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Sem família e sem amigos, nunca teria escrito este livro e, sem professores, não teria apren‑

dido a escrevê ‑lo. Ao longo da vida tenho tido muitos professores, embora não se revejam nes‑sa definição. Ainda assim, gostaria de agradecer a Derek Chorley, a Chris Surtees, a Roy Watson, a Nick Joseph e a Julia Churchill. Obrigada a to‑da a equipa da HarperCollins por gostar do Vaga­

bundo e a Gary Blythe por transformar as palavras em bonitas ilustrações.

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Para o meu pai

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Chamo ‑me Cally Louise Fisher e não falo há 31 dias. As palavras não transformam os

nossos desejos em realidade, por muito que as‑sim o desejemos. Pensem na chuva, por exem‑plo. Só quando as nuvens estão prontas, quando estão carregadas, é que deixam cair a água. Não é magia. Trata ‑se apenas de pôr cada coisa no seu lugar.

E foi assim que tudo começou.

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Era o dia do aniversário do meu pai e fui a pri‑meira a levantar ‑me da cama.

Ele só desejava passar um dia tranquilo. Dis‑se que não queria presentes, nem bolo, nem na‑da, porque não lhe parecia correto. As pessoas esquecem ‑se de que os aniversários não são só sobre elas.

O aniversário do meu pai coincide com o dia da morte da minha mãe, ocorrida no ano pas‑sado. Creio que, quando duas coisas como essas acontecem no mesmo dia, se usam palavras com‑plicadas como «tragédia» ou «catástrofe», que significam bem mais do que apenas «azar».

Diante da porta do quarto do meu pai e com os postais de aniversário na mão, esperei que ele

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se levantasse. Através da fresta, avistei um vulto escuro sob as cobertas e uma cabeça igualmente escura afundada na almofada. Suspirou e, dessa forma, percebi que estava acordado.

No total, tinha seis postais de aniversário. Um era meu, outro era do meu irmão mais velho, o Luke (ainda na cama ou agarrado ao computa‑dor, não fazia ideia, uma vez que a porta estava fechada), e quatro haviam chegado pelo correio. Entreabri a porta e fiz voar o postal lá para dentro. O meu pai tateou em redor da cama, à procura do envelope azul que caíra atrás de si, e eu ouvi o rasgar do papel quando o abriu. O postal tinha o desenho de um urso cinzento com nariz azul que falava ao telefone e dizia: «Uma Mensagem de Mim para Ti.»

— Obrigado, é muito bonito — disse o meu pai.

— Estás a pensar na mãe? — perguntei.Fez ‑se silêncio por instantes e depois pediu:— Podias trazer ‑me uma caneca de café, por

favor?Aquilo não se parecia nada com um aniver‑

sário, nem mesmo com os postais dispostos em

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cima do televisor. O meu pai tinha baixado o som, enquanto esperávamos que o resto da famí‑lia chegasse para irmos todos juntos ao cemitério visitar a campa da minha mãe no dia do aniversá‑rio da sua morte.

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O avô e a avó Hamblin deram ‑nos boleia e conduziram lentamente até ao cemitério.

Já lá estavam o avô Fisher e a tia Sue e, todos juntos, percorremos caminhos de relva recém‑‑cortada, passando por lápides nas quais se podia ler: «Em memória de.»

Fizemos um círculo e permanecemos imó‑veis como estátuas. Ninguém falou dela porque o meu pai dizia que isso era demasiado doloroso. Assim, ficámos apenas a olhar para a pedra cin‑zenta e fria que tinha o nome dela escrito: Louise Fisher. Era igual ao meu segundo nome.

Pensei na minha mãe. Não aqui na terra, mas lá em cima, algures. Sentia tanto a falta dela. Também me perguntei se deveria ter tomado o

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pequeno ‑almoço antes de sair de casa pois doía‑‑me a barriga.

E, de repente, ali estava ela: a minha mãe. Já sei o que estão a pensar. É impossível ver os mortos. Mas eu via ‑a. Encontrava ‑se de pé sobre o muro do cemitério, vestindo a sua gabardina vermelha e o chapéu verde impermeável. E não senti medo. Por‑que haveria de ter medo da minha própria mãe?

Para se equilibrar melhor, estendeu os braços para os lados e avançou pelo muro. Não tinha mudado nada. Ali estava ela a fazer uma coisa que nos dava vontade de rir ou de a imitar. Balançou na nossa direção até estar o mais próximo possí‑vel sem ter de saltar do muro. Enterrou o chapéu na cabeça e sorriu ‑me, tal como sorrira quando me vira cantar no musical da escola, A Teia de

Carlota. Um sorriso que parecia dizer que eu era tudo para ela.

A avó levava um ramo de ervilhas ‑de ‑cheiro envolto em papel de alumínio.

— Sê uma boa menina e põe estas flores na jarra — pediu, entregando ‑me o ramo. O lenço de papel que levava dentro da manga caiu e flu‑tuou devagar até ao chão.

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— Acredita em fantasmas? — sussurrei, ao mesmo tempo que apanhava o lenço e lho devol‑via. — Acredita que a mãe poderia voltar e nós poderíamos vê ‑la?

As lentes dos óculos refletiram o roxo e o cor‑‑de ‑rosa das flores e fez com que se assemelhas‑sem às janelas existentes nas igrejas. Fechou os olhos e limpou suavemente o nariz.

— Oh, minha querida — disse ela —, estamos todos um pouco perturbados. — Inalou o aroma das flores e pô ‑las na minha mão.

Avancei por entre o apertado círculo de pes‑soas e coloquei ‑me entre a tia Sue e o meu pai.

— Acredita em fantasmas, tia Sue? — inda‑guei. — Alguma vez viu a minha mãe, embora ela não devesse estar aqui?

Peguei ‑lhe pelo braço para que se virasse e pu‑desse olhar para o muro e ver a minha mãe lumi‑nosa, brilhante, tão real quanto qualquer um de nós. Olhei ‑a nos olhos, antecipando a expressão de surpresa. Franziu o sobrolho e esboçou um sorriso. Não fui capaz de interpretar o significado daquilo.

— Ela está ali, tia Sue — sussurrei, apontando. — Ali.

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Pestanejou. Nada.— Pai — chamei —, olha! Olha ali no muro.

É a mãe!Ele coçou o queixo. Olharam ambos para mim

como se olha para alguém sem prestar atenção ao que está a dizer. O mesmo fizeram a avó e o avô Hamblin e o avô Fisher.

— Pronto, pronto, Cally, este não é o lugar nem a hora para brincadeiras tolas — declarou o avô Fisher.

Nesse momento, o avô Hamblin levantou a ca‑beça para o céu, observando as distantes nuvens cinzentas.

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— Vem aí chuva — murmurou.O meu pai olhava fixamente para a terra silen‑

ciosa.— Pai? — insisti. — Consigo vê ‑la. Eu sei que

ela morreu, mas está aqui.Virei de novo a cabeça na sua direção e os

olhos da minha mãe brilharam como brilha o céu iluminado pelo Sol. Senti que eu e ela éramos as únicas pessoas realmente vivas naquele lugar. O meu coração começou a palpitar e reparei que os pulmões se encheram de ar. A minha vontade era gritar: «Mãe, canta uma canção para que to‑dos percebam que estás aqui. Canta para que os pássaros invejem a tua voz, tal como costumavas fazer.»

— Cally, querida — disse a tia Sue —, a ima‑ginação pode pregar ‑nos partidas. — Aproximou‑‑se do meu pai e pousou a mão no ombro dele. As lágrimas esborrataram ‑lhe o rímel. — Às ve‑zes, quando queremos realmente acreditar numa coisa, ficamos convencidos de que é real.

A avó assoou o nariz ao lenço de papel.Pareceu ‑me escutar qualquer coisa ao lon‑

ge, a sensação de estar a muitos quilómetros de

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distância, na outra ponta da cidade, e ainda assim saber que o circo ambulante está a chegar. A mi‑nha mãe pôs as mãos em concha de cada lado da boca como um altifalante.

— Pai, ela quer dizer ‑nos qualquer coisa — declarei.

Antes de o meu pai desviar os olhos dos meus, vi o que havia no olhar dele: palavras demasiado grandes para serem pronunciadas, demasiado di‑fíceis para serem proferidas adequadamente. Ar‑queou as costas e esfregou a cara.

— Já chega, Cally — ordenou. — Estás a per‑turbar toda a gente.

Sussurrei:— Não consegues vê ‑la?A minha mãe já tinha parado de sorrir e pro‑

curava qualquer coisa no bolso. Perguntei ‑me porque estaria de gabardina e chapéu naquele dia quente de verão.

— Pai — apontei —, consegues vê ‑la, não con‑segues?

— Não — resmungou. — E tu muito menos. E não quero ouvir nem mais uma palavra sobre o assunto.

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— Formem grupos de duas ou três pessoas. Cada grupo será um planeta — ordenou

a Prof.a Steadman, que dava aulas de Ciências. — Como parou de chover, vamos para o recreio representar o sistema solar.

— Podemos ser a Terra — disse à Mia Johnson, a minha melhor amiga.

Foi então que a Daisy Bouvier se aproximou, roendo as unhas. A Daisy não nos deixava em paz desde que, numa festa de pijama, se zangara com a Florence Green. A Mia olhou ‑me com uma expressão estranha e disse:

— Daisy, tu também fazes parte do meu grupo.A Prof.a Steadman começou a explicar que os

planetas ficavam a milhões de quilómetros de

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distância e que tínhamos de fazer de conta que o recreio era o sistema solar. Dei uma cotovelada à Mia e tentei propor ‑lhe que, durante o almoço, fizéssemos qualquer coisa que não incluísse a Daisy. Mas não consegui dizer ‑lhe nada porque a Prof.a Steadman gritou:

— Silêncio, Cally. Tenta manter ‑te calada en‑quanto explico a matéria, ou não vais aprender nada.

A professora pegou num giz azul e desenhou um círculo à nossa volta e depois partiu para Marte com outro grupo e um pau de giz vermelho.

Brincar assim ao espaço fez ‑me pensar no dia em que toda a família foi a Wells. No interior de uma enorme catedral dourada, podia ver ‑se um dos mais antigos relógios do mundo. A Terra esta‑va pintada no centro do relógio e o Sol girava em redor, juntamente com o ponteiro dos minutos.

A minha mãe comentara: «Às vezes, as pessoas percebem tudo ao contrário.»

Ela queria dizer que, no passado, na época em que o relógio fora pintado, as pessoas não sabiam como era o universo. Agora toda a gente sabe que o nosso pequeno planeta gira em volta do Sol.

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É curioso que isso aconteça sem que ninguém o sinta.

— Vejam — disse à Mia e à Daisy —, é assim que o nosso planeta rodopia.

Com os braços esticados para o lado, comecei a dar voltas até sentir as mãos pesadas e a cabeça a andar à roda.

— Para com isso — alertou a Mia. — Não pode‑mos estar a conversar nem a rodopiar. Temos de prestar atenção.

— Tu podias ser a Lua — disse à Daisy.— Mas a Prof.a Steadman não disse nada so‑

bre a Lua — argumentou ela. — E eu queria ser o planeta Mercúrio.

— Mas repara no que aconteceria se, de repen‑te, começássemos a girar na direção contrária — insisti.

Choquei contra a Lua e saí disparada na outra direção.

— Escuta — disse ‑lhe —, podíamos sair para o espaço e ver o que existe por lá.

— Cally Fisher! — gritou a Prof.a Steadman, do outro lado da galáxia. — Regressa ao teu cír‑culo e não saias de lá!

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Contudo, eu queria descobrir o que havia nos confins do espaço. Imaginei uma torrente de luz a brilhar por todo o universo. Talvez fosse uma estrela ou um portal, um caminho que atraves‑sava um buraco no céu para onde iam as almas e os anjos. E quem podia resistir a desvendar esse brilho na escuridão, a única coisa luminosa em todo o universo?

No final, fui enviada para Plutão com o Daniel Bird, que não tinha par.

— Estás outra vez metida em sarilhos — afir‑mou ele.

O Daniel gosta de realçar o óbvio.

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Depois da aula da Prof.a Steadman, tínhamos Música com o Prof. Crisp. Adoro cantar.

É uma caraterística que herdei da minha mãe. Ela cantava tão bem que o meu pai dizia que os pássaros deviam arranjar outro ofício. A minha mãe afirmava que cantar era como fazer tricô: as malhas uniam todas as pessoas do mundo. Era por isso que o meu pai tocava viola para ela e era também por essa razão que tocava numa banda às sextas ‑feiras à noite no pub. Bem, pelo menos costumava tocar.

Quando o Prof. Crisp disse que a escola estava a organizar um concerto de despedida no final do ano, eu e a Mia combinámos dar os nossos no‑mes para as audições e cantar juntas no concerto,

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uma vez que era o nosso último ano na escola primária Parkside Juniors.

Depois da aula, ouvi a Daisy conversar com a Mia na casa de banho das raparigas.

— Vamos dar os nossos nomes para fazermos qualquer coisa juntas — disse a Daisy. — Não lhe dizemos nada.

— Agora que somos melhores amigas, podía‑mos fazer um dueto — redarguiu a Mia.

Depois puseram ‑se a falar das canções de que gostavam.

— Ela, de qualquer maneira, só nos iria abafar — afirmou a Daisy.

Riram.— Acho que ela canta mal — comentou a

Mia.Contornaram a esquina do cubículo e a Mia

esbarrou contra mim.— Eu não canto mal — resmunguei.Os olhos dela chisparam.— Nunca disse isso.— Acabei de te ouvir.A Mia corou e levou as mãos à cintura.— Estava a brincar — argumentou.

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— Ela não sabe aceitar uma brincadeira — ati‑rou a Daisy. — Além disso, de cada vez que faze‑mos alguma coisa contigo, acabas por ouvir um raspanete. E estás sempre a meter ‑te em sarilhos.

— Isso não é verdade — contrapus.— Claro que é! — exclamou a Mia.— Não, não é! E tu devias ser minha amiga.— Vês? Já estás a armar confusão. Estragas tu‑

do. E eu nunca prometi que íamos cantar juntas.— Não és lá grande amiga. Os amigos não di‑

zem essas coisas.— Se é isso que pensas — disse a Mia, dando

o braço à Daisy e dirigindo ‑se para o corredor —, então não precisamos de continuar amigas.

Fiquei na casa de banho a arrancar pedaços de plástico sujo que estavam junto ao rolo de papel higiénico até a campainha tocar.

Ainda podia inscrever ‑me no concerto. Mas te‑ria de cantar sozinha.

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