sanctum, flavio. do negativo social à trasnformação do real - aproximações entre boal e...

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    vol. 12, n. 2, dez 2012, p. 45-50Em pauta

    Do negativo social transformao do real Aproximaes entre Boal e Adorno

    Flavio Sanctum 1

    Resumo

    O presente artigo analisa o encontro da teoria de Theodor Adorno na prtica do Teatro-Frum, criadae desenvolvida pelo brasileiro Augusto Boal. Neste texto sero aproximados o conceito de IndstriaCultural e de negativo social, presente na obra de Adorno em contraponto prtica contemporneade Boal.

    Palavras-Chave: Teatro-Frum; Indstria Cultural; Arte Poltica

    Abstract

    This article analyzes the encounter of Theodor Adornos theory in the practice of Theatre-Forum,created and developed by the Brazilian Augusto Boal. This text will approximate the concept of CulturalIndustry and social negative, present in the work Demirovics text is Adornos idea in counterpoint toBoals contemporary practice.

    Keywords: Theatre-Forum; Cultural Industry; Politic Art

    Introduo

    Na histria das Artes Cnicas o Brasil recebe a herana do teatrlogo AugustoBoal que espalhou seu mtodo artstico de transformao social em todos os conti-nentes do mundo. O Teatro do Oprimido (TO) hoje praticado em mais de setentapases, onde muitos artistas e ativistas sociais utilizam os jogos e tcnicas criados

    ou sistematizados por Boal para redescobrir a arte adormecida e reprimida por umasociedade capitalista, acelerada e opressiva.

    Prticas como o Teatro Invisvel ou o Teatro Jornal, experimentadas em temposde ditadura e hoje ainda desenvolvidas pelos grupos de Teatro do Oprimido, fazemparte do arsenal blico, como dizia Boal, para a libertao do ser humano. Porm,a tcnica mais praticada pelos multiplicadores do mtodo o Teatro-Frum. Nessavertente do Teatro do Oprimido o espectador, antes passivo e receptivo, incentivado

    1 Curinga do Centro de Teatro do Oprimido e doutorando em Artes Cnicas pela UniRio.

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    a subir no palco, entrar na cena antes apresentada e propor alternativas de mudanapara o personagem oprimido. Indo um passo alm do teatro dialtico brechtiano, Boalsugere que o espectador saia de sua posio de espera e proponha sadas concretaspara determinado problema.

    Baseado no pensamento de Marx, Freire, Brecht e outros tericos marxistas,Boal cria um mtodo a servio da liberdade do ser humano, da redescoberta do artistaadormecido em cada um de ns com o objetivo de fazer da cultura e da arte, armaspara a transformao da realidade.

    O filsofo alemo Theodor Adorno, autor da Dialtica do Esclarecimento e concei-tualista da Indstria Cultural nos questiona sobre a arte engajada. Como crtico daobra pica brechtiana, Adorno no conseguia ver na arte poltica de sua poca uminstrumento a favor da revoluo. Para ele somente a arte que negasse os elementoscontidos na sociedade burguesa poderia ser crtica a essa mesma sociedade. Umapea ou uma msica que se utilizasse dos elementos burgueses no teria a foranecessria para ser chamada de arte revolucionria, pois seguiria o mesmo raciocnioesttico do modelo burgus. difcil pensar qual produto artstico a servio da revo-luo que agradaria esteticamente Adorno alm do msico Schnberg.

    Nosso desafio nesse texto analisar o aspecto de negativo social na obra dearte proposto por Adorno e perceber se h possibilidades de aproximao com o queo filsofo diz com a prtica do Teatro-Frum. Utilizarei o texto de dois comentadores deAdorno para uma base terica refletindo a partir do processo de criao de uma cenade Frum, passando desde a oficina de sensibilizao dos praticantes at o momentodo produto final ser apresentado ao pblico. Pode haver alguma contiguidade entreAdorno e Boal?

    Processos do Teatro-Frum como Atrito Social

    Para se construir uma cena de Teatro-Frum o primeiro passo realizado aproduo de uma oficina de introduo ao Teatro do Oprimido. Sobre a coordenao doCuringa, que o facilitador do mtodo, os participantes executam diversos exerccios e jogos teatrais com a inteno de, aos poucos, irem percebendo que opresses viven-ciaram e o que fizeram para minimizar os danos causados pelo opressor. Ao entrarem emcontato com suas vivncias, em momentos conflituosos no resolvidos, os participantes

    da oficina buscam histrias concretas de momentos em que se sentiram oprimidos e

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    no conseguiram resolver a questo. Isto , os participantes de uma oficina de Teatro--Frum precisam compartilhar coletivamente situaes reais, onde foram injustiados eforam derrotados pelo opressor. O grupo escolhe qual histria reverbera de forma maisforte na maioria, qual tema mais urgente de ser discutido e transformado. A escolha deum tema para o Teatro-Frum uma escolha poltica! A partir desse recorte da realidadeo grupo ir montar sua cena de TO, seguindo uma dramaturgia especfica.

    Adorno em alguns de seus textos nos fala sobre o negativo social que criticaessa mesma sociedade. Seria como que algo que contribui para o mal social fosse asalvao da prpria sociedade. O filsofo Oskar Negt explica:

    Deve-se compreender assim o fato de o trabalho terico consequente ser,para Adorno, uma forma de prxis decisiva, se no a mais humana, demodo que apenas o esprito de crtica do existente pode gerar fascas de

    esperana no futuro, e isso somente pelo atrito forte com o material emprico.(Duarte, 2004, pg. 103)

    Para entender melhor esse pensamento adorniano sugiro acompanharmos aprtica de Boal. Negt nos diz que um atrito forte com o material emprico pode gerarfascas de esperana no futuro. Supomos que esse atrito seja uma cena de Teatro--Frum montada pelos participantes de uma oficina. Independente do estilo escolhidopara a montagem da pea, comdia, drama, musical, a problemtica vai estar apresen-

    tada na cena. Toda pea de Teatro-Frum uma provocao sociedade um problemaque acontece na vida real, que aflige a um grupo de pessoas e provavelmente reflete emtodo tecido social. Numa apresentao esse atrito encontrar o material emprico, quepodemos entender como a realidade, os espectadores numa plateia. Nesse momentopassamos do indivduo para o coletivo. Aquela histria contada por um sujeito podereverberar em diferentes pessoas, em diferentes classes e contextos sociais. E parafra-seando Adorno, a cena ser um outro que critica a prpria sociedade.

    Muitas peas de Teatro-Frum retratam temas difceis de serem abordados forado palco. Assuntos como violncia domstica, abuso sexual, homossexualidade sotabus e precisam de um mediador social em seu debate. Porm por outro lado, taisproblemticas so urgentes de serem discutidas e transformadas. No ponto de vistaadorniano atravs desses assuntos negativos, dessas questes rejeitadas pelotecido social que podemos entender a sociedade onde estamos inseridos para futura-mente transform-la. O apego forado ao positivo parte da pulso de morte, e no acrtica do existente, que chama a desgraa pelo nome (Duarte, 2004, p.104).

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    Boal refora a importncia da investigao aprofundada quando busca em suaprtica o efeito de ascese, para que, atravs do teatro, fossem entendidas as razeshistricas de determinados problemas. A resoluo de determinadas questes nodependem somente do desejo de mudana, mas sim de uma anlise profunda dascausas desses fenmenos.

    Como a cmera do cineasta que, ao se afastar do ponto cntrico do objetosendo filmado, inclui elementos que o circundam, assim tambm, em umconflito particular, no devemos descer s suas singularidades, conjunturais,mas subir ao estrutural: do fenmeno lei que o rege, s suas causas Ascese! (Boal, 2009, pg. 189)

    E essa ligao com a calamidade histrica que defendida na teoria de Adorno,por trazer tona assuntos no desejados, no discutidos, mas necessrios para uma

    mudana social.O decisivo aqui a premente indicao de que uma cultura, como a quetemos hoje, no pode ser isolada do contexto histrico e principalmente nopode ser separada da calamidade [unheil] histrica, que ao mesmo temposeu produto e seu resultado. (Duarte, 2004. Pg. 148)

    E na prtica proposta no Teatro do Oprimido avanamos de um conflito particularpara uma discusso coletiva. E podemos confrontar o pensamento adorniano com ode Boal, em duas passagens que parecem complementar-se:

    O aprofundamento no individuado eleva o poema lrico ao universal, portrazer a luz algo no deformado, no apreendido, ainda no subsumido,e assim antecipar espiritualmente algo de um estado em que nenhumam universalidade, na verdade profundamente particular, amarra o outro,o humano. O construto lrico tem a esperana de encontrar o universal naindividuao irrestrita (...) Mas essa universalidade do contedo lrico essencialmente social. S compreende o que o poema diz aquele que, nasua solido, ouve a voz da humanidade. (Duarte, 2004, pg. 90)

    Eu, se transforma em ns extraordinrio salto. Ns e os artistas, eu e ns plateia. Juntos, descobrimos a descoberta que fez o artista. Arte , a um stempo, individual e social: ao dizermos ns, descobrimos nosso abrangenteeu. Digo eu, e somos ns. Podemos estar todos juntos diante de atores,

    bailarinos ou telas de cinema, ou podemos, solitrios, observar um quadro ouescultura a pluralizao se opera, ainda que invisvel. (Boal, 2009, pg. 112)

    Esse processo de coletivizao se d, tanto no momento de criao da cena,quando a histria no ser mais da pessoa que a contou, mas agora de todo o cole-tivo, pois foi eleita para representar aquele grupo, como tambm no momento emque a cena chega ao pblico. Pode-se dizer que a plateia refaz o caminho percorridopelos artistas, pois pode entrar na cena e se colocar enquanto protagonista, podendotransformar a estrutura cnica apresentada. Ao assistir uma sesso de Teatro-Fruma plateia tem a oportunidade de se identificar com o protagonista da cena. Atravs da

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    Dramaturgia empregada nos espetculos o pblico cria uma empatia positiva2, colo-cando-se na situao do personagem oprimido e, desta forma, sente-se correspon-svel pela busca de alternativas para o problema apresentado.

    E Boal defende que nenhumespect-ator sai de uma sesso de Teatro-Frumsem ser transformado, mexido de alguma maneira, pois o fato de ter presenciado apossibilidade de interveno cnica abre precedentes para uma mudana na vida real.

    Numa sesso de Teatro-Frum, ningum pode permanecer espectador nomau sentido dessa palavra. Mesmo que queira. Mesmo que se afaste, quefique s olhando, de longe. No Teatro-Frum, todos os espect-atores sabemque podem parar o espetculo no momento que desejarem. Que podemgritar Para e, democraticamente, dar sua opinio, teatralmente, em cena.Portanto, se escolhem no dizer nada, essa escolha j uma participao.Para no dizer nada, o espectador tem que se decidir a no dizer nada: issoj uma ao. (Boal, 1999, pgs. 343, 344)

    Adorno no apoiava uma arte engajada por entender que a prpria matria da arte que deveria trazer a crtica ao mundo administrado e racionalizado e no buscar elementosfora da obra para fazer essa crtica. A experincia do artista na criao, a prpria obra e oprocesso da plateia conseguir perpassar por sensaes e emoes parecidas com as doartista na sua criao que produzem a possibilidade de um debate social. Boal (2009) dizem sua Esttica do Oprimido que: O produto artstico obra de arte deve ser capaz dedespertar ideias, emoes e pensamentos semelhantes aos que levaram o artista suacriao. Nesse caso a arte precisa ser autnoma, ter um corpo prprio para provocar umchoque social. Uma obra de arte precisa provocar ruptura nas regras fixas da sociedadepara, assim, permitir que o espectador possa ter uma experincia esttica que provoquefruio. Adorno acreditava ainda que a filosofia viesse como mediador da arte, a fim depossibilitar uma interpretao e uma anlise da obra.

    Para Adorno, em contrapartida, a filosofia tem a tarefa de conhecer o que no mais, ou seja, de descobrir por que foram vedadas as possibilidades segundoas quais seria possvel instituir uma vida melhor aqui e agora, respondendo

    por que a humanidade, como se l no comeo da Dialtica do Esclarecimento,em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, est se afundandoem uma nova espcie de barbrie. (Duarte, 2004, pg. 140)

    Essa experincia esttica s seria possvel se a obra provocasse uma no-iden-tificao o no-idntico ocasionando um estranhamento ao espectador. A iden-

    2 Quando digo empatia positiva porque acredito numa negativa. Para Boal a empatia utilizada atravs daTragdia Grega era para controlar a populao de sua revolta poltica. Atravs de um sistema descrito por

    Aristteles, onde a catarse era o objetivo final, a populao era controlada e coagida a no seguir os atos dosheris trgicos, com a consequncia de sofrerem o mesmo que o heri sofreu na pea. Essa teoria defendida porBoal pode ser encontrada no livro Teatro do Oprimido e Outras Poticas Polticas, editora Civilizao Brasileira.

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    tidade esttica deve defender o no-idntico que a compulso identidade oprimena realidade. (Adorno, 1970, pg.15) Quando a arte se afasta da vida real e traz umaleitura singular dessa realidade possvel analisar e criticar a sociedade. E essa crticase d por no estar envolvido com a obra o envolvimento impossibilita a anlisecrtica. Boal, assim como Adorno, critica a mmesis 3 por ser um elemento que imitaa realidade, enquanto para haver crtica precisaria de uma representao do real. Acpia do real reproduz aparncias visveis: duplica o bvio. Artistas, ns mergulhamosno fundo do mar para depois pisar em terra firme. (Boal, 2009, pg.164)

    Que as obras de arte, como mnadas sem janelas, representem o que elasprprias no so, s se pode compreender pelo fato de que a sua dinmicaprpria, a sua historicidade imanente enquanto dialtica da natureza e dodomnio da natureza no da mesma essncia que a dialtica exterior, masse lhe assemelha em si, sem a imitar. (Adorno, 1970, pg. 16)

    E ratificando o pensamento de Adorno, Boal diz que uma das principais funesda Arte revelar, tornar sensveis e conscientes esses rituais teatrais cotidianos, espe-tculos que nos passam desapercebidos, embora sejam formas potentes de domi-nao. (Boal, 2009, pg. 141)

    Temos no Teatro-Frum um bom exemplo de como uma obra de arte pode trazera crtica a partir do lado negativo da sociedade, que dificilmente apreciado. Nos

    espetculos temos a representao da situao de opresso, onde cada participantecoloca em cena imagens, sons e palavras que garantam no uma cpia do que sepassou na vida real mas uma interpretao. O oprimido d seu ponto de vista sobreo tema apresentado em forma de uma pergunta que no teve respostas, um problemano resolvido. Esse tema/espetculo levado a um pblico que pode interferir nocaminho que a histria pode tomar, tornando-se assim coautor da pea teatral.

    Referncias

    ADORNO, T.W. Teoria Esttica. Editora 70: Lisboa, 1970.

    BOAL, Augusto. A Esttica do Oprimido. Editora Garamond: Rio de Janeiro, 2009.

    BOAL, Augusto. Jogos para Atores e no Atores. Editora Civilizao Brasileira: Rio de Janeiro,1999.

    DUARTE, Rodrigo. KANGUSSU, Imaculada. FIGUEIREDO, Virginia (Orgs.) Theoria Aesthetica.Em comemorao ao centenrio de Theodor Adorno. So Paulo: Escritos, 2004.

    3 A mmesis um processo social de identificao perversa, onde o sujeito, ao se identificar com o objeto,perde a sua distncia crtica. A categoria da identidade, enquanto categoria essencial da arte concebida como

    mmesis , impossibilitaria pensar na arte como algo crtico, caracterstica essencial para o pensamento adorniano.