stella senra. o ultimo circulo

11
Stella Senra O último círculo Publicado em 7 de junho de 2012 Mil anos de guerras, mil anos de festas! São os meus votos para os Yanomami. Será uma esperança morta? Temo que sim. Eles são os últimos encurralados. Uma sombra mortal avança de todos os lados… E depois? Talvez nos sintamos melhor depois, uma vez rompido o último círculo desta liberdade derradeira. Quem sabe poderemos dormir sem despertar nenhuma vez… Qualquer dia haverá perto do chabuno torres de poços de petróleo, no flanco das colinas valas de garimpeiros de diamantes, policiais nas entradas e lojas nas margens dos rios… Por toda parte, a harmonia… Pierre Clastres “Le Dernier cercle”, Le temps modernes n. 298, 1971. Como fotógrafa, o nome de Claudia Andujar está para sempre associado ao dos Yanomami. A eles dedicou grande parte de sua obra e de sua vida, sem diferenciar do registro das suas imagens o esforço para defendê-los das terríveis conseqüências do contato com o branco. Se o que confere uma qualidade ímpar a sua experiência é esse duplo comprometimento, a série de fotografias que compõe Marcados pode ser tomada como paradigmática desta intimidade rara entre estética e postura ética que distingue a obra da fotógrafa. Ao mesmo tempo, esse conjunto de fotografias merece destaque por constituir, provavelmente, a mais incisiva abordagem jamais feita por Claudia da delicada questão do contato. O trabalho é composto por uma série de fotos de índios yanomami realizadas entre 1981 e 1983, por ocasião da viagem de um grupo de trabalho que contou com a presença de Claudia Andujar, dos médicos Dr. Rubens Brando e Dr. Francisco Pascalichio[1] . O objetivo era fazer um levantamento da situação e da saúde de todos os grupos em contato com o branco – tarefa que tinha como exigência inicial a identificação de toda a população visada – além de coletar dados para a futura demarcação de seu território. Como os Yanomami não respondem a nome próprio, foi adotado o método consagrado desde o século xix para a identificação dos chamados povos nativos: uma fotografia com um número preso ao corpo. Além do extenso trabalho fotográfico exigido pelo empreendimento, Claudia ainda desempenhou outras funções dentro do grupo de trabalho: a coleta de dados diversos sobre as aldeias yanomami, sobre a organização de suas sociedades, sobre o estado de saúde das populações visadas, além de elaborar o registro por escrito de todas estas atividades. Marcados é composto pela reunião de 85 das imagens que resultaram dessa visita, e seu caráter paradigmático deve ser atribuído, em primeiro lugar, à abrangência desta representação fotográfica: a visita a essa população de difícil abordagem foi, aliás, a primeira e até hoje única jamais realizada a todas as regiões brasileiras habitadas por yanomamis em situação de contato. Também a vasta extensão da área percorrida contribui para tornar o empreendimento do grupo um feito raro, e realça o grande porte do trabalho fotográfico que dele resulta. Constitui também uma característica importante de Marcados a existência de um minucioso relatório, escrito pela própria fotógrafa, que apresenta um panorama detalhado das condições de vida dos Yanomami naquele momento. Além de ser um documento único sobre a situação em que foi desenvolvido o trabalho fotográfico, esse texto exaustivo comprova o íntimo convívio e o conhecimento que Claudia acumulou, ao longo dos anos, do modo de vida dos Yanomami, de sua sociedade, de suas relações entre si e com o habitat. Marcados é, finalmente, um trabalho incisivo, por retomar, de modo mais veemente que nunca, a questão central no trabalho da fotógrafa – as conseqüências desastrosas do contato – focalizando de modo arrojado a ambigüidade que permeia as relações entre brancos e índios. A marca As imagens de homens, mulheres e crianças indígenas portando docilmente números que provavelmente sequer conhecem provocam, à primeira vista, mais que estranhamento, um choque:

Upload: luz-horne

Post on 07-Jul-2016

217 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Article on photographer Claudia Andujar's exhibition. Marcados.

TRANSCRIPT

Page 1: Stella Senra. O ultimo circulo

Stella Senra

O último círculoPublicado em 7 de junho de 2012Mil anos de guerras, mil anos de festas! São os meus votos para os Yanomami. Será uma esperança morta? Temo que sim. Eles são os últimos encurralados. Uma sombra mortal avança de todos os lados… E depois? Talvez nos sintamos melhor depois, uma vez rompido o último círculo desta liberdade derradeira. Quem sabe poderemos dormir sem despertar nenhuma vez… Qualquer dia haverá perto do chabuno torres de poços de petróleo, no flanco das colinas valas de garimpeiros de diamantes, policiais nas entradas e lojas nas margens dos rios… Por toda parte, a harmonia…

Pierre Clastres“Le Dernier cercle”, Le temps modernes n. 298, 1971.

Como fotógrafa, o nome de Claudia Andujar está para sempre associado ao dos Yanomami. A eles dedicou grande parte de sua obra e de sua vida, sem diferenciar do registro das suas imagens o esforço para defendê-los das terríveis conseqüências do contato com o branco. Se o que confere uma qualidade ímpar a sua experiência é esse duplo comprometimento, a série de fotografias que compõe Marcados pode ser tomada como paradigmática desta intimidade rara entre estética e postura ética que distingue a obra da fotógrafa. Ao mesmo tempo, esse conjunto de fotografias merece destaque por constituir, provavelmente, a mais incisiva abordagem jamais feita por Claudia da delicada questão do contato.O trabalho é composto por uma série de fotos de índios yanomami realizadas entre 1981 e 1983, por ocasião da viagem de um grupo de trabalho que contou com a presença de Claudia Andujar, dos médicos Dr. Rubens Brando e Dr. Francisco Pascalichio[1]. O objetivo era fazer um levantamento da situação e da saúde de todos os grupos em contato com o branco – tarefa que tinha como exigência inicial a identificação de toda a população visada – além de coletar dados para a futura demarcação de seu território. Como os Yanomami não respondem a nome próprio, foi adotado o método consagrado desde o século xix para a identificação dos chamados povos nativos: uma fotografia com um número preso ao corpo. Além do extenso trabalho fotográfico exigido pelo empreendimento, Claudia ainda desempenhou outras funções dentro do grupo de trabalho: a coleta de dados diversos sobre as aldeias yanomami, sobre a organização de suas sociedades, sobre o estado de saúde das populações visadas, além de elaborar o registro por escrito de todas estas atividades.Marcados é composto pela reunião de 85 das imagens que resultaram dessa visita, e seu caráter paradigmático deve ser atribuído, em primeiro lugar, à abrangência desta representação fotográfica: a visita a essa população de difícil abordagem foi, aliás, a primeira e até hoje única jamais realizada a todas as regiões brasileiras habitadas por yanomamis em situação de contato. Também a vasta extensão da área percorrida contribui para tornar o empreendimento do grupo um feito raro, e realça o grande porte do trabalho fotográfico que dele resulta.Constitui também uma característica importante de Marcados a existência de um minucioso relatório, escrito pela própria fotógrafa, que apresenta um panorama detalhado das condições de vida dos Yanomami naquele momento. Além de ser um documento único sobre a situação em que foi desenvolvido o trabalho fotográfico, esse texto exaustivo comprova o íntimo convívio e o conhecimento que Claudia acumulou, ao longo dos anos, do modo de vida dos Yanomami, de sua sociedade, de suas relações entre si e com o habitat.Marcados é, finalmente, um trabalho incisivo, por retomar, de modo mais veemente que nunca, a questão central no trabalho da fotógrafa – as conseqüências desastrosas do contato – focalizando de modo arrojado a ambigüidade que permeia as relações entre brancos e índios.

A marcaAs imagens de homens, mulheres e crianças indígenas portando docilmente números que provavelmente sequer conhecem provocam, à primeira vista, mais que estranhamento, um choque: choque diante do que aparenta ser uma intervenção programada pelo branco, contra uma população certamente inocente, tanto dos objetivos, quanto das conseqüências de tal marcação. Dispostos sobre corpos habituados, por tradição, à marca, os números sugerem um procedimento de identificação, como se essa população indefesa estivesse sendo

Page 2: Stella Senra. O ultimo circulo

contemplada com uma identidade – essa invenção do mundo branco – que a inscreveria na sociedade moderna, da qual conheceu praticamente apenas a violência: contra sua terra, sua sociedade, sua cultura, suas vidas.Como se sabe, a marca sobre o corpo se prestou, ao longo da história, ao controle das populações por um poder dominante. Ela foi e continua sendo usada todas as vezes que os corpos são objetivados pelo poder: foram muitos os sistemas de marcação por meio dos quais esse poder se manifestou – e ainda se manifesta – ao se inscrever diretamente nos corpos; assim como, ao longo da história, foram muitas e de diferentes origens as vítimas desta violência.Marcados é um trabalho permeado pela dor, que choca por mostrar a face traumática do contato. Pois é desse mau encontro que se trata, do encontro com o branco que, desde a sua chegada entre os indígenas até os dias de hoje, não parou de desestruturar suas sociedades, de trazer a doença, a morte, de levar ao aniquilamento – ao genocídio, enfim – centenas de povos nativos. Ao mesmo tempo, associada ao desaparecimento dos índios, a presença dos números em cada foto evoca outro trauma, este do mundo ocidental: os campos de concentração, onde o número também foi usado para discriminar e levar à morte milhões de seres humanos – uma experiência vivenciada por Claudia, que ali perdeu o pai e a família paterna.Em algum lugar de sua obra, o escritor alemão Heiner Müller já vira esta mesma ordem de relação quando afirmou que o nazismo fez, na Europa, o mesmo que esta fizera nas suas colônias: a morte nos campos de concentração poderia ser considerada, desse ponto de vista, como o exato contraponto da destruição de milhares de povos selvagens, de suas sociedades e de suas culturas pelo colonizador. Marcados comunga com esse pensamento do escritor, sem deixar de levar em conta, ao mesmo tempo, a complexidade das questões que o contato desencadeia.Articulado em torno dos números, são precisamente eles que testemunham, no trabalho, a dupla face do contato. Pois apesar de continuarem atendendo a uma necessidade de identificação, de trazerem à mente a situação dos campos de concentração, os números não repetem mais, aqui, a associação histórica com a morte. Ao contrário, eles a invertem; desde que seu objetivo é salvar vidas de homens, mulheres e crianças, a marca deixa de ser um sinal de condenação para assumir um papel oposto: esses yanomamis foram marcados pelo branco não para morrer, mas para viver.Morte e vida – é o tênue limite que separa e reúne esses opostos, ou a dupla função da marca que Claudia interroga em Marcados. Vítimas do rastro de destruição deixado pelo branco, mas dele dependendo também para sua salvação, os Yanomami são, a um só tempo, condenados à morte e prometidos à vida. É desta ambigüidade constitutiva do contato – ambigüidade que não deixa de fora nem o próprio ato de fotografar – que Marcados trata com rara ousadia.

O traumaEm seus últimos trabalhos, Claudia tem recorrido a procedimentos como fusões, backlights, instalações, projeções, que os deslocam do campo documental no seu sentido mais consagrado para aproximá-los de práticas artísticas desenvolvidas mais recentemente. De acordo com essa mesma orientação, Marcados é apresentado sob a forma de uma série, constituída pela repetição de dezenas de fotografias de índios que partilham uma mesma marca, uma numeração. É justamente esta repetição que dá lugar ao entendimento do aspecto traumático do trabalho.Em seu livro The Return of the Real, o crítico Hal Foster postula uma “volta do Real” na arte contemporânea, volta que estaria se efetivando por meio da mudança de uma concepção da realidade como efeito de representação do real para algo que resultaria do trauma – o que ele denomina “realismo traumático” .[2] Foster busca a gênese dessa noção no minimalismo e na arte pop americanas, mas sua análise se estende até trabalhos recentes, levando em conta, inclusive, obras fotográficas como a de Cindy Sherman, de Andres Serrano, de Richard Prince e de Richard Estes. Apesar do amplo e variado espectro de artistas e de trabalhos contemplados pelo autor, é a sua descrição da gênese deste “realismo traumático” no trabalho de Andy Warhol – ou seja, do modo como o trauma aparece na obra do artista americano – que fornece as indicações mais preciosas para o entendimento do aspecto traumático de Marcados.Segundo Foster há, na obra de Warhol, uma repetição compulsiva posta em jogo por uma sociedade de produção e consumo em série. Chocado por essa sociedade, o artista teria tomado aquilo que produz esse choque como uma defesa mimética contra ele: se não é possível vencer esta sociedade – essa seria a sua estratégia – melhor aderir a ela e expor seu automatismo, e até seu autismo por meio do próprio exemplo excessivo.

Page 3: Stella Senra. O ultimo circulo

O crítico busca de início, no pensamento de Freud, o entendimento da repetição como uma defesa contra o choque. Para o fundador da psicanálise, esvaziar o efeito é uma das funções da repetição: repete-se um acontecimento traumático (em ações, em sonhos, em imagens) para integrá-lo numa economia psíquica, numa ordem simbólica. Foster não confere, entretanto, à repetição tal como Warhol a coloca em cena, a mesma função restauradora preconizada por Freud. “…(a repetição em Warhol) não visa o domínio do trauma” escreve ele, “nem a paciente remissão do objeto do luto (…), mas sugere na melancolia uma fixação obsessiva no objeto”. Na obra de Warhol a repetição seria assim, a um só tempo, “uma prevenção contra a significação traumática e uma abertura para ela, uma defesa contra o afeto traumático e a produção dele”.[3]Para formular sua noção de “realismo traumático” a partir de uma analogia entre discurso psicanalítico e arte visual, Foster se afasta, no entanto, do entendimento freudiano do trauma para recorrer, com muita propriedade, ao pensamento de Lacan – justamente por ser esse o que propicia uma mediação entre ambos os discursos, ao relacionar a repetição e o real à visualidade e ao olhar. Com efeito, Lacan vê o trauma como “resultado de um encontro falhado com o real”; em conseqüência, por ter falhado, o trauma não pode ser representado, mas apenas repetido; aliás – essa é a sua conclusão – ele tem de ser repetido. Valendo-se desse entendimento, Foster notará que, na obra de Warhol, “a repetição (…) não é nem reprodução no sentido da representação (de um referente) nem uma simulação (de uma pura imagem, desligada do significado); ela serve, antes, para velar como um anteparo o real entendido como traumático”. Ora, é exatamente essa necessidade que “aponta para o real”, dirá o crítico, e é nesse ponto, “o real rompe o anteparo da repetição”.[4]Separando-se, na seqüência de sua análise, também do ponto de vista lacaniano, que situa tal ruptura menos no mundo que no sujeito – entre a percepção e a consciência de um sujeito tocado por uma imagem (o que o psicanalista chama de tuché) –, Foster situará, por sua vez, o trauma na própria confusão entre sujeito e mundo, entre o dentro e o fora. É esse deslocamento que lhe permite fazer aproximar o ponto traumático lacaniano (tuché) da noção barthesiana de punctum: aquilo que numa fotografia punge sujeito – para argumentar que, enquanto Barthes analisa o punctum em termos de “detalhes do conteúdo”, em Warhol o punctum está, antes, no “espocar repetitivo da imagem”. Para o crítico, é esse espocar, assim como um deslizar de registro ou uma cor lavada que serão os “equivalentes visuais” de nosso encontro falhado com o real: o que o levará a afirmar que, na obra de Warhol, a primeira ordem de choque é velada pela repetição da imagem; mesmo que essa repetição possa, por sua vez, produzir uma segunda ordem de trauma, agora ao nível da técnica, quando o punctum rompe o anteparo e permite que o real irrompa.A análise que Foster faz da repetição em Warhol fornece elementos decisivos para entendermos como Marcados trabalha, por sua vez, o trauma. Lembremos de início que nos encontramos no terreno da fotografia, da reprodução de um referente (no caso, os índios) no sentido da representação; mais precisamente, no campo da fotografia documental, justamente aquela que conta com esse caráter da reprodução fotográfica: por isso, mesmo se tratando de uma organização em “série”, em vez de repetir uma mesma imagem (como a Marilyn de Warhol), cada uma das fotos de Marcados mostrará um índio diferente; enquanto a repetição, ainda no nível do referente, será dada pela marcação de todos os corpos, pelo número que cada um deles porta.Sabemos que o número posto no corpo de seres humanos é uma imagem pesada de sentido para o mundo ocidental, que o associa à morte de milhões de seres humanos nos campos de concentração. É esse sentido agregado ao número que Marcados reitera por meio da constituição das fotos dos Yanomami em série; e que nos leva a ver na repetição desses corpos com números “a repetição de um evento traumático”: a morte de homens, mulheres e crianças nos campos de concentração. É ao fazer ecoar, um no outro, os dois acontecimentos, o morticínio yanomami e a morte nos campos de concentração, que Marcados nos leva a perceber o contato também como uma situação causadora de trauma – como o trauma dos Yanomami.Lembremos, no entanto, que Foster identifica ainda, por meio das noções de tuché e de punctum, outro tipo de repetição na obra de Warhol – desta vez no plano da técnica. Com efeito, é com a ajuda do pensamento de Lacan e de Barthes que o crítico pode apontar o aspecto afetivo da obra: a repetição, como que ao acaso, dos respingos de tinta, das cores lavadas e de outras técnicas utilizadas pelo artista teria o poder de “tocar” o espectador para além do seu entendimento, diretamente – ou seja, ela “produziria”, por sua vez, o trauma.A aproximação entre as duas obras ainda procede, desde que em Marcados também podemos distinguir uma repetição de ordem semelhante; no entanto desta vez sua função parece ser, pelo menos à primeira vista, inversa. Notemos, em primeiro lugar que, aqui, a repetição não parece ser fruto de um acaso (como os respingos de tinta), que ela não se dá propriamente ao nível da técnica, mas sim do procedimento: trata-se da repetição, pela artista, de um mesmo procedimento – a transformação de cada uma das fotos de identificação em retrato.

Page 4: Stella Senra. O ultimo circulo

Mas, pelo menos à primeira vista, em vez de “produzir” o trauma – como fazem os respingos de tinta em Warhol – o retrato parece buscar, em Marcados, a função reconhecida por Freud de “restaurar o equilíbrio psíquico”: como se, enquanto representação consagrada do rosto humano, de certa forma lhe coubesse “restituir” a humanidade que o branco teria destruído nos Yanomami. Desse modo, enquanto em Warhol a nova ordem da repetição teria o dom de escapar à função restauradora dando lugar, no sentido lacaniano, à “irrupção” do real, o trabalho de Claudia, fiel ao espírito da foto documental, permaneceria, por sua vez, no terreno da remissão do objeto do luto, ao buscar devolver aos índios, por meio do retrato, a dignidade que o contato teria aniquilado.Ora, um exame mais atento das fotografias de Marcados mostra que o retrato não tem, nem poderia ter tal desempenho. É o que se verá a seguir.

Da foto de identificação ao retratoComo se sabe, a foto de identificação tem sua origem nas práticas judiciária, policial e médica que deram lugar a um tipo de conhecimento voltado para o controle das populações. Por meio da imagem fotográfica foram criadas, no século xix, verdadeiras “tipologias”, que permitiram identificar não apenas o criminoso (Bertillon), o louco (Charcot), mas o “diferente”: com a facilidade do transporte e o aumento das viagens nesse período, os álbuns de fotografias de caráter etnográfico introduziram a moda das fotos de povos desconhecidos e distantes.A combinação da foto criminal com os dados antropomórficos, proposta pelo Chefe de Polícia de Paris André Bertillon, está na origem dos atuais sistemas de identificação: o detido devia ser fotografado de frente e de perfil e a foto devia ser acompanhada de certas medidas, como as do crânio e da face. Foi nesse momento da história da fotografia, quando só os dois extremos da sociedade eram visados pela imagem – os ricos e os criminosos –, que se constituiu uma estética apropriada para cada um desses dois segmentos: os ricos deviam aparecer em meio a uma profusão de símbolos de poder (cortinados, colunas, mesas, cadeiras decoradas); seu olhar não podia se dirigir à câmera, mas devia contemplar a distância, num gesto de elevação; e seu corpo tinha de ser tomado por inteiro. A foto policial e judiciária, por sua vez, buscava sublinhar a “nudez social” do futuro delinqüente, despojando-o de toda a encenação que acrescentava valor ao retrato burguês. Fotografava-se sem fundo, ou com um painel preto ou branco, a meio corpo ou pelo busto (às vezes o fotografado tinha até os pés nus), de camisa aberta, mangas arregaçadas, encostado na parede com os braços em cruz – o mais direta e cruamente possível. Se o retrato burguês tinha por objetivo valorizar o indivíduo, a sua desindividualização teria começado com a foto policial e judiciária. [5] Um livro recente fornece um exemplo extremo do controle por um poder absoluto, por meio da foto de identificação. Trata-se de uma coleção de fotografias de identificação criminal de prisioneiros políticos – homens, mulheres e crianças marcados por números durante a vigência do regime de Pol Pot, no Camboja – à espera de um julgamento cujo resultado já era conhecido de antemão (quase ninguém escapou com vida das prisões de Pol Pot). Aterrorizantes, as imagens são inteiramente fiéis aos padrões considerados objetivos das fotos de identificação: frontalidade, olhar voltado para a câmera, tela de fundo branca (muitas vezes improvisada, denotando o arranjo ou a pressa que a situação exigia), enquadramento pelo busto – só contrariado quando se trata de dois ou mais prisioneiros algemados um ao outro, ou de alguém com um defeito físico que contribui para a sua identificação (um homem com uma perna só, por exemplo, será enquadrado de corpo inteiro). As mães de crianças de colo são fotografadas ao lado dos filhos, condenados também, provavelmente, ao mesmo destino dos adultos.[6]Dentre esses detidos muitos usam roupas sujas e rasgadas, acentuando assim a degradação que a prisão lhes impõe; além disso, muitos deles mostram sinais de maus-tratos, fraqueza ou doença – quando não aparentam já ter perdido a razão. Pelas expressões dos prisioneiros, é evidente que todos já conhecem de antemão o seu destino; por isso, apesar do respeito às normas frias da foto criminal (ou por causa delas), é quase insuportável encarar esses rostos de que a morte já se apossou, e cujos olhares mal ousamos sustentar.Mesmo havendo muitas semelhanças entre as duas séries de fotos, as imagens de Marcados não foram feitas em nome de um regime autoritário. Mas nem por isso a identificação deixa de fazer parte – tanto para o bem quanto para o mal – do sistema de controle edificado pelo mundo branco:[7] ambigüidade que, de resto, não escapa a Claudia, que intitulou a primeira versão desse trabalho, na forma de uma instalação, Marcados para viver, marcados para morrer.[8] Por sua vez, os Yanomami fotografados não partilham as mesmas expressões dos prisioneiros cambojanos: muitos deles ainda guardam uma docilidade comovente, que torna ainda mais pungentes as imagens de Marcados.

Page 5: Stella Senra. O ultimo circulo

Apesar de respeitar a algumas das normas da foto de identificação: frontalidade, olhar para a câmera, presença de um fundo (mesmo ao se tratar do fundo “natural” do lugar), Claudia não preserva tal estética em nome da “frieza” que esse gênero de fotografia defende – ficando longe, portanto, da neutralidade e da distância entre o espectador e a imagem que tal imagem deve buscar. Além disso – e esta é uma operação decisiva em Marcados – escapando ao efeito de desindividualização característico da foto de identificação, ela utiliza uma série de recursos para “desviar” a foto de identidade, buscando transformá-la num verdadeiro “retrato”.A constituição do retrato começa pela adoção de um enquadramento mais flexível, que permite à fotógrafa valorizar detalhes ou posturas peculiares e acentuar, com sutileza, nuanças nos olhares que se dirigem à câmera. Quando há algum adereço, roupa ou gesto que caracterize a figura, por exemplo, o campo se abre para captar o retratado, ora até à cintura, ora até às pernas, ou até mesmo de corpo inteiro. Além disso, em vez de recorrer a um fundo artificial, ela tira proveito do fundo natural do lugar para ressaltar a relação figura/fundo. Se o fundo se presta, por exemplo, a sugerir o ambiente em que se encontra o retratado – como a cerca de troncos que aparece em muitas das fotos – além de caracterizar o entorno e a pôr em evidência a situação de improviso em que as fotos foram realizadas, ele será plasticamente valorizado. Muitas vezes não haverá propriamente “fundo” − ausência da qual ela também tira proveito fazendo, no sentido oposto ao da foto de identificação, seus personagens praticamente “emergirem” do negro. Contrariamente à iluminação direta das fotos de identidade, aliás, Claudia também acolhe e explora a luz diferenciada de cada ambiente; e, escapando ao “achatamento” daquelas, valoriza as sombras sobre os rostos para destacar linhas, realçar traços.Consagrado como representação do sujeito, o retrato deu origem à pose, a esse momento de “concentração em si mesmo” – como denominou Roland Barthes – que permite ao fotógrafo captar a “interioridade” do retratado e, a este, “construir” o modo como deseja ser visto.[9] Hoje banalizado, sem a solenidade de seus primeiros tempos, o retrato já se desfez desta busca de “profundidade”, mas ainda não suprimiu inteiramente a pose que, mesmo ao dispensar a “concentração” em si, ainda pode passar por algum tipo de mise-en-scène do sujeito – mesmo que se trate de mostrar a sua falência.Com certeza os fotografados de Claudia não são dotados do “sentido” da pose. Na verdade, não há propriamente “sujeitos” diante de sua câmera, nem tampouco uma suposta “interioridade” pronta a ser descoberta; ali, na grande maioria das vezes, não há sequer “rostos” – essa premissa e condição para a existência do retrato fotográfico.[10]Mas em lugar de tomar tal ausência como uma falta, a fotógrafa faz dela mesma o objeto de suas fotos, buscando mostrar, por meio dessa espécie de “descompasso”, como cada um dos índios se comporta frente à nova situação – ou seja, como os Yanomami “adquirem” um “rosto” e como “se tornam” retratos. Ao mesmo tempo, essa “busca” do retrato lhe permite tomar a própria fotografia como um operador do contato, como um elemento exterior ao mundo dos índios, com o qual eles têm que se defrontar.É por isso que a pose se torna um dos elementos mais significativos de Marcados. E é também por isso que, na trilha apontada por Foster a respeito do trabalho de Andy Warhol, o trabalho de Claudia também tem o dom de produzir o trauma: pois se o retrato supõe um rosto – esta invenção do branco –, longe de restituir aos Yanomami a “humanidade” subtraída pelo contato, é o fato de esses índios “acederem” ao retrato, ou seja, de terem “adquirido” um rosto, que constitui uma das mais sutis e violentas manifestações do contato.

A poseAtenta ao modo como cada yanomami se põe ou é posto diante da câmera, ao seu comportamento face ao dispositivo fotográfico: presença da máquina, do fotógrafo, disposição fixa no espaço de todos os participantes, imobilidade do modelo– à sua “pose”, enfim –, Claudia procura captar os diferentes níveis de aproximação com o branco, do mais antigo ao mais recente, tornando visível uma espécie de “dinâmica” dos corpos e dos olhares que o contato inaugura.No primeiro caso – do contato mais recente – o desconhecimento do ritual fotográfico e, por conseqüência, a impossibilidade da pose, dão origem a uma inversão do regime de olhares que de hábito caracteriza o retrato. Um dos melhores exemplos está na foto do jovem índio nu (número 1: 05 2006_21): o enquadramento do corpo inteiro, que nos permite ver sua nudez e seus adereços, já nos alerta para esta sua condição; mais eloqüente ainda, no entanto, é o seu olhar, que não se dirige propriamente para a objetiva, nem demonstra ter consciência, como na pose, de que esta o “olha” também. Invertendo a economia de olhares que caracteriza o dispositivo fotográfico, é ele quem olha (e, aparentemente, bem divertido) para a curiosa cena à sua frente – como se a câmera (e o fotógrafo) é que estivessem “se oferecendo” ao seu olhar, numa “pose”.

Page 6: Stella Senra. O ultimo circulo

Também o índio mais maduro (número 2: 05 2006_34), enquadrado muito de perto e em diagonal, é outro exemplo de contato recente. E seu “retrato” constitui um dos exemplos mais primorosos de como se pode “mostrar” uma “ausência” de rosto: pois o enquadramento estranho não parece ter justamente a função de ressaltar a impossibilidade de “ler” aquilo que seria a sua “expressão”? Será mesmo uma gargalhada? Um sorriso? Um esgar de susto diante da máquina?Dentro desta mesma população são captados, também, os mais belos e – evidentemente – mais misteriosos olhares que, ignorando a câmera, como que inauguram um mundo de nós desconhecido: é o caso do jovem quase adolescente que parece esconder uma chama dentro dos olhos (número 3: 200702_092); ou da mãe com uma criança ao colo e o olhar doce, como se fitasse algo fora do quadro, mas ao mesmo tempo ligeiramente abaixado, como se quisesse apenas roçar a pele do filho (número 4: 200702_075).As crianças demonstram, de modo mais direto que os adultos, suas reações diante da situação desconhecida da pose – e o caráter dramático que assume sua presença diante da câmera talvez justifique o grande número de fotos de crianças em Marcados. Pelo temor, pela angústia ou até pelo medo com que olham para a câmera, elas demonstram o quão ameaçador lhes parece o ritual fotográfico. Ora sozinhas, ora carregadas, ora seguradas por mãos cujos donos nem sempre podem ser vistos, as crianças visivelmente não querem “entrar” no quadro. Incapazes do entendimento dos maiores, as crianças de colo também demonstram se sentir, de algum modo, ameaçadas pela situação nova: choram ou ainda trazem no rosto as marcas das lágrimas. Nuas nos braços das mães também quase sempre nuas, elas parecem constituir com estas um só corpo, de tão estreito é o laço que as une. É assim, rodeada de um emaranhado de braços que mais lembra uma escultura, que o retrato de uma dessas crianças, ainda em lágrimas, parece sugerir o cuidado, a proteção e o amor que lhes é dispensado entre os Yanomami.[11](número 5: 200702 050)Também as crianças maiores revelam seu constrangimento diante do cerimonial da fotografia. Visivelmente obrigadas a se pôr em frente da máquina, têm posturas tensas e fixam a objetiva ora com suspeição, ora como num desafio. Muitas dessas fotos deixam transparecer o sentimento de ameaça causado pelo dispositivo fotográfico (número 6: 200702_048; 200702_101). Um belo exemplo do modo como Claudia registra a reação destas crianças está na foto da menina com os braços colados ao corpo tenso, o olhar duro para a câmera (número 7: 200702_071). Sem dúvida sua postura exprime o constrangimento da situação, constrangimento que a fotógrafa realça ainda mais ao submeter o enquadramento à rigidez de sua “pose”: ela enquadra o corpo por inteiro, cortando apenas o alto da cabeça; e tem o cuidado de “fechar” o quadro rente aos braços apertados contra o corpo, como se o enquadramento é que estivesse “aprisionando” a menina, literalmente “paralisada”.No outro extremo, do contato mais antigo, nota-se que o rosto já começa a se desenhar, a pose passa a se tornar possível e até a pose característica da foto de identidade já é familiar aos Yanomami. Claudia a ela não se furta, insistindo então no enquadramento de praxe: vestidos, com suas jaquetas e bonés, os cabelos cortados à moda do branco, vários dos homens assim retratados poderiam ser confundidos com trabalhadores do norte do país; eles olham a câmera com aquela espécie de “grau zero” do olhar, aquela “ausência” de si que, diversa da “ausência de rosto” que o filósofo atribuía aos povos primitivos, caracteriza a foto de identidade (número 8: 05 2006 31). Se o “acesso” ao retrato, a “aquisição” de um rosto pelos Yanomami são considerados no contexto da violência gerada pelo contato, a foto de identidade apontaria, por meio de uma espécie de “resignação” ao rosto, para uma derradeira “rendição” – no sentido propriamente militar do termo.A flexibilidade do enquadramento, assim como vários dos recursos acionados para passar da foto de identidade ao retrato se prestam, como já observamos, a mostrar os diferentes níveis de contato; mas além da constatação do quão degradante para os Yanomami é a aproximação com o branco, as fotografias de Cláudia demonstram também o quanto eles estão exauridos pelo contato: são muitos os rostos extenuados, tensos, os olhares angustiados; destacam-se, aqui, as mulheres maquiadas, com as sobrancelhas fortemente acentuadas, um sinal de que já se entregaram à prostituição. Assim, além da preocupação de enquadrar a maior ou menor integração do retratado ao mundo branco, também o registro do porte de alguma peça de roupa tem como objetivo tornar patente a humilhante inadequação do uso da vestimenta: é o caso do patético jovem inteiramente vestido com o uniforme de um time de futebol, enquadrado quase de corpo inteiro (número 9: 200702_100); ou o das mulheres – enquadradas abaixo do busto – que usam vestidos idênticos do mesmo tecido, a indicar pouco caso da distribuição de roupas feitas em série; ou ainda o da roupa miserável e suja das crianças (número 10: 200702_058). A atenção e o cuidado da fotógrafa em registrar essa presença degradante da roupa permitem que os índios vestidos sejam diferenciados daqueles que, nada portando sobre o corpo, se apresentam com

Page 7: Stella Senra. O ultimo circulo

dignidade: ao destruir sua integridade original, a roupa rebaixa homens, mulheres e crianças que não têm o hábito de as portarem.Por ocasião de sua visita aos Yanomami, em 1971, o antropólogo francês Pierre Clastres já notara a “aparência de mendigos” dos Yanomami, que usavam roupas sem serem capazes, muitas vezes, até de distinguir a diferença entre o traje masculino e o feminino. Usado por Claudia Andujar como epígrafe do relato de sua visita aos Yanomami, o comentário de Clastres é a conclusão de um texto no qual o antropólogo louva a liberdade desta que é “a última sociedade primitiva livre da América do Sul, e certamente também do mundo” [12].A escuta atenciosa da fotógrafa à fala de Clastres faz pensar que talvez Claudia tenha chegado até os Yanomami num momento crucial: quando o “último círculo” acaba de ser rompido e os efeitos desastrosos desta ruptura já se manifestam; mas a tempo, ainda, de captar os últimos lampejos desta liberdade derradeira, que o antropólogo saudou com tanta ênfase.

Marcação/DemarcaçãoProvavelmente a única obra fotográfica de Claudia sobre os Yanomami que está integrada num projeto cujos objetivos ultrapassam a fotografia, mas que a engaja também como fotógrafa, Marcados pode ser ainda considerado um trabalho paradigmático porque se faz acompanhar de um relatório que documenta a própria situação em que as fotografias foram feitas. Com 219 páginas e inteiramente produzido pela fotógrafa, o documento presta contas minuciosas de todas as atividades realizadas pelo grupo: além de mencionar cada um dos complicados deslocamentos e de especificar todas as tarefas cumpridas pelos viajantes, nele Claudia descreve as vias de acesso às diferentes regiões, dá conta dos mais variados meios de transporte usados, enumera aldeias, recenseia seus habitantes, os doentes, os mortos, discrimina as vacinas feitas, expõe o modo de vida destas populações em relação ao uso da terra, apresenta números, mapas e, valendo-se da riqueza de seu conhecimento empírico dos Yanomami, faz suas próprias considerações com vistas à demarcação do território[13].Claudia participou, durante vinte anos, da luta pela demarcação do território Yanomami. Sua rica experiência com os índios, a familiaridade que adquiriu com o seu modo de vida e relação com a terra foram de grande valia para a definição da extensão e dos limites desse território. Demarcar – eis uma tarefa que implica também, mais uma vez, no uso da marca, e que traz de novo à mente as suas várias funções e ambigüidades. Com efeito, se os números sobre os corpos dos índios sinalizam sua entrada no mundo branco, é também por meio da marca que o território Yanomami vai ser instituído. Do mesmo modo que a identificação, a demarcação também opera por meio de marcas: são as marcas no chão que desenharão os contornos do território; e que, conseqüentemente, fixarão dentro de uma determinada ordem jurídica, política e administrativa uma extensão de terra que, no caso dos Yanomami, é tradicionalmente medida pelo alcance dos passos humanos. De uma terra móvel, portanto, que acompanha os deslocamentos determinados pelas necessidades políticas, de aliança e de sobrevivência de seus habitantes.Marcar/demarcar: esse duplo gesto sugere, de fato, uma correspondência entre a identificação dos indivíduos e a atribuição de um território – iniciativas do branco que refletem de modo exemplar a ambigüidade do contato. Enquanto a fotografia de identificação visa proteger a saúde dos índios, mas também remete à sua inscrição numa outra ordem social, a demarcação que os protege das ameaças exteriores também fixa, como numa foto, limites a uma terra que antes se deslocava com seus moradores.[14]No seu texto “Pergunta e resposta”, no qual a pergunta é considerada como um ato de força, como exercício de poder, Elias Canetti afirma que a primeira de todas as perguntas se refere à identidade, e a segunda ao lugar[15]. Se acatarmos o ponto de vista do escritor, que considera a resposta como um primeiro gesto de submissão ao poder que a pergunta impõe, fica evidente o quanto a identificação dos Yanomami e de seus lugares pode ser agressiva e desastrosa para a sua cultura: do mesmo modo que eles não respondem a nomes próprios, também não são denominados os lugares que habitam. É assim que, ao buscar localizar, mais de vinte anos depois, os locais onde as fotos de Marcados foram feitas, Claudia pôde constatar que ninguém mais sabia onde se encontravam e que nenhum índio os conhecia.Cláudia sabe que, tradicionalmente, na cultura Yanomami nomes de pessoas e lugares não têm importância; para eles os lugares recebem um nome apenas temporário, enquanto ali se mora, ou, talvez, nem isto (por exemplo: o rio das folhas de tal árvore; ou o rio de tal bicho). Uma pessoa também não tem nome; tem um apelido dado pelos outros, em função de uma situação, ou de algo que nela se destaca.[16]

Page 8: Stella Senra. O ultimo circulo

O território é, assim como a identidade, uma construção que os brancos sobrepõem a uma realidade de outra ordem, que não se enquadra nas suas categorias. A área utilizada pelos Yanomami, assim como as divisões culturais e políticas específicas dos diferentes grupos dependem de vários fatores, dentre os quais está o modo das várias aldeias se relacionarem entre si. Segundo estudos mencionados no documento de Claudia, as relações entre aldeias Yanomami envolvem prestações mútuas de serviços, troca de bens, intercâmbios matrimoniais, alianças políticas e participação cerimonial e religiosa. A dinâmica da sociedade é determinada, desse modo, pela movimentação entre as aldeias ou conjuntos de aldeias – uma movimentação que implica em freqüentes contatos intensos e prolongados entre aldeias. Em termos de distância linear, com maior ou menor freqüência, os índios podem percorrer uma rede de trilhas através da mata que liga as comunidades em distâncias que vão de dez a cento e cinqüenta quilômetros[17].Em seu relatório, Cláudia anota que a terra ocupada pelos Yanomami se compõe de três círculos. Ao redor da habitação, eles utilizam uma área de cerca de 900m2 por pessoa para abrir roças. A cada dois anos eles migram cerca de três quilômetros para refazer as roças. Além disso, utilizam também uma área mais extensa em torno da habitação, num raio de aproximadamente quinze quilômetros, para obter os produtos da caça, da pesca e da coleta. O esgotamento dessa área ou algum acontecimento de outro tipo – epidemias, hostilidades com outras comunidades – levam a migrações maiores, num raio de dez a trinta quilômetros. As velhas roças abandonadas, entretanto, são usadas ainda por muitos anos, para colheita de produtos agrícolas de ciclo, como a banana ou a pupunha.Outro dado levantado pelos estudos antropológicos – anota Cláudia – que repercute sobre a relação dos Yanomami com a terra é a capacidade de segmentação das suas aldeias. Esta é, aliás, uma característica marcante da organização social desses índios: quando uma comunidade cresce além de certos limites difíceis de determinar com precisão, a tendência é surgir uma rivalidade política em seu seio, de modo a motivar uma divisão da comunidade. Uma parte dos índios da aldeia se afasta, instalando-se em local próprio. São esses dados que justificam a demarcação de um extenso e contínuo território para os Yanomami.Tais observações levam a concluir que a demarcação de um território para uma população com tal mobilidade representa, sem dúvida, uma violação de sua vida material, de seus hábitos e costumes. Mas ao mesmo tempo, sem os limites que impedem a entrada do branco, a vida dos Yanomami se encontra em risco permanente, assim como as riquezas naturais que sua terra abriga. Tão ambígua quanto a marca, o número, a demarcação é, portanto, uma necessidade imperiosa para os Yanomami; mas traz na sua inspiração, também, o projeto de imobilidade que caracteriza as fronteiras do mundo branco – mesmo que a reivindicação de um território extenso e contínuo defendida pelos que lutaram pela demarcação visasse permitir a maior amplitude desses deslocamentos.

* * *Estamos habituados a encontrar, hoje em dia, obras de artistas em que a documentação – quer se trate de escritos, de dados, de mapas, ou de outros tipos de registro – é uma parte constitutiva. Também há muitos artistas que procuram, para elaborar seu trabalho, determinadas comunidades ou locais (moradores de rua, ex-prisioneiros, índios, mas também fronteiras, favelas, campos de exilados etc.), passando muitas vezes algum tempo na sua proximidade.No caso de Claudia, a documentação não está relacionada do mesmo modo com o ato de fotografar. Ela é uma exigência da ação (a luta pela demarcação, o cuidado com a saúde dos Yanomami) – mas de uma ação que é, por sua vez, eticamente inseparável do seu trabalho fotográfico. Além disso, o encontro de Claudia com os Yanomami não foi programado, nem se submeteu ao controle que caracteriza essas práticas mais recentes.Como denominá-lo, então, senão como uma experiência, vertiginosa, total – que confere ao trabalho a dimensão de uma “necessidade”? É assim que, em vez de procurar inscrevê-lo numa tradição fotográfica ou artística – tarefa que, certamente, também poderia ser empreendida – talvez seja mais apropriado o distinguir justamente por este seu caráter ímpar, único.Stella SenraTexto do livro Marcados, da fotógrafa Cláudia Andujar, Editora CosacNaify, São Paulo, 2009. Edição bilingue português/inglês.

[1] Organizado em 1980, o grupo de trabalho com a participação de Cláudia Andujar, então coordenadora da CCPY (Comissão pela Criação do Parque Yanomami), dos médicos Drs. Rubens Brando e Francisco Pascalichio era

Page 9: Stella Senra. O ultimo circulo

patrocinado pela organização dinamarquesa iwgia (International Workgroup for Indigenous Affairs). A série de fotografias que compõe Marcados foi mostrada numa instalação com o mesmo título, na 27ª. Bienal de São Paulo, em 2006. Numa sala, as imagens foram distribuídas em duas paredes face a face; no centro desse espaço, uma mesa mostrava em imagens de satélite o mapa do território Yanomami.[2] Foster, H., The Return of the Real – The Avant-Garde at the End of the Century. The mit Press, Cambridge- Massachusets, Londres, 1996. pp 130-39.[3] Id., ibid.[4] Id., ibid.[5] É nesses termos que está colocada a origem da foto de identificação em Serén, MC. Murmúrios do tempo, Ministério da Cultura/Centro Português de Fotografia, Lisboa, s/d.[6] Riley, C. E Niven, D. (org.), The Killing Fields. Santa Fé, Novo México: Twin Palmes Publishers, 1996.[7] A questão da identificação cria uma série de situações ambíguas entre índios e representantes da sociedade branca. No dia 25 de junho de 2007, a Folha Online noticiou que o índio Ivam Irãxiliana foi impedido de embarcar num avião, mesmo com autorização da funai para viajar, porque não tinha, como os brancos, uma carteira de identidade. Os índios têm direito à carteira de identidade, mas raramente têm o documento, dada a sua dificuldade para atender às inúmeras exigências para obtê-lo (dentre elas, a certidão de nascimento). As autoridades não podem impedir suas viagens, desde que estejam munidos de autorização da funai.[8] Com o título Marked for Life, Marked for Death a instalação, com três dessas fotos, foi mostrada na exposição “Citizens”, no Pitshanger Mannor Gallery & House, em Londres, 2005, com itinerância por vários museus ingleses ao longo do mesmo ano. Curadoria de Cynthia Morrison-Bell e Laymert Garcia dos Santos.[9] Barthes, R., A câmara clara, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1980.[10] Aqui pensamos nas noções de rosto (visage) e rostidade (visagéité) formuladas por Gilles Deleuze e Félix Guattari, e na sua afirmação, inspirada na leitura de O círculo dos fogos – feitos e ditos dos índios Yanomami, do antropólogo Jacques Lizot, de que “os povos primitivos não têm rosto”. Um rosto não é um invólucro exterior àquele que fala, pensa ou sente, escrevem eles. Para determinar o que nos é dito fazemos “escolhas” no rosto daquele que fala – “olha, ele esta está com raiva…”. Os rostos não são, de início, individuais, dizem os autores, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza de antemão as expressões e conexões rebeldes às significações aceitas. A forma da subjetividade, consciência ou paixão ficaria vazia se os rostos não formassem “lugares de ressonância que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o de antemão conforme a uma realidade dominante”. O rosto é produzido na humanidade, mas por uma necessidade que não é a dos homens “em geral”, afirmam os autores. Nas sociedades primitivas, notam eles, poucas coisas passam pelo rosto: sua semiótica é não significante, não subjetiva, essencialmente coletiva, polívoca e corporal, recorrendo a formas e substâncias de expressão muito diversas. Acolhendo as observações de Jacques Lizot sobre os Yanomami, os dois autores ressaltam, por exemplo, a dissociação quase perfeita “do dever, do rito e da vida cotidiana: numa situação de luto eles podem fazer brincadeiras obscenas enquanto outros choram (…)”. Para Deleuze e Guattari, “os primitivos podem ter as cabeças humanas mais belas e espirituais”, mas “eles não têm rosto e nem precisam dele”, pela simples razão que o rosto não é universal; ele não é sequer o do homem branco, ele é o próprio Homem branco, “com suas grandes bochechas brancas e o buraco negro de seus olhos – ele é dado pela relação entre esta superfície, ou muro branco, como eles a denominam e este buraco negro. O rosto é o Cristo, o Europeu típico (…)”. Deleuze G. e Guattari F., Mille plateaux, Éditions de Minuit, Paris, 1980, pp. 205-234. Publicado no Brasil pela editora 34, São Paulo, 1995-1997.[11] Um anúncio publicado na seção de animais dos classificados da Folha de Boa Vista diz respeito ao destino cruel que o mundo branco pode dar a essas a crianças. “Vendem-se filhotes de Yanomami com 1 ano e seis meses. R$ 1.000,00. Tratar 9971 3287”, diz o jornal. O responsável pelo anúncio, Paulo César, acusado de ato discriminatório contra população indígena e incitação de segregação racial foi condenado a dois anos de prisão, substituídos por sanções restritivas de direito. Folha de Boa Vista: “Venda de Yanomami. Juiz condena anunciante por preconceito”, 31/3/2005, in Relatório nacional sobre os direitos humanos no Brasil – 2002-2005, usp/ Pró-reitoria de Cultura Extensão Universitária/nev- Núcleo de Estudos da Violência.[12] Clastres,P. “Le Dernier cercle”, Le temps modernes, no. 298, 27º ano. Paris, 1971, p. 1940.[13] Relatório Yanomami 82 – Situação do contato e saúde – Recomendações para a criação e estruturação do Parque Yanomami. Comissão pela Criação do Parque Yanomami – CCPY, São Paulo, 1982.

Page 10: Stella Senra. O ultimo circulo

[14] Essa correspondência entre a marca e a demarcação estava apontada na instalação, mostrada na 27ª Bienal de São Paulo, onde o mapa com o traçado do território Yanomami fazia um contraponto às fotografias dos índios marcados.[15] Canetti,E. Massa e poder, Editora Universidade de Brasília/Melhoramentos. São Paulo/Brasília, 1983, p. 319.[16] Por exemplo, o xamã Davi Kopenawa adotou esse nome no curso de sua luta pela demarcação do território Yanomami. Segundo o antropólogo Bruce Albert, “Kopenawa” esse “nome para a cólera e para falar com dureza aos brancos” veio ao xamã num sonho com os espíritos marimbondo “kopenaripë”, que beberam o sangue de “Aro’, guerreiro mitológico criador da coragem. Albert,B. “La saga de Davi Kopenawa” in Yanomami. L´esprit de la forêt. Catálogo da exposição do mesmo título, Fondation Cartier pour l´Art Contemporain/Actes Sud, Paris, pp 22-23.[17] As informações, assim como as tabelas sobre a ocupação do território são de Carlo Zacquini, da Missão Catrimani.

R E L A C I O N A D OO devir imagem das palavrasEm "Fotografia"Fotografia e identidadeEm "Fotografia"Corpos , cinema e vídeoEm "Artes Plásticas"Esse post foi publicado em Fotografia e marcado fotografia por stellasenra. Guardar link permanente.Deixe um comentário

O tema Twenty Eleven. | Crie um website ou blog gratuito no WordPress.com.SeguirSeguir “Stella Senra”

Obtenha todo post novo entregue na sua caixa de entrada.

Crie um site com WordPress.com