêmera,36 porém mantinha relação com o “outro século”, considerado eterno. Para o autor, portanto, tudo o que era feito na História repercutia no céu. Dessa forma, no VSD 246ab o autor escreve: “por esti sieglo pobre que poco durará,nonperdamoselotroquenunquafinará”. A idéiajáfiguranaVSM85cd:“veemosqemerecesencielograndsoldada,caavesenest’sieglofierapenalevada”.

O sentido da História para Gonzalo de Berceo, portanto, não estava no mundoterreno,masnarecompensaceleste.OdiálogofictícioentreDomingoeosanjos que lhe aparecem em uma visão demonstra a direta relação entre as escolhas

34. Foram quatro sinais, segundo a VSM 375-393: eclipse solar, empalidecimento do sol, queda de fogo do céu e o vento africano.35. São Tiago e San Millán lutaram a favor dos cristãos, e as setas lançadas pelos muçulmanos voltavam-se para estes mesmos. Cf. VSM 437- 444.36. Cf., por exemplo, VSM 123 e VSD 474.

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eaçõeshumanaseavidapós-morte.Apósserinformadodequeganhariacomorecompensacelestetrêscoroas,casosemantivessefielaDeusatéamorte,osantoperguntaoquefizerapararecebertantahonra.Osmensageirosdivinosrespondemque a primeira foi por ter sido um religioso casto e obediente; a segunda, por ter reformado o cenóbio de Santa Maria; e a terceira, pela restauração do de Silos (VSD 240 - 242).

Apesardeconsiderarahistóriahumanapassageiraeprocuraraedificaçãode seu público através da vida exemplar dos santos que biografa, Gonzalo de Berceoacaboupor incluir reflexõessobreosepisódiosquenarra.Oautornãose limitou a relatar os fatos do passado, mas os interpretou. Vamos nos deter em algunsexemplosqueconsideramosmaissignificativos.

Ao narrar a instituição dos votos a San Millán (VSM 362 - 461), o autor apresentou uma visão original da História de Castela que, segundo Brian Dutton, ainda não foi encontrada em nenhum outro escrito anterior à VSM (DUTTON, 1965, p. 412-413). Segundo Berceo, no século X, Castela era um condado, mas fora, anteriormente, um reino. A causa da transformação fora o pecado: “diólis en est’comediounseñorventurado,elduc’FerránGonçálvez,condemuyvalïado,ca falllieron los reys, tan grand fue el pecado, el regno de Castiella tornara en condado” (395cd).Ao incorporar esta reflexão à narrativa, o poeta defendeua antiguidade e preeminência do reino castelhano diante dos demais reinos peninsulares.Assim,oReinodeCastelaé identificadonãocomoumherdeirodo reino visigodo, mas como a própria continuação deste reino. Ou seja, ainda que suasmetas principais fossematrair peregrinos e doações e dar instruçõesaosfiéisdecomochegaraoparaíso,BerceoestavaatentoaopresenteeacabouporincorporaraoseurelatoumajustificativaparaoprotagonismocastelhanonaPenínsulaIbéricanoséculoXIII(GARCÍADECORTÁZAR,1992,p.174).

Em segundo lugar, gostaríamos de sublinhar, tal como já destacamos em relação ao LSJ, o antinavarrismo presente nas Vidas berceanas. Todas as personagens navarras destas obras são representadas com antipatia: não respondem prontamente ao pedido de auxílio do rei Remiro de Leão por ocasião da batalha de Simancas (VSM 414); Garcia de Nájera, rei pamplonês, que tentara usurpar os bens do mosteiro emilianense, mas foi impedido por Domingo, é apresentado, dentre outros epítetos, como cobidicioso (VSD 127.128); o abade navarro do mosteiro de San Millán de la Cogolla, quando do exílio de Domingo, é caracterizado como invejoso (VSD 167).37

37. O nome do abade sequer é mencionado na VSD. Por documentos contemporâneos, sabemos que se tratava de Don Goméz, que foi abade do Mosteiro de San Millán entre 1037 a 1046. Pos-teriormente, foi bispo de Nájera até sua morte, ocorrida em 1067. Este abade, segundo outra obra berceana, a Vida de Santa Oria, escrita anos depois da VSD, não se encontrava no paraíso. Em Oria 62 lemos: “dixiéronli las mártires a Oria la serrana:/ ‘El obispo don Gomez non es aquí hermana,/ perotraxomitrafuecosamuchollana,/talfuecomoelárbolqueflorezenongrana’”.Cf.Dutton(1973, p. 95-102).

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Como explicar esta postura antinavarra? A Batalha de Simancas e o litígio entre Domingo e o rei Garcia de Nájera, este último apoiado pelo abade emilianense, teriam acontecido, segundo as vidas em estudo, nos séculos X e XI, respectivamente. Nesse período, La Rioja era parte do Reino de Pamplona, então conhecido como Reino de Nájera. Como assinalamos no capítulo anterior,

a região de La Rioja tomou parte do reino pamplonês por cerca de 150 anos.38 Apósaconquistacastelhana,em1076,foramconstantesoslitígiosporquestõesfronteiriças e, em alguns breves momentos, parte de La Rioja voltou a estar sob domínio navarro até a efetiva castelanização da região, no século XIII. Mas ainda nesteperíodoocorreramalgunsconflitospontuais.

BerceoescreveusuasobrasnoséculoXIII,emumaregiãoondeainfluênciacastelhana foi sempre muito forte, já que formava parte da fronteira oriental de Castela,desdeoséculoX.Sentindo-secastelhanoejustificandoahegemoniadoReino de Castela na Península, o poeta parece querer negar o passado navarro de La Rioja. Deste modo, enquanto os navarros são vistos de forma negativa, os castelhanos são apresentados como prestativos e ricos em virtudes. Fernán Gonzalez é um “sennor venturado“ e “conde muy valiado“ (VSM 395ab), e, junto aos castelhanos, respondeu prontamente ao chamado de rei leonês Remiro, ante a luta contra os muçulmanos (VSM 413). Quanto ao rei castelhano que acolheu Domingo, Fernando I, irmão de Garcia de Nájera, é descrito como o oposto do irmão (VSD 268b).

A preocupação e sintonia de Gonzalo de Berceo com os problemas de seupresente,aocomporsuasobras,ficamaindamaispatentesaoanalisarmosodiálogo que retrata os embates entre Domingo e rei Garcia de Nájera. No diálogo, construído pelo poeta, são incluídas referências ao abuso do poder temporal ante os bens eclesiásticos. Segundo a VSD, Garcia de Nájera desejava retomar os bens do mosteiro de San Millán de la Cogolla, onde então Domingo era prior, baseado no fato de que tais riquezas haviam sido doadas por seus antepassados (VSD 134). Face a tal pedido, o monge, mesmo reconhecendo a autoridade do rei, reage com o argumento de que aquilo que um dia fora doado a um mosteiro não poderia ser retomado (VSD 136, 137, 139). Na estrofe 141, ele recomenda ao monarca não tomar as rendas do mosteiro, já que possuía outras fontes de riqueza, como tributos: “Señor, bien te consejo que nada non end prendas, vive de tus tributos, de tus derechas rendas; por aver que non dura la tu alma non vendas, guárdate ne ad lápidem pedem tuum offendas”.

A usurpação de bens eclesiásticos, fruto da ação de senhores laicos, incluindo os próprios soberanos, foi um dos problemas enfrentados pela Igreja castelhana e, especificamente,pelobispadodeCalahorra,naprimeirametadedoséculoXIII.39 Oepiscopadocalagurritanosofreucomconflitosinternosespecíficos,sobretudo

38. Desde o início da Reconquista da região no século X a meados do século XI.39. Sobre a questão ver Mansilla Reoyo (1945); Linehan (1975); Diaz Bodegas (1995); Garcia Villoslada (1982); Sainz Ripa (1994); Sanchéz Herrero (1984).

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devido aos abusos cometidos por uma das principais famílias nobres de Castela, os Haro, apoiados pelo próprio rei castelhano. Como bem observa Díaz Bodegas, parao caso específicodeCalahorra, “la clasenoble, cadavezmásnecesitadade dinero para sus guerras, veía en los bienes de la Iglesia la solución a muchos de sus problemas económicos[...]” (1995, p. 141). Assim, muitos bens da igreja calagurritana foram arrebatados por nobres. Quando Juan Pérez era bispo desta diocese, por ocasião de uma de suas viagens a Roma, o próprio rei Fernando III saqueou a sede.

Alémdessasquestõesespecíficascalagurritanas,háqueressaltarqueosclérigos castelhanos encontravam-se sob pesada tributação. Para financiar asconstantes lutas internas e a expansão da Reconquista, eram necessários ingressos constantes,eosclérigosacabaramtendodepagarimpostospesadosaorei,afimdeparticiparnofinanciamentodasguerras(MANSILLAREOYO,1945,p.50-58). Por outro lado, o papado, interessado tanto na expansão das terras cristãs na Península Ibérica quanto no Oriente, não só instituiu um tributo no IV Concílio de Latrão para o sustento da Cruzada oriental, como reconheceu o direito de o rei castelhano dispor de parte das rendas eclesiásticas para gastos com a Reconquista (LATERANENSE IV,1973,p.35-36;SANCHÉZHERRERO,1984,p.213).

Ao reconstituir o diálogo entre Garcia III de Nájera e Domingo, Berceo foi, certamente,influenciadoporessaconjuntura.Comoclérigo,quechegouaestaraoladodobispoJuanPérez,conheceuosconflitosedelesparticipou.ComonãovernaspalavrasfictíciasdeDomingo,naVSD153,umdesabafoeumacríticadopróprio poeta ante os abusos laicos em sua diocese, que redundaram, inclusive, em vítimas fatais:40 “puedes matar al cuerpo, la carne maltraer, mas non as en la alma,reï,ningúnpoder;dizloelevangelioqueesbiendecreer,elquelasalmasjudga, essi es de temer”?

Inspirado nos acontecimentos contemporâneos, o autor chegou a adicionar elementos ao relato de sua fonte latina.41 Incluiu uma oração do santo na qual este clama por justiça (VSD 158- 161) e, ao referir-se à acusação real, que resultou noexíliodeDomingo,enquantoGrimaldoafirmaqueosanto foracondenadoporquesenegaraaentregarpossíveisdoaçõesquelheforamfeitas,emVSDoreicobra ao santo um grande tributo. Vejamos os textos:

Enquanto a VDS afirma “en efecto, apenas transcurrido medio año,dirigiéndose el Rey de nuevo hasta él, con una carencia total de vergüenza humana le exegía, por instigación del diablo, las riquezas que el hombre de Dios ni tenía ni había recebido de persona alguna [...]” (VDS I, V, 405-406), em VSD 173 lemos: “mas non podié el rey oblidar el despecho, por buscarli achaque andával en asecho; ante de medio año echóli un grand pecho, cuidó por esta maña aver délli derecho.”

Um último episódio narrado por Gonzalo de Berceo que ainda gostaríamos

40. Sainz Ripa (1994, p. 469); Mansilla Reoyo (1945, p. 301); Diaz Bodegas (1995, p. 234-234).41. Confronte VDS I, V, 338-455 com VSD 127-181.

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de destacar é a frustrada tentativa de alguns cavaleiros de tomar Alarcos, relatada em VSD 700, 701cd, 702ab: “un cavallero era natural de Hlantada, cavallero de precio, de faziendo granada, salió con su señor que li dava soldada, por guerrear amoros,entrarencavalgada.[...]firieronaAlarcosenelsaltoprimero,masnonforon guiados de sabio avorero. Cuidaron traher preda e fueron ý prendados, cuidaron fer ganancia e foron engañados.”

Em Grimaldo, o castelo em questão era, na realidade, o de Aledo, localizado em Múrcia. A troca dos nomes foi fruto de um erro de leitura por parte do poeta? SegundoRuffinatto,GonzalodeBerceoidentificouocastelodeAledocomodeAlarcos, pois ainda estava bem marcada em sua memória, como na de muitos castelhanos, uma derrota cristã, diante dos muçulmanos, ocorrida nesta última localidade, em 1195 (1992, p. 434, nota 731c). Denominando deliberadamente Aledo como Alarcos, o autor não só se refere a um acontecimento que, provavelmente, ainda era lembrado por parte de seu público, dando à sua narrativa maiorimpacto,comobuscaexplicarejustificaraderrotacristã.42 Para Gonzalo de Berceo, os cristãos fracassaram por não terem sido prudentes, não planejando satisfatoriamente a empreitada.

Os acontecimentos de seu tempo acabaram por influenciar o poetana releitura dos acontecimentos passados. Desta forma, o Reino de Castela é apresentado como a continuação histórica do reino visigodo; os navarros - cheios de cobiça e inveja e nada prestativos - não possuem os traços morais exigidos para reinar sobre La Rioja; o rei Garcia é condenado por usurpar rendas eclesiásticas e cobrar altos impostos aos clérigos; e, por fim, a derrota emAlarcos é vistacomo fruto de erros humanos. Sim, todos os historiadores escrevem com os pés nopresente,masointeressante,nestecasoespecífico,éperceberqueelementosda conjuntura em que viveu Berceo são introduzidos em suas vidas de santos, vistoquesuasfontesapresentamosmesmosacontecimentos,cominterpretaçõese detalhes diferentes.

A História, para Gonzalo de Berceo, é dirigida por Deus. Contudo, nela há espaço para a ação humana. Também não é uma perspectiva histórica moralizadora, ou seja, o desenrolar dos acontecimentos não é resultado dos erros e acertos dos homens. Ele também não estava imune ao seu contexto histórico-cultural e evidencia,emseutexto,suaatenção,reflexãoeolharcríticofaceàsquestõesdomomento. Dessa forma, os problemas contemporâneos são denunciados pelos fatos passados e os acontecimentos passados julgados pelo ambiente cultural do presente.

2.3.3. A História no Liber Sancti Jacobi (II e III) e nas Vidas de San Millán e Santo Domingo

Os autores/redatores do LSJ e Gonzalo de Berceo, ao escreverem suas

42. Sobre a derrota de Alarcos, ver Alvira Cabrer (1994, p. 36).

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obrashagiográficas,produziramumrelatohistoriográficopautadonosmodelosda História Medieval, mas que apresentaram o passado a partir da perspectiva castelhano-leonesa. Ou seja, a formação intelectual, os compromissos sociais, as experiências pessoais, enfim, o ambiente cultural em que se encontravaminseridos acabou por mediar a compreensão dos acontecimentos passados.

Neste sentido, dedicados a apresentar os santos, suas biografias e seusfeitosmaravilhosos,essestextoshagiográficossão,aumsótempo,monumentospreservadosdopassado,visõessobrearelaçãocomosagradoeomundosocial,e memórias sobre os personagens considerados veneráveis.

Monumentos, porque as hagiografias em análise foram transmitidasmaterialmenteporséculos,aindaquerecebendoretaliações,deteriorando-se,sendoesquecidas por alguns períodos. O passado sempre nos chega como monumento e éimpossívelverificaremquemedidataismonumentoscorrespondemexatamenteao que passou. Estes, porém, são os únicos traços do passado que podem ser alcançados.

Visões,poisaoredigiremsuasobras,osautores/redatores,incluindoentreelesGonzalo,receberamdiversasinfluênciasqueapreenderamdeformaseletiva,constituindo uma perspectiva sobre os santos que biografaram e sobre o mundo social. Nesse sentido, as visões presentes nos textos vãomuito além de umaperspectiva sobre a santidade e apresentam posicionamentos sobre diversas outras questões,dandosignificaçãoadiversosaspectosdomundosocial,significaçõescertamente partilhadas por grupos.

Como memória, esses textos possuem compromissos particulares: o LSJ quer destacar o caráter apostólico da Sé de Compostela e divulgar a festa do santo; os poemas berceanos querem demonstrar a vitalidade da vida monástica tradicional. Ao comporem essas memórias, contudo, foram unidos elementos tradicionais, como os topoihagiográficos,aelementosoriginaiseparticulares.

Essas obras não são o único monumento, nem a única visão, nem a única memória sobre Tiago, Millán e Domingo e do próprio tempo em que foram redigidas.Outrasmuitashagiografiassobreessessantosforamredigidasantese/ou depois dos séculos XII e XIII. Mas ainda que cada um desses monumentos/visões/memóriasnos apresentemumdeterminadoSãoTiago,umdeterminadoSão Millán e um determinado Santo Domingo, isto não diminui o chamado “valor histórico” desses testemunhos. É analisando estes materiais que escrevemos sobre opassado,recuperandoassignificaçõessobreoontemqueelesnosapresentamhoje.

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Capítulo III

Aspectos formais e difusão

No presente capítulo, vamos discutir o processo de composição e transmissão do LSJ, em especial dos livros II e III, e das vidas de San Millán de la Cogolla e Santo Domingo de Silos. Deter-nos-emos no estudo dos mais diversos aspectos das obras, tais como datação, organização, forma, fontes, técnicas de redação utilizadas e difusão.

3.1. Ordem de composição e datação

Há um amplo debate sobre a datação do LSJ. No que se refere à proposição de datas para a finalização do LSJ e para a redação dos diversos livros quecompõemacompilação,osautoressepautamemdiversoselementos:oconteúdodos escritos, o estudo do estilo e do léxico, a análise material dos manuscritos e a difusão da obra.

Singul, pautado emDíaz yDíaz, afirma que o projeto de formação dacompilação nasceu em 1130, sob os auspícios do então arcebispo Diego Gelmírez, como já assinalamos no capítulo 1 (1999, p. 163). O autor galego sublinha que o Codex Calixtinus jádeveriaestarfinalizadoentre1150e1160;osapêndicesteriam sido adicionados em 1170 (1999, p. 163-164). Bédier defendeu, como anofinalde formaçãoda compilação, adatade1173 (1912a,p. 22).Malevalapresenta a década de 1160-1170 como a de conclusão da obra (2005, p. 19). López Pereira, como Singul, segue a tese de Díaz y Díaz, e aponta para o término do Codex também em 1160 (2001, p. 103). Para Pérez-Embid, antes de 1173 o material já estava completo (2002, p. 170). Para Herbers, antes de 1164 (1988, p.10).Davidapresentacomoperíododefinalizaçãodacomposiçãoosanosde1157 a 1165 (1945, p. 17). Hohler, que vê uma relação entre a produção do LSJ eacanonizaçãodeCarlosMagno,propõetambémoanode1160(1972,p.35).Gicquel, que trabalha coma hipótese da existência de várias edições doLSJ,acredita que a compilação, tal como a conhecemos através do manuscrito da Catedral Compostelana, foi terminada entre 1160-1164 (2003, p. 183).

Quanto ao LSJ II, Singul sublinha que foi, certamente, o primeiro dos livrosquecompõemocódiceaserfinalizado(1999,p.164).Davidapresentaosanos de 1135 a 1139 para sua redação (1945, p. 17), no que é seguido por Moisan (1985. p. 12). Para Ramírez Pascual, o livro dos milagres foi composto entre 1140 e 1150 (1995. p. 432). Sobre a datação do LSJ III só encontramos a opinião de David, que aponta para o ano de 1157 como de sua redação (1945, p. 17).

Como o LSJ é o resultado da reunião de um conjunto diverso de materiais, alguns autores defenderam que o processo de constituição da obra foi feito em

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

etapas.Assim,paraDíazyDíaz,oLSJteveduasedições.Aprimeirareuniaoslivros I a III e a segunda acrescentou os livros IV e V. Gicquel (2003), que se deteve no estudo das etapas da composição, defende que o LSJ foi preparado em quatroetapas,aindaqueasprimeirasversõesdealgunsdosmateriaisincorporadosà compilação datem do século X, como a carta apócrifa de Leão III, transmitida emtrêsversões.1

Para Gicquel, a primeira edição do LSJ não possuía título e estava terminada em 1140. Ela continha a carta prefácio e o relato do Pseudo-Calixto sobre a trasladação do apóstolo, a carta apócrifa de Leão III, o livro de milagres eumaversãobrevedolivroIV.Asegundaversãojáestariafinalizadaem1145,e fora intitulada como Liber Miraculorum. Com uma ordem diversa da primeira edição, nessa teriam sido incluídos a versão longa do livro IV, um poema atribuído a Aymeric e uma carta apócrifa de Inocêncio II, datada de 1143, na qual outorga salvo-conduto aos portadores de uma cópia do LSJ. A terceira edição, de1160,incluíaoslivrosIeV.Em1164-1165,aversãoatualestariafinalmenteconcluída.

Como Díaz y Díaz e Gicquel, acreditamos que o LSJ foi elaborado em etapas. Certamente o início da organização do material ainda se deu sob o episcopado de Gelmírez. Como o objetivo da obra era legitimar o papel ocupado pela Sé compostelana no conjunto das dioceses hispânicas no século XII, destacando a preeminência pautada na fundação apostólica, com grande probabilidade, os primeiros elementos compilados foram os milagres e os relatos de trasladação, entre os anos de 1130 e 1140. Após a morte de Gelmirez, com a crise instalada no episcopado, outros materiais foram incorporados, mantendo-se a diretriz dada pelo arcebispo já falecido, mas visando normalizar e consolidar o culto a São Tiago, através da reunião de peças litúrgicas, relacionar o Apóstolo a Carlos Magno,recém-canonizado,efixarumarotadeperegrinaçãoqueligasseoalém-PirineusàcidadedeCompostela.Acompilaçãoestariafinalizadaporvoltade1160, data provável de término do Codex Calixtinus.Assim,emnossasreflexões,vamosnosreportaraduasdatas.Operíodode1130a1140,deredaçãofinaldosLSJ II e III, e o ano de 1160 para o conjunto da compilação.

Como em relação ao LSJ, para construir a cronologia da composição das Vidas berceanas em estudo e propor datas, os especialistas compararam as obras elaboradas pelo poeta, analisaram o conteúdo e forma dos poemas e a própria ordem da transmissão manuscrita. Aqui, discutimos, unicamente, a data de composição das vidas de santos que são objeto de nosso estudo.

Em um artigo publicado em 1976, A chronology of the works of Gonzalo de Berceo, Brian Dutton apresentou uma cronologia que continua sendo aceita como definitiva pela grandemaioria dos estudiosos sobreGonzalo deBerceo e suaobra. Para ele, a VSM foi o primeiro poema redigido pelo riojano, por volta de

1.Umasíntesedessatesedoautorencontra-sedisponívelem:<http://www.culture-routes.lu/php/fo_index.php?view=full&lng=en&dest=bd_ar_det&id=00000008>.Acessoem:jul.2007.

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ASPECTOS FORMAIS E DIFUSÃO

1230. Em 1236, quando foi renovada a Carta de Hermandad entre os mosteiros de Silos e Cogolla, a VSD teria sido elaborada. Segundo o historiador inglês, esta foi a segunda obra composta pelo poeta.

Menendez Pidal (s/d, p. 6 e 15)questionou essa ordem de composição e defendeu a tese de que a VSD foi redigida com anterioridade à VSM. Porém, um trabalho de Frida Kurlat, publicado em 1961, apresenta diversos argumentos que nos levaram a concordar com a ordem de composição proposta pelo historiador inglês Brian Dutton. Sem preocupar-se em propor datas de redação e baseando-se nos elementos estilísticos das vidas de santos berceanas, Frida Kurlat concluiu que a VSD “[...] ocupa lugar central en el desarrollo de su obra y prominente por susvaloresdeestiloycomposición”(1961,p.113).Assim,aautoraafirmaquea seqüência de composição das vidas de santos berceanas foi, primeiramente, a VSM e, em segundo lugar, a VSD.

Em um artigo publicado em 1993, Dana Nelson, baseada em estudos sobre asoraçõescondicionaispresentesnasobrasdeGonzalodeBerceoeno Libro de Alexandre, discute a cronologia proposta por Dutton há vinte anos. A pesquisadora argumenta que Loores de Nuestra Señora foi o primeiro poema escrito por Berceo e que a redação da VSM foi contemporânea à do Libro de Alexandre. Quanto à VSD,propõequefoiredigidaapósaelaboraçãodeMilagros de Nuestra Señora, ou, ao menos, de parte desta. Também se pautando no estudo de Frida Kurlat, concluiu que entre a composição das duas vidas de santos berceanas deveria ter sepassadocertoperíododetempo,suficienteparaoamadurecimentodoestilodoautor. A estudiosa argumenta que a VSD, frente à VSM, é uma obra que explora muito mais as técnicas retóricas.

ApartirdasconclusõesdeBrianDutton,FridaKurlateDanaNelsoneàluzdenossosconhecimentossobreocontextoebiografiadeGonzalodeBerceo,podemos chegar a algumas novas propostas sobre as possíveis datas de redação das vidas de santo em estudo.

Se a redação da VSM é contemporânea à do Libro de Alexandre, como propõeDanaNelson,podemosaceitaradatadecomposiçãopropostaporBrianDutton. É provável que o Libro de Alexandre tenha sido escrito por volta 1220-1230, na Universidade de Palência. Gonzalo de Berceo poderia ter participado de sua composição. Como assinalamos anteriormente, entre 1223 e 1227 não há evidências documentais que atestem a sua presença na paróquia de Berceo ou junto ao mosteiro emilianense. Assim, podemos inferir que talvez tenha estado na escola palentina, estudando ou participando da redação do Libro de Alexandre, ou poderia ter tido acesso a esta obra em algum outro centro intelectual, como Calahorra.

De volta à sua paróquia, o autor teria iniciado a redação de poemas dentro das técnicas da nueva maestria, sendo a VSM a primeira, ou uma das primeiras, a ser produzida, por volta de 1230. Nessa ocasião, Gonzalo de Berceo já seria clérigo ordenado e estaria atuando em Berceo, provavelmente acumulando

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

funçõesjuntoaomosteiroemilianense,sejacomomestredeconfissão,professorou qualquer outra atividade, como já discutimos no capítulo I. O poeta teria usado seusconhecimentossobreanovaformadeversificação,adquiridaemcontato,direto ou indireto, com o meio universitário palentino, para reescrever a vida do santo que a tradição apontava como fundador do Mosteiro de San Millán de la Cogolla.

Quanto à VSD, se aceitarmos a hipótese de Dana Nelson, baseando-nos nasindicaçõescronológicaspresentesemMilagros de Nuestra Señora,2 podemos localizar,comoprovávelmomentoderedação,osanosfinaisdadécadade40.

Mil é a obra mais extensa de Berceo, constituída de 911 coplas. Entram na sua composição diversos relatos menores, cujo único elemento integrador é a intervenção milagrosa de Maria. Por sua organização, esta obra poderia ter sido redigida em etapas e teria servido como uma espécie de treinamento para a elaboração da VSD, segunda maior obra, mas que apresenta um relato linear. Alémdisso,asreferênciasàconfissãoeaovalordacatequeseedosensinamentosmorais presentes em Mil, como em VSD 463-474 e 766-771, podem ser ecos da introdução dos cânones do IV Concílio de Latrão no bispado de Calahorra.3

Nesse sentido, concluímos que a VSM foi uma das primeiras obras redigidas por Gonzalo de Berceo, por volta de 1230, quando o autor iniciava as funçõesdeclérigosecular,comcercade30anos.QuantoàVSD,compostaporvolta de 1250, é o resultado da maturidade intelectual do poeta, quando este já se encontrava com mais de 50 anos.

Essa hipótese, porém, esbarra em uma evidência material. O manuscrito da VSD que se encontra no Mosteiro de Silos, o S, é datado de cerca de 1240, segundo Brian Dutton (1978, p. 18). Assim, para sustentarmos a data proposta, teríamos que considerar que tal cópia foi realizada logo após a redação do poema, nos anos finaisdadécadade40.Infelizmentesótivemosacessoàediçãofac-símiledefinsdo século XIV, não ao manuscrito original, e nos faltam dados técnicos, incluindo análises químicas, para revermos a data fixada pelos especialistas. Contudo,comotaisdataçõesnãosãototalmenteexatas,insistimosnoanode1250comooprovável de redação da VSD.

2. Em Mil 325 é feita uma referência a D. Tello como se este ainda estivesse vivo; e em Mil 705 a FernandoIII,indicandoqueestereijáseencontravamorto.Porestasindicações,podemosconcluirque esta obra já estava iniciada antes de 1246, ano da morte de D. Tello, e terminada após 1252, ano do falecimento do Rei Fernando III.3. Durante o século XIII foram organizados quatro sínodos na diocese de Calahorra. Os ocorridos em1240e1256visaram,segundoasatas,introduzirasresoluçõesdeLatrãoIV.NoscânonesXIIeXXVIdaassembléiade1240enoXXXVI,de1256,afirma-sequeforamseguidasas“constitu-tiones de Letran e legado”, isto é, os cânones do IV Concílio de Latrão, e as ordenanças de João de Abville, representante papal que visitou a Península Ibérica nos anos de 1228 e 1229. Essas atas foram publicadas por Bujanda, no primeiro número da revista Berceo, em 1946.

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ASPECTOS FORMAIS E DIFUSÃO

3.2. Organização e forma

ComoapontaSingul,oLSJconfigura-secomoum“monumentoaoCaminhode Santiago”, uma “espécie de ‘bíblia’ ou ‘enciclopédia’ da peregrinação” (1999, p. 167). Essa compilação, como já assinalamos, resulta de um projeto previamente definidoerecebeu,segundoAnguitaJaen,otítulooriginaldeIacobvs (1999, p. 211-212). O autor fundamenta sua hipótese nos versos que encabeçam a obra e encontram-se no fólio 1: “ex re signatvr, Iacobvs liber iste vocatvr ipsvm scribenti sit gloria sitque legenti”.4

A compilação está organizada em cinco livros. O primeiro, o mais extenso, reúne homilias, sermões e outros textos relativos à liturgia do Apóstolo. Osegundo apresenta uma coleção de milagres resultantes da intervenção de São Tiago,realizadosemdiversasregiões.AlgunsautoresodenominamcomoLiber Miraculorum. O terceiro, que é o mais breve, relata o traslado do corpo do Santo desde a Terra Santa até a Galiza, trata das festas em sua homenagem e fala das conchas relacionadas à peregrinação. O quarto, conhecido como “Pseudo Turpín”, porque sua autoria, como já salientado, é atribuída ao Arcebispo de Reims, Turpín, narra que o Apóstolo apareceu em sonhos a Carlos Magno e o incitou a liberar sua tumba dos muçulmanos, indicando-lhe a direção a seguir: um caminho de estrelas. O quinto e último é conhecido como o Liber Peregrinationis, ou, em português, Guia do Peregrino. Ele apresenta os diversos estágios do chamado Caminho Francês, incluindo conselhos práticos para a viagem, além de descrever algumasconstruçõesdacidadedeCompostela.5

Como nos detivemos na análise dos livros II e III, vamos apresentar de forma mais detalhada esses materiais. O LSJ II contém um prólogo e a narração de vinte e dois milagres. O prólogo informa a origem dos relatos de milagres e recomendaasualeituraemalgumasocasiões.Cadamilagreéapresentadoemum capítulo. Os relatos possuem tamanho variado; alguns são breves e sintéticos, outrosmaislongos,incluindoummaiornúmerodeinformações.Deummodogeral,nãoapresentammuitosdetalhes,comodescriçõesdelugaresoupessoas.Alguns encerram com reflexões teológicas, como o LSJ II, 3, ensinamentos morais, como o LSJ II, 5 e II 22,eexplicações,comooLSJII,6.Osfatosnarradosteriam ocorrido entre 1050 e 1110, mas há um que é situado no episcopado de Teodomiro, bispo de Iria Flávia na época da descoberta do túmulo de São Tiago, segundo a tradição (LSJ II, 2), e outro datado de 1135 (LSJ, 13).

Segundo Hilário Franco Júnior, a seleção desses 22 milagres não foi gratuita; “o compilador deve ter tido como critério escolher uma amostragem ecléticaqueprovasseopoderdeintervençãodosantoemdiferentessituações”

4. A tradução é: “com justiça designado Jacobus este livro é chamado seja para o escritor a glória e para o leitor”. 5. O Codex Calixtinus apresenta um apêndice com um conjunto de documentos. Maleval apresenta uma listagem desses materiais (2005, p. 20).

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

(1990,p.104).Defato,ascircunstânciasnarradassãobemdiversificadas,aindaque sejam, em sua maioria, acontecimentos em que pessoas correm risco de morte e São Tiago intervém para livrá-las dos perigos.

O LSJ III, como já assinalado, é o menor dos livros que compõem acompilação. Ele está organizado em prólogo e mais quatro capítulos. O primeiro narraotrasladodocorpodeSãoTiago,incluindoasdificuldadeseosdesafiosqueseus discípulos enfrentaram para sepultá-lo. O segundo também relata o traslado, mas de forma bem sintética. Trata-se da transcrição da carta apócrifa atribuída ao Papa Leão III, já mencionada no item anterior.6 O terceiro fundamenta as datas das quatro festas dedicadas ao santo: 25 de março, que festeja o martírio; 25 de julho, que comemora a trasladação; 3 de outubro é a festa dedicada aos milagres; e 30 de dezembro celebra o sepultamento. O último capítulo, que se resume a um parágrafo, fala das conchas marinhas que os peregrinos costumavam levar para aumentar a sua devoção:

Se cuenta que siempre que la melodía de la caracola de Santiago, que suelen llevar consigo los peregrinos, resuena en los oídos de las gentes, se aumenta en ellas la devoción de la fe, se rechazan lejos todas las insidias del enemigo; el fragor de las granizadas, la agitación de las borrascas,elímpetudelastempestassesuavizanentruenosdefiesta;los soplos de los vientos se contienen saludable y moderadamente; las fuerzas del aire se abaten. (LSJ III, 4)

As conchas, desde a antigüidade, eram utilizadas como talismãs. Como Compostela localizava-se próxima ao mar e havia aí muitas conchas, elas provavelmente foramassociadasàsperegrinaçõescomoumsímbolodamortepara os pecados e da purificação da alma obtida com a viagem (FRANCOJÚNIOR, 1999, p. 58). Ao retornarem para casa com suas conchas, os peregrinos poderiam rememorar suas experiências de fé.

Os LSJ II e III estão redigidos em prosa. Foram fruto de um grande trabalho de compilação e edição, que buscou harmonizar textos de origens distintas. Vale destacar que os LSJ II e III, pela forma adotada, a prosa, ainda que seguindo as diretrizes da retórica medieval, não estavam limitados por rimas e métricas.

O número de livros da compilação e dos capítulos dos LSJ II e III não recebeunenhumaexplicaçãooujustificativa.Aliás,osimbolismonuméricosófigura emLSJ III.7 No prólogo é destacado que Tiago teve vários discípulos,

6.ValeressaltarqueoPrólogovisaharmonizarasinformaçõessobreotrasladopresentesnoLSJIII 1 e 2.7.Outrosnúmerosfiguramnaobra,comonoLSJII,22.Nomilagrealinarradodestaca-sequeumhomem foi vendido 13 vezes como escravo. Contudo, acreditamos que não se trata de um número simbólico. O 13, em nossa opinião, é só para enfatizar o sofrimento do cativo e realçar, ainda mais, a libertação obtida através de São Tiago.

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mas doze foram especiais, fazendo, claramente, uma analogia com o número de discípulos de Cristo, segundo os evangelhos. Ainda em relação aos discípulos, os autores/redatores, utilizam outros números: “a tres se dice que los eligió en tierras de Jerusalén… a nueve, empero, se dice que los eligió el Apóstol en Galicia durante su vida; siete de los cuales, mientras los otros dos se quedaban en Galicia para predicar, fueron con él a Jerusalén, y después de su pasión trajeron su cuerpo por mar a Galicia” (LSJ III, Prólogo).

OsimbolismodosnúmerostambémfiguranoLSJIII,2.Assim,anarrativadestaca que a viagem de traslado do corpo do santo da Palestina para a Galiza durou sete dias e que o número de discípulos eleitos por São Tiago na Península erasete.Háquesublinharqueosnúmerostrês,seteenovesignificam,emdiversasculturas, incluindo a castelhana medieval, a totalidade e a perfeição.8 Certamente esse era o efeito de sentido buscado no texto: os discípulos de Tiago eram perfeitos, assim como a viagem para o traslado dos restos mortais do Apóstolo ocorrera sem quaisquer contratempos.

E como estão organizadas a VSM e a VSD? Em três livros.9 O primeiro é dedicadoàapresentaçãodabiografiadosanto:seunascimento,família,infância,formação intelectual, etc. O segundo relata os milagres operados em vida e a morte; e o terceiro, os milagres post-mortem.10 Esta divisão tripartida é consciente eressaltadanaintroduçãodasobras,noinícioeaofinaldecadalivro,comoemVSM 109 e na VSD 288.

Adivisão em três livros é justificada naVSD534, relacionando-a coma Trindade. Contudo, mais do que fazer referência ao dogma, acreditamos que Gonzalo de Berceo procura ressaltar o simbolismo do três vinculando-o com o conteúdo de sua obra. Como aponta o poeta, “[...] qe sean tres los libros, una certanedad [...]” (VSD 534d). A relação entre o simbolismo numérico e a organização do texto na VSD também pode ser constatada pelo número total de suas coplas, 777. Neste sentido, o número 777 poderia referir-se ao que fora narrado em cada um dos três livros, simbolizando a perfeita verdade contida em cada um.

É interessante notar que na VSM não há qualquer passagem que explique oujustifiqueadivisãoemtrêslivros,oudêdestaqueparaalgumnúmeroquepossater um caráter simbólico. Caamaño Martinez, contudo, acredita que já em VSM a simbologia numérica se faz presente (1969, p. 180-181). O número de estrofes desta obra, 489, tal como ocorre com as 777 coplas de VSD, são divisíveis tanto por 3 quanto por 7. Além disso, a batalha de Simancas é datada com múltiplos

8. Sobre o simbolismo numérico, ver Cirlot (1984); Lexikon (1992); Chevalier; Gheerbrant (1992).9. VSM: primeiro livro, 1-108; segundo livro, 109-320; terceiro livro, 321-489. VSD: primeiro livro, 1-288, segundo livro, 289-533; terceiro livro, 536 -777. Os números indicam as estrofes.10. González Domínguez, em um artigo de 1990, defende a hipótese de que tanto o livro II da VSM quanto o da VSD estão organizados com uma forma semelhante à de um arco ogival, estrutura que será a marca da Vida de Santa Oria.

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de 3 ou 7: teria ocorrido há 28 anos antes do ano 1000, em 972, 360 anos após a morte do santo, acontecida em 612.11

A inclusão de números em VSD, obra posterior à VSM, talvez seja fruto de uma fase mais mística do poeta. A hipótese também pode ser reforçada pela presença de relatos de visões na VSD, também ausentes na VSM. Porém, ainclusãodetantosnúmerosecômputos, tambémemVSM,podeserevidênciados conhecimentos matemáticos obtidos pelo autor durante sua formação intelectual.

Quanto à forma, as vidas de santos berceanas foram compostas com versos de quatorze sílabas, divididos em dois hemistíquios simétricos,12 com acento rítmico na sexta sílaba, e rima consoante. Cada grupo de quatro versos forma uma estrofe,13 denominada de cuaderna via ou tetrásforo alexandrino. Os antecedentes da cuaderna via podem ser encontrados na poesia francesa, porém, foi na Península Ibérica que ganhou importância.14

Cada estrofe das vidas de santos berceanas, e, em muitos casos, cada verso, possuiumaidéiacompleta.Hásempre,finalizandoumacopla,umpontofinal.Afimdeencadearasestrofes,GonzalodeBerceoutilizouumasériederecursos,tais como a repetição de versos (VSD 488-489, 736-737, VSM 46-47, 65-66, 139-140), de palavras (VSD 299-300), de hemistísquios do primeiro, do último ou do penúltimo verso (VSD 1-2, 632-633, VSM 451-452), ou ainda a mudança de assunto dentro de uma mesma estrofe (VSD 612 e 626). Desta forma, o relato torna-se linear e encadeado, já que cada estrofe possui uma relativa autonomia.15

Quanto à rima, traço formal fundamental da cuaderna via, encontra-se presente nas vidas de santos berceanas como resultado de uma técnica apurada. Em VSM nos deparamos com 83 rimas diferentes e, em VSD, 116, contando somentecomaspresentesaofinaldasestrofes.16 Os versos em Berceo combinam sons graves e agudos com harmonia. Raramente encontramos versos irregulares ou rimas esdrúxulas. Muitos versos apresentam rimas internas e, em alguns casos, as rimas prolongam-se por várias estrofes,17 como em VSD 421ab e 413ab e VSM 25-26.

Gonzalo de Berceo não foi o primeiro a escrever vidas de santos em

11. VSM 363-364. Gonzalo de Berceo apresenta as datas usando a Era Hispânica, datação tipi-camente ibérica cuja origem não é clara. O ano de partida é o 38 a. C. Cf. Agusti; Voltes; Vives (1952).12. Um hemistíquio é a metade de um verso.13. Em raríssimos casos encontramos cinco versos em uma estrofe, como em VSM 474.14. Sobre a cuaderna via ver Henriquez Ureña (1945); Rico (1985); Giménez Resano (1976); Lo-pez Estrada (1987). 15. Segundo Artiles, essa forma de unir as estrofes é um procedimento exclusivo de Gonzalo de Berceo (ARTILES, 1968, p.102).16. Ver o Repertorio de Rimas elaborado por Giménez Resano (1976, p. 132-152).17. A repetição do mesmo som ou sílaba, em duas palavras ou mais, no mesmo verso ou estrofe, é um recurso retórico denominado aliteração (MOISÉS, 1992, p. 16).

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versos, mas o primeiro a fazê-lo em castelhano e em cuaderna via. Sua narrativa, portanto, não se desenrola totalmente livre, já que se encontra limitada por uma forma: a do tetrásforo monórrimo alexandrino, que exige, dentre outros elementos formais,idéiascompletasacadaestrofeerimasharmônicaseconsoantes.Destaforma, quando o autor optou por denominar os muçulmanos como “gent’ pagana” (VSM 368b), por exemplo, o fez por motivações culturais, sem dúvida, mastambém obedecendo a critérios formais. Assim, as estrofes berceanas apresentam informações,descrições,juízosdevalor,crençasetc.,massemprecompalavrasque rimavam e completavam a contagem métrica.

Escrever estrofes em cuaderna via, portanto, foi um árduo e complexo trabalho intelectual. Só um homem letrado e com amplo domínio das técnicas de composição poderia ter escrito tais obras, já que essa tarefa exigia o conhecimento de um amplo vocabulário, de grande poder de síntese e observação, domínio deretórica,tempodisponívelparareflexãoeconhecimentoprofundodaformaliterária adotada.

3.3. A língua18

Os LSJ II e III foram redigidos em latim, veículo lingüístico utilizado nas obras de caráter culto no medievo até o século XII. González Rolán, Saquero e LópezFonsecasublinhamqueéfalsoopreconceitoqueafirmaquenaPenínsulaIbérica,comparativamentecomoutrasregiõeseuropéias,haviaumageneralizadaignorância da língua e literatura latinas (2002, p. 16). Neste sentido, como destaca Lapesa, o latim continuou sendo utilizado pelos letrados durante todo o medievo hispânico,sobretudonaredaçãodecrônicaseobras teológicas(1991,p.159).Nos séculos XI e XII, ele era ensinado nas escolas monásticas e catedralescas. Ou seja, enquanto as línguas vernáculas estavam em pleno desenvolvimento, o latim continuava sendo cultivado e, impulsionada pelo chamado renascimento doséculoXII,floresciauma“copiosaliteraturalatina”(ORTIZDEVILLAJOS,1984,p.360).Assim,aindaquenoprólogoinicialdoLSJafirma-sequeaobrafoiredigida em estilo simples, para torná-la acessível ao maior número de pessoas (LSJ I, prólogo), esse material não foi escrito em latim vulgar, mas em “elegante estilo” (MALEVAL, 2005, p. 31).

A questão da língua das obras berceanas, contudo, é bem mais complexa. Nãonos interessa,aqui, realizarumestudofilológiconemestruturalda língua

18. A língua é um conjunto de sons e ruídos combinados que possuem uma correspondência escrita, com os quais os homens comunicam-se e expressam-se e através dos quais são distinguidos como umdeterminadopovo.Aslínguassãodinâmicasehistóricas,podendosofrermodificaçõesouinflu-ências de outras línguas com o tempo. Assim, tomando-se por base uma mesma língua, é possível o desenvolvimento de dialetos e co-dialetos; e, por outro lado, na formação de uma única língua, encontrarem-se estratos lingüísticos diversos (HOUAISS, 1990, p. 46).

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utilizada por Berceo. Objetivamos unicamente discutir as características gerais e o uso que o poeta faz do castelhano, elementos importantes para a História Cultural, tal como nos aponta Varaschin, historiador que vem se dedicando ao estudo dos termos utilizados nos poemas do Mester de Clerecia, incluindo os berceanos (1979, p. 191).

No momento em que Gonzalo de Berceo redigiu as obras em questão, o castelhano ainda encontra-se em formação, estabelecendo-se como escrita e comportandomuitasvariaçõesdialetais.EntrearedaçãodeVSMeVSDhouveum intervalo de quase 20 anos. Como nesse período as normas lingüísticas afonsinas ainda não haviam sido fixadas, a presença de diferenças na línguautilizada em cada uma dessas obras é provável. Além disso, o poeta era natural de LaRiojaecompôsseuspoemasnestaregiãoque,duranteséculos,caracterizou-se como terrade fronteira epassagemeque só apartir dofimdo séculoXIIintegrou-se definitivamente ao Reino de Castela. Ainda no início do séculoXIII, como é possível inferir pelos documentos preservados, nessa área ainda se falava o dialeto riojano que, apesar de manter traços lingüísticos comuns com o castelhano,apresentavaparticularidadesgráficasegramaticais.19Porfim,háquesublinhar que os manuscritos originais das vidas de santos de Berceo perderam-se e estas obras foram transmitidas por meio de cópias datadas da segunda metade do século XIII e do XIV. Estes manuscritos não apresentam uma língua uniforme e, com grande probabilidade, não coincidem totalmente com a utilizada pelo poeta (ALARCOS LLORACH, 1992, p. 13).

Em virtude da complexidade da questão, muitos autores dedicaram-se ao estudo da língua utilizada por Gonzalo em suas obras, visando à reconstrução da gramática e vocabulário berceano originais.20 Contudo, como aponta Garcia Turza,as investigaçõessobrea línguadeBerceopossuem,ainda,“[...]caráterprovisional” (1986, p. 89).

AindaqueafirmeemVSDquequeria“[...]ferunaprosaenrománpaladino/en qual suele el pueblo fablar con so vecino [...]” (VSM 2ab),21 Gonzalo de Berceo não escreveu suas obras, necessariamente, como falavam seus contemporâneos riojanos. Apesar de ter redigido em castelhano, com traços típicos do dialeto riojano, ele não encontrou no román paladino termos para exprimir todas as idéias. Emmuitasocasiões,foiinfluenciadopelasfontesouutilizouosvocábulosaprendidos em seus estudos, leituras e em viagens, e que não eram conhecidos por

19. Sobre a questão, ver Alvar (1976).20. Para a reconstrução da língua das vidas de santos berceanas são utilizados alguns critérios. Em primeirolugar,procura-secompararosmanuscritos,afimdeestabelecerequivalênciasediferen-ças.Na reconstrução dos textos berceanos, substituem-se as grafias castelhanasmaismodernaspelas chamadas conservadoras, isto é, as que mantêm permanências latinas, sempre à luz dos textos riojanosdomesmoperíodo;e,porfim,busca-serestauraracontasilábicadosversosalexandrinos(ALARCOSLLORACH,1992,p.15;GARCIATURZA,1986,p.85).21. O román paladino era a expressão que designava, no século XIII, a língua usada pelas pessoas no cotidiano.

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todos. Dessa forma, as principais características da língua utilizada por Berceo em suas vidas de santos são a presença de elementos dialetais riojanos, de cultismos e semicultismos e de termos provenientes de outras línguas.

Os poemas berceanos apresentam diversos traços típicos do dialeto riojano do século XIII.22Estedialetoémarcadoporumforteconservadorismográfico,talvez como uma forma de resistência à integração à cultura castelhana.23 Nesse sentido,dentreasparticularidadesgráficas,figuram,nasVidas berceanas, dentre outros casos, o uso do q sem o u, como em qarentena (VSM 192c); do ss ao invés do x, como em bassa (VSD 5b); ou ainda a presença de hl ao invés de ll, como em Hlantada (VSD 700). No caso dos verbos, encontramos o uso da terminação -ia para a primeira pessoa do singular do imperfeito do indicativo e condicional, como em VSM 429b, ou ainda a manutenção da forma arcaica fer por hacer, como em VSD 2a, para só dar alguns exemplos.

O segundo traço da língua utilizada por Gonzalo de Berceo em suas vidas de santos que sublinhamos é a presença de cultismos e semicultismos. Denomina-se cultismo, ou latinismo, aos termos latinos utilizados, seja na forma (grafia,morfologia,acentuação),sejaatravésdainclusãodiretadepalavrasouexpressõesdestalíngua.Ossemicultismossãotermoslatinosqueseadaptamàgramáticaeàgrafiadalínguavernácula.Aindaquenessasobrasfiquepatenteaclara distinção entre o romance e o latim,24 o poeta incorporou termos latinos ou formas latinizadas em suas estrofes.25 Na utilização e adaptação dos latinismos, porém,Berceonãoseguiuumaúnicanorma.EmVSDfiguratantootermolatinouxor como o castelhano esposa (VSD 302c e 103c), e, em VSM, tanto o termo mercenario, do latim mercenarius, quanto soldado (VSM 95d).

MuitostermosouexpressõeslatinasutilizadasporBerceoprovinhamdaliturgia, referindo-se a momentos da missa ou a hinos, ou diretamente da Bíblia

22. Não vamos apresentar um inventário exaustivo dos traços dialetais riojanos presentes nas vidas de santos de Berceo, tarefa já realizada por Alarcos Llorach, mas ressaltar como o ambiente lingü-ístico de La Rioja faz-se presente nos poemas (ALARCOS LLORACH, 1992, p. 16-25).23. Já assinalamos no capítulo I que a região de La Rioja manteve por séculos certa autonomia em virtude do seu caráter de terra de passagem e fronteira, desenvolvendo assim um dialeto próprio que se manteve vivo, mesmo após a integração política efetiva da região a Castela. Cf. Gifford (1966, p. 13-14); Alarcos Llorach (1992, p. 16-25); Alvar (1976, p. 33 et seq.); Lama (1979, p. 124 et seq.).24.Aoafirmar“sennores,lafaziendadelconfessoronrrado,/nolapodriécontarninromanznindictado”, em VSM 362ab, Gonzalo de Berceo demonstra ser possível escrever seja em romanz, isto é, em castelhano, a língua falada no dia-a-dia, ou em dictado, em latim, como formas opostas de expressão.25. Segundo Bustos Tovar, os cultismos e semicultismos presentes nas obras berceanas podem seragrupadosemcincocategorias:litúrgicosedevotos,teológicosefilosóficos,morais,jurídicoseoficiais,escolaresecientíficos(BUSTOSTOVAR,1974,p.233etseq.).Dentreoscultismosesemicultismos adotados por Berceo em suas vidas de santos, encontramos devocïón (VSM 136 a), Benedictice e Dóminus (VSD 277cd), princep (VSD 199c), perfectïon (VSM 21d), ecclesïa (VSM 198d), ciencïa (VSM 23a), dentre outros.

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e, portanto, mais conhecidos. Em outros casos, como o da palavra captenencia,26 semicultismo do latim caput tenere, tratava-se de um termo que não gozava de popularidade no século XIII (ALVAR, 1976, p. 232). Logo, por um lado, os cultismos e semicultismos utilizados por Gonzalo de Berceo eram familiares ao seu público, já que provinham, sobretudo, do latim litúrgico e devocional; e, por outro, ele incluiu vocábulos pouco usados ou desconhecidos por muitos.

O terceiro e último traço que gostaríamos de destacar é a presença de termos e expressões vascas,27 árabes,28 galaicas29 e “populares”30 nas vidas de santo berceanas, provavelmente apreendidos oralmente. A proximidade do povoado de Berceo - onde nosso autor nasceu e atuou como clérigo - tanto do Mosteiro de San Millán de la Cogolla, centro de peregrinação, quanto do Caminho de Santiago, porondecirculavammilharesdepessoasdasmaisdiversasregiõesdeorigem;ocaráter de fronteira que caracterizou La Rioja por séculos; as viagens realizadas pelo autor; e o convívio do poeta com os leigos de sua paróquia poderiam ter funcionado como vias de transmissão e aprendizado de tais vocábulos.

Como é possível inferir, a língua de Gonzalo de Berceo incorpora e combina elementos das mais diversas procedências: clericais e laicos, provenientes dos textos escritos ou do uso cotidiano, da própria região riojana ou de terras mais distantes. Ou seja, a língua presente nas vidas de santos berceanas é, por um lado, fruto do ambiente e do contexto histórico em que o poeta viveu e que lhe dotou de um universo lingüístico próprio. Por outro, é resultado das regras formais da cuaderna viaedasopçõespessoaisdoautor,quealternoutermos,formasgráficaseexpressõesdiversas.

3.4. As fontes

A questão das fontes dos LSJ II e III é complexa devido ao caráter de compilação da obra. Certamente as matérias incluídas nos LSJ II e III não eram totalmente originais e figuram em outros textos medievais, mas em versõesdiferentes. Ou seja, os redatores reuniram diversos materiais sobre os quais, provavelmente, retiraram e incluíram elementos, visando dar uma unidade de sentido ao conjunto. O prólogo geral da obra indica que foram feitas pesquisas e

26.ComoemVSM173d,significandoconduta,comportamento,mododevida.27. A expressão tres vent (VSD 457c, VSM 370b) é, segundo Brian Dutton, uma expressão basca quesignifica60ou“trêsvinte”.Cf.Dutton(1965,p.413).28. São arabismos nas Vidas berceanas mencales (VSD 563c) e muzlemía (VSD 663b).29. Dentre os galicismos presentes nas Vidas berceanas, encontramos os termos arlotía (VSM 20c), menge-mengeara- mengía (VSM 20d, 153 a), domage (VSM 441c) e repaire (VSD 243c).30.UtilizamosotermopopularparadesignaraspalavraseexpressõesutilizadasporGonzalodeBerceo e que provinham do vocabulário cotidiano riojano e castelhano, tais como porrada (VSM 266d), babieca (VSM 116d), “[...] non li valió todo una nuez foradada [...]” (VSM 118) ou “ [...] mas suzias que un can [...]” (VSD 158).

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levantadas fontes para a produção do Liber (LSJ I, prólogo), porém, ainda não foi feitoumestudosistemáticodeidentificaçãodaspossíveisfontesdecadaumdoslivrosquecompõeoLSJ.Oquevamosapresentaraquiéoresultadodenossasconsideraçõesapartirdealgunspoucostrabalhospublicadossobreaquestãoedenossa própria leitura dos livros II e III.

Segundo o prólogo do LSJ II, os milagres apresentados foram recolhidos pelonarradoremdiversasregiõesdaEuropaouporelepresenciados.Eledestacaque os mesmos foram “diversamente escritos”, provavelmente para explicar as diferenças estilísticas entre eles:

al recorrer tierras extranjeras, concí algunos de estos milagros en Galicia, otros en Francia, otros en Alemania, otros en Italia, otros en Hungría, otros en la Dacia, algunos también más allá de los tres mares, diversamente escritos, como es natural, en los diversos lugares; otros los aprendí en tierras bárbaras, donde el santo apóstol tuvo a bien obrarlos, al contármelo quienes los vieron u oyeron; algunos los he visto con mis propios ojos. (LSJ II, Prólogo)

O narrador do LSJ salienta que o que apresenta é verdade, porque suas fontes eram “hombres veracísimos” (LSJ II, prólogo). No decorrer da obra, no títulodealgunsdoscapítulos,esseshomenssãoidentificados.Assim,oLSJII,2 é atribuído a Beda, o venerável; o LSJ II, 4,aHumberto,cônegodaIgrejadeSanta Maria de Besançom; LSJ II 16 e 17, a Anselmo, arcebispo da Cantuária. Osdemaissãoapresentadoscomodeautoriadonarrador,queseidentificacomoCalixto II.

AlgunsdosmilagrespresentesnoLSJsãoencontradosemoutrasversões,elaboradas antes ou depois do LSJ. Maleval destaca que o relato presente em LSJ II, 2 é uma variação de um milagre atribuído a São Gil, no qual os pecados de Carlos Magno são perdoados (2005, p. 32). Do presente no LSJ II, 17, há versões anteriores eposteriores ao séculoXII: emVicentBeauvais,Guaiferiode Beneveto, Guiberto de Nogent, Afonso X, Guaitier de Coincy e, inclusive, na obra Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo. Do LSJ II, 19, Hilário Franco Júnior informa que a intervenção de Tiago na tomada de Coimbra figuranaHistória Silense e na Primeira Crônica General (1990, p. 85, nota 16; p. 86, nota 18). Ramírez Pascual estudou, transcreveu, traduziu e publicou um tratado de milagres atribuídos a São Tiago, presente em um códice encontrado na Catedral de Santo Domingo de la Calzada que, segundo o autor, é anterior ao Codex Calistinus (2004). Dos nove milagres presentes no códice, só três não se encontram no manuscrito compostelano. Vejamos o quadro comparativo:

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

Codex Calixtinus Códice Calceatense LSJ II, 5 1LSJ II, 5 2LSJ II, 3 3LSJ II, 2 4LSJ II, 4 5

LSJ III, prólogo 6LSJ II, 2 7LSJ II, 17 8LSJ II, 16 9

----- 10 a 12LSJ II, 1, II, 7, II, 8, II,

9, II, 10, II, 11, II, 12, II,

13, II, 14, II, 15, II, 18, II,

19, II, 21, II, 22

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Apesardessascorrespondências,éimpossívelafirmarsealgumasdessasversões foi fonte direta do LSJ II.Alguns autores sugerem, como o próprioRamírez Pascual (1995, p. 423-424) e Iñarrea lãs Heras (2005, p. 84), que o LSJ II foi composto a partir de relatos orais, transmitidos pelos devotos do santo. André Moisan também aceita que parte das fontes utilizadas pelos autores/redatores do LSJ era oral, mas não descarta outros materiais: “les sources utilisées par le collecteur sont donc de trois sortes: sources écrites, traditions orales et témoignages recueillis par lui-même” (1992, p. 142). Contudo, não indica quais foram esses escritos.

Fontes orais também estariam na origem do LSJ III. Segundo Singul, o relato do traslado do corpo de São Tiago provavelmente era a versão apresentada oralmente aos peregrinos desde o século X (1999, p. 167). Quanto ao LSJ III, 2, como já assinalamos, segundo Gicquel, apresenta uma versão da carta apócrifa de Leão III, composta já no século X.31 Vázquez de Parga, que décadas antes jálevantavaessahipótese,afirmaquetalepístolademonstraqueamaisantigatradição sobre a translatio formou-se por volta do século IX, mesclando elementos hagiográficosdiversos,procedentesde tradiçõesanterioresda igreja ibérica.Aversão do LSJ III, 2 é uma variação do texto do século IX-X. Certamente essa cartainspirouaproduçãodoLSJIII,1,naqual,alémdeinformaçõesdacartaapócrifa, são incluídos dados das lendas sobre os varões apostólicos segundoa versão do Pseudo Abdías.32 Os demais capítulos, em nossa opinião, foram

31.ParaVázquezdeParga,otextopodetersidoproduzidoemfinsdoIX.Eleencontra-sepreserva-do em letra visigótica (VÁZQUEZDEPARGA; LACARRA; URÍA RÍU, 1949, t. 1, p. 187).32. “La ‘Gran Pasión’ o ‘magna passio’ relata extensamente los mágicos combates en Jerusalén en-tre Santiago y Hermógenes, y el martirio a instancias de Abiathar, incluida la conversión de Josías. Esta obra habría sido escrita en hebreo por Abdías, primer obispo de Babilonia, de donde fue tradu-

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ASPECTOS FORMAIS E DIFUSÃO

elaboradosapartirdoscostumesetradiçõesdaSédeCompostela.Os temas das vidas de santos de Gonzalo de Berceo não são originais,

mas elaborados valendo-se de textos e tradições anteriores. O autor ressaltaesse aspecto de suas obras em diversos versos, como em VSD 5ab, 72, 645cd, VSM 73ab, 108ab, 137abc. Como outros homens de seu tempo, ele possuía uma formação intelectual baseada fundamentalmente nos livros e, como assinala Fernández Corugedo, “los escritores medievales, y especialmente los religiosos, son adoradores de los libros. Encuentran imposible creer que pueda haber algo enun‘auctor’quenoseacierto”(1984,p.25).Opoetaafirmaquesóapresentaaquelasinformaçõesquetambémestãopresentesnassuasfonteseconfessasuafidelidadeaoescripto em vários versos (VSD 338ab, VSM 137bcd, VSD 8ab, VSD336).

Gonzalo de Berceo não possuía, contudo, uma postura passiva diante das fontes. Criticou-as e procurou diferenciá-las quanto à origem, se oral ou escrita.33 Em VSD 71, o narrador chega a reprovar uma das fontes por ter omitido certos detalhes, seja por negligência ou falta de compreensão. Em VSD 609cd, a narrativa é até interrompida, por não se compreender o que estava escrito na fonte ou, como em versos depois, em VSD 751bcd, por faltar parte do manuscrito tomado como base.

Estafidelidadeàsfontesé,paraBerceo,agarantiadequeoquenarraéverdade, o que reitera diversas vezes (VSM 73c, 177ab, 261ab e VSD 262d). Para Artiles, a insistência do autor soa como “[...] apelación reiterada, a veces angustiosa [...]” (1968, p. 31). Contudo, faz-se importante realçar que, como clérigoeletrado,GonzalodeBerceoacreditavafirmementenaexistênciadeumaverdade, garantida pela revelação divina e digna de ser registrada em livros. Ou seja, ao redigir suas vidas de santos, o poeta cria estar apresentando a verdade não só porque suas obras baseavam-se em textos latinos, mas, sobretudo, porque os santos, seus protagonistas, eram vistos como seres guiados por Deus.

Para a redação da VSM, Gonzalo de Berceo contou com várias fontes, diretas ou indiretas. Diferentemente do que ocorre em relação aos LSJ II e III, asfontesberceanasjáforamidentificadase,comoforampreservadas,épossívelverificaremqueaspectosoautorinovoufaceaosrelatosquetomoucomobasede seus escritos.

A Vita Sancti Emiliani, escrita por Bráulio, bispo de Saragoça, entre 631 e 646, a pedido de seus irmãos João e Frominiano, foi a principal fonte das estrofes

cido al griego por Eutropio, y de éste al latín por Julio el Africano, que la incluye en su ‘Historia de las luchas de los apóstoles’ en la segunda mitad del s. VI. Es un texto completamente desautorizado tras la Contrarreforma [...]. El relato de la conversión de Josías parece estar tomado de Eusebio de Cesarea,quelocuentatomándolodeClementedeAlejandría”.Essasinformaçõesencontram-senotexto de Bernal Escribano: Los origenes del culto a Santiago en España. [1994?]. Disponível em: <www.satrapa1.com/articulos/media/santiago/santiago.htm>.Acessoem:out.2007.33. Como em VSM 31a, em que o autor ressalta que o que relata foi ouvido, não encontrado em algum escrito: “otra cosa retraen, mas no la escrivieron”.

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1 a 361. A Vita, organizada em 31 capítulos, foi composta com o objetivo de ser lida na missa de San Millán. Estava baseada nos testemunhos dos discípulos do eremita e nos relatos de milagres que lhe foram atribuídos após a morte, reunidos por Frominiano, que então vivia com os seguidores deste santo. Segundo Menjot, Bráulio escreveu a obra buscando ressaltar a superioridade dos católicos perante os arianos, contribuindo, assim, para a catolicização34 efetiva do Reino Visigodo, iniciada décadas antes com a conversão do rei Recaredo (1979, p.161).

As demais estrofes (362-489) baseiam-se nos textos latino e romance do chamado Privilegio de Fernán Gonzalez, também conhecido como Voto de San Millán.35EstaobraéumafalsificaçãodoséculoXIII,masquepretendeserumdocumento do século X. Narra a vitória cristã na batalha de Simancas, na qual cristãos e muçulmanos se enfrentaram, assegurada pela intervenção milagrosa de San Millán e São Tiago, bem como a promessa de pagamento dos votos a San Millán, realizada por Fernán Gonzalez.36

As estrofes 362 a 489 contêm dados retirados de diversas obras: Annales Compostelani, Cronicón de Cardeña, Cronicón de Burgos,37ascrônicasSilense e Najerense, a Translatio Sancti Emiliani,38 o Cantar de Roncesvales,39 a Crónica de Alfonso III 40 e o Liber Miracolum Sancti Emilianae.41

Faz-se importante ressaltar que, ao escrever sua VSM, Gonzalo de Berceo pôdetertidoacessoatodasessasobrasnabibliotecadomosteiroemilianense.Além das fontes escritas, no convívio com a comunidade monástica e com os habitantes do povoado de Berceo, onde nascera Millán, o autor conheceu e incorporouaoseurelatodiversastradiçõesorais.ParaareconstruçãodeepisódiosdaVSM,eleigualmenteinspirou-senascenasfeitasemmarfimqueadornamaarca do santo.42

Ante as muitas fontes utilizadas para a composição da VSM, Berceo

34. Catolicização, aqui, tem o sentido de introdução do Cristianismo dentro dos princípios teológi-cos aprovados no I Concílio Universal, realizado em Nicéia em 325.35. Sobre o Privilegio de Fernán Gonzalez ver Dutton (1984a, p. 1-25). Um privilégio, segundo o Diccionario de Historia de España, é uma “condición jurídica derivada de una concesión particular que coloca a un individuo o grupo de individuos, clase social, estamento, localidad, iglesia o mo-nasterio, etc., en una situación distinta y excepcional [...]“ (BLEIBERG, 1969, p. 342).36. Segundo o Privilegio de Fernán Gonzalez, as vilas de Castela deveriam entregar oferendas periodicamente, segundo o estipulado pelo documento, ao mosteiro emilianense.37.Estascrônicas,reunidasemummanuscritoemilianenseconhecidosobonomedeEfemérides riojanas, inspiraram a elaboração de VSM 375 a 393.38. A Translatio Sancti Emiliani é uma obra escrita pelo monge emilianense Fernandus, no início doséculoXIII.JuntoàscrônicasSilense e Najerense, foi fonte das estrofes de 394 a 399. 39. Fonte da estrofe 412, talvez conhecida indiretamente através da Nota emilianense, anotação presente em um manuscrito emilianense de meados do século XI que faz referência a esta gesta.40.GonzalodeBerceoincluinacopla444omilagredasflechaslançadaspelosmuçulmanosquevoltavamparaosqueasatiravam,presentenestacrônica.41. Trata-se de outra obra de Fernandus, também do século XIII, e que foi fonte das estrofes de 482 a 488.42.Sobreestesmarfins,verSanJosé(1978,p.30,72-73).

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utilizou um único escrito para a redação de VSD, a Vita Dominici Siliensis.43 Seu autor, Grimaldo, foi monge do mosteiro de Santo Domingo de Silos e provavelmente conviveu com o santo, apesar de mais jovem, bem como com muitos outros religiosos que viviam no cenóbio enquanto Domingo foi abade. SegundoValcarcel,Grimaldoerafrancês,daregiãodeToul,sendoinfluenciado,na elaboração de sua obra, por Vitae latinii de origem francesa (1982, p. 91-97). Essahagiografiafoiredigidaentre1088e1109,poucodepoisdamortedosanto,com o objetivo de fundamentar, consolidar e estender-lhe o culto, bem como edificar a comunidade de Silos. Está organizada em duas partes: na primeira,narra a vida de Domingo, seus milagres em vida e sua morte e, na segunda, os milagres post-mortem.

Em VSD encontram-se episódios que não são apresentados por Grimaldo e que também não são encontrados em relatos anteriores ao século XIII. Logo, ou procedem de tradição oral, ou encontravam-se em uma obra hoje perdida, ou, ainda, podem ser fruto unicamente da originalidade de Gonzalo de Berceo.

Qual foi o método utilizado por Gonzalo de Berceo para o uso das fontes na composição das vidas de santos? Basicamente, o poeta utilizou dois métodos diferentes. Em VSM, reuniu e selecionou diversas fontes, porém tomou duas como principais: a Vita de Bráulio e o Privilegio de Fernán Gonzalez. Com base nesses textos, foi compondo sua obra, enxertando pequenas notícias encontradas nasdemaisfontes,mesmooraiseiconográficas.Essefoiométododecomposiçãodo Libro de Alexandre e, provavelmente, com o qual o autor aprendeu a técnica. Em VSD, escrita anos depois, ele parece ter seguido outro método. Tomou como ponto de partida a obra de Grimaldo, porém, reorganizou-a, selecionou passagenseincluiudadosnovos,criando,assim,asuaprópriaversãodabiografiado santo.

Ou seja, comparadas com as suas fontes, as Vidas berceanas apresentam diferenças básicas quanto à organização da narrativa, à forma literária e à língua.44 Diantedetantasdiferenças,osestudiososdiscutemseGonzalodeBerceofoifielou não às fontes.

Segundo Lacarra, o autor não se distanciou da fonte quanto à matéria, mas sim na forma de tratá-la (1987, p. 167). Para Fitz-Gerald, “el poeta sigue casi servilmente el libro de que hace mención” (1904, p. 9). Para Frida Weber, o autor se submeteu às fontes, mas unicamente quanto ao conteúdo básico dos textos (1961,p.124).GiménezResano,emumtrabalhocompreocupaçõeslingüísticas,em que analisa unicamente o décimo primeiro milagre da obra Milagros de Nuestra Señora, afirma queGonzalo de Berceo, ainda que tivesse sido fiel à

43. Sobre Grimaldo e sua obra ver a edição da Vita Dominici Siliensis preparada por Vitalino Val-carcele publicada em 1982. Esta edição também apresenta o texto latino da obra. Optamos, porém, por transcrevê-lo em nosso trabalho pelo texto em castelhano.44. Com exceção do Privilegio em versão romance, todas as suas fontes escritas estavam em la-tim.

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fonte, fez uma “[...] personalísima vulgarización poética” (1978, p. 27). Porém, não existem trabalhos que, sistematicamente, destaquem e discutam as técnicas utilizadas pelo poeta para selecionar os dados, ler, interpretar, transcrever e citar suas fontes ao redigir as vidas de santos.

Em nosso estudo, constatamos que Berceo não utilizou suas fontes de forma homogênea: em alguns casos as abreviou ou condensou,45 em outros, ampliou-as,atualizou-as,seguiu-asfielmenteouaindaincluiunovasversõese/ouinterpretaçõesparaosacontecimentosquenarra,anteàspresentesnasfontes.Vejamos alguns exemplos.

Muitos dos milagres narrados por Grimaldo lembram grandes inventários nosquaisapenasosnomesdosagraciadossãomodificados.Afimdedarmaiordinâmica ao texto, o poeta condensou diversos relatos de milagres apresentados por sua fonte em uma única narrativa, tomando o cuidado de informar ao público: “quiérovos tres miraclos en uno ajuntar, porque son semejantes” (VSD 636ab).

Mas nem sempre o autor teve o cuidado de alertar quanto às mudanças que realizou em relação às fontes. É o que ocorre com o discurso de 213 linhas elaborado por Grimaldo, logo no início de sua Vita,46 no qual os pastores são enaltecidos. Berceo o abrevia, recriando o discurso em unicamente 20 versos.47

Mas Berceo também tratou as suas fontes utilizando um recurso contrário: a ampliação. A amplificatio consiste no alargamento de uma idéia ou proposição, desenvolvendo-a literariamente (CURTIUS, 1957, p. 285, 521- 530; MOISÉS, 1992, p. 22-23). Esta técnica foi utilizada constantemente pelo poeta que, valendo-se de poucos dados apresentados por suas fontes, acrescentou detalhes, criou diálogos e discursos de caráter novelístico, inspirado por experiências pessoais ou incorporando elementos do cotidiano. Na obra VSD, por exemplo, tomando por base uma única frase de sua fonte latina, elaborou sete coplas.48 As amplificaçõeselaboradaspeloriojano,freqüentemente,nãomudaramaessênciado relato de suas fontes, mas o tornaram mais dinâmico e atraente.

Emalgumas ocasiões,Berceo traduziu literalmente expressões e frases,como a que se encontra em VSD 26, “Abel, protomártir”, presente em VDS I, 2, 5.Emoutroscasos,aindaqueseguindoafonte,fezatualizações.Porexemplo,os títulos romanos utilizados por Bráulio foram substituídos por adjetivos que

45. Segundo Curtius, a brevitas ganhou na retórica medieval um sentido próprio, de concisão (CURTIUS, 1957, p. 521- 530).46. Utilizaremos em todo o trabalho a sigla VDS para designar a obra Vita Dominici Siliensis, de Grimaldo. Os números em algarismos romanos que seguem a sigla indicam o livro e o capítulo e, em arábico, as linhas dos textos transcritos. VDS I, I, 2.47. Cf. VSD 26 a 30. Das muitas personagens e ensinamentos presentes em sua fonte, nosso poeta menciona unicamente Abel, os Patriarcas, San Millán, Davi, Jesus, os bispos e padres.48. Compare os textos. Grimaldo escreve: “Transcorridos, pois, os anos da infância, o bem-aven-turado jovem tomou a seu cargo o cuidado de alimentar e vigiar ovelhas terrenas” (VDS I, II, 1-2). Em VSD, esta frase transformou-se nas coplas de 19 a 25, em que são apresentados diversos deta-lhes da atividade de pastoreio.

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engrandecem as personagens, como em VSM 169, em que o título comes, intitulandoEugenio,ésubstituídopelaexpressão“unomnevalïado”.

Em alguns pontos, porém, mais do que atualizar a fonte, Gonzalo de Berceo apresentou uma versão diferente dos fatos. Por exemplo, enquanto a VE informa queMillánfoiexpulsodaparóquiadeBerceopelobispoDímio,aVSMafirmaque o santo voltou para a vida eremita por opção.49 Em algumas passagens o poeta chegou a recusar-se, explicitamente, a seguir sua fonte. Em VSD 613d, por exemplo,nãoéinformadootopônimodeorigemdeumadaspersonagens,pois,segundo o riojano, “[...] non es nomneziello de muy buen parecer”.

O poeta também remodelou a ordem da narrativa de suas fontes. Em VSD, os milagres narrados por Grimaldo são apresentados em uma nova seqüência e os três sinais da ira divina, presentes no Privilegio de Fernán Gonzalez, em VSM 382 a 391, tornam-se quatro.

Gonzalo de Berceo aproximou-se de suas fontes com técnicas apuradas, estando atento para não romper com a cuaderna via, forma literária eleita para suas composições.Porém,maisdoqueasremodelar,oautorasreleueasinterpretou,influenciado por seu contexto cultural e histórico, utilizando o conhecimentoadquirido em seus estudos e disponível nas bibliotecas monásticas próximas de sua paróquia, bem como inspirado por lembranças pessoais, compromissos ou experiências do cotidiano.

3.4.1. Uma fonte comum: a Bíblia

A cultura da Idade Média Ocidental, praticamente em todos os aspectos, apoiava-se essencialmente sobre a leitura, a interpretação e a meditação da Bíblia eosLSJIIeIIIeasobrasberceanasnãoforamexceções.50 Torna-se fundamental, portanto,paraomaiorconhecimentodessashagiografias,oestudodecomootexto bíblico se faz presente nessas obras.

Não encontramos estudos que se dedicaram a discutir o uso da Bíblia no LSJ ou,deformaespecífica,noslivrosIIeIII.Existemalgunstrabalhospublicadosque focalizam a Bíblia como fonte das obras de Berceo. Em 1951 foi editado o primeiro artigo preocupado com a questão: Berceo, conocedor del Nuevo Testamento, de J. Fradejas. Mais do que discutir o papel do Novo Testamento nas obrasberceanas,Fradejasprocuroudemonstrarqueopoetanãosofrerainfluênciasdamísticamuçulmana,comopropôsAméricoCastro.Marcofundamentalparatalinvestigação foi a obra de Francis Gormily, The use of the Bible in representative works of Medieval Spanish Literature 1250 - 1300, de 1962, que inclui um estudo

49. Usaremos em todo o trabalho a sigla VE para referirmo-nos a obra Vita S. Emiliani. Compare o cap. VI da VE com VSM 103-105. 50. Sobre a questão, ver os capítulos 3, 4 e 5 da obra História da Leitura no mundo ocidental, orga-nizada por Cavallo e Chartier, e publicada pela Ática em 1998.

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sobre a relação entre as obras berceanas e o texto bíblico. A autora conclui que o conhecimento bíblico de Berceo era limitado, exceção feita aos evangelhos de Mateus e Marcos, e que ele citara o texto bíblico indiretamente: ou de memória, ou por intermédio de comentários patrísticos, ou das Bíblias romanceadas de sua época. Quase duas décadas depois, em 1981, J. Saugnieux publicou o trabalho Berceo y el Apocalipsis. A partir do estudo das obras Vida de San Millán de la Cogolla e Los signos del juicio, o pesquisador busca demonstrar que o livro do Apocalipse foi, para Berceo, uma fonte fundamental na construção daquilo que denomina como “catequesis del miedo”. O último trabalho sobre a questão, e também o mais completo, é La Historia de la Salvación en la obra de Gonzalo de Berceo, de Ruiz Dominguez, publicado em 1991. Nesta obra, o autor apresenta um completo levantamento das referências bíblicas, diretas ou indiretas, presentes em todas as obras de Berceo, com o objetivo de demonstrar que toda a produção literária berceana é um grande manual de catequese. Logo, todos os poemas são tratados como uma grande unidade. Quanto ao estudo do léxico bíblico nas obras berceanas, há diversos trabalhos desenvolvidos por Garcia de la Fuente.51

Encontramos 29 referências diretas e indiretas ao texto bíblico nos LSJ II e III, 80 em VSM e 90 em VSD. No LSJ, 22 dessas referências tratam, na realidade, da mesma frase, pautada em Sal.117, 23 e Mt. 21, 42, que se repete ao fimdecadacapítulo:“a dominu factum est istut et est mirabile in oculis nostris”, ou seja, “isto foi realizado pelo Senhor e é maravilha aos nossos olhos”. No LSJ III concentra-se a maior variedade de referências, em sua maioria indiretas. Nas Vidas berceanas as referências bíblicas também estão distribuídas desigualmente, concentrando-senoiníciodaobra,nosversosemquesãonarradasasbiografiasdos santos. A seguir, apresentamos como o texto bíblico faz-se presente nas obras em análise.

Primeiramente, vamos salientar as conclusões da comparação do usodaBíblia por Berceo em suas vidas de santos à luz de suas fontes, a fim deprecisarmos em que pontos seu conhecimento bíblico é original. Como não possuímos as fontes diretas do LSJ, não pudemos cotejar o material. Contudo, há que destacar que nos milagres presentes no Códice Calceantense, a expressão “a dominu factum est istut et est mirabile in oculis nostris”nãofigura.

Comparando-seaVSDcomsuafontelatina,observamosduassituaçõesdistintas. Por um lado, constatamos que existem passagens bíblicas que são citadas tanto por Berceo quanto por suas fontes, porém com objetivos e em momentos diferentes da narrativa.52 Este é o caso de Gênesis 3:1-24, que apresenta o relato do pecado original. Em VSD, a passagem é citada quando Berceo trata da resistência à tentação por parte dos monges submetidos a Domingo; e, em Grimaldo, é citada em vários pontos da obra, a começar pela introdução.53 Não acreditamos que,

51.Essasobrasestãolistadasnabibliografiafinal.52. Isto não ocorre em VSM.53. Compare VSD 218 e VDS I, I, 20.

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neste caso, tenha havido correspondência direta entre a VSD e sua fonte latina. A coincidência das passagens bíblicas citadas em ambos os textos pode ser explicada pela importância e popularidade das mesmas para a cristandade medieval.

Poroutro,hácitaçõesbíblicaspresentesnasvidasdesantosqueprovêmdiretamente de sua fonte latina. Em VSM isto ocorre uma única vez: na estrofe 276cd, o poeta traduz Bráulio que cita, no capítulo XXIV de sua obra, Marcos 9,46 e Mateus 18,9. Em VSD, o número de referências bíblicas comuns à fonte latina é maior. Por exemplo, quando Berceo relata que o santo abraçou a vida eremita,afirma:“SantJohamelBaptista/fuxoalosdesiertosondeganótalprez[...]” (VSD 55ac). E acrescenta que Domingo foi “[...] sucessor de Elias” (VSD 70c).EncontramosemGrimaldo:“Assimpois,ofielservodeDeus,aohabitarno deserto, seguindo o exemplo de Elias, o mais excelente dos profetas e de João,omaiordoshomens[...]”(VSDI,IV,2-3).Masasinformaçõesbíblicaspresentes nas Vidas berceanas vão além das encontradas em suas fontes.

Os trechos da Bíblia apresentam-se sob formas e por objetivos diversos nos LSJ II e III, na VSM e na VSD. Passamos a apresentá-los.

Em primeiro lugar, tais obras apresentam transcrições diretas do textobíblico.NoLSJ,encontramospoucastranscriçõesdiretas;sóemII,3eIII,2e3.Estasforamfeitasparafundamentarasafirmativasdonarrador,sobretudonoLSJIII. Assim, para discutir a data em que Tiago foi decapitado, transcreve Atos 12, 1-2 (LSJ III, 3).

Nas obras berceanas as transcrições foram incluídas especialmente porrazõesestilísticas:oautorconheciamuitaspassagensbíblicasdememóriaeasinseriu para compor rimas e completar as estrofes. Contudo, quando analisamos o contexto em que as passagens bíblicas são citadas nas Vidas de Berceo, podemos concluir que as mesmas são acrescentadas de forma consciente e revelam que oautorconheciaaBíblia.EmVSM,GonzalodeBerceoapresentatranscriçõesdiretasdotextobíblicoemcastelhano.EmVSD,sãoanexadastranscriçõesdiretasda Bíblia em latim. Selecionamos um único exemplo. Na copla 141 encontramos: “Señor, bien te concejo que nada non end prendas, vive de tus tributos, de tus derechas rendas; por aver que non dura la tu alma non vendas, guárdate ne ad lápidem pedem tuum ofendas”. Esta frase encontra-se três vezes no texto bíblico: em Sal. 91,12, Mt. 4,6 e Lc. 4,11, nestes dois últimos casos, referindo-se ao próprio texto de Salmos. Segundo a Bíblia de Jerusalém, o sentido original do texto referia-se à proteção divina concedida aos justos.54 Nos evangelhos, a frase aparece como recitada pelo diabo por ocasião da tentação de Cristo, na qual se faz menção à segurança física de Jesus garantida pelos anjos. Parece ser este o segundo sentido que inspirou Berceo, uma vez que este inclui o texto em um discurso de Domingo dirigido ao rei Garcia de Nájera, alertando-o para que este não caísse em tentação.

Uma segunda forma pela qual o texto bíblico é introduzido nos LSJ II e III

54. Cf. BÍBLIA de Jerusalém (1985, p. 1051, nota j).

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e nas VidasberceanaséainclusãodeexpressõespresentesnaBíblia,taiscomoRei Eterno (LSJ III, 2), Pão da Vida (VSD 451a), Rei dos Céus (VSM 69a, 308a, VSD 31d, 345b), Rei dos Reis (LSJ II, 7 e VSD225a), Criador (VSD 650c), Conselheiro (VSD650d), Rei da Gloria (VSM9a), e Rei omnipotent (VSM90c). Elas são mais variadas e abundantes nos textos de Berceo do que nos LSJ II e III. Estasexpressõesdeveriamserdeusocorrentenosambientesreligiososemqueos autores/redatores das obras em estudo viveram. Elas foram incluídas com o objetivodeengrandeceradivindade,exortandoosfiéisàadoraçãoesubmissãoaDeus.NocasoespecíficodaVSMedaVSD,tambémserviramcomoumrecursoretóricoafimdeevitaraconstanterepetiçãodaspalavrasDeus e Jesus.55

Em terceiro lugar, são apresentadas paráfrases ou feitas referências indiretas a episódios, personagens e passagens bíblicas. Vejamos alguns exemplos. Em LSJ III, 2, o livramento recebido pelos discípulos de Tiago face ao ataque do rei de Dúgio é associado ao recebido pelos hebreus junto ao Mar Vermelho:

Ossantosvarões,então,voltandoacabeçaaosruidosdasarmase pedras que caíam, enxaltam as grandezas de Deus dignas de serem apregoadas, ao ver os corpos dos magnatas e seus cavalos e arreios militares rodarem miseravelmente sob as águas o rio, da mesma maneira queemoutraépocahaviasucedidoaoexércitofaraônico.(LSJII,2)

Em VSM 111a, o poeta menciona a queda de Adão, apresentando a sua opinião sobre o fato: “Belzebup, el qe ovo ad Adám decevido[...]”. E ao referir-se à tentação de Cristo, em VSD 62, escreve: “El Salvador del mundo, [...], quando ayunar quiso, pora nos dar enxiemplo al deserto se miso; ende salió el demon, mas fo ent mal repiso”.

Ao parafrasear ou fazer referências indiretas ao texto bíblico, os autores/redatoresforammotivadosporquestõesdidáticas,buscandoinstruirseusouvintes,apresentando,assim,versõesbrevesesimplesderelatosbíblicos.Porém,algunsversos berceanos parecem indicar que a preocupação didática não foi a única motivação. Muitas vezes encontramos na VSM e na VSD referências a pessoas, fatos e versículos bíblicos que não possuíam caráter informativo no conjunto do texto e que resultaram do conhecimento bíblico adquirido pelo autor em seus estudos, nas leituras que realizou e na sua prática como clérigo secular. Isso provavelmentenãoerapartilhadoportodooseupúblico,figurando,sobretudo,

55. A perífrase consiste em substituir uma palavra por uma série de outras, de modo que estas se refiramindiretamenteaotermoapresentadoprimeiramente.Tambémdenominadocomocircuito, este recurso teórico é recomendado pelos manuais medievais. Quando o poeta lança mão deste recursoofazporrazõesestéticas:evitarepetirconstantementeonomedesuaspersonagenseusaoutros termos que permitem compor rimas ou completar a conta silábica dos versos. Por outro lado, os termos selecionados revelam os diversos aspectos da personalidade das personagens que o autor deseja destacar para o seu público. A perífrase é um recurso didático, sem dúvida, mas também revela valores e crenças do poeta (WEBER KURLAT, 1961, p. 125; CURTIUS, 1957, p. 284).

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para sublinhar a erudição do poeta, como em VSD 14d, onde se lê: “que a la bestia muda da racionalidad”. Este verso é uma alusão ao episódio narrado em Números 22, sobre o profeta Balaam e sua mula, que, após muito apanhar, fala. Essas referências são tão pontuais e sutis, que só os que conheciam o texto bíblico, com certa profundidade, seriam capazes de reconhecer a citação.

Emoutrasocasiões,asreferênciasbíblicaspresentesnasobrasberceanassão quase imperceptíveis, visto que se inspiraram em elementos rurais, também presentes em La Rioja no século XIII. EmVSD 9ab há menções aos textosbíblicos de Jo. 15, 5 e Mt. 11,7: “La cepa es buena, engendró buen sarmiento, non fue caña liviana la que torna el viento [...]”. Provavelmente o público dos poemas berceanos relacionava tais versos não ao texto bíblico, mas, sim à paisagem da região, fértil e propícia à agricultura. Este seria também um recurso didático utilizado pelo autor? Acreditamos que sim; o poeta selecionava tais textos de forma consciente, certo de que seriam compreensíveis ao seu público.

Em quarto lugar, o texto bíblico serviu como fonte para dinamizar a narrativa apartirdoencontradoemsuasfontes,inclusiveinspirandoamplificações.Comoostextosestudadossãohagiografias,emmuitoscasospersonagensbíblicosservemcomo modelos para a narração dos atos dos santos biografados, para explicá-los ou legitimá-los. Há uma relação, por exemplo, entre o milagre em que Tiago anda sobre as águas (LSJ II, 8) e o milagre de Cristo descrito nos evangelhos; entre o partir do pão de Domingo, ainda menino (VSD 13), com o gesto de Cristo na última ceia; e, ainda, entre o milagre da multiplicação do vinho, realizado por Millán (VSM 244-252), com a multiplicação dos pães e peixes por Cristo. A cura doscegosquesepõemagritar,logoapósamortedeMillán,étambémmuitosemelhante aos relatos da cura dos cegos em Jericó, presentes nos evangelhos sinópticos.56

Ao recorrer ao texto bíblico, portanto, os autores/redatores do LSJ e Gonzalo deBerceo forammotivados por diversas razões: por questões estilísticas, porinfluênciadasfontes,porbuscaremaidentificaçãoentreosantobiografadoeaspersonagens bíblicas e por procurarem ser didáticos. Porém, fundamentalmente, eles introduziram o texto bíblico em suas obras por conhecê-lo e estarem familiarizadocomomesmo;afinal,forameducadosjuntoamosteiroseescolascatedralescas, e eram clérigos. Eles não só estavam imersos em um ambiente cultural no qual a Bíblia era vista como o livro por excelência, como também obtiveram uma formação intelectual baseada diretamente no estudo de textos bíblicos,exegéticoseteológicos.ComoafirmaGarciadelaFuenteemrelaçãoaGonzalo de Berceo, mas que acreditamos também possa ser aplicado aos autores/redatores do LSJ: ele conhecia e utilizava a Bíblia muito mais do que possa parecer à primeira vista (1986-1987, p. 213). Seu conhecimento do texto bíblico, portanto, era profundo.

Ao narrar fatos e milagres das vidas dos santos Tiago, Millán e Domingo,

56. Compare VSM 323-330 com Mc. 10, 46-52, Mt. 20, 29-34, Lc. 18, 35-43.

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a Bíblia foi muito mais que uma fonte, já que as categorias, o vocabulário e os esquemasliteráriosbíblicosacabaramporinfluenciaraconstruçãodosrelatos.Ocontato freqüente com a Bíblia tornou-a um elemento organizador fundamental na compreensão, apreensão e percepção do mundo por parte dos autores/redatores dashagiografiasestudadas.

3.5. A construção da narrativa

Neste item, vamos nos limitar a apresentar os recursos literários mais significativosdasvidasemestudo,afimdesublinharocarátereruditode taistextos. Rafael Sala, Giménez Resano, Joaquim Artiles, Spurgeon Baldwin e Domingo Yndurain são alguns estudiosos que, motivados por preocupaçõesliterárias, já se dedicaram à investigação da construção da narrativa nas vidas desantosberceanas.Nãoencontramos,emnossapesquisabibliográfica,estudosdessa natureza em relação ao LSJ.

A Retórica, nascida na antiguidade, foi remodelada e utilizada amplamente pelos pensadores medievais, subdividindo-se em três grandes correntes: a Ars poetriae (poesia e gramática), Ars dictaminis (epístolas) e a Ars praedicandi (sermões). Seu objetivo não era unicamente a beleza e a eloqüência, mas,fundamentalmente, a compreensão das mensagens cristãs, uma vez que a evangelização foi a principal meta da Igreja Medieval. Dessa forma, os retóricos medievais passaram a enfatizar a descrição, a alegoria e a comparação, dentre diversos outros recursos literários, visando à produção de textos nos quais a clareza das idéias era fundamental, ainda que ricos em ornamentos. Também foram produzidos manuais que, desenvolvendo as técnicas herdadas dos autores antigos, apresentavam um grande número de recursos estilísticos, aplicáveis a cada tipo de ars.

Os autores/redatores das obras estudadas, apesar de não apresentarem referências diretas de autores clássicos, eram conhecedores da retórica medieval. Gonzalo de Berceo, ao compor suas vidas de santos, não o fez impulsionado pela intuição, mas aplicando técnicas e regras de retórica e gramática aprendidas durante anos de estudo - tanto no mosteiro de San Millán de la Cogolla como em contato com a universidade palentina - e seguindo as normas de composição da cuaderna via. Pelo rigor na aplicação dos recursos retóricos em suas obras, BaldwinchegaaafirmarqueBerceoconstróiuma“narrativatécnica”eoconsideracomo “[...] a learned and refined literary artist” (1976, p. 18).

Certamente o mesmo ocorreu no tocante ao LSJ. Apesar de não conhecermos o nome de seus autores/redatores nem suas trajetórias, como já assinalamos, essa obra foi elaborada empregando-se um latim culto e num dos mais importantes centros de saber da Península Ibérica no século XII. Contudo, detectamos em nossa análise que, face às obras berceanas, os LSJ II e III utilizam poucos recursos

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retóricos. Acreditamos que esse fato pode ser parcialmente explicado porque no momento de redação do LSJ, as escolas catedralescas ainda mantinham-se muito fiéisaosconteúdosensinadosnasescolasmonásticas.

Apresentamos, a seguir, o resultado da análise dos três planos diferenciados das narrativas - o do narrador, o da audiência e o da narração - que foi feita contrapondo os LSJ II e III às vidas berceanas.

3.5.1. O narrador

Os fatos presentes nos LSJ II e III são narrados em terceira pessoa. Esse narradorque,comojáfoidestacado,é identificadoaCalixtoII,éoniscienteeonipresente.Tambéméumnarradorintruso,poisemiteopiniões,fazexplicações,emociona-secomoqueexpõe,etc.DiferentedoqueocorrenasVidas berceanas, a identidade do narrador e do autor não se confundem no LSJ. Assim, quando o narrador usa a primeira pessoa diretamente em seu relato, o que ocorre no LSJ II, 22 e III, prólogo e 3, em nossa interpretação não se trata do autor(s) /redator(s), mas do narrador, que também é um personagem literário.

A primeira pessoa também é usada nos diálogos. Utilizados desde os gregosparafinsdidáticoseexpositivos,osdiálogosdosLSJIIeIIIimprimemdinamismo e realismo à narração. Eles utilizam o presente como tempo verbal e se encontram emdiscurso direto.Estão sempre introduzidos por expressõesque indicam o início do discurso e a personagem que tem a palavra; assim, os diálogos estão articulados à narrativa.

As vidas de Millán e Domingo de Berceo também são apresentadas por um narrador que, em terceira pessoa, vai expondo os fatos que já se encontravam nas fontes selecionadas. O narrador das Vidas berceanas é, como o do LSJ, onisciente. Também é onipresente, salvo quando as suas fontes tornam-se ilegíveis, incompletas ou lacunares. Apresenta-se ainda como intruso, pois estabelece reflexões, criticaas fontes,dirige-seao seupúblico.OnarradordaVSMedaVSD utiliza o YoapresentandoeidentificandoGonzalodeBerceocomoautor:“Yo Gonçalo que fago esto a su onor” (VSD 109a), “Gonzalvo fue so nomne qui fizoest’tractado”(VSM489a).

Em um artigo publicado em 1980, Harriet Goldberg defende que as intervençõesdoYonasvidasdesantosberceanaspodemserclassificadasemtrêsgrupos. Primeiramente, o Yo real, ou seja, o autor, que apresenta um conhecimento específicoouqueseentusiasmacomanarração.Nessescasos,GonzalodeBerceoestariaidentificando-secomossantos:afinal,comoMillán,nasceraemBerceo(VSM 484) e, como Domingo, vivera no mosteiro emilianense (VSD 109). O segundo Yo presente nas vidas de santos berceanas é o narrador impessoal, literário, que se utiliza de fórmulas convencionais para adentrar-se na narração, tal como ocorre em VSD 2cd e em VSM 110. Em terceiro lugar, estaria o Yo

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daspersonagens,presentenosdiálogosoumonólogosfictícios,comoorações,sermões,reflexõesetc.,comoemVSD321-323.

Os diálogos, segundo Rafael Sala, chegam a ser a terça parte de VSD57 e tambémsãosignificativosnaVSM(1983,p.168).SegundoArtiles,“eldiálogoirrumpe en la narración imponiéndole autenticidad, dando plasticidad a los hechos [...]” (1968, p. 87). Além do Yo das personagens, os diálogos, como no LSJ, estão compostos em discurso direto, no presente do indicativo, e são precedidos por expressõesqueidentificamospersonagensquefalam.

Gostaríamosdesublinhar,finalizandoesteitem,queapesardosdiferentesEgo/Yo encontrados nas vidas em estudo, seus autores/redatores acabam por fazerem-se sempre presentes em todo o texto, “projetando sobre ele atitudes culturais”.58

3.5.2. A audiência

OsLSJ II e III nãopressupõemapresençadeumaaudiência.Emumapassagem, menciona-se a divulgação do mesmo através de elaboração de cópia escritas e leitura, tanto silenciosa quanto pública. Assim, no prólogo do LSJ II é recomendada, explicitamente, a leitura nas igrejas, refeitórios e nos dias festivos do santo. Já no Prólogo do LSJ III, lemos:

Cierto clérigo conocido mío, devoto y peregrino de Santiago, queriendo llevar consigo a su patria esta traslación con algunos otros milagros del Apóstol, encargó en la misma ciudad de Santiago que se los escribiese a un copista llamado Fernando y pagó como precio veinte rotomagenses. Y como él, después de pagar el precio y recibir la copia, se pusiera a leerlo en voz baja arrinconado en un ángulo de la basílica apostólica, encontró en su faltriquera tantas monedas como al copista había dado. (LSJ III, Prólogo)

Ou seja, o narrador dirige-se a um público futuro, que irá ler ou disseminar oralmente a sua obra acabada. Ele não dialoga com um público imaginário.

Já nas vidas de santos de Gonzalo de Berceo há sempre a presença implícita de uma audiência. Se tais obras tiveram um público ou não é outra questão, que será tratada em um próximo item. O importante é perceber que uma audiência encontra-se sempre presente na narrativa: “[...] si oír me quisiéssedes bien vos la contaría; assí como yo creyo poco vos deterría, non combredes por ello vuestra yantar más fría” (VSD 376), “Señores e amigos, quantos aquí seemos, al confessor

57.Nasvidasdesantosberceanas,osdiálogossãocriaçõesdopoeta,jáque,comexceçãodealgunspoucos diálogos da Vita Dominici Silensis, suas fontes não os contém.58.Sobreasconexõesautor/narrador,veraobrajácitadadeReiseLopes(1988).

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precioso adorarlo devemos [...]” (VSM 317).Ao construir sua narrativa, Berceo sempre inclui a audiência. Suas obras

não só se referem a um público, como se dirigem e dialogam com ele, sempre em tempo presente, tal como é possível observar nos versos transcritos acima. É claro que poemas com tantos versos e com grande rigor técnico não foram criadosdeimproviso,diantedeumpúblico,sendo,depois,fixadosporescrito.Opoeta, contudo, talvez inspirado nos jograis ou na poesia épica de seu tempo, já prevendo um público real, ou, ainda, para quebrar a monotonia do relato, inclui uma audiência participante em suas vidas de santos.

3.5.3. A narração

A narração dos LSJ II e III e das vidas de santos berceanas é complexa. Desenvolve-se em diversos planos - o terreno e o sobrenatural -, em variados tempos verbais, tanto em discurso direto quanto indireto, em terceira e em primeirapessoa.Enfim,sãofrutosdeumtrabalhointelectualárduoeconsciente.E,comorecomendavamosteóricosmedievais,apresentamalegorias,descrições,figurasdelinguagem,topoi,comparações,etc.,aindaqueemgrausdiferenciados.A VSM e a VSD, como já sublinhamos, apresentam muito mais recursos retóricos queosLSJIIeIII.Vamosanalisar,aseguir,osaspectosmaissignificativos.59

Emprimeirolugar,destacamosasdescrições.OLSJnãoelaboralongasdescrições,limitando-seaapresentaroqueéessencialeésempremuitorealista.Assim, no LSJ II, 11, quando narra a libertação de um homem chamado Bernardo do cárcere, informa que ele pulou de uma torre saindo ileso. A torre é descrita de foram sucinta e só para destacar a grandiosidade do milagre: “a altura da torre eramsessentacôvados”.Há,contudo,algumaspequenasexceções,comonoLSJII, 17, milagre em que descreve Tiago e a Virgem, e no LSJ III, 3, que trata da festa do Apóstolo. Essa descrição, apesar de longa, é digna de destaque, pois é praticamente a única dos livros selecionados para análise que apresenta detalhes, possuem movimento e cor:

En esta fiesta, ciertamente, el venerable rey solía ovrecerdurante la misa, según costumbre, sobre el venerado altar del Apóstol, doce marcas de plata y otros tantos talentos de oro, en honor de los doce apóstoles; y además solía dar a sus caballeros las pagas y las recompensas, y vestirlos con trajes y capas de seda; armaba caballeros a los escuderos, presentaba a los nuevos caballeros y convidaba a todos cuantos llegaban, tanto conocidos como desconocidos, con diversos manjares, y no cerraba a pobre alguno las puertas de su palacio, sino

59.Ressaltamosquenos itensanteriores jáfizemosreferênciasaalgumasdas técnicasretóricasutilizadas nas obras estudadas como a amplificatio, brevitas e a perífrases.

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que solía advertir a sus pregoneros que convocasen con el sonido de sus clarines a todos para comer, con motivo de tan gran festividad. El, pues, revestido con los atributos reales, rodeado por los escuadrones de caballeros y por los diferentes órdenes de adalides y condes, marchaba en este día en procesión alrededor de la basílica de Santiago con el ceremonialrealdelasfiestas.Eladmirablecetrodeplatadelimperiohispano que el venerable rey llevaba en las manos, refulgía, incrustado de flores de oro, de labores diversas y de toda suerte de piedraspreciosas. La diadema de oro, con la que el potentísimo rey se coronaba parahonradelApóstol,estabadecoradaconfloresesmaltadasylaboresnieladas, con toda clase de piedras preciosas y con lucidísimas imágenes deanimalesyaves.Laespadadedoblefilo,queerallevadadesnudadelante del rey, brillaba con sus doradas flores y su resplandecienteleyenda, su pomo de oro y su cruz de plata. Delante de él marchaba dignamenteelobispodeSantiagovestidodepontifical,cubiertoconlablanca mitra, calzado con doradas sandalias, adornado con su anillo de oro,puestoslosblancosguantesyconelpontificalbáculodemarfil,yrodeado por los demás obispos.También el clero que ante él avanzaba iba adornado con venberables ornatos, pues las capas de seda con las que se revestían los setenta y dos canónigos compostelanos estaban admirablemente trabajadas con piedras preciosas y broches de plata, con floresdeoroymagníficosflecosportodoalrededor.Unossecubríancon damáticas de seda, que estaban adornadas desde los hombros hasta abajo con franjas bordadas de oro de marvillosa belleza. Otros se ataviaban además con collares de oro incrustados con toda clase de piedras preciosas y se adornaban lujosamente con bandas recamadas de oro, con riquísimas mitras, hermosas sandalias, áureos ceñidores, estolas bordadas en oro y manípulos recamados de perlas… Con toda suerte de piedras preciosas y con gran abundancia de oro y plata se adornaban exquisitamente los clérigos del coro. Unos llevaban en sus manos candelabros, otros incensarios de plata, éstos cruces doradas, aquéllos paños tejidos de oro y tachonados de toda suerte de piedras preciosas; unos cajas llenas de reliquias de muchos santos, aquéllos filacterias,otros, enfin,batutasdeoroomarfil, apropósitopara loscantores,ycuyaextremidadembellecíaunónice,unberilo,unzafiro,un carbunclo, una esmeralda o cualquier otra piedra preciosa. Otros llevaban colocadas encima de unos carros de plata, dos mesas de plata sobredorada, en las cuales el devoto pueblo ponía cirios encendidos. A éstos seguía el pueblo devoto, es decir, los caballeros, gobernadores, optimates, nobles, condes, ya nacionales, ya extranjeros, vestidos con trajes de gala. Los coros de venerables mujeres, vestidos con trajes de gala… con borceguíes dorados, con pieles de marta cebellina, armiño y zorro; con briales de seda, pellizas grises, mantos escarlata por fuera y

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variados por dentro, con lunetas de oro, collares, horquillas, brazaletes, pendientes en las orejas, cadenas, anillos, perlas, espejos, ceñidos de oro, cintas de seda, velos, lazos, tocas; con trenzas sujetas por hilos de oro, y demás variedades de vestidos. (LSJ III, 3)

Aoinvésdedescrições,osautores/redatoreslançammão,sobretudo,deadjetivos, epítetos e vocativos, sempre relacionados aos personagens, em especial aSãoTiago.Assim,eleéo“ApóstolodeDeus”(LSJII,18);éo“filhodeZebedeu”(LSJ II, 4); é o “ilustre cavaleiro” (LSJ II, 7); é a “quem Herodes matou à espada” (LSJ II, 20), dentre outros exemplos.

Na VSM e VSD esse recurso foi usado abundantemente e não se baseou, necessariamente,emelementosrealistas.Algumasdescriçõesforamconstruídaspautando-se na tradição bíblica e na literatura antiga. Assim, segundo Foresti, Gonzalo de Berceo, ao descrever a natureza, por exemplo, o fez valendo-se de esquemas retóricos presentes tanto na Bíblia quanto nos autores clássicos (1963, p.6-8).Essa idéia épartilhadapor JoaquínArtiles, que afirma: “elpaisajedeBerceo es esencialmente alegórico“ (1968, p. 185).

Aoladodasdescriçõesidealistas,pautadasnasleiturasquerealizouduranteasuavida,GonzalodeBerceoincluiuexposiçõesrealistasdaspaisagens.Quandoo autor descreveu, por exemplo, o local de refúgio escolhido por Millán para viver comoeremita,forneceualocalizaçãogeográficaexataemencionouascovas,ospenhascos, os animais, as grandes altitudes e o clima (VSM 28-56). Tais elementos paisagísticos encontram-se presentes até hoje nas montanhas riojanas. O poeta nasceu em Berceo e, portanto, estava familiarizado com a região em que o santo vivera como eremita. Ainda que dominasse os recursos retóricos sobre a descrição, também possuía um conhecimento direto e concreto desta zona, incorporando-o ao seu trabalho. Logo, a descrição que faz da natureza não dependeu unicamente de técnicas literárias, mas da experiência de vida cotidiana.

Mas Gonzalo de Berceo não se limitou a descrever a natureza em suas vidas de santos. Personagens, vestimentas, objetos, edifícios e diversos outros elementos também receberam a atenção do poeta. Suas indicações não sãoobjetivas:estãorecheadasdejuízosdevalor,deimpressões,observaçõespessoaiseinfluenciadasporseuambientecultural.Assim,naelaboraçãodetaisdescriçõesforamutilizadosepítetos,diminutivosesuperlativoseoselementosidentificadosganham cor e movimento.

ParaMendeloff,osepítetossão,emsuamaioria,adiçõesàfonterealizadaspor Berceo e tinham como objetivo animar e humanizar a narrativa, bem como apresentarliçõesmorais,pois,atravésdesserecurso,opoetacaracterizava,louvavaou censurava suas personagens (1974, p. 310). Assim, o diabo é denominado como “besta enconda” (VSM 118a) e “uésped alevoso” (VSM 194a). Quanto aos santos, encontramos epítetos como “confessor preciado” (VSM 196b), “padre” (VSD 31b) e “guiador” (VSD 31b). A lista poderia alongar-se com os epítetos utilizados para apresentar os mouros, os reis, as autoridades eclesiásticas, os

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necessitados que buscavam a ajuda dos santos e todas as demais personagens presentes nas vidas de santos.

Por intermédio desses epítetos é possível inferir os valores, as crenças e asidéiasdeGonzalodeBerceoemfacedediversasquestões.QuandoaVSMaponta que o rei Abderraman era o senhor dos pagãos, um mortal inimigo de todos os cristãos que espalhava terror por costas e planos (VSM 369 abc), trata-se do resultado da aplicação de uma técnica retórica, e também da inclusão de uma qualificaçãosobreoquenarra,imprimindoumjuízo.

Os diminutivos também foram utilizados na elaboração das descriçõespresentes nas vidas de santos berceanas. Tal recurso não tinha, como única função, aindicaçãodotamanhodeumobjeto,pessoa,lugarouanimal,epoderiafigurarnos versos por motivos formais, ou para compor a rima na cuaderna via. Os diminutivos poderiam ainda expressar familiaridade, ternura, modéstia, dentre outros sentimentos, inclusive negativos, como o desprezo,60 ao serem incorporados àsdescrições,comoemVSD92eVSM167,214.Assim,paraexporaternuradospaisdiantedeumafilhadoente,opoetarecorreuaosdiminutivos:“Entresañosandava, ya era peonciella, teniénla los parientes siempre bien vestidiella; ovo a enfermar muy fuert’ la mesquiniella” (VSM 343abc).

Nas descrições presentes nas vidas de santos de Gonzalo de Berceotambém são encontrados superlativos. O superlativo tem como objetivo engrandecer as personagens, mas também ressaltar os sofrimentos, os sacrifícios, o desprendimento, a disciplina e a persistência de seus atos, ou, ainda, sublinhar os elementos fantásticos que despontam na narrativa, visando à persuasão do público. Assim, o cordeiro dado por Abel em sacrifício era o melhor (VSD 26ab), as roupas usadas por San Millán e São Tiago, em sua aparição milagrosa na batalha de Simancas, eram “mas blancas que las nieves reçientes “ (VSM 437) e estes chegaram em “dos caballos plus blancos que cristal” (VSM 438). E quanto aos pobres, “eran bien pobres de sayas e de mantos” (VSD 190).

As vidas de santos berceanas também não são poemas em preto e branco. Sua narrativa inclui diversas referências a cores: o branco, o negro, o vermelho, o verde, o amarelo, o dourado e o prateado. As cores dão mais dinamismo às descriçõesetambémtransmitemsentimentosevalores.Pararessaltaradoençaque acometia uma mulher de Castro, diz a VSD 297: “- oras tornaba verde, oras tal como çera”. A elevação espiritual de Domingo o fazia ter “la color amariella, como omne lazrado” (VSD 86). E o efeito trágico de um dos sinais enviados por Deus, retratado em VSM, torna o dia “plus amariello que la çera colada” (VSM 380).

NosLSJIIeIII,naVSMenaVSDforamintroduzidasdescriçõesseguindoasrecomendaçõesdosretóricosmedievais.Foramusadosrecursosgramaticaisdiferenciados - o diminutivo, os superlativos, os adjetivos - para ir além de uma exposição objetiva, imprimindo sentimentos, conceitos e juízos de valor aos

60. Tal como em VSD 92 e VSM 167, 214.

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relatos. A descrição foi aplicada como uma técnica, mas foi enriquecida pelos autores/redatores com elementos retirados de seu ambiente cultural.

O segundo recurso retórico que gostaríamos de salientar é a comparação. A comparação consiste na aproximação de dois termos que se assemelham no todoouemparte(MOISÉS,1992,p.94).Quandoascomparaçõessãoexplícitas,mediadasporconstruçõesgramaticais,taiscomo,“tão-tal”,“tão[...]tanto[...]”,“como”, “tão [...] que”, etc., denominam-se símiles.No caso de comparaçõesimplícitas, quando uma dada palavra é usada com um novo sentido, denominam-se metáfora.Ascomparaçõestinhamcomoobjetivoacompreensãodosouvintes.

Os LSJ II e III praticamente não utilizam esse recurso. Só encontramos duas comparações e ambas no LSJ II. No capítulo 12, um homemfica coma“garganta inchadacomoumodrecheiodear”eno13umoutrofica“comodesmaiado”.

Nas VidasdeBerceofigurammuitascomparaçõesbaseadasemelementosdocotidiano.Hácomparaçõescomalimentos,partesdocorpo,plantas,animais,astros, etc. Para apresentar a doença que Xemena de Tordomar possuía numa das mãos, por exemplo, o riojano a comparou com as plantas no inverno e no verão (VSD 617).

Contudo, o poeta não se inspirou unicamente no cotidiano, mas também em poetasclássicos,comoVirgílio,enaprópriaBíblia,paracomporcomparações.Em muitos casos, é provável que tenha ocorrido uma correlação entre a cultura livresca, em especial a bíblica, como já assinalamos, e o dia-a-dia, pois a literatura antiga também se inspirara em um entorno rural. Muitas vezes torna-se difícil distinguir se Gonzalo de Berceo seguiu o mediocris stylos da rota Virgilii, as descriçõesdoParaísopresentesnaBíbliaouguiou-sediretamentepelocotidianoriojano.

Em terceiro lugar, destacamos a alegoria. A alegoria é um discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta outra (MOISÉS, 1992, p. 15-16). Presente já na Bíblia e nos autores antigos, como o já citado Virgílio, a alegoria foi também utilizada pelo Cristianismo medieval como método para a interpretação dos textos bíblicos. Os LSJ II e III utilizam a alegoria em algumas poucas passagens, com claras referências ao mundo agrícola. Assim, no LSJ III, 1 diz-se que se deve “extirpar o joio pela raiz”, referindo-se ao paganismo ibérico. Trata-sedeumaclarainfluênciadotextobíblico.Outraalegoriadignadedestaqueporseu valor estético é a presente em LSJ II, 1, referindo-se ao Apóstolo: “enxugando o suor de seu trabalho com o pano da recompensa na felicidade eterna”.

Gonzalo de Berceo utilizou abundantemente a técnica da alegoria. Por motivos didáticos, acreditamos que selecionou elementos presentes no cotidiano riojano, como os traços rurais. Desta forma, foi inspirando-se no ambiente rural que o poeta apresentou, por exemplo, a idéia de crescimento espiritual: “ond nació tal milgrana feliz fo el milgrano, e feliz la milgrana que dio tanto buen grano” (VSD 675). Justamente por utilizar elementos do dia-a-dia riojano como

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descrição, comparação e alegoria, o poeta foi considerado, durante séculos, um homem ingênuo e simples e um escritor inculto. Porém, a introdução destas referências sobre o universo agrícola e pastoril, como nos LSJ II e III, foi inspirada em textos clássicos e/ou na Bíblia e seguiam os princípios da retórica.

Em quarto lugar, apontamos o uso da tipologia. A tipologia é uma elaboração figurativa,quebuscarelacionarfatospassadoscomacontecimentosfuturos,dandounidadeeharmoniaaorelato.EsserecursonãoéempregadonoLSJ,masfiguranos textos berceanos. Dessa forma, tanto na VSM quanto na VSD, a atividade de pastoreio exercida pelos santos ainda jovens foi tratada de forma tipológica. Isto é, o ato de apascentar as ovelhas enquanto os santos iniciavam suas vidas foi interpretado como um prenúncio do que viria depois; de pastores de ovelhas tornaram-se pastores de almas.

Mais do que lançar mão de uma técnica retórica, ao utilizar a tipologia, GonzalodeBerceoaplicouaosrelatosquecompôsumatécnicainterpretativa,empregada para a compreensão de textos sagrados. Assim, os atos dos santos quando jovens ganharam mais de um sentido: o histórico, uma vez que efetivamente estiveram ajudando e obedecendo aos seus pais; e um sentido mais oculto, simbólico, no qual as atividades de pastoreio do presente revelavam o futuro de santidade.Nãosóotextobíblico,comojáassinalamos,inspirouasapreensõesdo mundo pelo santo, mas também as técnicas para a sua interpretação, como a tipologia e a alegoria, aprendidas em livros, na escola monástica e em meios universitários.

Em quinto lugar, destacam-se os topoi, lugares-comuns formais, freqüentemente utilizados pelos autores antigos e medievais na composição de suas obras. Curtius demonstrou que a literatura medieval incorporou diversos elementos já presentes na retórica antiga, bem como criou novos topoi. Segundo oespecialista,“noantigosistemadaretórica,éatópicaoceleirodeprovisões.Contém os mais variados pensamentos: os que podem empregar-se em quaisquer discursos e escritos em geral [...] As fórmulas de modéstia, as de introdução e conclusão são obrigatórias em qualquer obra. Restringe-se o uso de outros topoi a determinados gêneros de discurso” (1957, p. 82).

NoLSJidentificamos,alémdoselementostípicosdaliteraturahagiográficacomo curas, ressurreições, libertação de cativos, etc., um único topos. Os incontáveismilagresoperadospelosanto.ElefiguraemdoispontosdoLSJII.Transcrevemos um deles: “mas nadie piense que he escrito todos los milagros y ejemplos que he oído de el, sino los que he considerado verdaderos por veracísimas afirmaciones de hombres veracísimos. Porque si escribiese todos losmilagrosque de él oí en muchos lugares de boca de muchos, más les faltaría a mis manos y a mi afán pergamino que ejemplos suyos” (LSJ II, Prólogo).

Gonzalo de Berceo empregou vários topoi. Durante algum tempo, eles foram interpretados literalmente. Porém, as vidas de santos berceanas apresentam topoi que também são encontrados em outros textos medievais, o que permitiu

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concluir que o poeta conhecia diferentes obras literárias e manuais de retórica. Vamos ressaltar alguns dos topoi presentes nas obras em estudo, seguindo a tipologia proposta por Curtius.

Em primeiro lugar, o topos de modéstia, utilizado desde a antiguidade com o objetivo de tornar o ouvinte/leitor atencioso e simpático ao autor do texto. Em VSD 2abc, utilizando-se desse topos,afirmaopoeta:“Quieroferunaprosaenromán paladino en qual suele el pueblo fablar con so vecino, ca non so tan letrado por fer otro latino”. Numa interpretação literal, pode-se concluir que o autor optou por escrever em castelhano por não conhecer o latim. Mas, como estudara no mosteiro emilianense, tivera acesso ao ensino universitário e construíra sua narrativa com base em fontes latinas, Gonzalo de Berceo certamente conhecia olatim.Assim,onarradorafirmaquenãoeraletradoequequeriaapresentaravida do santo na língua do cotidiano porque seu objetivo era motivar e ganhar a atenção de seu público.

O poeta também se utilizou do toposexordial,afimdeencadeareapoiara narrativa, anunciando o que seria relatado ou demonstrando a importância do que apresentaria, como em VSM 321ab: “El tercero libriello avemos de dezir, de preciosos miraclos, sabroso de oír”. O toposdeepílogo,cujoobjetivoéfinalizaro texto, muitas vezes abruptamente, também é encontrado nas vidas em estudo (VSM 488d e VSD 757).61

Comoasvidasdesantosberceanassãoobrashagiográficas,talcomonoLSJ, encontramos também topoi típicos desse tipo de literatura, como a origem nobredossantos(VSD5ab),amortefeliz(VSD521,VSM301),visõesesonhos(VSD 248-249), exorcismos e curas.62

Como sugeriam os manuais de Ars praedicandi,nashagiografiasestudadastambémfoiempregadalargamenteatécnicadasrepetições,sejaatravésdousodasmesmaspalavras,recapitulações,repetiçãodeidéiascomtermosdiferentes,etc. A reiteração é, portanto, o sexto recurso teórico que foi aplicado nas obras estudadas. Esse recurso retórico tinha como objetivo manter a coesão da narrativa, mas,sobretudo,possuíafinalidadedidática,visandoafixaçãodosensinamentospresentes nas obras. Não podemos nos esquecer de que, numa sociedade na qual os livros eram de difícil acesso para a grande maioria da população, a memória eraumelementofundamental,nãosónacirculaçãodeinformaçõescomoparaaapreensão de conhecimentos.

EsserecursofiguranosLSJIIeIIIcomtrêsobjetivosprincipais:reafirmaras datas das festas dedicadas ao Apóstolo (LSJ II, 1; II, 2, II, 17, III, 3); sublinhar que os milagres operados através de São Tiago são feitos divinos (LSJ II 1 a 22); e realçar que todos os que pedem ajuda ao Santo são agraciados (LSJ II, 1, II, 4, II, 8, II, 15, II, 18).

Na VSM, há um exemplo curioso do uso dessa técnica. Nas estrofes de 203

61. Especialmente sobre os topoi de epílogo em Berceo, ver Oroz (1954).62. São muitas, apresentadas tanto nos livros I e II de ambas as obras em estudo.

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a214,Berceoapresentaumconcíliodedemônios,cujoprincipalobjetivoeracriarumaestratégiaparavencerMillán.Aocriardiálogosentreosdemônios,opoetaacabou por fazer uma recapitulação dos milagres anteriormente apresentados.

Em diversos pontos da VSD, Berceo, a título de reiteração, relembra momentosda vidadeDomingo, reafirmaas suasqualidadese recorda seusensinamentos.AofimdolivroI,porexemplo,comorecapitulaçãodabiografiado santo, ele elabora uma espécie de resumo (VSD 254-259). Há que destacar que, nessas estrofes, o autor não só retomou as principais etapas da vida do santo, mas as apresentou como verdadeiros degraus trilhados, rumo à perfeição, que culminou com o dom da profecia. Assim, Domingo galgou sete degraus até ser pleno de sanctidad: foi pastor de ovelhas, clérigo secular, eremita, monge, prior, abadee,finalmente,profeta.

Um dos principais alvos das vidas de santos riojanas era apresentar ensinamentos aos fiéis. As vidas exemplares dos santos funcionavam comomodelos a serem seguidos; logo, era fundamental reiterar, reforçar e manter vivos os atos dos santos que deveriam servir de inspiração para o viver diário dosfiéis.

Porfim,apontamosohumor,presentejánaliteraturaclássica,masquesemantevevivonaIdadeMédia,especialmentenocasodaliteraturahagiográfica,daqualasvidasdesantossãoumadasmuitasmanifestações.SegundoCurtius,“aoestilodashagiografiasmedievaispertencemtambémelementoshumorísticos.Existiam em germe na própria matéria, mas certamente o público os esperava” (1957, p. 450). O toposdalutadosdemônioscontraossantos,noqualasarmadilhasdo diabo e seus companheiros são sempre frustradas, era motivo constante de riso. Como sublinha Irven Resnick, não havia incompatibilidade entre o riso e a santidade para alguns pensadores eclesiásticos durante a Idade Média (1987, p. 99-100).Afinal,rirdodiaboeraumsinaldequeesteestavavencido,controlado.O riso, que deveria nascer no interior do homem, representava, portanto, a satisfação.

Apesar de o humor constar na literatura hagiográfica em geral, nãoidentificamospassagensnosLSJIIeIIIqueutilizemesserecurso.Osmilagresnarrados,namaioriadoscasos,sãolivramentosdesituaçõescríticas,nasquaisháperigo de morte. Quanto aos relatos sobre a trasladação e as festas do santo, era uma matéria que exigia, certamente, um tom solene. Essas particularidades das narraçõesexplicamaausênciadehumorismo.NasVidas berceanas, ao contrário, esse recurso é empregado. Para Cirot, Berceo explorou o recurso humorístico para atrair a atenção de seu público, já que suas obras só contavam com o ritmo, diferentemente da recitada pelos jograis, que também utilizavam a música para encantar a platéia. Segundo Cirot, “[...] sans l’humeur, sans le sourire, il n’eut probablement pas retenu longtemps ses auditeurs” (1942, p. 165).

As obras de Berceo, contudo, em harmonia com a cultura monástica medieval, não levavam às gargalhadas ou estimulavam o “riso fácil”. Uma das

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provas da santidade revelada por Domingo, desde menino, é justamente o fato de queestenãosededicavaaosjogoseaosrisos(VSD11).ComoafirmaMenendezPelayo, nos poemas berceanas encontramos uma “cierta socarronaría e inocente malicia que ha sido siempre muy castellana y que se encuentra hasta en las obras más devotas y en los escritores más ascéticos” (1944, T 1, p. 187). Uma espécie de riso interior, que expressa satisfação, é despertado com o relato sobre os diabos pegos pela própria armadilha que montaram contra Millán: planejavam colocar fogo no corpo do eremita, mas eles é que terminaram com suas barbas queimadas (VSM 215-216).

Mais do que fazer rir, o riso está presente nas Vidas berceanas, uma vez que procuram revelar a satisfação e a alegria de ser servo e vitorioso com Deus, como em VSD 481, VSM 194, 222, 391. Assim, até os próprios santos, como Domingo, aparecem impregnados pelo bom humor. Quando o poeta relata a vã tentativa de algunsromeirosdeenganaroabade,apresentaaformairônicacomqueosantolidou e resolveu a situação, em VSD 479cd a 484abc. Alguns peregrinos, para ganharem roupas doadas pelo santo, esconderam suas vestes antes de se dirigirem ao cenóbio silense e alegaram estar sem vestimentas adequadas; acabaram recebendo exatamente as peças que tinham escondido.

O humor presente nas vidas de santos berceanas segue a tradição hagiográfica. Gonzalo de Berceo, contudo, consegue explorar esse elemento,atraindo a atenção do público e o utilizando como uma estratégia a mais para imprimir ensinamentos. Muitas das ironias inspiravam-se no cotidiano, tal como aadvertênciadequeesperarpelofinaldanarrativavaliacomeroalmoçomaisfrio (VSD 376),63 ou a própria imagem dos romeiros que desejaram enganar o santo, transcrita acima, já que os peregrinos eram comuns na região.

As narrativas dos LSJ II e III, da VSM e da VSD resultam de um trabalho intelectual disciplinado e complexo. Construíram-se em diversos planos, utilizando recursos literários presentes nos manuais de retórica medievais e em outras obras latinas; porém, não se limitaram a tais lugares comuns pré-estabelecidos. Na composiçãodasobras,foramfeitasseleçõeseinterpretações,unindo,certamente,experiências vividas à técnica, imprimindo aos relatos um estilo próprio. As narrativas incluíram, portanto, diversos elementos que se encontravam muito além dos conteúdos dos livros. A riqueza delas reside, entre outros fatores, no fato de que seus autores/redatores conseguiram combinar recursos teóricos para transmitirosobjetivosespecíficosdesuasobras.

3.6. A difusão

Já assinalamos que a transmissão do LSJ se deu através da elaboração de

63. “Sy oyr me quisiessedes bien vos la contaria [...] non combriades por ello vuestra yantar mas fria” (VSD 376).

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cópias e da leitura pública ou privada, enquanto que a das vidas de santos de Berceo teria ocorrido diante de um público. Mas qual teria sido o público real destas obras?

NocasoespecíficodoLSJ,opúblico foramosclérigos, tanto regularescomoseculares.GuerryafirmaqueoCodex Calixtinus “c’est um texte à un usage interne, certes, mais un texte sacré et unique et que le public, ou tout au plus le public important (donc lettrè, puisque’il est rédigé en latin), devaint pouvoir admirer” (2004, p. 7). Ainda segundo esse autor, o Calixtinus não saía da Catedral. Assim, os copistas vinham até Compostela para fazerem os seus manuscritos, o queexplicariaasdiversasreproduçõesparciaisdomaterial(2004,p.7).

Algumas cópias estão documentadas. Em 1173, um monge de Ripoll, Arnaldo de Mont, reproduziu grande parte do códice (RIBES MONTANE, 1981-1982, p. 480). Essa cópia, que possui 86 fólios, foi preservada e encontra-se no Arquivo da Coroa de Aragão.64 Outra reprodução documentada é o Ms. 344 de Alcobaça, que possui 215 fólios. Acredita-se que foi copiado entre 1152 e 1160. Essemanuscrito apresentavariaçõesem relaçãoaoCodex Calixtinus, o que é explicado com a hipótese de que a cópia tenha sido feita a partir de uma edição do Calixtinusanterioràatual(DÍAZyDÍAZ,1993,p.394).Provavelmenteoutrasteriam sido realizadas a partir deversões anteriores desse códice (GICQUEL,2003, p. 17ss). Há outros manuscritos completos do LSJ preservados, como o Additional 12213 da British Library, o C.128 da Biblioteca Apostólica Vaticana, o 2631 da Biblioteca Universitária de Salamanca, o 4305 da Biblioteca Nacional de Madrid e os Documenti vari 27 do Archivio de Stato di Pistoia.65

Além de cópias manuscritas em latim, partes da obra foram transmitidas emtraduções.EsseéocasodolivroII,quenosséculosXIIIeXIVfoitraduzidopara o galego, o castelhano e o português.66

Iñarrea las Heras destaca que o LSJ teve diversos meio de difusão.67 Em umartigoqueanalisacançõespopularesdeperegrinosjacobeusfranceses,elaassintetiza:

Este códice [LSJ] podría ser considerado como un punto de intersección entre tres líneas de desarrollo literario en la Edad Media [...]

64. Trata-se do Manuscrito de Ripoll, ms. 99 do Arquivo da Coroa de Aragão.65. Esses dados são fornecidos por Paula Gerson.66. Cf. Lorenzo (1993, p. 461-463). Em artigo publicado em 2005, Elvira Fidalgo defende que a versão castelhana dos milagres do apóstolo São Tiago, o chamado Miraglos de Santiago, é uma tra-dução bastante livre dos milagres contidos no Liber Sancti Jacobi.Confrontadocomoutrasversõespeninsulares,maisoumenoscontemporâneas,verifica-sequeaversãocastelhanaapresentadife-renças notáveis em relação à tradução galega do Liber, mas que é muito similar à versão portuguesa conhecida como Vidas e Paixões dos Apóstolos. A autora discute se Miraglos de Santiago não seria uma tradução não do LSJ, mas da compilação de Bernardo de Brihuega (FIDALGO, 2005).67. Essa hipótese também é sustentada por Ramírez Pascual, no artigo Los milagros de Santiago y la tradición oral medieval, publicado em 1995.

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La primera está constituida por este mismo fondo de relatos milagrosos transmitidos de forma oral [...] La segunda es de naturaleza escrita y culta y tiene en el propio Liber Sancti Jacobi su primer jalón. Éste ha servido en parte de base para la creación de otras obras posteriores, redactadas también en latín, fundamentalmente el Speculum historiale de Vincent de Beauvais y la Legenda aurea de Jacopus de Voragine. En ambas se recoge la leyenda y los milagros del santo. La tercera, escrita en romance [...].

Assim, podemos concluir que o LSJ, tanto em sua totalidade como em partes isoladas, alcançou grande difusão no medievo, tanto oralmente como através de cópias escritas, tanto em latim como em vernáculo. Logo, é possível falar de uma ampla divulgação que não se limitou aos meios doutos.

Quanto à difusão das obras berceanas, há um amplo debate. No início do século passado, Cirot defendeu que o público das obras berceanas era variado: “Il écrivait pour ses amis, pour ses paroissiens, pour les moines, pour les Riojanos, pour les castillans qui venaient prier dans l’un ou l’autre des couvents des deux saints régionaux, san Millán et Santo Domingo de Silos [...]” (1922, p. 170). Segundo Menéndez Pelayo, Berceo escreveu para os mosteiros, as nascentes universidades ou estudos gerais (1944, p. 153-154). Gicovate, em 1960, reforçou tal hipótese, defendendo que Berceo era um poeta aristocrático; ou seja, o poeta “[...] escribe para una minoría especial y es consciente de esta limitación o superioridad”(p.13).Talminoriaeraformadaporhomens“sábios”e“refinados”,que formavam a “aristocracia intelectual”. Para Trend, o público berceano era igual ao dos juglares (1956, p. 146).

Brian Dutton, que defendeu o caráter propagandístico das obras berceanas, aponta três possíveis públicos para a VSM: os peregrinos ao túmulo do Santo, os moradores das localidades que pertenciam ao mosteiro emilianense e, por fim,osperegrinosaSantiagodeCompostela (1984,p.177-183).BaseadonasconclusõesdeBrianDutton,RuffinattopropôsqueopúblicodaVSDerabemvariado, pois, ao escrevê-la, o objetivo de Berceo não era angariar fundos para o Mosteiro de Santo Domingo de Silos, mas atrair até este cenóbio os peregrinos que se dirigiam a Santiago (1968-1970, p. 15-19).

Para Capuano, ao redigir suas obras, Berceo tinha em mente audiências variadas: para cada obra teria existido um tipo de público. Estudando a VSD, o autor conclui que as constantes referências ao mundo rural e ao trabalho camponês permitem concluir que o público alvo de Berceo foram os trabalhadores ocasionais desse mosteiro, os quais de junho a agosto eram contratados para a colheita. Essas conclusões foram apresentadas no artigoThe seasonal laborer: audience and actor in the works of Gonzalo de Berceo, publicado em 1985.

GrandeQuejigo,queelaborouumestudoespecíficosobreadifusãodaVSM,concluioseutrabalhoafirmandoqueaobrafoi“dirigidademaneraexclusivaalos monjes del monastério de San Millán de la Cogolla, como señala el uso de una

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forma de transmisión culta ligada a las técnicas de enseñanza medieval” (2000, p. 322). Ele reforça a hipótese destacando que o códice que continha o poema, in folio, “no andaría de mano en mano fuera del escritorio” (p. 323). Assim, a difusão da obra, mesmo no interior do mosteiro, era oral. E arremata: “la difusión popular del poeta es una suposición crítica, nada más” (p. 323).

Comoépossívelverificar,nãoháumconsensoporpartedospesquisadores.Só podemos concluir qual foi o público berceano se levarmos em consideração trêspontos:anaturezahagiográficadeseuspoemas,opapelsocialdopoetaeo seu contexto cultural ehistórico.Asobrashagiográficas são textos clericaisde caráter erudito, mas voltados para toda a cristandade. Por isso, acabam por incorporar elementos da religiosidade, crenças e práticas não reconhecidas oficialmentepela Igreja.Ahagiografia cristãmedieval unia, portanto, clérigose leigos, letrados e iletrados. Logo, não podemos admitir a hipótese de que o caráter erudito das Vidas berceanas limitasse o seu público. A retórica medieval prezava pela clareza. O fato de ser um autor com sólida formação intelectual não tornava Gonzalo de Berceo um poeta incompreensível. Se, em um ou outro ponto da obra, há elementos que não são de conhecimento universal, estes não impedem o entendimento de toda a narrativa. Alguns dos cultismos e semicultismos de Berceo estavam intimamente relacionados à liturgia e, portanto, eram de domínio geral. Além disso, muitos dos topoi utilizados pelo poeta se confundiam com elementos do cotidiano e da paisagem riojana.

Gonzalo de Berceo era clérigo paroquial e mestre de confissão.Provavelmente atuara como professor. Por que não pensar que o público berceano eram as pessoas com que convivia: os monges, os seus paroquianos, os seus alunos? A região de La Rioja era cortada pelo Caminho de Santiago. Muitos dos peregrinos que se dirigiam à Galiza faziam um desvio até o mosteiro emilianense, onde se encontrava o túmulo do patrono de Castela, San Millán. Outros, pela fama deste santo riojano, poderiam deslocar-se diretamente para seu túmulo. Por que não acreditar que os peregrinos também foram o público berceano?

Como oMosteiro de Santo Domingo de Silos possuía ligações com oEmilianense, tanto por uma Carta de Hermandad como porque Domingo, antes de ser abade de Silos, fora monge do mosteiro de San Millán de la Cogolla, não nos deve causar estranheza que o público de VSD fosse o mesmo de VSM. Concordamos, portanto, com a hipótese de Cirot: o público berceano era variado. Para os riojanos, as obras tinham como objetivo festejar e lembrar os santos, divulgar ensinamentos morais, entreter e servir como material de estudos. Para osqueprovinhamdeoutrasregiões,quenãoconheciamavidaefeitosdossantosMillán e Domingo, as obras serviam como um guia informativo.

Um segundo problema relacionado à difusão das Vidas berceanas que vem preocupando os autores é a forma de divulgação dos textos: leitura pública ou privada? Para Gybbon-Monypenny e Gicovate, as Vidas foram compostas para leituraprivada.ParaArtiles,MenéndezPidal,Ruffinatto,Molina,TrendeDutton,

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ASPECTOS FORMAIS E DIFUSÃO

dentre outros, a divulgação foi por via oral. Para outros, como Ramoneda, a divulgação foi realizada tanto por via oral quanto escrita.

Martini e Vallejo chamam a atenção para o fato de que, apesar de as obras em estudo incluírem referências de divulgação oral, estão estruturadas e contêm indicaçõesprópriasdeum textopara ser lidode formaprivada (1978,p. 64).Acreditamos que Gonzalo de Berceo produziu, conscientemente, um texto com diversos fins: didáticos, festivos, informativos, etc. Esta duplicidade presenteem seus textos - elementos orais e estruturação para leitura privada - poderia, conseqüentemente, ter sido prevista.

Vale destacar, contudo, como afirmaAnaDiz, “que en la sociedad delXIII, a pesar de estar compuesta por mayorías analfabetas, ciertos aspectos de la escritura afectan notablemente la vida de quienes no leen ni escriben”.68 Para a autora, a obra foi escrita para ser lida para o grande público, em especial os peregrinos, com o objetivo de propaganda. Ou seja, sua circulação teria sido prioritariamente oral.

Ainda que o texto berceano pudesse ser compreendido por muitos, materialmente o seu acesso era difícil. Nas festas, nas missas, no refeitório do mosteiro,enfim,quandoopúblicoeragrande,comodivulgarasobrasanãoserpor meio de uma leitura oral? Como texto de escola, podemos pensar em uma leitura privada.

Quantoàextensãodoespaçogeográficodedivulgaçãodospoemas,emvirtude do próprio caráter local dos santos biografados, acreditamos que, durante a Idade Média, não tenha ultrapassado muito além da zona riojana-burgalesa. O pequeno número de manuscritos preservados e as notícias de sua localização nos mosteiros de Silos e San Millán de la Cogolla apóiam essa hipótese.

Segundo Kling, Gonzalo de Berceo não foi um autor esquecido nos anos posteriores à sua morte. No artigo A propos de Berceo, publicado em 1915, o autorapresentauminventáriodascitaçõesereferênciasaopoetaeàsuaobraemdiversos escritores desde o século XVI, concluindo que “ [...] en cherchant bien on trouveraint des mentions de Gonzalo de Berceo antérieures à 1550” (p. 89).

Segundo Alonso, “la obra literaria es un compromiso entre la tradición y la expresión individual” (1958, p. 82). Gostaríamos de acrescentar que é também um compromisso com o momento histórico e o lugar social daquele que escreve. Os autores/redatores do LSJ e Gonzalo de Berceo não foram autores isolados,ouseja,nãoescreveramsuasobrasemtorresdemarfim,semvisarumpúblico,dialogarcomomeiosocial,oureceberinfluênciasdocontextohistórico.Porém,cadaumadessasobraspossui feiçõespróprias, traçosdeoriginalidadeque as particularizam, já que apreendem e representam elementos do seu entorno cultural.

68.O trabalhodeAnaM.Dizestádisponívelem:<www.geocities.com/urunuela11/notabene2.htm>.

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Capítulo IV

O espaço e o tempo

O objetivo principal nos LSJ II e III, na VSM e na VSD é divulgar e relembrar os feitos em vida e após a morte de Tiago, Millán e Domingo, estimulando, assim, o seu culto e, por extensão, as doações, e propiciando a edificação dos fiéis.Porém, ao apresentar os feitos maravilhosos desses homens considerados santos, essasobrasdialogamcomomundosocial:ospersonagensfiguramrealizandoatividades cotidianas, situadas em um determinado espaço e tempo, emitindo opiniões,revelandoemoções,valoresecrenças.1 Assim, ao apresentar episódios da trajetória e milagres dos santos, os autores/redatores também incluíram um conjuntoderepresentações2 que evidenciam a forma como apreenderam e deram sentido à realidade social na qual estavam inseridos.

Não há nas obras, por sua natureza hagiográfica, a preocupação deapresentarumareflexãosistematizadaecoerentesobreomundosocial.Justamenteporque os autores/redatores dos LSJ II e III, da VSM e da VSD não escreveram tratados teóricos, os diversos aspectos escolhidos para o nosso estudo recebem tratamento diferenciado. Contudo, para construírem seus textos e, por extensão, as representaçõesnelepresentes, elesnão sódetinhamo conhecimento, aindaque geral, sobre os elementos que incluíram em seus respectivos textos, como tambémrefletiramsobreeles.Háqueressaltar,também,quenemtodosostemasque selecionamos para análise já receberam a atenção dos pesquisadores. Dessa forma, não há uma unidade de tratamento entre os diversos itens estudados.

Nos três capítulos seguintes, apresentaremos as reflexões e conclusõesalcançadas pormeio do estudo das representações presentes nosLSJ II e III,naVSMenaVSD.Nossametafoi identificareanalisarascorrentesculturaisqueinfluenciaramacomposiçãodostextoshagiográficosabordados,ouseja,quemediarameorganizaramasrepresentaçõeselaboradas,discutindoopapelsocialdos hagiógrafos como construtores de memória e divulgadores de uma dada visão sobre o mundo social.

Começamos pelo espaço e o tempo.3 Como destaca Isabel Velázquez, umdosobjetivosdostextoshagiográficosé“ofrecercredibilidad,impresióndeveracidad o, cuando menos, de verosimilitud”, o que explica que “la mayoría de las obras ofrecen precisiones y detalles diversos y múltiples sobre coordenadas

1.Nocasoespecíficodasvidasdesantosberceanas,háquesublinharqueoautortomoufontesescritascomopontodepartidaparasuascomposições.Semtransformarradicalmenteoconteúdobásico de tais relatos, o poeta selecionou, interpretou e adaptou os dados presentes nessas fontes, bem como introduziu diversos elementos novos em sua narrativa.

2. Sobre o conceito de representação adotado neste trabalho, ver a Introdução.3.Nestetrabalho,utilizamosotermoespaçocomosentidomodernodeextensãoindefinidaecapa-cidade de ocupação ou lugar (DICCIONARIO Enciclopedico en Español, 1994).

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espacialesytemporales”(2002,p.72-73).Mascomoasrepresentaçõesdotempoe espaço se particularizam nas obras estudadas?

4.1. O espaço

PaulZunthor,naobraLa medida del mundo, relembra que todos os seres vivos têm seu espaço. Diferente do tempo - que passa - o espaço é vivido dia-a-dia,estásemprepresenteeépossívelatéreconstruí-lo(1994,p.14).Asrelaçõessociais, portanto, só podem ocorrer no espaço, e a cultura sempre age em e sobre um espaço dado. O espaço é, para esse pesquisador, um gerador de mitos – “[...] el discurso se apropia de la realidad espacial y trata de domeñarla: ‘imágenes’ conceptualesofigurativas[...]”(1994,p.18).

“Space was not a neutral topic in the Middle Ages”, salienta Stephen G. Nichols(1999,p.112).ConcordandocomZunthor,eleafirmaqueasrepresentaçõessobre o espaço, nesse período, possuem carga simbólica, constituindo o que denomina como topografiacristã.Ou seja, o espaçoé representadode formacarregadade juízos,crençasevalores,expressandoconcepçõessobrediversosaspectos do mundo social.

Que imagens sobre o espaço estão presentes nos LSJ II e III, na VSM e na VSD? O que elas nos permitem inferir sobre os esquemas e categorias que organizamasrepresentaçõesquefiguramnasobras?Comoatuamnaconstruçãode uma memória sobre os santos biografados e do próprio mundo social?

4.1.1. O espaço no Liber Sancti Jacobi (II e III)

Ainda que os LSJ II e III não apresentem longas descrições, incluemalgunselementosquepermitemverificarcomooespaçoérepresentado.Assim,naobra,hádiversosespaçosqueseopõem,secomplementamesesobrepõem.Há o espaço celeste e o terrestre,4 o natural e o sobrenatural.

O espaço celeste é onde vive Deus e Tiago (LSJ III, 1 e 2). Após o seu martírio, ele voou para o céu, “galardoado com imperecíveis láureas” (LSJ III, 1). Ali se encontra “adornado com uma estola purpúrea e uma coroa, goza na corte celestial com seus discípulos” (LSJ III, 2), socorrendo, com o auxílio de Cristo, os que clamam por ele.

Só se chega ao céu por mérito (LSJ II, 4) ou pela intervenção do Apóstolo, como ocorreu com os seus discípulos (LJS III, 1). O céu é um lugar de “descanso no Senhor” (LSJ III, prólogo) ou “eterno descanso” (LSJ II, 3). Dessa forma, Tiago, um rapaz de 15 anos que morre durante uma peregrinação e, por intermédio

4. No LSJ II, 1, o cárcere dos muçulmanos de Saragoça, onde eram mantidos cativos cristãos, é descrito como um lugar escuro como o inferno. É a única referência sobre esse espaço.

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O ESPAÇO E O TEMPO

do santo, ressuscita, e ao retornar à vida destaca a superioridade do espaço terreno em relação ao celeste: “mais grata lhe era aquela vida celestial que agora esta miserável” (LSJ II, 3).5

IdentificadonoLSJII,1comocéunatural,oespaçocelestialopõe-seaoterreno por ser agradável. O terreno era repleto de sofrimentos, “miserável” (LSJ II, 3). Contudo, esses espaços se comunicam continuamente através de São Tiago, que circula entre ambos sem impedimentos (LSJ II, 1). Ele é o único intermediário entreocéueaterra.Assim,nosLSJIIeIIInãofiguramanjosmensageiros.

Mas no LSJ II também há um espaço invisível aos homens, salvo os agraciadosporTiago.Nãoéoceleste,poisépovoadopordemôniosepelodiabo.É uma espécie de espaço sobrenatural, no qual a trama dos milagres se desenvolve simultaneamente aos acontecimentos terrenos.6 Tiago também se faz presente nesse espaço, assim como as almas dos que são salvos por seu auxílio. Nesse lugarocorremas lutasentreo santoeodiabo.Esseespaçosófiguraemdoismilagres, o 16 e o 17, ambos atribuídos a Anselmo da Cantuária.7 A idéia de um espaço sobrenatural, paralelo ao natural, tem fundamentação bíblica. Na Carta aosEfésios,afirma-sequealutadoscristãosnãoécontraacarneeosangue,mascontra os poderes das trevas e das hostes espirituais da iniqüidade (Ef. 6, 12).

Oespaçoterrenoéolugarondeamaiorpartedasaçõesocorre.Eleapareceduplamente dividido nos LSJ II e III: o espaço terreno pode ser civilizado ou bárbaro, povoado ou desértico. Há duas passagens que indicam que os autores/redatores do LSJ II fazem uma distinção dos espaços terrenos usando como critérios o que entendem por civilização. Esses critérios são a cristianização e a urbanização.Noprólogo,apósseremindicadasváriasregiõesnasquaisforamcoletadosmilagres,afirma-sequealgunsforamaprendidos“entierrasbárbaras,dondeelsantoapóstoltuvoabienobrarlos”.Areferênciaaregiõesbárbaraséfeitanovamente no milagre 4, explicitando de que grupo se trata: “a bárbara gente dos bascos impíos”. Vale destacar que no Calceatense V essa referência aos bascos não é feita. Esse texto só destaca a solidão do lugar, a escuridão, a presença do morto e as feras selvagens como motivo de medo.

Outra divisão dos espaços dá-se entre os povoados e os desérticos. Os desérticos são, sobretudo, os caminhos e vias de peregrinação. Em alguns trechos

5. Na coleção de milagres calceatenses, a lamentação de Tiago é ainda mais sublinhada: “sin em-bargo el muchacho lamentaba mucho haber sido trasladado de la vida a la muerte, de la gloria a la pena, de la bienaventuranza a la violencia, de la compañía de los ángeles a la cohabitación de los hombres malos et cétera” (Calceatense, III). A partir dessa nota, para indicar os milagres presentes nesse manuscrito, utilizaremos o termo Calceatense, seguido da indicação do milagre em números romanos.6. Contudo, a narrativa não os apresenta simultaneamente. Primeiro relata o que aconteceu no es-paço terreno para, depois, tratar do ocorrido no sobrenatural.7. É muito provável que esse espaço paralelo já estivesse presente nas fontes dos autores/redatores. Na versão calceatense desses milagres, esse espaço consta (VIII e IX), assim como na versão do LSJ II, 17 elaborada por Gonzalo de Berceo e presente em Mil.

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do livro II e III esses espaços desérticos parecem confundir-se com os não civilizados. Assim, no LSJ III, 1, a Galiza, pagã quando da chegada do corpo de Tiago, é apresentada com a presença de campos, pastos, bois ferozes e até um dragão.OdragãoressurgeemLSJII,22,aoseremlistadasasdiversasregiõespor onde um homem que fora vendido como escravo várias vezes passara. Nesse milagre, além de serem citados nomes de diversas localidades tradicionalmente vistascomopagãse/ouinfiéisoubárbaras,comoaÁfricaeaBerberia,destaca-sequeleões,ursos,leopardosedragõesquiseramdevorarohomemquandoeleatravessava os campos desertos. No relato, esses animais, considerados exóticos eselvagensnomedievo,certamentefigurampararealçarosperigosenfrentados,assimcomosublinharocaráter “bárbaro”dasdiversas regiõescitadas,muitassubmetidas aos muçulmanos. O dragão, na tradição cristã, foi associado à serpente desde o século I d.C. e, por extensão, ao diabo (RUSSEL, 2003, p. 64). Ou seja, a presença do dragão nos LSJ II e III reforça a relação entre a barbárie, o paganismo, o islamismo e o diabo.

OspovoadoseascidadessãoamaioriadosespaçosquefiguramnosLSJII e III. Talvez por tratar-se de um texto elaborado em uma catedral, que visa fixaretapasdeumcaminhodeperegrinaçãoeengrandecerCompostela,cidadecivilizadaecristã,oespaço terrenoquefiguranosLSJIIeIIIé,sobretudo,ourbano, o transformado pelos homens, o cristianizado. Assim, a paisagem8 do LSJIIeIIIécompostaporreferênciasaconstruções,comoponte(LSJIII,1),templo (LSJ III, 1), casas (LSJ II, 1), hospedarias (LSJ II, 5 e 6), torre (LSJ II, 11), basílica(LSJII,19).Osanimaisquefiguram,namaioriadasvezes,oupovoamoespaçodesértico/bárbaro,comojádestacado,ouserelacionamàsperegrinações,são cavalos (LSJ II, 6, 15, 16), burros (LSJ II, 17) e asnos (LSJ II, 6).

Há,nosLSJIIeIIIapreocupaçãodeidentificarolocaldasações.Porém,muitas localidades são indicadas somente por seus nomes. Nesse sentido, a toponímia ganha destaque e, como assinalamos na introdução, tem sido objeto de diversosestudos, sobretudofilológicos.Váriascidadeseacidentesgeográficossão apresentados, em alguns poucos casos, com brevíssimos comentários, como “portodeIria,queficanaGaliza”(LSJIII,1);“Jafa,juntoàorladomar”(LSJIII,2); “Lidrebón, distante oito milhas da citada cidade onde agora é venerado” (LSJ III, 2); “Gasconha, chamada Porta Clusa” (LSJ II, 4),9 e “castelo de Corzano, na Itália, diocese de Módena” (LSJ II, 11).

Os LSJ II e III também têm a preocupação de apontar, em algumas situações,distâncias,emmilhas,entredoislocais,comonoLSJII,4eIII,1e2.Provavelmente foram incluídas como indicaçõesparaperegrinos: “amenosde uma milha de sua catedral, no Monte Gozo, o Apóstolo desceu do cavalo aos

8. Entendemos como paisagem a um conjunto de elementos de um dado espaço delimitado, bem como a sua descrição ou representação.9.EssainformaçãotambémfiguranoCalceatenseV.

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que havia trazido” (LSJ II, 4).10 Talvez por esse mesmo motivo, e para destacar a passagem da Galiza do paganismo ao Cristianismo, destaca a mudança de topônimo doMonte Ilicino: “estemonte, chamado até aí de Ilicino, como sedisséramos o que seduz, porque anteriormente àquele tempo muitos homens desditosamenteseduzidos,praticavamaliocultododemônio,foichamadoporeles Monte Sacro, isto é, monte sagrado” (LSJ III,1).

Os LSJ II e III também hierarquizam o espaço terreno. Incontestavelmente, Compostela é o grande centro e, na cidade, a Catedral. Ali são realizadas festas dedicadas ao santo (LSJ III, 3; II, 19), nela ocorrem vários milagres (LSJ II 2, 18, 19, 21), para essa cidade se dirigem os que foram agraciados (LSJ II,1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 12, 14, 15, 16, 17, 20, 22) ou lá já estiveram ( LSJ II, 7). Como sublinha Adeline Rucquoi, “é preciso chegar a Compostela. O caminho conduz até lá e os milagres ou feitos que os peregrinos ouvem ao longo de sua rota têm sempre a cidade como termo” (2007, p. 115).

Mas não só Compostela é engrandecida nos LSJ II e III. Na obra destaca-se que Tiago foi designado para pregar nas terras de Espanha (LSJ III, 1) e, posteriormente, Deus guiou os seus discípulos, que traziam seu corpo, até a Galiza (LSJ III, 1 e 2) e ali escolheu o local do túmulo (LSJ III, 1).

Articuladas a esse espaço central, encontram-se duas outras cidades: Jerusalém e Roma. Tiago, após pregar na Yspania, retorna a Jerusalém, onde foi martirizado (LSJ III, 1) e vários peregrinos que foram abençoados pelo santo dirigiam-se ou voltavam de Jerusalém (LSJ II 7, 8, 9, 10). Jerusalém era, desde oséculoIV,umimportantecentrodeperegrinação.AliCristoforacrucificado.Os LSJ II e III apresentam essa cidade com certa ambigüidade. Se, por um lado, ela é um espaço fundamental na construção da santidade de Tiago, pois foi onde decapitaram-no, por outro parece demonstrar a superioridade do Apóstolo como milagreiro e, por extensão, de Compostela. Na coletânea Calceatense, os milagres que articulam os dois locais de peregrinação – Jerusalém e Compostela – não figuram.

Em relação à cidade de Roma, a articulação feita pelos LSJ II e III é de outra natureza. Busca-se demonstrar a harmonia e a sintonia entre as duas sés. Assim, no capítulo que trata das datas das festas dedicadas a São Tiago, também é mencionada a festa de São Pedro:

del bienaventurado papa Alejandro mandó celebrarla ese mismo día, cuando estableció también la festividad de San Pedro ad Vincula el día primero de agosto. Porque en este día ciertamente, como se dice en las historias romanas, el mismo papa guardió las cadenas de San Pedro, que mucho antes habían sido llevadas de Jerusalén a Roma por la emperatriz Eudoxia, en la basílica del propio santo, tras haberlas rociado con agua bendita y ólco santo, y ordenó celebrar en honor de

10. No Calceatense V é indicada uma légua.

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San Pedro. (LSJ III,3)

A outra menção a Roma encontra-se em LSJ II, 17. Quando Geraldo tem a sua alma levadapelos demônios, é emRoma, “junto à Igreja deSãoPedroApóstolo”, que ocorre o seu julgamento. Vale destacar que a referência a essa cidade também encontra-se no Calceatense VIII.

Porfim,queremosdestacar comoos espaços apresentadosnosLSJ II eIII são empregados para realçar a fama de São Tiago e da Galiza, construindo umaverdadeira identificaçãoentreo santoeoespaço.NoLSJ II,2afirma-seque as súplicas ao Apóstolo devem ser feitas em um lugar especial: “todo o que verdadeiramente se arrepende e de longínqüas terras busque de todo o coração o perdão do Senhor e os auxílios de São Tiago, que devem ser pedidos na Galiza [...]”. Essa ênfase no espaço em que os rogos devem ser feitos não consta da versão calceatense (Cf. Calceatense IV).

Ainda com esse intuito, o prólogo do LSJ II destaca as várias regiões,inclusive bárbaras, nas quais foram coletados relatos de milagres, e os que são agraciados por intermédio de São Tiago provêm de diversas localidades: Gália, Península Itálica, Jerusalém, Império Bizantino, etc.

4.1.2. O espaço nas Vidas de San Millán e Santo Domingo

Face ao LSJ, a VSM e a VSD apresentam um maior númerodeindicaçõesespaciais. Diferentemente do que ocorre no LSJ, existem só dois grandes espaços nas vidas de santos berceanas: o espaço terrestre e o espaço celeste.11Asvisões,nessas obras, não são apresentadas como paralelas ao que ocorre na terra nem é feita uma dicotomia entre espaço civilizado e bárbaro. A dicotomia reside no poblado e ermo.

O espaço terrestre é visto como passageiro e é, por excelência, lugar de dor e sofrimento. Os santos biografados por Gonzalo de Berceo desprezam o “mundo”, pois consideram-no cheio de engano (VSM 34d) e maldade (VSM 12a). A partir, especialmente, da leitura de VSD 50ab, podemos inferir que o poeta partilhava da visão pessimista da progressiva decadência do mundo, presente em alguns pensadores dos séculos XII e XIII, tais como Anselmo de Havelberg e Joaquin de Fiori.12

Contudo, diante do saeculum, o céu é destacado como local de paz. Após os sofrimentos terrenos, o espaço celeste representa, nas vidas de santos berceanas,13

11. Na VSM e na VSD há referências pontuais ao inferno, mas ele não é descrito e não ocorrem açõesnesseespaço.Cf.VSM89c,100cd,276cd,VSD432cd.12. Segundo Jedin (1966, p. 61-63), foi a luta pela reforma da Igreja que inspirou o desenvolvimen-to da “teoria da decadência”.13.ParaumestudodasvisõessobreocéunasobrasdeBerceo,verRuizDomínguez(1999,p.

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ofimdaslutasmateriais.Nocéudasvidasberceanashámúsica,festaealegria(VSD 525, VSM 303). Ali residem, além do próprio Deus, Maria, os anjos e todos osqueforamfiéisàfécristãnavidaterrena,asaber,osconfessores,ospatriarcas,os anciãos, os profetas, os apóstolos, os mártires e as virgens.14

Conforme o que é relatado em tais obras, ao chegarem ao céu, como São Tiago, os santos receberam o reconhecimento e a recompensa por terem tido uma vida de abstinências e serviço a Deus. Ao alcançarem a morada celestial, Millán ganhou uma rica cadeira e uma coroa preciosa (VSM 308) e Domingo, três coroas (VSD522cd).Esseselementossãoadiçõesdopoeta,jáquesãoinexistentesnaVE e na VDS. 15 Para chegar ao espaço celeste como os santos biografados, o texto berceano ensina que o homem necessita negar as glórias e prazeres do espaço terrestre (VSM 44 e VSD 61cd).

Mesmotãodiferentes,asrelaçõesentreosespaçoscelestee terrenonasvidas de santos berceanas são possíveis. Porém, de forma distinta do que ocorre em outros textos medievais,16 não existem locais especiais para passar de um espaço ao outro nas vidas em estudo.As comunicações entre esses espaçosocorrematravésdosanjos,devisõesesonhos.Foramosanjos,porexemplo,quelevaram as almas de Millán e Domingo para o céu (VSD 521d – 522ab e VSM 301-302ab). Vejamos um exemplo. Um dos milagres relatados na VSM informa que, ao faltar azeite nas lâmpadas que iluminavam o túmulo de San Millán, teria sido o próprio Deus que as abastecera com óleo vindo diretamente do céu (VSM 336).Ouseja,nãohábarreirasougestosmágicosqueintermedeiamasrelaçõesentre o natural e o sobrenatural, o visível e o invisível, nas Vidas berceanas. Entre osespaçosterrestreecelesteotrânsitoélivre,ehácomunicaçõespermanentesecorrespondências constantes: basta que no espaço terreno haja uma necessidade que suscite a ação do maravilhoso. Apesar de apresentarem dois grandes espaços, a grande maioria dos acontecimentos narrados nas vidas de santos berceanas concentra-se no espaço terreno. Mas como é caracterizado esse espaço?

Em primeiro lugar, as obras dão destaque à paisagem, o que imprime maior dinamismo, precisão e realismo às ações narradas.Gonzalo deBerceonão selimitou a dizer que uma dada personagem praticou um determinado ato ou gesto, mas procurou indicar onde isso ocorrera. Para tanto, fez adições em face dosdados já presentes em suas fontes escritas. Por exemplo, quando a VSD descreve

312- 324).14.Cf.VSD523,524,525eVSM303,304,305,306,307.Essasdescriçõessobreocéusãoadi-çõesdeGonzalodeBerceofrenteaosdadosdesuasfontes.Cf.VEcap.XXVIIeVDSI,XXIII.15. VSD 522cd. Grimaldo não faz referência ao fato de que Domingo recebera, ao chegar ao céu, três coroas, mas relata uma visão tida por alguns meninos na hora de sua morte: “En la hora precisa de su partida unos niños que presenciaban la muerte del santo vieron sobre la cabeza de éste tres coronas de oro [...]” Cf. VDS I, XXIII, 93-94.16.Naliteraturaarturianamedieval,porexemplo,hálocaisespecíficosquefuncionamcomo“pon-tes“ para o outro mundo. Sobre a questão ver: Le Goff (1985, p. 19-37); Duby (1980, p. 69-101); Zunthor(1994,p.270-81);Mello(1992,p.55-56).

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a volta de Domingo ao mosteiro de Silos, após uma estada em Cruña,17 em razão da fuga de uns cativos muçulmanos que ali trabalhavam, diz que “metióse por los montes” (VSD 44b). Já em sua fonte latina, lê-se: “Domingo, salindo de prisa del puebloyamencionado,acompañadodesusseguidores,confiandoenteramenteenel Señor y con la guía del Espíritu Santo, que le había revelado la fuga, llegó en línea recta a la cueva citada, en la cual se habían escondido los cautivos fugitivos” (VSD I, XVI, 37-41). Os montes, presentes na VSD e ausentes em sua fonte, são um dos muitos elementos paisagísticos adicionados por Berceo.18

Muitas vezes os elementos da paisagem descritos nas obras funcionam como pontos de referência para uma melhor localização do espaço de uma ação ou ainda distinguir uma determinada região, como por exemplo, em VSM 462.19

As paisagens presentes nas vidas de santos berceanas possuem, além dos já mencionados montes (VSD 130d, 440b, VSM 23d, 26b, 47c, 49a, 64a, 77c, 83c, 114c, 233d), rios (VSD 48b, 265b, 272b, 645a, 734a, VSM 462a), mares (VSM 60b, VSD 649c, 192c), vales (VSM 28a, 61b, 64b, 214c), pedras (VSM 28ab, 31c), covas (VSM 106d, 28b, 29d, 30d, 32a, 45c, 46c, 47a, VSD 59b), árvores (VSM 64c), mato (VSM 27c, 50d), espinhos (VSM 49b), serras (VSD 421b, 126d, 181c, 182b; VSM 463a, 10a, 14b, 24d, 56a), outeiros (VSM 56b, 61b, 62c, 287c,15c, 468b), ventos (VSD 69b, 649c, 192c), neve (VSM 50a), temporais (VSM 50b, VSD 75d), hortas (VSD 377ab-380b), prados (VSM 246c) e animais variados, como cavalos (VSD 364b, 366b), cães (VSD 158d, 334d), aves (VSD 452b), ovelhas (VSD 19b, 20d, 587d, VSM 5b, 6d, 10b, 19d, 124d), cordeiros (VSM 7d, VSD 24d, VSM 6c, 8b), lobos (VSD 24d, VSM 6c, 8b) cabritos (VSM 7d), carneiros (VSM 466b, 468c, 474c), serpentes (VSM 45ab, 27d), galos (VSD 458c, 512a, 652b), peixes (VSD 66d e VSM 145d) e até lombrigas (VSD 452).

Não há, nas Vidasberceanas,descriçõesdetalhadasdapaisagem,mashásempre a preocupação de incluir elementos que indiquem e caracterizem o espaço, provavelmenteporqueaintençãodopoetaeraprecisaroscenáriosdasaçõesquerelatava.Daíterincluído,alémdedadosobjetivos,adjetivosparaqualificarostraços paisagísticos. A paisagem nessas obras possui, portanto, um papel ativo no relato. Assim, o local onde Millán viveu como eremita tornou-se bendito, ainda que o espaço terreno seja visto como mal (VSM 64abc), e toda a neve, vento e neblina queDomingo suportou no ermo o tornarammais santificado (VSD

17. Atual Coruña del Conde, localizada em Burgos, a 20 km ao sul do Mosteiro de Silos.18.Outrosexemplos:omarpresenteemVSM60beausenteemVEdeBraúliodeZaragoça,cap.IV; em VSD, ao encaminhar-se para o exílio em Castela, Domingo “[...] fo de las sierras declinan-do[...]”(182a).Asserrassãoumelementoincorporadopelopoeta.Confiraainda:VSD649eVDSII, XXI, 9-23; VSM 27 - 32 e VE, cap. III.19. Para indicar a localização do rio Carrión, informa: “Como taja el río que corre por Palencia, Carrïónessonomnesecundomicreencia, fasta’l ríodeArgayaz’enestasentencia [...]”.EssedadoéumaadiçãodeGonzalodeBerceo.EmtodasasversõesdoPrivilegio de Fernán Gonzalez, fontedestacopla,figurasomente:“[...]dieronaSeñorsantMillándelríodeCarriónfastaelríodeArga[...]” (DUTTON, 1984a, p. 2-25).

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675cd/ VSD 69).Gonzalo de Berceo também empregou vários elementos da paisagem

como metáforas ou símiles, conforme já salientado no capítulo anterior. Em VSD 675cd, por exemplo, utilizou-se do romã (milgrana) e sua árvore para realçar o poderespiritualdeDomingo.Tambémsãoconstantesasexpressõesdevalorquemencionam frutos ou hortaliças,20 como “non valdrién una pera” (VSM 407) ou “no lo preciava todo quanto tres chirivías” (VSD 70).21

NocasoespecíficodaVSM,háumapreocupaçãoporexplicardeterminadosfenômenos naturais riojanos. Para tanto, são incluídas etiologias22 na obra, provavelmente provenientes de tradições orais. Assim, para explicar certosfenômenosgeológicosqueseencontramnascovasdomosteirodeSanMillándeSuso,afirma:“otracosaretraen,masnolaescrivieron,ymuestranlosforadosquelassierpesfizieron”(VSM31ab).Ouainda,paraesclareceraorigemdealtarespresentes nos montes riojanos, registra: “andava por los montes, por los fuertes logares,porlascuestasenfiestaseporlosespinares;encaraoyendiaparecenlosaltares,losqueestonz’fizieronlossossantospolgares”(VSM49).

As vidas de santos berceanas, contudo, não só descrevem a paisagem comotambémsepreocupamemapresentarindicaçõestoponímicas,muitasque,inclusive, não são encontradas em suas fontes escritas.23 Rios, montes, cidades, vilas, itinerários e até reinos ou impérios são, na grande maioria dos casos, indicados pelos respectivos nomes. Ainda que em pequeno número, as vidas de santosemestudoincluemtopônimosdelocalidadesexternasàPenínsulaIbérica,comooEgito(VSD63ab),aBabilônia(VSM219cd)eRoma(VSD668,VSM464),bemcomoregiõesdaprópriaEspanha.GonzalodeBerceoutilizaotermoEspanha em diversos pontos de suas vidas de santos (VSD 248, 552, VSM 63, 122,252,371a,402,422).Quantoaostopônimosqueindicamasgrandesregiõesibéricas, encontramos: Leão, em VSD 130, VSM 372, 396, 411, 429; Galícia, em VSD 388, VSM 422; Aragão, em VSD 638, VSM 71, Extremadura, em VSD 180, 573, 730, VSM 388, 463; Navarra, em VSM 71, Álava, VSM 466; Castela, em

20.Tambémnozes,comoemVSM118e273.Asexpressõesdevalorqueutilizamhortaliçasoufrutos estão presentes em outros poemas em cuaderna vía e, segundo Nykl, que se dedicou ao estu-do da questão, estão relacionadas ao pagamento do dízimo em espécie. Cf. Nykl (1931).21. A chirivea, ou cherivia é uma planta, parecida com o aipo, da família das umbelíferas (MARTÍ-NEZALMOYNA,1993.p.361).22.“Emmuitospovosencontramosnarrativascujoobjetoéalgumfenômenoestranhodentrodapaisagem: uma ruína, uma formação rochosa notável, uma fonte, uma caverna etc. Quase todas estas narrativas explicam a razão de ser desta ou daquela particularidade. Elas são chamadas de etiologias (do grego: aitia = causa; logos = conhecimento)“ (ARENHOEVEL, 1978, p. 88).23.Atítulodeexemplificação,podemoscitaraestrofeVSM71.ParasituaracidadedeTarazona,oautor diz que esta “[...] yaze entre tres regnos, de todos en frontera, Aragón e Castiella, Navarra la tercera[...]”Navarra,CastelaeAragãosãotopônimosquenãosãoencontradosnafontedessaco-pla,aVE.NomomentoderedaçãodaVE,séculoVII,Navarra,CastelaeAragão,comotopônimoseregiõespolíticas,aindanãoexistiam.Valedestacarquedentretodasasobrasberceanas,asvidasdesantossãoasqueapresentamummaiornúmerodeindicaçõestoponímicas.

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VSD 130, 624, 730, VSM 71, 141, 372, 395, 396, 416.Talvez por conhecer bem a região e para dar mais realismo ao que narrava,

GonzalodeBerceoincluiuindicaçõestoponímicas.Porexemplo,quandorelatouqueMillán foi atéFelices afimde aprender sobre a vida eremítica, inseriu oitinerário realizado pelo santo, “movióse de la sierra, empeçó’ s desprunar; por medio de Valpirri un seqero logar,24 fasta que en Billivio ovo de arribar” (VSM 14). Esses dados não se encontram na VE,25 tratando-se de uma adição do poeta. Em VSD 743, para precisar a localização de Guadalajara, o autor citou o nome de um rio próximo a esta vila, Ribera de Henar. Já sua fonte escrita, em VSD II, XXVI, 2-3, informa que essa localidade era um castelo e não faz qualquer referência ao rio Henar.

Emmuitoscasos,maisdoqueapontarotopônimodeumalocalidadeouacidentegeográfico,oautorapresentouadjetivosquequalificamasregiõescitadas,tal como ocorre na descrição das paisagens. As localidades tornam-se então singularizadas não só pelos nomes que recebem, mas também pelo julgamento efetuado pelo narrador, como em “Taraçona li dizen, cibdad es derechera (VSM 71a) e “Fita es un castiello fuert e apoderado, infito e agudo, en fondón bienpoblado” (VSD 733ab).

AsindicaçõestoponímicassãoquaseumaobsessãodasVidas berceanas. Quando o poeta não sabia o nome de uma dada região, pois fora omitido por sua fonte, chega a protestar. Assim o faz em VSD 71, ao narrar o período em que Domingo viveu como eremita. É interessante observar, contudo, que em alguns casos,oautoracabouporselecionarasindicaçõestoponímicasqueincluiuemseus textos. Por exemplo, das mais de duzentas localidades apresentadas no Privilegio de Fernán Gonzalez, só 36 são incluídas na VSM 462-474. E em VSD, não informou o nome da vila de Mablas, explicitamente, por não considerar um nome digno (VSD 613cd). Mablas, do latim mammulas, era o nome de uma aldeia de Burgos medieval, hoje desaparecida. Estava localizada próxima a Sierra de Mamblas, duas colinas que possuem a forma de seios femininos. A omissão do nome por Gonzalo de Berceo poderia estar relacionada ao fato de que o autor conheciaaregiãoenãogostariaquefossefeitaumaassociaçãoentreotopônimo,que excluiu, e os seios de uma mulher.26

Há também algumas divergências entre as indicações toponímicasapresentadasnasvidasdesantoseasdesuasfontes.Hádiversasrazõesparaisso:o autor não entendeu o que estava escrito no manuscrito que utilizava por não estar nítido, como em VSD 609; fez uma leitura incorreta do termo em latim,27

24. O epíteto dado por Berceo à região de Valpirri, atual Valpierre, un sequero logar, demonstra que o autor conhecia o provável caminho utilizado por Millán para chegar até Bilivio.25. Em VE, cap. II, lemos: “Dictaverat ei fama esse quendam heremitam nomine Felicem, virum sanctisimum, cui se non inmerito preberet discipulum, qui tunc morabatur in castellum Bilibum”.26. Em VSD 748, o autor também omite o nome da localidade de Avia ao apresentar Juhán. Com-pare com VDS II, XXVI, 30.27. Como no caso do nome Tres Celdas, mosteiro localizado próxima a Matute, também conhecido

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O ESPAÇO E O TEMPO

ouainda,combaseemseusconhecimentospessoais, identificouumtopônimopresente na fonte com uma região que lhe era familiar. É o que ocorreu quando Berceo localizou Soto como uma região de La Rioja, Soto de Cameros, e não como Soto de San Esteban, localidade de Osma, a que indicava a fonte latina.28

GonzalodeBerceotambémoptou,emalgumasocasiões,porapresentartopônimos mais modernos, provavelmente mais conhecidos por seu público,peranteospresentesnas suas fontes, já caídosemdesuso, afimde indicar asmesmasregiões.EsteéocasodousodeCogollaporDistercio,nomeutilizadopor Bráulio para indicar os montes onde Millán vivera como eremita e onde se encontrava o mosteiro emilianense.

Para retratar o espaço nas suas vidas de santos, Gonzalo de Berceo, além deincluirdescriçõesdapaisagemeincorporarindicaçõestoponímicas,tambémrealizouatualizaçõesespaciais.Esteéoterceiroelementoquecaracterizaoespaçoterrenonasvidasemestudo.Vamosnosdeternoscasosmaissignificativos.

Quando a VSM narra a instituição dos votos a San Millán, informa que no século X Castela era um condado independente, governado por Fernán Gonzalez. Chamados a lutar ao lado dos leoneses contra os muçulmanos, os castelhanos, seguindo o exemplo do rei Remiro de Leão e seu conselho, que decidiram tributar a São Tiago, instituíram os votos a San Millán. Ficou então acertado, segundo a narrativa, que as localidades leonesas tributariam a São Tiago e as castelhanas a SanMillán.Porém,quandoGonzalodeBerceocompôssuaobra,noséculoXIII,Castela não era mais um condado e, junto a Leão, formava, desde 1230, um único reino. Assim, ao recriar a lista dos locais que deveriam pagar os votos ao mosteiro emilianense, Berceo incluiu cidades e vilas que, no momento, eram territórios do Reino de Castela, mas só leonesas no século X. Nesse aspecto, o poeta seguiu o Privilegio de Fernán Gonzalez e não percebeu a contradição presente no texto.29 Porconseguinte,nãointroduziuqualquermodificação,faceàsuafonte,comofezemoutrasocasiões,justamenteporqueviaaorganizaçãoespacialdopassadotalcomo se encontrava no presente.

Ainda em VSM, quando é informado que Millán, obedecendo ao bispo, dirigiu-se a Tarazona, descreve-a como fronteira entre Aragão, Castela e Navarra (VSM 71). No século VI, no espaço da Península Ibérica, só existiam os reinos visigodo e suevo; mas o que importa? No quadro político da Península Ibérica no século XIII, eram encontrados, no mesmo espaço, os reinos mencionados; e é a

como San Cristóbal de Tobia, que é apresentado por Grimaldo em VDS I, V, 387-388 - “[...] lo encargóderegirelmonasteriodeLasTresCeldas”.Berceooleunãocomoumtopônimo,mascomo se a expressão estivesse indicando três locais diferentes: “Tres fueron los logares assí como leemos, [...]” (VSD 171a).28.CompareVSD354comVDSI,XII,2.Areleituradasindicaçõestoponímicasdasfontesencon-tra-setambémemVSD290(ConfiracomVDSI,XI,1)e645(ConfrontecomVDSII,XX,2).29. Aliás, este é um dos argumentos utilizados para defender que o Privilégio de Fernán Gonzalez é um documento elaborado no século XIII, e não no século X. Sobre a questão ver Ruiz Dominguez (1988, p. 631).

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elesqueoautorfazalusões.As atualizações espaciais berceanas vão além. Pormeio do prólogo da

VE, sabemos que Millán, apesar de reunir um grupo, não chegou a organizar um mosteiro. Seus seguidores viviam em cavernas, naturais ou escavadas, nos montes colloganos. Ao reescrever a vida deste santo no século XIII, o poeta o retratou como líder de uma comunidade cenobita, estabelecida não em cavernas, mas em edifícios;osmongespossuíamfunçõesdiferentes;haviaumsistemadeassistênciaaos necessitados, como provavelmente estava organizado o mosteiro emilianense no momento em que Gonzalo de Berceo redigiu a obra. Essa atualização não é gratuita, já que a VSM visa engrandecer a vida cenobítica.

Não só encontramos atualizações do espaço nas Vidas berceanas, mas tambémomissõesdiantedosdadospresentesnasfontes.AopassoqueGrimaldorelata que o corpo de Domingo, dois anos após a sua morte, fora trasladado para a Igreja de Burgos (VDS I, XXIII, 118-140), Gonzalo de Berceo omite tal informação (VSD 529-532). Para o público de Berceo, o túmulo do santo permanece no mosteiro de Silos. Assim, em diversos pontos dos poemas, a sepultura do santo encontra-se associada ao mosteiro (VSD 542-543, 562, 615, 631-632,642,684,688-689).Aidentificaçãoentreotúmuloeomosteiropodeserexplicadapor,pelomenos,duasrazõesprincipais:simplificaranarrativaparaser melhor assimilada pelo público e engrandecer unicamente o mosteiro silense como centro de peregrinação.

Mas o espaço terreno descrito, delimitado e atualizado por Gonzalo de Berceo nas Vidas, apresenta uma marcada dualidade por se encontrar fragmentado em duas áreas distintas: os poblados e o yermo. Quais as principais diferenças entre tais espaços? Como as obras em estudo os representam e caracterizam? Comecemos pelos poblados.

Millán viveu no século VI e Domingo no XI, mas Gonzalo de Berceo os biografou no século XIII. Logo, a paisagem do instante da redação das obras era diferente do momento em que os santos viveram. Primeiramente a presença muçulmana e, posteriormente, a reconquista, o repovoamento e a colonização progressiva implicaram umamudança da paisagem das regiões retratadas nasobras em estudo.30

GonzalodeBerceoeraconscientedastransformaçõesocorridas,conformeindicam suas obras. Quando a VSM apresenta uma descrição do vale que Millán viveranoséculoVI,afirma:“cercaesdeVerceoond’élfuenatural,encontrala

30.ApresençaislâmicanaPenínsulaIbérica,aindaquecomvariaçõesregionais,ocorreuentreosséculos VIII e XV. A Reconquista desenvolveu-se paulatinamente, estando relacionada aos con-flitos entre as forças políticas cristãs que se estruturavam em reinos.Assim, aReconquista foisomenteumadasfacesdomovimentodeexpansãoeconfiguraçãodosreinoscristãos.Comcarátersocioeconômico,desenvolveu-searepovoaçãoeacolonizaçãodasnovasterrasincorporadas,como objetivo de consolidar a presença cristã através da reorientação do espaço, transformando-o em produtivo, pela introdução da organização administrativa, civil e eclesiástica, jurídica e defensiva. Sobre a questão, ver a obra, ainda fundamental, de Perez de Urbel (1951).

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Cogollaunancïanoval;eraenessitiempounfieromatarral,serpienteseculuebrasavién en él ostal” (VSM 27). Ou ainda, quando o autor relatou os efeitos de um dos sinais enviados por Deus para despertar os cristãos de seus erros, ocorridos antes da Batalha de Simancas, apontou que atingiram a região onde se localizava Burgos; porém, adverte que a região ainda não se encontrava povoada no século X (VSM 390 cd).

Oautornãosóestavacientedastransformaçõesnapaisagemcomopassardo tempo, como também da ação humana como veículo dessas mudanças. Por meiodeexpressõescomopor poblar o pobladas, ressaltou o papel do homem na transformação e organização do espaço (VSM 390, 464, 476,477). As mudanças espaciais, segundo as Vidas berceanas, ocorrem por meio do trabalho agrícola e da construção de edifícios (VSD 378ab e VSM 226). Tal idéia evidencia-se pelo empregodetermosespecíficos,comoprado31 e uerta, que em La Rioja do século XIII designavam tipos particulares de espaço que sofreram a ação humana,32 como em VSD 377a e VSM 246abc.

O poblado é, dessa forma, o espaço transformado, reformulado e ordenado pelo homem: é o espaço social. Nas obras em análise são apresentados vários elementos cuja função é representar esse espaço delimitado e dividido, tais como os mosteiros (VSD 113c, 131c, 194b, 200bc, 280c, 385b, 446c, VSM 200a, 351a, 488b),33 as casas (VSM 182a, 193, c, 198a, VSD 468b, 580d, 602a), as igrejas (VSM 4b, 160d, 231b, 288b, VSD 220b, 241b, 333a, 409b, 425a), as cidades (VSM 71, 72, 74, 77, 787, 286c, VSD 671a) e os mercados (VSD 290d, 313b, 744d).Asfunçõesespecíficasdecadaumdessesespaçosnoconvíviosocialsãoexplicitadas no texto, como em VSD 290, 477ab e VSM 324abc.

Grandeparte das ações relatadas porGonzalodeBerceoocorreramemmosteiros, visto que Domingo fora monge, prior e, posteriormente, abade; e Millán é retratado como o fundador e regedor de uma comunidade cenobita. Contudo, mais do que ambientar suas narrativas no espaço genérico de um cenóbio, as vidas de santos berceanas preocupam-se em precisar em que locais específicos domosteiro as ações desenvolveram-se.As abadias presentes nasvidas estudadas são, portanto, apresentadas com seus diversos ambientes, com funçõesbemdefinidas:oaltar(VSM352c),oparlatório(VSD447b),orefeitório(VSM 352d, VSD 220b, 380d, 447), o vestuário (VSD 220b), o oratório (VSD 447a), o claustro (VSD 445d, 121b), o coro (VSD 121b), o dormitório (VSD 220c) e o hospital (VSD 272c, 299d).

Essaformadeidentificaçãodosespaçosdámaiordinamismoeprecisão

31. “[...] the meaning of word prado in Berceo is thought to be the same as that of modern prado, i. e., ‘tierra muy húmeda o de regadio, en la cual se deja crecer o se siembra la hierba para pasto de los ganados’” (CAPUANO, 1986, p. 808).32. Sobre os termos utilizados em La Rioja, para designação de espaços transformados pelo homem nomeiorural,confiraSalasDuque(1986,p.289-302).33. Em alguns versos encontramos casa e convento também designando mosteiros.

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aos relatos que, inclusive, apresentam acontecimentos ocorridos no mesmo tempo, mas em espaços diferentes. Na VSM 325, por exemplo, o autor informa que o corpo de uma menina morta fora deixado no altar da igreja do mosteiro emilianense, enquanto seus parentes dirigiam-se ao refeitório para alimentarem-se,afimderecobraremasforças.

Ainda que em pequeno número, já que suas obras ambientam-se em áreas rurais, nas vidas de santos berceanas também são mencionadas cidades. Provavelmente inspirando-se nas cidades de sua região, o autor imaginou que umaordemenviadapeloreiAlfonsoVIaoconselhodeFita,afimderepreenderalguns cavaleiros que saquearam uma vila muçulmana sob sua proteção, fora discutida em uma reunião realizada no mercado (VSD 744). De forma distinta, a fonte latina da VSD apresenta Fita como um castelo e nem sequer menciona uma assembléia para discutir a ordem do rei. A VDS II, XXVI, 18-21 somente informa: “[...] el Rey, habiendo llamado a los señores del castillo, ordenó que fueranentregadosasuautoridadlosautoresdetalinfamia,afindequemientrasellos expiaban las penas impuestas por su audacia, los demás tuvieran miedo y se apartaran de tales atrevimientos y temeridades”.

No conjunto do poblado, os mosteiros são os espaços onde foi realizada a grande maioria dos milagres e nos quais os poemas situam os túmulos dos santos, que se tornam os pontos centrais da narrativa. Ainda que outros espaços sociais surjam de passagem no texto, seja porque os santos ali estiveram, porque indicam pontos de um determinado itinerário ou até informando o local de origem de certos personagens, a grande maioria dos movimentos conduz para esses centros. Mesmo quando alguém fosse libertado pelo santo longe de seu túmulo, como no caso dos cativos entre muçulmanos, acabava por dirigir-se até ali para agradecer pela “milagrosa” libertação (VSD 664-674).

Énesseespaçoque tudooqueénarradopode tornar-se realparaofielatentoàbiografiadosanto,comoassinalaoprópriopoeta,emVSD385:“Sideoír miráculos avedes grand sabor, corred al monasterio del sancto confessor, por ojo los veredes, sabervos an mejor, ca cutiano los face, gracias al Criador”. Ou seja, há certa hierarquização dos espaços nas Vidas berceanas, cujo valor não está na beleza, tamanho, segurança ou riquezas, mas na manifestação divina.

Anteosespaçospovoados,comsuamultiplicidadedeformas,funçõesepontos centrais, também ganham destaque as áreas despovoadas, desérticas: “[...] los yermos de omnes non moravan” (VSD 65d). O espaço desértico já se encontra representado na Bíblia: quando os hebreus saíram do Egito, peregrinaram por quarenta anos no deserto (Dt. 1,3); o profeta Elias, ao fugir da rainha Jezabel, que ameaçava matá-lo, dirigiu-se para o deserto, permanecendo ali por quarenta dias (I Reis 19, 1-18); João Batista vivera e pregara no deserto (Mt. 3,1-4; Mc 1, 4-6); o próprio Jesus, segundo os evangelhos, também esteve no deserto, em jejum e oração, sendo também tentado pelo diabo (Mt. 4,1-11; Mc. 1,12; Lc. 4, 1-13). Notextobíblico,portanto,odesertoéidentificadoaosofrimento,àtentação,à

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purificação,aorefúgioeaocrescimento.Com a cristianização, o sentido simbólico do deserto bíblico foi transmitido

ao Ocidente medieval. Como afirma Le Goff, as “[...] epopéias do desertodepressa transmitirão ao Cristianismo latino ocidental alguns textos fundamentais queestãonabasedahagiografiaedaespiritualidadedodeserto”(1985,p.42).Dessa forma, os santos ocidentais, tal como ocorre na Bíblia e na literatura cristã oriental, também encontraram no deserto o espaço privilegiado para exercitar sua fé. Contudo, complementa o pesquisador, como não havia desertos físicos no Ocidente, tal como os encontrados no Oriente, novos espaços ganharam o status dedeserto:asilhaseasflorestas(1985,p.43-46).

A partir das reflexões de LeGoff, podemos constatar que noOcidente medieval o termo deserto ganhou um caráter de adjetivo e não representava mais um espaço com determinadas características naturais, sendo utilizado para denominaráreasgeograficamentediferentesequeacabavaporexercerasmesmasfunçõesdodesertofísicooriental:darrefúgio,serlocaldesofrimento,privação,tentação e crescimento. O deserto, como adjetivo, está presente nas vidas de santos berceanas. Quando Millán e Domingo optaram pela vida eremítica, dirigiram-se para o ermo (VSD 58bcd; VSD 65). Nestas obras, como na Bíblia, o ermo é o espaço da dor, da abstinência, da renúncia, do fervor espiritual, da solidão e, fundamentalmente, da salvação.

Contudo, como as vidas de santos berceanas descrevem o deserto? Como assinalamos no capítulo anterior, segundo Carlos Foresti, ao descrever a natureza, o poeta utilizou-se do esquema retórico do locus eremus, presente no texto bíblico (1963, p. 5). Para o estudioso, o ermo nas Vidas de Berceo é idealizado e não é descrito com detalhes, já que, como na Bíblia, o deserto é apresentado nessas obras em oposição ao Paraíso. O escopo de Gonzalo de Berceo seria somente apontar aspectos negativos do ermo para salientar a força e o heroísmo dos santos (FORESTI SERRANO, 1963, p. 22-23). Porém, quando nos detemos na reconstrução do ermo presente nas vidas de santos em estudo, percebemos não sódiversassemelhançascomageografiariojana,comoconstatamosqueestaédescrita com muitas minúcias: possui árvores, cavernas, cobras, serpentes; chove, neva e faz muito frio (como em VSM 28 e VSD 69). Além disso, o ermo berceano não é só apresentado como um espaço negativo, mas também como um lugar sagrado, justamente porque fora habitado pelo santo: “e por el confessor es el logar sagrado” (VSD 72).

Alémdisso,Berceosemprecontrapõeoermo,ondesóviviamosanimaise os eremitas, às terras povoadas, também denominadas como mundo (como em VSM12a,16c,17c,40b,VSD60,66),enãoaoParaíso,comopropõeCarlosForesti: “más me vale buscar logar más apartado, mejor me será esso qe bevir en poblado” (VSD 52) e “entresti a los montes por a mi guerrear, diziés que al poblado nunqa qerriés tornar” (VSM 114).

Ao reconstruir as áreas desérticas em suas vidas de santos, Gonzalo de

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Berceo foi, sobretudo, original, ainda que preservando o sentido teológico já presente no texto bíblico. Ante os espaços desérticos ocidentais apontados por LeGoff-a ilhaeafloresta-,odesertonasVidas berceanas é freqüentemente associado aos montes.34 Assim, o deserto foi recriado não só com os dados dos livros, mas também a partir da interação cotidiana do poeta com o espaço riojano.Afinal,desuaparóquia,novale,GonzalodeBerceopoderiaavistarasmontanhas.

O espaço, nas vidas de santos berceanas, também é caracterizado através da projeção exterior de sentimentos e desejos interiores dos personagens. Em VSD72doespaçochegaaserqualificadodeformapositiva,graçasàpresençado santo. Para demonstrar o crescimento espiritual de Millán, a VSM refere-se aos seus movimentos pelo espaço. Quanto mais alto o santo encontrava-se nas montanhas colloganas, maior era o seu crescimento espiritual (VSM 54cd). Ao utilizar o espaço para externar sentimentos e desejos interiores, Gonzalo de Berceo usou um interessante recurso didático que permitia revelar a identidade e as experiências dos seus personagens. Assim, o espaço deixa de ser só uma referência a um dado concreto e ganha caráter simbólico.

Oespaçonasvidasemestudo,comoelementossimbólicos,compõemaconstruçãodaidentidadeealteridadedaspersonagens.ComoapontaZunthor,“enla Edad Media, más que por el deseo de identidad personal que nos caracteriza actualmente,elcuerposocialestabahabitadoporunanecesidaddeidentificación(con el Otro, con el grupo, con un modelo comum)” (1994, p. 41). Dessa forma, ao delimitar e precisar o locus, o homem medieval estava construindo a sua própriaidentidade.Vejamoscomotalfenômenofaz-sepresentenospoemasdeGonzalo de Berceo.

Em primeiro lugar, as obras apresentam uma identificação entre fé eespaço. Assim, existe um espaço do Cristianismo, a cristandade, ante os espaços dos “outros”; os muçulmanos (VSM 372, VSD 670, VSM 392a, VSD 75, VSD 717). A idéia de terra de cristãos, mais geral, está presente nas vidas de santos berceanasao ladodeoutrasdelimitaçõesespaciais, comoaEspanha.Gonzalode Berceo foi um dos primeiros escritores a utilizar os termos España e español, como substantivo e adjetivo (GARCÍA DE CORTÁZAR, 1992, p. 173). AEspanhasurge,nessasobras,nãosócomoumespaçogeográficodefinido,mastambém como um traço de identidade que distinguia os habitantes peninsulares dos de outras áreas cristãs (VSM 63d, VSD 552cd, VSM 122).

Em um ensaio sobre a idéia de Espanha, Jose Orlandis recorda que a tensão entre a unidade e a diversidade sempre marcou a História espanhola. Tomando por base a herança visigótica comum, durante a Reconquista, foram surgindo vários reinos. No medievo, a unidade de fé da Espanha era uma meta comum aos diversos reinos peninsulares, segundo o pensador espanhol (1987, p. 21-30).

34. Encontramos a associação monte-ermo em VSM 23 cd, 24d, 41b, 42, 47cd, 56, 58, 62cd, 63a, 65, 77, 83a.

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Nasvidasdesantosberceanas,oconflitoentreunidade/diversidadetambémsefazpresente,apresentandotantomençõesàEspanha,quantoaosseusdiversosreinos, como em VSM 396, VSD 538, VSD 130 e VSM 414.

Contudo, na construção da identidade, não bastava a delimitação espacial de um dado reino, mas também precisar as diversas localidades menores que o compunham. Logo, os santos biografados por Gonzalo de Berceo, e o próprio poeta, eram igualmente caracterizados como naturais de La Rioja. Esta região, que no decorrer do século XIII foi-se integrando ao reino castelhano, também marca presença, ainda que timidamente, nas vidas de santos berceanas: “sonó la buena fama entre los riojanos [...]” (VSM 41a).35

Mas a identidade do homem medieval está, sobretudo, relacionada a um lugarespecífico,cujoeloétãoforteapontodeserconhecidoporesseespaço.Como destaca Nichols, “who you were, what your name was, if you were a noble: thesewerefunctionsofland,theplacewithwhichyouwereidentified”(1999,p.111). Foi o caso também do poeta, que era o Gonzalo, não um de qualquer lugar, mas de Berceo: “Yo Gonçalo por nomne, clamado de Verceo” (VSD 757a).

Berceo, ou Verceo, ganha destaque na VSM não só porque foi o local de nascimento do autor, mas também o de Millán, um dos santos biografados: “Gonzalvofuesonomnequifizoest’ tractado,enSantMillándeSusofuedeniñez crïado; natural de Verceo, ond’ sant Millán fue nado” (VSM 489abc).Enquanto sua fonte latina sequer informa onde nasceu Millán,36 o poeta indicou atéalocalizaçãogeográficadavila:“cercaesdeCogolladeparted’orïent,dosleguas sobre Nágera, al pie de Sant Lorent’, el barrio de Verceo Madriz li yaz present’, y nació sant Millán, esto sin falliment” (VSM 3). 37

A própria reconstrução do ambiente encontrado por Millán ao tornar-se clérigo na paróquia de Berceo foi, certamente, inspirada na vivência diária de Gonzalo de Berceo como preste (VSM 92-99). O relacionamento entre os habitantes da vila de Berceo e o nome da igreja paroquial, Santa Eulália (em VSM,Eolalia),sãoadiçõesàfontelatina.38 Ou seja, o espaço cotidiano, no qual são estabelecidos vínculos sociais, é um elemento fundamental na construção da identidade nos poemas em estudo.

Mas Gonzalo de Berceo se sentia castelhano. Se compararmos o uso do termo Castiella, por parte de nosso poeta, diante dos demais - Cristianismo, EspanhaeLaRioja -,verificamosqueos termosCastiela e castelhanos são a maioria.39 Como assinalamos, o poeta viveu em um momento em que La Rioja

35. Também em VSM 311.36.Cf.VE,cap.I.Bráulioiniciaabiografiadosantoinformandoqueeste,antesdetornar-seere-mita, fora pastor. A partir daí continua seu relato cronologicamente, sem fazer qualquer referência ao nascimento do santo. 37. O último verso parece denunciar a adição aos dados da fonte realizada pelo poeta.38. Cf. VE cap. V. Nessa obra lemos somente: “ [...] quapropter in ecclesia Bergegii presbiterii est functusofficio”.39. Compare: Cristianismo/ cristiandad, VSM 372, 392a, VSD 30d, 75b, 87d, 670b, 717b, 773d;

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integrava-se culturalmente a Castela e o retratou nas Vidas berceanas. A própria opçãoporpartedeBerceoemcomporabiografiadeDomingopode servistacomo emblemática desta integração: o santo, natural de La Rioja, encontrara a sua missão junto à Corte de Castela.

Gonzalo de Berceo era um homem sensível às mudanças de seu tempo. Ao incluir essa multiplicidade de espaços, retratou as muitas identidades das quais os homens de seu tempo participavam. Sim, Gonzalo era de Berceo, mas era também de La Rioja, de Castela, da Espanha e da Cristandade.

4.1.3. Algumas considerações sobre o espaço em perspectiva comparada

O homem medieval não possuía a nossa atual idéia de espaço. Para a Idade Média havia somente o locus,olugardefinidoedelimitado.SegundoPaulZunthor, a preocupação por precisar os espaços apontando os diversos locaisonde os indivíduos moravam, trabalhavam, rezavam, etc. era a maneira pela qual omedievalrepresentavaoespaço.Essefenômeno, iniciadonoséculoXII,erauma das muitas faces da progressiva expansão e conquista do espaço, processada no Ocidente, fundamentalmente a partir do século XI.40

A tendência a delimitar, singularizar e precisar o espaço também era encontrada em Castela. Segundo Garcia de Cortázar, o avanço da racionalização e da secularização foi um dos sintomas que evidenciou uma transformação nas sensibilidades (1992, p. 175). Essa tendência já aparece nos LSJ II e III, mas acentua-se nas Vidas berceanas. Ou seja, as obras estudadas não foram imunes a taisinfluxosculturais.Contudo,percebemosumadiferençaentreosLSJIIeIIIe a VSM e VSD.

Os LSJ II e III não apresentam muitos detalhes da paisagem. Incluem indicaçõestoponímicas,massemfazermuitoscomentários.Apresentamdiversosespaços,quesecomplementam,comooterrenoeoceleste;seopõem,comoocivilizadoeobárbaro;esesobrepõem,comoonaturaleosobrenatural.Essarepresentação espacial visa destacar, sobretudo, o caráter apostólico da Sé Compostelana, reforçando uma identificação entre SãoTiago e aGaliza,masreconhecendo a preeminência de Roma. O objetivo era estimular a peregrinação, realçando o poder do Apóstolo, que auxilia até os que se dirigem a Jerusalém;

Espanna e españoles VSD 248, 552, VSM 63, 122, 252, 371, 402, 422; La Rioja, VSM 41a, 311; Castela e castelhanos, VSM 71, 141, 372, 395, 396, 413, 416, 427, VSD 130, 274, 624, 730. 40.Cf.Zunthor(1994,p.46-47).OavançodoOcidenteocorreuemdiversasáreasesobdiversasformas: através dos arroteamentos; da reorganização das terras já produtivas; do renascimento das cidades;dodesenvolvimentodamanufaturaedocomércio,docrescimentodasconstruções;doavançodaReconquista,nocasoespecíficodaPenínsulaIbérica,edasCruzadas,comoummovi-mento mais geral do Ocidente, dentre outros fatores.

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divulgar as festas do santo; destacar o quanto Compostela era um espaço urbanizado e civilizado. Num momento de restauração e disputas entre as dioceses ibéricas, eranecessáriodemarcaroespaçogeográficoedepoderdesseepiscopadofaceaos demais.

Sem dúvida, Gonzalo compôs paisagens idealizadas nas suas vidas desantos. A romãzeira, citada em VSD 675cd, 689d, por exemplo, não era cultivada em La Rioja medieval (PÉREZ ESCOHOTADO, 1993, p. 220), e tampoucoexistia mar nesta região; porém os incluiu em sua paisagem, como em VSM 60b, VSD 192c, 649c. O conhecimento de tais elementos poderia, perfeitamente, resultarde suas leituras:afinal,nessaáreahaviagrandesbibliotecaseopoetaera um homem letrado. Além disso, na zona riojana estavam localizados centros de peregrinação e assistência, bem como grandes cidades, e Gonzalo de Berceo atuara como clérigo em uma paróquia que estava próxima a importantes vias de comunicação. Logo, o autor também poderia ter tido acesso aos dados sobre o espaço por meio de conversas com peregrinos, viajantes e até mesmo com artistasambulantes,osjograis.Assim,nãopodemosanular,sequer,ainfluênciada épica, que provavelmente era conhecida pelo poeta (LABARTA DE CHAVES, 1987,p.23-6;DUTTON,1965,p.411),bemcomoadaliteraturahagiográfica(CERTEAU,1982,p.276),comomotivaçõesparaainclusãodedadospaisagísticose toponímicos em suas Vidas.

Porém,mesmoqueGonzalodeBerceotenhaelaboradodescriçõesidealistasda paisagem, baseado nos textos que leu ou nas notícias trazidas por viajantes, também utilizou o referencial pessoal sobre a região em que vivia, ou conheceu em algumas de suas viagens, para construir os cenários. Os dados presentes nos livros funcionavam, portanto, como pontos de partida, sendo complementados ou ampliados pelos elementos recolhidos no cotidiano. Assim, quando confrontamos as referências à paisagem presentes nas VidasberceanascomageografiadeLaRioja Alta,41 outros documentos riojanos medievais contemporâneos e a toponímia medieval,42concluímosquemuitosdostraçosquecompõemoscenáriosdessas

41. A região apresenta, além dos altos maciços montanhosos, outros acidentes de menor relevo. Entre eles, vales cortados por correntes e saltos d’água que recebem os degelos das altas serras. Nos vales encontramos rios. Em algumas montanhas são encontradas cavernas ou covas, em razão daaçãodachuvaedovento,eouteiros,excelentesparasustentargrandesconstruções,comoosmosteiros que durante a Idade Média ali se instalaram. A formação geológica das montanhas tam-bém permite o surgimento de cavernas escavadas pelo homem. A vegetação é variada. Quanto ao clima, é frio e úmido, sujeito a nevascas e temporais. Sobre a fauna riojana, há notícias da presença, desde a antiguidade, de martas, lobos, aves variadas - inclusive de rapina -, coelhos e perdizes, den-tre outros, especialmente nas áreas montanhosas. Nos rios eram encontrados peixes, como trutas. Como a pecuária foi desde a Idade Média uma importante atividade produtiva na região, carneiros, ovelhas e cabritos eram uma presença constante. Quanto aos cães e gatos, é só no século XIII que passamafreqüentarointeriordascasaseserem“objetosdeatençõesafetivas”.Sobreageografia,afaunaeaflorariojana,verGarciadeCortazar(1975,p.3-5);OteroPedrayo(1955,p.342etseq.);Dutton (1980).42. A toponímia riojana medieval incorporou diversos traços naturais, típicos da região. Apresenta-

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obras nasceram da sua observação pessoal sobre o espaço em que viveu toda a vida.

É bem verdade que nem todas as ações narradas nas Vidas berceanas aconteceram em La Rioja. Porém, quando o poeta descreveu paisagens, acabou por inspirar-se nessa região. Algumas estrofes de VSD o sublinham. Quando Domingo resolveu tornar-se eremita, refugiou-se em algum lugar que não é citado por Grimaldo, segundo aponta a própria obra berceana: “[...] el logar do estido que no lo escrivieron [...]” (VSD 71b). Mesmo assim, o autor imaginou o local e oapresentouemseupoemacomoumaregiãomuitofriaealta,enfim,semelhanteàs montanhas de La Rioja (VSD 65d, 69, 83a).

Ainda que conhecendo e dominando os recursos retóricos, que lhe permitiriam compor paisagens ideais, Gonzalo de Berceo acabou por incorporar às suas obras a experiência direta e concreta que possuía da região na qual viveram ossantosquebiografou.Comoclérigoquemantinharelaçõescomomosteiroemilianense, conhecia a organização espacial de uma abadia, e como secular, atuando na paróquia de Berceo, a área rural riojana.

Porém, mais do que representar os espaços sociais com os quais estava familiarizado, o poeta os hierarquiza: dentre os diversos locus apresentados na narrativa, são os mosteiros de San Millán de la Cogolla e de Santo Domingo de Silos que ganham destaque. Apresentando tais cenóbios como os pontos centrais dosrelatos,oautorosenalteceuemotivouosfiéisarealizaroferendaseperegrinaraté as abadias.

Faz-se importante ressaltar, contudo, que uma das metas de Gonzalo de Berceo, ao compor vidas de santos, era instruir um grande público. Dessa forma, a inclusão de referências espaciais funciona como um recurso didático, já que permiteumamaioridentificaçãodopúblicocomaobra,atravésdaenumeraçãode locais que lhes eram conhecidos, ou ainda, motivando e despertando a atenção para a narrativa. Que satisfação não teria um leitor ou ouvinte de uma dessas obras ao verificar, por exemplo, que o nome de sua vila natal encontrava-semencionado no poema!

GonzalodeBerceotambémviveuemummomentodetransformaçõestantopara La Rioja quanto para o reino de Castela, ao qual a localidade se integrava. A consolidação e o crescimento do reino implicavam a organização e delimitação dosespaços,garantidasporsuasingularidadeatravésdostopônimos.Nospoemas,inseriu os dados de suas fontes, ampliados pelo conhecimento e experiência pessoal, a serviço da nova tendência cultural castelhana: a organização e precisão do espaço. Assim, os itinerários, vilas, cidades e aldeias são denominados, qualificadosedescritos.

va nomes que indicavam acidentes ou particularidades do terreno, como nos casos de Cuesta, Cue-vas e Pedroso, ou animais, como em Cervera e Lobera, e ainda com o nome de plantas e vegetação em geral, como Castañares e Pradillos. Para um estudo mais completo sobre a questão, ver Alarcos Llorach (1950); Garcia Mouton (1982); Ortiz Trifol (1982); González Blanco (1986).

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O ESPAÇO E O TEMPO

Varaschin vê na paisagem berceana uma fixação e delimitação de umaunidade espacial tal como era requerida e utilizada pela Igreja medieval (1978, p. 21). Porém, acreditamos que, longe de constituir-se a partir de uma fonte única, oselementospaisagísticosdasvidasberceanasresultaramdeinfluxosdiversos:dos dados presentes nos livros, incluindo-se aí as fontes escritas do poeta; dos conhecimentos adquiridos em viagens e com viajantes; da interação cotidiana com o espaço riojano e da incorporação de notícias de locais distantes. A representação do espaço nas vidas de santos de Gonzalo de Berceo, portanto, não se resume à visãoespacialeclesiásticahegemônica.SerealçouaoposiçãoentreaCristandadee o Islão, em contrapartida estabeleceu como centros do Cristianismo, em sua narrativa, os mosteiros emilianense e silense, não os bispados, cátedras ou Roma, espaços centrais e simbólicos do catolicismo romano. O poeta, portanto, recriou osespaçossociaisemsuasvidasdesantosinfluenciadopeloambientecultural,mas com base nas experiências pessoais e nos objetivos que perseguia com suas obras: destacar a superioridade da vida monástica, em especial a vivida nos cenóbios de San Millán de La Cogolla e de Santo Domingo de Silos.

4.2. O tempo

Os LSJ II e III, a VSM e a VSD não se limitam a precisar os espaços em que ocorreram os fatos que narram, mas também preocupam-se com o momento em que tais acontecimentos processaram-se. Com efeito, a narrativa das vidas de santos berceanas encontra-se permeada de referências temporais, sendo vários os recursos utilizados nas obras para indicar quando uma determinada ação sucedeu.

SegundoCerteau,“ahagiografiasecaracterizaporumapredominânciadasparticularidades de lugar sobre as particularidades de tempo”. Como os santos são modelares, eternos, “as descontinuidades do tempo são esmagadas pela permanênciadaquiloqueéoinício,ofimeofundamento”(1982,p.269).Assim,na hagiografia,oquegarantiriadinamismoànarrativaseriamasmudançasdecenário.

É o que ocorre nos LSJ II e III, na VSM e na VSD? Essas obras representam otempodamesmaforma?Asconclusõesdaanálisedecomoasobrasestudadasrepresentam o tempo e com que recursos textuais o fazem é o que apresentaremos a seguir.

4.2.1. O tempo no Liber Sancti Jacobi (II e III)

Ainda que as narrativas presentes nos LSJ II e III sejam breves, sem incluir muitos detalhes ou descrever personagens, locais e objetos detidamente, sãoutilizadosdiversos recursosparaprecisaromomentoemquecertasações

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acontecem ou para encadeá-las, apresentando a sucessão de acontecimentos. Primeiramente,destacamosasexpressõesepalavrasquefuncionamcomo

referências temporais nos relatos. Assim, são utilizados adjuntos adverbiais de tempo, como “quando” (cumque, LSJ II, 2); “após/logo” (postea, LSJ II, 3); “depois” (post, LSJ III, 1); “até” (usque, LSJ II, 3), dentre outros. Também são usadasexpressõesqueindicamopassardotempo,como“nodiaseguinte”(altera autem die, LSJ II, 1), “muito tempo depois” (post paucum vero temporis, LSJ II, 1), “sem tardar” (sine mora, LSJ II, 2), “na manhã seguinte” (mane autem facto, LSJII,17),“próximoaofimdavida” (cumque dies immineret supremus, LSJ III,1).Algumasdasexpressõestemporaisutilizadasprovémdanatureza,comoo “canto do galo” (II, 1; II, 5; II, 16) e o “amanhecer” (LSJ II, 1; II, 4;II, 18). Em outros casos, destacam-se os dias da semana e/ou horas do dia. Assim, no LSJII,3,operíodoemqueojovemTiagoficounocéuéindicado:desdemeiamanhã da sexta-feira até meia tarde do sábado (ab hora tercia sexte ferie usque ad oram nonam sabbati).Paraintercalarasaçõeseabreviarosrelatos,tambémsão indicados períodos de tempo em dias, como em LSJ II, 2, II, 3, II, 4, II, 5, II, 10.Valesalientarquemuitasdessasindicaçõestemporaisfiguramnacoletâneacalceatense.

Mas as referências temporais também adquirem valor simbólico nos LSJ II e III. A obra destaca que a trasladação do corpo de Tiago, da Palestina à Galiza, durou 7 dias, certamente para enfatizar o caráter perfeito da empreitada (LSJ III,1).EmLSJIII,3,éconstruídaumaargumentaçãoparaafirmarqueodiadasemana e a hora do martírio do Apóstolo foram exatamente os mesmos da Paixão de Cristo: “hacia la hora tercia fué juzgado y hacia la nona, como Cristo, fué muerto. Es decir, en igual día y hora que el Maestro, murió también el discípulo”. Assim,orelatobuscareforçaraidentificaçãodafiguradeSãoTiagocomadeJesus.

Outra forma de indicar o tempo nos LSJ II e III é tomar como referenciais acontecimentos ou pessoas de conhecimento geral. Vejamos alguns exemplos.

No LSJ II, 1, para indicar quando ocorrera a batalha na qual vários cristãos foram levados cativos para Saragoça, é informado: “quando em tempos do rei Afonso em terras de Espanha tornava-se cada vez mais áspero o furor dos sarracenos, certo conde chamado Ermengol, vendo a religião cristã oprimida pela força dos moabitas, lançou-se, rodeado da força de seu exército a debelar a crueldade daqueles”.

No LSJ II, 19, não são apresentadas datas, mas é possível situar o milagre, pois ele ocorreu, segundo a narração, na véspera da tomada de Coimbra. No milagre, como prova de seu caráter guerreiro e seu poderio militar, Tiago informa a hora em que as portas da cidade, que já estava sitiada por 7 anos, seriam abertas aos cristãos liderados pelo rei Fernando.

No LSJ III, 3, para discutir o dia e hora do martírio de São Tiago, são utilizados duas referências: a festa da Páscoa comemorada pelos judeus e o

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O ESPAÇO E O TEMPO

período de fome profetizado por Agabo e que ocorrera sob o imperador romano Cláudio.

Porfim,parasituaraviagemmissionáriadeTiagoàGaliza,éfeitaumasíntesedoseventosqueprecederamesseacontecimento:acrucificaçãodeCristo,sua ressurreição e ascensão, a festa de Pentecostes, e a dispersão dos apóstolos para pregar em todas as partes (LSJ III, 1).

Entretanto, o elemento mais característico dos relatos do LSJ (II e III) é a introdução de datas. Dos 22 milagres narrados no Liber Miraculorum, 14 figuramcomaindicaçãodoanoemqueocorreram(LSJII,3,II,4,II,5,II,6,II, 7, II, 8, II, 9, II, 10, II, 11, II, 12, II, 13, II, 14, II, 15, II, 22); 3 apresentam indicaçõestemporaissituandoosacontecimentosnogovernodeumreioubispo(LSJ II, 1, II, 2, II, 19), e 2 são apresentados como contemporâneos à produção daobra(LSJII,18,II,20).Sóduasnarraçõesnãotêmumaindicaçãoclaradoperíodo em que aconteceram (LSJ II, 16, II, 17). No LSJ III, 3, destacam-se as datas em que anualmente as festas do santo são comemoradas. Essas datas não constam nos milagres presentes no Calceatense, o que pode indicar que seja uma particularidade do LSJ II.

Por que tantas datas?Se as hagiografias buscam, como afirmaCerteau,dar uma impressão de eternidade, de um tempo da salvação, como explicar a introdução de tantas datas nos LSJ II e III?

Como já assinalamos, o LSJ deve ser compreendido à luz das disputas de poder entre as dioceses ibéricas. Um dos instrumentos utilizados nessa luta foi a produçãodehagiografias,quevisavamfundamentarelegitimaropoderaspiradopelas Sés. Assim, era imprescindível transmitir a idéia de que os milagres narrados realmente aconteceram. Ou seja, pessoas “reais”, que viveram nos séculos XI e XII, teriam sido agraciadas pelo Santo. Essa hipótese é reforçada pelo fato de que a grande maioria dos relatos, 14 dos 22 apresentados, teria acontecido entre 1100 e 1135 ou um pouco depois, momento em que, provavelmente, esse tratado de milagres fora composto. Assim, criava-se a ilusão de que era possível conhecer as pessoas que foram agraciadas e de que os milagres não eram acontecimentos perdidos no tempo, mas uma “realidade” contemporânea.

Quanto às datas das festas, presentes no LSJ III, 3 e reiteradas nos milagres, objetivamadivulgaçãoefixaçãonamemóriadosfiéis, clérigosou leigos.Asfestaseramperíodosespeciais,marcadosporrituaisespecíficos.Atrairperegrinosparaessasocasiõesgarantiamaioresofertas,queeramaplicadasnadioceseenaprópria cidade.

Assim,maisdoquedarrealismoouencadearasnarrações,osreferenciaistemporais dos LSJ II e III visam a propagar a apostolicidade do arcebispado de Compostela, atrair peregrinos e arrecadar ofertas, consolidando o seu lugar de poder na luta com as demais dioceses.

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4.2.2. O tempo nas Vidas de San Millán e Santo Domingo

Como nos LSJ II e III, uma das maneiras de marcar o tempo nas Vidas berceanas é o uso de expressões temporais (LOPE BLANCH, 1956, p. 36).Gonzalo empregou variadas expressões com sentidos diversos. Algumas sãoencontradas em obras contemporâneas, como o Poema de Mio Cid, o Libro de Apolônio e o Libro de Alexandre,mascomvariaçõesdesentidoesob formasdiferentes (LOPE BLANCH, 1956, p. 38).

Em VSM, o uso de “quando” e “luego” procura relacionar duas açõessucessivas, mas imediatas, como no caso em que o autor procurou realçar a prontidão de San Millán em atender à prece de seus devotos (VSM 484). Em algumas estrofes, o poeta utilizou uma mesma expressão temporal, mas com significadosdiferentes.Éocasode“deque”,quepodeequivaler,nessasobras,tanto a “depois de” ou a “desde que”. Compare: “de que oraron ellos mucho de grand femencia, [...] tollió Dios a la dueña la mala pestilencia, non ovo más en ella el mal nulla potencia” (VSM 616) e “fue por toda la tierra aína retraído, qe era el sant’ omne d’esti sieglo transido, qe se era probado por santo muy complido, qe avié muy enfermo deqe morió guarido” (VSM 322).

Avariedadede expressões e de idéias de tempopresentes nas vidas desantosberceanaspodeaindaserconstatadapelousodasconjunções“mientre”e “demientre”, com o objetivo de apontar a simultaneidade completa entre os fatos narrados (VSD721); o uso de “fata” ou “fasta que”, afimde indicar omomentofinaldeumadeterminadaação(VSD378)e,ainda,comaintroduçãode expressões impessoais, como “ave tanto de tiempo” (VSM 165c), ou noparticípio passado (“luego sea complido” VSD 324b).

Gonzalo de Berceo também empregou termos temporais que eram raros ou que não são encontrados em outros escritos de sua época (LOPE BLANCH, J. M., op. cit., p. 38-41). Utilizou, por exemplo, a expressão “luego que” (VSD 423),comsentidodeanterioridade;“asícomo”(VSD308),paraapontaraçõesimediatamente sucessivas; “manamano” (VSD 130) e “adieso que” (VSM 459), com o sentido de imediatamente.

Ousodeexpressõestemporaisnasvidasdesantosberceanasdemonstraovariado vocabulário do poeta e a sua apurada técnica, ao sintetizar o tempo das açõesnarradas.Aformaliteráriaadotada,acuaderna via, como já assinalamos, exigia que as idéias fossem apresentadas com poucos termos, já que deveriam ser transmitidas nos quatro versos que compunham uma estrofe. Assim, o uso da expressão “luego que” permite informar, em uma só estrofe, o nascimento de Millán e seu batismo (VSM 4).

Asexpressões temporais tambémauxiliaramnoencadeamentodorelatoe na apresentação de acontecimentos simultâneos. Para demonstrar o quanto o túmulo de Domingo era procurado e para passar do relato de um milagre a outro, opoetalançoumãodeexpressõescomo“adieso”,taiscomoemVSD612.Emvirtude do uso da expressão “mientre”, informa-se que foi durante o sono que

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O ESPAÇO E O TEMPO

Millán foi chamado a viver como eremita (VSM 11). No LSJ essa técnica não está presente. O relato não apresenta acontecimentos simultaneamente. Primeiro um é narrado e depois o outro, ainda que tenham ocorrido no mesmo instante (LSJ II, 16, II, 17).

Além das expressões temporais, as vidas de santos berceanas tambémutilizam outros elementos para marcar o tempo. Por exemplo, momentos do dia ou da noite, como em VSD 434; atividades do cotidiano, como a hora das refeições(VSM231);dolazer(VSM335);oudedormir(VSM652bc);ashorase festas litúrgicas;43 dia da semana ou mês (VSM 378abc-379a e VSD 564 a), e atividades agrícolas, como em VSD 420a. Sem dúvida estes últimos elementos eram de conhecimento geral do público, visto que La Rioja era uma região predominantemente rural.

A natureza também enriquece o repertório dos instrumentos presentes nas obras em estudo para marcar o tempo, justamente porque eram elementos do cotidiano.Assim,asestações,bemmarcadasnohemisférioNorte(VSM172),eo canto do galo cumprem a função de determinar o momento de uma dada ação narrada.

Os referenciais temporais nas obras em estudo são diversos e, em alguns casos, encontram-se reunidos para apontar com maior precisão o instante do acontecimento apresentado. Assim, para informar o momento em que Domingo apareceu milagrosamente a um cativo cristão entre os muçulmanos, o autor indicou o dia da semana e ainda sublinhou que era de noite, através da indicação deumfenômenonatural:“Miércoleseratardi,lasestrellassalidas,peroaúnnoneran las gentes adormidas” (VSD 707ab). Ao narrar um eclipse, um dos quatro sinais que antecederam a batalha de Simancas, o poeta preocupou-se em informar omês,odiadasemanaeahoraemqueaconteceuofenômeno(VSM380).

AsindicaçõestemporaisnasVidas berceanas também podem ganhar um sentido simbólico e não retratar o tempo real de uma ação, como em VSD 106. E, como ocorre com a representação do espaço, o tempo pode adquirir caráter subjetivo. Assim, para o cativo cristão que ansiava pela libertação na sexta-feira, conforme fora anteriormente anunciado por Santo Domingo, a quinta feira não terminava (VSD 725); e para Millán, que desprezava a vida terrena, um dia lhe era mais longo que um ano (VSM 12).

Paradelimitardeformamaisprecisaomomentodasações,GonzalodeBerceoincluiunovasinformaçõestemporaisquenãoseencontravamnasfontesescritas da obra.As indicações adicionadas pelo poeta foram frutos de umainterpretação pessoal dos dados já presentes na fonte. Dessa forma, ao relatar o milagre da cura de uma mulher de Palência que caíra doente após ter decidido não ir à missa nas vésperas do sábado, a VSD indica que ela fora levada ao túmulo do santo no domingo pela manhã. Este último dado foi resultado de uma

43.Oqueéexplicadopelo fatodequemuitasdasaçõesnarradasaconteceramemmosteiroseGonzalo de Berceo era um clérigo. Cf. VSD 454ab e em VSM 332bc.

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dedução de Berceo, de sua percepção do ritmo temporal. A VDS, sua fonte, não afirma quando amulher foi levada até o túmulo do santo para ser curada, sóinformaqueelaficoudoentenosábado.Opoeta,porém,concluiuque,jáqueamulheradoeceranofimdodiadesábado,aviagemdePalênciaaSilosdeveriaterocorrido logo no dia seguinte, no domingo (VSD 559, 569ab, 563a, 564a e VDS II, III, 1-10). Acreditamos que o poeta introduz essa referência temporal para enfatizar a importância de recorrer ao santo que biografa o mais rápido possível, poisdefendequesuaaçãomilagrosaéeficaz,estimulando,assim,peregrinaçõese, por extensão, ofertas, para o mosteiro de Silos.

NodiálogofictícioentreMilláneoshomenscontratadosparaconstruirumceleirocomafinalidadedeguardarmantimentosparaatenderaosnecessitados(VSM 230-231), após um erro na colocação de uma viga que comprometeria toda a construção, o santo convidou os trabalhadores para comer, pois “ora es de yantar”(VSM231a),afimdeoperaromilagredeformadiscreta.NafontedaVSM, não só a indicação temporal encontra-se ausente, como o próprio convite para o almoço.44 O texto de Bráulio apresenta uma única frase do santo: “Nolite vos putare - ayt - mercede operis fuisse frustatos. Ponite lignum suo in ordine” (VEcap.XIX).O “horário do almoço” é umadas ampliações elaboradasporGonzalo de Berceo em sua obra.

Mas Gonzalo de Berceo seguiu as fontes ao determinar os diversos momentos da vida dos santos que biografou. Como a VE, o poeta apresentou quantos anos Millán esteve no deserto antes de ser ordenado preste e a idade com que morreu.45IncorporandoasindicaçõesdeGrimaldo,informouoperíodoqueDomingo cuidou do rebanho de seu pai; por quanto tempo foi clérigo secular; o intervalo que viveu como eremita, etc.46 O poeta, como suas fontes, apontou o número de anos passados entre uma etapa e outra das vidas de Millán e Domingo, mas praticamente não apresentou datas, no que difere muito dos LSJ II e III. Para reforçar essa regra seguida pelo poeta, há uma exceção.

Quando iniciou o relato da instituição dos votos a San Millán, Gonzalo de Berceo introduziu datas: “de seicientos e doze corrié entonz’ la era quand’ murió sant Millán, esto es cosa vera, mas aún vent’ e ocho menos de los mil era, quando ganó el precio, rico de grand manera” (VSM 363). Por que Berceo teve a constante preocupação de marcar o tempo em suas vidas de santos, mas só apresentou datas em uma única estrofe?

Primeiramente, porque os cálculos cronológicos eram raros na Idade Média, visto que exigiam técnicas e objetos específicos. Apesar de letrado,Gonzalo de Berceo provavelmente não possuía os instrumentos necessários, à mão,pararealizartaiscômputos.Emsegundolugar,porconsiderardesnecessário

44. Yantar,nocastelhanodoséculoXIII,significava”comer a mediodía” (MARTIN ALONSO, 1986, T. 2, p.1631).45. Cf. e compare: VE cap. IV e VSM 70, VE cap. XXV e VSM 279.46. Cf. VDS I, II, 205 e VSD 32; VDS I, III, 88 e VSD 49, 73, 80.

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indicar datas a cada ponto da narrativa. Ainda que as vidas de santos berceanas fossemobrasdeHistória,porseucaráterhagiográficonãohaviaumapreocupaçãoem indicar a cronologia terrena (CERTEAU, 1982, p. 276). Os atos divinos, processados através dos santos, eram a sua matéria, e como Deus é eterno, porque preocupar-se com o calendário?

A introdução do ano da instituição dos votos foi feita, segundo Caamaño Martínez, por razões simbólicas (1969, p. 180-181). Porém, acreditamos queBerceo datou esse acontecimento por estar preocupado em dar autenticidade aopagamentodosvotosnoséculoXIII.SegundoBrianDutton,desdefinsdoséculoXIIasdoaçõesparaoMosteirodeSanMillándelaCogolladecresceramem virtude do surgimento de novos centros de peregrinação que começaram a competir comessemosteiro.Poroutro lado, forammuitosos conflitos como bispado de Calahorra quanto às rendas eclesiásticas. Para fazer frente a tais problemas,foramrealizadas,entre1210e1250,falsificaçõesdedocumentoscomo objetivo de enriquecer o mosteiro e ganhar sentenças favoráveis nos pleitos contra o poder episcopal. Dentre eles encontrava-se o Privilegio de Fernán Gonzalez, que pretendia “[...] hacer pagar a todos los pueblos de Castilla y partes de Navarra una cota anual a San Millán, que decían haber sido establecida por Fernán Gonzalez en 934. Este documento, como los demás, tuvo éxito e hizo prosperar el monasterio” (DUTTON, 1984a, p. 12-13).

Gonzalo de Berceo estava ciente dos problemas enfrentados pelo mosteiro emilianenseeaoescreversuaVSMtambémprocurouestimularasperegrinaçõese ofertas para o cenóbio. Assim, além dos milagres presentes na VE, incluiu o relato da instituição dos votos em sua obra.47 A apresentação do ano em que foram instituídos os votos na VSM era, portanto, uma prova da antiguidade do tributo, um marco digno de ser guardado na memória e que funcionava como um “evento fundador”. Além disso, o pagamento das taxas a San Millán, diferentemente dos milagres operados por Deus por intermédio de seus santos, fora uma iniciativa humana - de Fernán Gonzalez e seu conselho - e, portanto, temporal.

Sódoisautoresdedicaram-seaoestudodasrepresentaçõestemporaisemBerceo: Joaquim Artiles e Varaschin. Ao estudar o tempo em Berceo, Joaquim Artiles limitou-se a fazer um inventário das formas como as obras berceanas apresentam a medida do tempo (1968, p. 222-228). Já Varaschin, historiador, estudoutodasasconstruçõestemporaisdeBerceoàluzdeseucontextoeconcluiu:“[...] le temps n’est pas déterminant en tant que mesure du movement et du changement. Seule compte l’eternité, c’est-à-dire la permanence et la répetition [...] Il contribue ainsi à la victoire du temps de l’ amée chrétienne puisque l’Eglise contrôleleprésentaveclescloches”(1978,p.10).

Sim, como clérigo secular, Gonzalo de Berceo era um homem da Igreja. Porém,mais do que reafirmar a eternidade, em suas vidas de santos, o poeta

47. Brian Dutton demonstrou que o Privilegio de Fernán Gonzalez foi uma das fontes da VSM. Cf. Dutton (1984b, p. 231).

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estava preocupado em registrar o simples passar do tempo. O fato do autor não ter apresentadodatasconstantementenãosignificaqueasvidasdesantosberceanasignoremapassagemdotempo.Paraprecisaromomentodasaçõeseressaltarodesenrolar do tempo, o poeta lançou mão das diferentes formas de como este era apreendido no seu cotidiano. Assim, se as horas e o calendário litúrgico, formas eclesiásticas de mensurar o tempo, estão presentes em suas narrativas, também se encontram outras maneiras de pensá-lo e calculá-lo: os momentos do dia, os fenômenosnaturais,ocicloagrícola,etc.ComoressaltaLeGoff,naIdadeMédianãohaviaumaformaunificadademedirotempo.Cadagruposocialacaboupordesenvolver sistemas próprios para marcar a passagem do tempo, relacionando-o às suas atividades diárias (1979, p. 55). Assim, havia o tempo do camponês, o tempo senhorial, o tempo da igreja, o tempo dos mercadores.

4.2.3. Reflexões sobre a comparação das representações do tempo

Ainda que os marcos temporais não sejam uma prioridade na maioria dos textoshagiográficos,elessefazempresentes.InspiradosnaBíbliaeemoutrostextos considerados de autoridade e devido às próprias regras da composição narrativa, eles são introduzidos. Mas seu uso está relacionado aos interesses que motivaram a composição das obras

Nos LSJ II e III o tempo representado é o da Sé de Compostela. Os recursos utilizados para indicar e precisar o tempo visavam destacar os episódios da vida e traslado dos restos do Apóstolo, os milagres operados por São Tiago, as festas em homenagem ao santo. Assim, buscou-se dar veracidade aos relatos, consolidar e divulgar uma memória. Face ao uso dos referenciais temporais por Berceo, os LSJ II e III são bem menos variados e não incorporam aspectos do cotidiano.

Berceo, clérigo secular, letrado - com formação monástica e universitária -, habitante de uma área rural e viajante, conhecia a multiplicidade de tempos presentes na Idade Média e os utilizou. Se empregou e ensinou o tempo da Igreja, também apreendeu e aplicou outras formas de medir e pensar o tempo. Ao introduzir expressões e referências temporais em sua narrativa, imprimiumais agilidade, movimento e realismo ao relato. Por isso, em alguns pontos dessas obras, chegou até a incorporar novos dados temporais face aos de suas fontes. Com um público alvo variado, o poeta não poderia ter eleito uma única forma de representar o tempo. Para ser entendido por camponeses, monges e peregrinos, necessitou alternar as formas de indicar os momentos da ação em suas narrativas.

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Capítulo V

Os personagens

QuaissãoaspersonagensquedesfilampeloespaçoepelotemponosLSJII e III, na VSM e na VSD? Segundo Baños Vallejo, os personagens das vidas de santos de Gonzalo de Berceo podem ser divididos em dois grandes grupos: os humanos e os sobrenaturais. Por sua vez, cada um desses grupos de personagens, num esquema dualista, pode ser subdividido entre os bons e os maus (2003, p. 164). O mesmo ocorre nos LSJ II e III?

Um olhar atento sobre os personagens dessas obras, entretanto, leva-nos a detectar o quão variados e complexos eles são, ainda que em menor número nos LSJIIe III.Diantede talconstatação,propomosumaclassificação–osseresespirituais:Deus,osanjos,ossantoseodiaboeseusdemônios;eoshumanos:os piedosos, os pecadores, os reis, os pobres, as mulheres e os “outros” – pagãos, muçulmanos e judeus.

Segundo Mello, “[...] a descrição individual e personalizada não foi o forte da IdadeMédia [...].As pessoas eram reduzidas a tipos, funções e atributos”(1992,p.80).Éoqueocorrenomaterialanalisado:nãofiguramnessasobrasdetalhes sobreafisionomiaouapersonalidadedospersonagens.Há, contudo,dados dispersos, epítetos e comentários dos narradores que permitem discutir como são representados diversos tipos sociais. Passamos, a seguir a apresentar nossas conclusões sobre como osLSJ II e III, aVSMe aVSD representam,hierarquizam e valorizam seus personagens. Optamos por organizar o capítulo em subitens nos quais os tipos sobrenaturais e humanos presentes no material analisado serão apresentados.

5.1. Os seres espirituais1

Como as obras em estudo tratam de temas religiosos, há vários personagens espirituais,ou,comopropõeBañosVallejo,sobrenaturais(2003,p.164).Deus,osanjos,ossantosapósamorte,Maria,odiaboeosdemônioscompõemestegrupo. Comecemos pela caracterização de Deus.2

NosLSJ II e III,Deus, uno e trino, figura em fórmulasfixas, como “oSenhor,quecomoPaieoEspíritoSantoviveereinapelosinfinitosséculosdosséculos”(LSJII,3),epararealçarasaçõesdeSãoTiago,queé,segundoaobra,

1. Sobre os seres sobrenaturais, fundamentalmente na literatura medieval produzida nos reinos franco e inglês, ver o trabalho de Moras (2001).2.ParaumavisãogeralsobreasconcepçõesmedievaissobreDeus,veraobraEl Dios de la Edad Media (LE GOFF, 2005).

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um instrumento de Deus. Em diversos pontos é destacado que Deus é o que opera as maravilhas, mas seu auxiliar e instrumento é o Apóstolo. Em LSJ II, 7, quando um sarraceno pergunta ao santo se ele é o Deus do mar, recebe como resposta: “não sou o Deus do mar, mas um servo do Deus do mar, que auxilio aos que em perigo me chamam, tanto no mar como na terra, segundo Deus quer”.

A obra também menciona a Paixão de Cristo, sua ressurreição e ascensão paraintroduzirabiografiadeTiagoesuapregaçãonaHispânia(LSJIII,1,III,2,III,3).Entretanto,atributosdeDeus,característicasouaçõesnãosãoapresentados,salvooquefiguranasfórmulasquefinalizamasnarraçõesdemilagres:“aDeusseja a honra e a glória” (LSJ II, 1, II, 7, II,9, II, 11, II, 12, II, 13, II, 14, II, 15, II, 16, II, 17, II, 19, II, 20, II, 21); “Jesus, o Pai e o Espírito santo reinam” (LSJ II, 2, II, 3, II, 4, II, 5, II, 6, II, 8, II, 18, II, 22); “o Senhor envia ajuda aos que o temem” (LSJ II, 6).

Nas suas vidas de santos, Berceo referiu-se a Deus como trino, mantendo-sefielàdoutrinadaTrindade, talcomoemVSD535:“ElPadreeelFijoeelEspiramiento, un Dios e tres personas, tres sones, un cimiento, singular en natura, plural en complimiento”. Contudo, também dá destaque aos membros da Trindadeisoladamente.ParacaracterizarafiguradivinadoDeusPai,lançoumãode diversas expressões bíblicas, especialmente as que se encontram presentesno livro bíblico de Salmos. Com efeito,Deus é apresentado como o “Reï degloria” (VSD 1 e 650), “Sennor e Rey complido” (VSM 131c), “Dios nuestro Sennor” (VSD 296d), “Rey de magestad” (VSD 14b), dentre outras que traduzem a idéia de autoridade e poder. O poeta também adotou diversos nomes e títulos tributando-os a Cristo, como “Fijo de la Virgen Gloriosa” (VSM 223a), “don Christo” (VSD 30a), “pan de vida” (VSD 451a).

Dentre as características de Deus, apontadas pelas vidas em estudo, encontra-se a onipotência. O Deus das Vidas berceanas é imbatível, nada o pode deter. Quando Domingo foi anunciar ao cativo Pedro que sua libertação era próxima,declaraque “aDiosno sedefiendennin cárceresnin cuevas” (VSD713c). Igualmente Ele é aquele que governa a natureza (VSD 452); defende a cristandade de todos os perigos e zela pela humanidade (VSD 75); ama aos homens e aceita o seu arrependimento. Nesse sentido, quando o homem está em pecado, Deus lhe envia sinais para conscientizá-lo de seus erros,3 porque ele é o Pastor, o Redentor e o Salvador da humanidade: “el nuestro Redemptor, que fue en cruz sobido a muy grand desonor; non quiso descender maguer era señor, hasta rendió la alma quando El ovo sabor” (VSD 498).

Deus, segundo Berceo, é o único que sabe julgar o interior do homem - “mas el Señor que sabe la voluntad judgar, entendió qué buscava e quísogelo dar” (VSD 607cd) -, sendo também o Mestre perfeito para instruí-lo. Tal como o autor realça em VSD 62, é através do exemplo de Cristo, Deus encarnado, que o

3. Como os sinais que revelaram a ira de Deus em virtude do pagamento, por parte dos cristãos, do tributo das 60 donzelas. VSM 376-394.

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homem aprende a viver corretamente: “El Salvador del mundo, que por nos carne priso, deque fo bateado, quando ayunar quiso, por a nos dar exiemplo al deserto se miso, ende salió el demon, mas fo ent mal repiso”.

Mas as vidas de santos também apresentam Deus com características humanas. Por exemplo, na VSD 425cd, Deus é dotado de sentimentos tipicamente humanos, como a vingança e a vergonha. Há que ressaltar, contudo, que tais sentimentos, segundo Ruffinatto, eram considerados virtudes para a literaturaépica (1992, p. 364, nota 425d).

Ou seja, o Deus retratado por Gonzalo de Berceo, em suas vidas de santos, é cheio de poder e autoridade: governa a natureza, defende e cuida dos homens (sobretudo os cristãos, é claro), está sempre presente e disposto a ensinar.

Dentre os seres espirituais representados nas obras estudadas também estão osanjos.Nãosãomuitososquefiguramnasnarrativas.NoLSJII,inclusive,hádúvidas se uma dada aparição era, de fato, de um anjo. No milagre 6, São Tiago empresta um asno para que um cavaleiro, cuja mulher falecera e fora roubado porummauhospedeiro,pudessechegaratéCompostelacomseusfilhos.Quandoele retorna a sua casa, o asno desaparece. Os autores/redatores então incluem um comentário:“ouoasnoeraverdadeiro,ouumanjoemfiguradeasno”.

Nas Vidas berceanas os anjos recebem mais destaque: são eles que levam as almas dos santos para o céu e cumprem o papel de mensageiros de Deus, aparecendoemsonhosevisões (VSM232,301cd-302ab,VSD522).Oúnicoanjo que é nomeado é Miguel.4 Segundo Ferrando Roig, Miguel “[...] es príncipe de los ángeles, vencedor de Lucifer, protector de la Iglesia e invocado en las tentaciones y en la hora de la muerte” (1991, p. 200). Mas este anjo também éumguerreiro, sendoconsideradooprotetordasoperaçõesbélicas.NaVSD,age como conselheiro. Aparece para uma mulher endemoniada de Peña Alba, ordenando-a a dirigir-se para o túmulo de Santo Domingo para receber libertação (VSD 683-684).

Quanto aos santos, após a morte e ao receberem sua recompensa celeste, acabam por perder as características humanas, tornando-se seres espirituais. Assim, realizam aparições fantásticas. Tais aparições são vistas como manifestaçõesenviadas pelo próprio Deus, ainda que no primeiro momento possam ser recebidas com espanto.

Nos LSJ II e III, como a parte dedicada a apresentar a vida e a morte do Apóstolo é muito pequena e sintética, o Tiago que predomina nesses livros é o santo já reconhecido e coroado no céu (LSJ III, 1, III, 2). No Liber Miraculoram sãonarradasvárias de suas apariçõesmilagrosas, comdiferentes aparências eem variados lugares. Às vezes apresenta-se como cavaleiro (LSJ II, 19), como “soldado a cavalo” (LSJ II, 4),5 em glória, reluzente (LSJ II, 1, II, 6); surgindo das

4. O anjo Miguel é citado na Bíblia em Daniel 10, 13 – 21; 12,1; Apoc. 12, 7; Judas 9. Seu nome significa“QueméDeus?”.5. O Calceatense V descreve Tiago “como caballero en su caballo”.

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profundezas do mar (LSJ II, 7), caminhando sobre as águas (LSJ II, 8), em forma humana(LSJII,9)ouemvisões(LSJII,9).NoLSJII,17,Tiago“pareciajoveme de aspecto gracioso, esbelto e moreno”.6

São Tiago é apresentado com grande poder: as portas de Saragoça abrem em sua honra (LSJ II,1), ele ressuscita mortos (LSJ II, 3), abrevia o tempo utilizado para percorrer dois locais (LSJ II, 4), impede que um jovem seja injustamente enforcado, sustentando-o por mais de 30 dias (LSJ II,5), impede uma decapitação (LSJ II, 20). Ele está sempre pronto a socorrer os que dele precisam, basta ser invocado.

Face aos LSJ II e III, nas Vidas berceanas são poucos os milagres post-mortemnosquaisossantosbiografadosfiguram.Apósamorte,SantoDomingoéenviadoatéumcristão,cativoentremuçulmanos,paradar-lheinstruçõesparaa fuga (VSD 653 - 654). Destaque deve ser dado à VSM, na qual São Tiago aparece milagrosamente ao lado de San Millán, em meio à Batalha de Simancas, acontecimento decisivo para a vitória cristã diante dos muçulmanos (VSM 437 e 447). É bem provável que Berceo conhecesse a fama do Apóstolo Matamouros e oincluinasuaobracomobjetivosbemespecíficos.Vamosnosdeternaanálisedesse episódio, por sua relevância no conjunto deste trabalho.

A Batalha de Simancas, com os acontecimentos que a antecederam, é apresentada na VSM, entre as estrofes 362 a 457, como o quinto milagre realizado por Millán após a sua morte.7 Segundo informa a obra, os muçulmanos oprimiam os cristãos. Deus, indignado pela omissão dos seus, enviou alguns sinais maravilhosos para alertá-los dos erros. Os cristãos, assim, arrependeram-se e se negaram a pagar o tributo imposto pelos muçulmanos que, segundo Berceo, era a entrega de 60 donzelas anualmente, e começaram a preparar-se para a guerra. Em represália, os muçulmanos, liderados por Abderraman, invadiram as terras leonesas. O rei Remiro de Leão,8 então, convocou aliados - Ferrán Gonçálvez, “duc” de Castela, e García, “sennor de pomploneses” - e armou-se para a batalha. Antes do embate militar, porém, o soberano leonês instituiu os votos, ou seja, o pagamento periódico de ofertas a São Tiago. Ferrán Gonçálvez, seguindo o seu exemplo, estabeleceu, para Castela, o pagamento de votos a San Millán. No momento do combate, os santos surgiram para auxiliar os cristãos, que saíram vencedores.

Para compor a narrativa sobre a batalha, Gonzalo de Berceo utilizou

6. Descrição muito semelhante à presente no Calceatense VIII: “Santiago me parecía un joven de hermoso aspecto de ese color intermedio que la gente llama moreno”.7. Segundo os Anales Compostelanos, a batalha de Simancas teria ocorrido no verão de 939, por ocasião de campanhas militares que opuseram os cristãos aos muçulmanos, que incluíram con-frontos em Aza, Hacinas e Toro. Tal como aponta o texto berceano, estiveram envolvidos nesta guerra o califa Abderraman III (912 -961), o rei leonês Remiro II (930? - 951), o conde castelhano Ferrán Gonçálvez (930-970) e o rei García Sanchez I de Navarra (926-970). Cf. Dutton (1978, p. 231-249).8.Obedecemos,nestetexto,asgrafiasdosnomesprópriosutilizadasporGonzalodeBerceo.

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diversas fontes. Entretanto, como sublinha Brian Dutton, “ningún texto conocido contiene todos los detalles tal como se presentan en la obra de Berceo” (1984, p. 231). O poeta, mesmo usando dados presentes em outros escritos, refundiu-os, criando um produto novo, original em muitos aspectos. No momento em que Gonzalo de Berceo redigiu a VSM, em cerca de 1230, o patronato de São Tiago para toda a Espanha já estava estabelecido. O próprio autor o aponta: “[...] al que yaz’ en Gallizia, de España primado” (VSM 422d). Contudo, esse primado não anulava os patronatos locais, fato que, no tocante a Castela, segundo aponta Ruiz Domínguez, ainda não estava totalmente fechado (1999, p. 80). Assim, acreditamosqueopoetapossuíaduaspreocupaçõesfundamentaisaocomportaisestrofes: demonstrar que, de fato e de direito, San Millán era o patrono do reino castelhano e, portanto, digno de receber os votos e de ser colocado no mesmo patamar de glória que São Tiago. Dessa maneira, narrou a instituição dos votos para ambos os santos como ocorridas nas mesmas circunstâncias, bem como a aparição milagrosa de Tiago e Millán, com igual esplendor, em meio à batalha de Simancas.

No seu relato, o autor salientou a associação Leão-Santiago e Castela-Millán. Após narrar a instituição dos votos em Leão, apresentou o ocorrido entre os castelhanos. Para tal, construiu um discurso fictício que atribuiu a FerránGonçálvez, no qual são apresentados os argumentos que deveriam convencer os nobres e os altos dignitários eclesiásticos da eleição de Millán como patrono (VSM 430 a 431abc). Sem questionar o patronato de São Tiago, o autor sublinha as qualidades de Millán como o intercessor que poderia livrar os castelhanos do mal. O objetivo de Gonzalo de Berceo é claro: garantir que os castelhanos entregassem ao Mosteiro de La Cogolla as ofertas que, através do voto, teriam sido estabelecidas no século X. Assim, nas estrofes 462 a 479 são enumeradas as cidades e o que estas deveriam entregar, anualmente, ao santo, destacando que os votosinstituídosporFerránGonçálvezhaviamsidoconfirmadosporRoma(VSM464cd). O poeta ainda acrescenta que, se os votos fossem regularmente enviados, a situação estaria melhor para todos (VSM 479d). Acreditamos que a associação entre patronos e reinos estava ligada às questões políticas contemporâneas àprodução do poema. Em 1230, ano provável de redação da VSM, Castela uniu-se a Leão. Apesar de governados pelo mesmo monarca, Fernando III, cada reino mantevesuasinstituiçõespolíticasseparadas.Dessaforma,mesmoqueopoetatenha composto a VSM após a união, apresentá-los como dois reinos distintos, com diferentes patronos, poderia objetivar a acentuação das suas singularidades ou indicar certa resistência a essa aliança. Os dois reinos, por diversos motivos, possuíam particularidades que só paulatinamente foram sendo superadas, levando-os a uma efetiva integração.

Mas a preocupação fundamental de Gonzalo de Berceo foi, como já destacamos, alçar Millán à mesma categoria de santidade que Tiago, elemento imprescindível para realçar a superioridade da vida monástica tradicional. Nesse

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sentido, apresentou, com alguns detalhes, a aparição milagrosa dos santos em meio à batalha. Segundo a VSM, os cristãos eram em menor número e, portanto, temiam que a derrota estivesse próxima (VSM 436). É nesse instante que “vidieron dues personas fermosas e luzientes,/ mucho eran más blancas qe las nieves rezientes” (VSM 437).

Ao descrever os santos, o autor não os particularizou. Assim, tanto Millán quantoSãoTiagoforamretratadoscomofigurascelestiaisdefacesangélicas,quedesciam do céu montados em cavalos mais brancos que cristal e portando armas nunca vistas por homens, com pressa para atacar, com fúria, os mouros (VSM 438-439). Ou seja, na perspectiva de Berceo, ambos eram guerreiros e “matamouros”. A diferença entre ambos, no relato, só é marcada pelos objetos que traziam, além das próprias espadas. São Tiago carregava, segundo a VSM, um báculo e a mitra pontifical.Millán, a cruz e umcapuz caídonas costas, objetos ligados à vidamonástica.Osdiferentesobjetoslevadospelossantosnãosignificavamquehaviauma hierarquia entre eles. Segundo a tradição, Millán fora eremita e São Tiago apóstolo, assim, é possível inferir que, ao selecionar tais complementos, o autor nãosóse inspirounabiografiadecadaumpararepresentá-los,comotambémprocurou vinculá-los, simbolicamente, às duas ordens da Igreja: a secular e a regular.

Ao incluir a Batalha de Simancas como um dos milagres efetuados por Millán,GonzalodeBerceoqueriaafirmaropatronatodo santo sobreCastela,motivandoejustificandoasdoaçõesaomosteiroemilianense.Porém,nãopôdeignorar o fato de que as peregrinações aCompostela atraíam a grandemassade peregrinos das mais diversas regiões e que São Tiago era um dos santosmais venerados da Península Ibérica, inclusive em La Rioja.9 Nesse sentido, não ignorou a fama deste último; mas, realçando a tradição, colocou-o, com destaque, ao lado do santo que desejava engrandecer, unindo-os em um mesmo fato histórico. Parece que o poeta buscou, ainda que sutilmente, apontar que uma peregrinação até a Galiza não poderia prescindir de uma visita ao mosteiro de la Cogolla, já que Millán e Tiago, juntos, livraram os hispano-cristãos dos mouros.

MariatambémfiguranoLSJII,nomilagre17.Elaéajuízanojulgamentopela posse da alma de Geraldo, apresentando-se cercada por pessoas ilustres e importantes. É descrita como formosa: “não era alta, mas de estatura mediena, de belíssimo semblante, de aspecto deleitável”.10 Gonzalo de Berceo dedicou três poemasaMaria,masnasVSMeVSDelasófiguraemexpressões,nãocomopersonagem ativo.

O diabo e os demônios também estão presentes nas obras estudadas.SegundoMuchembled,afiguradeSatãganhaforçanosséculosfinaisdaIdadeMédia: “elementos heterogêneos da imagem demoníaca existiam há muito, mas

9. Sobre o culto a São Tiago em La Rioja ver Gil Del Rio (1982); Ortiz de Elguea (1971); Lecuona (1952); Martín Ansón (1994).10.EssadescriçãonãofiguranoCalceatenseVIII.

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é somente por volta do século XII, ou do século XIII, que eles vêm a assumir um lugardecisivonasrepresentaçõesenaspráticas”(2001,p.18).

NosLSJIIeIIIodiaboeosdemôniossefazempresentes,aindaquesemgrande destaque; mas são sempre derrotados por Tiago ou pelo próprio Deus. Em LSJ II, 14, ele instiga um homem a roubar e encarcerar um mercador. No milagre 16, eles impedem um outro, que está à morte, de falar e, portanto, de confessar seus pecados. No 17, o diabo engana Geraldo, fazendo-se passar pelo próprio Apóstolo,edepois,osdemônioslutampelaalmadessejovem,quesesuicidaraporaceitar os conselhos do falso Tiago. No LSJ III, 1, ele é associado ao paganismo. O rei de Dúgio é levado a perseguir os discípulos de Tiago por inspiração do diaboe,aoserretratadosemelhanteaum“leãorugidor”,éidentificadoaele.Oleão que ruge é uma imagem associada na Carta de Pedro ao diabo, que “anda ao derredor, rugindo como leão, e procurando a quem possa tragar” (I Pe. 5,8). Outro elemento associado ao diabo está presente em LSJ II, 22, III, 1: é o dragão, sobre o qual tratamos no capítulo anterior.

Nas Vidas berceanas, contudo, entre todos os seres espirituais representados, odiaboeosdemôniossãoosque recebemmaiordestaque.11 A caracterização dessas personagens é muito mais rica e completa se comparada ao dos seres sobrenaturais“dobem”.Semdúvida,opoetaqueria fazerdosdemôniosseresconhecidos.

Como ocorre em relação a Deus, também o diabo é denominado com vários títulos, alguns provenientes do texto bíblico: “satán” (VSD 334cd),12 “Belzebup” (VSM 111a, 174b),13 “lobo maleíto” (VSD 123c), “bestia” (VSM 52a, 112a, 118a, 119c, VSD 680a), “can traydor” (VSD 768d), “draco” (VSD 333cd), dentre outros.Porém,enquantoasexpressõesusadasparaDeusprocuravamressaltarseu poder, no caso do diabo o objetivo era sublinhar traços negativos.

Gonzalo, provavelmente por motivos didáticos, destacou na VSM 100cd, ao relatar o episódio que culminou com o retorno de Millán ao ermo, após ter atuado como clérigo na paróquia de Berceo, que a inveja foi a causa da queda do diabo, pois este, segundo a teologia cristã, fora um anjo de luz. O diabo, além de invejoso, é falso. Sempre procura interpretar os acontecimentos dando uma nova versão, maldosa e comprometedora, para os fatos. É o que faz no episódio da volta de Millán ao ermo, acontecimento citado no parágrafo anterior. Nesse sentido,odiaboacusaosantodeserfracoeinconstanteemsuasdecisõeseatos(VSM 113-116). Digna de nota é esta percepção do poeta: a interpretação dos acontecimentos nunca é neutra ou ingênua. Assim, a obediência do eremita ao

11. Garcia de la Fuente adverte que Gonzalo de Berceo utiliza os termos diablo e demonio/démon sem qualquer distinção em suas obras (1991, p. 131).12. Satán significaadversárioemhebreu,comoemLc.10,18;Rom.16,20;Zac.3,1-2,etc.Cf.Garcia de la Fuente (1991, p. 330).13. Em hebreu, Belzebud ou Belzebupsignifica“Senhordasmoscas”.NoNovoTestamentootermoéequiparadoademônio:Lc.11,15;Mt.10,25,12,24-27;Mc.3,22,dentreoutros(GARCIADELA FUENTE, 1991, p. 74).

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bispo Dímio, que desejava vê-lo ordenado clérigo, e, posteriormente, sua volta aoermo,paraonarradordaVSMsãodemonstraçõesdeumavidasantificada,enquanto para o diabo são sinais de inconstância.

O objetivo principal do diabo, segundo a VSM e a VSD, é embaraçar a vida dos cristãos, por isso está sempre à espreita. Utilizando-se do vocabulário das batalhas, Gonzalo de Berceo alertou, na VSM 52-53, que Satanás era um perigo constante e iminente, pronto para atacar a qualquer momento, como o leão da Carta de Pedro. Assim, como nos LSJ II e III, nas Vidas berceanas o diabo instiga as pessoas a pecarem, como fez com o rei Garcia de Nájera (VSD 164), e a dizer e fazer loucuras (VSM 158). Nessas obras, Satanás não deixa escapar qualquer detalhe, e uma de suas características é ser acusador. Assim, o diabo acusouMillándemanterrelaçõesimpurascomsuasdiscípulas(VSM263-264).Todos estão sujeitos às artimanhas do diabo. Nem os crismados livram-se dele. Entre os endemoniados há, inclusive, clérigos ordenados pelo bispo. Tal como relataaVSM157,Satanástambémcriticaosfiéisetentaamedrontá-los,comofez com Oria (VSD 327).

Paraassustar,intimidareafastarosfiéis,osdemôniospodematéatacareferirfisicamente,como,segundoaVSM196,fizeramcomMillán,quandoesteosexpulsou da casa de Onório. Mas o diabo das Vidas berceanas também tem outra face: é brincalhão e busca atrair as pessoas oferecendo sua amizade. Desta forma agiu com o próprio Onório (VSM 183) e com Millán (VSM 118).

O diabo, nas vidas de santos berceanas, está, na maioria dos versos em que figura,associadoàsujeira.Oautorchegaareferir-seaodiabocomaexpressãosuzio malo (VSD 698c). No relato da VSM 182-183, quando os demôniostomaram a casa de Onorio, encheram-na de imundícies, impregnando-a com mau cheiro.Osdemôniospossuembarbas,podemtomarformahumanaoudeanimais(VSM 112) e até conversarem com as pessoas (VSD 328). Para obter o domínio eopoder,organizam-seà imitaçãodasinstituiçõeshumanas.SegundoaVSM203,paradiscutircomofazermaioresmalvadezas,osdemôniossereuniramemum concílio.

Porém, apesar de todas as armadilhas e truques, os demônios nuncavencem a batalha. A vitória é sempre de Deus, como registra a VSM 111. Longe de defender uma postura maniqueísta, mas também sem negar a astúcia do diabo, as vidas de santos berceanas indicam a superioridade do poder divino (VSD 768-769).Asarmaseficazescontraodiabo,segundoasvidasemestudo,são,portanto,tudo o que aproxima o homem de Deus: a fé, a missa, a oração, a água benta, os jejuns e a cruz (VSM 120, 160, 170, 191).

Ao mesmo tempo que as vidas de santos berceanas apontam para o quanto o diabo poderia ser astuto e mau, também o ridicularizam. Por exemplo, quando os demôniostentaramtramarcontraavidadeMillán,colocandofogoemseucorpoenquanto ele dormia, acabaram atrapalhando-se e queimando as suas próprias barbas (VSM 216). Quando representou o diabo, Gonzalo de Berceo desprezou a

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pedagogiadomedoelançoumãodohumortípicodasobrashagiográficas.Nessesentido,odemônioberceanolembramuitomaisumacriançatravessadoqueumser quase imbatível. Não é feita, tampouco, uma associação entre o satã e o judeu, ouaosexo,ouaindaàheresia,jápresenteemoutrasregiõesdaEuropaOcidental.O poeta parecia não partilhar do crescente medo do diabo que se expandia pela Europa a partir do século XIII.

Porfim,gostaríamosdedestacarqueadespeitodeseucarátersobrenatural,os personagens que povoam o céu ou o inferno e são invisíveis à maioria dos homens possuem, nessas obras, uma dimensão corporal. Ou seja, são, na maioria das vezes, descritos com características humanas.

5.2. Os homens piedosos

NoLSJfiguramvárioshomenspiedosos:opreladoqueaoviajarcantavaos Salmos e que, após ser salvo peloApóstolo, compôs uma liturgia em suahomenagem (LSJ II, 9); Estevão, que renunciou a seu posto de bispo e foi viver como penitente em uma espécie de cela próxima à basílica de Compostela (LSJ II, 19); os peregrinos que auxiliaram uma mulher e um mendigo (LSJ II, 16); e os discípulos palestinos e galegos de Tiago (LSJ III, prólogo).

De todos os homens piedosos, o que recebe maior destaque é o protagonista daobra.Aindaquenãoincluanarraçõesmuitolongas,osLSJIIeIIIdestacamdiversas virtudes de Tiago: era um dos discípulos mais próximos de Cristo; presenciouoepisódiodatransfiguração;eraumpregadoreloqüente;dedicou-seàpregação da fé cristã em terras distantes; realizou milagres em vida; ao ser testado por saduceus e fariseus sobre a pessoa de Jesus, respondeu de forma admirável; foioprimeiroapóstoloasofreromartíriopormanter-sefielaoCristianismo,nomesmo dia da semana e horário que seu Mestre.

As vidas de santos berceanas também apresentam outros homens piedosos, alémdossantosprotagonistas.Elessãoidentificadosporexpressõescomo“varónbenedicto” (VSM 15b), “omne sabio, amador de bondad” (VSM 72d), “muy valiado” (VSM 395b), “un perfecto Christiano” (VSD 191a), “muy precioso” (VSD 268b).

Gonzalo de Berceo não seguiu um único padrão para julgar a espiritualidade de suas personagens. Ao mesmo tempo que louvou o ideal da vida eremítica, reconheceu a piedade vivida em meio ao saeculum e não fez distinção entre clérigos e leigos. Em uma sociedade voltada para a Reconquista, viver como bom cristão não se limitava a uma vida de contemplação, mas também de ação. Como ressalta Genicot, “[...] la religiosidad [hispana] es profundamente combativa, sintiendo perentoriamente clavada la necesidad de recuperar las tierras y el poderío a la sazónenpoderdelosinfieles[...]Laluchaesunacontinuaafirmacióndesufé”(1959, p. 138-139). Assim, são reconhecidos como homens piedosos aqueles que

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viveram uma vida de renúncia total ao mundo, como os eremitas (VSD 55-63); foram reconhecidos como santos pela tradição cristã (VSD 26-30 e 55-63); ou que de alguma forma favoreceram a Igreja (VSM 154, 191, 412-414, VSD 130).

Diante de tantos homens valiosos apresentados nas Vidas berceanas, destacamos a forma como os protagonistas são representados, já que eles são o parâmetro da santidade a ser alcançada. Faz-se importante destacar que os elementos que caracterizam os dois santos biografados, em suas respectivas vidas, são comuns.14

A primeira característica dos santos berceanos é a tendência à santidade revelada ainda bem cedo. São obedientes aos pais (VSM 5c, 8b, VSD 19c), cumpremsuasobrigações (VSD19,VSM60), e,desdemeninos, sãoguiadospor Deus (VSM 11, VSD 14-15). Vejamos como Gonzalo de Berceo apresentou a infância de Domingo, por exemplo. Após ter indicado o propósito de sua obra e apresentado os pais do santo, ele passou a enumerar-lhe as virtudes. Ainda bem jovem, antes mesmo de ter sido ordenado clérigo, serviu aos seus pais com boa vontade e humildade. Era tão correto que chegou a impressionar os vizinhos. Este dado é ressaltado na obra em VSD 10 e 11. Segundo a VSD 11ab, Domingo não se interessava por jogos, nem prestava atenção à sua prática, como seria comum a um menino. Tampouco era avarento, pois “el pan que [...] li davan los parientes [...] partiélo con los moços” (VSD 13 ac). Procurava evitar os risos (VSD11ab),falarouestaratentoacoisaspoucoedificantes(VSD12).Aobradá uma explicação para vida tão correta: Domingo era guiado por Deus (VSD 14-15).

Os santos berceanos também possuíam um grande desejo pelo conhecimento. A disposição para servir a Deus não lhes bastava: era necessário aprender a doutrina. Desta forma, Millán, ao desejar tornar-se eremita, procurou um mestre, Felices, para iniciá-lo nos ensinamentos espirituais (VSM 13). O interesse por aprender também foi manifestado por Domingo, que não se limitou a ouvir as lições,masrecordava-assempre,paranãoasperderdamemória(VSD16ab).

A humildade, o desejo de servir a Deus com todo o seu ser, a compaixão e a disposição para ajudar a qualquer necessitado são outras qualidades demonstradas pelos santos berceanos. Assim, as Vidas berceanas não economizam adjetivos e expressõesqueressaltamasqualidadesdeseusprotagonistas.

Segundo a VSM e a VSD, os santos sabiam reconhecer as fraquezas humanas e perdoar os pecadores. Como homens de Deus, possuíam uma justiça diferente da dos homens. Por exemplo, quando a horta do mosteiro de Silos foi todarevolvidaporladrõesembuscadealimento,osanto,aoinvésdecastigá-los e prendê-los, ofereceu-lhes alimento e pagamento pelo serviço de preparar a

15. García de la Borbolla, que estudou o tema da santidade em Gonzalo de Berceo, destaca que esseautor“semantieneaúnbajo la influenciade losmodeloshagiográficosestabelecidos”esó“tímidamentepodríanencuadrarsedentrodelosnuovosesquemashagiográficos”(GARCÍADELA BORBOLLA, 1997, p. 174, 177).

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terra para o cultivo (VSD 377 e 379). Contudo, ainda que compassivos, os santos também sabiam agir com autoridade e energia. É o que fez Millán, por exemplo, ao repreender seu claviculário por não ter o que oferecer aos famintos que os procuravam (VSM 254-255).

Os santos berceanos também são apresentados como trabalhadores. O interessante é perceber que Gonzalo de Berceo, apesar de sua possível formação universitária, que, segundo Le Goff, não soube dar lugar ou valorizar o trabalho manual (1984b, p. 109-111), acabou por realçar essa atividade. Não só comparou osofrimentodossantoscomodeumobreiro,dignificando-o(VSM32),comotambém os retratou trabalhando (VSD 107).

Os santos biografados também fazem profecias. Millán anunciou o ataque de Leovigildo à Cantábria (VSM 281) e Domingo previu a sua fama futura como santo (VSD 284). Contudo, a oração é o elemento que mais distingue os santos berceanos.Perantequalquerdificuldade,sejapessoaloudosqueosprocuravam,os santos clamavam por ajuda a Deus (VSM 151, VSD 345).

Gonzalo de Berceo não se limitou a retratar o interior dos santos, mas também a aparência exterior e os gestos. Assim, o aspecto de Domingo assemelhava-se ao deumsersobrenatural:“DiolitamañagraciaelReïcelestialqueyanonsemejavacreaturamortal,masoángelocosaqueeraspirital,equebiviéconellosenfiguracarnal” (VSD 120). A renúncia de Millán ao mundo também foi revelada por sua aparência, barba e cabelo muito longos (VSM 78), após permanecer quarenta anos no deserto.

Os santos eram homens guiados por Deus, que zelava por sua segurança física, não permitindo que lhes fosse feito qualquer mal. Assim, Millán saiu ileso daarmadilhacriadapelosdemônios,queplanejavamqueimá-loenquantodormia(VSM 212-223); e Domingo não foi ferido, apesar das muitas ameaças do rei Garcia de Nájera (VSD 159).

Por suas virtudes e atos milagrosos, os santos berceanos alcançaram fama terrena e acabaram sendo procurados por pessoas de diversas partes da Península Ibérica. Foram também reconhecidos pelas autoridades eclesiásticas, que atestaram sua espiritualidade e os elevaram às maiores dignidades clericais. Assim, a fama de Millán expandiu-se, chegando aos ouvidos do bispo de Tarazona, que o ordenou clérigo (VSM 41). Domingo, mesmo tendo sido exilado, encontrou reconhecimento por parte do rei Fernando I e das demais autoridades leigas e eclesiásticas do Reino de Castela, chegando a ser escolhido como abade do mosteiro de Silos (VSD 206).

Taissantos,sereshumanos,viveramconflitospessoais,tiveramdúvidasesentirammedo,porémmantiveram-sefirmesemseucompromissocomDeus(VSD 490). Ou seja, Gonzalo de Berceo não recriou seus santos apresentando-os como super-homens, mas como pessoas que, apesar de serem como as outras, optaram por viver mais próximas de Deus. Longe de serem modelos inatingíveis, os santos berceanos ensinamaosfiéis como lidar comas dificuldadesdodia-

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a-dia, a partir de suas próprias experiências, narradas nas suas vidas. Eles são imitáveis.

5.3. Os pecadores

OsLSJIIeIIIapresentampecadores.Sãoqualificadoscomopecadoresosque foram desleais, como os peregrinos que abandonam os seus companheiros de viagemquandoestesficamdoentes(LSJII,4,II,17);oqueprometeuvisitarotúmulo do santo, mas não cumpriu a promessa (LSJ II, 9); o que fornicou antes de sair em peregrinação (LSJ II, 17); o mercador desonesto (LSJ II, 14), e os hospedeiros iníquos (LSJ II, 5, II, 6). Ou seja, os pecadores presentes nesses relatos não se comportaram corretamente em relação a São Tiago, em especial no tocante à peregrinação para a cidade de Compostela, onde pela tradição o Apóstolo estava sepultado: não foram capazes de apoiar os seus amigos mais fracos e doentes nas viagens; nãofizeram a peregrinação, ainda que tivessemsecomprometidoarealizá-la;partiramemviagemsemestarempurificados;ouprejudicaram, com sua ganância, os peregrinos.

Dentre os pecadores destacam-se os hoteleiros. Dois dos milagres incluídos noLSJIItêmcomopersonagenshospedeiros,eessasnarraçõesfuncionamcomouma espécie de prelúdio para ensinamentos de caráter moral. As hospedarias, em razãodocrescimentodasperegrinações,eramencontradasemdiversospontosdas vias que conduziam a Compostela. Seu bom funcionamento garantia, ainda que parcialmente, o sucesso dessas viagens, bem como indiretamente motivavam outras pessoas a se colocarem a caminho da Galiza. Assim, em ambos os milagres, os hospedeiros são mortos como castigo por seus pecados e são adicionadas advertênciassobreamatéria.Omilagre5finalizadestacandoaimportânciadenão cometer fraudes, ou qualquer ato parecido, que venha a prejudicar peregrinos. O milagre seguinte ainda vai além. Nele, o próprio Tiago condena os pecadores: “todos os hoteleiros desonestos estabelecidos em meu caminho, que ficaminiquamente com os bens de seus hóspedes vivos ou mortos, bens que devem ser dados às igrejas e aos necessitados em sufrágio dos defuntos, serão condenados para sempre” (LSJ II, 6). Vale ainda destacar que tais pecadores não erraram instigados pelo diabo, mas por motivação própria.

No Calceatense II, que apresenta o mesmo milagre narrado em LSJ II, 5, não foram incluídas advertências aos hoteleiros, mas aos próprios viajantes. O texto exorta: “con este ejemplo se dice que cada uno ha de guardarse de todo tipo deengaño”.Podemosinferir,portanto,queasrepreensõesaoshospedeirossejamum traço particular do LSJ II. Como explicá-lo?

Essapreocupaçãoemadmoestaroshoteleiros,específicadoLSJII,podeestar relacionada às normas elaboradas no Concílio de Latrão I e nos próprios sínodos compostelanos. O cânone lateranense XIV instituiu castigos para os que

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ferissem ou roubassem peregrinos e, segundo a HC, sob o governo de Diego Gelmirez legislou-se sobre a proteção física e material de mercadores e peregrinos (HC 96, 22-23). A adversão, portanto, visava reforçar e divulgar essas normas.

Nos LSJ II e III os pecados são castigados, seja com a doença (LSJ II,9) ou com a própria morte (LSJ II,5, II, 6). Até a esterilidade é considerada como resultante do pecado (LSJ II, 3). Mas a obra também destaca a possibilidade de se obter o perdão e a misericórdia divina, sempre alcançada através de São Tiago. Essa possibilidade de remissão dos pecados é realçada no milagre 2. Nele conta-se a história de um italiano que, após confessar um terrível pecado ao seu pároco, dirige-se, por recomendação deste, a Compostela, para ali implorar por perdão. O pecado é escrito em uma carta e, como é considerado tão horrível, sequer é mencionado. Trata-se, certamente, de um recurso literário que deixa em aberto o conteúdodacartaparasuscitaraidentificaçãocomopecador,nãocomopecadoem si. Segundo o relato, “chegou a Santiago na Galiza, e sobre seu venerado antealtar, arrependendo-se de haver cometido falta tão grave e pedindo perdão a Deus e ao Apóstolo com soluços e lágrimas, no dia de São Tiago, ou seja, vinte e cinco de julho, à primeira hora, colocou o manuscrito com a sua acusação no local indicado” (LSJ II, 2). No dia seguinte, a carta estava em branco, como sinal do perdão alcançado.15

Na VSM e na VSD, muitos são os pecadores e diferentes os pecados. Não há um grupo especial de pecadores, pois todos podem pecar. Entre os pecadores há clérigos (VSD 167, VSM 100-101), reis (VSD 127-131), cavaleiros (VSM 284), mulheres (VSD 557-570), pobres (VSM 241-2) e peregrinos (VSD 480). Os pecados também são variados: inveja, ira, ambição, cobiça, roubo, falta de fé e o não cumprimento dos mandamentos da Igreja.

Nosermãofictícioque,segundoaVSD,DomingoteriaproferidonoMonteRúbio,16 há uma exortação alertando quanto a diversos pecados, como o ódio, as práticas mágicas, a fornicação e a mentira. Na redação dessas estrofes, Gonzalo deBerceo, provavelmente, inspirou-se emmuitos sermõesque, comoclérigo,proferira para seus próprios paroquianos, baseando-se em sua experiência como confessor.

Mas essas obras não só alertam quanto ao perigo do pecado, como também traçam uma espécie de teologia sobre a transgressão. Segundo as vidas de santos berceanas, o pecado pode ter naturezas diversas. Pode ser um ato, uma palavra ou até um sentimento (VSD 770ab). Como já sublinhamos anteriormente, ainda segundo essas obras, o diabo instiga os homens a pecar (VSD 152b). Contudo, se

16. No Calceatense IV o pecador é um presbítero, e o papel de Tiago no perdão do pecado não é tão enfatizado.17. Todo o conteúdo desse sermão, narrado nas coplas 463-475, é uma adição de Berceo. Em VDS, I, XX, 1-4, encontramos somente: “[...] un día el hombre de Dios, Domingo, salió del monasterio, yendo al pueblo que la gente llama Monte Rubio. Una vez allí sentóse ante la iglesia de Santa María, siempre Virgen, y comenzó a instruir al pueblo, que a raudales llegaba hasta él, acerca del reino de Dios”.

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cabe ao diabo instigar, cometer o pecado é responsabilidade humana. O pecado também é apontado, nos poemas berceanos, como uma das origens da dor. Nesse sentido, muitos, por terem cometido pecados, sofrem com as conseqüências dos seus atos, como no caso da mulher de Palência, que adoeceu por não ter ido assistir à missa (VSD 557ab).

Paraopecadorhásempreumasaída.Detodosostransgressoresquedesfilampelas Vidas berceanas, só um não alcança perdão: Abundâncio, o cavaleiro da Cantábria que duvidou e ridicularizou das profecias de Millán que anunciavam um ataque de Leovigildo na região. O cavaleiro morreu em batalha, sem arrepender-se e confessar-se (VSM 284, 289, 291). As Vidas berceanas, portanto, ressaltam, emdiversospontos,queaconfissãoeapenitênciasãocanaissempredisponíveispara o pecador alcançar o perdão e livrar-se da perdição eterna. No sermão de Monte Rúbio, Domingo ressalta que é com um clérigo ordenado que este ato de contrição deve ser realizado (VSD 466).

Assim, mais do que enfatizar o poder do pecado e a falta de esperança do pecador, as vidas de santos berceanas destacam a oportunidade da redenção. ComoressaltaEnricaArdemagni,GonzalodeBerceo,aotratardaconfissãoedapenitência, procurou demonstrar que esse era o ponto de partida para ser um bom cristão (1990, p. 314). Como clérigo comprometido com a pastoral e a Reforma Papal, fez, através dessas obras, a divulgação do cânone 21 do IV Concílio de Latrão:

Todofiel,deunoyoutrosexo,unavezllegadoalusodarazón,debe confesar sinceramente todos sus pecados por sí mismo a seu párroco, al menos una vez al año, cumplir con esmero en la medida de sus posibilidades la penitencia que le hubiera sido impuesta y recibir con respecto, al menos por pascua, el sacramento de la eucaristía, a no ser que por consejo de su párroco, por una razón válida, juzgue que debe abstenerse del mismo temporalmente. De no ser así que sea apartado de por vida ab ingressu ecclesiae y que después de muerto le sea negada la sepultura cristiana [...]. (LATERANENSE IV, 1973, p. 174)

O cânone acima demonstra a atenção que a Igreja romana passou a dedicar aosleigoseàsatribuiçõespastoraisdosclérigos,responsáveisporacompanharo fiel,17 especialmente a partir do séculoXIII.Com a confissão dos pecadose a penitência, a Igreja se fazia presente na vida dos fiéis. Segundo o sínodocalagurritano de 1240, esse cânone também era conhecido e divulgado na diocese de Calahorra, onde o poeta atuou como clérigo. Nos cânones dessa assembléia encontram-seváriasrecomendaçõesafimdequeaconfissãoeapenitênciase

18. O maior interesse pela religiosidade e espiritualidade dos leigos deve ser entendido à luz das concepçõespolíticas sustentadaspelopapadonesseperíodo. Jáqueopoder espiritual eravistocomosuperior,cabiaàIgrejaozeloeaassistênciaaosfiéis.

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OS PERSONAGENS

tornassem uma prática:

En el nombre de Dios, mandamos que ninguno non dé penitencias, si non aquel que fuere puesto por nuestra mano, o por nuestro mandamiento. Mandamos, sopena de excomunión, que ninguno de los penitenciarios non sea concubinario, a esto mandamos de la constitución del Legado; e aquel que la tuviere paladinamente, quepierdalamaestría,eelbeneficiodelaeglesia.Emandámosles,quevengan, a lo menos tres vegadas, en el año a penitencia, por las tres pascuas. E mandámosles, que constrigan a todos los parroquianos, a clérigos e a legos, que vengan a penitencia una vegada en el año.18

Nasuabuscapelofiel,aIgrejaRomanadefiniuasrelaçõeseobrigaçõesdosseus seguidores. Como ressalta Moore, com o cânone 21 do IV Concílio de Latrão, aIgrejaestabeleceuascondiçõesparatornar-separticipantedacomunidadecristã(1989,p.15).AconfissãopassouaserumeloimportanteentreaIgrejaeofiel,sendo obrigatória anualmente.

Gonzalo de Berceo procurou, justamente, divulgar a importância da confissãonavidadocristão,estimulando-o,assim,apraticarasleiseclesiásticas.Em suas obras, o pecador não é apresentado como um condenado ao inferno, mas como alguém que cometeu um erro, seja em forma de ação, palavra ou pensamento. O erro pode, inclusive, ter sido instigado pelo diabo. Mas ao confessá-lo a um clérigo e fazer penitência, pode livrar-se de sua transgressão. Como salienta Jean Delumeau, “fazer confessar o pecador para que ele receba do padre o perdão divino e saia confortado: tal foi a ambição da Igreja [...]” (1991, p. 11). Como clérigo eMestre deConfissão, essa também foi a aspiração deGonzalo de Berceo.

5.4. Os reis

Nos séculos XII e XIII os reinos ibéricos se expandiam e organizavam-se, nãosemconflitosunscomosoutroseemlutacontraosmuçulmanos.Arealezaera um fato que as obras em estudo não ignoraram. Assim, são feitas referências aos soberanos.

NoLSJnãohámuitasalusõesaosreis.Nosmilagres,algunssãomencionadosunicamente como referências temporais, como já assinalado no capítulo anterior. No LSJ III, contudo, dois recebem destaque: o rei de Dúgio e Afonso. Eles são caracterizados de forma oposta. O primeiro era pagão, mau, associado ao diabo, queria prejudicar os discípulos de Tiago e, como recompensa, foi morto, como

19. Cânones 1 a 4. Cf. Bujanda (1946, p. 122).

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o Faraó que perseguia os hebreus em sua fuga do Egito, segundo o texto bíblico (LSJ III, 1). O segundo honrou o Apóstolo com uma festa. Caracterizando-o como imperador hispano e digno de boa memória, a obra destaca que ele ordenou a celebração da festa entre os galegos antes mesmo que o prelado compostelano ofizesse.AnarrativaacentuatodososgestosfeitospelomonarcaparahonraroSanto:

solía ovrecer durante la misa […] sobre el venerado altar del Apóstol, doce marcas de plata y otros tantos talentos de oro, en honor de los doce apóstoles; y además solía dar a sus caballeros las pagas y las recompensas, y vestirlos con trajes y capas de seda; armaba caballeros a los escuderos, presentaba a los nuevos caballeros y convidaba a todos […] con diversos manjares, y no cerraba a pobre alguno las puertas de su palacio […] El, pues, revestido con los atributos reales, rodeado por los escuadrones de caballeros y por los diferentes órdenes de adalides y condes, marchaba en este día en procesión alrededor de la basilica de Santiagoconelceremonialrealdelasfiestas…Ladiademadeoro,conla que el potentísimo rey se coronaba para honra del Apóstol, estaba decoradaconflores esmaltadasy laboresnieladas, con todaclasedepiedras preciosas y con lucidísimas imágenes de animales y aves. (LSJ III, 1)

O objetivo principal era, através da descrição do rei e do cerimonial seguido duranteafesta,realçarafiguradeTiagoedaSédeCompostela,demonstrandoaharmonia entre os poderes. Dessa maneira, o critério para considerar um monarca como bom ou mau na obra é a honra que este dedicou ao Apóstolo: o rei de Dúgio não oferece nem um lugar para servir de sepultura ao Apóstolo; Afonso celebra-lhe o traslado.

Nas vidas de santos berceanas, ao contrário, são mencionados muitos reis: Remiro II de Leão (VSM 412a), Garcia Sanchéz I de Navarra (VSM 414 b), Fernán Gonzalez,19 Sancho III (VSD 127b), Fernando I (VSD 130 ab), Alfonso VI (VSD 733c), dentre outros. A caracterização desse grupo de personagens encontra-se intimamente relacionada à postura que tais soberanos tomaram diante da Igreja e, em especial, do mosteiro emilianense. Remiro, que instituiu os votos de São Tiago,eFernandoI,que,dentreoutrasações,acolheuDomingo,sãolouvados;Garcia de Nájera, que tentou usurpar bens do mosteiro emilianense, é criticado.

Todavia, as referências aos reis nas Vidas berceanas retratam mais do que sua relação com a Igreja. Outros aspectos da realeza ibérica são reconstruídos no decorrer da narrativa. Destacamos os mais representativos.

Ossoberanosquefiguramnessasobrassãobonsguerreiros.Nãofogemda

20. Fernán Gonzalez não foi rei de Castela, mas o incluímos neste item porque Gonzalo de Berceo o trata como tal. Cf. VSM 416a.

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OS PERSONAGENS

luta e são sempre vitoriosos, como o foram Remiro de Leão e Fernán Gonzalez em Simancas (VSM 418, VSM 426). Também são apresentados como os guias do povo, que se preocupam com o bem estar do reino, incluindo aí a Igreja. Dentre as prerrogativas reais que constam nessas obras, como é possível inferir pelo embate entre o rei Garcia de Nájera e Domingo, estão a cobrança de impostos e o poder de legislar e castigar os que se rebelam contra o poder do soberano (VSD 141, 144, 146).

Os monarcas possuem grande autoridade, inclusive frente ao infiel.Submetem os mouros ao seu domínio e recebem destes o reconhecimento de seu poder (VSD 734-735ab). O rei está, nas Vidas em estudo, acima dos poderes locais, sejam cidades ou senhores. Assim, quando os cavaleiros de Fita saquearam Guadalajara, por iniciativa própria, Alfonso VI mandou que o concelho da cidade lhe enviasse os que lhe desobedeceram (VSD 741-742). Outro indício do respeito tributado à autoridade real na obra berceana encontra-se em VSD 505-506. Nestas estrofes, quando Domingo anuncia a visita do rei e da rainha a Silos, os monges sentem-se orgulhosos e começam a fazer preparativos.

Os reis foram retratados por Gonzalo de Berceo, portanto, como homens fortes,legitimados,quelutamcontraosinfiéis,mantêmaordemesãotemidoseamados por seus súditos. Sobretudo, as Vidas berceanas reconhecem a autoridade dos monarcas. Mesmo na VSD, na qual se reconstrói o possível diálogo entre Garcia e Domingo, quando este último recusa-se a entregar bens do mosteiro emilianenseaosoberano,osanto,apesardefirmeechegandoinclusiveacriticaro monarca, em nenhum momento questiona a sua autoridade (VSD 136, 137, 139).

Se a representação do poder real nessas obras revela, por um lado, o reconhecimento da autoridade e dos poderes reais, por outro, reserva-se o direito de criticar certas atitudes que vão de encontro aos interesses eclesiásticos ou, ainda, ressalta o consentimento eclesiástico frente às iniciativas dos soberanos. Assim, quando o poeta informou que Domingo fora escolhido pelo monarca castelhano para ser o novo abade de Silos, também sublinhou que a eleição fora sancionada pelo bispo (VSD 209 e 211). Quando apresenta a instituição dos votos a São Tiago e San Millán, por iniciativa de Remiro e do conde Fernán Gonzalez, a VSM salienta que tais privilégios foram reconhecidos por Roma (VSM 464). Quanto a Garcia de Nájera, que segundo a VSD lutou contra os muçulmanos e reconquistou Calahorra, por ter cobiçado os bens do Mosteiro de San Millán acabou recebendo um tratamento negativo. Como ressalta Ruiz Dominguez, “se le fabricauncarater,queno tienenadadeventajosoparaelmonarca” (RUIZDOMINGUEZ,1988,p.626).

Assim,asvidasdesantosdeGonzalodeBerceoharmonizamafidelidadeaosreiscomafidelidadeàIgreja.Poroutrolado,representamossoberanosàluzdas particularidades culturais ibéricas, sem portar traços mágicos. Os monarcas berceanos têm a autoridade reconhecida por seus atos humanos, que visam o bem

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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comum, e gozam de legitimidade.

5.5. Os pobres

Emumestudoclássicosobreapobrezanomedievo,Mollatdefinedeformaampla o termo pobre: “aquele que, de modo permanente ou temporário, encontra-se em situação de debilidade, dependência e humilhação, caracterizada pela privação dos meios, variáveis segundo as épocas e as sociedades, que garantem força e consideração social” (1989, p. 5). Segundo o autor, durante o Medievo a idéia tradicional de pobre foi ganhando nuances e ambigüidades (1989, p. 3). Tradicionalmente, tal como já presente no Antigo Testamento, eram considerados pobres os órfãos, as viúvas, os doentes, os encarcerados e os viajantes. Desde o início do Cristianismo, buscou-se auxiliar esses tipos, considerados necessitados. Foi no século IX que a pobreza tornou-se tema de debates teológicos, acentuada nosséculosseguintesemfunção,sobretudo,dedoisfenômenos:aestruturaçãodaIgrejaocidentalsobaliderançadeRomaeocrescimentodemográfico,urbanoeeconômico.Assim,foramseconstituindodiversasperspectivassobreapobreza,tornando o pobre uma figura ambígua: o pobre voluntário, o pobre herege, opobre involuntário, etc.

Nos LSJ II e III há vários personagens que eram considerados tradicionalmente como pobres: cativos, peregrinos, doentes, mendigos e órfãos. Contudo, nos milagres, só dois personagens são qualificados como pobres(pauperem), e ambos eram mendigos: um pedinte enfermo, que roga a um cavaleiro que lhe ceda o cavalo, no milagre 16, e o que acompanha Geraldo, no 17. No LSJ III, 3, ao apresentar os atos do rei Afonso na festa do Apóstolo, destaca-seooferecimentodecomidaaospobres.Ouseja,aobraidentificacomopobres os que têm, fundamentalmente, uma carência material que, como no caso do mendigo do milagre 16, pode estar associada a uma doença.

Os LSJ II e III também estimulam a prática de dar esmolas, o que reforça a tese de que o pobre representado nesse texto é o que não tem recursos materiais. E apresenta o exemplo de Afonso, que dava comida aos pobres. No LSJ II, 6, a indicação é explícita: “deve-se oferecer esmolas às igrejas e pobres em sufrágio pelos mortos”.

A escassa presença de pobres nos LSJ II e III e o fato de nenhum deles ser agraciado com um milagre é um fato que diferencia essa obra face às demais hagiografias ibéricas dos séculos XI ao XIII. Segundo Fernández Conde,os mais pobres materialmente são os mais agraciados pelos santos nessas hagiografias (2005, p. 560). Issonãoocorre nosLSJ II e III, quemencionamprincipalmente clérigos, cavaleiros e mercadores como receptores de milagres, porque provavelmente era esse o público que se desejava atrair para a cidade de Compostela.

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OS PERSONAGENS

E como as vidas de santos berceanas compreendem a pobreza? Quais são ospersonagensidentificadoscomopobres?Queatitudesdiantedospobressãoestimuladas nesses relatos?

Primeiramente,sãoqualificadoscomopobresosdoentes,comoemVSD591 e VSM 135, que, por estarem carentes da saúde física, necessitam do auxílio de outrem. Em segundo, os cristãos cativos junto aos muçulmanos, já que, segundo as obras em estudo, sofrem torturas, são submetidos a trabalhos forçados, são humilhados e carecem da liberdade (VSD 354, 356, 669). Em terceiro lugar encontram-se os peregrinos, pois estão longe de sua terra de origem, à mercê dos bandidos das estradas; sem contar que, em sua maioria, são enfermos que buscam uma graça e não contam com locais de refúgio (VSM 253, VSD 105). Em quarto,ospecadores,porestaremseparadosdeDeusdevidoàssuastransgressões(VSD547).E,porfim,aqueles indivíduos“famnientosemenguados todosdevestidura” (VSM 239b), que não possuem bens materiais, como roupa e comida, ainda que temporariamente (VSD 190).

Este último grupo parece ser, conforme o estudo de Lopez Alonso, a maioria dos pobres presentes nos textos berceanos. Segundo esta autora, os vocábulos utilizados para indicar os pobres e a pobreza são diversos: menguado, despojado, mezquino, lazdrado e pobre. Enquanto os dois primeiros são equiparados “a carentedemediosmateriales”,aosdemais“seatribuirándiversossignificados”.ElaafirmaquenoventaporcentodasvezesemqueBerceoutilizaotermopobre e vinte e cinco por cento em que emprega as palavras mesquino e lazdrado quer indicaraausênciadebensmateriais.Nasdemaisocasiões,aspalavrassãousadascomosinônimodesofrimento,enfermidadeepecado(LOPEZALONSO,1977,p. 376).

Ainda que destaquem os carentes materiais, os santos biografados prestam assistência tanto a ricos quanto a pobres, sem qualquer distinção (VSM 247); afinal,oqueimportaésuprirumafalta,independentedequemsejaonecessitado.Aliás, a identidade do carente não é algo sequer valorizado pelo narrador, tal como em VSD 338: “Si era de liñage o era labrador no lo diz la leyenda non so yo sabidor; mas dexémoslo esso, digamos el mejor, lo que caye en precio del sancto confessor” (VSD 338).

Mas nas vidas de santos berceanas nem sempre estar pobre é o resultado de uma carência. Também pode ser uma opção. Os que querem ser santos, dentre outrasatitudes,abraçamapobreza,afimdealcançarmaiorespiritualidade.Oriadiz a Domingo que para estar mais próxima de Deus deseja “en un rencón cerrado iazer en pobreda vevir” (VSD 322); e Millán viveu quarenta anos no ermo sem “vito nin vestido” (VSM 63). Assim, há uma relação entre ser pobre e ser santo. Nessa obra, como em outras do período, em especial os textos franciscanos, a pobreza torna-se um valor e um meio de alcançar a redenção. A introdução desse elemento nas obras pode ser vista como uma resposta às críticas feitas pelas novas ordens religiosas e grupos heréticos à riqueza da vida monástica tradicional.

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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Nasvidasestudadas,estarpobretambémpodesignificarumdesafio,umaprovadafirmezadafé.AomenosparaossuperioresdeDomingonomosteirode San Millán de la Cogolla, que, para testar o monge, mandaram-no dirigir a casa de Cañas, muito pobre (VSD 94 e 97). Ou ainda, a pobreza pode ser um castigo.ApósterentradoemconflitocomoReiGarciadeNájera,maisumavezDomingo foi encarregado de administrar uma comunidade bem pobre. Dessa vez não se tratava de uma prova, pois sua capacidade já fora reconhecida depois de ter restaurado o cenóbio de Cañas e, inclusive, já fora ordenado prior; mas sim como uma forma de punição por ter enfrentado o rei (VSD 170-171).

Nas Vidas berceanas, a pobreza pode, ainda, ser conseqüência de uma transgressão. É o que constata Liciniano em sua oração: a pobreza em que se encontrava o mosteiro de São Sebastião de Silos, após momentos de glória, só poderiaserfrutodopecado(VSD203).Aprópriavidaterrena,porsuasdificuldadese sofrimentos, diante do Paraíso celeste, cheio de alegria e recompensa, é identificadacomopobreemVSD246.

Gonzalo de Berceo também demonstrou conhecer a natureza humana: incluiuemsuaVSDumaestrofeemqueafirmaque,muitasvezes,osnecessitadossuscitam repulsa, como no caso das mulheres endemoniadas que são curadas por Santo Domingo (VSD 638). Mas também sublinha que essa não deve ser a atitude correta do cristão ante aos pobres. Perante aos mesquinos, cabe ao cristão prestar ajuda, seja material ou não, tal como exorta Domingo no sermão fictício deMonte Rúbio (VSD 467-469ab). Millán, dando o exemplo, sempre esteve atento aos pobres, dividindo o que possuía (VSM 98), chegando a mandar construir um edifício exclusivamente para alimentá-los (VSM 225).20

Para Varaschin, Gonzalo de Berceo teria tido uma origem modesta, mas o fato de ter se tornado um homem da Igreja acabou por “situé à la pointe du discours idéologique de l’Eglise, plus traditionnaliste [...] Ainsi chez Berceo la marginalité est-elle le ciment de la sociabilité chrétienne” (1979, p.14 e 26). Não concordamos com o citado autor. Ser pobre nas vidas de santos berceanas poderia ser uma condição permanente ou momentânea. Uma pessoa poderia ser pobre ou estar pobre pelas mais diversas causas ou circunstâncias: encontrava-se doente, tornou-se um cativo, estava longe de sua casa em peregrinação, ou carecia de bens materiais. Tornar-se pobre, nessas obras, também poderia ser uma opção pessoal, uma imposição - seja como uma prova ou como um castigo - ou, ainda, uma conseqüência do pecado. Ou seja, a carência de riquezas não foi o único critério para caracterizar alguém como pobre nas vidas em estudo, no que essa obra difere muito dos LSJ II e III.

Emqualquerdoscasos,porém,serouestarpobresignificasofrer,jáqueimplica a ausência de algo: da saúde, da liberdade, do alimento, do conforto,

21. Esta é uma adição de Berceo aos dados presentes em VE, cap. XIX. Segundo Brian Dutton, não há, em nenhum manuscrito medieval, dados que expliquem a informação presente nesta copla (DUTTON, 1984b, p. 221).

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OS PERSONAGENS

da vestimenta, da simpatia ou confiança de alguém, etc. É em virtude dessaidentificaçãoentresofrimentoepobrezaqueavidaterrenatambémévistacomopobre.

Perante os pobres, as vidas de santos berceanas recomendam, como os LSJ II e III, a prática da caridade. Porém, nessas obras, nada é feito para mudar o quadro de pobreza, pois esta possui uma face positiva. Através da vida em pobreza pode alcançar-se a santidade ou, ainda, ante um necessitado, é possível exercer a compaixão entregando-lhe esmolas, garantindo, assim, a entrada no céu.

5.6. As mulheres

De todos os personagens presentes nas obras em análise, são as mulheres que revelam a maior originalidade de tratamento ante o pensamento eclesiástico hegemônico,segundooquedefendeahistoriografia,aindaqueelasfiguremempequeno número nas obras em questão.

No artigo A mujer a ojos de los clerigos, Jacques Dalarun expõe umasíntese de como a mulher era representada pelos eclesiásticos medievais (1992, p. 29-59). Em primeiro lugar, as inimigas, pois foi devido a Eva que o pecado entrou no mundo. Em segundo, as virgens, que, seguindo o modelo de Maria, mantinham-secastas.E,porfim,emterceirolugar,aspecadorasreabilitadaspormeio do arrependimento, que eram associadas a Madalena.

Segundo Carla Casagrande, no século XIII, pregadores e moralistas construíram uma visão sistemática sobre a mulher, organizando um pensamento que, embora difuso, sempre esteve presente na cultura medieval. Segundo esses teóricos:

Como hombres frustados e imperfectos, dotadas de una forma adecuada de la debilidad y de la imperfección de su mudable materia, privadas de una racionalidad capaz de gobernar plenamente las pasiones, las mujeres son frágiles, maleables, irracionales y pasionales [...] las mujeres no pueden custodiarse por sí mismas, [...] los hombres - padres, maridos, hermanos, predicadores, directores espirituales - comparten con Dios y los ordenamientos jurídicos la difícil, pero necesaria tarea de custodiar a las mujeres. (CASAGRANDE, 1992, p. 111-113)

Ouseja,aindaquecompequenasvariações,segundoahistoriografia,asmulhereseramvistasnomedievocomosinônimodefraquezaeluxúria.Paraamaioria dos eclesiásticos,

a mulher parece, na maior parte dos casos, como um perigo para os homens, por causa da sua natureza espiritual e porque lhes

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proporcionava a oportunidade de desencadear os seus instintos mais baixos e de cair assim no pecado carnal. Até o simples contacto físico com uma mulher é visto como um perigo por aqueles que desejam manter intacta a sua castidade (PILOSU, 1995, p. 60).

Contudo,nasobrasestudadas,amaioriadasmulheresnãoéqualificadacomofraca,sinônimodetentaçãoouinstrumentosnasmãosdodiabo.

Nos LSJ II e III a maior parte dos personagens são homens. As mulheres sãosócitadas,comrarasexceções.EmLSJIII,3,sãomencionadasalgumas,paracompletar o relato: Eudóxia, imperatriz que levou as cadeias que prenderam São Pedro, de Jerusalém para Roma; Cleópatra, que foi mordida por uma serpente apósaderrotadeAntônio;afilhadeQuirino,curadaapósbeijarosgrilhõesdePedro; as mulheres, ricamente vestidas, que participavam do coro na festa do Apóstolo. No LSJ II,17, duas mulheres são citadas: a mãe de Geraldo que, segundo anarrativa,eraviúvaesustentadapelofilho;eajovemcomquemfornicaantesdesairemperegrinação.Valedestacarqueessamoçanãoéqualificadanaobracomo pecadora, assim como no Calceatense VIII. E no LSJ, II, 6 menciona-se a mulher de um cavaleiro de Poiteau, que morreu durante a peregrinação.

Três mulheres, contudo, são destacadas, pois têm um papel mais ativo na narrativa. No milagre 16, há uma mulher que faz a peregrinação sozinha e é ajudada por alguns cavaleiros. A obra não sublinha a sua fraqueza ou os perigos do caminho, só informa o fato. No LSJ II, 3, uma mãe é apresentada. É a genitora de Tiago, rapaz que foi gerado graças à ajuda do santo e que, após atravessar os MontesdeOca,ficadoenteemorre.Anarrativadestacaqueelaficoumaistristeque o pai do rapaz, como se tivesse perdido a razão, chegando a fazer chantagem com o Santo: “bem-aventurado São Tiago, a quem o Senhor concedeu tanto poder paradar-meumfilho,devolva-moagora.Devolva-mo,digo,porque,podes;poissinãoofizeres,matar-me-eientãooufareiquemeenterremvivacomele”.21 Por fim,aviúvaLupa,mulhernobre,casta,aindaquepagã,inconstante,quemaquinoucontra os discípulos de Tiago. Terminou por converter-se ao Cristianismo e disponibilizou o templo pagão para ser reformado e tornar-se a tumba do Santo. Seus erros, portanto, não são atribuídos ao fato de ser mulher, mas ao paganismo que seguia.

Asmulheres dos LSJ II e III não são qualificadas como pecadoras. Amãe de Tiago distingue-se por suas emoções exacerbadas e Lupa apresentouum mau comportamento porque era pagã. Mas, mesmo antes de converter-se ao Cristianismo, já se mantinha casta. Elas não estão submetidas ou dependentes dos homens e não maquinam para fazê-los pecar. Ou seja, ainda que produto de um ambienteeclesiástico,comforteinfluênciamonástica,essaobranãorepresentaas mulheres de forma misógina.

Há diversas personagens femininas nas Vidas berceanas. Algumas são

22. A reação dessa mulher no Calceatense III é idêntica a do LSJ II, 3.

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OS PERSONAGENS

piedosas, como as discípulas de Millán, que não só cuidaram do santo em sua enfermidade, como ouviram seus ensinamentos (VSM 260-261). Outro exemplo de mulher piedosa é Oria, que ainda menina resolveu dedicar-se à vida contemplativa no mosteiro de Silos. Abraçou a vida religiosa por iniciativa própria e não mediante o conselho ou custódia de algum homem. O texto da VSD 316a320,resultadodaaçãoamplificadoradopoetae,portanto,ausenteemsuafonte (Cf. VDS, I, IX), é bem explícito quanto a esse dado, deixando recair sobre Oria toda a responsabilidade, e glória, por sua opção.

As vidas de santos berceanas tampouco consideram a mulher como inimiga. Segundo a VSD, Eva, ao comer e partilhar com Adão o fruto proibido, foi, na realidade, enganada pelo diabo, que tomou forma de serpente. Em Berceo, portanto, Eva não é um ser fraco que se tornou um perigo para Adão, mas que, junto a ele, foi alvo da astúcia de Satanás (VSD 328ab e 330).22 Mesmo as mulheres apresentadas como pecadoras, como a de Palência, não cometeram pecados morais, mas desobedeceram a certos mandamentos da Igreja, como ir à missa (VSD 557ab e 559ab). As obras berceanas não caracterizam as mulheres como seres perigosos e ainda ressaltam, em VSD 319, que o próprio Cristo conviveu com elas, como, por exemplo, Marta e Maria, as irmãs de Lázaro.

As mulheres retratadas nas vidas de santos berceanas também são ativas, não tuteladas ou dirigidas pelos homens. Vejamos o caso de Sancha, que, mesmo doente, tomou a iniciativa e, sozinha, dirigiu-se até o sepulcro de Santo Domingo. O autor chega a ressaltar que ela sabia, inclusive, guiar sua carroça (VSD 574abc).23 Outro exemplo é a própria mãe de Domingo, que, como assinala Sanchéz-Romate, “[...] en un alarde de independencia respecto a la voluntad del hijo, decide no meterse en la religión como habia hecho su marido” (1992, p. 7).

As mulheres nas Vidas berceanas não são representadas unicamente no espaço do lar. Se a elas cabem os cuidados com a casa (VSD 559 e 677), essas não são as suas únicas tarefas. Elas também freqüentam o mercado e fazem transações financeiras, comoMaria de Castro, que “vistió sus buenos paños,aguisó sus dineros, exo pora mercado con otros compañeros” (VSD 290). As mulheres também são retratadas como um elemento importante na educação dos filhos.SegundoapontaaVSM, foiamãedeMillánque lheescolheuonome(VSM 19) e na VSD indica-se que era responsabilidade das mulheres enviar os meninos à escola (VSD 37ab).

Através da análise das vidas em estudo, é possível concluir que Gonzalo de Berceo não considerava a mulher como um ser inferior. Assim, segundo a VSM 87, quando o bispo Dímio procura convencer Millán das vantagens de tornar-se clérigo diz: “salvarás muchas almas, varones e mugieres,” (VSM 87c). Segundo Sanchez-Romate, ao utilizar os termos varones e mugieres lado a lado, o autor pretendia “caracterizar la globalidad por la enumeración de las partes” (1992,

23. Esta referência a Adão e Eva é uma adição do poeta. Cf. VDS I, XI, 7ss.24. Este dado é uma adição de Gonzalo de Berceo. Cf. VDS II, V.

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p.6). Ou seja, partes diferentes, mas de igual valor.Ainda na VSM, ao informar sobre o tributo das 60 donzelas, entregues

anualmente aos muçulmanos, o poeta apresentou a sua indignação perante essa condição imposta às mulheres, acrescentando que tal pagamento também fazia sofrer o próprio Deus (VSM 374-375).

Gonzalo de Berceo respeitava as mulheres com suas particularidades, e não as retratou como homens frustrados, frágeis, maleáveis ou irracionais, como opensamentopredominantedaépoca,segundooqueafirmaahistoriografia.Maso discurso berceano possui desvios e, ao mesmo tempo que apresenta mulheres fortes e decididas, acaba por afirmar que o choro é um atitude tipicamentefeminina: “amigos, non ploredes, semejades mugieres en esso que fazedes[...]” (VSD 504b).

Segundo Sanchez-Romete, a única historiadora encontrada que se dedicou arefletirsobreaquestão,aoretratarasmulheres,GonzalodeBerceo“[...]habladela mujer cotidiana no como siempre es, sino como debería ser” (1992, p.12). Ante opensamentocristãohegemônico,dequeamulherdeveriasersempretuteladapelos homens por ser fraca, corruptível e inconstante, as obras berceanas revelam mulheres comprometidas com a vida cristã, fortes e ativas. Seriam mulheres idealizadas, como aponta a historiadora mexicana?

Ainda sem libertar-se totalmente da visão misógina da Igreja, Gonzalo de Berceo apresentou, em suas vidas de santos, uma visão positiva da mulher, provavelmente por ter conhecido e convivido com mulheres no cotidiano. Para Ruiz de la Peña, nas cidades castelhanas do século XIII, as mulheres possuíam plenacapacidadeparatestemunharemjuízoouprestardeclarações;encontravam-se aptas a receber lotes de terra; participavam das assembléias dos concelhos, inclusive rurais; trabalhavam na agricultura; praticavam o comércio e a manufatura, seja como produtoras e/ou vendedoras de artigos variados: alimentos, tecidos, perfumes, etc. (1994, p. 59-74).24 A mulher castelhana, portanto, desfrutava um papelativonoscamposeconômico,administrativoejurídico,reconhecidopelosfueros. Ao retratar as mulheres em suas vidas de santos, acreditamos que Gonzalo deBerceonãoseguiufielmenteavisãohegemônicaentreosclérigos,nemconstruiuumavisãoidealizadadamulher,sendoinfluenciadopeloambientecastelhano,noqualamulherparticipavadaproduçãoedasdecisõesdasociedade.

5.7. Os “outros”

No momento em que os LSJ II e III foram redigidos, o paganismo já fora vencido; os judeus estavam estabelecidos em diversos pontos do Caminho de Santiago, desenvolvendo diversas atividades; os muçulmanos eram uma

25.SobreopapelsocioeconômicodamulhernaPenínsulaIbérica,vertambémNietoSoria(1994);Contreras Jiménez (1988); Pastor (1992).

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OS PERSONAGENS

ameaça concreta, representada pelos almorávidas. São esses três grupos que são classificadoscomo“outros”nessaobra.

OspagãosfiguramnoLSJIII.Opaganismoeravistocomoumerro,eospagãos associados ao diabo. Devido ao paganismo presente na Península Ibérica quando da chegada de Tiago, a terra é caracterizada como estéril e repleta de joio. O texto também legitima o combate ao paganismo e a destruição de templos e ídolos pagãos. Por que o texto, redigido no século XII, momento em que a fé cristã já havia suplantado o paganismo, ainda conclama o seu combate? Talvez devido a um arcaísmo, para contextualizar o relato do translado de Tiago, que teria ocorridono século I, ou aindapara desqualificar possíveis permanênciaspagãs ainda presentes na diocese compostelana.

Osjudeus tambémfiguramnoLSJIIIeestãoassociadosaomartíriodeTiago. Denominados pelas seitas presentes na Palestina no século I - saduceus, fariseuseherodianos-,sãoqualificadoscomoinimigosenefandos.ElesodeiamoApóstolo e testam-no com perguntas sobre Cristo. O santo, por ação do sacerdote Abiatar, fora preso, sendo condenado à morte por Herodes.

Os muçulmanos igualmente são personagens no LSJ II. Chamados de sarracenosemoabitas,sãocaracterizadospeloterrorqueimpõem:elesoprimema fé cristã, ameaçando, encarcerando, castigando e escravizando os cristãos (LSJ II, 1, II, 7, II, 22). Na obra, contudo, são sempre derrotados ou punidos, e os cativos libertos, sempre por intervenção de São Tiago. Ainda que a maioria dos milagres não esteja relacionada aos muçulmanos, os que figuram reforçam ocaráter redentor e militar do Apóstolo.

Quem são os “outros” na VSM e VSD? Os muçulmanos. Como assinalamos no capítulo I, La Rioja foi, durante séculos, terra de fronteira com os muçulmanos. No século XIII, porém, a presença islâmica na região já era vista como coisa do passado, como destaca VSD 353a: “eran en essi tiempo los moros muy vezinos,[...]”. Porém, ainda que a presença muçulmana no norte daPenínsula Ibérica se verificasse no séculoXIII,momentoda redaçãodas Vidas berceanas, essas obras relatam acontecimentos dos séculos X e XI, quando o Islão era considerado um perigo próximo e constante. Além disso, os muçulmanos mantinham-se no sul da Península Ibérica e ali a luta continuava. O poeta provavelmente encontrava-se informado sobre os movimentos militares; afinal,viviapróximoaimportanteseixosdepassagemecomunicação,alémdepagar pesados tributos para manter as lutas contra os muçulmanos no sul, tendo sidoinfluenciadoporessaconjunturaaotratardessespersonagens.

Paracaracterizarosmuçulmanos,GonzalodeBerceoutilizouexpressõesque revelam sua alteridade frente a esse grupo. Assim, denomina-os como pagãos (VSM 368b, 369a, 400a, VSD 729b), gente renegada (VSM 398a, 410a, VSD 354b, 647a, 702c, 705), inimigos da cruz e dos cristãos (VSM 369a, VSD 651). Mas,seporumlado,identificouosmuçulmanoscomoooutro,foiatravésdosreferenciais cristãos que os representou. Nas vidas de santos berceanas, o califa é

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chamado de rei, o Alcorão é a lei, os cadis são vistos como bispos, e a oração de sexta-feira torna-se uma festa (VSM 455bcd e VSD 720abc).

Através dos elementos presentes nas obras, é possível verificar outrostraços dos personagens islamitas berceanos. Segundo a VSM, a covardia também é uma característica dos muçulmanos. Ante os reis cristãos, presentes e fortes na batalha de Simancas, Abderraman, o líder islâmico, ao perceber que perdia a luta, fugiu, deixando o seu exército à mercê dos cristãos (VSM 449). Assim como o demônio,osmuçulmanostambémfizeram,naVSM,umainterpretaçãofalsadosacontecimentos. Os sinais enviados por Deus, para alertar os cristãos do erro de submeterem-se ao pagamento do tributo das donzelas, foram considerados pelos anciãos muçulmanos como favoráveis aos seus intentos (VSM 403-404). O erro de interpretação os tornou demasiadamente confiantes na vitória, que,contudo, foi dada por Deus aos cristãos. Na VSD, eles também foram retratados como traidores e enganadores. Logo, quando os muçulmanos que serviam como escravosnomosteirodeSilosfugiram,segundoaVSD434,fizeram-noenganandoosguardas.Aobratambémosqualificacomocruéis,retratando-osaçoitandoeforçando os cativos cristãos ao trabalho, negando-lhes inclusive comida (VSD 353-356, 645cd-648, 706).

Asvidasdesantosberceanascontrapõemodurotratamentodadoaoscativoscristãos pelos muçulmanos com a benevolência dos cristãos aos islamitas. Assim, Domingo, perante a fuga de seus escravos islâmicos, ao encontrá-los, perdoou-os e acolheu-os novamente, sem submetê-los a qualquer punição. E foi essa atitude, bondosa, segundo a obra, que tocou os escravos, levando-os ao Cristianismo (VSD 433, 440, 442). Mas o autor ainda vai além: caso algum cristão não tenha procedido de forma correta para com um muçulmano - como os cavaleiros de Fita, que invadiram e saquearam Guadalajara, chegando a matar alguns de seus habitantes – o cristão é punido (VSD 737 e 739). Oprimir os muçulmanos não deveria ser uma regra de comportamento dos cristãos. Quando isso acontece, o fato é visto como erro de um grupo minoritário.

Portanto, os muçulmanos são os inimigos dos cristãos e devem ser dominados, mas não oprimidos ou mortos. Mais do que um problema étnico-religioso, para Gonzalo de Berceo a presença de islamitas na Hispânia era uma questão de caráter político. Assim, se, por um lado, ele reproduziu o discurso hegemônico,apontandoomuçulmanocomooinfiel,pagãoeinimigo,nãonegoua possibilidade da convivência pacífica.Eles deveriam ser, inclusive, tratados com dignidade, desde que submetidos aos cristãos e ao seu serviço.

5.8. Os personagens: uma visão comparada e de conjunto

Assim como há vários espaços nas hagiografias estudadas, também hádiversos grupos de personagens. Os seres espirituais são os que habitam no Além, mas circulam pelo espaço terreno, seja para auxiliar os humanos, como

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OS PERSONAGENS

osanjoseSãoTiago,sejaparaatormentá-losetentá-los,comoosdemônios.SeDeus,unoetrino,éotodopoderoso,odiaboeosdemôniossãosinônimosdedestruição e imundície. O mundo sobrenatural, contudo, ainda que dual, tem um vencedor: Deus. O diabo e seus comparsas, ainda que experts em artimanhas, não conseguem nunca obter sucesso. Este pertence a Deus, na grande maioria dos casos, através dos santos intermediários. Ainda que essas obras possuam uma perspectiva pessimista sobre o mundo terreno, o diabo e seus seguidores são vistos como inimigos dos cristãos, sim, mas que são mantidos sob controle e são sempre vencidos pelos homens santos.

Quantoaossereshumanos,pelapróprianaturezahagiográficadostextosestudados, são apresentados de forma hierárquica. A espiritualidade e os favores prestados à Igreja são critérios fundamentais empregados para qualificar ospersonagens.

Nos LSJ II e III, Tiago é um santo poderoso, inatingível, impossível de serimitado,carcterizadodentrodospadrõestradicionaisdesantidade.Asobrasberceanas, apesar de biografar santos ligados à vida monástica tradicional, foram influenciadaspelonovoidealdevidareligiosaquevalorizavaapiedade leiga,a pregação pública, a penitência, a pobreza voluntária e a prática assistencial, e transforma a santificação, tal como apontaVauchez, “numa aventura pessoal”(1989, p. 219). Ao representar Domingo e Millán, Gonzalo de Berceo manteve-sefiel à tradiçãohagiográfica.Osprotagonistas eramhumildes, puros, castos,ocupavam-se das coisas espirituais, cuidavam dos pobres, etc. Mas a santidade apresentada pelos santos também estava repleta de elementos inovadores: o estilo de vida penitente, o gosto pelo conhecimento, o interesse pelo trabalho manual, a pregação pública, o desejo de imitar a Cristo e a renúncia ao lazer são características que se fazem presentes e se encontravam em sintonia com as transformaçõesnaespiritualidadeaspiradanoOcidenteecomonovoperfilidealde clérigo propagado por Roma.

Se há homens piedosos nas obras estudadas, há também pecadores. Nos LSJIIeIIIospecadoresestãorelacionadosàsperseguiçõesepecaminstigadospelodiabooudevidoàganância.Paralivrar-sedopecado,noLSJ,aconfissãoeoarrependimentonãosãosuficientes,sóSãoTiagoéoqueefetivamentegaranteoperdão,poiséintercessoreficazperanteDeus.NaVSMenaVSD,todos,homensou mulheres, clérigos ou leigos, ricos ou pobres, reis ou camponeses, podem ser, em potencial, santos ou pecadores, já que errar ou acertar é fruto de escolhas pessoais. A santidade e a transgressão, portanto, não são características de grupos específicos.Emesmoparaospecadoreshásalvação,pormeiodaconfissãoedoarrependimento.

Dentre os demais personagens destaca-se o caso das mulheres. Os LSJ II e III e as VSM e VSD não as apresentam de maneira negativa, pois não partilham do pensamentomisóginohegemônico.Elassãorepresentadascomparticularidadesem relação aos homens, mas não como fracas ou tentadoras. Quanto aos pobres,

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enquantoosLSJIIeIIIidentificamcomopobressóoscarentesdebensmateriais,as obras berceanas partilham da visão ambígua dos pobres que se desenvolve noOcidente a partir do séculoXII. Por fim, os “outros”.NoLSJ eles são ospagãos, judeus e muçulmanos. Eles oprimem aos cristãos, mas são vencidos pelo Apóstolo. Na VSM e na VSD os “outros” são os muçulmanos. Mas nessas obras, ainda que inimigos da fé cristã, eles possuem a chance de reconciliarem-se e alcançarem o perdão. Porém, a redenção só é possível caso submetam-se à autoridade cristã.

A representação dos personagens nos LSJ II e III é mais sintética e direta quenasvidasdesantosberceanas.OobjetivoérealçarafiguradeSãoTiago,seu poder como intercessor entre Deus e os homens, acudindo-os e perdoando-lhes. Os personagens berceanos são mais variados e complexos, já que são representadosapartirdediversosinfluxosculturaisevisam,sobretudo,realçarasuperioridade da vida monástica, bem como a sintonia com a realeza castelhano-leonesa e Roma.

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Capítulo VI

O cotidiano no Liber Sancti Jacobi (II e II)

e nas Vidas de San Millán e Santo Domingo

OspersonagensapresentadosnoLSJIIeII,naVSMenaVSDfiguramnessas obras realizando algumas ações, como dormir, viajar, pregar, beber,guerrear, rezar, etc. Enfim, executavam e participavam de diversas atividadescotidianas.Mascomoocotidianoérepresentadonessashagiografias?

Aonospropormosrealizarumestudodasrepresentaçõesdavidacotidiana,referimo-nos aos elementosqueBurguière afirma serem“[...] indefinidamenterepetidos como coisa que não requer explicação” (1993, p. 59). Essas atividades, realizadas tanto no nível do privado quanto do coletivo social, estão presentes no dia-a-dia e contribuem para caracterizar culturalmente uma dada sociedade. Nosso objetivo, nesse trabalho, não foi reconstruir os atos cotidianos tal como foram realizadosnomedievo,masdiscutirassignificaçõescomqueforamdotadosnosmateriais analisados.1 Como o cotidiano apresenta várias facetas, selecionamos alguns aspectos para discutirmos nesse capítulo: o nascimento, a morte, a vida familiar, o casamento e o sexo, a aparência e os cuidados pessoais, a doença, a educação, as crenças e práticas da religião e da religiosidade, as atividades produtivas, a alimentação, as viagens e as guerras.

Destacamos que, face aos textos berceanos, os LSJ II e III incluem poucas referências ao cotidiano. Como já assinalamos nos capítulos anteriores, esse material apresenta poucas descrições e detalhes sobre os eventos que narra,tratando a matéria de forma direta, introduzindo só o essencial para a compreensão donarrado.SeuobjetivofundamentalérealçarafiguradeSãoTiagoe,paraisso,concentra-se em seus atos. Entretanto, um ou outro aspecto é representado, em função das experiências e dos interesses dos autores/redatores e patrocinadores da obra.Assim,adespeitodaspoucasalusõesencontradas,optamospormantertaltemática nesse trabalho, desenvolvida originalmente na tese. Além disso, como assinalamosnoprefácio,comoosLSJIIeIIIfuncionaramemnossasreflexõescomo uma espécie de variável de controle, a comparação entre ambas as obras permitiuverificaroquehádesingularnotextoberceano.

6.1. O nascimento e a morte

Apesar de só ocorrer uma única vez na vida de cada indivíduo, talvez não existam outros elementos que nos sejam tão presentes como o nascimento e a

1. Para uma discussão sobre as implicações teórico-metodológicas do estudo do cotidiano, verBenito Ruano (1998); Domingues (2003); Heller (1972); Vainfas (1996).

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morte. Mesmo sendo, primeiramente, fruto de uma decisão dos pais, o nascimento éaportadeentradadohomemnavidacotidiana.Quantoàmorte,éopontofinal,inevitável, do viver diário. A despeito da presença constante de nascimentos e mortes no seio das sociedades, sua apreensão e representação variam no tempo e no espaço.

Nas sociedades medievais predominava o ciclo demográfico antigo,assim, tanto os nascimentos quanto as mortes eram muito freqüentes por motivos diversos:aausênciademétodoscontraceptivoseficazes,asinadequadascondiçõesde higiene e saúde, a valorização de proles numerosas, etc. (PASTOREAU, 1989, p.24).Noreinocastelhano-leonês,nosséculosXIIeXIII,amédiadefilhosporcasal era entre três e quatro (RIU RIU, 1984, p. 87). Quando não morriam ainda na infância, a expectativa média de vida, no caso das mulheres, não excedia os 40 anos e, no caso masculino, os 50 (RIU RIU, 1984, p. 88). Era comum as mulheres morreremaindajovens,comoconseqüênciadegestaçõesderiscooudoparto.Muitos homens, portanto, casavam-se novamente e, com a nova esposa, tinham maisfilhos.

Nos LSJ II e III só há referência a um nascimento, o de Tiago, que só foi concebido devido à intervenção do Apóstolo. Segundo LSJ II, 3, um homem, casadolegitimamente,nãoconseguiaterfilhosdevidoaopecado.Areferênciaaonascimento é sucinta: “e grávida ela desta união, ao cumprir-se os meses deu-lhe umfilhonoqualpôscheiodealegriaonomedoApóstolo”.2 A obra destaca que o homem queria um herdeiro natural, o que era imprescindível para a manutenção donomeepatrimôniodafamília.SegundoGarcíaHerrero,“poseerlacapacidadde engendrar y traer criaturas al mundo se considera una bendición” (1998, p. 224).Otextobíblicooafirma:“OsfilhossãoherançadoSenhor,eofrutodoventre o seu galardão” (Sal. 127,3).

As Vidas berceanas iniciam com o nascimento dos santos, cuja história narram. Porém, não lhes dá destaque e só apresenta a informação em poucos versos (VSM 4 e VSD 5). Para alguns pensadores medievais, cada nascimento representava a manutenção da história terrestre do pecado. Como assinala Bonnassie, para eles, o pecado original levara a humanidade à perdição, e todos os que nasciam eram vistos como seguidores do diabo em potencial, os “acólitos lúbricosdodemônio“(1985,p.30).Provavelmente,GonzalodeBerceopartilhavadesse pensamento, já que não deu qualquer destaque ao nascimento de Millán e Domingo,aindaquesublinhequeosfilhossãodadosporDeus(cf.VSM342).Assim, é possível falar de uma visão ambivalente em relação aos nascimentos nessasobras:seporumladoosfilhossãobênçãos,poroutroelessãopecadoresem potencial.

Quantoàmorte,osLSJIIeIIIfazemdiversasreferências.Elaédefinida

2. O Calceatense III apresenta o fato de forma ligeiramente diferente: “Nacido en el tiempo opor-tuno y bautizado, para alabanza del apostol le Ilamó Santiago, porque de él había sido pedido y suplicado”.

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como“pagaradívidacomanatureza”(LSJIII,1).Segundoessahagiografia,nomomento da morte a alma liberta-se do corpo e dirige-se ao céu (LSJ II, 3, III, 1).Emalgunspontos,otextoafirmaqueéopróprioSãoTiagooresponsávelporencaminhar as almas dos falecidos (LSJ II, 4).

Na obra são apresentadas mortes naturais (LSJ III, 1), por doença (LSJ II,3, II, 4, II, 16), por suicídio (LSJ II, 17),3 por acidente (LSJ II, 6), por execução (LSJ II, 5) e por martírio (LSJ III, 1, III 2, III, 3). A morte dos pecadores, como os dois hoteleiros avarentos (LSJ II, 5, II, 6), e dos pagãos, como os soldados do rei de Dúgio (LSJ III, 1), é apresentada como castigo. Já a dos justos, como a dos discípulos do Santo, é venturosa (LSJ III, 1). O suicídio é qualificadocomo condenável (LSJ II, 17), mas o martírio é engrandecido por ser uma prova inigualáveldafidelidadeaDeus(LSJIII).

Aindaquecomindicaçõesbreves,oLSJtratadosrituaisdemorte,comoasvigíliaseosepultamento(LSJII,4).Amortecausareaçõesdetristeza-comoa dos pais de Tiago, em especial a de sua mãe (LSJ II, 3) -, e de medo (LSJ II, 4). OLSJII,16recomendaaconfissãodospecadosquandoamorteseaproxima.E,pararealçaropoderdoApóstolo,narraváriosmilagresemquefiéissãosalvosda morte (LSJ II, 5, II, 7, II, 8, II, 9, II, 10, II, 11, II, 12, II, 15, II, 20) e até ressuscitados (LSJ II, 3, II, 17). O LSJ II, 3 chega a incluir uma discussão sobre a possibilidade de um morto ressuscitar outro morto:

se nosso Senhor e São Martinho lemos que a ninguém ressuscitaram depois de morrer, senão só antes a três mortos, resulta, pois, que um morto não pode ressuscitar a outro morto. Mas o vivo que isto disse conclui assim: ‘Se um morto não pode ressuscitar a um morto, resulta que o bem-aventurado São Tiago, que ressuscitou a um morto, vive certamente com Deus’. E assim consta que antes e depois da morte qualquer santo por Dom de Deus pode ressuscitar a um morto. (LSJ II, 3)

O LSJ II, 6 estimula que sejam oferecidas “esmolas às igrejas e aos pobres de Cristo em sufrágio pelos mortos”. Essa recomendação é, provavelmente, fruto deumainfluênciacluniense.Aintercessãopelosmortos,difundidaporClunyapartir do governo do abade Odilón (994-1048), fundamentava-se na crença de queosvivospoderiamdiminuirostormentosdosfalecidospormeiodeoraçõese doações à Igreja e necessitados (RUIZDOMINGUEZ, 2005, p. 146).Valedestacar que a VSM também incentiva essa prática. Quando o poeta narrou a instituição dos Votos a San Millán, apresentou a Fernán Gonzalez, conde de Castela,eaoreiRemirodeLeão,suplicandoparaquefossemfeitasoraçõesporeles (VSM 395 e 396).

3. Há um artigo que se dedica a analisar o suicídio descrito nesse milagre. Infelizmente não tivemos acesso ao texto, só à referência. (GUIANCE, 1991)

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As Vidas berceanas não só fazem diversas referências à morte, como também descrevem três delas: as dos santos biografados e a de uma pequena menina que acabou sendo ressuscitada junto ao túmulo de San Millán. Para o poeta, a morte é o momento em que a alma separa-se do corpo. Para onde vai a alma, Berceo só informou no caso dos santos: são levadas pelos anjos até o céu (VSD 489; VSM 301d - 302ab). O tema é tratado com ambigüidade, sendo visto como um acontecimento positivo e negativo ao mesmo tempo. Os santos a desejamcomopontofinaldavidaterrena,tãocheiadetristezaesofrimento(VSD488 e VSM 59), e chegam a pressentir quando chega esse momento tão desejado. Como destaca Saugniex, a VSM e VSD são “duas narrativas em que a morte se apresenta sob a forma particular da busca, da espera do além” (1996, p. 164-165). Mas com a morte tão próxima, os protagonistas também sentem medo e tristeza. Oautor justifica tais sentimentos, sublinhandoque resultamda “naturade losomnes carnales” (VSD 490).

Diantedamorte,osqueficam-discípulos,familiareseamigos-sentemdore tristeza e a manifestam mediante alguns gestos. É o caso dos pais e parentes da menina que, doente, foi levada ao túmulo de San Millán na esperança de que fosse curada. Porém, ela não resistiu e morreu no caminho. Assim, seus pais, cheios de dor, “andavan enloquidos, tirando sos cabellos, rompiendo sos vestidos” (VSM 347).4No caso específico damorte dos santos, os sentimentos dos discípulosrevelam-se conflituosos.Aomesmo tempo em que sentem dor, encontram-sealegres, pois sabem que passarão a ter no céu um intercessor (VSM 311).

Há todo um ritual na morte dos santos biografados por Gonzalo de Berceo. Millán exortou os seus discípulos, os abençoou, os encomendou a Deus e à Virgem e, após benzer-se, juntar as mãos e fechar os olhos, entregou-se a Deus e morreu (VSM 298, 300, 301). Ritual semelhante seguiu Santo Domingo (VSD 493, 521). Segundo Ruiz Dominguez, “[...] las muertes de los santos berceanos entran de lleno en lo que se puede llamar la muerte buscada, anunciada, la buena muerte” (1995, p. 24). Trata-se, portanto, de uma morte ideal, ritualizada, teatral.

Gonzalo deBerceo também incluiu, em sua narrativa, descrições sobreo cuidado com a sepultura e o corpo, provavelmente a partir da sua própria experiência cotidiana. Informou que o local do sepultamento era escolhido, o corpoeramedido,afimdeserconstruídoumsarcófagosobmedida,e,porfim,era banhado e vestido (VSM 313-314; VSD 528). Através da VSM, é possível verificar a prática de velar os corpos na Igreja antes do sepultamento. Asmotivaçõesdovelórioapresentadaspelopoetasãovariadas:verodefunto,fazercompanhia e chorar (VSM 356).

As vidas de santos berceanas também descrevem as cerimônias desepultamento dos santos. São rituais solenes, com a presença de muitas pessoas ilustres, procissão e canto. O autor, em harmonia com o pensamento corrente na época, traça um paralelo entre o enterro com a guarda de um tesouro. Como vimos

4.TaisgestossãoamplificaçõesdeBerceo.Cf.VE,cap.XXXI.

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no capítulo 4, os túmulos dos santos são espaços centrais, justamente porque são atribuídos ao local da sepultura poderes sobrenaturais advindos da presença dos corpos dos santos que, após a morte, ganham o status de relíquia (LSJ II, III e VSD 529-531).

Os textos analisados apresentam muitos elementos comuns. Tratam brevemente dos nascimentos e destacam os falecimentos. Contudo, é nos LSJ II e IIIqueamorteganhamaisdestaque,pelavariedadedesituaçõesapresentadas,pelaformacomosãoqualificadasecomofuncionam,nanarrativa,paraengrandecerafiguradosantoApóstolo.NaVSMeVSDodestaqueestánapassagemdosprotagonistas,acontecimentoqueconfirmaasantidadeporelesalcançada.Esseelemento não é necessário nos LSJ II e III: o martírio de São Tiago já era prova inquestionável de sua santidade.

6.2. A vida familiar

OsLSJIIeIIIfazempoucasreferênciasoudescriçõesdavidafamiliar.Asfamílias incluídas nas obras são as que realizavam a peregrinação para Compostela e ao representá-las, busca-se realçar o amor e a solidariedade familiar. A primeira, mencionada em LSJ II, 3, já foi citada neste capítulo. Era formada pelo pai, a mãe eofilhouquenasceuapósocasalserabençoadoporSãoTiago.Aoretratá-los,a narrativa destaca a importância da descendência e o amor dos pais, sobretudo damãe,quesedesesperouaoveroseufilhomorto.Asegundafamíliaéformadasóporpaiefilho.Elesforamcondenadosporumcrimequenãocometeram.Ojuiz,tendopiedade,sómandouexecutarum.Ofilhoentregou-seàmorteeopaiprosseguiu em peregrinação (LSJ II, 5). Nesse relato, o amor familiar também é destacado. A terceira família, por decisão do pai, colocou-se a caminho da Galiza parafugirdeumsurtodepeste.Amãemorreunaviagemeopaificousozinhocomdoisfilhos.Aobradestaca,nesserelato,asdificuldadesdeumpaisóesemdinheiro, porque fora roubado pelo hospedeiro (LSJ II, 6). A última família é formadaporGeraldoesuamãeviúva.Anarraçãoinformaqueofilhosustentavaa mãe com o seu trabalho de peleteiro, ou seja, de artesão que preparava e vendia peles de animais (LSJ II, 17).

Já Gonzalo de Berceo incluiu, em suas vidas de santos, além de famílias, diversoselementosrelacionadosàvidafamiliareensinamentossobreasrelaçõesentrepaisefilhos.Na lógicado textoberceano,háumarelaçãodiretaentreoambiente familiar e o desenvolvimento da pessoa. A educação familiar, desde os primeiros anos de vida, é defendida pelo autor como fundamental na formação de uma pessoa, pois se a bondade era aprendida ainda quando menino, ela seria praticada por toda a vida. O mesmo ocorreria com a maldade (VSD 471).

Ocuidadocomobemestaresaúdedosfilhoséumtraçoquecaracterizamos pais das Vidas berceanas. Neste sentido, eles estão atentos ao cumprimento

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desuasobrigaçõesreligiosas,comolevá-losparaserembatizados(VSM4),àalimentação(VSD13ab),àvestimenta(VSM343ab)eàsaúdedosfilhos.Opoetaenfatizou que muitos que procuravam receber um milagre foram levados, por seus pais ou parentes, até onde se encontravam os santos (VSD 705 e VSM 345). No casoespecíficodafamíliadeDomingo,ospais,aosaberemdavocaçãoreligiosadofilho,respeitarameapoiaramsuadecisão,alémdetomaremprovidênciasparaque pudesse alcançar o que desejara. O autor realça o desprendimento dos pais, que “a Dios lo ofrecieron” (VSD 35).

Todasestaspreocupaçõesecuidadosrevelamoamordospaisparacomos filhos. Este amor não temmedida, já que, segundo aVSM 342, os filhosvalem mais do que qualquer bem material. Esta idéia, calcada nos ensinamentos bíblicos, também se inspirava no cotidiano medieval ibérico, marcado por um déficitdemográficoecujamédiadefilhosporcasal,comovimosnoitemanterior,era pequena. Num casal sem descendentes, quem herdaria os bens familiares, manteria vivo o nome da família e auxiliaria os pais idosos (VSD 18)?

A admoestação paterna também não foi ignorada por Berceo. Quando Domingo cuidava do rebanho de seu pai, o autor destaca que ele tomava todos oscuidadosparanãoserrepreendido(VSD21ab).Nosermãofictícioproferidopor Domingo em Monte Rúbio, uma adição de Gonzalo de Berceo ao texto de Grimaldo, são recomendados: o castigo como método educacional; o ensino dos rudimentosdaféaosfilhos,comoaoraçãodoPater Noster,5 e a atenção para com asbrincadeirasepalavrasdeseusfilhos“moços”(VSD469-470).

Asvidasdesantosberceanastambémnãoignoramosdeveresdosfilhosemrelaçãoaosgenitores.MilláneDomingo,comobonsfilhos,servirameobedeceramaos seus pais (VSM 8 e VSD 10), auxiliando-os no cuidado das ovelhas (VSM 5 e VSD 19).6 O respeito para com os pais é caracterizado nas Vidas berceanas inclusiveporgestosquetraduzemsubmissão:“alosqueloficieron,luegoenlaentrada,/ besávalis lasmanos, la rodiellafincada” (VSD23cd).No sermãodeMonteRúbiotambémháumaexortaçãodirigidaaosfilhos:ocuidadoparacomos pais idosos. Estes deveriam ser honrados, mantidos confortados e protegidos dafomeedofrio(VSD473).NoséculoXIII,comadiminuiçãodosconflitosfronteiriços e a consolidação do repovoamento e colonização, a expectativa média de vida em La Rioja era de 60 anos.7 Assim, deveriam ser muitos os idosos

5. Faz-se importante ressaltar que, segundo os cânones do sínodo da diocese de Calahorra de 1240, era dever dos clérigos admoestar os pais sobre suas responsabilidades na educação dos filhos:“mandámosles,queamonestencadadomingoa susparroquianos,quedemuestrena susfijoselPater Noster, e el Credo in Deum, et que les enseñen la fe de Dios”.Provavelmente o poeta incluiu taisensinamentosafimdedivulgá-losparaumpúblicomaisamplo.Cânone13.6.Aatividadeexercidapelossantos-opastoreio-nãosóeraumaatividadeeconômicariojanaimportante, como permitia a elaboração de um paralelismo entre o trabalho exercido pelos santos jovens e seu futuro como pastores de homens.7. Segundo Manuel Riu Riu, enquanto a expectativa de vida das mulheres riojanas mantinha-se igual à média ibérica, os homens chegavam, em média, aos sessenta anos. Cf. Riu Riu (1984, p.

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naregião,que,provavelmente,viviamcomseusfilhos.Estaexortaçãonosparecetão excepcional que acreditamos ter sido inspirada na situação real de muitos da paróquia de Berceo, na qual o poeta atuou como clérigo.

A vida familiar, retratada de forma tão positiva pelo poeta, é, entretanto, um impedimento para a vida religiosa. Desta forma, entre as muitas atitudes que caracterizam a renúncia ao mundo nas obras berceanas, também se encontrava o rompimento com a vida familiar (VSM 35). Constituir uma família e rodear-se de filhosera,paraGonzalodeBerceo,umabênção;masnãoparaosquedesejavamservir a Deus de forma integral, como os clérigos. Também neste ponto o poeta encontra-se em harmonia com os ensinamentos da Igreja Romana que, neste momento, combatia o casamento clerical. Segundo o cânone 14 do IV Concílio de Latrão, os clérigos deveriam “[...] vivir en continencia y castidad [...] quienes hayansidosorprendidosenflagrantedelitodeincontinencia,seancastigadosconpenascanônicas”(Lateranense IV, 1973, p. 170-171). No período, havia muitos clérigosibéricosqueviviamcommulheresefilhos.8 Por meio da instituição da barraganería, contrato tipicamente ibérico, o vínculo entre os sacerdotes e suas mulheres era reconhecido juridicamente, mesmo sem contraírem matrimônioperante a Igreja (SANCHEZHERRERO, 1984, p. 209). Segundo Díaz Plaja, em muitos casos, os clérigos mantinham suas mulheres em casa, sob diversos disfarces: guardiã das chaves, sobrinhas, criadas (1995, p. 136).

Gonzalo de Berceo, como clérigo reformador, partilhou do ideal de pureza e celibato da Igreja. Pela apresentação da renúncia à vida familiar de seus santosexemplares,semincluirexortaçõesviolentas,opoetademonstrouqueaconstituição de uma família era incompatível com a vida clerical. Contudo, como clérigocomprometidocomapastoral,estavaatentoparacomasrelaçõesfamiliaresde seu público. As Vidas berceanas, ao mesmo tempo que apresentam uma visão positiva sobre a convivência familiar, nas entrelinhas incluem exortações querepresentam a visão do poeta sobre os conflitos e problemas cotidianos dasfamíliasdeseumeiosocial.OsLSJIIeIII,atravésdasaçõesdeSãoTiago,queapóia e socorre as famílias em perigo, revelam uma visão positiva em relação à vidafamiliar,salientandooamoreasolidariedadeentrepaisefilhos.

6.3. O casamento e o sexo

Os LSJ II e III fazem referências mínimas à prática sexual e ao casamento. Em LSJ II, 3, destaca que o pai e a mãe do jovem Tiago haviam se unido legitimamente, e que a gravidez de sua esposa ocorreu quando ele “juntou-se

89).8. Cf. Sanchez Herrero (1984, p. 209). Segundo os dados cânones 16, 29, 52 do Sínodo Calagurrita-no de 1240, também nesta diocese eram muitos os clérigos que viviam maritalmente, inclusive com filhos(BUJANDA,1946,p.123,124,127).

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com a sua mulher”. Em LSJ II, 17, por sua vez, informa que Geraldo, que “levava umavidacasta”,“vencidoenfimumavezpeloprazerdacarne,fornicoucomumajovenzinha”. Mais do que recriminar o rapaz, a obra parece ressaltar a sua culpa poresseato,pois,aoserinterpeladopelodiabo,quefingiaserSãoTiago,acabousendo convencido de que havia cometido um grande erro e precisava “confessar-se com seu sacerdote”.

Ainda que reconheça o casamento como o espaço legítimo para a prática sexual, a obra destaca a superioridade da castidade. Assim, no LSJ, II, 19, ao apresentar o bispo Estevão, que se demitiu do cargo episcopal para viver junto à basílica de Compostela, é enfatizado que ele vivia uma “vida celibatária e santíssima”. O mesmo ocorre quando Lupa é descrita, em LSJ III, 1: “ainda que se houvesse entregue sacrilegamente à superstição, não esquecendo sua nobreza, renunciara ao casamento [...] para que uma espécie de adultério não manchasse o seu primeiro tálamo conjugal”.

Nas vidas de santos berceanas também não há muitas referências à prática sexual. Aliás, os santos biografados sequer são tentados por mulheres, um topos hagiográficomuitocomumnashagiografias,segundoPilosu.9 Contudo, segundo a VSM, Millán foi vítima de calúnias do diabo sobre seu comportamento sexual. Doente e com quase cem anos, o eremita vivia cercado por mulheres que cuidavam desuasaúdeeouviamseusensinamentos.Odiaboacusou-odemanterrelaçõesimpuras com tais mulheres (VSM 264). O santo, por sua vez, repreendeu-o por suas palavras, e Satanás acabou partindo derrotado (VSM 270).

O mais importante deste relato é a sua grande diferença em relação à obra deBráuliodeZaragoza,fontedestasestrofesdaVSM.Aorelatartalepisódio,no capítulo 23, a VE inclui uma crítica ao santo, censurando-o por viver junto a mulheres, acrescentando que eram pouquíssimos, e muito santificados, oshomens que conseguiam resistir à tentação sexual. A VSM ignora esta observação e não a inclui. Ante Bráulio, que apresentou a mulher como uma tentação quase impossível de deter, Gonzalo de Berceo não conferiu qualquer conotação sexual aocuidadodispensadopelasdiscípulasdosantodoente,quequalificou,inclusive,como “santas mugieres”. Desta forma, no relato berceano, nem as mulheres são vistas como um perigo, nem o santo tentado pela carne. O tom sensual dado ao relacionamento entre Millán e as mulheres surge, unicamente, como uma calúnia do diabo.

Gonzalo de Berceo era um clérigo comprometido com a Igreja de Roma etodooseuesforçoderegulamentaravidadefiéis.10 Neste sentido, no sermão

9. Segundo o autor, esse topos “[...] muitas vezes, será apenas uma visão pecaminosa e, outras, um verdadeiro demónio [sic], isto é, uma mulher de carne e osso” (PILOSU, 1995, p. 32).10.Aexigênciadaoficialidadedoscasamentospelospodereseclesiásticosnãoeraignoradapeladiocese calagurritana. No cânone 10 do sínodo local realizado em 124º, lê-se: “et vedamos, que casamientos no se fagan a escuso, e ningún clérigo, fuera del maestro penitenciario non faga despo-sorio, podiendo aver el maestro penitenciario” (BUJANDA, 1946, p. 129).

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fictíciodeMonteRúbio, recomenda-sequeapráticadosexosósejarealizadaentre os casais casados (VSD 465cd); e quando são apresentados casais, destaca-seofatodequeestespossuíamumauniãoconjugaloficializadapelaIgreja.Assim,o casal de Padro era “covenient casado” (VSM 342c) e Proseria e Nepociano estavam em “bendición xasada” (VSM 171b). Vale destacar que não há nessas obrasnenhumtipodenormapararegulamentarasrelaçõessexuaisdoscasadosnem advertências de que a única função do sexo é a procriação.

O riojano apresentou, em suas obras, uma visão positiva e não restritiva da prática sexual, desde que vivida no interior do casamento legalizado pela Igreja. Neste sentido, não tolerava a fornicação, termo que inclui todas as práticas sexuais realizadas fora do casamento oficial, como adultério, concubinato,homossexualidade, etc. O celibato, diferentemente do que ocorre nos LSJ II e III, não é apresentado nas Vidas berceanas como uma forma de vida superior, mas como uma opção de vida.

6.4. A aparência e os cuidados pessoais

Nos LSJ II e III não há muitas referências à aparência. Destacam-se as informaçõessobreasvestimentasdorei,cavaleiros,clérigosemulheresdocoroutilizadas na festa dedicada a São Tiago, presentes em LSJ III, 3, transcritas no capítulo 3. A preocupação dos autores/redatores ao mencionar tecidos, cores, jóias, etc., tinha um claro objetivo: divulgar a festa do santo, atraindo peregrinos nãosópeladevoção,maspelo luxodacomemoração.Salvoessasdescrições,todas as demais estão relacionadas a São Tiago, como em LSJ II, 19: “apareceu vestido de alvíssimas roupas e portando armas que sobrepujavam em brilho aos raios do sol”.

As vidas de santos berceanas apresentam alguns detalhes relacionados à higieneeàvestimenta,aindaquesejampequenasmençõesdiluídasemmeioatantosdados.Háquesalientar,entretanto,quetodasasmençõessãoadiçõesdopoeta.11 O que hoje se aproxima ao que denominamos de higiene pessoal é, nas obras berceanas, sintetizado pelo ato de lavar a cabeça, que é apresentado ao lado de outras atividades cotidianas, como os afazeres domésticos (VSD 558 e 677), e o de fazer a barba.12 Podemos inferir, diferente do que comumente se pensa, que o banho, ao menos em La Rioja, era um hábito freqüente no século XIII? Ou essas

11. Vejamos um exemplo. Em VDS II, XXIII, 1-4, lemos: “Hubo igualmente otra mujer, por nom-bre María, natural del pueblo llamado Yecla que, como en el caso precedente, al llegar la tarde del sábado, no se preocupó de ir a la iglesia para cumplir con su obligación de orar, continuando con su anteriortrabajo,volcadaenlosbienesdeestemundoyenbeneficiosperecederos”.EmVSD677:“La otra non leemos ond fo natural,/ Mas sabado a viesperas façie uno e al/ Lavaba su cabeza, e varrie su corral,/ Cadió por essa culpa en peligro á tal”.12. Segundo a VSM, para ser ordenado clérigo, Millán, que vivera tanto tempo no ermo, precisou “radiéronli la barba” (VSM 90 ab).

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referênciassãosimbólicas?Oquemotivouoautorafazertaismenções?Os cuidados com a higiene pessoal estão intimamente relacionados com a

roupa nas vidas em estudo. O detalhe da vestimenta é tão importante nas Vidas berceanas que o autor questiona-se sobre a roupa que Millán usava ao apresentar-se perante o bispo de Tarazona, após ter vivido quarenta anos como eremita (VSM 77). As roupas e a higiene, nessas obras, garantem uma boa apresentação para o cumprimento de compromissos não só religiosos, mas também sociais. Assim, os que se dirigiam à missa, segundo a VSD 558, além de terem as cabeças lavadas, usavam “paños festivales”, ou seja, roupas de festa. E uma mulher de Castro vestiu-se com bons panos para ir ao mercado (VSD 290). Porém, nas obras em estudo, a vestimenta também ganha valor negativo. Para os que queriam viver como eremitas, por exemplo, os paños festivales, um luxo, deveriam ser renunciados (VSD 56cd). Em algumas passagens, as roupas também possuem um evidente caráter simbólico e expressam sentimentos. Desta forma, para demonstrar o arrependimento de uma mulher de Peña Alba, a VSD 689 informa que esta permaneceu perante o sepulcro de Santo Domingo, durante sete dias, vestida com roupas ásperas, penitenciais, como símbolo de sua contrição.

Apesar de mencionar a vestimenta de muitas personagens no decorrer da narrativa, só em uma ocasião o poeta descreveu as vestes que citou: ao tratar de umadasvisõesdeDomingo.AVSD232detalhaasroupascomqueosvarõesque apareceram ao abade silense estavam trajados: “Con almátigas blancas de finosciclatones,encabodelapuentestavandosbarones,lospechosorfresados,mangas e cabeçones, non dizrién el adobo loquele nec sermones”. Nesses versos Gonzalo de Berceo apresentou uma ligeira variação da descrição realizada por Grimaldo na VDS I, VII, 34-35. Neste texto lê-se: “en su extremo había dos varones, de una belleza sobrehumana, vestidos de blanco, cuyos pechos estaban ceñidos con cinturones de oro, que brillaban con extraordinario resplandor”. Os pequenos detalhes que incluiu Berceo - bordados em ouro, túnicas de seda, gola alta - imprimiram maior riqueza e esplendor ao anúncio divino. A grande maioria das pessoas que se encontrava entre o público das obras berceanas deveria admirarestetipodedescrição,poisroupastãofinaserammuitocaraseprivilégiode poucos durante a Idade Média e funcionavam, no século XIII, como signos dedistinçãosocial(DÍAZ-PLAJA,1995,p.146). Essa mesma motivação pode explicarasdescriçõesdoApóstolofeitasnoLSJIIeIII.

A questão da aparência exterior era um tema relevante para a Igreja romana nos séculos XII e XIII e foi matéria de vários cânones universais e locais.13 Nelessãoencontradasrecomendaçõesquantoàvestimentadosclérigos,judeuse muçulmanos. Numa sociedade de gestos, a aparência torna-se um elemento fundamentalnadistinçãoeidentificaçãodosgrupossociais.Essasrecomendações

13. Cf. Cânones 4 do II Concílio de Latrão, 16 e 68 do IV Concílio de Latrão, 18 a 20 do sínodo diocesano de 1240 e 14 do de 1250. Cf. Lateranense (I, II, III, 1972, p. 240); Lateranense (IV, 1973, p. 171-172, 174); Bujanda (1946 p. 129).

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não foram negligenciadas por Berceo. Também não podemos deixar de destacar, notocanteàhigiene,ainfluência,nopensamentoberceano,dodesenvolvimentodas práticas médicas universitárias. A medicina medieval, ainda calcada em Galeno e Hipócrates, pautou-se, sobretudo, na prevenção e, portanto, nos hábitos de higiene. Como Gonzalo cursou uma escola urbana, provavelmente teve acesso a textos de medicina e procurou vulgarizar tais ensinamentos por intermédio de suas obras.

Nas obras analisadas o item fundamental da aparência são as vestimentas, que se apresentam como elementos na caracterização dos personagens e na valorizaçãodasfunçõesqueexercem.Destaforma,aodetalharasroupasusadaspelo rei, nobres, clérigos e mulheres na festa dedicada ao Apóstolo, o LSJ III, 3 buscou engrandecer a festividade. Ao ressaltar a transformação da aparência de Millán ao tornar-se clérigo, a VSM não só indicou um exemplo a ser seguido pelos demais religiosos, como também destacou a importância do exercício da função eclesiástica. Quando apontou que os que se dirigiam à missa estavam limposebemvestidos,aVSDengrandeceuestacerimônialitúrgica.Paramarcaro arrependimento da mulher de Alba, essa mesma obra descreveu-a vestindo tecidos grosseiros. Para realçar a dignidade dos mensageiros de Deus a Domingo e o próprio São Tiago, as obras estudadas lhes dotaram de roupas suntuosas.

6.5. A doença

A doença é, incontestavelmente, um fato constante do cotidiano. No casoespecíficodaIdadeMédia,devidoadiversosfatores,comoamánutrição,a ausência de saneamento básico, o pouco desenvolvimento da prática da medicina, a incipiente assistência hospitalar, a grande movimentação de pessoas, os rigorosos invernos, etc., a doença era uma presença não só constante como, fundamentalmente, ameaçadora. Não nos interessa, aqui, fazer uma história da medicinaedasaúdeoureconstruir,pelashagiografiasestudadas,aspatologiasqueassolavamaPenínsulaIbéricaMedievalnosséculosXIIeXIII,masverificarcomo elas são representadas nessas obras.

No LSJ II as doenças motivam a peregrinação até Compostela (LSJ II, 21) ou, devido ao rigor ou problemas ocorridos no percurso, são adquiridas no caminho(LSJII,3,II,4,II,6,II16).Emalgunscasos,asdoençassãopunições.NoLSJ II,9,umhomemficoumuitoenfermoporqueprometera realizarumaperegrinação a Compostela e não cumpriu sua promessa. Segundo a narração, ele “caiu merecidamente doente de morte”. Em outras, nenhum médico é capaz de curar. A saúde só é encontrada por intermédio de São Tiago (LSJ II, 12, II, 21). No LSJ II, portanto, as enfermidades podem ter causas naturais ou espirituais, mas, em qualquer dos casos, o Santo Apóstolo pode devolver a saúde.

Nem todos os personagens dos milagres, contudo, tem a sua saúde restaurada.

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Porexemplo,ocavaleiroqueficoudoenteporqueajudouacarregaroembornalde uma mulher e cedeu sua montaria a um mendigo durante a peregrinação, acabou morrendo. São Tiago, contudo, garantiu que ele conseguisse confessar seus pecados e recebesse a extrema-unção, lutando contra a “multidão de negros espíritos” que o impediam de falar ou gesticular (LSJ II, 16). Ou seja, a obra reitera a máxima de que mais vale salvar a alma que o corpo.

Asvidasdesantosberceanasapresentammuitasdoenças.Afinal,agrandemaioria dos milagres relatados nestas obras são curas. Por meio do estudo dessas narraçõesépossívelpercebercomoGonzalodeBerceoconcebiaadoença,suascausas e métodos de tratamento.

Segundo as vidas de santos berceanas, as doenças podem ser causadas por diversos fatores. Inspirado em Galeno,14 Gonzalo de Berceo interpretou a doença do monge Armentero, apresentada pela VE, cap. VIII, como “duricia ventris tumoroque afflictus”, como um desequilíbrio de humores (VSM126).Ele também atribui causas sobrenaturais para as enfermidades, como a possessão demoníaca.Nassuasobras,apresençadeumdemônionocorpodeumapessoaeramanifestada,dentreoutrossinais,pelasurdez,mudez,loucura,alucinações,etc.Éimportante salientar que a associação entre a enfermidade e a ação diabólica não figuranasfontesberceanas,massãoadiçõesdeGonzalo.Ocaráterestigmatizanteda lepra também não foi ignorado. Em VSD 475, menciona um leproso que foi em busca do abade silense, sem envergonhar-se, para rogar por sua cura.

Nas vidas de santos berceanas também é estabelecida uma relação entre pecado e doença (VSD 557 e 677) tal como no LSJ II e III. Segundo Pérez Escohotado, ao identificar o pecado como causa de moléstias, Gonzalo deBerceo estaria divergindo da visão da Igreja (1994, p. 219). Entretanto, quando nos detemos no estudo dos cânones do IV Concílio de Latrão, concluímos que o poeta, também neste ponto, mantinha-se em harmonia com as diretrizes da Igreja Universal.Nocânone22afirma-seque:“laenfermedadcorporalprocedeavecesdel pecado, como lo dijo el Señor a un enfermo a quien había curado: ‘Vete y no peques más, no sea que te vaya a ocorrir algo peor’”.15 A legislação eclesiástica chega a recomendar que antes de tratar das causas naturais de uma doença o médico deveria chamar um eclesiástico, para cuidar das causas espirituais.

Nas Vidas berceanas, o que realmente importa é a saúde espiritual, garantia para a entrada no paraíso. Neste sentido, o autor ressalta que: “más vale que enfermoaparaísovayas,quesanoevalientenelinfiernocayas;convienequelosufras maguer lacerio trayas, ca de tornar cual eras esperança non ayas” (VSD

14.SegundoLopezPiñero,Galenopriorizaasalteraçõesdoshumores(fleuma,sangue,bilisama-rela e negra): “[...] su interpretación de las enfermedades consiste básicamente en una especulación en torno a las alteraciones de los humores localizadas en las distintas partes del cuerpo”. Durante a Idade Média, a obra de Galeno foi transmitida e assimilada. Seus textos foram traduzidos na Penín-sulaIbéricanosséculosXIIeXIII(LÓPEZPIÑERO,1990,p.36,40).15. Cânone 22 (LATERANENSE IV, 1973, p. 175).

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432). Assim, a doença pode ser um alerta para conscientizar o homem de suas falhas ou um meio para impedir o pecador de manter-se no erro, como, segundo a VSD 429-431, ocorreu com Garci Muñoz. Ele tinha o costume de roubar seus vizinhos na época de ceifar. Como persistia em seu erro, Domingo o advertiu de que sua doença era fruto de seus erros e que Deus a permitia para que, enfermo, ele não pudesse pecar.

Gonzalo de Berceo apresentou, no decorrer de sua narrativa, várias formas de tratamento contra as doenças: a unção com óleo sagrado (VSM 336-339), o uso de emplastos quentes (VSD 295), encantos (VSD 640), vinho quente (VSD 307) e remédios (VSM 127). Contudo, as obras parecem desprezar os tratamentos propostos pela medicina praticada pelos físicos (VSD 389bcd e VSM 127). Elas também criticam as curas realizadas pelas práticas mágicas, visto que representam permanências pagãs e vão de encontro à fé cristã (VSD 640ab). Elas consideram meioseficazesdecuraaoração (VSM126-131,171-176,231-235,354,VSD301-306, 345, 367-368), o sinal da cruz (VSM 169-170), a bênção dos santos (VSM 132-137, 245-252, VSD 478) e a unção com óleo sagrado (VSM 339); ou seja, práticas religiosas.16

Em1955,JuanMartinpublicoualgumasreflexõessobreonaturalismoea medicina em Berceo a partir do estudo da obra Milagros de Nuestra Señora. O autor conclui que apesar de observador, por tratar-se de um autor simples e ingênuo, faltava ao riojano “[...] el espírito crítico que el naturalista y el médico precisan indispensablemente unir a su obra y por lo tanto a sus mismas observaciones” (p. 271). Em um estudo publicado em 2003, em contrapartida, Bower destaca que Berceo não só conhecia a medicina, como também utilizou-se desse conhecimento para fazer analogias em suas vidas de santos (p. 275).

Ante a doença e seu tratamento, o LSJ II e as vidas de santos berceanas apresentamjuízosvariados.Aomesmotempoemqueidentificamcausasnaturaispara as mesmas, também apontam fatores sobrenaturais e espirituais. Segundo Lopéz Piñero, a combinação de elementos da medicina denominada folclórica ou popular com a chamada racional, nascida na Grécia, era típica dos pensadores medievais (1990, p. 25). Nesse aspecto, nossos autores/redatores seguiram a tradição, provavelmente devido aos seus interesses religiosos.

6.6. A educação17

Apesar de terem sido idealizados e organizados em uma escola urbana, os LSJ II e III não fazem referências a mestres, livros, atividades de ensino, etc.

16. Gonzalo de Berceo ampliou a descrição das virtudes do óleo que se tornou uma relíquia. Cf. VE, cap. XXIX.17. Entendemos educação, aqui, como a formação intelectual formal, incluindo o local de estudo, os professores, os conhecimentos recebidos, o acesso aos livros e o valor dado ao saber.

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Entretanto, evidenciam a associação entre saber e vida eclesiástica e, por extensão, aoposiçãoentredoutos-clérigosealdeões-ignorantes.Assim,oprólogodoLSJII destaca que os milagres presentes no tratado foram narrados por expertos e os únicosquefiguramlendonaobrasãoeclesiásticos(LSJII,7;LSJIII,prólogo).Contudo, a passagem que mais evidencia esse aspecto encontra-se no milagre 19. QuandoEstevãoouveumamultidãodealdeõesasaudarSãoTiagochamando-odebomcavaleiro,exclama:“Aldeõesburros,genteignorante,aSãoTiagodeveischamá-lo pescador e não cavaleiro”. O Santo, então, aparece para Estevão, diz que é o soldado de Cristo, mas não o recrimina por considerar os rústicos tolos. Para reforçaraautoridadeeclesiásticaeasuaprópria,aobrareafirmaasuperioridadeintelectual dos clérigos frente aos demais segmentos sociais.

As vidas de santos berceanas fazem diversas referências à educação, pois ela é apresentada como um pressuposto necessário tanto para vida clerical quanto para a eremítica. Quando Millán decidiu ser eremita, percebeu a necessidade de obter conhecimentos. Procurou, portanto, um mestre: Felices de Billivio (VSM 13). Também Santo Domingo, ao aspirar à vida religiosa, foi encaminhado por seus pais para a escola paroquial, quando ainda era bem jovem (VSD 35).

Os conhecimentos adquiridos pelos santos, segundo as Vidas berceanas, eramvariados:letras,doutrina,salmos,hinoseorações.Oobjetivodestaeducaçãoera o conhecimento dos rudimentos da fé cristã, a aprendizagem de hinos e cânticos para serem entoados nos ofício divino, além do estudo da Escritura. Dentre as habilidadesdesenvolvidas,estavamaleituraemvozaltaeocantarcomfluidez,elementos imprescindíveis para a formação clerical durante a Idade Média (VSM 39; VSD 21). O método de ensino utilizado era a memorização (VSD 38). Até os objetos utilizados pelos estudantes recebem destaque, como cartilhas e pequenas estacas de madeira (VSD 36). Nas Vidas berceanas também são retratadas as relaçõesentremestreealuno.Aautoridadedoprofessor,oentusiasmocomoprogressodosdiscípuloseadordaseparaçãotambémfiguramnasobras(VSD59;VSM24cd-25).Hádesublinhar-sequetaiselementosforamadiçõesdopoetae não constam em suas fontes.

Apesar da sua formação universitária, o modelo educacional inserido por Gonzalo de Berceo em suas Vidas é o das escolas monásticas e paroquiais, voltadas para a instrução litúrgica, a pastoral e a espiritualidade ascética, na qual os alunos aprendem um saber já estabelecido, não debatem ou elaboram novos conhecimentos. Como já destacado, o poeta visava realçar a superioridade da vida monástica, o que explica essa opção.

As Vidas berceanas ressaltam o constante desejo dos protagonistas em estudar. Domingo dirigia-se à escola mesmo sem ser mandado e, para melhor aprender, diminuiu o tempo dedicado à “meridiana” (sesta, VSD 37). Já adulto, continuou preocupando-se com a educação. Segundo a VSD, dentre as muitas reformas que implantou durante sua estada no Mosteiro de Santa Maria de Cañas, o prior dotou esta casa de livros (VSD 108). A educação não foi buscada por

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Millán só como um preparo para vida eremítica (VSM 24cd -25); o desejo por conhecimento manteve-se quando este já se encontrava no ermo, segundo é ressaltado em VSM 36.

O interesse pelo saber eclesiástico em ambas as obras estudadas certamente erainfluenciadopelomodelodecleroidealdelineadoporRoma.Oobjetivodaeducaçãoclericalera instruirocorpoeclesiásticoafimdefortaleceraprópriaIgrejaeprepará-loparasuprirasnecessidadesdosfiéispormeiodoapoiopastoraledesermões.MuitosclérigosdosséculosXIIeXIIInãoconheciamsequerolatim, o que os impedia de ler a liturgia ou a Bíblia e ainda tornarem-se presa fácil de heresias. O incentivo da Igreja à educação dos clérigos remonta ao século XI. Ao menos permitem inferir diversos cânones sinodais e conciliares. Na diocese de Compostela, atas das assembléias de 1056, 1060 e 1063 ordenam que os clérigos da diocese deveriam ser educados em escolas ligadas às catedrais e a HC informa que Diego Gelmirez estimulou a educação dos clérigos, inclusive enviando-os para estudar em escolas fora do episcopado (RIBES MONTANE, 1981-1982, p. 476). Os cânones 18 do III Concílio de Latrão (LATERANENSE I, II Y III, 1972, p. 275-276) e 11, do IV também tratam da formação clerical (LATERANENSE IV, 1973, p. 168-169). Igualmente na diocese de Calahorra, como um eco das decisõesdessesconcíliosuniversais,estapreocupaçãoestavapresente.Segundoo cânone 31 do sínodo calagurritano de 1240, foram concedidas, inclusive, bolsas de estudo para estimular os clérigos a estudar.18

6.7. A vida religiosa e as crenças e práticas da religiosidade

Durante a Idade Média, as fronteiras entre a religiosidade e a religião eram muito tênues.19 A Igreja ainda encontrava-se em vias de organização e junto com as práticas institucionalizadas conviviam e, em muitos casos, eram acolhidas pelos própriosclérigosdiversascrençaseritosnãooficiais.ComoressaltaMaldonado,estudioso da questão, durante a Idade Média “la jerarquía garantiza y respeta la libertad del pueblo en la expresión de sus sentimientos y vivencias religiosas” (1979, p. 11). E acrescentamos: muitos clérigos partilhavam das crenças e práticas

18. “Mandamos que, a los clérigos que quisieren ir a escuelas generales, así como a Bolonia, o a Paris, o a Tolosa, o a Calahorra, e que les den su ración del añal por tres años, e a cabo de tres años, que tornen; e si viéremos Nos que bien aprovechó, darle hemos licencia de ir, e si non aprovecha-rebien,mandaremosquefinque;emperosalvo todoelderechodeaquellosquevanaTeologia,e de otros que van de las eglesias cathedrales, que fueren a otras sentencias”. Esta preocupação manteve-se viva na década seguinte, conforme atesta o cânone 12 do sínodo calagurritano de 1250 (BUJANDA, 1946, p. 129).19. Entendemos por religiosidade todas as crenças e práticas de fé que não eram reconhecidas oficialmentepela Igrejamedievalepor religiãoahierarquiaeclesiástica,a liturgiaeaspráticassacramentais,fixadasdesdeoséculoXII(QUEIROZ,1984,p.8-13).

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da religiosidade.Para maior clareza de nossa exposição, subdividiremos este item em três

partes. Na primeira, trataremos do cotidiano da vida eclesiástica regular e secular. Nasegunda,daspráticassacramentaisedaliturgiadamissa.Eporfim,naterceira,das crenças e práticas da religiosidade. Vale destacar que as referências à vida religiosa nos LSJ II e III são pontuais e todas referentes ao clero secular.

6.7.1. A vida eclesiástica

Osautores/redatoresdoLSJeramclérigosenarraramalgumassituaçõesvinculadas à sé compostelana. Contudo, como o objetivo principal da obra era propagar a apostolicidade do episcopado, divulgando as festas dedicadas ao Apóstolo e as peregrinações, a maioria dos eventos narrados passam-se emambientes não clericais. Desde menino, Gonzalo de Berceo manteve contato com a Igreja e as práticas de fé: foi criado em um mosteiro e seguiu carreira eclesiástica. Além disso, os santos biografados por Gonzalo de Berceo atuaram oficialmentejuntoàIgreja,participandodahierarquiaeclesiásticacomoclérigosseculares,enocasoespecíficodeDomingotambémcomoclérigoregular.Assim,amaioriadasaçõesnarradasocorrenomeioeclesialemuitosdeseuspersonagenssão clérigos. Como essas obras representam a vida religiosa? Vamos iniciar com oestudodasrepresentaçõessobreavidamonástica.Comojáenfatizamos,osLSJII e III não fazem referência à vida monástica.

6.7.1.1. A vida monástica

As vidas de santos berceanas têm como elemento central o engrandecimento do modo de vida monástico. Assim, diversos episódios e argumentos são apresentadosparadignificaravidareligiosaregular,inclusivetransformandoogrupo semi-eremítico de Millán em uma comunidade monacal.

Umadasjustificativasencontra-senaVSD81.Essaestrofeexplicaporquea vida cenobítica é superior à eremítica: “por amor que viviesse aun en mayor penitençia,/Etnonfiçiessenadaamenosdelicencia,/Asmódefersemonge,efer obediência/ Que fuesse travado fora de su potençia”. Isto é, de forma distinta do que ocorria no eremitismo, como monge, o santo deveria não só renunciar ao mundo, mas exercer a obediência e conter ainda mais seus impulsos, providência necessária em uma vida comunitária.

O poeta trata do ingresso na vida monástica. Em VSD, o autor informa que, mesmo menina, Oria desejava servir a Deus (VSD 316). Esta jovem, deixando tudo para trás, dirigiu-se ao mosteiro de Silos, pedindo ao então abade Domingo

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para aceitá-la em sua casa,20 afirmando: “tal es mi voluntad, prender ordene velo, vevir en castidad, en un rencón cerrado iazer en pobredad, vevir de lo quediereporDioslachristiandad”(VSD321-322).Eleampliaasinformaçõesapresentadas por Grimaldo na VDS I, IX, que revela unicamente que “[...] el bienaventurado Domingo había consagrado al estado monástico, recluyéndola enunaceldaapropriadaaestefim,aunajovencita,llamadaOria”(VDSI,IX,1-3). Essa recriação destaca o papel do abade que, após resistir em receber Oria emSilos,porfim,reconhecendoasuasantidade,recolheu-aemsuacasa,comomonja beneditina (VSD 653). Assim, na VSD, para o ingresso na vida monástica bastava unicamente o desejo de um indivíduo de tornar-se monge e a aceitação domesmoporpartedoabade.Nocasoespecífico,nemofatodetratar-sedeummosteiro masculino e de a candidata ser uma menina foram impedimentos.

Mas por que o poeta ampliou e novelizou a entrada de Oria na Ordem, já que este não era o ponto central do relato de sua fonte? O tema principal do episódio era a libertação trazida por Domingo a Oria, que se encontrava atormentada pelo diabo. Apresentamos algumas hipóteses. Conforme condenavam os cânones 63 e 64 do IV Concílio de Latrão, muitos abades estavam vendendo o ingresso à vida religiosa, o que era considerado simonia.21 A simonia era também um problema enfrentado pelo bispado de Calahorra, segundo o sínodo de 1240,22 daí a importância de destacar o comportamento correto do abade. Tal adição também poderia estar criticando e alertando contra esta prática simoníaca encontrada na diocese calagurritana.23 Além disso, perante a expansão das ordens mendicantes na Península Ibérica,24oautorpoderiaestarestimulandoejustificandoaopçãopela vida religiosa contemplativa e em reclusão e, em especial, o seguimento da regra beneditina.

Os mosteiros retratados nas Vidas berceanas são espaços abertos a todos.

20. Era comum nos mosteiros hispanos masculinos do século XI a presença de mulheres. Este tipo de monacato é denominado dúplice. Sobre o tema ver Lagunas (2000).21. Diz o cânone 64 que trata De la simonía entre los monjes y monjas: “El pecado de la simonía se ha desarrollado entre las monjas de tal manera, que bajo pretexto de pobreza no admiten sino a un número mínimo de hermanas que no posean dinero”. Cf. Lateranense (IV, 1973, p. 200).22. “Sobre esto, mandamos, so aquella pena, que ninguno non se faga ordenar por ruego, nin por letras,decaballero,nindedueña,nindelegoninguno;e,siloficiere,quepierdalaexecucióndelasórdenes que prisiere, e que peche la pena acostumbrada. E mandamos, que los clérigos non sean recibidos de los clérigos por aquella costumbre que lo suelen facer, e por aquella avenencia que dice así: Partas con nos cuanto pudieres ganar de las otras eglesias, e nos recebirte hemos en la nostra eglesia. Mas sean recebidos, puramente e sin condición ninguna, e tales reciban, que segunt derecho deban ser recebidos, e por costumbre de la tierra”. O problema persistia na década seguinte, como permite inferir o cânone 11 do sínodo calagurritano de 1250 (BUJANDA, 1973, p. 123, cânones 23 e 24, p. 129).23. A denúncia sobre as práticas simoníacas na eleição de cargos eclesiásticos, também é feita em VSD 123: “Tovo el priorado, dizlo el cartelario,/ como pastor derecho, non como mercenario;/ al lobo maleíto, de las almas contrario,/ teniélo reherido fuera del sanctüario”.24. Sobre esta questão ver Garcia Oro (1988).

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Neles vivem diversas pessoas, tanto homens quanto mulheres, como a já citada Oria, e até crianças, os oblatos. Os leigos também marcam sua presença nos cenóbios, ainda que temporariamente, como alvos da assistência material, mas também como trabalhadores temporários contratados (VSD 379-380, VSM 238).

São muitas as atividades desenvolvidas nos mosteiros, segundo as vidas de santos berceanas. Primeiramente, é prestada assistência aos necessitados. Ali, pobres, peregrinos e doentes encontram alimento, hospedagem, roupas e até ajuda financeira,comoparapagaroresgatedecristãoscativosentremuçulmanos(VSM239,VSD362).Emsegundolugar,oferecemconfortoespiritualnascerimôniasreligiosas, através da palavra e da intercessão (VSM 179, VSD 304). Em terceiro, dedicam-se ao trabalho manual. Os monges também exercem atividades produtivas, nas quais contam com a ajuda da mão-de-obra leiga, que coordenam (VSM238,VSD89ab).Efinalizando,aobraressaltaareclusão,acontemplaçãoe o estudo dos monges (VSD 497, 326).

Para a manutenção de tais atividades, de onde vinham os recursos financeiros?Opoeta tambémosmenciona.Provinhamdeofertas (VSM361),tributos, como os Votos de San Millán (VSM 461), da ajuda dos reis e nobres (VSD 456 - 459) e especialmente do trabalho manual realizado no mosteiro. Ao menos é o que permite concluir a VSD. Para reverter o quadro desolador em que se encontrava o mosteiro de Santa Maria de Cañas, Domingo não esperou por ofertas, mas também começou a lavrar a terra; ou seja, a trabalhar: “empeçó a labrar por dexar el pedir, que era grave cosa, pora él, de sofrir”. É possível que esta ênfase ao trabalho manual e ao constrangimento demonstrado por Domingo para pedir ofertas seja uma sutil crítica à prática franciscana de esmolar (VSD 105, 107, 108). O poeta parece enfatizar com estes versos que mais importante do que se limitar às ofertas, para o bom andamento da vida monástica o trabalho dosprópriosmonges,comofezDomingoapesardasdificuldades,eraamelhoropção.

Por todas as atividades que promove, o mosteiro era, para Berceo, uma importante instituição para a sociedade. Em uma frase, pronunciada pela personagem do rei Fernando I, sintetiza este pensamento: “es por un monesterio un reino captenido,/ Ca es dias e noches Dios en elli servido” (VSD 204ab). Ou seja, a própria sobrevivência do reino dependia, segundo a obra, da existência de pessoas que vivessem integralmente para servir a Deus.

Quanto à organização e atividades dos cenóbios, são feitas várias referências dispersas em toda a narrativa; a começar pelos abades, as maiores autoridades dos mosteiros.Estesfiguramnosimportantesmomentosdavidaseculareeclesiásticapeninsular, retratados nas vidas em estudo, como na batalha de Simancas (VSM 421), na trasladação dos restos mortais de São Vicente e suas irmãs para Arlança (VSD 269), no sepultamento deDomingo (VSD 532), dentre outras ocasiõesmilitares, religiosas e políticas. No decorrer da narrativa, vão sendo registradas as

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diversasfunçõesdosabades:zelarpelosmongesepelavidacomum(VSD218,245); coordenar a vida material do mosteiro (VSD 217, 311); exortar monges e leigos (VSD 220, 465); orar e prestar assistência a todos os necessitados (VSD 304, 345, 217, 299-300, 340). As atividades desenvolvidas por Domingo, segundo a VSD, procuram justamente demonstrar o quão intenso era o trabalho do abade (VSD 217).

Em VSM, Berceo identificou a Millán como um abade, mesmo semchamá-lo por este título. Apresentou-o vivendo e coordenando discípulos, que exerciamdiversasfunções,taiscomoasde“clavero”e“architiclino”(VSM144,178). Também o retratou dirigindo a construção de edifícios (VSM 225-238) e prestando assistência material e espiritual a pobres, doentes e necessitados (VSM 200, 239-249, 253, 225cd-226ab, 298).

Faz-se importante ressaltar que Gonzalo de Berceo não representou todos osabadesdeformapositiva.EmVSD,funcionandocomoumcontrapontoàfigurade Domingo, que é apontado como o líder perfeito, há o abade emilianense Don Gomez, que, em apoio ao rei Garcia de Nájera, conspirou contra o santo (VSD 165-167). Este abade, contudo, é um caso particular e deve ser compreendido a partir do antinavarismo do poeta, como já discutimos no capítulo 2.

Para fazer frente a tantas atividades e responsabilidades, o abade delegava poderesaosquesedestacavam.Estaé,aomenos,ajustificativaapontadapelaVSD para a escolha de Domingo como prior do mosteiro emilianense: “Porque era tan bono, de todos mejorado, el abbat de la casa dioli el priorado” (VSD 122ab). Para administrar os cenóbios eram necessários vários homens. Assim, desfilampelasVidasberceanasmongesqueexerciamdiversas funçõesepelasquais são apresentados: claviculários (VSM 254, VSD 379a), priores (VSD 122b), sacristãos (VSM 333), celeireiro (VSM 258, VSD 446), etc.

Mas como era o comportamento dos monges nas obras em estudo? Segundo a VSD, o monge, como fora Domingo, deveria ser manso, companheiro, humilde, só falar a verdade, não se dedicar a folias e ser obediente ao abade (VSD 84, 86, 216). Todavia, sem dúvida, o que para nosso poeta distinguia um bom monge era, sobretudo, o cuidado em cumprir a regra. A VSD inclui referências à regra beneditina e ao seu cumprimento, tanto em seu conjunto, como em VSD 85d, quantoemalgunsaspectosespecíficos,comoaguardadosilêncio,emVSD88ab;a prática do trabalho manual, em VSD 89; e a assembléia dos irmãos em VSD 94.25Berceo traçou, a partir de seu protagonista, umperfil ideal dosmonges,certamentecomfinsdidáticos,nãose limitandoàs suasatitudes,mas tambémincluindo seus gestos e aparência exterior (VSD 86).

No século XIII, o monacato beneditino encontra-se em crise devido, dentre outros fatores, ao surgimento das ordens mendicantes e ao crescimento

25. Compare VSD 89 com o capítulo 48 da regra beneditina, que trata Do trabalho manual cotidia-no; VSD 94, 114-115 com o capítulo 3, Da convocação dos irmãos a conselho; VSD 88ab com o capítulo 6 Do silêncio.

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da religiosidade laica. Foram tomadas várias providências para reverter tal quadro, inclusive por iniciativa papal. Tanto o mosteiro emilianense quanto o silense seguiam a regra beneditina e, ao apresentar a história dos patronos destes cenóbios, Gonzalo de Berceo acabou por ser propagador da vida monástica e da regra atribuída a Bento de Núrsia. Para Garcia de Cortázar, esta atitude de Berceo revela certo saudosismo e um compromisso com o monacato tradicional (1975, p. 27).

Sem dúvida Gonzalo de Berceo estava comprometido com o monacato beneditino emilianense e silense, mas não era um saudosista. Ao apresentar o monge ideal e ressaltar o cumprimento da regra, ele demonstrou a afinidadedessemonacatocomoprojetodereformapapal,que,dentreoutraspreocupações,procurava recuperar a vitalidade da vida cenobítica beneditina.26 O poeta conhecia de perto a vida monacal. Mas sua formação intelectual universitária e a sua opção pela vida secular levaram-no a novas experiências. Apesar de não ter sido um monge, não renegou ou rejeitou a vida regular tradicional. Ante as novas formas deviveraespiritualidadenoséculoXIII,opoetajustificouamanutençãodoidealda vita vera angelica.

6.7.1.2. O clero secular

As poucasmenções feitas aos eclesiásticos nos LSJ II e III referem-seaos seculares. No milagre 1, entre os cativos levados a Saragoça um “possuía dignidade sacerdotal”. Foi ele que advertiu o grupo para implorar pela ajuda de São Tiago, o que realça a liderança espiritual do clérigo e sua veneração ao Apóstolo. No milagre 2, um dos personagens centrais é um bispo, Teodomiro, que segundo a tradição era o prelado de Iria Flávia na época em que o corpo doSantoforaencontrado.Elefiguranorelatocomsuas“ínfulasepiscopais”ecantando a missa. É ele que reconhece o perdão que um “pecador havia alcançado deDeuspelosméritosdoApóstolo”,porissonãolheimpõepenitências,sóordenaquejejueàssextas-feiras.EmLSJ,4,oscônegosdabasílicadeCompostelasãoos responsáveis por dar sepultura a um peregrino que morrera na viagem. No milagre 8, o agraciado é um prelado que retornava de Jerusalém. Ao cantar com o Livro de Salmos nas mãos, sentado à borda de uma embarcação, foi lançado no mar. Por intervenção do Apóstolo foi salvo e, em agradecimento, peregrinou até a Galiza e, para honrá-lo, cantou um responsório. No LSJ II, 9 alguns sacerdotes dão a um enfermo os objetos que caracterizavam um peregrino, o báculo e o embornal.Eleficouentãocuradoeiniciouasuaviagem.

No LSJ III, prólogo, é mencionado um clérigo que solicitou uma cópia do

26. Sobre a presença beneditina na Península Ibérica medieval ver Linage Conde (1982, p. 152-156). Cf. também os cânones 12 e 13 do IV Concílio de Latrão (LATERANENSE IV, 1973, p. 169-170).

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Liber e, por sua atitude, recebeu milagrosamente de volta o dinheiro com que pagara o copista; e destaca que 7 dos 9 discípulos de Tiago, que foram missionários na Galiza, foram ordenados em Roma. No LSJ III, 3, na visão tida pelo amigo do narrador aparece um prelado que “llorándolo dolorosa y dulcemente, habló así de él [Tiago] a la plebe en el palacio real, diciendo: ‘Hacia la hora tercia fué juzgado y hacia la nona, como Cristo, fué muerto’”. E nesse mesmo capítulo é descrita a participação do clero compostelano na festa do Santo, enfatizando os trajes usados.

Na obra também há referências gerais aos sacerdotes. Em LSJ II, 16, destaca-se que um padre deve ser chamado para dar “o viático da sagrada comunhão” para um enfermo. No 17, Geraldo, ao ser enganado pelo diabo, deseja voltar para casa para confessar a um sacerdote seu pecado.

Todos os personagens clérigos dos LSJ II e III têm como função engrandecerafiguradeSãoTiagoedivulgaroseuculto.Asfunçãosacerdotaissão mencionadas, mas genericamente. Os que têm participação efetiva nos acontecimentos narrados, de forma direta ou indireta, patrocinam a peregrinação, são alvos de milagres ou ajudam os peregrinos.

Nas vidas de santos berceanas também há referências à vida religiosa secular, que, como a monástica, também foi idealizada pelo poeta. Segundo a VSD 34, Domingo, ao resolver tornar-se clérigo, o fez para viver com honestidade e pureza, bem como para ter boas companhias. A opção pela vida clerical é, na VSD, acompanhada por uma busca pelo conhecimento. Quando Domingo optou por ser clérigo, deixou de ser pastor de ovelhas para dedicar-se aos estudos. Ou seja, formação intelectual e vida clerical andam juntas na obra; a primeira é um pressuposto para a segunda: “desend apriso letras, fo preste ordenado” (VSD 254c).

Os deveres gerais da hierarquia eclesiástica ganham destaque em Berceo. Como os abades, os bispos são mencionados nas Vidasberceanascomofigurasimportantes do reino. Dois, entretanto, são apresentados com relativo realce: Dímio, prelado de Tarazona, e Simeão, bispo de Burgos, contemporâneo à morte deDomingo.Apartirdasdescriçõesedasobservaçõesfeitassobreestesbispos,é possível perceber como o poeta representa o bispo ideal. Quando em VSM 72-73opoetadescreveuDímio,afirmouqueeleseencontravaentreasmaioresautoridades da cidade. A sabedoria, a bondade e a legitimidade (VSM 73a) são outras qualidades deste bispo. Na VSD, quando Domingo anunciou que a abadia iria receber a visita do rei e da rainha,27 acrescentou que o bispo de Burgos os acompanharia. Esta informação, periférica no conjunto do texto, aponta para o fato de que os bispos peninsulares não só eram considerados importantes autoridades eclesiásticas e participavam da corte real, como também zelavam pelos mosteiros.

27. Nas estrofes seguintes, Berceo informa que o rei e a rainha mencionados por Domingo eram, na verdade, Jesus e a Virgem. Quanto ao bispo burgalense, Simeão, este, de fato, esteve presente em Silos (VSD 505-517).

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Assim, o abade recomenda que estes hóspedes sejam bem servidos (VSD 505).Por sua autoridade, os prelados deveriam ser obedecidos. A obediência de

Millán ao seu bispo é ressaltada na VSM. Mesmo querendo manter-se no ermo, vivendo como eremita, para não desrespeitar a Dímio, respondeu ao seu chamado (VSM 82). Essa obediência é ressaltada em outros pontos da VSM, nos versos 76, 80 e 82. É possível que Gonzalo de Berceo tenha utilizado o recurso retórico darepetição,afimdefixaremseupúblicoanecessidadedaobediênciaàmaiorautoridade eclesiástica de um dado episcopado.

Como assinalamos em capítulos anteriores, nas primeiras décadas do século XIII a diocese calagurritana foi marcada por uma crise. A autoridade do bispo fora questionada não só por leigos, mas também por membros do clero. Eram constantesosabusosdosnobreseosconflitoscomosregularesdadiocese.Entreos anos de 1216 a 1221, ocorreu um cisma episcopal, quando três clérigos foram eleitoscomobispos.Porfim,JuanPéreztornou-seopreladoreconhecidopelopapa.Todaestaconjunturalevouàformaçãodefacçõesinternasequestionamentossobre o poder e legitimidade do bispo eleito.28 Como já assinalamos, Gonzalo deBerceofigurou como testemunha emumavenda realizadapelobispo JuanPérez em 1228. O poeta, portanto, conhecia pessoalmente o bispo e com grande probabilidade o apoiava. Esta ênfase na obediência poderia, portanto, ter um objetivo pragmático: motivar os leigos a acatar a autoridade deste prelado e registrar o seu compromisso pessoal e o do mosteiro emilianense para com a autoridade episcopal.

Se os bispos são apresentados como as principais autoridades diocesanas dentre todas as ordens eclesiásticas, são os prestes que ganham maior espaço nas obras. Não só porque Millán e Domingo exerceram esta função, mas porque o próprio poeta fora preste e contava com sua experiência pessoal para reconstruir asatividadesexercidaspelospadres.Nestesentido,asatividadeseasobrigaçõesdossacerdotesfiguramnestespoemas:participardosofícioseclesiásticos,cantara missa, guardar os bens da igreja, exortar, visitar os enfermos, interceder pelos necessitadosedarassistênciamaterialeespiritualaosfiéis(VSD43,VSM89).Ao preste cabia atender e exortar os leigos; mas, se necessário, deveria ensinar aos próprios clérigos, como fazia Millán, segundo a VSM 96. Sobretudo, o preste deveria manter-se longe do pecado (VSD 41). A submissão ao bispo e o cuidado com a aparência também eram compromissos dos prestes. Assim, para ser ordenado sacerdote, Millán precisou cuidar de seu aspecto externo e só dirigiu-se para a paróquia de Berceo com a permissão episcopal (VSM 91, 93a b).

No projeto de organização eclesiástica proposto por Roma e sintetizado nos cânones lateranenses, os sacerdotes ocupavam um papel chave, já que eles é que,defato,conviviamcomosfiéisnocotidiano.Nestesentido,forammuitasasordenanças que recaíram sobre este grupo e que objetivavam regularizar os mais

28. Juan Pérez manteve-se como bispo eleito e reconhecido pelo papa de 1221 a 1227, quando finalmenteéconsagrado(DÍAZBODEGAS,1995,p.187).

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diversos aspectos da vida clerical. Gonzalo de Berceo, certamente, inspirou-se no modelo de clérigo ideal proposto pelo papado para caracterizar suas personagens seculares.

O sustento dos clérigos seculares e a manutenção da Igreja também são mencionados de passagem. A VSM informa que, como clérigo em Berceo, Millán tornou-se racioneiro (VSM 95). Segundo Díaz Bodegas, os racioneiros, também denominados porcionarios, eram clérigos que viviam da caridade e de rendas provenientes do cabido (1995, p. 407). O poeta também trata das origens dos ingressos eclesiásticos. Um deles era o botim de guerra. Quando a VSM narra a batalha de Simancas, informa que, ao dividir-se o botim, parte dos bens coletados foram entregues às igrejas (VSM 458). Outras fontes de rendimentos eram as ofertas e, sobretudo, os dízimos. A VSD caracteriza o dízimo não só como uma ajudadadapelosfiéisparaosustentoemanutençãodaIgreja,mas,sobretudo,como um mandamento divino (VSD 464).29

6.7.1.3. As relações entre regulares e seculares

Como os LSJ II e III não fazem referência ao clero regular, não tratam da relação desses com os seculares. Já para Gonzalo de Berceo, apesar das suas diferentesfunções,unidos,seculareseregularescompunhamocorpoeclesiástico(VSD 269). Desta forma, nas suas obras não há quaisquer impedimentos para a transferência de um tipo de vida religiosa para outro, como podemos atestar através do exemplo de Domingo, que fora secular e, posteriormente, tornou-se monge.

Nas relações entre seculares e regulares o bispo é um elo importante.Segundo os poemas em estudo, cabia ao bispo visitar os mosteiros (VSD 507-508) eaeleiçãodeumabadedeveriaserconhecidaeretificadapelobispo(VSD211).Esse papel episcopal estava em harmonia com o modelo organizacional da Cúria Romana para toda a Eclesia e estava sendo introduzido na diocese calagurritana nas primeiras décadas do século XIII. Desta forma, nas atas sinodais de 1240 encontram-se listados, entre os participantes na assembléia: os abades beneditinos dos mosteiros de San Millán de la Cogolla e de Valvanera; os abades cistercienses de Herrera e São Prudêncio; e os priores dos pregadores de Burgos, dos frades menores, dos cluniacenses de Nájera, e dos Trinitários.

Nas Vidasberceanastambémnãoháconflitosentreregularesesecularese

29. No século XIII, tanto a Igreja Romana quanto a Igreja Hispânica davam grande ênfase ao paga-mentodosdízimos,afimdefinanciaraorganizaçãoeclesiásticaemanteraCruzadanoOrienteea Reconquista Ibérica. O IV Concílio de Latrão dedica os cânones 53, 54, 55, 56 e 61 para legislar sobre a questão (LATERANENSE IV, 1973, p. 194, 195, 198), tema também encontrado nos síno-dos de Calahorra de 1240 e 1250. Estes dados podem explicar a ênfase dada por Gonzalo de Berceo ao ato de dizimar nessas obra (BUJANDA, 1946, p. 122-126).

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muito menos espaço para a autonomia dos mosteiros. Contudo, na documentação calagurritanadoséculoXIIIpreservada,épossívelverificarquehouveconflitosentre os monges e a diocese no início do século. Assim, em 1208, Inocêncio III regulamentou as relações entreosmonges cisterciensesdeSãoPrudêncio e obispadoe,em1212,entreesseúltimoeomosteirodeValvanera(SAINZRIPA,1994, p. 438-440). Sobre a indisciplina dos monges, há dois acontecimentos que consideramos dignos de destaque. Em 1225, devido às denúncias do bispo eleito Juan Pérez, Honório III encarregou os prelados de Burgos e Palência de fazerem uma visita à diocese deCalahorra para, dentre outras questões, verificarem ocomportamento irregular dos religiosos, acusados de simonia (SAINZ RIPA,1994,p.472).Porfim,em1227,essepapadesignouopróprioJuanPérezparanormalizar a situação dos monges e monjas que haviam ingressado na vida religiosademaneirairregular(SAINZRIPA,1994,p.473).

Com a solução do cisma calagurritano e uma ininterrupta sucessão de bispos comprometidos com o papado, a disciplina eclesiástica foi introduzida na diocese e a autoridade episcopal foi paulatinamente reconhecida pelos regulares. Assim, ao invés de estar envolvido diretamente nas disputas com os mosteiros, talcomonoiníciodoperíodo,osbispospassaramaatuarcomoárbitros(DÍAZBODEGAS,1995,p.250).Destaforma,osmongessófigurampontualmentenalegislação sinodal, mas quando os temas se relacionam, de alguma maneira, com osseculares;oquepermiteconcluirqueexistiamconflitos.Nasconstituiçõesde1240 há referências aos monges somente em três cânones.30 No XXIII, institui-se que os lavradores que cultivam terras de ordens religiosas estão obrigados a dar o dízimo às igrejas. No XXVI, ordena-se aos monges, de qualquer ordem, que dêem os dízimos de todas as herdades que receberem após o concílio, independentemente da forma como as mesmas sejam exploradas. O XXVIII trata dos direitos sobre os túmulos, disputados pelos monges e seculares. O cânone institui que, mesmo quando enterrados nos mosteiros, os direitos sobre as sepulturas são da paróquia onde o cenóbio está localizado. Nas de 1256, a referência aos monges é indireta: o cânone XXXVI estabelece que eles não deveriam cantar as horas quando em uma vila, aldeia ou cidade estivesse presente um excomungado.

Assim,aonãorepresentarconflitosentreregulareseseculares,Gonzalode Berceo inspira-se no projeto papal de Igreja, não no cotidiano de sua diocese. O IV Concílio de Latrão preocupa-se com a questão. No cânone 60, trata-se da usurpação dos poderes episcopais pelos abades (LATERANENSE IV, 1973, p. 197), que concediam cartas de indulgência, impunham penitências públicas e intervinhamemquerelasmatrimoniais.Definirqualopapeleafunçãodecadaeclesiástico no grande organismo que era a Cristandade Romana constituía um dos objetivos da reforma empreendida pelo papado a partir do século XI. Esta reforma, contudo, rompia com séculos de tradição. Durante a Alta Idade Média agrandemaioriadosbisposprovinhadasfileirasmonásticase,emalgunscasos,

30. Esses cânones estão em harmonia com os Lateranense IV de números 53, 55 e 56.

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combinavamsuasatribuiçõesepiscopaiscomavidacenobítica(VSD211VSD507ab e 508abc). Mas o poeta, em sua meta de engrandecer a vida monástica, apresentando-aemharmoniacomRoma,ignoraosconflitosexistenteserepresentaasrelaçõesentreosdiversoseclesiásticoscomopacíficas.

6.7.1.4. A Igreja hispânica frente ao papa e aos reis ibéricos

Desde fins do século XI a Igreja castelhano-leonesa aproximava-sepaulatinamente da cúria romana. Adotou o rito latino, ainda que com grandes resistências internas, reconheceu a autoridade do papa, recebeu diversos legados, introduziuasresoluçõesdosconcílioslaterneneses,consideradosuniversais,etc.A diocese de Compostela, como já destacamos, sob o governo de Diego Gelmirez aliou-se à Igreja Romana. Desta forma, diversos aspectos de seu projeto de organização eclesial foram implantados no bispado.

OsLSJIIeIIIfazemalgumaspoucasmençõesàIgrejaRomana.NoLSJII, 17 faz-se referência à igreja de São Pedro Apóstolo em Roma. Para lá é levada aalmadeGeraldo,quefoidisputadapeloApóstoloepelosdemônios.NoLSJIII,prólogo,afirma-seque7dos9discípulosgalegosdeTiago,apóssepultá-lo,foram “ordenados con las ínfulas episcopales en Roma por los apóstoles Pedro y Pablo, y fueron enviados a predicar la palabra de Dios a las Españas, todavía sometidas al error gentil”. Ou seja, busca-se demonstrar a íntima relação entre o Cristianismo hispano e o romano desde sua implantação.

As citações diretas às relações da Igreja hispânica com Roma, aindaque tímidas, figuram nasVidas berceanas e estão diretamente relacionadas à legitimação do culto aos santos biografados por Berceo. O poeta ressaltou que os VotosaSanMillánforamreconhecidospelopapado(VSM464)eafirmouqueSanto Domingo fora canonizado em Roma a pedido do cardeal Ricardo (VSD 674), legado do papa nesta região no século XI. Há que salientar que não há outros testemunhos preservados sobre estes episódios.31

AsrelaçõesdaIgrejahispânicacomopoderrealtambémestãopresentesno LSJ III e na narrativa berceana. No Liber, a referência é pontual: destaca-se o papel de Afonso, o imperador, na festa do santo. Já as vidas de santos de Berceo retratam a preeminência dos reis nas questões eclesiásticas: cooperamcom o sustento da Igreja (VSD 457); indicam abades, como no caso da indicação de Domingo, pelo rei Fernando I, para tornar-se abade de Silos (VSD 200); estimulam a reforma dos costumes eclesiásticos (VSD 219); e promovem eventos

31. Quanto aos Votos a San Millán há somente uma Bula apócrifa datada de 1199, conhecida como Pancarta de Inocêncio III. Quanto à canonização de Santo Domingo, Grimaldo só informa: “[...] alli, por disposición de la divina providencia, encontró al cardenal y legado apostólico, Ricardo [...]” (VDS II, XXI, 63-64).

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religiosos,comotrasladaçõesderelíquias(VSD262-263).Em nenhum ponto da VSM e da VSD é questionada a autoridade real,

inclusive em relação aos assuntos religiosos, mas denuncia-se o abuso de poder, como no caso da tentativa de usurpação de bens eclesiásticos por Garcia de Nájera, já analisada. Sutilmente, o autor apontou a concordância das autoridades clericais, faceàsdecisõesreais,comonoepisódiodoreconhecimentodeDomingocomoabade por parte do bispo (VSD 209). Gonzalo de Berceo parece apresentar uma Igreja Hispânica regida por uma co-gestão. Ou seja, reis e eclesiásticos governam lado a lado, em harmonia, todo o corpo eclesial. Desta forma, o poeta não critica as intervenções reais nas questões clericais nem apresenta a subordinação daIgreja à monarquia. Provavelmente inspirado nas tradicionais teologias políticas desenvolvidas na Alta Idade Média, o autor adequou a prática política ibérica a uma visão ideal do equilíbrio entre os poderes seculares e religiosos.32

6.7.1.5. Os problemas eclesiásticos

Um único problema eclesiástico é realçado nos LSJ II e III: os ataques realizados à Igreja dos que “odeiam o bem”, fazendo objeções aos milagresoperados por São Tiago. Com essa frase, os autores/redatores denunciam a presença de críticos, provavelmente à própria sede de Compostela; e os repreendem,assentando-senafiguradoApóstolopatrono,queéumintercessorinfalível perante Deus.

Quanto às VSM e VSD, apesar de apresentarem clérigos perfeitos e uma Igrejaharmônica,emalgunspontosépossíveldetectarapresençadealgumasdificuldades. Além da simonia, são mencionados problemas financeiros,negligência e inveja entre os clérigos (VSD 90, 445, VSM 100).

SegundoMendeloff,asdissensõesentreosclérigosdasVidas berceanas têm como função precipitar os acontecimentos. Por exemplo, quando Millán torna-se alvo da inveja dos demais clérigos, ele resolve voltar ao ermo.33 Por outro lado, ainda aponta este autor, estes conflitos são “[...] instrumentos pormedio de los cuales Berceo llega a contraponer las fuerzas del bien y del mal, para así enseñar su lección moral” (MENDELOFF, 1975, p. 258). Concordamos parcialmente com o autor. Justamente porque soam como desvios à narrativa berceana,emqueamaioriadosclérigoséidealizada,estasdissensõesacabamporgerar uma situação de crise, que leva os protagonistas a uma tomada de decisão. Contudo,estesconflitosentreclérigosnãoganhamretoquesmaniqueístas,visto

32. Sobre esse tema ver o nosso artigoHagiografia e poder nas sociedades ibéricasmedievais(SILVA, 2001c).33. Na VE cap. VI, San Millán fora expulso de Berceo ante as queixas dos demais clérigos desta paróquia. A VSM apresenta uma versão bem diferente, dizendo que os clérigos sentiram inveja do santo e este decidiu partir para não lhes fazer pecar. Cf. VSM 101-106.

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que, como já apontamos, para o poeta as falhas são características humanas e contraopecadohásempreapossibilidadedaconfissãoepenitência.

6.7.2. A prática sacramental 34

Os LSJ II e III, a VSM e a VSD não apresentam ensinamentos sistemáticos sobre os sacramentos, mas os incorporam às narrativas, sendo praticados ou estimulados por seus personagens. Dos sete sacramentos, quatro são citados tanto nos LSJ II e III quanto nas Vidasberceanas:obatismo,aordenação,omatrimônio,aconfissãoeapenitência.Alémdesses,aindafiguranoLSJaextrema-unção.Também tratamos neste item da missa, que apesar de não ser um sacramento propriamente dito, é um mandamento da Igreja e durante a qual se celebra a eucaristia.

Obatismoéoritofundamentaldafécristã,vistoquemarcaaentradadofielno seio da Igreja. Durante a Idade Média, foi se consolidando o batismo infantil, generalizado na Península Ibérica no século XI. O LSJ II, 1 só destaca que os homens levados como cativos para Saragoça eram “regenerados com a água da fé”,pararealçarasuaalteridadecomocristãosfaceaos“moabitas”queosfizeramcativos.EmVSM4,fazendoadiçõesaosdadospresentesemBráulio,Gonzalode Berceo imaginou que Millán, assim que nascera, fora batizado. Ao apresentar o exemplo do santo, o poeta provavelmente desejava estimular o cumprimento deste sacramento, certamente negligenciado em algumas famílias. E mesmo entre os que o cumpriam, o sentido do batismo poderia não ser conhecido. Desta forma, onarradorafirmaemVSD78dqueobatismoéumpactofeitocomDeus.

A ordenação sacerdotal é mencionada no Liber quando destaca que os discípulos de Tiago que evangelizaram a Galiza, após o seu sepultamento, eram clérigos ordenados em Roma. Nas obras berceanas, tanto Millán quanto Domingo foram ordenados por um bispo e passaram por todos os graus eclesiásticos (VSM 91cd, VSD 42abc, VSD 43). Gonzalo de Berceo também procurou ressaltar que foram as qualidades demonstradas pelos próprios santos que os levaram à ordenação. Nada de indicação por parte de leigos, compra ou venda de cargos eclesiásticos. Ou seja, as referências à ordenação estavam associadas ao combate da simonia e à preocupação por realçar a harmonia com Roma, bem como sublinhar o caráter ortodoxo dos personagens. Nos séculos XII e XIII muitos grupos heréticos negavam a ordenação eclesiástica e criticavam duramente os eclesiásticos nicolaístas e simoníacos, o que era considerado condenável pela Igreja.

O sacramento do matrimônio faz-se presente mediante expressões que

34. Adotamos a expressão Prática sacramental para intitular este item, seguindo Fernández Conde, queassimdenominaascelebrações litúrgicaseos sacramentosda Igreja.Cf.FérnandezConde(1982b, p. 292).

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deixampatenteocaráteroficialereligiosodocasamento,comoospaisdeTiago(LSJ II, 3), Proseria, em “bendición casada” (VSM 171), e o casal de Prado, “convenient casado” (VSM 342).

Apráticadaconfissãoedapenitênciarecebetratamentodiferenciadonasobras.Aindaque destaque, indiretamente, a necessidadeda confissão (LSJ II,2, II, 16, II, 17)35 e apresente a peregrinação como uma forma de penitência (LSJ II, 2, II, 10), o que a hagiografia quer ressaltar é o papel de SãoTiagocomo intermediário entre os pecadores e Deus. Nas vidas de santos berceanas a confissãoeapenitênciasãotambémestimuladas:jáqueéimpossívelnãopecar,que o cristão confesse os seus pecados aos clérigos, ordenados pela Igreja, e faça a penitência (VSD 466).

Porfim,aextrema-unção,citadaemLSJII,16,quegaranteaconfissãodospecados, a comunhão e a benção sacerdotal antes da morte. Ela é considerada tão importantenaobraqueosdemôniostentamimpedi-la:

Desde que senti que se agravava a doença, comecei a pensar comigo mesmo, caladamente, em confessar meus pecados, receber a santaunçãoefortificar-merecebendoocorpodoSenhor.Masenquantoresolvia isto em silêncio, veio de repente sobre mim uma multidão de negros espíritos que me dominou ao ponto de não poder indicar, desde então, nem com palavras nem por sinais, o que tocava à minha salvação. (LSJ, II, 16)

Ashagiografias,aoinstruirosfiéisquantoàimportânciadobatismo,daordenação,domatrimônio,daconfissãoedapenitênciaedaextrema-unção,aindaque de forma assistemática, acabaram funcionando como um meio informal de catequese. Pelos exemplos das personagens, o público destas obras entrava em contato com os sacramentos e aprendia sobre a sua aplicação no cotidiano.

Quanto à assistência à missa, já estava prevista e regulamentada na Igreja hispânica pelo cânone 6 do Concílio de Coyanza.36Osfiéisdeveriamouviramissanas vésperas de sábado e aos domingos pela manhã. No LSJ II só há uma menção à missa, sem grande destaque: a proferida pelo bispo Teodomiro, ocasião em que vê o bilhete colocado por um pecador no altar em branco. A referência é só para precisar o momento e espaço em que o milagre ocorrera (LSJ II, 2). Contudo, essa cerimôniaépresençaconstantenasvidasdesantosberceanas.Muitosmilagreseexorcismos estão associados às missas, sejam privadas ou não, que nestas obras tornam-seomomentoparaapurificaçãodospecados,arestauraçãodasaúdeeoagradecimento (VSM 180, 361, VSD 569).

Gonzalo de Berceo considerava a não assistência à missa uma falta grave.

35.OCalceatenseVII,VIIIeIXtambémdestacaanecessidadedeconfissão.36. O Concílio de Coyanza foi convocado pelo rei Fernando I de Castela no século XI com o obje-tivo de reformar a Igreja hispânica. Sobre o Concílio de Coyanza ver Garcia Gallo (1950).

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Aofinalizarorelatosobreumamulherqueficoudoenteporteroptadoporficarem casa fazendo pão, ao invés de participar da missa, acrescentou a “moral” da história: “desende adelant, esto es de creer, las viésperas del sábado no las quiso perder, non tovo a tal ora su massa por cocer, oro majado luce, podésdeslo veer” (VSD 570).

Ao novelizar seus relatos, Berceo descreveu momentos e detalhes da celebraçãodamissa,comooshinoscantados,asoferendasentreguespelosfiéiseatéasvestimentasclericais,comonaVSM179.Elenãotratouespecificamenteda eucaristia nas obras em estudo,37 mas indicou, na VSD 332, que a missa era o momento para comungar. A participação dos leigos nas missas também é representada em diversas passagens, e não só assistindo-a, mas também com participação no responsório (VSD 566 e 588) e, inclusive, repetindo frases litúrgicas em latim, como em VSD 567d: “‘Gloria tibi Domine’ dixo la de Palencia”.38

6.7.3. A religiosidade

Ao lado dos sacramentos, os LSJ II e III, a VSM e a VSD apresentam outras crenças e formas de manifestar e viver a fé cristã. Algumas destas práticas, aindaquenemsempreoficializadaspelaIgreja,sãoaceitaselouvadaspelasobrasem estudo ante a outras, que são rejeitadas e condenadas.

O eremitismo, estilo de vida seguido por alguns leigos e clérigos à margem das autoridades eclesiásticas, era prática comumna IdadeMédia (SANCHEZHERRERO, 1984, p. 218-219). Esta é uma das formas de vivenciar a fé cristã que é louvada na VSM. Ser eremita, segundo VSM 32, é desligar-se do mundo, buscarasalvaçãoearemissãodospecadosatravésdamortificaçãodosdesejosda carne. Nas vidas de santos berceanas o eremitismo não é só apresentado como uma opção de vida cristã, mas também como uma estratégia para fortalecer a própria Igreja: “En los primeros tiempos nuestros antecessores, que de Sancta Eglesia fueron cimentadores, de tal vida quisieron facerse sofridores, sufrieron sed e fambre, eladas e ardores” (VSD 54).

37. Faz-se importante assinalar que Gonzalo de Berceo escreveu uma obra dedicada exclusivamen-te à celebração eucarística. Trata-se de Del Sacrificio de la Misa.38. Esses elementos incluídos nas Vidas berceanas nos levam a concordar com a hipótese proposta por alguns especialistas, como Adeline Rucquoi e Yndurain, de que um grande grupo de leigos, aindaquenãoescrevesseoufalasseemlatim,eracapazdecompreenderpartedamissa.Afinal,escrever, falar e compreender uma língua são habilidades diferentes. Por outro lado, as línguas dosromancesapresentamtransformaçõesocorridasnapróprialíngualatinadoséculoXaoXIIIeainda se encontravam em formação nas primeiras décadas do século XIII. Além disso, deveria ser grande a familiaridade dos leigos com os textos litúrgicos, já que eram ouvidos desde a infância periodicamente e também pelo próprio contato constante entre leigos e clérigos. Cf. Rucquoi (1993, p. 65-86); Yndurain (1976, p. 55).

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NosLSJIIeIIInãofigurameremitas,masháumpenitente,queabandonoua sua atividade como prelado e com “um hábito humilde”, passou a viver em uma choçadejuncojuntoàbasílicadoApóstolo,fazendo“jejuns,vigíliaseorações,dia e noite levava uma vida celibatária e santíssima” (LSJ II, 19).

Os séculos XII e XIII foram marcados pelo desenvolvimento de muitos grupos heréticos, nos quais a renúncia ao mundo era um dos traços característicos. Embora a presença de grupos heréticos na Hispânia seja um tema ainda discutido pelahistoriografia,certamentepelasviasdeperegrinaçãodeveriamcircularpessoascom crenças consideradas errôneas pela Igreja.39Desta forma, as hagiografiasapresentam os eremitas e penitentes dentro da mais estreita ortodoxia.40

Dentreasdiversasmanifestaçõesda religiosidademedieval,o cultoaossantos é a prática mais estimulada pelas obras e a própria razão de tais escritos. Nos LSJ II e III, apesar de reiterado em diversos pontos que Deus é o que opera maravilhasequeSãoTiagoésóoSeuinstrumento,aeficáciadoApóstoloéqueédestacada. Gonzalo de Berceo motivou a devoção aos santos não só declarando a sua própria fé, em VSD 758, como também apresentando uma oração de Domingo dirigida a San Millán, suplicando-lhe ajuda para enfrentar o rei García (VSD 158). Mas de todos os santos mencionados por Berceo, Maria é, sem dúvida, a mais clamada, tanto nos comentários do narrador, como nas falas das personagens das vidas em estudo. Vale destacar que ela é vista pelo poeta como mãe e esposa de Cristo,visãonãoconsideradaoficialpelaIgreja(VSM223,VSD103).NoséculoXIII, o culto mariano estava difundido em toda sociedade, inclusive nos meios universitários41; e as Vidasberceanasnãoseencontramimunesataisinfluências.NosLSJ II e III, comodestacamos no capítulo anterior,Maria sófigura umavez.

Mas as obras também registram o caráter mágico atribuído aos santos. Segundo os LSJ II e III e as Vidas berceanas, muitos fiéis acreditavam quebastava tocar nos santos, ou em suas roupas, para ser curado (LSJ II, 12, II, 22, VSM 139; VSD 342). Esta prática, comum no medievo, provinha da antiguidade e fundamentava-se no próprio texto neotestamentário, que narra a cura da mulher hemorroíssa, ocorrida ao tocar nas roupas de Cristo (Lc 8, 45-48, Mt 9, 20-22 e Mc 5, 25-34).

As obras também partilham das crenças do controle das forças da natureza de forma sobrenatural pelos santos. No LSJ São Tiago controla o mar (LSJ II, 7, II, 8, II, 9) e até abrevia distâncias (LSJ II, 4). Berceo chega a confessar que testemunhou acontecimentos fantásticos, como o poder de San Millán de prever

39. Sobre as heresias na Península Ibérica ver, além do clássico Menéndez y Pelayo (1956); Oliver (1982); Palacios Martín (1990-1991); Mitre Fernández (2002).40. Segundo Maldonado, existia certa tensão entre eremitismo, cenobitismo e hierarquia durante a Idade Média (1979, p. 75).41. Cf. Le Goff (1984b, p. 84-86). Sobre a devoção a Maria ver Iogna-Prat; Palazzo; Russo (1996); Warner (1991); Pelikan (2000). Sobre o culto a Maria na Península Ibérica ver Fernández Conde (1982b, p. 289- 357).

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e alertar, através das duas campainhas de seu túmulo que tocavam sozinhas, acontecimentos futuros (VSM 485-486). Mais do que um recurso retórico ou argumentoparaestimularasperegrinaçõesaocenóbioemilianense, épossívelque os autores/redatores das obras compartilhassem de tais crenças. Estas não eram incompatíveis coma fé cristã e indicama complexidadedas apreensõesculturais e da produção intelectual no medievo.

As oferendas, o culto às relíquias, as procissões e as peregrinações,manifestaçõesdareligiosidadeintimamenteligadasaocultoaossantos,tambémsão retratados nas obras analisadas. Contudo, verificamos uma preocupaçãomaior, por parte dos autores/redatores do LSJ, ao representá-las, evitando inserir devoçõesnãoaceitaspela Igreja.Ahagiografia fazmençõesagestosdosfiéispara alcançarem ou agradecerem graças recebidas, além da própria peregrinação, a forma de devoção mais realçada, tais como as vigílias no túmulo do santo (LSJ II, 21), as ofertas (LSJ II, 9), a entrega de ex-votos (LSJ II, 14 e II, 22), o toque de objetos ligados à peregrinação, como a concha (LSJ II, 12), o báculo e o embornal (LSJ II, 9). Berceo destaca que, para alcançar a cura, muitos doentes permaneciam em vigília no sepulcro do santo (VSD 594).42 E ao narrar os milagres realizados porsantoDomingo,afirmouquemuitosacendiamvelas,depositavamex-votosecolocavam oferendas nos túmulos como agradecimento pelas bênçãos recebidas (VSD 580bcd, 587 e 670).

Como sinais concretos da presença dos santos, encontravam-se as relíquias,43 que, muitas vezes, chegavam a substituir o túmulo de um santo em alguns locais de peregrinação. Durante a Idade Média, o prestígio de uma igreja eramedidopelas suas relíquias,queatraíammuitosfiéis.44 Acreditava-se que, através de suas relíquias, os santos faziam-se mais poderosos para agir em favor dos homens. O valor da relíquia, portanto, residia na crença de que os corpos dos santos eram uma espécie de ponte para o espiritual. Contudo, mais do que umeloentreoshomenseDeus,comoafirmaSofiaBoeschGajano,“ocorpodosanto testemunha a possibilidade de uma unidade entre o homem e o divino que amortenãopoderiainterromper,apenasreforçar”(2002,p.452).Essefenômenoé explicado pelo antropólogo José Carlos Rodrigues: para os medievais havia uma “lógica de indistinção metonímica entre as virtudes do corpo (no caso, um fragmento de cabelo, sangue, osso) e as virtudes contidas na alma dos santos” (1999, p. 55).

Essa lógica fundamenta os LSJ II e III, que salientam ter sido “trasladado

42.Apráticadevigíliadosdoentesedeseusparentesjuntoaostúmulospresentesnashagiografiasestudadas, também chamada incubação, possui aspectos similares aos que eram realizados nos templos pagãos, segundo os textos antigos preservados (BOGLIONI, 2000). Maldonado ressalta que esta era uma prática freqüente nos grandes centros de peregrinação. Nestes locais, existiam lugaresespecíficosparaosdoentespassaremanoite.Muitoseramtratadospelosprópriosclérigoslocais (1979, p. 67 e 82).43. Estas, muitas vezes, chegavam a substituir o túmulo de um santo. Cf. Bonnassie (1985, p.166).44. Sobre o tema ver Buenacasa Perez (2003); Fernández Conde (1982b, p. 315).

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para a Espanha, para terras da Galiza, o corpo inteiro do mui bem-aventurado apóstolo São Tiago”, um preciosíssimo tesouro (LSJ III, 2). Como destaca Hilário Franco Jr, essa ênfase não era gratuita e objetivava “fazer frente à mesma pretensão por parte de outros locais, como Saint-Sernin de Toulouse e Saint-Maurille d´Angers, sem contar os que pretendiam ter partes dele, caso de Saint-Vaast de Arras e da igreja de Santiago de Liège” (1990, p. 84).

Berceo registrou o valor dado às relíquias nos meios eclesiásticos, ao relatar o murmúrio dos monges silenses ante a recusa de seu abade, Domingo, de trazer relíquias dos mártires São Vicente, Sabina e Cristeta para o mosteiro: “de las sanctas reliquias que a cuestas trasquiestes, a quantos las pidieron dellas a todos diestes; a vuestro monesterio dellas non aduxiestes, tenemos que en esto negligenciaficiestes”(VSD280).SegundooqueémencionadoporDomingo,emresposta à crítica dos monges, podemos concluir que, para Berceo, as relíquias eram vistas como dons do próprio Deus (VSD 282abc). O poeta igualmente incluiu na VSM a origem de certas relíquias do mosteiro emilianense, como o óleo sagrado (VSM 336-339), as campainhas do túmulo do santo (VSM 485) e uma viga de madeira, milagrosamente crescida por intercessão de Millán e que sanou um problema na construção de um armazém (VSM 225-237). 45

Faz-se importante ressaltar que o grande número de relíquias que se espalhavam, chegando a ser vendidas em diversas localidades, preocupavam não só os centros de peregrinação, como a própria Igreja papal. No cânone 62 do IV Concílio de Latrão são apresentados diversos cuidados que deveriam ser tomados em relação às relíquias e seu culto, dentre estas a necessidade da aprovação papal para a sua exposição e cuidados quanto à sua veneração.46 Gonzalo de Berceo, contudo, pareceu ignorar estas recomendações e fez propaganda das relíquiasrelacionadas aos santos que biografava e que se encontravam nos centros de peregrinação que objetivava propagar (VSM 237). Quanto aos LSJ II e III, a narrativa deixa evidente que Roma reconhecia a presença do corpo do Apóstolo Tiago na Galiza, mantendo-se dentro das diretrizes romanas.

Dentre os muitos objetos venerados pela religiosidade popular, a cruz é incorporada aos relatos. Segundo Maldonado, portar a cruz tornou-se uma prática generalizadaapósoséculoXI(1979,p.56).NosLSJIIeIIIelafiguraduasvezes,não como um objeto, mas como um sinal. Para vencer o dragão, os discípulos de Tiago fazem o sinal da cruz (LSJ III,1) e as portas de Saragoça abrem ante esse mesmogesto (LSJ II,1).Acruz tambémfiguranasobrasberceanas,comoum

45. Em uma coluna da Igreja de San Millán de Suso há uma cavidade feita de azulejos, na qual se conserva um pedaço de madeira, que, acredita-se, tomou parte desta construção (DUTTON, 1984b, p. 222).46.“[...]Enloqueserefierealasreliquiasnuevas,nadiedebedarlesveneraciónsincontarprimeroconlaautorizacióndelromanopontífice.Enlosucesivo,losrectoresdelasiglesiastendránsumocuidadodequelosfielesqueacudenaellasconelfindevenerarlasreliquias,noseveanengañadospor vanas imaginaciones o falsos documentos como ha ocorrido en muchos lugares por motivos de lucro” (LATERANENSE IV, 1973, p. 198-200).

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objeto ou sinal, utilizado pelos santos no seu dia-a-dia, ao realizar curas (VSM 130), antes de comer (VSD 16) e até antes da morte (VSM 301). 47

Para acudir aos centros religiosos onde eram veneradas as relíquias ou encontravam-se os túmulos dos santos, locais de milagres por excelência na visão dos homensmedievais, eram realizadas peregrinações.Ambas as hagiografiasestudadas estimulam a prática da peregrinação. Os LSJ II e III promovem as peregrinações a Compostela, e a VSM e VSD, aos mosteiros emilianense esilense.

As obras também descrevem traslados. O LSJ III incorpora, inclusive, duas versõesdomesmofato,devidoasuaimportânciaparafundamentaropoderiodobispado compostelano. Neles ressalta-se o papel de São Tiago e seus discípulos na evangelização da Península Ibérica e a luta contra o paganismo, além de situar o local do túmulo do apóstolo. Berceo descreve o traslado de São Vicente e suas irmãs, bem como a procissão realizada na ocasião. Dos vários elementos apresentados nestes versos, dois são dignos de nota. Em primeiro lugar, o autor afirmouqueporondeoscorposdessessantospassaramforamsendooperadosmilagres, realçando o poder maravilhoso e mágico das relíquias (VSD 275). Em segundolugar,aparticipaçãodosleigosnacerimôniaeofatodequeduranteaprocissãoforamcantadostantoshinossacrosquantocançõesprofanas,semfazerqualquer crítica ou comentário, demonstrando familiaridade com esta prática (VSD 270).

Os jejuns (LSJ II, 19, VSD 41), vigílias (LSJ II, 19, VSD 678) e abstinências (LSJ II, 19, VSM 48) são mencionados em ambas as obras como caminhos para asantificação.NoLSJII,19,Estevãoescolheuesseestilodevidaeosprópriossantos biografados por Berceo praticaram-nos no intuito de fugir do pecado e estar mais perto de Deus.

Os exorcismos estão ausentes dos LSJ II e III. A presença do diabo é personificadanessaobrapelodragão,queéafugentadopelosinaldacruz(LSJIII,1) ou com as cadeias que foram tocadas pelo Apóstolo (LSJ II,22). Entretanto, são constantes nas vidas de santos berceanas, praticados não só pelos santos, mas também por seus discípulos. As Vidas berceanas descrevem os endemoniados, os gestos e objetos que eram utilizados nos exorcismos, tais como a água benta eoscrucifixos(VSD690,691,693,694,697).Essadiferençadetratamentodotema nas obras pode ser explicada pelo fato de, apesar dos exorcismos estarem mencionados já no Novo Testamento, é, segundo Tamm, “in the second half of the 12th century the descriptions of exorcistic episodes became more detailed, which was very rarely the case in earlier periods” (2003, p. 8).

Além das práticas, diversas crenças oriundas da religiosidade também se encontram presentes nas narrativas analisadas. Em primeiro lugar, o caráter contratual das relações entre o homem e os seres sobrenaturais. Ou seja, asbênçãosrecebidaspelosfiéissãovistascomoresultadodeumcontratoouacerto

47. Sobre a cruz nas obras berceanas há um artigo de Ruíz Dominguez (2001).

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entre o pedinte e o santo ou o próprio Deus. Para manter-se abençoado, caberia ao fielmanterseuscompromissos,como,porexemplo,pagarosvotosaSanMillán(VSM 479-480) ou peregrinar até Santiago (LSJ II, 9).

Nãofigura,nosLSJIIeIII,nenhumapráticaoucrençadareligiosidadequesejacondenada.Jáoclérigoriojanorejeitoualgumasdestasmanifestações.Primeiramente,alertoucontraaheresia,classificandoosheregescomo“falsosque semnan mal venino” (VSD 77b). Como já assinalamos, a heresia não estava disseminada na Península Ibérica no século XIII, mas era um tema combatido por Roma. Como clérigo católico, o poeta partilhava da preocupação com a expansão de grupos heréticos, sobretudo nas rotas de peregrinação a Compostela, por onde circulavam centenas de pessoas; daí ter introduzido o tema em sua obra.

Massãoaspráticasmágicas-adivinhações,augúrios,encantosecartas-ascampeãsnascondenaçõesdossantos,queasconsideraineficazes(VSD403bcd,465 ab, 640 ab). A reprovação das práticas mágicas tem longa tradição na cultura judaico-cristã.Asprimeirasproibiçõesestãoregistradasnotextobíblicohebraico(Lv. 19,31; 20, 6-27 e Dt. 18,11). O Novo Testamento mantém a tradição: nos últimos versículos do livro do Apocalipse, por exemplo, aos mágicos destina-se o largo ardente de fogo e enxofre (Ap. 21,8). Mantendo esta tradição, desde o início da Idade Média, estas práticas foram associadas ao paganismo pelos clérigos. Já no Concílio de Elvira, de 403, foram duramente combatidas.48 Digna de nota é a relação entre as atividades mágicas e seu alto custo, feita pelo autor em VSD 389 cd: “avié mucho espeso en vanas maestrías, tanto que serié pobre ante de pocos días”. O melhor, portanto, era dirigir-se diretamente aos santos, como alerta o poeta.

Aheresiaeaspráticasadivinhatóriassão,dentretodasasmanifestaçõesdareligiosidade apresentadas nas vidas de santos berceanas, as únicas condenadas, visto que colocam em risco a autoridade da Igreja. A heresia, por um lado, rompia com os dogmas e a hierarquia eclesiástica; quanto às práticas mágicas, vistas como permanências pagãs, eram, por si só, contrárias à fé cristã. Como clérigo reformador, Gonzalo de Berceo não poderia deixar de alertar o seu público contra tais perigos.

6.8. As atividades produtivas

No tocante à representação das atividades produtivas, os LSJ II e III, a VSM e a VSD são muito diferentes. Enquanto os primeiros tratam de atividades mais relacionadas ao meio urbano, os últimos priorizam as rurais. Essa diferença se explica pelos ambientes de redação das obras, bem como da matéria tratada. São Tiago vincula-se a Compostela, sede do arcebispado; Millán e Domingo aos

48. Sobre as práticas mágicas e sua repressão durante a Idade Média castelhana, ver o trabalho de Homet, de 1980, especialmente as páginas 178 a 206.

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mosteiros.Como já lembramos, os LSJ II e III destacam a ação dos hoteleiros, atividade

econômicafundamentalnoscaminhosdeperegrinação.Osdoispersonagensdaobraquesãohospedeirossãoqualificadoscomomauseutilizadoscomoexemplopara destacar o castigo que os que enganam peregrinos recebem. Outra atividade presente é o comércio. No LSJ II, 14 há um mercador desonesto que rouba os produtosdeoutroeocolocaemumcárcere.Comocrescimentodasperegrinaçõese a expansão urbana, as atividades de comércio cresciam no norte da Península e em Compostela, o que também justificaapresençadessemilagrecomclarosobjetivos pedagógicos. Em outro milagre, o 22, menciona-se o comércio de escravos relacionado aos muçulmanos. A última atividade citada é a exercida por Geraldo: ele era peleteiro, atividade artesanal ligada ao comércio de roupas (LSJ II, 17). Como já salientamos, durante o governo de Gelmirez essas atividades econômicasforamalvodelegislação.Emsintoniacomessasnormas,osLSJIIe III, traduzem, em forma de ensinamento pastoral e didático, os alertas contra roubos e maus-tratos em relação às que circulavam pela Galiza. Vale lembrar que esses ensinamentos não estão presentes no Calceatense.

Berceodedica-searepresentarasatividadeseconômicasligadasaocampo,mais próximas do ambiente monástico. Ele menciona o pastoreio: informa que os seus protagonistas eram auxiliares dos pais no cuidado dos rebanhos (VSM 5, VSD 19); apresenta a rotina diária dos pastores (VSD 20-22 e VSM 8); cita os perigos que assolavam os rebanhos, ressaltando a importância do pastor manter-se acordado e vigilante contra “toda lesión” (VSM 6, 8, VSD 24); menciona os objetos utilizados pelos pastores, como o cajado, a capa (VSD 23) e a cítara, usada para espantar o sono (VSM 7).

Quanto às atividades agrícolas, as obras apresentam referências a uma grande variedade de cereais, tais como aveia (VSD 355), trigo (VSD 56c), órdio (VSD 689) e outros grãos (VSD 420, 675, VSM 466), bem como mencionam hortas (VSD 377-379) e parreiras (VSD 230, VSM 466, 472, 474). Na lista das vilas e cidades que deveriam tributar ao mosteiro de San Millán de la Cogolla, apresentadanaVSM,figuramoutrosprodutos:grãosevinha(VSM466ab).

O poeta também faz referências ao calendário agrícola, indicando o mês de agosto como o momento de “segar” (VSD 420). E como clérigo, também apontou, em VSD 464ab, a importância de dizimar em agosto, ou seja, logo após a colheita: “Por ir a Paraíso buscávalis carrera, dizié que se guardassen de la mortal manera, dezmassen en agosto lealmient su cevera” (VSD 464abc).49 O autor ainda mencionou as inseguranças da recolha dos produtos, em virtude dos problemas climáticos ou furtos (VSD 419-420), e destacou o preparo do solo para a colheita e o emprego da enxada (legone) como instrumento de trabalho

49. Nesta mesma estrofe, no verso d, recomenda-se que também seja pago o dízimo referente ao gado. Estes versos estão em sintonia com os cânones 9 e 42 do sínodo calagurritano de 1240 e o 19 do de 1250. Cf. Bujanda (1946, p. 122, 126).

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(VSD 378 e 381). As obras também fazem referência ao trabalho manual. Berceo ressaltou

a sua importância, inclusive nos meios eclesiásticos (VSD 107), e indicou que Domingo, como monge, chegou a lavrar (VSD 378-383). As obras em estudo sugerem a presença de jornaleiros, trabalhadores temporários,50 e de moros herropeados (VSD 433), bem como denunciam o quanto os trabalhadores sofreram com as guerras, como em VSD 738.

Opoema tambémdestacaos conflitospelo espaçopara a expansãodasatividadespastoriseagrícolas.NosermãofictíciodeMonteRúbioencontramosuma exortação, adicionada por Berceo, relacionada a essa disputa: “castigad vuestros fijos que non sean osados, en semnadas agenas entrar con susganados”.

Apesar das vidas de santos berceanas ambientarem-se especialmente em meios rurais, há referência às vendas (VSM 278, VSD 366), mercados (VSD 290,313,744)eàfiguradobuhones (VSM 336). Aliás, este último elemento, adicionado por Berceo ao relato da VE, cap. 29, é citado para demonstrar que o óleo milagroso que manteve acesa as lâmpadas do túmulo de San Millán era de tão boa qualidade que não poderia ter sido comprado a estes comerciantes ambulantes, provavelmente comuns em La Rioja medieval. Essas obras também fazem referências ao uso da moeda em variadas circunstâncias: nos mercados (VSD 290), para o pagamento de resgates (VSD 364), salários (VSM 238, VSD 379) e no pagamento dos votos ao mosteiro emilianense, ao lado de produtos in natura.

Provavelmentebaseadonasmuitasconstruçõesqueconheceunascidadespor onde passou ou acompanhando reformas em sua igreja paroquial ou no Mosteiro de San Millán de la Cogolla, o poeta também descreveu as etapas da edificaçãodeumprédiona IdadeMédia:abuscapormateriais,ocontratodepessoal especializado, a preparação das estruturas, a construção em si (VSM 226-227, 238).

6.9. A alimentação

Os LSJ II e III não se detêm na questão da alimentação. No LSJ II, 5, faz-se uma menção geral às bebidas oferecidas maldosamente pelo hospedeiro a um homemeseufilhoparaenganá-los.NoLSJIII,3,aotratardodiadasemanaedohoráriodomartíriodeTiago,afirma:“otrosmarchabanacomeryabeber,éliba a recibir el indefectible alimento de la vida eterna, que le había sido antes

50. Quando alguns homens passaram a noite tentando roubar hortaliças, sem sucesso, da horta de Silos, acabaram por revolver e oxigenar o solo, preparando-o para novos cultivos. No dia seguinte foram chamados por Domingo para receber o pagamento pelo cumprimento desta tarefa (VSD 379).

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prometidoporelSeñor”.Tambémhárecomendaçõessobreojejum(LSJII,2,II,17, II, 19). Ou seja, o alimento material não é um elemento digno de destaque na obra, que opta por realçar o alimento espiritual.

Na VSM e na VSD a alimentação ganha maior destaque. Atesta-se a carência de alimentos: na VSD 449, menciona-se a fome que vitimou todo o reino de Castela e, especialmente, o mosteiro de Silos, em 1043; e na VSM 253-258 diz que alguns pobres pediram ajuda a Millán e este não tinha o que lhes dar. Para resolver o problema da escassez de comida, a obra menciona a caridade dos ricos, como Onorio, que entregou ao Cogollano diversos alimentos, com os quaisosantopôdesupriranecessidadedemuitos(VSM253-258)eempregandoo topos, inspirado nos relatos neotestamentários, da multiplicação de alimentos. Segundo a VSM 245 a 248, muitas pessoas haviam ido visitar Millán quando fazia muito calor. Apesar de não ter muito vinho, tinha só “chica mesura”, o santo deu de beber a todos, de forma maravilhosa.

Mas os alimentos apresentados nas Vidas berceanas também têm o objetivo decaracterizarospersonagensesuasações.Mount,emumartigopublicadoem1993, demonstrou que os diversos tipos de pães apresentados por Gonzalo em suas obras - de aveia, órdio e trigo - funcionavam como uma forma de hierarquização de valores (p. 49). Segundo este autor, Berceo uniu as diferenças entre os pães, alimentos cotidianos e, portanto, conhecidos por todos, para apresentar liçõesespirituais (p. 52). Neste sentido, por exemplo, o pão de cevada torna-se, nestas obras, símbolo da humildade dos arrependidos: “Yogo ant el sepulcro toda una semana, comiendo pan de ordio, con vestidos de lana; entrante de la otra, el domingo mañama, salió um sancto grano de la sancta milgrana” (VSD 689).

Acreditamos que, além dos pães, outros alimentos acabam ocupando esta mesma função nas Vidas berceanas. Assim, para demonstrar a simplicidade da alimentação monástica, a VSD 377 diz que na horta do mosteiro de Silos existiam alhos-porós, comuns na região, resistentes ao inverno e muito usadas na alimentação dos mais pobres.51 Para ressaltar a renúncia do eremita aos prazeres do mundo, a VSM 67ab representou o santo comendo ervas e bebendo água fria.

As Vidas berceanas também destacam a relação entre alimento e posição social. Um cavaleiro só em casos extremos submeter-se-ia a comer um pão de aveia, feito com um cereal que era dado aos animais e só comido pelos mais pobres (MOUNT, 1993, p.51-52). Ao menos é o que a obra declara sobre Domingo, cavaleiroqueseencontravacativopelosmuçulmanos:“metieronloenfierros,enduracadena,/Delazrar,efamnedabanlefierapena,/Dabanleyantarmala,enonbuena la cena /Combrie, si gelo diessen, de grado pan davena” (VSD 355).

Gonzalo de Berceo não incluiu em suas Vidas qualquer restrição alimentar. Em VSM, porém, sublinha a dieta adotada por Millán durante a Quaresma: pão e água (VSM 145). Com isto, talvez o poeta desejasse apresentar o monge como um exemplo a ser seguido e estimular o cumprimento de um dos cânones do

51. Sobre os alhos-porros em La Rioja, ver Dutton (1980).

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sínodo calagurritano de 1240: “mandamos, que ninguno non coma carne en la quaresma, nin en las quatro témporas, nin en las vigilias que son vedadas por derecho, nin en día de viernes, sin nuestra licencia especial”.52

6.10. As viagens e os viajantes

Os LSJ II e III dão, por seus objetivos, grande destaque às viagens. Neles são salientados sobretudos os perigos das trajetórias marítimas, como piratas, choques com escolhos, abismos (LSJ III,1), ataques de muçulmanos (LSJ II,7), grandes ondas (LSJ II, 8) e tempestades (LSJII,9). Em relação às viagens terrestres, os perigos são os maus hospedeiros (LSJ II, 5 e 6), os bascos bárbaros e ímpios (LSJ II, 6), os enganos do diabo (LSJ II, 17), os animais ferozes, como o leão e o dragão (LSJ II, 22 e III,1), e as doenças que poderiam ser adquiridas no caminho (LSJ II, 3, II, 4, II, 16). Os peregrinos são retratados, na grande maioria dos casos, viajando em grupos e com animais, como asnos, cavalos e burros. Também articulam as viagens de peregrinação a Compostela com as dirigidas a Jerusalém (LSJ II 7,II 8, II 9,II 10). O que mais se sobressai no relato, porém, é o livramento que Tiago concede aos peregrinos. Ou seja, para estimular a peregrinação, não só são apresentados sutis conselhos de viagens (cuidados com os maus hoteleiros e viagens em grupo), como os que queriam partir em peregrinação são encorajados arealizaraviagem,poisficaevidentenotextoapromessadeque,paraquaisquerperigos, se pode contar com a ajuda do Apóstolo.

As vidas de santos berceanas também incluem referências às viagens feitas pelos santos protagonistas e pelos muitos homens e mulheres, peregrinos, que vinham ao encontro dos santos. Nas obras são apresentados itinerários. Na VSD 272, por exemplo, descreve-se a rota utilizada na trasladação dos corpos de São Vicente, Santa Sabina e Santa Cristeta de Ávila para o mosteiro de São Pedro de Arlança: “travessaron el Duero, essa agua cabdal, abueltas Duratón, Esgueva otro tal; plegaron a Arlança acerca del ostal” (VSD 271-272). Este itinerário foi uma adiçãodeBerceoàsinformaçõespresentesnaVDSI,VIII,quesóinformaqueforam muitos os que participaram deste evento. Caso semelhante ocorre na VSM 141. Ao relatar a cura de Bárbara, uma mulher proveniente de Amaya, o autor afirmouqueesta,parachegaratéondeseencontravaosanto,precisouatravessartoda Castela. Trata-se de mais uma adição do autor (Cf.: VE, cap. 10).

As Vidas berceanas, como os LSJ II e III, registram os perigos dos caminhos, como os ataques muçulmanos (VSD 353), e até citam meios de transporte, como cavalos e carretas (VSD 291). O ato de viajar está tão presente nestas obras, que em um dos versos o autor se questionou quanto ao meio de transporte usado por uma das mulheres que foi curada pelo santo: “Alegre e bien sana metióse

52. Cânone 53. Cf. Bujanda (1946, p. 127).

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O COTIDIANO

encarrera,nolosébiensiivadepieocavallera,enfermóasosorasdetanfieramanera,quesefizotanduracomounamadera”(VSD291).

As vidas de santos berceanas preocupam-se em caracterizar os viajantes, ressaltando seu cansaço e suas dificuldades. Há que ressaltar que muitossão descritos como doentes, que, muitas vezes, não podiam viajar sozinhos e necessitavam de guias (VSM 324, VSD 623). Um tipo de viajante em particular recebe destaque nas obras de Berceo, tal como nos LSJ II e III: os peregrinos. As vidas de santos berceanas não só descrevem os santos biografados acolhendo aos peregrinos,comoemVSD408Domingofiguraexortandoparaquesejaprestadaassistênciaaessegrupoespecíficodeviajantes:“albergatlosromeosqueandandesarrados, de vuestros vestidiellos dad a los despojados” (VSD 469ab). Na oraçãofinaldaVSD,dirigidaaSantoDomingo,onarrador também intercedepelos peregrinos: “a los peregrinantes gana securidad, que tenga a derecho su ley la christiandad” (VSD 773).

6.11. As guerras

Durante séculos a guerra foi um elemento do cotidiano ibérico. No período em que o LSJ foi redigido/organizado, o reino castelhano-leonês estava assolado pela guerra civil e pelo avanço almorávida. No século XIII, a situação vivida por Berceo em La Rioja era distinta; mas, mesmo não tendo convivido de perto com a guerra, provavelmente o poeta mantinha-se informado dos movimentos militares graças às notícias de batalhas que circulavam. Por outro lado, os pesados impostos para sustentá-las, que como clérigo também estava sujeito a pagar, não permitiam seu total esquecimento.

OsLSJIIeIIImencionamconflitosdecristãoscommuçulmanosecontraoutros cristãos. Aliás, os agraciados pelo santo, em sua maioria, são cavaleiros ou nobres, e o próprio Santo se apresenta como cavaleiro (LSJ II, 19). Muitos milagresocorrememsituaçõesdebatalhaehá,inclusive,umconfrontomarítimoregistrado (LSJ II, 7).

Quando as batalhas são contra muçulmanos, com exceção do milagre 1, os cristãos saem vencedores com a ajuda do Apóstolo (LSJ II, 7, II, 9, II, 19). Nas batalhas entre cristãos, os perdedores são destacados, já que geralmente são aprisionados ou ameaçados de execução e libertados por São Tiago. A obra nãoomitejuízosemrelaçãoaosconflitosentrecristãos,representando-ascomoeventos “normais”. Só em um caso a obra elabora um comentário: a batalha perdida contra os moabitas foi “por merecimentos”, questão que analisamos no capítulo 2.

As Vidas berceanas dão mais detalhes sobre as batalhas. Descrevem algumas operaçõesdeguerra,comocavalgadas,aceifas,guerrasdeconquistaeguerrasde caráter religioso. As cavalgadas são retratadas como iniciativas de pequenos

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

grupos de cavaleiros, nem sempre satisfatórias, que visavam o saque de vilas, castelos e cidades muçulmanas ou o seqüestro de mouros e a posterior cobrança do resgate, tal como agiram os cavaleiros de Fita, tendo como alvo a vila muçulmana de Guadalajara (VSD 737). Berceo também mencionou as aceifas islâmicas. Seus objetivos são similares aos das cavalgadas cristãs: saquear e seqüestrar nobres. Eramembatesparticulares,comobjetivoseconômicos(VSM415,VSD354).AsVidas berceanas também apresentam guerras de conquista, como a de Leovigildo contra os cantábricos, que objetivava a submissão da região. Para o poeta, esta guerra foi permitida por Deus, pois os moradores da Cantábria recusaram-se a ouvir a profecia de Millán (VSM 289).

Destacamos, porém, o embate que Gonzalo de Berceo relatou como uma verdadeira guerra santa, a batalha de Simancas, sobre a qual tratamos no capítulo anterior.Maisdoqueumalutaentrereinos,esseconflitoérepresentadocomouma luta religiosa, no qual o Cristianismo e o islamismo duelavam (VSM 397-398). Durante a batalha de Simancas, segundo o relato da VSM, ocorreram fatosmaravilhosos: asflechas enviadaspelosmuçulmanosvoltavam-secontraeles mesmos (VSM 444); San Millán e São Tiago apareceram nos céus (VSM 446-447) e, apesar do menor número, os cristãos foram vencedores (VSM 413). Os preparativos, as estratégias e as alianças são descritas; os castelos são preparados (VSM 399), são feitas reflexões quanto ao potencial de fogo dosinimigos (VSM 407), busca-se apoio militar (VSM 400-405) e são tomadas diversasprecauçõesantesdabatalha(VSM413).Osataques,aslutasnocampode batalha e a importância da liderança na guerra também são retratados. Assim, quandoAbderramansaidocampodebatalha,osmourosficamsemsabercomoagir, o que desarticulou todo o ataque muçulmano. O descanso e alegria após a luta vitoriosa, bem como a divisão do botim, também não são esquecidos (VSM 457-458).Opoetacompôsumrelatoqueseiniciacomapreparaçãoespiritualparaabatalhaatéavitóriafinal.Ocarátersacrodaguerra,quesefarápresenteem outros textos do século XIII, tem na VSM, segundo Alvira Cabrer, um dos primeiros exemplares.53

Mas se a guerra traz riqueza e fama aos vencedores, igualmente traz sofrimentos para os que são feitos cativos, dor que se prolongava até o pagamento de resgates, prática habitual no medievo hispânico, tanto por cristãos como muçulmanos, ou a fuga (VSD 356, 357).

6.12. O cotidiano como cultura

Se, por um lado, não há uma correspondência direta entre o que foi vivido nodia-a-dia ibéricomedievaleoque foi inseridonashagiografiasanalisadas,

53. Sobre esta questão, ver Alvira Cabrer (1994).

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O COTIDIANO

poroutro,nãoépossívelafirmarcategoricamentequetudooquefiguranessestextosépurainvenção.Elesincluemrepresentações,frutodaseleçãodemateriaisdiversosacrescidosdejuízos,destaques,omissões,amplificações,idealizações,etc., que permitem conhecer como o clero da catedral de Compostela e os monges emilianenses e silenses, dos quais Gonzalo de Berceo foi porta-voz, interagiam com a sociedade ao redor.

Quando sistematizamos os dados que figuram dispersos nas obrasestudadas,deparamo-noscomdiversosinfluxosqueinfluenciaramacomposiçãodessas obras: o texto bíblico, a patrística, as reflexões teológicas, as tradiçõeslocais,asexperiênciasvividas,asdiretrizesdacúriaromana,osconflitosdepoder.Destaforma,asmúltiplasrepresentaçõesdocotidianonemsempresãocoerentes.Por exemplo, em relação aos nascimentos e às mortes: ao mesmo tempo que são motivos de alegria, também trazem medo e preocupação; a ação de São Tiago é maiseficazparaoperdãodospecadosdoqueaconfissãoeapenitência;asdoençasganhammúltiplasexplicações;osconflitosnoseiodaIgrejasãoignoradoseosclérigos são representados como impecáveis, não se deixando levar pela simonia ou nicolaísmo; destaca-se o saber eclesial face ao dos leigos; constrói-se uma narração que incorpora diversos aspectos em sintonia com o dia-a-dia leigo; as batalhascontraosmuçulmanossãoqualificadascomosantas,parasódestacaralguns aspectos. O cotidiano representado nessas obras não é gratuito, mas fruto dosobjetivosimediatosdashagiografiasedavisãodemundodeseusautores/redatores, constituída a partir de elementos diversos. Não se trata, portanto, de “reflexo”doreal,masdeexpressõesdaculturadegrupos,que,adespeitodesuassimilitudes devido à inserção eclesiástica, possuem particularidades em função domomentoemqueviveramedaapreensãocriativadastradiçõesrecebidas.

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Conclusão

Como assinalamos na introdução, o presente livro é fruto da retomada de nossa tese de doutorado, aprovada em 1996. Naquele trabalho analisamos somente duas obras de Gonzalo de Berceo, a Vida de San Millán de la Cogolla e a Vida de Santo Domingo de Silos, redigidas na primeira metade do século XIII. A opção pelo estudo desse material na ocasião advinha do fato de suas fontes terem sidopreservadas.Assim,pudemosverificarograudeoriginalidadedesseautorao compor seus poemas.

Apartir das reflexões acumuladas nos últimos onze anos, sobretudo nocampodahagiografiamediterrânicacentro-medievaledahistóriacomparada,équeotrabalhoanteriorfoirevisto.Forammantidosoarcabouçoteórico,asquestõesnorteadoraseastemáticasdeanálisedatese–asrepresentaçõesdotempo,espaço,personagenseaspectosdavidacotidiana–entretanto,asconclusõesanterioresforam confrontadas às da análise sistemática de dois livros da compilação Liber Sancti Jacobi, elaborados no século XII: o II, um tratado de milagres, e o III, que contém dois relatos de trasladação do corpo de São Tiago para a Galiza e trata das festas ligadas a esse santo. Nem todos os elementos anteriormente analisados constam no LSJ II e III. Esse dado, antes de ser problemático, deu fundamento ao pressupostocentraldestetrabalho,dequeostextoshagiográficossãomateriaisimprescindíveis para o conhecimento histórico das sociedades em que foram formuladas. Essas ausências, em geral, portanto, não são gratuitas, mas estão relacionadas ao momento e objetivo de redação dessa obra.

A despeito da temática religiosa de tais obras, da presença de diversos topoi cristãos,deseucarátermodelaredesuas intençõespropagandísticas,osLSJ II e III e as Vidas berceanas foram compostos em diálogo com seus contextos históricosevisavamos interessesdosgruposespecíficosqueaspromoveram,apresentando diversas singularidades. Desta forma, os LSJ II e III ocuparam, na comparação,opapeldevariáveldecontrole,quepermitiurevisitarasconclusõeselaboradasnofimdatese.

ApesquisacomparativafoirealizadatalcomopropõeKocka,nocampodaHistória Cultural, utilizando os conceitos de apropriação cultural e representação, ambos propostos por Roger Chartier, e pautada no paradigma pós-moderno. Nesse sentido, abordamos o nosso objeto sem elaborar dicotomias ou buscar explicaçõesgerais.Nossametafoirealçarasparticularidades,asinconstânciaseascontradições.Naanálisedostextosforamempregadasdiferentestécnicas:a lexicográfica; a semântica; a narrativa; a diacrônica e sincrônica, a fim deverificarmos como o tempo, o espaço, os personagens e o cotidiano foramrepresentadosnashagiografiasestudadas.Nossosobjetivoseramdebaterovalordashagiografiascomomonumento,visãoememória,destacandoarelaçãoentreasobraseseucontextodeprodução;identificareanalisarascorrentesculturaisqueinfluenciaramacomposiçãodessestextos,ediscutiropapeldoshagiógrafos

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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na Península Ibérica medieval, como construtores de memória e divulgadores de uma dada visão sobre o mundo social.

OsLSJIIeIII,aVSMeaVSDsãomonumentoshagiográficosqueforampreservadosporséculos,apresentamvisõessobreomundosocialrelacionadasao ambiente cultural e aos interesses de poder dos grupos que os patrocinaram, constituem e divulgam uma memória sobre os santos que biografam. Escolhemos essasobrasparaumaanálisecomparativa,justamenteporsuanaturezahagiográficacomum,aindaque tenhamsidoredigidasemlocaisemomentosespecíficos,epelo fato dos santos protagonizadores serem competidores. Os mosteiros de San Millán de la Cogolla e Domingo de Silos estavam localizados próximos às vias de peregrinação para Santiago de Compostela, por onde circulavam milhares de pessoas anualmente; por isso, criaram estratégias para atrair alguns desses viajantesatéosseussantuários.Dentreelas,aproduçãodetextoshagiográficos.

Não encontramos trabalhos que se dedicassem a comparar, de forma sistemática, essas obras. Contudo, os estudos sobre o LSJ e sobre as obras berceanas se iniciaram há mais de um século. Face às obras berceanas, o LSJ ainda foipoucoestudado.EnquantoasprimeirasediçõesdospoemascompostosporGonzaloforampublicadasnoséculoXVIII,aprimeiratranscriçãopaleográficado principal códice do LSJ, o Calixtinus, só foi editada na década de 40 do século XX. Não obstante, ainda há muitos aspectos a serem analisados, sobretudo no campo da História e empregando diferentes perspectivas teórico-metodológicas. No Brasil, as pesquisas sobre o LSJ e Gonzalo de Berceo ainda são escassas.

As obras estudadas possuem caráter clerical, mas foram elaboradas em contextos históricos distintos, com objetivos e formas bem diferentes. O LSJ é fruto da reunião de diversos textos compostos por vários autores em distintas ocasiões,mas que foram unidos sob a direção deDiegoGelmírez, arcebispocompostelano. Certamente ele não foi o responsável direto pela compilação, mas foi o seu idealizador. Assim, o LSJ foi formado em sintonia com a política levada a cabo pelo prelado, que se calcou em alianças com a realeza castelhano-leonesa, a cúria romana e Cluny. Os LSJ II e III, bem como os demais materiais que compõemacompilação,foramproduzidosnaescolacatedralescadadiocesedeCompostela, fundamentado em um saber monástico, redigidos em latim e em prosa. Eles visavam legitimar a Sé, destacando o seu caráter apostólico, a sua harmonia com Roma, validando e fundamentando todas as conquistas alcançadas nocampodapolíticaeclesial.Naobra,adioceseéidentificadacomafiguradeSão Tiago, que fora um dos discípulos mais próximos de Cristo e o primeiro dos apóstolos a morrer como mártir. A obra explica como os seus restos mortais foram sepultados na Galiza, divulga as datas das festas dedicadas ao santo e estimula as peregrinações.Nestesentido,oelementocentraldacompilaçãoéoenaltecimentodafiguradopatronodobispado,oApóstoloSãoTiago.

Já as Vidas berceanas são o produto do trabalho intelectual de um homem, Gonzalo de Berceo, a partir de uma releitura de textos mais antigos à luz de

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CONCLUSÃO

seu contexto e de seus compromissos e experiências pessoais. Gonzalo era um clérigo com dupla formação intelectual: a adquirida no mosteiro, de forte tradição hispano-visigoda,eauniversitária,comgrandeinfluênciafrancesa.Eleviveuemum momento em que La Rioja era incorporada ao reino de Castela; o bispado de Calahorra consolidava-se pautado na Reforma Romana; o saber urbano se estruturava; novas formas de vida religiosa se expandiam na Península, e a vida religiosa tradicional encontrava-se em desagregação. As Vidas foram compostas em versos ritmados, a cuardena via, e em castelhano, mas visando engrandecer a vida monástica beneditina, num momento em que a vida regular encontrava-seemcrisedevidoaosurgimentodenovasordensedecréscimosdedoaçõesevocações.

Ao identificarmos o local social e geográfico e o ambiente literário deprodução dessas obras, já verificamos o quanto as dicotomias podem limitaras análises. As obras estudadas não se encaixam nelas: os LSJ II e III foram produzidos numa escola urbana, mas calcados no saber monástico e na tradição hispano-visigoda, e as obras berceanas, apesar de terem como temática a vida monástica, foram produzidas empregando a nuova maestria, desenvolvida no Studium de Palência.

Como textoshagiográficos, taisobras eram,paraospadrõesmedievais,textos de História.Apresentam, entretanto, concepções diferenciadas sobre odesenrolar histórico. Os LSJ II e III baseiam-se em uma perspectiva providencialista da história fatalista e moralizadora, marcada pela ênfase em milagres individuais, caráter moralizador e registro e propagação de mitos relacionados ao Santo Apóstolo.Mas, como todo o texto que trata do passado, é influenciado pelasquestõesdopresente,oqueexplica,porexemplo,ainserçãodejuízosdevalorem relação aos navarros.

Nas Vidas berceanas a História também é dirigida por Deus. Contudo, há espaço para a ação humana. Também não é uma perspectiva histórica moralizadora, ou seja, o desenrolar dos acontecimentos não resultam dos erros ouacertosdoshomens.Emmeioàstransformaçõesquecomeçaramadelinearaidéia de indivíduo, ainda que apresente uma visão providencialista da História, essas obras abrem espaço para o arbítrio humano. Mas a História não é só dos homens. É também partilhada com os seres sobrenaturais que atuam de forma ativanosacontecimentos.GonzalodeBerceotambémnãoignorouasquestõesdeseu presente e, ao tratar do passado, incluiu críticas e emitiu juízos face aos temas presentes. Desta forma, dentre outros elementos, não são esquecidas as derrotas sofridas frente aos almorávidas e almohadas e o sentimento antinavarro.

AshagiografiasestudadasnãoforamasúnicaselaboradasentreosséculosXII e XIII. Diversos outros textos, com múltiplas temáticas, foram compostos ou traduzidos, em latim ou castelhano, e circulavam na Península nesse período. No próprio local de produção desses materiais, outros foram redigidos: em Compostela, no século XII, além do LSJ, foram escritas a História Compostelana

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e os Votos a Santiago,eGonzalodeBerceocompôsoutrospoemasreligiosos,como obras marianas, hinos e textos doutrinais.

Os LSJ II e III, a VSM e a VSD são obras de caráter culto e resultaram de um trabalho intelectual disciplinado e complexo. Durante o medievo, as técnicas retóricas antigas continuaram a ser cultivadas e eram utilizadas na composição dos textos. Tanto o LSJ quanto as obras de Berceo, como produções doutas,pautaram-se em regras presentes em manuais de retórica. Assim, as narrativas foram construídas em diversos planos e utilizando topoi e recursos literários diversos, como a descrição, alegoria, reiteração, etc. Muito mais sintéticos que as Vidas de Berceo, os LSJ II e III incorporaram mas não exploraram todas as possibilidades dos recursos retóricos conhecidos e estudados no medievo, porque essas técnicas foram mais desenvolvidas nos centros universitários durante o século XIII.

Ao comparamos essas obras com suas fontes ou textos paralelos (como o calceatense,nocasodealgunsmilagrespresentesnoLSJII),verificamosqueosautores/redatores não se limitaram aos lugares comuns e às regras retóricas pré-estabelecidas.Nacomposiçãodasobrasforamfeitasseleçõese interpretações,unindo, certamente, experiências vividas à técnica, imprimindo aos relatos um estilo próprio. Desta maneira, o LSJ II inclui ensinamentos morais voltados aos hospedeiros e a VSD realça a superioridade do cenobitismo frente ao eremitismo.

Vale salientar, também, que a despeito do caráter culto dessas obras, por sua natureza hagiográfica, visavam à leitura oral em ocasiões festivas.Ameta era a propaganda, objetivando apresentar ensinamentos morais e atrair ofertas, atingindo o maior número de pessoas, direta ou indiretamente. Muitos pesquisadores recusam a hipótese de ampla divulgação desses textos, por motivos diversos. Por exemplo, o fato do LSJ ter sido redigido em latim e, portanto, tornar-se incompreensível aos rústicos, ou, no caso das Vidas berceanas, dos poucos manuscritos medievais preservados e todos vinculados ao universo monástico. Mas, como destaca Ana Diz, em muitos casos o que faz com que os pesquisadores sejam reticentes ao caráter propagandístico desses materiais é um anacronismo: a idéia de que a propaganda é uma “actividad espuria, venta insidiosa de mentiras”.1

Certamente o LSJ foi mais difundido no medievo do que as Vidas berceanas. A atração exercida por Compostela, o segundo maior centro de peregrinação do Ocidente, perdendo só para Roma, explica o fato. Ou seja, na competição por divulgar locais sagrados, certamente a diocese compostelana saiu vencedora. Esse fato explica porqueBerceo não desqualifica a figura de SãoTiago,masbusca alçar Millán à mesma estatura do Apóstolo. Aproveitando-se da sua fama de santidade, o poeta divulga o seu patrono e dissemina a tradição dos Votos.

1.Cf.otextodeAnaDiz:Berceo:sobrefalsificaciones,literaturaypropaganda.[19--].Disponívelem:<www.geocities.com/urunuela11/notabene2.htm>.Acessoem:14fev.2004.

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CONCLUSÃO

Essasobras tambémapresentamdiferentesconcepçõesdesantidade.OsLSJ II e III dedicam-se a divulgar um santo conhecido por todos e já cultuado há séculos, pois fora um dos discípulos de Cristo e há, no Novo Testamento, diversas informações a seu respeito.Alémdisso, foramártir.Assim, não se tratava dedefender a santidade do Apóstolo, mas, partindo dela, realçar o caráter apostólico da diocese que possuía o seu corpo. São Tiago é, portanto, representado na obra como um santo tradicional, inatingível, eficaz intercessor.AsVidas berceanas tratam de santos próximos, nascidos em La Rioja e sem reconhecimento universal. Era necessário fazê-los conhecidos por suas virtudes em vida, apresentá-los aos peregrinos, torná-los modelos a serem seguidos pelos religiosos e provar que a maneira como viveram a fé era agradável a Deus. Desta forma, os santos berceanos incorporam diversos elementos do novo ideal de vida religiosa, a chamada vida apostólica, ainda que tenham vivido como monges e eremitas.

Nem tudo o que figura nas obras foi, certamente, introduzido demodoconsciente por seus autores/redatores, mas permite discutir como determinados grupossociais,nocaso,clérigosvinculadosainstituiçõesespecíficas,concebiamo mundo social, organizando-o, dotando-o de sentido. Em muitos aspectos, há, claramente,umaconfluênciaentreasobras.Emoutros,divergências.Emalgunspontos, as nossas conclusões parciais estão emharmonia comas reflexões decarátermaisgeralfeitaspelahistoriografia,mastambémverificamoselementossingulares.

O mundo social representado em cada obra está em sintonia com as motivações,os interesseseas tradiçõesque incidemsobrecadaumadelas.Oespaço,noLSJIIeIIIorganiza-seemníveiseoposições:háoespaçoterrenoe o celeste, o bárbaro e o civilizado, o natural e o sobrenatural. Mais do que descreverocenárioeasações,busca-sesalientarocarátercentraldeSantiagodeCompostela, para onde todos devem dirigir-se para alcançar bênçãos, inclusive os que já estiveram em outras cidades santas, como Jerusalém. Assim, predomina na obra o espaço da peregrinação, seja marítimo ou terreno, e o espaço das cidades, civilizadas e cristãs. O espaço nas Vidas berceanas também se divide entre celeste e terrestre, mas a oposição está entre o ermo, o deserto, local de renúncia e penitência, e o povoado. Destaca-se, sobretudo, o espaço rural, no qual os mosteiros estavam localizados. Os mosteiros são tão importantes na narrativa, que grande parte do que é retratado acontece em um cenóbio. Eles são o espaço central, sobretudo porque guardam os corpos dos santos.

Quanto ao tempo, os LSJ II e III, a VSM e a VSD mantêm elementos comuns e diferenças. Ambos empregam marcos referenciais para indicar o momento de uma dada ação, mas os referenciais são diversos. Berceo utilizou elementos do cotidiano e do ambiente rural, os LSJ II e III utilizam personagens e fatos de conhecimento geral. Além disso, há, no Liber, uma clara preocupação em datar os acontecimentos.Assim, namaioria das narrações dosmilagres éindicado o ano do ocorrido, o que cria uma sensação de proximidade temporal e

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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de veracidade dos relatos. Quanto aos personagens, assim como as Vidas berceanas, os LSJ II e

III apresentam diversos tipos. Contudo, o protagonista é que ganha realce, mais do que o próprio Deus. Os outros personagens, os homens piedosos, os pecadores, os reis, os pobres, as mulheres, e os “outros”, só são mencionados paraacentuarosfeitosdoApóstolo.Dentretodosospersonagensquedesfilamna obra, vale destacar os hospedeiros iníquos, os pobres e as mulheres. A ênfase dada aos hospedeiros certamente estava em harmonia com a política de Diego Gelmírez, que visava garantir segurança aos peregrinos. Quanto aos pobres, a obraosidentificaunicamentecomoscarentesdebensmateriaise,certamente,só constam como alvos para as esmolas, que garantiam o sufrágio pelos mortos. Porfim,asmulheres,quenãosãorepresentadasdentrodoespíritomisógino.Háuma maior variedade de personagens nas Vidas berceanas. Eles têm papel mais ativoesãomaiscomplexas, temsentimentoseinquietações.Narepresentaçãodos personagens, diversos recursos são utilizados, inclusive o humor, como em relaçãoaosdemônios.Dignodedestaqueéoreconhecimentodasoberaniareal,inclusivenasquestõeseclesiásticas,avisãomúltiplaemrelaçãoaospobreseàpobreza, e o tratamento dado às mulheres, muito semelhante ao dos LSJ II e III.

No tocante ao cotidiano, como já pontuamos, ele recebe tratamento diferente nas obras analisadas, pois alguns aspectos selecionados, como a vida religiosa regular e a alimentação, sequerfiguramnosLSJ II e III. Ambas asobras dão pouco realce ao nascimento, mas enfatizam as mortes. Os LSJ II e III representam diferentes modalidades de morte. Já Berceo destacou a morte dos santos, momento da consolidação da santidade que eles demonstraram em vida. Quanto ao casamento e ao sexo, as duas obras lembram a importância de seguir asnormascanônicasnessesassuntos.Contudo,osLSJIIeIIIdãomaisvaloraocelibato que as Vidas berceanas, que só o promove para os clérigos. No tocante à aparência, as Vidas berceanas fornecem mais detalhes, chegando a citar atos de higiene pessoal. O LSJ confere ênfase às vestimentas dos que participam da festa dosantoe,emdiversospontos,fazemindicaçõessobreaaparênciadoApóstolo.Em relação à doença, as obras parecem concordar, atribuindo causas diversas para as enfermidades: elas podem ser conseqüência do pecado ou por causa natural. Concordância semelhante ocorre em relação à educação. Ainda que a VSM e a VSD apresentem muitos mais detalhes sobre o dia-a-dia escolar, como os LSJ II e III fazem uma associação entre educação e vida religiosa.

A vida religiosa é idealizada, sobretudo nas obras berceanas, que tratam tantoda regularquantodasecular:nãoháconflitos,ospoucosproblemasqueaparecem não ganham distinção, salvo para engrandecer os protagonistas. Percebe-se, também, uma evidente preocupação em demonstrar a harmonia entre a Igreja Hispânica e a Cúria Romana. Há, igualmente, referências à prática sacramental em ambas as obras, enfatizando a importância de realizá-las, conforme o ensino daIgreja.Contudo,notocanteàconfissão,osLSJIIeIIIparecemsalientarque

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CONCLUSÃO

naremissãodospecadosaintercessãodeSãoTiagoérealmenteeficaz.Quantoà religiosidade, são mencionadas diversas crenças e práticas. Entretanto, os LSJ II e III parecem, em nossa leitura, muito mais preocupados em manter-se dentro da estrita ortodoxia. O que poderia ser pouco compreendido ou trazer dúvidas é comentado pelo narrador, como a questão do morto ressuscitar outro morto, e em todos os milagres ressalta-se que Deus é o que opera as maravilhas. Ou seja, o poder de São Tiago provém de Deus e de seu relacionamento direto com ele. Nas Vidas berceanas são os santos os que efetivamente fazem milagres. Tais milagres são considerados sinais inquestionáveis de seu poder. Além disso, nessas obras,Mariaétituladacomomãe,esposaefilhadeDeusedestaca-seopoderdas relíquias.

As atividades produtivas dos LSJ II e III são as associadas à peregrinação ou à vida urbana. Nas Vidas berceanas, ainda que haja referências pontuais ao comércio, o destaque vai para a pecuária e a agricultura, atividades mais relacionadas ao universo monástico beneditino. Em relação à alimentação, só consta nas Vidas de Berceo. Elas servem para notabilizar o poder milagroso dos santos e como elementos simbólicos. As viagens ganham relevo nos LSJ II e III, devidoao trasladodocorpodeSãoTiagoedasprópriasperegrinações,queahagiografiadesejaestimular.Adespeitodetratardavidamonástica,aVSMeaVSD também tratam de viagens: dos próprios protagonistas, dos que vêm visitá-los e de traslados. Finalizando, a guerra. Tanto a guerra contra os muçulmanos como entre cristãos são destacadas. Nesses embates é o caráter religioso e o poder dos santos que são realçados.

OsLSJ II e III,VSM eVSD, apesar de textos hagiográficos, por suasmotivações particulares tornam-se importantes testemunhos sobre omomentoem que foram redigidos: conflitos, visões sobre o “outro”, crenças, valores,etc., são representados, a despeito do cunho modelar e propagandístico dessas obras. A meta principal do LSJ é reforçar o caráter apostólico do bispado de Compostela e divulgar a festa de São Tiago, atraindo peregrinos, sobretudo entre os clérigos e nobres, e, conseqüentemente, ofertas. Entretanto, essa obra não se furta a criticar os hoteleiros gananciosos; de desqualificar osmuçulmanos; defazersutisrecomendaçõesaosperegrinos,comodaresmolaseviajaremgrupo,ede criticar os bascos. As Vidas berceanas almejam engrandecer a vida monástica tradicional, beneditina, face aos novos movimentos religiosos, em especial os mendicantes, ainda que sejam influenciadas por diversos aspectos do ideal davidaapostólica.Elastambémnãodeixamdeincluirexortaçõeseensinamentosaosfiéis,fazercríticasaossimoníacos,denunciaroabusodopoderreal,etc.

NosLSJIIeIII,naVSMenaVSD,asrepresentaçõesdoespaço,dotempo,das personagens e do cotidiano resultam da apreensão criativa do mundo social em harmoniacomasmotivaçõesdasobras.Estasconstituíram-seapartirdediversosinfluxosculturais:aherançabíblica,atradiçãohispano-visigoda,aespiritualidademonástica, os ensinamentos das escolas urbanas, as normas impostas pela Igreja

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Romana,asdemandasdosfiéis,as relaçõesdeforça,etc.Assim,elas incluemobservações e ensinamentos, qualificam personagens, fazem amplificações ousínteses. Adespeitodessasdiversasinfluências,osLSJIIeIIImantêm-seemtotal harmonia com o discurso oficial daCúria Romana no período, já que apolíticaduranteo episcopadodeGelmírezera, exatamente, evitaros conflitoscom Roma, assim como incorpora elementos da espiritualidade monástica, como o caráter moralizador e a valorização do celibato. Ao comparamos essa obra com as Vidas de Berceo, pudemos perceber o quanto esse poeta esteve muito mais abertoaosinfluxosdiversos.

Aconclusãoaquechegamosem1996foireafirmada.GonzalodeBerceorecriou o espaço, o tempo, as personagens e o cotidiano em suas vidas de santos através da cultura que lhe era própria. Se, por um lado, partilhou das muitas expressõesculturaispresentesnasociedadecastelhanadoséculoXIII,tambémseapropriou, selecionando e transformando de forma criativa tais elementos. Assim, aoengrandeceravidamonásticaemseusescritos,fezdiversasrepresentaçõesdomundo social, construídas de forma criativa por meio de sua experiência de fé; de seu conhecimento do texto bíblico; da formação monástica e universitária que recebeu; das diversas leituras que realizou de textos patrísticos, hagiográficosemanuaisderetórica;deseuscompromissoscomaIgreja;dasespecificidadesculturais da sociedade castelhana; da sua experiência como sacerdote, dentre outros fatores.

Contudo, ao comparamos essa obra aos LSJ II e III, um elemento foi evidenciado. Para demonstrar o quanto a vida monástica poderia ser ainda atrativa noséculoXIII,momentodeexpansãodemográfica,crescimentodocomércio,fundação de cidades, desenvolvimento das universidades, surgimento das ordens mendicantes, o poeta recriou o universo cenobítico, atualizando-o. Neste sentido, dentre outros aspectos, empregou diversos recursos retóricos, inclusive o humor; seus protagonistas tornaram-se santos imitáveis, e foram incorporadas à obra crenças e práticas da religiosidade.

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REFLEXÕES SOBRE A HAGIOGRAFIA IBÉRICA MEDIEVAL

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ManchaFormato

Tipologia

Papel

Número de páginas

12,5 x 19,5 cm16 x 23 cmcorpo do texto: Times New Roman títulos e subtítulos: Cooperplate Gothic Boldcabeçalhos: Bookman Old Stylemiolo: Pólen 80 g/m2

capa: supremo 250 g/m2

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Ficha técnica