rossio - estudos de lisboa nº 5

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Revista Sobre Lisboa

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  • 2rossio. estudos de lisboa n. 5 junho 2015Publicao do Gabinete de Estudos Olisiponenses

    Direo Municipal de Cultura / Departamento de Patrimnio Cultural

    ISSN 2183-1327 DiretorJorge Ramos de CarvalhoConselho EditorialAnabela ValenteAna Cristina LeiteHlia SilvaRita MgreProjeto GrficoJoo RodriguesSecretariado ExecutivoVanda SoutoFotografias da capa, ndice e separadoresJoo RodriguesTraduoManuel FialhoColaboradores neste nmeroJoo Seixas, Hlder Carita, Walter Rossa, Rui Tavares, Raquel Henriques da Silva, Manuel Graa Dias, Sandra Vaz Costa, Deolinda Folgado, Lus Jorge Bruno Soares, Antnio Fonseca Ferreira, Nuno Artur Silva, Antnio Jorge Gonalves, Isabel Andr, Mrio Vale, Cludia Narciso Pinto, Margarida Tavares da Conceio, Maria Teresa Bispo, Pedro Teotnio Pereira, Sandra Costa Saldanha, Tiago Borges Loureno, Nuno Proena Simes, Paola Coghi, Marta RaposoPresidente da Cmara Municipal de LisboaFernando MedinaVereadora da CulturaCatarina Vaz Pinto Diretor Municipal de CulturaManuel VeigaDiretor do Departamento de Patrimnio CulturalJorge Ramos de Carvalho

    gabineteestudos [email protected]

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    Contedo produzido pela rossio

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    Imagens dos separadores: miradouros de Lisboa

  • 3O sucessivo desaparecimento de revistas de investigao tem provocado um acentuado vazio de espaos de divulgao de estudos sobre Lisboa e o seu patrimnio construdo e imaterial. Com a criao, em 2012, da rossio. estudos de Lisboa, a Cmara Municipal de Lisboa procurou contrariar esta tendncia e simultaneamente perpetuar a sua tradio neste campo, vincada principalmente pela Revista Municipal onde, ao longo de mais de centena e meia de nmeros, alguns dos mais eminentes olisipgrafos assinaram textos que ainda hoje so incontornveis fontes para o estudo da cidade.O nmero 5 da rossio fala de uma Lisboa pensada, planeada, nem sempre concretizada. Assente em utopias, vises e estratgias, composta por camadas visuais e temporais que se sobrepem e entrecruzam. Que intervalo existe entre a Lisboa Projetada e a que foi efetivamente cumprida e que oportunidades (perdidas ou aproveitadas) esse intervalo possibilitou?No Caderno, orientado pelo Prof. Joo Seixas, estas diversas camadas da cidade vo sendo sucessivamente reveladas, desde a Lisboa manuelina at a uma (utpica?) proposta para uma futura cidade. Mantendo a vocao de ser uma compilao de estudos dispersos sobre a cidade, o Varia oferece um leque de artigos sobre os geomonumentos de Lisboa (relevando um projeto da CML vencedor do Prmio Geoconservao 2015, promovido pela Associao Europeia para a Conservao do Patrimnio Geolgico), as linhas de defesa da cidade, aspetos da obra de Lus Dourdil, Santo Antnio e sua iconografia, a Igreja de Nossa Senhora de Jesus e vistas de Lisboa na azulejaria contempornea. As Intervenes na Cidade desvendam o processo de restauro da esttua de D. Jos, tema que muita curiosidade despertou desde o arranque da interveno.Ao Professor Joo Seixas, aos autores dos textos, e a todos os que, com o seu contributo e entusiasmo, tornaram possvel a realizao deste nmero, o nosso muito obrigado.

    Editorial

    Jorge Ramos de Carvalho

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    PROJECTS IN THE CITY

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    Apresentao A PROJECO DE LISBOA

    Utopias, vises e estratgias para uma cidade

    em movimento perptuo

    Joo Seixas

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    O imaginrio aquilo que tende a ser realAndr Brton

    CIDADE E POLTICA, DESEJO E PODERHaver poucas coisas que veiculem mais poder; que agreguem, dividam, hierarquizem ou imponham mais; do que a fora das utopias e das vises. E, consequentemente, do seu planeamento e aplicao prtica. Um axioma consideravelmente evidente ao longo da histria e desde a formao das primeiras sociedades e das primeiras cidades ; e que, apesar do desdobramento dos espaos e dos tempos do mundo contemporneo, parece manter-se firme. Mesmo que os diferentes lados dos espelhos, as melhores luzes e as piores sombras emergentes das mais distintas vises; tambm por sua vez paream desdobrar-se de forma crescente.Italo Calvino disse um dia que ter sido no seu livro As cidades invisveis onde conseguiu concentrar a maioria das suas reflexes, experincias e conjecturas. Nas suas cidades imaginadas, a geografia e a urbanidade nelas desenhadas e construdas davam lugar a algo muito mais poderoso: a complexidade inesgotvel da existncia humana.Uma complexidade de forte pendor urbano. As cidades so, por excelncia, espaos de confronto, de dilogo e de conflito, perante lgicas mltiplas e papis diversificados. Como notveis acumuladores de energia humana, como esteios da cultura e da poltica, tem sido sobretudo atravs das cidades que se tm desenvolvido muitas das mais fortes e sempre incertas utopias, vises e projeces da humanidade. Esquematizaes imaginrias e desejadas para a vida, a sociedade e a poltica no apenas urbana de cada tempo, de cada elite, de cada sociedade. Procurando fundir local e global, independentemente

    de se estar no sculo XVI ou no sculo XXI.

    Esquematizaes imaginrias e desejadas. O desejo sempre foi um grande impulsionador da cidade e do poder na cidade. Tal como cidade e poltica so elementos que jogam entre si um intercruzar permanente, e desde logo etimolgico e se Paul Virilio escreveu que no h poltica sem cidade, h um reconhecimento igualmente evidente de que no h cidade sem poltica ; desejo e poder jogam uma dana similar: entre o poder do desejo e o desejo do poder. Desde o desejo breve, quotidiano e naturalmente estruturante; ao desejo longo, planeado, e potencialmente estruturante. E, no que aqui nos concerne, ao desejo de se construir uma cidade para o futuro.Recordo-me aqui de uma frase de Jorge Lus Borges: um homem que se prope a tarefa de desenhar o mundo, e depois passa a vida a represent-lo, no final da vida descobre que esse paciente labirinto de linhas traa a imagem do seu prprio rosto. Um genoma humano e urbano, portanto.O projecto de cidade , obviamente, um projecto de carcter poltico. Como tal, emergente, em cada poca, das vises de um determinado sistema poltico e de governao. E se a construo de uma viso ou de uma estratgia de cidade conceitos distintos foi quase sempre produto de um punhado de poderosos e de visionrios; hoje em dia resulta em processos mais complexos e crescentemente participativos, conjugando diversas cincias e objectivos mltiplos alguns deles ainda com conjugao indecisa, como na dicotomia entre economia e ecologia.Hoje, os novos paradigmas de governao na cidade exigem-na estratgica, democrtica, colaborante e eficiente. A mudana para tais paradigmas, tanto mais perante estados-da-arte instalados de difcil maleabilidade, implica elevadas doses de conhecimento tcnico e cientfico, de responsabilidade social e de comprometimento poltico.E ainda, de reflexo colectiva. Da a proposta temtica para este novo nmero da revista Rossio: A Projeco de Lisboa. O que envolve as razes, os desejos, as condies, os processos; de como e porque, ao longo dos tempos, se pensou e projectou a cidade de Lisboa.

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    AS PROJECES DE LISBOAComo cidade relevante e com enorme lastro, as vises e projeces urbanas de Lisboa foram-se sucedendo. Marcando-a de forma decisiva, visvel e invisivelmente, em cada poca e para cada futuro. Vises e projeces que se formaram face a anseios e presses de vria ordem: por dinmicas demogrficas; por presses sociais; por crescimentos econmicos; por desenvolvimentos do saber, da cincia e da tecnologia; por utopias filosficas ou mesmo literrias; e evidentemente por afirmaes polticas, pblicas e privadas. E, algumas vezes, pela confluncia de todas estas razes.Os momentos de expanso da cidade de Lisboa, aliados abertura a novos horizontes na geografia, na cincia e na filosofia; foram por sua vez originando novos prncipes e novos sistemas socioeconmicos e polticos. Num filme concntrico mas tambm centrfugo: a Lisboa como porto, a Lisboa como afirmao de capital de imprio, a Lisboa como centro da Nao, a Lisboa como afirmao racionalista, a Lisboa como pulsar industrial, a Lisboa como cidade de bairros, a Lisboa como cidade sustentvel.Lisboa pensada ou projectada como cidade mais completa, para cada tempo que se avizinhava; dentro de si mas tambm para fora de si. Posicionando-se perante as suas necessidades internas, das mais basilares s mais extravagantes; mas posicionando-se tambm perante as redes, as rotas e as relaes que a cidade e o pas (e o imprio) estabeleciam. Projeces e planos, por sua vez, de diversssima ordem; incluindo no atingir dos seus objectivos - umas conseguindo o que se procurava alcanar, pelo menos em determinados planos, e no meramente urbansticos; outras falhando rotundamente e inclusive morrendo longe da praia; outras ainda talvez a maioria parcialmente feitas ou semi-conseguidas, e sobretudo originando dinmicas prprias, reinventadas e regurgitadas pela cidade, sob novas formas de vida e de expresso urbana.

    Esto includos neste caderno onze textos escritos por ilustres autores, alinhados em razo de fio-de-prumo histrico. Cada texto procura colocar a sua lente num determinado espao-tempo histrico; estendendo-se no seu conjunto uma observao por sobre as projeces e utopias polticas e estratgicas para a cidade do Tejo, num perodo que vai desde a Lisboa ainda medieval mas j proto-imperial do tempo de D. Manuel; at Lisboa metropolitana e Europeia, mas afinal sempre semi-perifrica, reflectida pelo novo PDM de 2012. A Lisboa Manuelina assim repensada por Helder Carita; a Lisboa em formao de cidade-capital no perodo que vai da Restaurao ao tempo Joanino descrita por Walter Rossa; a possvel configurao da Lisboa Iluminista e ps-terramoto analisada por Rui Tavares; a modernizao da Lisboa em tempos da Regenerao oitocentista descrita por Raquel Henriques da Silva; a prvia, clere, curta e afinal tardia Lisboa Futurista pensada por Manuel Graa Dias; a Lisboa da segunda modernidade e capital ultramarina em tempos de Duarte Pacheco descrita por Sandra Vaz Costa; o desenvolvimento da Lisboa industrial pensado por Deolinda Folgado; a anlise das evolues da Lisboa da revoluo de Abril, por entre roturas e continuidades, feita por Lus Jorge Bruno Soares; a Lisboa do plano estratgico de 1992 explicada por Antnio Fonseca Ferreira; as estratgias para a Lisboa contempornea e j ampla cidade-regio so descritas por Mrio Vale e Isabel Andr. O caderno completa-se ainda com uma projeco de uma (possvel) Lisboa futura, desenvolvida por Nuno Artur Silva e Antnio Jorge Gonalves.

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    O DESDOBRAMENTO DAS UTOPIASMostra assim, este caderno, uma ampla gama de momentos, de personagens e de processos de desenvolvimento de pensar e de projectar Lisboa, num perodo que abarca mais de 500 anos e que se projecta para o futuro. Um perodo que comea muito em paralelo com a primeira edio da famosa obra de Thomas More Utopia (em 1516); que passa pelas rduas lutas pelos direitos do homem e pelas isotopias, no fomento de um mundo novo e moderno com utopias tendencialmente iguais para todos; chegando enfim e para j a um novo tempo, pleno de heterotopias, ou de utopias tendencialmente diferentes para cada indivduo. Um tempo, o de hoje, consideravelmente fractal, bastante pessoano e pleno de vidas heteronmicas, onde a cidade se reinventa mas que se mantm ou mesmo refora, por mais paradoxal que parea, no seu lugar de epicentro das aspiraes, dos receios e das possibilidades da condio humana. No epicentro das projeces.Um tempo de transio onde, como disse Bruno Latour, as dinmicas da realidade so muito mais rpidas do que a capacidade das instituies e das normas em desenvolverem suficiente racionalidade para o seu adequado planeamento e governao. Mas onde, justamente, a conjugao entre viso, estratgia, direitos e princpios, ser mais uma vez, mas de forma renovada fundamental. Como escreveu o grande gegrafo brasileiro Milton Santos, Nas fases de grande mudana, o primeiro trabalho rever o que pensamos. Isso no significa jogar fora tudo o que fizemos, mas retomar, partindo de como o mundo em cada lugar. Sem isso, planejar ser um voo cego, com todas as suas consequncias. este assim um tempo onde buscamos novos sentidos e capacidades de compreender e melhor conjugar humano e urbano, homem e natureza, razo e emoo. Pensando as cidades j no somente em termos de artefactos que se moldam por desenho e planeamento tendencialmente universal ou generalista; mas cada vez mais em termos de

    organismos vivos que devem interagir de forma muito

    activa com a sua prpria reinveno. Num enriquecimento de uma inteligncia urbana, onde a respectiva arte e racionalidade ainda tem muito por compreender. Pois face s novas realidades, a nova cincia das cidades, por muito lastro que tenha, ainda afinal uma criana. Como escreveu Jos Saramago, o caos uma ordem por decifrar.Gostaria de agradecer a cada um dos diferentes autores deste caderno, o seu estimvel trabalho e contributo para este processo colaborativo e muito estimulante. E gostaria ainda de muito agradecer a toda a equipa editorial da revista ROSSIO. No se trata apenas de agradecer por toda a gesto e apoio sempre mantido ao longo do desenvolvimento deste nmero em concreto; mas da prpria existncia, desde o seu incio, desta revista de grande qualidade, bem digna de Lisboa.

    Vieira da Silva, Bibliothque, 1949

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    Lisboa Manuelina e a formao da

    Provedoria de Obras Reais

    Hlder Carita

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    INTRODUO Ao longo do reinado de D. Manuel (1496-1521), por iniciativa da Casa Real, Lisboa sofre um processo de transformaes, que estendendo-se da lgica de organizao ao traado urbano e arquitectura, imprimem uma nova a imagem cidade. Com a implantao de um complexo conjunto de equipamentos urbanos centrados na zona da Ribeira, Lisboa faz uma aproximao s margens do Tejo e s suas guas, numa dupla lgica de ver e ser vista, que se manter at meados do sculo XIX1. Debruada sobre as guas, a cidade toma o lenol aqutico em que se espelha como via de circulao privilegiada, estabelecendo uma rede de ligaes ao longo das suas margens que imprimem ao quotidiano de Lisboa um ambiente martimo peculiar. No plano poltico, estas transformaes integram-se num amplo programa de reformas implementadas pelo poder real, como o caso dos Forais, dos Pesos e Medidas e da Justificao da Moeda, que visavam racionalizar a administrao rgia e implementar uma poltica de centralizao do poder real.

    Atravs de um vastssimo conjunto de alvars, cartas rgias, regimentos e posturas, intervindo a vrios nveis na estrutura e destinos de Lisboa, vemos emergir um discurso fortemente autoritrio e pragmtico, pontuado por categorias de ordem, ygualdade, compasso e grandura, e onde a cidade visualizada como um todo, no s funcional e operativo, como simblico. Na implantao deste discurso, destaca-se a figura do secretrio real Antnio Carneiro que Alexandre Herculano definiu de forma significativa, como; um marquez de Pombal de ha trezentos anos (...) ministro de peso e volume 2. Polarizada em torno deste poderoso secretrio3, que viria a assinar a maioria das iniciativas urbanas para a cidade de Lisboa, vemos surgir uma gesto coerente e racionalizada das obras reais, cuja organizao e estrutura de funcionamento, apoiada por funcionrios rgios especializados, tomar mais tarde a designao de Provedoria de Obras Reais4.

    Fig. 1 Pormenor de vista de Lisboa. Antnio de Holanda. C. 1520-30. in Crnica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvo. Iluminura em pergaminho. Museu Condes de Castro Guimares, Cascais.

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    O PROGRAMA DE REORDENAMENTO URBANO DE 1498-1502 Entre os anos de 1498 a 1502 so assinados um conjunto de alvars, cartas rgias, regimentos e posturas que, nos seus pressupostos e interligaes, manifestam uma estratgia coerente e centralizada da Casa Real. Na sua generalidade, as cartas sobre o reordenamento do centro da cidade, tanto as de Agosto de 14985 e Abril de 14996 como a de 15027, incidem essencialmente sobre obras que decorriam sob a responsabilidade do Senado da Cmara: arruamentos, cais porturios, portas da cidade, chafarizes e edifcios camarrios, como aougues, a padaria, o selleiro pblico. No possumos documentao equivalente para as obras de iniciativa rgia a cargo da Fazenda Real, como o caso do Pao Real, das teracenas8, tanto as de Cata-Que-Fars como das Portas da Cruz, a Casa de Ceuta e Casa da ndia ou os Armazns Reais. A generalidade das cartas conhecidas tem origem na necessidade de a Casa Real estabelecer parmetros, tanto para o financeiro de certas obras, como para a definio das responsabilidades imputadas ao Senado da Cmara. Estas cartas contm, assim, apenas fragmentos dum programa, mais amplo, concebido num crculo de funcionrios da Casa Real. No seu conjunto, o programa de 1498-1502, em consonncia com a construo do novo Pao Real e de uma vasta frente arquitectnica sobre a Ribeira, assegurou a constituio dum novo centro urbano aberto sobre as margens do Tejo. Para a construo desta frente urbana da Ribeira existe o seu regimento de obras, assinado em 29 de Outubro de 14989, que nos possibilita uma visualizao dos fundamentos estticos que presidiam a este programa urbano. Em termos morfolgicos, o regimento institua uma larga frente urbana de cerca de 172 metros, virada ao Tejo, composta por quatro grandes conjuntos arquitectnicos. Para estes quatro blocos de edifcios eram definidas as larguras das boticas10 ... de quinze palmos cada uma comtando a parede damtre humas e outras nos ditos 15 palmos... , prevendo-se uma frente continua e uniforme ...huma nom saya mais da outra... para toda a fachada da futura praa, chegando o autor ao pormenor de estabelecer as espessuras das paredes de diviso dos lotes para assegurar a unidade e o compasso rtmico das fachadas no seu conjunto. Alm das larguras das boticas eram fornecidas com notvel rigor as medidas e os materiais dos vos e at a largura dos nembos11 ... e os portaes feitos de pedrarya quadrados por cyma e de seis

    palmos damcho e doze de altura cada hum degrau de pedra para a Ribeira e por esta maneyra fica de portalle a portalle nove palmos.... Para alm do detalhe das medidas, a insistncia com que em vrios momentos do texto salientado: ... tudo dum mesmo compasso e medida...ou ... tudo duma mesma grandura e medida... revelam uma exigncia acadmica e erudita que nos remetem para lgicas estticas e arquitectnicas prprias da Idade Moderna. Em paralelo com esta nova e ampla frente urbana da Ribeira, promove-se um conjunto de grandes obras nas ruas mais importantes do centro de Lisboa, procedendo-se a reparaes tanto nas principais portas da cidade como nos mais relevantes chafarizes, numa aco programtica que visualiza a cidade como um todo homogneo e funcional. Numa primeira prioridade, os arruamentos de ligao da nova praa da Ribeira Alcova (Castelo de So Jorge) e ao monte de So Francisco (Chiado) sofrem obras de alargamento, efectuando-se para o efeito diversas demolies de casas, alpendres e patamares para desobstruo da circulao viria. As fachadas da Rua Nova e Sapataria so reformuladas, passando a assentar em galeria sobre esteios de pedraria yguais e muy bem obrados numa arquitectura de programa de grande rigor. A partir destas opes, em articulao com a Rua Nova, so reformuladas as ruas dos Ferreiros, dos Tanoeiros e dos Bacalhoeiros, o que, para alm de promover uma nova arquitectura de programa, introduz uma estrutura radial no tecido urbano de Lisboa, instituindo grandes linhas de desenvolvimento a partir do centro da cidade. Deste centro passam a irradiar cinco novos eixos: da Ribeira Alcova; da Ribeira ao Alto de So Francisco; da Ribeira para ocidente, a caminho de Cata-que-Fars (Cais do Sodr), da Ribeira para S. Joo da Praa e Alfama, para oriente, e, por fim, da Rua Nova dos Mercadores, para norte, pela Rua Nova dEl-Rei, a caminho do Rossio. Sobressaindo deste grupo, a Rua Nova dEl-Rei nasce como nova entidade urbana, que, ao estabelecer uma grande linha de penetrao para o interior, vai possibilitar a consolidao dum novo ncleo de centralidade no Rossio, que vir igualmente a sofrer um processo de reordenamento urbano. Cabe salientar, que embora tenha sido D. Joo II a fundar o Hospital Real de Todos-os-Santos, na realidade, a frente urbana sobre o Rossio realizada no reinado de D. Manuel, como salienta Damio de Gis ao referir que este monarca ... acabou o grande e sumptuoso Hospital da cidade de Lisboa ... e fez nele todas as casas que esto na face do Rossio desde a rua da Betesga at o mosteiro de so Domingos...12.

  • Fig. 3 Pormenor de panormica de Lisboa. Annimo.Desenho da 1 metade do sculo XVI. Biblioteca da Universidade de Leyden. Holanda

    Fig. 2 Pormenor de vista de Lisboa Antnio de Holanda. 1530-1534, Iluminura in Geneologia dos Reis de Portugal. Simo de Bening . British Library. Londres.

    Fig. 4 Zona da Ribeira. Pormenor de panoramica de Lisboa Olissipo quae nunc, in Georgious Braunius Civitates Urbis Terrarum...Gravura. 1598

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    Ribeira

    S

    Ribeira das NausPao da Ribeira

    Rossio

    Hospital Real de Todos-os-Santos

    Castelo

    Fig. 5 Programa de reformas urbanas efectuadas em Lisboa entre 1498-1502.

    Calada desde a porta do pao

    (Pao da Alcova) at Porta da Portagem

    Calada de So Francisco

    Rua Nova dos Mercadores

    Rua da Sapataria

    Rua dos Ferreiros e Rua dos Tanoeiros

    Rua Nova del-Rey

    Rua dos Ferreiros da Porta da Oura

    para Cata-que-Faras (dos Arcos)

    Rua da Praa dos Escravos para So

    Joo da Praa (Bacalhoeiros)

    Rua que vai para o terreiro dos ferradores

    Rossio

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    Ainda do perodo de 1498 so as primeiras cartas de doaes rgias para a construo do Mosteiro de Santa Maria de Belm. Na sua relao com o Tejo, a edificao deste mosteiro-palcio real revela claramente preocupaes paisagsticas, desenhando-se como imponente elemento urbano a marcar emblematicamente a entrada da nova capital do Reino imaginada e lanada no programa de 1498.

    OS OLIVAIS DE MUROS ADENTRO E NOVAS REAS DE EXPANSO URBANAA par das aces que visavam o reordenamento do centro de Lisboa, em 26 de Dezembro de 1500, assinado um alvar real que promovia a disponibilizao de terrenos para urbanizao no interior da cidade, a se ordenando ... que se cortem e que se deribem todollos os ollivvaez de muros ademtro... 13. No texto do documento, a vontade do Rei e os interesses da cidade eram colocados acima de qualquer instituio, assinalando explicitamente o alvar; fossem os terrenos de ... Ygreja, moesteiro morgado ou quaaes quer outras senhorias e callidades que fore...". A cidade apresenta-se aqui como um espao uniforme e politicamente submetido a regras gerais, sem excepo para qualquer dos poderes que ao longo da Idade Mdia se tinham afirmado com um

    estatuto autnomo na estruturao do espao da urbe.

    Nos terrenos das cercas dos conventos da Trindade e do Carmo, inicia-se o processo de urbanizao de Vila Nova da Oliveira, decorrendo, a nvel mais pontual, outras pequenas urbanizaes, como a abertura da Rua do Saco, na cerca dos frades de So Francisco. Os espaos livres no interior das muralhas eram, porm, escassos e verificamos que, nos anos de 1501 e 1502, D. Manuel assina um conjunto de doaes de terrenos urbanos situados ao longo da rua direita de Cata-que-Faras14, junto das margens do Tejo, a grandes armadores e altos funcionrios de Estado.Aco mais importante, pela amplitude das propores que ir tomar, em 1503, Lopo de Atouguia e Bartolomeu de Andrade15, assinam um acordo para dar incio urbanizao de Vila Nova de Andrade (futuro Bairro Alto). Este contrato dava autorizao para os Andrade urbanizarem duas grandes propriedades situadas fora da antiga cerca fernandina, junto das Portas de Santa Catarina (actual largo do Chiado). Analisando este documento, apercebermo-nos da referncia a um plano de urbanizao com lotes de mtricas precisas e de rigorosa geometria. 16. A ttulo de pagamento pela autorizao, os Andrade doavam a Lopo de Atouguia um lote de terreno na nova urbanizao; em o qual cho o dito Lopo dAtouguia e seus sucessores podero fazer casas e qualquer outra benfeitoria... Referindo-se localizao e implantao do dito lote, o texto determina que se devia respeitar ...hua rua que tem ordenado de se por ali fazer..., confirmando a existncia de um plano de urbanizao concebido previamente. O documento transcreve, ainda, as medidas deste cho, num duplo quadrado, com ... doze braas de comprido e seis de largo... (120x60 palmos). As dimenses do cho corresponderiam, assim, a 4 lotes de 30x60 palmos, que so as medidas que encontramos como base dos loteamentos tanto no Regimento de 1498 para a frente da Ribeira, como do Bairro Alto, testemunhando a aplicao de sistemas mtricos proporcionais que se estendem da arquitectura ao urbanismo. Em termos geogrficos, esta primeira fase de lanamento da urbanizao de Vila Nova de Andrade, que se desenrola a partir de 1503, situava-se na zona mais chegada ao Tejo e s Portas de Santa Catarina, subindo do Rio at zona do actual Largo de Cames. O envolvimento da Casa Real neste importante processo atestado atravs de um alvar rgio de confirmao, assinado em 1509 por Andr Pires17, alto funcionrio da cmara real que a par do secretrio Antnio Carneiro, vemos assinar a generalidade de medidas, no s arquitectnicas como urbanas institudas em Lisboa.

    Fig. 6 Mosteiro de Santa Maria de Belm. Pormenor de vista de Lisboa Antnio de Holanda. 1530-1534, Iluminura in Geneologia dos Reis de Portugal. Simo de Bening. British Library. Londres.

  • O terramoto e a subsequente reconstruo da cidade alteraram significativamente o cadastro e desenho urbano desta primeira fase de urbanizao, mas as plantas de Jos Valentim de Freitas18, anteriores s reformas pombalinas, permitem-nos a visualizao dum traado que no ter sofrido grandes transformaes ao longo dos sculos XVI e XVII. Correspondendo a um perodo experimental e de transio, este traado ainda apresenta longos quarteires com afinidades ao urbanismo medieval, sem a proporo e racionalidade que veremos manifestar-se na segunda fase de expanso de Vila Nova de Andrade. PROVISES E ALVARS DE 1502 SOBRE SACADAS, PAREDE DIREITA, E ALINHAMENTOS Em estreita interdependncia com as estratgias de reordenamento urbano de Lisboa, verificamos que, entre 1499 e 1502, so tomadas medidas de carcter arquitectnico e construtivo decisivas e com profundas consequncias, no s na imagem da cidade como nos destinos da arquitectura portuguesa em geral. Se em Junho de 1499 assinada uma proviso proibindo a construo de novos balces e sacadas, em 3 de Abril de 1502 19 assinado um alvar com uma medida muito mais geral e impositiva: determinava-se o derybamento (demolio) de todos os balces existentes na cidade, sendo para isso imposto um prazo de seis meses, com multas para quem o no fizesse. Ora estas balcoadas estavam ligadas prpria estrutura da fachada e eram afectas tipologia de edifcio medieval, de estrutura de madeira, com andares em consola, equivalendo a sua proibio negao dum modelo de edifcio e necessidade de definio duma nova tipologia. Neste sentido, um segundo alvar, de 10 de Agosto de 1502, assinado por Antnio Carneiro, adquire um particular significado urbanstico. Emitido em consequncia de dvidas e queixas, este alvar volta no s a confirmar o anterior, mas ainda indica como modelo arquitectnico o adoptado nas grandes obras que se vinham a realizar em Lisboa, assinalando e "...Item todolos outros Balces do Corpo da Cidade se meto como geralmente o temos mandado...". A regra instituda para quem construsse novas fachadas, que estipulava ...se desfao de todo e se faa parede direita () sob pena de vinte cruzados douro para as obras da cidade... era reafirmada, mas agora para todas as fachadas antigas da cidade e com igual peso de multas. Por fim, o alvar de 10 de Agosto ressalvava a construo ou manuteno de sacadas desde que no ultrapassassem um balano de palmo e meio, norma que veremos tornar-

    se caracterstica de toda a arquitectura dos sculos XVII e XVIII, no s em Lisboa como em todo o Pas. Esta legislao, para alm do seu efeito na poca, tomar uma importncia decisiva no percurso arquitectnico e urbanstico da cidade, quando algumas das suas principais normas so transcritas para O Livro das Posturas Antigas da Cmara e para o Regimento dos Officiais Pedreiros e Carpinteiros.

    O PROGRAMA DE 1513 - DE CABEA DO REYNO A CAPITAL DO IMPRIO Durante um largo perodo a documentao manuelina omissa quanto a obras de iniciativa rgia em Lisboa. Na realidade, em 1505 a cidade assolada por um violento surto de peste e a corte afasta-se da capital durante vrios anos. Em 21 de Dezembro de 1513 os Livros de Reis da Cmara de Lisboa registam uma nova campanha de grandes obras concentradas no terreiro do Pao e estendendo-se pela zona da Ribeira. Se estas importantes obras se relacionam com o regresso da corte

    Fig. 7 Edifcio da Alfandega Nova no Terreiro do Pao. Pormenor da Panormica de Lisboa. Desenho da 1 metade do sculo XVI. Biblioteca da Universidade de Leyden. Holanda

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  • a Lisboa, num outro registo, elas coincidem com a afirmao da hegemonia portuguesa no Oriente. De facto a carta enviada por D. Manuel ao Papa Leo X, anunciando as suas grandes vitrias na ndia, datada de 6 de Junho de 1513. O texto, com intenes claramente propagandistas, impresso20 e distribudo pelas principais cortes europeias, Neste ciclo de obras, verificamos que o extenso alado do Terreiro da Pao virado ao Tejo, acrescentado com mais dois andares, dotando o conjunto duma outra ordem de monumentalidade. No regimento elaborado para a obra, estes dois andares recebiam uma srie de janelas geminadas, iguais s do Hospital Real da grandura e feiam das janellas do hospitall () e a cidade hade dar as colunas21, o que denota uma preocupao de estabelecer afinidades entre dois emblemticos espaos urbanos, numa percepo da cidade como um todo interdependente. Em sintonia, o Pao Real da Ribeira sofria igualmente obras de engrandecimento, com o aumento de um

    piso no extenso corpo da varanda onde, a meio, nascia um torreo rematado por elegante mirante22. Em contraponto com a varanda do Pao Real, iniciam-se, neste perodo, as obras da Alfndega Nova, que vo conformar o Terreiro do Pao numa nova estrutura de praa, constituda por trs corpos arquitectnicos em U, morfologia que marcar definitivamente a imagem de Lisboa. No edifcio da Alfndega Nova, vo instalar-se, no s as funes de alfndega, como a Casa dos Contos e ainda o Pao da Madeira, reflectindo uma atitude de racionalizao na gesto administrativa, face ao progressivo crescimento do comrcio martimo e consequente complexio do aparelho de Estado. Integradas na prpria estrutura arquitectnica do Pao Real, so ainda realizadas as grandes obras de instalao do Almazem das Armas, a que Damio de Gis chamava Arsenal da Guerra, e que colocava entre as sete grandezas de Lisboa. Igualmente ligada ao Pao Real, mas formando uma frente autnoma na fachada da Ribeira, desenhava-se a Casa da ndia e de Ceuta, que tambm recebeu transformaes e uma nova reestruturao neste perodo.Como complemento destes novos equipamentos porturios e administrativos, para ocidente e na sequncia da Ribeira das Naus, forma-se outro cais de porto para armadores particulares: a Praia da Boavista. Por proviso real de 1515, nesta rea passa a ser expressamente proibido que a Cmara permita a construo de habitao; se nom afore nem dee de aforamento nenhum cho na praia, de cata que faraz () ate santos e esteja sempre desocupada a dita praia23.Em paralelo com o programa de renovao da zona da Ribeira, em 1513, desenvolve-se, junto das Portas de Santa Catarina, uma segunda fase de expanso da zona ocidental da cidade, (futuro Bairro Alto), conjunto urbano que, no s pela dimenso como pela ortogonalidade de traado, se afirmar como fenmeno axial na histria do urbanismo portugus. Neste ano os Atouguia e os Andrade realizam um novo contrato confirmando oficialmente as clusulas j estabelecidas em 1503 e em 1509. A partir do ncleo inicial, desenvolvido junto da zona do actual Cames, d-se a expanso para norte e ocidente. Sendo o rpido crescimento da Vila Nova de Andrade para norte atestado pelos aforamentos compilados por Mrio de Saa24, a amplitude e orientao geogrfica do desenvolvimento desta fase -nos confirmada pelo contrato de aforamento de um terreno situado junto da actual Travessa da Queimada que Bartolomeu de Andrade celebra no mesmo ano de 1513 com os frades Trinos 25.Esta segunda fase, preservada pelo terramoto no seu traado

    Fig. 8 Tercenas das Portas da Cruz. Pormenor da Panormica de Lisboa.Desenho da 1 metade do scuulo XVI. Universidade de Leyden. Holanda

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  • Fig. 10 Evoluo de Vila Nova de Andrade e Bairro Alto.A Traado urbano iniciado em 1503 B Fase urbana de 1513C Desenvolvimento urbano a partir de 1552

    Fig. 9 Pormenor de panoramica de Lisboa Olissipo quae nunc, in Georgious Braunius Civitates Urbis Terrarum...Gravura. 1598

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  • original, destaca-se, nos seus pressupostos urbansticos, por uma malha regular e ortogonal de ruas e travessas, onde o quarteiro de base rectangular surge como modelo gerador. Este quarteiro aparece, por sua vez, como resultante do mdulo de loteamento baseado no duplo quadrado de 30 por 60 palmos, adoptando um conjunto de mtricas proporcionais afirmadas j no primeiro loteamento de Vila Nova de Andrade iniciado em 1503.Reflexo de uma sintonia com as grandes reformas urbanas implementadas pela Casa Real, o facto de nos aforamentos da Vila Nova de Andrade, realizados a partir de 1513, surgir a clusula da obrigao de construir as casas.".. feitas de paredes de pedra e cal e madeira e pregadura e telhas sobradadas...26. Afastando-se duma prtica urbanstica medieval, baseada num modelo linear de rua (direita) com travessas, confrontamo-nos aqui com uma conceptualizao abstracta do traado, radicada num mdulo geomtrico que, desenhando-se de forma tnue nos quarteires de Vila Nova de Oliveira ou de Cata-que-Farz, adquire aqui a sua plena expresso.

    LISBOA MANUELINA E A GNESE DA PROVEDORIA DE OBRAS REAIS Como assinalmos anteriormente, a documentao referente a questes de ordem arquitectnica e urbanstica produzida para Lisboa durante o reinado de D. Manuel assinada de forma quase sistemtica pelo secretrio rgio Antnio Carneiro. Nas suas altas funes, Antnio Carneiro, parece aperceber-se da importncia fundamental da arquitectura e do urbanismo como instrumentos de centralizao do poder real, vindo a agregar sua volta um conjunto de funcionrios rgios que o apoiam nas suas estratgias. Percorrendo a documentao disponvel, podemos acompanhar Antnio Carneiro a reunir com os mais eminentes arquitectos e mestres, definindo estratgias27, pedindo oramentos, exigindo prazos e rapidez, numa linguagem inconfundvel, sempre atravessada por um forte pragmatismo e um desejo de que tudo fosse realizado com a mxima ordem, rapidez e racionalidade. Atravs das suas cartas, assistimos aos encontros de Antnio Carneiro com os mestres, ora na corte ora deslocando-se directamente aos locais de obra. Na conhecida carta de 1510, enviada a Diego de Braga, sobre o incio das obras do convento de Tomar, a cargo de Diogo de Arruda, Antnio Carneiro, assinala ...segundo o fallamos com o dito Diogo darruda 28. O mesmo encontramos noutra carta enviada ao Senado da Cmara de Coimbra sobre o arquitecto Boytaca, em que Carneiro refere: ... e nos fallamos ca com mestre Boutaca acerqua da ordenana da obra com elle fallares e elle tenha carrego de mestre della porque nos ho encarregamos diso... 29. Nas obras de reformulao urbana de Lisboa, a presena do secretrio constante, no s assinando, todas as cartas dirigidas Cmara de Lisboa, mas tambm reunindo pessoalmente com os membros do Senado e intervindo ao mnimo detalhe, de que exemplo uma carta em que este refere: ...E nos lugares em que bem parecer sejo feitos degraus para melhor serventia assim como volo fallamos...30 Com a confiana absoluta do rei, o discreto e prattichissimo secretrio31, chama a si, no apenas as grandes obras de reformulao da cidade de Lisboa, como a gesto das obras reais, organizando as estruturas e um mtodo de gesto centralizado para o que vir a ser a Provedoria de Obras Reais. Entre os seus mais prximos colaboradores, destaca-se Andr Pires, que ao lado do secretrio vai elaborando contratos de empreitadas e cartas rgias sobre assuntos relacionados com metodologia, regulamentao e questes de obras, cujos textos revelam uma linguagem tcnica com profundos conhecimentos 25

    Fig. 11 Frontispcio e ltima pgina do obra de Andr Pyres,Regimento de como os contadores das comarcas h de prover sobre as capelas ospitaes albergarias cfrarias gafarias Obras teras e residos novamente ordenado.... Lisboa, Oficina de Ioham Pedro de Bonhomini de Cremona, 1514.

  • de arquitectura e construo. Digno de nota ter sido Andr Pyres a assinar, em 1509, a carta rgia de confirmao do acordo realizado entre Lopo de Atouguia e Bartolomeu de Andrade que dava inicio urbanizao das Chagas e do Bairro Alto. porm, o seu Regimento dos Contadores, publicado em 1514, que se afirma da maior importncia, constituindo um marco fundamental para os destinos da Provedoria de Obras Reais. Nas suas directivas quanto a obras teras32, instituda a obrigatoriedade de todas as obras rgias passarem a ser dadas por empreitada33, facto que obrigava elaborao prvia de um projecto que permitisse a estimativa do seu oramento, para poder ser colocado a concurso e entregue a quem realizasse a obra pelo um melhor preo. O texto do regimento institua, por outro lado, um sistema de controle centralizado e distncia, ao determinar que as obras deveriam ser aprovadas na Provedoria de Obras Reais, assinalando faam assentar hos lanos que nelles fezerem per ho escrivam de seu officio e nollos enviaram e escreveram a obra quamanha he e ho em que foy avaliada e o preo que dam por ella .

    Se ao longo da sua vida Andr Pyres se mantm como escrivo da cmara rgia e escrivo das Obras Teras, ser j o seu filho lvaro Pyres que, herdando os cargos do pai, assumir o lugar de Provedor de Obras Reais, assegurando a continuidade e coerncia das estratgias estabelecidas por Antnio Carneiro at que, no reinado de D. Joo III, venha a ser formalmente instituda a Provedoria de Obras Reais, em que oficialmente se concentraro os saberes, o poder regulamentar, as prticas e os mtodos j largamente ensaiados no domnio da arquitectura e do urbanismo desde o reinado de D. Manuel I.

    Fig. 12 Panormica de Lisboa. Annimo.Desenho da 1 metade do sculo XVI. Biblioteca da Universidade de Leyden. Holanda

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    Notas1 Ser esta a sua representao iconogrfica, que vemos repetir-se sistematicamente desde as iluminuras do sculo XVI, s gravuras, pintura ou azulejaria, at ao sculo XIX. 2 Herculano, Alexandre - Opsculos. Lisboa, Ed. Antiga Casa Bertrand, 3 ed. Tomo VI, p.203 Sobre a aco e personalidade de Antnio Carneiro conf: S-Nogueira, Isabel Bettencourt; S-Nogueira, Bernardo de. A Ilha do Prncipe no 1. Quartel do sc. XVI : administrao e comrcio, in Actas do Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua poca, Porto, 1989, vol. III. Hlder Carita, Lisboa Manuelina e a Formao de Modelos Urbansticos da poca Moderna (1495-1521), Lisboa, Livros Horizonte, 1999, Cap. VI, pp. 109-1194 Instituda no reinado de D. Joo III pela criao do cargo de Provedor de Obras Reais, este organismo era responsvel pela gesto das obras pagas pela Fazenda Real, sendo ainda responsvel pela nomeao de um conjunto de cargos de arquitectos, mestres, escrives e medidores de obras, encarregados destas obras.5 AH da CML - Livros de Reis. Livro 1 de D. Manuel, cop. XVIII, fl. 21v-22. (Carta rgia de 20 de Agosto de 1498).6 IDEM Ibidem, fl. 29 (Carta rgia de 4 de Abril 1499).7 IDEM Ibidem, fl. 55v-56 (Carta rgia de 10 de Fevereiro de 1502).8 Referidas como teracenas ou tercenas eram grandes edifcios estreitos e muito compridos que serviam para guardar barcos e equipamentos navais. 9 AN/TT - Corpo Cronolgico, parte 3., mao 1, doc. 30, n10, fl.1 (Regimento de 29 de Outubro de 1498).10 O termo botica indica uma pequena loja ou oficina situada ao nvel do piso trreo. 11 O nembo corresponde ao espao de parede entre janelas ou portas revelando-se particularmente importante no estabelecimento do ritmo dos vos, nos conjuntos urbanos. 12 GIS, Damio - Descrio da cidade de Lisboa. Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p.74.13AN/TT - Chancelaria de D. Manuel. Livro I da Estremadura, fl. 160. (Alvar de 26 de Dezembro de 1500). 14 Esta rua, situada entre a Ribeira das Naus e o actual Cais do Sodr tambm era chamada de rua das Porta da Oura para Cata-que-faraz.15 Na nossa investigao recente concentrada na documentao da Casa Atouguia guardada no Arquivo da Misericrdia de Lisboa, Testamentaria. Mao n6 de Testamentos, Proc. N 112, somos levados a considerar a data de 1503 como incio da urbanizao de Vila Nova de Andrade e no a de 1498 como anteriormente afirmamos; conf. Heder Carita, Lisboa Manuelina a Formao de Modelos Urbansticos da poca Moderna (1495-1521), Lisboa, Livros Horizonte, 1999, pp.102-103.16 MACEDO, Luiz Pastor de - Lisboa de Ls-a-Ls, Lisboa, CML., 2 ed. 1955, vol. I, p.235 17 Arquivo da Misericrdia de Lisboa, Testamentaria. Mao n6 de Testamentos, Proc. N 112. Transcrito na Carta de partilhas dos bens de Dom Pedro da Cunha pelo seus filhos Dom Luiz da Cunha, Dom Loureno e Dona Maria, em 158, 18 Estas plantas encontram-se na Biblioteca Nacional, FREITAS, Jos Valentim de, Planta Anterior ao Terramoto, D, 108-R19 AH da CML - Livros dos Reis. Livro 1. de D. Manuel I, Doc. 75, fl. 58v-59 (Carta rgia de 3 de Abril de 1502).20 Arquivo Histrico Portugus, cit. vol. IV, pp. 111-114.21 AH da CML Livros dos Reis. Livro I1. de D. Manuel I, Doc. 82, fl. 14v-16v (Carta da Cmara a El Rey do custo da obra da Ribeira e do lanamento do dinheiro para a agoa Deandaluz)22 Para esta fase de obras do Pao da Ribeira conf. Nuno Senos, o

    Pao da Ribeira 1501-1581, Lisboa, Ed. Noticias, 2002. 23 Documentos do Arquivo Histrico da Cmara Municipal de

    Lisboa, Livro de Reis, Livro 2 de D. Manuel II, Lisboa. CML, Vol.V, p.22724 SAA, Mrio, Origens do Bairro-Alto de Lisboa, Lisboa, Edio da Soluo Editora, 1929.25 In So Jos, Fr. Jernimo de - Historia Chronologica da SS. Trindade Redeno... da Provincia de Portuguesa, Officina de Simo Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1789, p.179.26 SAA, Mrio - Origens do Bairro Alto de Lisboa, cit. supra, p.14.27 ... e folgariamos que esta obra se partisse em quatro ou seis lances e que assi fosse metida em prego para atomarem mais officiais e a faazer mais azinha... AH da CML - Livros de Reis. Livro II de D. Manuel, fl.31v e fl.46 (Carta rgia de 26 de Outubro de 1509)28 SOUSA VITERBO - Diccionrio Histrico de arquitectos...IN/CM.Lisboa, 2 ed.1988, vol.I. p.47.29 IDEM, ibidem., vol.I , p. 125. 30 AH da CML - Livros de Reis. Livro 1 de D. Manuel, Doc. 36, cop. XVIII, fl. 29 (Carta Rgia de 4 de Abril 1499 ).31 So estas as palavras como o venesiano C Masser descreve o secretrio Antnio Carneiro prattichissimo delloffizio suo. Conf.Vitorino Magalhes GODINHO, Portugal no comeo do sculo XVI: O relatrio do venesiano Lunardo da C Masser in Revista de Histria Econmica e Social. Lisboa, S da costa, n4, 1979, pp. 75-84.32 Obras pagas pela Casa Real atravs do imposto da tera e que se destinavam a sistemas de defesa, caminhos, pontes, correspondendo genericamente ao que hoje entendemos como obras pblicas. 33 In PYRES, Andr - Regimento de como os contadores das comarcas hao de prover sobre as capelas ospitaes albergarias cfrarias gafarias Obras teras e residos novamente ordenado.... Oficina de Ioham pedro de bonhomini de Cremona, Lisboa, 1514, p.50v-51

    Investigao realizada no mbito de bolsa de ps-doutoramento; (FCT/DFRH/SFRH/BDP/86848/2012).

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    Lisboa: da busca de

    imagem de capital

    Walter Rossa

  • Este artigo uma verso abreviada de um texto em preparao para uma publicao coletiva sobre o tema das capitais no Imprio Portugus, que est a ser organizada por Fernanda Bicalho da Universidade Federal Fluminense.

    SUPORTE Apesar de contarmos com um interessante conjunto de representaes iconogrficas e um bom punhado de descries, impossvel construir com razovel verosimilhana uma imagem contnua e abrangente da paisagem urbana da Lisboa desenvolvida e consolidada ao longo do perodo ureo dos descobrimentos e expanso, ou seja, at Unio Ibrica [Fig.1]. Contudo foi esse o seu primeiro momento enquanto capital de um Imprio cujo esboo estava a ganhar nitidez. Capital era um conceito em formulao que s mais de um sculo depois adquiriria contornos prximos de como hoje o entendemos2. Alis, e sem com isso querer advogar qualquer primazia, a verdade que o cosmopolitismo perifrico da Lisboa de ento em relao Europa, com a tenso prpria de uma testa de ponte para uma nova rota para o Oriente e o Novo Mundo a ocidente, decerto contriburam para o desabrochar do sintagma cidade capital, cabea de reino e imprio, aplicado a Lisboa, ento o porto europeu com mais movimento e volume de negcios. A centralidade de Lisboa em relao ao territrio portugus to antiga quanto se pode considerar natural. Mesmo quando a corte errava por diversas vilas e cidades do pas, era em Lisboa que se iam acumulando os sedimentos do Estado, se aglomerava o maior ncleo populacional, surgiam moradas urbanas das principais casas nobres, se fixavam as principais famlias burguesas e as bases operacionais da sua atividades financeira e mercantil, se constituam os mais expressivos conjuntos monsticos urbanos, etc. O governo dos primeiros monarcas de Avis foi dispensando ateno sua sede de poder, embora no possa ser considerada excecional no contexto global do que tambm promoveram em outras cidades e vilas do reino.

    Fig. 1 Simo de Miranda, Ulibone Pars, 1575. Archivio di Stato di Torino.

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    O erro que tem causado muitos em Espanha, como ponderam os melhores

    polticos, estar a corte em Madrid. [ela] havia de ter a corte onde as

    ondas lhe batessem nos muros. Padre Antnio Vieira (1695), Sermes1

  • J com Manuel I foi evidente um desgnio programado de modernizao de Lisboa, do que d conta o texto antecedente. Todavia no mnimo intrigante, ou revelador3, que os seus sucessores tenham demonstrado desinteresse pela continuao desses esforos.Sabemo-lo por diversas formas, mas a invocao de Da fbrica que falece cidade de Lisboa, que em 1571 Francisco dHolanda dirigiu ao rei, ser expressiva o suficiente [Fig.2]. um lamento em jeito de lista-programa de equipamentos e infraestruturas a empreender, argumentando a falta de monumentalidade moderna ou, por outras palavras, de uma imagem condizente com o seu estatuto de caput mundi4. Como

    para quase todos os autores, e para Holanda com conhecimento de causa, Roma era o paradigma, o principal termo de comparao. Alm do ensanche do Bairro Alto e das reformas manuelinas na Rua Nova dEl Rey, no Rossio e na Ribeira, no geral a cidade era profundamente desestruturada e suja, frequentemente sujeita a epidemias mortferas, pois densificara-se e expandira-se, quase explosivamente, sem plano e infraestruturas. Como sempre no era fcil atuar sobre tecido urbano consolidado. Mesmo em oportunidades como a proporcionada pela destruio provocada pelos terrveis terramoto e maremoto de 15315, a reconstruo foi feita por motu proprio, sem alteraes estruturais ou sequer melhorias significativas. J ento o rei andava ausente, o que

    Fig. 2 Francisco dHolanda (1571), Lembra dos Muros e basties que faleeDa fbrica que falece cidade de Lisboa, fls. 8v e 9

  • Holanda no s denunciaria 40 anos depois, como justificaria por ver que Vossa Alteza no tem casas em Lisboa dignas da sua pessoa, por onde ora mora na Ribeira, ora nos Estos, ora em Santos Velhos, que no so lugares de Reis, sem ter onde reclinar a cabea nesta grande cidade que ava de ser como domicilio seu6.

    ESBOO Contudo, de uma forma ou de outra, as descries modernas de Lisboa feitas at Restaurao da Independncia em 1640 no lhe poupam encmios. Refira-se como exemplo a Urbis Olisiponis descriptio, com que Damio de Gis elogiosamente descreveu a cidade em 1554. A sua opinio de facto muito diversa da de Holanda, o que se justifica mais pela sua formao e vivncia, que por a ter escrito dcada e meia antes. a expresso da cultura de um letrado e no de um artista, reforada por um conhecimento direto das cidades flamengas e no das italianas. Em termos gerais as demais descries da cidade desse perodo, que aqui no cabe listar7, alinham por esse diapaso encomistico, destacando o volume de negcios, as variadas gentes, o pulular de atividades8, a forte presena dos homens do mar, o timbre extico que perpassava em quase tudo isso. com essa lente que Gis v e descreve a arquitetura, construindo uma imagem global da cidade. No mbito do edificado elege literalmente sete itens, sendo significativo que as referncias ao pao surjam no mbito da Casa de Ceuta e da Casa da ndia, o que faz sentido pois fora a partir, pelo meio e sobre elas, que aquele havia sido fundado. A primeira referncia conhecida ao Pao da Ribeira (1504) havia sido premonitora, ainda que preconceituosa e exagerada: ancora quello non compiuto [parece] una fabrica molto bassa, e con poco dessegno, e povera9.

    Com um olhar de hoje talvez tendamos a valorizar os aspetos negativos que Holanda listou, bem como informaes de outras fontes que nos permitem verificar, a escalas mais comezinhas e em diversos sectores, a sujidade, a degradao, a desordem, a decadncia e a ausncia de conforto. Contudo, a mstica da cidade dos descobrimentos sobrepem-se-lhe, catalisando outros atributos, tambm mticos, como o da fundao por Ulisses que, entre outros, surge nos prprios Lusadas (publicados um ano depois do desabafo de Holanda)10. Nessa linha, era tambm inevitvel para os padres da poca o surgimento de descries dando conta das antiguidades da cidade, que convergiam na justificao da sua centralidade universal, correspondente esplendor e potencial de modernidade11. O que nos conduz a um outro aspeto destacado por quase todos e com o qual, sem sombra de dvida, ainda hoje estamos plenamente de acordo: a excelncia do stio12, o qual o motivo para todos se lhe renderem e, tambm, o ponto de partida para a construo fsica da sua imagem concreta, interagindo com todas as construes mticas e ideais j invocadas e com elas inevitavelmente manipulada.Com duas ou trs excees detalhando a Rua Nova e o Chafariz dEl Rei [Fig.3] e, mais tarde, o Rossio a propsito de autos da Inquisio, as representaes desenhadas de Lisboa at ao Terramoto de 1755 tm essencialmente dois motivos, que acabam por constituir um s: o terreiro e a ala sul do Pao da Ribeira13 [Fig.4].

    Fig. 4 Antnio dHolanda, frontespcio da Crnica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvo, c.1540 (detalhe).

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  • considervel o conjunto de vistas da cidade a partir do rio dando conta do extraordinrio conjunto de anfiteatros constitudos pelas encostas edificadas das colinas, todos convergindo no generoso esturio do Tejo. Despontando entre o casario vem-se torres e edifcios principais que coroam as colinas e, na frente, surge estampado um emaranhado de vestgios da intensa atividade martima, barcos varados ou em doca seca tendo r os fundeados ou navegando no rio.

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    Fig. 3 Rua Nova dos Mercadores c.1570-1590, Kelmscott Manor Collection - Society of Antiquaries of London

    Ao centro o Terreiro do Pao, vazio que em todas essas vistas funciona como magnete do olhar e centro de composio, sendo tambm onde se vai assistindo a uma sensvel evoluo morfolgica e arquitetnica.Foi um espao em formao ao longo de dcadas por sedimentos e aterro sobre o rio, a partir da praia constituda pelo cone de dejeo do ribeiro encanado sob a Rua Nova dEl Rei, que do Rossio conduzia ao Tejo as guas dos dois vales ali convergentes.

  • A construo dessa ala do Pao da Ribeira levou consolidao do terreiro, e a gradual consubstanciao deste como palco de representao do poder, a desenvolv-la. Reciprocidade evidente nas imagens do palcio e do terreiro, pois um no surge sem o outro. significativo que no seja conhecida qualquer imagem especfica do terreiro focando, por exemplo, a alfndega tambm erguida por Manuel I limitando-o por nascente, conjunto muito celebrado em diversas descries da cidade. O terreiro era do pao e nada mais. A construo junto ao baluarte do pao, com cabeceira contra o rio, iniciada por 1550 e prxima da finalizao trs dcadas depois, da igreja destinada a acolher uma relquia de So Sebastio, foi a nica ameaa sria a essa exclusividade e clareza do espao e relao com o rio16 [Fig.5].

    A instalao do Pao da Ribeira sobre as Casa de Ceuta e da ndia, no extremo oeste da Rua Nova dos Mercadores, logo no incio de Quinhentos, implicou tambm a construo de uma guarda avanada sobre o rio, um baluarte. Mas tambm, ligando ambos e constituindo por delimitao os logradouros pblico (o terreiro) e privado (o jardim) do palcio que iria sendo ocupado por ampliaes da Casa da ndia14, uma galeria ao ar livre de conexo pao-baluarte, primeiro num, depois em dois pisos, axializada num corpo coroado em coruchu. Era ento a varanda ou ponte, embrio do que veio a ser a ala mais representada do palcio e, de facto, a mais qualificada15.

    Fig. 5 Francisco dHolanda (1571), Lembrana da Grade q deve ter a Nova Igreia de S. Sebastiam. Da fbrica que falece cidade de Lisboa, fls. 26v e 27

  • DESENHOAps a construo mtica e os sucessivos apontamentos fundadores, a estabilizao da imagem da capitalidade de Lisboa centrada na relao entre o terreiro e a ala sul do Pao da Ribeira, bem como no uso ulico daquele, ficou a dever-se ao de Filipe II17. A cuidadosa preparao da sua entrada em Lisboa em 1581 levou substituio do baluarte manuelino, entretanto derreado, pelo cone da Lisboa moderna em que se constituiu o Torreo da Ribeira [Fig.6], bem como transformao de toda a ala, que entretanto j passara a ser um volume encerrado, num edifcio de austera feio clssica. Se escala da arquitetura vamos sabendo o quanto essas alteraes tiveram traduo na estrutura, funcionalidade e aparato interior do pao18, no mbito urbano tm tambm sido grandes os progressos no conhecimento do que o primeiro monarca da Casa da ustria aprontou.O desmantelamento das obras de So Sebastio e a juno do culto da sua relquia s de So Vicente na imponente reforma

    de So Vicente de Fora, ser o exemplo mais versado, o qual obviamente no teve exclusivas motivaes esttico-urbansticas. To relevante quanto ainda por explorar, o facto de logo na dcada de 1580 ter sido ordenado o primeiro levantamento topogrfico da cidade19, do qual se conhece a parte ocidental e ser cpia parcial a bem conhecida Planta de Lisboa de Joo Nunes Tinoco de 165020 [Fig.7]. Por certo Filipe II quis esse instrumento pelas razes habituais para a sua elaborao: conhecer e atuar.Tem sido discutido o tema da capitalidade nos reinados filipinos e, entre as mais consideradas, a hiptese Lisboa, imediatamente a seguir a Valladolid e Madrid21. Filipe II mudara a corte de Valladolid para Madrid em 1561. Seria o seu filho a retroceder, em 1600, para, em 1606, fixar definitivamente a capital em Madrid22, no serto com ento diziam mordazmente os portugueses. Antes e depois Lisboa insinuou-se como pde, designadamente argumentando com as suas excelentes localizao e caratersticas porturias, ou seja e uma vez mais, as qualidades do stio.

    Fig. 6 Torreo da Ribeira. Pormenor do painel de azulejos representando o Terreiro do Pao. Mestre PMP. 1 quartel do sc. XVIII. Museu de Lisboa, MC. AZU.PF 0031.

    Fig. 7 Montagem da Planta da cidade de Lisboa, na margem do Rio Tejo: desde o Bairro Alto at Santo Amaro, c. 1581-1590. Fundao da Biblioteca Nacional (RJ), Cartografia, Arm. 014,01,018; com a (cpia da) Planta de Lisboa de Joo Nunes Tinoco de 1650.

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  • Entre outros so disso expresses eloquentes os Dilogos de Lus Mendes de Vasconcelos (1608) ou a Alegacin en Favor de la Compaa de la India Oriental y Comercios ultramarinos que de Nuevo se Instituy en el Reyno de Portugal que Duarte Gomes Sols dirigiu ao conde-duque de Olivares em 162823. Recorrendo a um texto de Bouza lvarez24, Lisboa sentia-se sozinha, quase viva, sem o seu rei. Como ser uma caput regni sem ele?Para este texto pouco relevam as reais intenes de Filipe II em algum momento ter pretendido fixar a sede das suas duas coroas em Lisboa e/ou os bloqueios com que nisso se deparou, mas to s o quanto quis e fez para que, pelo menos, da de Portugal pudesse ser digna, como acabaria por ser. Alis, pode sempre argumentar-se que a ausncia do rei estimulou a reflexo, teorizao e ao sobre a capitalidade hispnica numa dimenso mundial (e correspondente construo de imagem) de Lisboa por oposio a Madrid e, complementarmente, a Sevilha.

    Desde o incio do reinado (1598) Filipe III foi prometendo e adiando a sua visita at que em 1619 a concretizou. Pese embora o extraordinrio esforo financeiro implcito para a cidade, esta desejava-a, pois era to recente quanto evidente a volatilidade da escolha de Madrid como sede da corte, e apostava-se nisso em diversas frentes. Alm de algumas melhorias de circunstncia, a clebre entrada de Filipe III em Lisboa, a 29 de junho, consolidou o novo paradigma simblico e funcional do Terreiro do Pao: festa e representao do e para o poder. A descrio desse dia de Lisboa correu a Europa, contando-se pelo menos 33 verses publicadas ou ainda em manuscrito, de entre as quais a de Joo Baptista Lavanha, com gravuras detalhadas das armaes efmeras, arcos triunfais de grmios e corporaes e das comunidades estrangeiras radicadas em Lisboa, os quais no se ergueram apenas no terreiro, mas tambm a partir dele25. O tema-convite da assuno de Lisboa como capital dos reinos e imprios ibricos era explcito e recorrente em muitas dessas armaes.

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    Fig. 8 Domingos Vieira Serro, Desembarcacion de Su M en Lisboa Joo Baptista Lavanha (1622), Viagem da Catholica Real Magestade del Rey D. Filipe II. N. S. ao Reyno de Portugal e rellaa do solene recebimento que nelle se lhe fez. Madrid: Thomas Iunti.

  • Fig. 9 Lorenzo Magalotti (1668/9) Pier Maria Baldi, Vistas de Lisboa, Belm e Alcntara a partir do Tejo in Viage de Cosme de Mdicis por Espaa y Portugal. Madrid: Centro de Estudos Historicos da Junta para Ampliacion de Estudios e Investigaciones Cientificas, 1933

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    No era esse o propsito da visita de trs meses de Filipe III a Lisboa (breve, face aos trs anos da do seu pai), o qual no fundo consistia em assegurar em Cortes a sucesso do seu filho na coroa portuguesa. Todavia, a entrada fixara um novo paradigma na imagem global e mtica de Lisboa, um novo padro que podemos considerar materializado com base num debuxo de Domingos Vieira Serro, passado a gravura por Hans Schorken, para funcionar como imagem geral e introdutria da cidade no j referido livro de Lavanha [Fig.8]. Uma projeo que finalmente era de modernidade e, cumulativamente em funo do prprio tempo, de capitalidade, a qual acabaria sendo atualizada, potenciada e instrumentalizada em episdios subsequentes.O Terreiro do Pao foi ganhando regras de utilizao para ficar maior e despejado e livre de trafego de gente [] para maior nobreza dos aposentos reais26, procura de decoro que chegou ao ponto de se regular o trajar dos vendedores instalados nas arcarias da alfndega. Ao invs, ganhara elementos defensivos que em 1625 acabaram consolidando um muro com baluarte artilhado sobre a margem, os quais tolhiam o olhar sobre o rio. Tambm ganhou um chafariz [Fig.9]. Depois da Restaurao da Independncia, em 1640, e assim voltando Lisboa a ter Corte, as festas de recepo, partida, casamento, nascimento, touradas, autos de f, etc. sucederam-se. O esforo diplomtico era intenso e o papel do terreiro e do pao para a imagem dessa soberania com autonomia renovada foi crucial, pois as ilustraes que essas comemoraes motivavam corriam o mundo. Se Lisboa era de novo a caput do Imprio na idade do amadurecimento das capitais europeias27, o Terreiro do Pao representava Lisboa.A par com as evolues do pao e terreiro, algumas alteraes foram ocorrendo no perfil da cidade. Com a consolidao do processo da Contra-Reforma e o desenvolvimento do Imprio e do Padroado Rgio, a esmagadora maioria das ordens religiosas renovou, com ampliaes significativas, as suas instalaes na capital. A par disso novas ordens ou secesses das existentes implantaram novos conjuntos, o mesmo sucedendo com ordens que antes no tinham casas urbanas como, por exemplo, os beneditinos. Tambm as igrejas paroquiais sofreram considerveis processos de renovao, bem como surgiram outras de comunidades de estrangeiros radicados em Lisboa. Todas essas aes, particularmente intensas ao longo do sculo XVII, produziram uma sensvel expanso da mancha urbana sobre eixos orgnicos preexistentes, bem como uma alterao do seu perfil, da sua paisagem urbana, at porque essa

    expanso ocorreu necessariamente sobre encostas e pontos

    elevados. Por conseguinte, alteraes de forma e imagem, mas no estruturais. Se Alcntara, a poente, e Xabregas, a nascente, comearam a fazer parte dos limites sensoriais da cidade, Belm e os seus trs monumentos emergiram nas reportagens escritas e desenhadas de quem visitava Lisboa, ou seja, passaram a fazer parte da composio engrandecida da sua imagem28.Nessa recomposio gradual da imagem e paisagem urbanas de Lisboa tinha especial destaque o palcio erguido logo a partir de 1585 por Cristvo de Moura, o principal valido portugus de Filipe II, a poente do Pao da Ribeira: o Palcio Corte-Real. Com essa obra, aquele que em breve seria feito Conde e depois Marqus de Castelo Rodrigo, e desempenharia trs mandatos como vice-rei da coroa dual em Portugal, logrou, alm de uma bvia afirmao scio-poltica, a criao de um marco de enquadramento palatino para o prprio Pao Real, alis, no enfiamento privilegiado das vistas terreiro-pao. Mas tambm nas vistas gerais da cidade a partir do rio, como a j referida cabea de srie produzida para o livro de Lavanha de 1622, nas quais o Pao Corte-Real surge numa quase paridade com o Pao Real. Entre os dois estava, alm da Casa da ndia (que entretanto avanara sobre a margem ocupando o primitivo jardim) a Ribeira das Naus, ou seja, os estaleiros reais, sobrevivncias densificadas, j ento seculares e imagens de marca da natureza da capital, da monarquia e do imprio [Fig.10].

    Fig. 10 Paos da Ribeira e Corte Real. Petri lusitanorum regis Museu de Lisboa, MC.GRA 870.

  • O eplogo do sonho de Lisboa como capital da Hispnia foi redigido pelo Padre Antnio Vieira como testemunho da ltima tentativa que para tal protagonizou. Segundo o Sermo de Aco de Graas pelo felicssimo nascimento do novo infante, de que a Majestade Divina fez merc s de Portugal em 15 de Maro de 169529, em 1650, ou seja em pleno conflito da Restaurao, Vieira foi encarregue de propor a Filipe III a paz atravs do casamento da sua filha Maria Teresa com o infante Teodsio, herdeiro da coroa portuguesa. Tratava-se de, mais uma vez, tentar a Unio Ibrica. Tinha, contudo, uma outra clusula: os prncipes, futuros reis, com todas as inevitveis consequncias, passariam a residir em Lisboa. A negociao entre os enviados, que teve lugar em Roma, acabou com uma violentssima reprimenda a Vieira, ordenada pelo furioso monarca espanhol. desse sermo a epgrafe que serve de mote a este texto.

    PROJETO A crise gerada pela incapacidade de Afonso VI aumentou a relevncia do Palcio Corte-Real, que entretanto entrara para os domnios reais, ali residindo desde a infncia o regente, depois rei, Pedro II. As dependncias do Pao da Ribeira estavam em mau estado e quando em 1679 se discutiram os preparativos para a recepo e acolhimento do Duque de Saboia, Vittorio Amadeo II, como consorte da herdeira do trono portugus Isabel Lusa de Bragana, colocaram-se duas hipteses, ambas de ensanche do pao e no da sua reabilitao ou renovao30: uma consistindo na duplicao em espelho para nascente da ala sul, incluindo o torreo; ou seja, o antecedente do que acabou por ser realizado, provavelmente com maior aparato, aps o Terramoto de 1755 e que ainda hoje conforma a Praa do Comrcio. Outra fazendo uma ala de ligao ribeirinha entre os paos da Ribeira e Corte-Real, ou seja, o que foi ensaiado por Filippo Juvarra sob encomenda de Joo V no episdio da sua estadia em Lisboa em 171931.

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    Fig. 11 Filippo Juvarra, Esquio para o Palcio Real e Patriarcal no stio de Buenos Aires (Lisboa), 1719. Museo Civico di Torino, Inv. 1859/DS, vol. I, fl. 97, D157.

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    A falta de dinheiro, implicaes como a mudana da Ribeira das Naus, mas essencialmente o malogro do projeto de aliana matrimonial dois anos depois, motivaram o seu abandono, ou melhor, suspenso.A estratgia de casamentos dos infantes de Bragana foi uma das vrias intensamente produzidas pela diplomacia portuguesa ps-Restaurao, com vista ao reconhecimento e sustentabilizao da soberania recuperada e retoma de diretos e prorrogativas perdidos durante a unio dual. De pelo menos igual calibre foram as aes para a recuperao do Padroado Rgio nas suas vrias facetas, tarefa dificultada pela criao pela cria papal em 1622 de uma agncia para lhas disputar, a Congregao para a Propagao da F. uma matria densa e uma extensa bibliografia32, que apenas nos interessa pelo facto de ter criado uma enorme presso sobre as relaes entre Portugal e Roma e ter levado a uma certa busca de emulao de Roma e da cria papal pela cpula do Padroado (a Coroa Portuguesa, o arcebispo de Lisboa e a sua sede urbana), num tempo em que doutrinas como o galicanismo e o regalismo se revelavam e desenvolviam pela Europa. Esse processo, iniciado durante o reinado de Pedro II, acabou por s adquirir expresso no seguinte, uma vez ultrapassadas as dificuldades financeiras do perodo ps-Restaurao, em grande medida graas descoberta e explorao, logo em incios de Setecentos, das generosas reservas de metais e pedras preciosas no Brasil. Joo V e um punhado de colaboradores procuraram formas de afirmao, gizando uma estratgia de atuao. Peas fundamentais desse plano eram a monumentalizao da sede do poder e o estabelecimento do entendimento desta como de conjugao entre os mximos poderes civil e religioso escala do imprio, ou seja, Lisboa tinha de se afirmar como capital civil e religiosa, uma nova Roma33.Lisboa foi dividida em duas cidades, a antiga como Oriental sediada na Catedral de Santa Maria, a nova como Ocidental sediada na Capela Real onde assistia o bispo de Lisboa, o primaz do Padroado que ento recebera o ttulo de Patriarca (um dos seis da igreja Catlica, incluindo o Papa), com uma srie de atributos at ento reservados ao bispo de Roma. Era necessrio consubstanciar um pao simultaneamente Real e Patriarcal, em que a capela do rei desempenhasse as funes de Patriarcal, sede do padroado, no fundo um complexo palatino de profundo simbolismo ulico.Demandando o concurso de arquitetos romanos, no primeiro semestre de 1719, Joo V acabou por desenvolver com Filippo

    Juvarra dois planos, o primeiro retomando a ideia esboada

    40 anos antes de unir os paos da Ribeira e Corte-Real com uma ala bordejando o rio. Teria produzido uma fachada de aparato sobre o centro da cidade, na sequncia, para poente, do Torreo da Ribeira. O outro plano, bem mais ambicioso, consistiu na criao de um ensanche palatino da cidade com centro na zona de Buenos Aires (que hoje melhor reconhecemos como Lapa), sobranceira a Santos-o-Velho [Fig.11]. Foi esta a opo escolhida e iniciada, mas cedo abandonada por razes de ordem diversa, incluindo intriga diplomtica. Iniciara-se Mafra e o rei concentrou-se numa reforma profunda no Pao da Ribeira, com grande impacto na capela real e praa fronteira (arqutipo da Praa do Municpio). Porm, o maior impacto de novidade no terreiro era gerado pela nova Torre dos Sinos.34 [Fig.12]O programa de intervenes de Joo V na cidade foi vasto, produzindo-lhe uma profunda alterao de formas e imagem. A par das dinmicas privada e religiosa de construo, renovao e ampliao de palcios, igrejas e conventos, atravs do municpio a coroa imps uma profunda dinmica de saneamento, normalizao de alados nas principais ruas e alargamento de portas e espaos pblicos, alguns dotados de esculturas, por vezes do prprio monarca e das quais nenhuma perdurou.

    Fig. 12 Loureno da Cunha e Cristovo Leandro de Melo, Parte mais nobre do Palcio do Rey de Portugal arruinado pelo Terramoto no dia primeiro de Novembro de 1755 e depois abrazado com o incndio que reduziu ao estado em que se v, c.1756. Museu de Lisboa, MC.DES. 1365.

  • Mas a grande obra foi a de abastecimento de gua. Iniciado em 1728, o Aqueduto das guas Livres, em especial na travessia do ento paradisaco vale de Alcntara e pela insero de chafarizes de grande efeito cenogrfico e de reforma urbanstica dos seus espaos pblicos de insero, ser por ventura a grande marca visvel da governao de Joo V na estrutura, forma e imagem de Lisboa, at porque, ao invs de tudo quanto promoveu, resistiu ao Terramoto de 1755. Tambm o conjunto das Necessidades empresa j da fase final do reinado (1742) relevante, no tanto pelo programa, mas pelo aparato cenogrfico, ou melhor, por ter estabelecido um novo marco na paisagem da cidade. Na mesma dcada Joo V teve ainda o ensejo de concretizar uma nova igreja patriarcal noutro local, com vista e impacto sobre a entrada em Lisboa pelo rio, o stio do atual Jardim do Prncipe Real.

    Outra ao determinante foi o lanamento, tambm na dcada de 1720, do ncleo palatino de Belm, pois a atrao que produziu levou diversos cortesos a erguer casas de Alcntara a Pedrouos, o que no fundo catalisou a integrao de Belm em Lisboa, qualificando e ampliando consideravelmente a sua imagem global. A intencionalidade estratgica dessa ligao demonstrada por aquele que ter sido, a par com o projeto palatino para Buenos Aires, o mais ambicioso projeto joanino, o do Cais de Pedra entre o Cais Novo de Belm e o Cais de Santarm. Foi traado por Carlos Mardel em 1733, sobre levantamento de 172735, o ano de compra das quintas reais de Belm [Fig.13]. No fundo tratava-se de construir um misto de cais-marginal em perfil de alameda com cerca de sete quilmetros de extenso, ligando os dois ncleos palatinos.

    Fig. 13 Carlos MARDEL (1733), Projecto do Cais Novo de Belm ao Cais de Santarm. Arquivo Histrico do Ministrio das Obras Pblicas: D27

    Fig. 14 Filippo Juvarra, esquio para um farol monumental frente a Santos-o-Velho (Lisboa), 1719. Biblioteca Nazionale Universitaria di Torino, Inv. Ris. 59/I, fl.s 22-23 (C. 17 no desenho)

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    Alm do prazenteiro passeio proporcionado, sanearia, normalizando, toda a frente fluvial, contemplando ainda a j referida reinstalao da Ribeira das Naus na enseada (caldeira) de Alcntara. Alguns troos foram executados, como os dos Cais Novo de Belm e da Alfndega do Tabaco frente Alfndega, ou seja, no Terreiro do Pao. Note-se como algumas entradas rgias haviam sido feitas precisamente com um percurso Belm-Ribeira pelo rio ou por terra, como a que finalizou o clebre episdio da troca das princesas precisamente em 172736.A coroao de todo esse vasto programa de monumentalizao capitalizante estabelecido por Joo V para Lisboa, teria sido a concretizao da ideia, que no deve ter ido muito alm do esquio de Juvarra que conhecemos, de construo de um farol baseado num baluarte dividido entre o largo de Santos e o rio, encimado por uma esttua sua, citao-emulao simultnea de Alexandre o Grande (atravs do Farol de Alexandria) e Roma (pela Coluna de Trajano). Teria sido a metafrica alegao em favor da Lisboa nova Roma com argumentos da original. [Fig.14]

    CONSOLIDAO A catstrofe de 1 de novembro de 1755 abateu-se sobre a cidade que, pese embora a persistncia de muitos e graves problemas, nas ltimas dcadas comeara a ganhar a luta pela construo da sua imagem de capital imperial portuguesa. O admirvel processo de planeamento e implementao que se seguiu bem conhecido37. As transformaes logradas alteraram consideravelmente a estrutura, forma e imagem da cidade, at pela introduo de um novo paradigma de composio dos edifcios correntes, que designamos arquitetura pombalina.Todavia so quase impossveis de listar os elementos da mais variada natureza e escala que, com invariantes urbansticas, transitaram da frmula anterior, influenciando e condicionando subliminarmente os partidos e expresses, at das zonas mais intensamente renovadas, como a Baixa. Paradoxalmente os mais fceis de referir, e tambm talvez os melhores exemplos, so os que foram plano ou projeto que no se concretizou na sua primeira e segunda reformulao. Refiro-me concretamente ao retomar da ideia, de 1679, de conformar o Terreiro do Pao segundo o espelhamento da ala sul e torreo do pao. Claro que o terreiro quase duplicou em rea e os torrees perderam a cpula forrada a chumbo, mas o modelo to claro e a fora do local to grande, que no h forma de a Praa de Comrcio se libertar do Terreiro do Pao [Fig.15]. A propsito refira-se tambm a

    deslocao do palcio real para as colinas sobre o rio situadas

    entre So Bento e as Necessidades, o qual acabaria por resultar na reserva da plataforma de Campo de Ourique sculo XIX dentro, e na efetivao desse novo pao descentralizado na Ajuda, a que corresponde a sada do rei do centro urbanstico do poder. Igual sucedeu com a funo patriarcal, que foi ponderada numa das seis verses do ante-plano cartesianamente desenvolvidas pela equipa chefiada por Manuel da Maia no inverno de 1755-1756. Refiro-me, por ltimo, composio da cidade segundo duas escalas hierarquizadas a partir do rio, ou seja: uma superior-monumental delimitada pelas ruas do Comrcio (herdeira da Rua Nova dos Mercadores) e da Alfndega, o Corpo Santo (antes Pao Corte-Real) e a Praa da Ribeira; outra mais comum por trs desta, a verdadeira Baixa, at ao Rossio e Praa da Figueira [Fig.1].O resultado do longo processo de materializao urbanstica da capitalidade de Lisboa aqui elencado, hoje o radical da imagem que a cidade tem. As novas centralidades, algumas muito qualificadas, contribuem, mas no determinam como a velha Ribeira e as formas de coroamento e ocupao das mais velhas colinas urbanas, a projeo de Lisboa no imaginrio de quem a viu e rev.

    Fig. 15 Carlos Mardel (atrib.), Prefigurao da Praa do Comrcio (Lisboa). Museu de Lisboa, MC.GRA.0978.

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    Notas1 Antnio Vieira. Sermes. Porto: ed. Gonalo Alves, Lello & Irmo, 1993: V, 938.2 Matre, 1682; Argan, 1964.3 Rossa, 2000 e 2002.4 Holanda, 1571: 24. Ver ainda Rossa, 2000, 2002, 2007, 2008b, 2008d.5 Jos da Silva Terra (1978). De Joo de Barros a Jernimo Cardoso. O terramoto de Lisboa de 1531. Arquivo do Centro Cultural Portugus. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian. vol. XXIII e M. C. Henriques, M. T. Mouzinho, N. M. Ferro (1988), Sismicidade em Portugal: O Sismo de 26 de Janeiro de 1531. Lisboa: Comisso para o Catlogo Ssmico Nacional.6 Holanda, 1571: 22.7 P.e. ver para os casos de espanhis de Francisco de Monzn (1544), Pedro de Medina (1548), Isidro Velzquez (1582) e Francisco Herrera y Maldonado (1633) o artigo de Castillo Oreja e Gonzlez Garcia (1998).8 Destaquem-se as duas principais descries com um pendor estatstico: Cristvo Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551, Sumrio em que se conta algumas coisas assim eclesisticas como seculares que h na cidade de Lisboa; Joo Brando, Grandeza e abastana de Lisboa em 1552.9 Lunardo da C Masser, enviado de Veneza a Lisboa em 1504, apud Senos, 2000: 51.10 E tu, nobre Lisboa, que no Mundo/ Facilmente das outras s princesa,/ Que edificada foste do facundo,/ Por cujo engano foi Dardnia acesa;/ Tu, a quem obedece o mar profundo,/ Obedeceste fora Portuguesa,/ Ajudada tambm da forte armada,/ Que das Boreais partes foi mandada. Lus Vaz de Cames. Lusadas, c. 1572: III-57.11 Entre vrios ver Lus Marinho de Azevedo, Primeira Parte da Fundao, Antiguidade e Grandeza da Muy Insigne Cidade de Lisboa (1652); Antnio Coelho Gasco, Primeira parte das Antiguidades da muy nobre cidade de Lisboa, Imperio do Mundo, Princesa do Mar e Oceano (1645?).12 Destaco os textos de L. M. Vasconcelos (1608), Nicolau de Oliveira, Livro das grandezas de Lisboa (1620) e Antnio Brando, Monarchia Lusitana (1636), mas antes de todos ele o ltimo captulo da 2 edio/verso de Francisco Monzn(1544), Libro primero del Espejo del principe christiano compuesto y nueuamente reuisto y muy e[m]mendado con nueua composicion y mucha addicion. Lisboa: Antonio Gonalvez. 1571.13 O trabalho de Jos Manuel Garcia de 2008 referenciado na bibliografia ser o mais recente e completo sobre a iconografia de Lisboa at aos finais do sculo XVII. A importncia que teve para a elaborao deste texto fica assim declarada, dispensando referncias posteriores em tudo quanto diga respeito a questes sobre iconografia. 14 Caetano, 2000.15 Senos, 2000.16 Rossa, 2002.17 Para o mais prximo conhecimento das emoes do rei em relao a Lisboa e a Portugal durante a sua estada entre 1581 e 1583 ver Filipe II (1581-1583).18 Soromenho, 2012.19 Rossa, 2012.20 Por sua vez apenas conhecida pela cpia realizada em 1850: Museu da Cidade, DES 1084.21 Bouza lvarez, 1994; Garcia, 2008.22 Alvar Ezquerra, 1989.23 So muitos os textos onde esta pretenso defendida, merecendo ainda claro destaque Manuel Severim de Faria (1624). Discursos varios polticos, vora e, como claro antecedente, o texto de Francisco Monzn referenciado na nota 12.24 Bouza lvarez, 1994.25 Lavanha, 1622. Ver ainda o captulo dedicado de George Kubler (1972), Portuguese Plain Architecture, between spices and diamonds, 1521-1706. Middletown: Wesleyan University Press: 105-127 e plates 57-70.

    26 Eduardo Freire de Oliveira (1882-1943), Elementos para a historia do municipio de Lisboa. Lisboa: Tip. Universal, 1 Parte, tomo IV: 444-445 (Consulta da cmara ao rei em 28 de janeiro de 1641).27 Matre, 1682; Argan, 1964.28 O exemplo mais destacado ser Lorenzo Magalotti (1668/9), Viage de Cosme de Mdicis por Espaa y Portugal. Madrid: Centro de Estudos Historicos da Junta para Ampliacion de Estudios e Investigaciones Cientificas, 1933, a qual inclui os respetivos desenhos de Pier Maria Baldi.29 Antnio Vieira. Sermes. Porto: ed. Gonalo Alves, Lello & Irmo, 1993: V, 935-938.30 Soromenho, 2011: 71; Rossa, 2011: 185-186.31 Giuseppina Raggi (2012). La circolazione delle opere della stamperia De Rossi in Portogallo. Studio dArchitettura Civile: gli atlanti di architettura moderna e la diffusione dei modelli romani nellEuropa del Settecento. Roma: ed. Aloisio Antinori: 144-145; Rossa, 2011.32 Sendo um assunto complexo e que para o mbito deste texto est sumariado em alguns textos meus, limito-me a indicar trs dos que se me afiguram como mais teis para tal e tambm como eventuais portais de acesso temtica, bem como a esta parte do texto: Rossa, 2000, 2008d e 2011.33 Fernando Antnio da Costa de Barboza, Elogio funebre do Padre Joo Baptista Carbone da Companhia de Jesus. Lisboa: 1751: 15.34 Uma viso virtual, bem como um verdadeiro banco de dados sobre o complexo do Pao da Ribeira antes do Terramoto de 1755 foi disponibilizado pelo projeto Lisbon pre1755 earthquake no site http://lisbon-pre-1755-earthquake.org.35 Carlos Mardel (1733), Projecto do Cais Novo de Belm ao Cais de Santarm. Lisboa: Arquivo Histrico do Ministrio das Obras Pblicas: D27C.36 Rossa, 2000.37 Jos Augusto Frana (1962). Lisboa Pombalina e o iluminismo. Lisboa: Bertrand., 1987; Tostes, Ana e Rossa, Walter (coord.) (2008). Lisboa 1758: o Plano da Baixa hoje. Cmara Municipal de Lisboa

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    Vasconcelos, L. M. de (1990). Do stio de Lisboa. Dilogos. Lisboa: Livros Horizonte. (Original de 1608).

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    A cidade-livro da esttua do Rei:

    Lisboa em 1775

    Rui Tavares

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    No dia 20 de Maro de 1775 um homem chamado Manuel Jos Pereira, que era secretrio em fim de mandato da repartio de censura da Real Mesa Censria, recebeu dois documentos com o ttulo aviso, ou instruco. Ambos vinham da parte do Ministro do Rei, o Marqus de Pombal, e eram dirigidos ao presidente da Real Mesa, o erudito bispo de Beja frei Manuel do Cenculo. O assunto de que tratavam era a solenidade da inaugurao da esttua equestre do rei Dom Jos I, e a razo por que a Real Mesa Censria deveria tomar conhecimento das informaes neles contidas era que os prprios edifcios onde estava sediada a instituio se faziam necessrios para as cerimnias que teriam lugar a 6 de Junho, no dia do 61 aniversrio do soberano1.O local onde foram recebidas estas duas mensagens era na Praa do Comrcio, a praa principal, e a mais bela, da cidade. L se encontravam os escritrios dos censores da Real Mesa, as suas salas de reunies, e o secretariado da Junta do Subsdio Literrio, instituio gmea e na prtica subordinada Real Mesa Censria, ocupando casas ou salas de que os documentos tratam pormenorizadamente.O primeiro documento trata com zelo outros preparativos para o dia da inaugurao cuja responsabilidade caberia aos censores do reino. Para dar um exemplo, a Real Mesa Censria teria de assegurar a ornamentao e a iluminao das janelas dos seus edifcios, segundo um plano geral determinado pelo Conde de Oeiras. Esta decorao seria paga pela prpria instituio atravs das sua conta corrente, anotando a soma correspondente segundo a forma habitual, nos cadernos de despezas midas.O segundo documento tambm era intitulado Aviso, ou Instruco e estava datado do mesmo dia. Nele, o Ministro expunha o cerimonial que se seguiria inaugurao da esttua, e a forma como se deveria prestar homenagem esttua do rei. Explicava que os censores teriam a honra de pertencer logo ao segundo grupo que cruzaria a Praa para se aproximar da esttua. Nessa caminhada seriam acompanhados pelos outros membros dos altos tribunais do reino, e precedidos por ningum exceto pela alta nobreza.O presidente da Real Mesa Censria, a quem estes dois documentos foram entregues, no podia ignorar que uma esttua equestre de Dom Jos I fosse ser erguida na praa que via das janelas dos seus gabinetes. Ningum o ignorava. H quase vinte anos, desde que a reconstruo da cidade fora decidida, que a esttua estava prevista. Ela seria o fecho da abbada, o coroamento das grandes obras a fazer na capital do reino.

    Nas dcadas aps o terramoto de 1755, a ideia de uma

    esttua equestre foi aparecendo nos planos de reconstruo de Manuel da Maia, e depois em gravuras e pinturas avulsas.Um quadro com esses elementos fora pintado em 1767 no clebre retrato de Van Loo e Vernet, dois dos mais requisitados pintores europeus da poca, que mesma poca estavam trabalhando num clebre retrato de Diderot. Na grande tela que fizeram para Portugal v-se o ministro Sebastio Jos de Carvalho e Melo, que poca tinha apenas o ttulo de Conde de Oeiras, um pouco deslocado para a esquerda numa ampla varanda lanada sobre o Tejo de forma impossvel, uma vez que nunca nenhum edifcio possuiu em Lisboa esta perspectiva sobre o rio. O cho e os mveis em torno de Sebastio Jos esto juncados de planos de reconstruo da cidade.

    Fig. 1 O Marqus de Pombal expulsando os Jesutas. leo s/ tela. Louis-Michel Van Loo e Claude-Joseph Vernet, 1771. Cmara Municipal de Oeiras. (Pormenor na pgina seguinte)

    Timelapse da Esttua Equestre. Junho 2015. Fot. Jos Vicente. Edio GEO.

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    esquerda do Ministro, num plano sobrelevado, que se v o modelo para uma esttua equestre. Os elementos iconogrficos do monumento so bem perceptveis. Em baixo, dois grupos de mrmores de cada lado do pedestal, um representando um elefante que esmaga um prisoneiro, outro um cavalo na mesma aco. Sobre o pedestal, o modelo da esttua de bronze, na qual Dom Jos passeia a cavalo, atropelando impvido um leo, parecendo nem sequer se aperceber do perigo, numa demonstrao de coragem e serenidade.Aps o Grande Terramoto de 1755 o engenheiro militar Manuel da Maia tinha realizado diversos planos para a cidade arrasada; numa das cinco opes diferentes que os seus projectos permitiam aparecia j o espao destinado grande esttua. A inaugurao da esttua equestre era mais do que um facto bem conhecido; era o fecho da abbada, o coroar de t