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VIII Seminario Regional (Cono Sur) ALAIC “POLÍTICAS, ACTORES Y PRÁCTICAS DE LA COMUNICACIÓN: ENCRUCIJADAS DE LA INVESTIGACIÓN EN AMÉRICA LATINA” 27 y 28 de agosto 2015 | Córdoba, Argentina Quando o canavial esmaga o homem: Um estudo sobre o personagem jornalístico 1 Cuando el cañaveral aplasta el hombre: un estudio acerca del personaje periodístico When the sugarcane is crushing the man: a study of journalistic character Leylianne ALVES-VIEIRA 2 Universidade de Brasília (Brasil) Mestranda em Comunicação [email protected] Célia Maria LADEIRA-MOTA 3 Universidade de Brasília (Brasil) Doutora em Comunicação [email protected] 1 Este trabalho foi apresentado graças à contribuição da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), à qual agradecemos o auxílio. 2 Leylianne Alves Vieira é mestranda, pertence ao grupo de pesquisa Cultura, Mídia e Política do programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Brasil, e pesquisa em sua dissertação as reportagens da revista Realidade. 3 Célia Maria Ladeira Mota é doutora em Comunicação, pertence aos grupos de pesquisa “Jornalismo e a Construção Narrativa da História do Presente” e “Cultura, Mídia e Política”, ambos ligados ao programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Brasil.

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VIII Seminario Regional (Cono Sur) ALAIC

“POLÍTICAS, ACTORES Y PRÁCTICAS DE LA COMUNICACIÓN: ENCRUCIJADAS DE LA INVESTIGACIÓN EN AMÉRICA LATINA”

27 y 28 de agosto 2015 | Córdoba, Argentina

Quando o canavial esmaga o homem:

Um estudo sobre o personagem jornalístico1

Cuando el cañaveral aplasta el hombre:

un estudio acerca del personaje periodístico

When the sugarcane is crushing the man:

a study of journalistic character

Leylianne ALVES-VIEIRA2

Universidade de Brasília (Brasil)

Mestranda em Comunicação

[email protected]

Célia Maria LADEIRA-MOTA3

Universidade de Brasília (Brasil)

Doutora em Comunicação

[email protected]

1 Este trabalho foi apresentado graças à contribuição da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), à qual

agradecemos o auxílio.

2 Leylianne Alves Vieira é mestranda, pertence ao grupo de pesquisa Cultura, Mídia e Política do programa de Pós-Graduação

da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Brasil, e pesquisa em sua dissertação as reportagens da revista

Realidade.

3 Célia Maria Ladeira Mota é doutora em Comunicação, pertence aos grupos de pesquisa “Jornalismo e a Construção Narrativa

da História do Presente” e “Cultura, Mídia e Política”, ambos ligados ao programa de Pós-Graduação da Faculdade de

Comunicação da Universidade de Brasília, Brasil.

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Resumo

Tive sete filhos. Ninguém bota banca comigo. Criei meus filhos com esses braços. Ninguém nunca me ajudou. Farofa, taquinho de carne há 54 anos. É só. Asneira dizer que come. A gente enche a barriga, mas a danada da fome volta logo. Sou cabra bom. Não tenho vexame de dizer. Os dedos da mão não são iguais. (Realidade, 1970).

Gregório, com 54 anos e apenas três dentes, é o personagem principal da reportagem O canavial

esmaga o homem, publicada na edição de número 46 da revista Realidade, em janeiro de 1970. Os

repórteres, Jorge Andrade (texto) e Jean Solari (fotografias), viajaram para o estado do Pernambuco em

busca dos engenhos de rapadura, dos canaviais e dos homens que são os responsáveis por manterem

o canavial em atividade: o trabalhador do engenho. A reportagem faz parte de uma série de narrativas

da revista que buscou retratar os brasileiros invisíveis durante os anos de milagre econômico da

ditadura militar.

Este artigo analisa a reportagem, tendo como referencial teórico a Análise Crítica da Narrativa,

conforme proposta pelo professor Gonzaga Motta (2013), e foca no estudo do personagem que,

linguisticamente, só existe em termo de palavras, mas que, na narrativa jornalística, representa pessoas

que existem de fato. É a própria estrutura do texto que nos permite identificar o personagem, suas

ideias, sua vida, seu aspecto físico, recuperando, com isso, a figura real. No caso da reportagem

analisada, aproximamo-nos do trabalhador de engenho do Nordeste brasileiro, entendendo como ele

vivia na década de 1970.

O canavial esmaga o homem destaca a pobreza, a dificuldade para obter alimentos, a incerteza sobre o

futuro. Utilizando técnicas originalmente literárias, o repórter assume o papel de narrador de um texto

que recria a realidade de um Brasil pouco conhecido naquele momento histórico, e que continua

invisível até hoje.

Resumen

Gregório, 54 años y solo tres dientes, es el personaje principal del reportaje O canavial esmaga o

homem, publicado en la edición de número 46 de la revista Realidade, en el mes de enero de 1970. Los

periodistas Jorge Andrade y Jean Solari se han desplazado hacia el estado de Pernambuco buscando

los molinos de panela, los cañaverales y los hombres responsables de mantener el cañaveral activo: el

trabajador en el molino. El reportaje hace parte de una serie de narrativas de la revista que ha intentado

retratar a los brasileños invisibles durante los años del milagro económico de la dictadura militar.

En este artículo se analiza el reportaje teniendo en cuenta como marco teórico la Análise Crítica da

Narrativa, según la proposición del profesor Gozaga Motta (2013), y apunta hacia el estudio del

personaje que, lingüísticamente, se sostiene solo en el ámbito de las palabras, empero, en lo que

concierne a la narrativa periodística, retratan personas que de hecho existen. La estructura misma del

texto es lo que nos hace posible identificar el personaje, sus ideas, su vida, su aspecto físico, y por ello,

realizar el rescate de la figura real. En el caso del reportaje analizado, nos hemos aproximado del

trabajador del molino del Nordeste brasileño, buscando entender como vivía en la década de 1970.

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O canavial esmaga o homem señala la pobreza, la dificultad para obtener alimentos, la incertidumbre

hacia el futuro. Tras emplear técnicas genuinas de la literatura, el periodista asume el papel de narrador

de un texto que rehabilita la realidad de un Brasil poco conocido en aquel momento histórico, y que

sigue, hasta hoy, intangible.

Abstract

Gregory, 54 years old and only three teeth, is the main character of the story O canavial esmaga o

homem, published in issue 46 of Realidade magazine in January 1970. The reporters Jorge Andrade

and Jean Solari traveled to the state of Pernambuco, in the Northeast of Brazil, in search of brown sugar

mills, sugar cane fields and men who were responsible for maintaining the sugarcane activity: the

workers. The report is part of the Realidade magazine narratives which sought to portray the invisible

Brazilian people during the years of economic miracle of the military dictatorship.

This article analyzes the report, following the theoretical references of Critical Analysis of Narrative, as

proposed by Professor Gonzaga Motta (2013) and focuses on the study of the character as it was put in

words linguistically, but looking at it as a representation of real people in journalistic narrative. It is the

very structure of the text that allows us to identify the character, his ideas, his life, his physical

appearance, recovering thereby the true figure in the case of the analyzed report, which was the mill

worker in Northeast of Brazil as he lived in the decade of 1970.

The report highlights the poverty, the difficulty to get food, and the uncertainty about the future. Using

literary techniques, the reporter is the narrator of a text that recreates the reality of a region of the

country which was unknown at that historical moment and which is still unrecognized in the present

days.

Palavras-chave: realidade, engenho, personagem, narrativa.

Palabras Clave: realidad, molino, personaje, narrativa.

Key Words: reality, sugar mill, character, narrative.

1. Introdução

Ao responder à questão “por que estudar narrativas?”, o pesquisador Gonzaga Motta (2013) considera

que estudá-las é compreender o sentido da vida. Analisá-las é interpretar as ações dos homens e as

relações sociais, o que permite refletir sobre o significado da experiência humana e o mundo no qual o

homem vive. Nesta perspectiva, as narrativas forjam indivíduos e nações, o que ocorre por meio de

contradições, confrontos, enfrentamentos sociais e históricos. Como destaca Muniz Sodré (2009), a

narrativa pode ser vista também como um ato comunicativo, caracterizado pelo compartilhamento de

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experiências e vivências. É desta forma que a teoria da Narrativa ultrapassa a barreira entre o que é

fático e o que é ficcional e começa a ser usada para a análise de textos jornalísticos.

As narrativas jornalísticas nos levam a compreender como se integram os sentidos fragmentados das

notícias do dia a dia. Assim, a narrativa é muito mais do que o simples contar cronológico dos fatos

(Motta, 2005). Para o autor, as construções narrativas jornalísticas são estratégicas e estão

impregnadas de intenções e objetivos. Deste modo, o narrador da notícia vai além de relatar

acontecimentos e busca construir significados a partir do uso de ferramentas linguísticas como a

argumentação e figuras de linguagem, além de recursos da pragmática.

A partir da definição kantiana de fato como conceito para objetos cuja realidade pode ser provada, é

importante a distinção que Sodré faz entre fato e acontecimento (Sodré, 2009, p. 33). Enquanto o

acontecimento se pauta pela atualidade, o fato, mesmo inscrito na história, é uma elaboração

intelectual. Sodré cita Mouillaud quando o autor de O jornal: da forma ao sentido (2002) afirma que “o

acontecimento é a sombra projetada de um conceito construído pelo sistema da informação, o conceito

do fato” (Mouillaud, 2002, p. 51). Sodré conclui que o conhecimento dos fatos redunda, na verdade, na

história em torno da qual sempre girou o jornalismo. Assim, a informação jornalística parte de objetos

tidos primeiro como factuais para obter, por intermédio do acontecimento, alguma clareza sobre o fato

sócio-histórico. “É, portanto, uma atividade que transcende a mera distribuição de relatos sobre a

realidade. Visto como uma narrativa, o relato jornalístico envolve enredos, conflitos e personagens para

se desenvolver” (Mota, 2012, p.16).

Na Teoria do Jornalismo, o acontecimento é uma categoria que caracteriza o fato noticiável, que

desperta o interesse público. Estabelece-se o valor-notícia das ocorrências que permeiam o cotidiano

das pessoas. Os acontecimentos podem ser de duas ordens: naturais e sociais. Para Louis Quéré

(2012) o acontecimento é uma ocorrência desencadeadora de sentidos. No caso do artigo em análise,

que narra a vida do personagem Gregório, perdido num canavial nordestino, é preciso perceber os

acontecimentos sociais e políticos no país naquela década (1970), em que se vivia o milagre econômico

para buscar os significados da narrativa.

2. O personagem

Não há estudo da narrativa sem a definição dos personagens de uma história. Quem primeiro definiu a

função do personagem como significativa para o desenvolvimento de um enredo foi Vladimir Propp

(1970), com seu livro Morfologia do Conto Maravilhoso. Para o autor, cada personagem teria uma

função no conto, responsável pela lógica das ações. Joseph Campbell (2007), por sua vez, afirma no

livro O Herói de Mil Faces que cabe ao personagem principal de um relato sintetizar os vários

momentos de transformação pela qual deve passar para realizar uma missão. Cabe ao herói partir,

aceitar o destino, buscar seu caminho enfrentando as lutas e obstáculos e retornar, vitorioso ou

derrotado trazendo consigo as lições aprendidas e a memória dos enfrentamentos.

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Para Campbell, a força dramática de um enredo está na busca de realização de um desejo do

personagem, e na oposição das forças de antagonismo que dificultam ou impedem que ele alcance

aquilo que quer. Como protagonista da narrativa, ele é o personagem mais bem desenvolvido na

história, o centro nervoso da trama que sustenta o eixo narrativo. Todos os eventos, personagens e

elementos da história giram ao seu redor. Sua luta vai se desenvolver contra um antagonista, que é o

personagem que traz ou representa uma ameaça, obstáculo, dificuldade ou impedimento ao que o

protagonista deseja conquistar.

No tocante ao campo do jornalismo, Mesquita (2004) defende que a fronteira entre ficção jornalística,

jornalismo ficcionado e jornalismo factual é imprecisa e muitas vezes os três coexistem, sobrepondo-se.

Porém, nestes casos, teríamos o que o autor chama de ‘personagem jornalística’, uma das vertentes

estruturadoras da narrativa factual. Aqui, assumimos o personagem enquanto o ser ficcional

responsável pelo desenrolar do enredo. De acordo com Gancho (1991), mesmo que seja inspirado em

uma pessoa dita real, aquele personagem será sempre uma invenção, uma construção literária. Esta

definição se aplica, portanto, aos textos de fundo jornalístico e histórico.

Os personagens jornalísticos são, presumivelmente, baseados em pessoas que existem no plano do

real, mas são construções. O autor realiza a seleção de características a serem descritas, falas a serem

destacadas e situações a serem apontadas no plano textual. Mesquita ressalta o papel do jornalista

enquanto investigador, a fim de compor as personagens, numa comparação com o trabalho do escritor

de ficção. Ali,

[...] o escritor é o senhor absoluto do personagem criado, enquanto o historiador e o jornalista se referem a alguém que tem existência no “real”. O personagem jornalístico reflete, além da elaboração criativa, o trabalho de observação, documentação, inquérito e interpretação desenvolvidos pelo jornalista, a fim de reunir os elementos relativos ao “referente objetivo” (Mesquita, 2004, p. 132).

3. A narrativa de Realidade

A revista Realidade, publicação mensal lançada em 1966 pela Editora Abril, propunha-se a ser uma

revista de reportagens, mergulhando na cotidianidade do país, buscando um Brasil ainda não

apresentado aos brasileiros. Os textos ali publicados visavam compor personagens, cenas e ambientes

por meio de estratégias linguísticas mais próximas à subjetividade da Literatura que à objetividade

impelida, de certa maneira, ao Jornalismo.

Realidade tem sua história dividida em três estratos: o primeiro corresponde à equipe inicial de

repórteres e editores (abril de 1966 a dezembro de 1968); o segundo é marcado pela mudança no

quadro de funcionários (janeiro de 1969 a setembro de 1973); ao passo que a última fase é assinalada

pela mudança no formato da revista e em sua proposta editorial (outubro de 1973 a março de 1976).

A segunda fase, período do qual faz parte a reportagem sobre a qual nos debruçamos neste artigo, dá-

se após a promulgação do Ato Institucional Nº 5, um dos responsáveis pela institucionalização da

censura aos meios de comunicação no decurso da ditadura militar. Ocorrido durante o governo do

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general Artur da Costa e Silva, este período é caracterizado pela forte repressão oposicionista. No

entanto, a imagem negativa do governo era compensada pela situação econômica: o país vivia sob a

égide do expressivo crescimento que ficou conhecido como ‘milagre econômico’. Não previsto pelo

regime, o crescimento foi utilizado como ferramenta de combate à oposição (Earp & Prado, 2007).

É nesse contexto que foi lançada uma das revistas que conquistou o público leitor a partir da variedade

de temas e estilos, traduzidos em grandes reportagens: Realidade. “A cobertura era ampla e ambiciosa.

A revista traçava uma espécie de mapa da realidade contemporânea, sem resistência a esta ou aquela

pauta. O mundo – e o Brasil, em especial – eram desvendados de modo multifacetado” (Vilas Boas,

1996, p. 92), o que dava subsídios para uma análise do país por parte dos brasileiros, a partir de

reportagens sobre diversos trabalhadores quase invisíveis, habitantes das diferentes regiões do país.

Assim, Realidade se centrou na possibilidade de reportagens que tivessem como personagens os

brasileiros esquecidos pelo governo e pela mídia. Estes cidadãos, anônimos, cujas profissões os

colocavam na base da pirâmide social, tornaram-se a principal marca da revista em suas duas primeiras

fases. Este é o caso de Gregório, trabalhador de engenho do estado do Pernambuco. A reportagem

traça o caminho percorrido pelo homem desde a hora que acorda até o término da jornada de trabalho.

Nesta pesquisa, focamos nas construções narrativas do personagem e nos detalhes de sua jornada,

procurando compreender os significados que destacam a vida de sofrimento daquele trabalhador e de

sua comunidade.

4. O canavial enquanto personagem

A reportagem O canavial esmaga o homem foi publicada na edição número 46 de Realidade, em janeiro

de 1970. Os repórteres, Jorge Andrade e Jean Solari, viajaram para o estado do Pernambuco em busca

dos engenhos de rapadura, dos canaviais e, em especial, daqueles personagens que são os

responsáveis por manterem o canavial em atividade: o trabalhador do engenho.

O canavial é apresentado ao leitor com um personagem vivo, com a capacidade de exigir espaços,

derrotando a mata, tomando o lugar que era, por direito, dela. O canavial vai tomando os espaços

naturais, crescendo, muito rapidamente, e modificando a paisagem. A cana também é dotada de armas

naturais, que maltratam os trabalhadores.

O mar verde que se forma aprisiona homens, mulheres, crianças e idosos. Quem olha a partir de um

prisma externo, enxerga apenas as folhas que se mexem com o vento. Quem está ali dentro vê a sua

história ligada ao canavial. Mais que isso, sente-se como um sujeito fadado a travar uma luta diária

contra o canavial. Podemos observar isso quando o narrador apresenta o personagem principal desta

narrativa, Gregório. Um homem humilde, analfabeto, envelhecido, que se levanta todos os dias às três

horas da madrugada, pega suas armas e vai ao canavial.

Na luta, o homem almeja alcançar uma vida mais digna e confortável para a mulher e os filhos. Ao

mesmo tempo em que está ali preso, vendo sua história, e de muitos outros, passar, Gregório consegue

no canavial a remuneração que permitirá o acesso ao alimento. Aqui começa a ser traçada uma relação

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de alternância em torno dos significados dados ao canavial: ao mesmo tempo em que é vilão,

maltratando o homem, também é mocinho, tornando possível a sobrevivência. Ao longo desta

discussão, veremos mais exemplos dessa alternância de significados.

Figura 1 - O canavial esmaga o homem (Revista Realidade, nº 46, jan. 1970)

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

A abertura da reportagem, conforme podemos observar na Figura 1, dá-se por meio de uma imagem,

cerca de três quartos da página dupla, e uma massa de texto. O recorte realizado na fotografia, em

formato parcialmente circular, possibilita que vejamos um homem e um aglomerado de canas cortadas.

Podemos observar que o homem está extremamente magro, usa um chapéu como forma de proteção

contra o sol e está sentado no chão, no mesmo nível que os pedaços de cana.

Uma das características do canavial enquanto personagem da narrativa é a autoridade. Os verbos

utilizados ao narrar a tomada realizada sobre aquele espaço são: derrotar, expulsar, tomar, ocupar,

cercar e obrigar. O canavial dita regras sobre o espaço e sobre os animais. Todos os elementos

remetem ao autoritarismo. Ao tomar para si as características que seriam esperadas do dono do

engenho, o canavial torna-se o vilão da narrativa.

Ao dar início ao texto da reportagem, o narrador dá relevo aos riscos que aquela atividade, ou batalha,

implicam. Além da própria cana, que solta pelos que entram na pele como espinhos, também existem

outros perigos naturais, como é o caso das cobras escondidas na base das touceiras de cana. O

primeiro elemento está mais visível e próximo do sujeito que o segundo. Tomamos os espinhos como a

representação do conhecido, ao passo que a cobra representa o desconhecido, uma vez que o homem

sabe de sua existência, mas não tem como prever onde ela está ou quando o atacará.

As passagens que se referem à construção do ambiente da narrativa vão desde elementos físicos até

os sons que inundam o local. Após relatar que a cana expulsou todos os animais, ocupou espaços que

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antes eram de outras vegetações e cercou os ambientes de convívio do homem, uma frase descreve o

atual cenário da região: ali “há um mar verde que, quando ondula batido pelo vento, produz um som

seco e áspero” (Andrade, 1970, p. 34, grifo nosso). Desta forma, até o som do ambiente machuca,

atormenta.

O elemento descritivo ‘mar verde’, no parágrafo seguinte, tem seu sentido bruscamente alterado: passa

a ser “[...] uma prisão verde, onde milhares de homens, mulheres e crianças já terminaram seus dias e

outros estão terminando” (Andrade, 1970, p. 34, grifo nosso). O termo mar produz uma imagem de

espaço que abriga elementos desconhecidos, transmite uma sensação de beleza, de calma. Ao

transmutar a palavra mar em prisão, temos como referência um local fechado, onde conhecemos

aqueles que ali estão presos, porém, o indivíduo externo ao ambiente não sofre como aquele que está

preso, não percebe as reais dificuldades da relação estabelecida com o confinamento.

5. O homem do canavial

Após a apresentação do espaço físico daquela região, tomada pelo canavial, a narrativa nos apresenta

Gregório. Aproximamo-nos do personagem principal durante a madrugada, ainda deitado, expondo as

características físicas e sociais daquele espaço: “na noite que custava a passar, Gregório olhou à sua

volta, medindo as paredes do quarto: 2 por 3 metros” (Andrade, 1970, p. 34). No quarto dormem

Gregório, sua mulher Dalvanise, Matilde e Madalena, filhas pequenas. Na sala ainda dormem Severino

e Joaquim, também filhos. Gregório teve sete filhos, dos quais cinco ainda moram com ele. O mais

velho já foi convocado a trabalhar como adulto no canavial e é descrito no texto como ‘cabrinha macho’,

uma designação dada por Gregório ao filho:

Severino, de oito anos, não ia ao corte de cana naquele dia: estava com o peito cheio. Cabrinha macho, esse! Com a ajuda dele, tinha cortado tonelada e meia de cana por dia durante a semana. Gregório sentiu frio e encolheu o corpo: acho que é falta de sangue. É por isso que o corpo não se esquenta (Andrade, 1970, p. 34).

Ao sair para trabalhar, Gregório imagina a semana seguinte, quando será lua cheia. Durante estes

períodos, quando a noite é bem iluminada, os homens trabalham por mais tempo, recebem mais

dinheiro. É pensando em um presente para Dalvanise que ele dá início a sua caminhada de oito

quilômetros até o local do corte da cana. Caminhando, ele pensa sobre a influência do canavial sobre a

vida de todos, até dos que ali não residem. Sobre o período de safra, ele afirma: “Tempo de trabalho pra

todo mundo, quando os parentes e conhecidos do Agreste vêm com as famílias ganhar o dinheiro para

sustentar os pequenos roçados” (Andrade, 1970, p. 37).

Ao longo do caminho, o momento de maior satisfação para Gregório se dá quando ele alcança as

navalhas e enxerga as pernas dos trabalhadores, que empurram a cana para dentro das máquinas

como raios daquelas engrenagens. Da mesma forma, seus braços seriam raios das foices (Andrade,

1970, p. 37). Todos trabalham em conjunto para transformar a cana em álcool e açúcar. O ‘olho’ (texto

em destaque) desta página expressa o sentimento do homem em relação à cana: “Vingança: ver a

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máquina despedaçar a cana”. O narrador usa o verbo despedaçar, reforçando o significado que o

trabalhador dá à sua relação com o canavial: partir em pedaços. Gregório sonha em um dia trabalhar

nas máquinas para, assim, observar sua vingança de perto.

- Um dia, vou trabalhar na esteira só para ver essa amaldiçoada ser esmagada até virar mais bagaço do que eu.

Espantando o pensamento – pois não é a cana que dá o sustento? –, Gregório se voltou e viu o Opala do dono da usina – máquina formosa! – e lembrou: amanhã temos pagamento. Dia de pinga (Andrade, 1970, p. 37).

O dono do engenho é aqui representado apenas pelo seu carro, e a narrativa mostra o afastamento

existente entre ele e o trabalhador. Ir ao engenho significa conviver com um mundo de máquinas, no

qual a ‘máquina’ do dono atrai mais atenção. Ao ver o carro, Gregório lembra-se de que o dia de

pagamento é sempre seguido por uma visita ao bar, buscando na bebida o alívio para a tensão do dia a

dia e para esquecer as dificuldades da vida.

A narrativa descreve o homem como um bagaço, comparando-o com o que sobra da colheita. E

acentua a semelhança entre o trabalhador e o canavial: sua força, sua coragem, seu suor, sua vida,

ficam no canavial. São retirados pela cana. A vingança seria aplicar o mesmo destino a ela: retirar-lhe a

força, a resistência, a forma, o suor, o caldo.

A terceira página dupla desta reportagem (Figura 2) conta com quatro fotografias, ocupando cinco

sextos da página, e mais uma coluna de texto, à direita. A legenda das fotografias diz:

Não são homens, mulheres e crianças vivendo onde gostariam. Estão ali porque não têm outra condição de trabalho. A alimentação não corresponde ao esforço que despendem: a farofa e o ‘taquinho’ de bacalhau mal dão para se manterem de pé. Aguentam-se porque comem a própria cana, que é rica em glicose e sacarose (Andrade, 1970, p. 37).

Figura 2 - O canavial esmaga o homem (Revista Realidade, nº 46, jan. 1970)

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Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

Na primeira das fotografias, um menino é o motivo principal. Atrás dele, outra criança, menor, e a

silhueta de um homem, dando vistas aos braços, costelas e um chapéu. As duas crianças podem ser da

mesma família, considerando que a menor usa a outra para se defender, esconde-se. Ambos estão

sujos. Não estão felizes, mas, ao serem fotografados, demonstram simpatia com aqueles repórteres. O

menino menor, por sua vez, tem na expressão marcas de cansaço e sofrimento. As sobrancelhas,

curvadas, apontam para o desconforto da situação.

Na segunda imagem da página, quatro pessoas estão entre a calçada de uma casa e a porta. Um

desses sujeitos tem feições masculinas, sendo adulto, ao passo que as outras três são crianças, um

menino e duas meninas. A feição do homem é séria, seus braços são queimados pelo sol e o chapéu

não nos permite ver os olhos do personagem. Sujo e com as roupas apresentando rasgos, é um típico

trabalhador do canavial, levado para outro cenário: a casa. A calçada, na qual está sentado, apresenta

desgastes do tempo. Além disso, a parede da casa também explicita os desgastes. Ao redor deste

sujeito, as três crianças estão paradas e observam o fotógrafo. Na penumbra, quase não podem ser

vistas.

A terceira fotografia nos apresenta um homem preso em meio ao canavial. Seus olhos estão inchados,

um reflexo das poucas horas de sono, ou mesmo dos problemas acarretados pela queima da cana. Ele

direciona o olhar para a parte inferior das plantas, parte não presente na fotografia, mas podemos

perceber a sua atenção ao que faz: cortar a cana. Ainda como reflexo das queimadas, as mãos do

homem estão tomadas por fuligem. O corpo dele brilha, em função do calor naquele local: cerca de 40º.

O personagem parece cansado e triste, um prisioneiro da situação. As roupas deixam ver sua magreza.

Na última imagem podemos observar um jovem montado em um cavalo. Todo o chão está coberto por

palhas de cana. Este é o local no qual os caminhoneiros recolhem o produto do trabalho dos homens e

o transportam ao engenho. Podemos fazer esta observação em função da presença do caminhão no

segundo plano da fotografia. O carro tem um caminho já traçado, dividindo o canavial em duas porções:

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de um lado, as sobras da cana, do outro, algumas plantas intocadas. Naquele local também podemos

distinguir a presença de ao menos cinco pessoas: uma em cima do caminhão e outras quatro ao lado. O

jovem, motivo central da fotografia, usa roupas rasgadas e um chapéu para proteção contra o sol, bem

como tem um semblante de desconforto com a fotografia.

Cada um dos personagens utiliza uma mesma arma contra o canavial: a foice. É justamente esse termo

que dá nome ao próximo intertítulo. Observamos que a palavra ‘foice’ tem a mesma representação

sonora de ‘foi-se’. Aqueles sujeitos estão presos a uma vida na qual o caminho é sempre o mesmo: ir

para o canavial durante a madrugada e voltar de lá no final da tarde. Despende-se a vida ali.

O canavial é queimado com o intuito de tornar aquela tarefa menos perigosa. Em meio a todas as

dificuldades do ambiente e do contexto, o que sufoca e faz o homem chorar é a fumaça. O homem, por

ser forte e corajoso, não admite a si mesmo reclamar daquele estilo de vida. Mas o corpo fala mais alto,

forçando-o a chorar em meio à fumaça. O fogo e a fumaça, ao mesmo tempo em que salvam de alguns

perigos, permite que o homem demonstre seu sofrimento sem o peso do remorso.

Após a chegada ao canavial, Gregório encontra um lugar para depositar sua farofa com bacalhau e

pega a foice. Ele faz referência à relação que se estabelece entre a arma e seu braço: são extensões.

Assim como os sentimentos do homem em relação à cana, na qual ora ela é a inimiga e ora amiga, o

mesmo acontece com a arma. Ao pegar o instrumento, Gregório “[...] olhou a lâmina da foice: inimiga da

cana, amiga da gente. Inimiga também, pensou, sentindo no corpo muitos cortes e, em cada um, uma

cana espremida para estancar o sangue” (Andrade, 1970, p. 37).

Figura 3 - Esquema da relação Personagem-Cana-Foice

Fonte: os autores.

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A Figura 3 resume o quadro de relação entre os três principais elementos presentes no canavial: o

homem, a cana e a foice. A cana se faz inimiga no momento do trabalho, quando machuca o homem,

quando o faz virar uma mina de suor, quando não o recompensa na medida certa de seu esforço. Em

contrapartida, é amiga por proporcionar o pouco alimento ao qual tem acesso, e ao estancar o sangue

dos cortes realizados pela foice.

Quanto à arma, a foice é amiga do homem ao proporcionar uma parcela de vingança contra a cana,

retirando-a do canavial e levando-a para as máquinas, a fim de torná-la bagaço. Porém, o cansaço e a

velocidade com a qual têm de trabalhar faz com que a navalha da foice escorregue, machuque o

homem. Neste momento, ela se torna inimiga do personagem. Por fim, foice e cana travam uma luta

entre si, sendo esta unidirecional. Aqui temos apenas uma relação de inimizade entre as duas. É uma

relação de protagonismo do personagem e dos antagonismos que enfrenta em sua jornada.

A narrativa se aproxima do epílogo: Gregório faz cinco cortes em cada cana, limpando-a e deixando-a

no tamanho exato para ser carregada até o caminhão. Esta “é a hora de fazer a única conta que

aprendeu na vida, conta que faz há 46 anos: três cortes pra limpar e dois pra picar” (Andrade, 1970, p.

38). Serão 15 mil cortes naquele dia, para cortar uma tonelada e meia de cana, seu objetivo.

Mergulhando no significado da jornada do trabalhador do canavial, o texto agrega três novas

informações: 1) o homem é analfabeto, não sabendo realizar outros processos matemáticos; 2)

Gregório trabalha no canavial desde os oito anos de idade, aproximadamente; e 3) para alcançar a

quantidade de canas cortadas suficientes para o sustento da família é preciso que o personagem

realize, ao dia, 15 mil cortes.

Gregório afirma ser analfabeto, mas diz que esta condição não faz dele uma pessoa ignorante, que não

saiba o quanto deve receber. O homem resume a situação em uma frase: “[...] sei escrever na memória”

(Andrade, 1970, p. 38). Na semana anterior, não teve o que receber por já ter retirado tudo em vales,

mas naquela semana tem dinheiro a receber e é com ele que vai presentear a mulher e levar comida

para a família.

6. O contexto social

Como toda narrativa, seus significados remetem a um mundo externo ao texto, embora percebido nas

entrelinhas ou por meio de figuras de linguagem. O narrador usa, por exemplo, uma metáfora para

comparar o canavial a uma prisão. E para isso, reproduz uma fala do personagem:

De repente, Gregório para e olha à sua volta: a cana cercava por todo lado. Abrira uma clareira no meio do canavial queimado e as canas pareciam barras de ferro:

- A gente aqui vive pior que na detenção. Lá, vivem se divertindo: têm banho de sol, cinema, remédio. E aqui? (Andrade, 1970, p. 38).

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A metáfora remete ao contexto político da época: tempo de ditadura militar, marcada pela forte

repressão e muitas prisões. O narrador faz, nesta parte do texto, uma comparação com a vida do

personagem, que se sente vivendo numa prisão pior do que as reais, onde os inimigos do regime

estavam passando por maus momentos. Para o personagem, havia diversão e banho de sol “lá na

detenção”. Assim, a narrativa traz a referência ao mundo externo, distante da vida no canavial, e à

época em que se desenrola a história de Gregório, um dos períodos mais duros do regime militar, com

prisões diárias de opositores políticos.

Percebe-se que o brasileiro do canavial não tinha informação alguma sobre o que acontecia no país,

sobre o que acontecia de fato nas prisões, como torturas e mortes. Para ele, a tortura é o forte sol que

chega a 40º e pode também matá-lo. O corpo reclama e, mesmo com toda a dificuldade, o personagem

chega ao alto do morro, vence a sua batalha diária, derrota o canavial, consegue seu objetivo inicial. O

homem arqueja, está ‘morto’, porém de cansaço. Ao final da batalha, ambos estão mortos, cada um a

sua maneira. O homem que morre um pouco a cada dia, no canavial, é um herói desconhecido para o

país e para os donos do poder.

7. Considerações finais

Como em toda narrativa, o relato textual remete a condições sociais, históricas e econômicas que fazem

parte do contexto mais amplo. A história de Gregório foi contada pela revista Realidade em 1970,

quando o Brasil vivia mergulhado no regime militar com sua dura repressão. Mas o relato optou por

mostrar outro lado da nação. A reportagem deu voz a brasileiros que viviam esquecidos pelo que foi

chamado de ‘milagre econômico’: trabalhadores explorados, sem representação sindical, sem

organização social, mergulhados na dura tarefa da colheita de cana, boias frias muitos deles, garantindo

um sustento parco e contribuindo mesmo assim para o crescimento econômico do país, num momento

em que a cana começava a ser explorada como fonte de energia combustível.

Foi em meio à euforia do ‘milagre econômico’ que grandes projetos foram empreendidos no país,

usados intensivamente como propaganda e legitimação do regime. A economia brasileira vinha

crescendo desde o fim da segunda guerra, mas, entre 1963 e 1967, o crescimento caiu pela metade, “o

que gerou um acirrado debate sobre a natureza das reformas econômicas necessárias para retomar as

taxas históricas de expansão da economia” (Earp & Prado, 2007, p. 209). Antes de presenciar o

fenômeno do crescimento econômico, a situação política brasileira já estava conturbada. Crescia a

repressão ao movimento oposicionista, e, com a criação do Ato Institucional n° 5, o novo presidente,

general Emílio Garrastazu Médici, manteve Delfim Neto no Ministério da Fazenda com o objetivo de

superar o subdesenvolvimento de forma a reduzir a distância que separava o Brasil dos países

desenvolvidos. Com isso o milagre aconteceu de forma inesperada.

No entanto, se as taxas de crescimento do PIB brasileiro eram auspiciosas, no front da distribuição de

renda o cenário parecia bem menos promissor, visto que a desigualdade teria crescido

sistematicamente durante a década. Tais resultados seriam produto das políticas econômicas dos

governos militares, que tanto na estratégia anti-inflacionária, mas também nas reformas estruturais,

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tinha montado um sistema que não beneficiava os setores mais vulneráveis, e, ao contrário, tendia a

concentrar renda, como denunciava na ocasião o economista Celso Furtado.

O milagre não chegou, com certeza, aos canaviais brasileiros, onde homens como Gregório

sobreviviam com dificuldade. Este artigo se propôs a destacar como a revista Realidade assumiu a

decisão editorial de mostrar estes sobreviventes e suas duras condições de vida num contraponto à

euforia em torno de índices econômicos durante a fase mais implacável da ditadura brasileira. Foi uma

decisão que procurou mostrar o país real, o Brasil de homens como Gregório, esmagados pela rotina

diária dos canaviais. Um país que ainda não mudou muito.

8. Referências Bibliográficas

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