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Para Papous Apostolis

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Yo tuve un hermanono nos vimos nuncapero no importaba.

Yo tuve un hermanoque iba por los montesmientras yo dormía.

Lo quise a mi modole tome su vozlibre como el agua.

Camine de a ratoscerca de su sombrano nos vimos nuncapero no importaba.

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Mi hermano despiertomientras yo dormía.Mi hermano mostrándomedetrás de la nochesu estrella elegida.

Eu tive um irmãonunca nos vimosmas não importava.

Eu tive um irmãoque ia pelos montesenquanto eu dormia.

Amei-o à minha maneirapeguei-lhe na vozlivre como a água.

Caminhei por vezesperto da sua sombramas nunca nos vimosmas não importava.

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Meu irmão despertoenquanto eu dormia.Meu irmão mostrando-mepor detrás da noitea sua estrela eleita.

Julio Cortázar, Che

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Abu Is’af é mais do que um irmão para mim, como sa-bem. Sermos camaradas de armas é algo que o tempo não pode apagar; depois de não o vermos há vinte anos, o nosso camarada de armas aparece e descobrimos que ainda tem um lugar no nosso coração.

Elias Khoury, Gate of the Sun

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INTRODUÇÃO

FIDEL CASTRO É «viciado na palavra», como diz o seu bom ami-go Gabriel Garcia Márquez. Isso torna ainda mais surpreendente que durante o seu meio século no poder — de longe a mais prolon-gada governação de qualquer chefe de Estado recente — ele tenha dito tão pouco acerca da sua amizade de 12 anos com Ernesto Che Guevara. Ainda assim, a amizade entre eles estendeu-se desde os começos da revolução cubana ao ponto alto da Guerra Fria, uma amizade que por algum tempo foi a relação mais importante da vida dos dois homens e uma amizade cujos segredos guardam a chave para se compreender alguns dos acontecimentos mais significativos do século XX.

Em Outubro de 2007, por ocasião do 40.° aniversário da morte de Che Guevara na Bolívia, Castro recordou os «dias tristes e lumino-sos» que ele e Guevara tinham partilhado A frase não era dele, mas de certa maneira pertencia-lhe. Dois anos antes de morrer, Che ra-biscara-a num caderno de linhas quando, numa pressa para sempre, escreveu um adeus de última hora a Fidel, o seu camarada dos últi-mos dez anos. Este adeus invulgar não foi o fim da relação entre os dois e as circunstâncias em que foi escrito haveriam de desempenhar um papel no desenlace da sua história. Mas Castro nunca respondeu em público. Mesmo 40 anos depois e ele próprio prostrado no leito, sofrendo de um problema intestinal que o faria retirar-se oficialmen-te do cargo, o grande orador manteve um silêncio efectivo.

Esta reticência a abrir o passado é invulgar para alguém com o ávido interesse por história de Fidel Castro. Ele foi regularmente

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pontuando a sua revolução na sedução popular da história de re-beldia da ilha e ficará para sempre ligado à famosa frase: «Conde-nem-me, pouco importa, a História me absolverá.» Mas ele também sempre dissuadiu — e com considerável êxito — uma pesquisa his-tórica séria ao seu próprio passado. Tem sido especialmente resguar-dado no que respeita à sua relação com Che Guevara, limitando os seus comentários a ocasionais entrevistas «exclusivas» (nem sempre com revelações) ou à republicação de anteriores.

Guevara também cuidava de ofuscar os pormenores da sua vida. Os seus diários, agora muito divulgados, são olhares fascinantes so-bre o processo revolucionário e a radicalização de um rapaz vulgar originário da classe média quando viajou pelas regiões mais pobres do continente sul-americano e no final muito mais além. Mas todos são versões que ele reescreveu após os acontecimentos e consequen-temente encaixam-se na visão que ele quis traçar. São de muito valor e esclarecimento, mas não tão objectivos como ele talvez gostasse de pensar.

Não é tão surpreendente, por isso, que durante muitos anos os relatos sobre estas duas personagens altamente coloridas e impor-tantes do século XX tenham sido mercadoria verdadeiramente rara. Apareceram referências cáusticas e arrebatadas aos dois homens para preencherem o vazio, muitas vezes da autoria de quem teve algum envolvimento pessoal na sua história. Porém, só nos anos 80 é que começaram a surgir biografias mais sérias de Castro e em me-ados dos anos 90 se despejou uma torrente de trabalhos acerca de Guevara, quando se abriram portas e se lançou uma luz em pelo menos alguns dos arquivos. Mas a profundidade e a subtileza do relacionamento deles escapa mesmo a estes trabalhos pioneiros. Du-rante algum tempo, não houve qualquer novo relato importante.

Tal como a «névoa cinzenta» em que Estaline se transformou para os historiadores, a relação entre Fidel e Che só pôde ser vista, duran-te décadas, a uma luz tremeluzente e fantasmagórica. No entanto, este livro mostra pela primeira vez que essa relação foi de importân-cia máxima para os dois durante aqueles anos críticos; tão impor-

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tante, à sua maneira, como a camaradagem intelectual entre Engels e Marx, ou, na verdade, o grande choque de personalidades que foi a parceria entre Trotsky e Lenine. Fidel e Che tinham pelo menos alguma coisa em comum com esses outros pares históricos e algo mais do que eles, porque não foram só camaradas, mas compañeros que encontraram uma causa comum num momento histórico notá-vel, quando a Guerra Fria se intersectava com as lutas nacionalistas dos seus países e dos outros. A relação entre eles difere, no entanto, de muitas outras parcerias, na medida em que foi, em primeiro lugar e acima de tudo, uma amizade de sangue intensamente vivida em poucos anos mas intensos. Foi, como um disse um biógrafo, simples-mente «inigualável»1

Este livro é sobre a relação inigualável e a chegada juntos à ribal-ta de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara «naquele pequeno espa-ço, em que dois dos grandes épicos do nosso tempo coincidiram».2 Baseia-se em pesquisas em arquivos em Havana, Washington, Mos-covo, Miami, Princeton, Boston, Londres e Berlim. Apoiando-se também em entrevistas com alguns dos maiores protagonistas nesta história, traz igualmente uma nova série de fontes para contarem pela primeira vez e em toda a extensão a história de uma das mais notáveis amizades do século XX.

1 Szulc, Fidel Castro: A Critical Portrait.2 Castaneda, Companero: The Life and Death of Che Guevara.

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PRÓLOGO

Uma encruzilhada trágica

ÀS PRIMEIRAS HORAS da manhã de 25 de Novembro de 1956, havia uma actividade inabitual na pequena cidade portuária de Tux-pán, uma das poucas localidades situadas entre Veracruz e Ciudad Madero, no longo e imponente arco da costa ocidental do México. Ensopados por uma chuvinha trazida pelo vento que prenunciava uma tempestade a aproximar-se, um pequeno grupo de homens es-tava afanosamente a acarretar biscoitos, água e medicamentos por uma prancha algo precária para uma pequena embarcação de re-creio atracada no rio que descia até ao porto. Duas jovens atraentes davam uma ajuda enquanto barras de chocolate Hershey, laranjas e um par de presuntos foram acondicionados juntamente com as espingardas, munições e armas antitanque já a bordo.

A superintender a estes preparativos de última hora estava a figura de 1,88 metros do advogado cubano Fidel Castro, um dos mais pro-missores basquetebolistas do país, numa vida que podia ter aconte-cido; um praticante de advocacia largamente malsucedido transfor-mado em político e agora revolucionário amnistiado, na vida que cada vez mais estava a acontecer. Essa noite era o momento mais importante até então na jovem vida de Fidel. Tudo aquilo para que

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tinha trabalhado desde que saíra da escola jesuíta em Havana — os dias de bandoleiro, o alistamento em operações armadas, os meses de solidão na cadeia e, mais recentemente, as longas noites de pre-parativos clandestinos no exílio —, tudo isso estava dependente do êxito nas próximas horas.

Em pé, perto de si, na escuridão, estava a figura muito mais esguia do médico argentino Ernesto Guevara, até então um clínico relu-tante e um investigador que no fundo do coração era um viajante e um poeta; um espírito livre agrilhoado ao desejo ardente de fazer alguma coisa. Mas o quê, até encontrar Fidel, não sabia muito bem. Também ele estava naquela noite no limiar de um período novo na sua vida, do qual não haveria retorno mas que toda a vida tinha procurado, talvez nem o sabendo muito bem. Os dois homens não falavam enquanto decorria a mobilização silenciosa.

Mais de 100 outros homens tinham sido convocados para Tuxpán. Muitos haviam chegado sozinhos ou aos pares das várias casas clan-destinas de recuo ou hotéis de viela mal equipados onde se tinham alojado desde que o grupo fora solto da prisão poucos meses antes. Guevara chegara num velho Ford Pontiac. Os pneus trituraram a po-eira solta da estrada quando alguém conduziu o automóvel para um lugar escondido. Alguns dos homens à sua volta abraçaram-se em silêncio no escuro, ninguém falou. Como homens em fuga da prisão, a sua tarefa no momento era manterem-se agachados, fora das vistas no pequeno armazém junto ao qual o barco estava a ser carregado.

Castro, o cérebro de toda a operação, contava-se entre os poucos homens de pé no exterior, à chuva. Levava uma capa preta e uma metralhadora Thompson pendurada entre as coxas, parecia preocu-pado e consultava frequentemente o relógio de pulso. Nem todos os seus homens tinham ainda chegado e, apesar de serem constante-mente transferidos de uma casa de recuo para outra, receava que a polícia mexicana pudesse ter sido alertada para os seus planos. Não era só dela que Fidel tinha razões para temer. Nos últimos meses, o seu grupo havia sido seguido pelos agentes do temível SIM de Cuba — o conhecido Serviço de Informação Militar da ditadura —, bem

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como pelas forças da Segurança Federal do México e do Bureau Federal de Investigação, FBI, dos Estados Unidos.

Os governos destes três países tinham observado de perto as acti-vidades do grupo de Castro desde que este anunciara publicamente a sua intenção de derrubar o regime cubano em vigor. Os receios deles redobraram-se quando o grupo foi temporariamente detido numa operação arriscada e foi descoberto o rancho secreto onde es-ses homens tinham sido treinados. Fidel havia conseguido assegurar a libertação, mas as credenciais comunistas de um tal Dr. Ernesto Guevara tinham-se espalhado nos jornais mexicanos por editores que captaram, por entre as tensões crescentes de uma guerra fria no país, o odor de um bom escândalo.

Fidel tinha escolhido o ponto de partida a pensar nestes acon-tecimentos recentes. Tuxpán era um local desolado, uma pequena cidade portuária plantada na foz de um rio. Ali não existiam nem serviços de alfândega nem controlo de imigração, permitindo aos aspirantes a revolucionários um ou dois dedos de liberdade nos seus preparativos. Pelo menos desta vez, recebiam a ajuda do tempo. O dia anterior havia sido um dos mais tempestuosos do ano e, nessa noite, tudo na cidade meio adormecida se abandonava ainda mais à noite sem luar.

Tinha sido ali que Fidel encontrara o barco que os levaria para Cuba e, por momentos, quando os homens o carregavam de equi-pamento pela única prancha, iluminava-se com os reflexos da luz na água: o Granma3, uma alquebrada embarcação de madeira de 19 metros com dois enfermiços motores a diesel para a propulsão. Longe de ser a primeira escolha de Castro — de facto, fora a única embarcação disponível na rápida escalada dos acontecimentos que nas últimas semanas submergira o seu pequeno bando de rebeldes —, já se tinha afundado uma vez durante um furacão em 1953. O barco havia sido preparado em dois dias por um dos homens de Cas-tro, torturado durante a prisão do grupo cinco, meses antes, e por um traficante mexicano chamado El Cuate («compincha») que tam-

3 Tratamento infantil de grandmother, avó: avozinha, vovó. (N. do T)

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bém tinha fornecido metade das armas. Mas apenas com os remen-dos aplicados pelos dois homens, trabalhando à noite à luz de uma lâmpada fraca para não despertar suspeitas, o barco parecia poder afundar-se outra vez.

«Não conseguirás meter ali mais do que uma dúzia de homens», disse a Fidel, quando viu o barco, Melba Hernandez, membro fiel da resistência cubana e uma das jovens que ajudavam nos prepara-tivos. Ela tinha razão em muitos sentidos, mas Fidel recusou-se a acreditar. «Vai levar 90», declarou, obstinadamente.4 Em qualquer caso, era já demasiado tarde para encontrar outra embarcação para os transportar até Cuba. Quando a ordem de embarque foi dada, 82 homens esgueiraram-se do armazém e comprimiram-se sob a co-berta. Alguns, armados com as poucas metralhadoras que El Cuate tinha obtido, tomaram posições no convés. Temendo serem presos se esperasse mais tempo pelos últimos poucos que faltavam, Fidel apostou que a sorte estaria com ele e deu ordens para os últimos preparativos.

* * *

A função de Guevara na expedição era a de oficial médico e chefe do pessoal. Apesar de estar pessoal e ideologicamente comprome-tido com a figura dominante de Fidel Castro, desde que se tinham encontrado no Verão anterior, e embora, como dizia, parecesse «va-ler a pena morrer algures numa praia estrangeira»5 por uma causa tão nobre, mantinha as suas reservas acerca do rumo que estavam a seguir. Não eram receios de falhar — conquanto qualquer avalia-ção de senso comum indicasse que o êxito era improvável. Tal como os outros homens agachados nas sombras daquela noite, Guevara tinha um optimismo, que roçava a fé cega, de que conseguiriam os seus objectivos. As suas suspeitas recaíam antes em se, uma vez bem--sucedida, a revolução não seguiria o mesmo caminho que muitas 4 Citado em Quirk, Fidel Castro, p. 119.5 Ernesto Che Guevara, carta aos pais citada em Guevara Lynch, Aqui Va un Soldado de América.

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outras tentativas para derrubar governos corruptos por toda a Amé-rica Latina. A seu tempo, pensava Guevara, esta revolução cubana iria sucumbir aos dólares ocidentais e à avidez burguesa, tal como as restantes. Mas, por ora, punha esses pensamentos de parte e concen-trava-se na tarefa entre mãos.

O jovem Guevara tinha já feito apressadas despedidas da sua mu-lher, que encontrara na segunda das épicas viagens à volta do con-tinente. «Vai acontecer alguma coisa?», inquirira Hilda ao marido, quando um dos membros do movimento chegou, nervoso, à casa e perguntou por ele. Outro camarada tinha sido preso de novo e apreendidos os seus papéis e algumas armas. «Não, apenas precau-ção...», respondeu, juntando as suas coisas, mas sem olhar para ela. Quando terminou, foi até ao berço onde a filha bebé estava a dor-mir e acariciou-a. «Então voltou-se para mim, abraçou-me e beijou--me», recordou Hilda. «Sem saber porquê, tremi e aconcheguei-me mais a ele. Mais tarde iria recordar-me de como ele queria aparentar naturalidade naquele momento e eu sabia quanto é que se estava a esforçar. Partiu nesse fim-de-semana e não voltou.»6

Era realmente Fidel o único que nessa altura tinha uma ideia do que iria acontecer ou pelo menos esperava que viesse a acontecer. Profundamente mergulhado nos pensamentos sobre os contactos que havia estabelecido em Cuba para os receber, fez umas despedi-das menos emocionadas. Por uma vez, evitou as teatralidades e os discursos, nunca se distraindo das tarefas em mãos. Passou um bra-ço à volta dos seus amigos e camaradas conspiradores clandestinos de Cárdenas, a mulher e Orquideo Pino, antes de lhes dar a ordem final: «Escondam-se todos, escondam-se e não saiam até saberem se conseguimos chegar ou fomos presos.»

A única mensagem com que Fidel estava preocupado em enviar depois disso foi uma, cifrada, para alertar os seus apoiantes na ilha. Assim que os seus homens se fizessem ao mar em segurança, com os apoiantes a seguirem-nos pela costa em automóveis de luzes apa-gadas, essa mensagem — «Livro encomendado está esgotado» —

6 Gadea, Ernesto: A Memoir of Che Guevara, p. 158.

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deveria seguir por telegrama para Santiago de Cuba, juntamente com outros para Havana e Santa Clara. Depois de um abraço final a Melba, Fidel pegou na arma que tinha entregado por momentos a um camarada e ordenou aos últimos que chegavam para o segui-rem para bordo assim que se soltassem os cabos. Com isso, galgou a prancha para a cabina e ordenou que o barco zarpasse. Eram quase duas da manhã e já era tempo de partirem.

* * *

O acontecimento que em breve iria desempenhar um papel im-portante na Guerra Fria e que iria reconfigurar o panorama polí-tico da América Latina estava em marcha. Vários serviços secretos andavam a seguir os passos do grupo de rebeldes, mas os governos de Washington e de Moscovo estavam largamente desprevenidos do que se pusera em movimento. Rumores de rebelião circulavam cons-tantemente nesta parte do mundo e Washington não dava particular atenção às actividades de Fidel Castro: a preocupação primeira era saber se qualquer levantamento era de natureza comunista, e embo-ra Castro já tivesse feito algum nome nessa altura nunca tinha dito publicamente nada sobre comunismo. Apesar de terem uma Embai-xada em Havana e um Consulado em Santiago de Cuba, um deles a poucos quilómetros apenas do local onde Castro planeou desembar-car, o Governo dos Estados Unidos não fazia ideia da dimensão do movimento clandestino de Fidel na ilha, uma prova, em parte, das precauções de que ele se rodeara.

A liderança soviética estava demasiado ocupada com outras ques-tões. Enquanto o Granma navegava para leste, os tanques estavam ainda a triturar o asfalto das ruas de Budapeste para onde Nikita Kruschev, sucessor de Estaline, os tinha enviado para esmagar um levantamento apenas algumas semanas antes. A Hungria não era a única preocupação de Kruschev. A China comunista, liderada pelo Presidente Mao, estava a tornar-se cada vez mais poderosa e des-

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contente perante a presumida hegemonia da União Soviética entre os países do bloco socialista, e o líder soviético tinha acabado de ser criticado sem rodeios pelo Ocidente por ter proferido o seu famoso discurso «Havemos de vos enterrar» a um grupo de diplomatas oci-dentais em Moscovo.

Apenas um ano antes, as coisas pareciam muito melhor para Kruschev e o seu primeiro-ministro, Nikolai Bulganin, quando fize-ram uma visita de Estado à Índia. Tão positiva fora a sua recepção em Calcutá, onde os dois líderes soviéticos tinham sido completa-mente submersos por uma vasta concentração de mais de dois mi-lhões de pessoas, que os seus guarda-costas tiveram de acotovelar e pontapear violentamente para abrirem caminho por entre a mul-tidão para os «resgatar», erguendo os dois estadistas por cima das cabeças e levando-os de volta para a segurança das suas limusinas oficiais como bonecas de porcelana. Kruschev tinha ficado impres-sionado com toda aquela experiência, que o deixara com a sensação atormentadora das possibilidades que a URSS poderia ainda explo-rar em alguns dos países recém-independentes em todo o mundo, na procura de manter uma posição internacional relativa aos america-nos e aos chineses.

Embora Kruschev não o soubesse, um jovem membro da Embai-xada soviética no México, Nikolai Leonov, já tinha de facto feito amizade com Che e com o irmão de Fidel, Raúl. Kruschev não viria a saber do «contacto» de Leonov com os rebeldes cubanos seguido-res de Fidel durante algum tempo mais. Nem Fidel fazia ideia da dimensão do envolvimento do irmão e de Che com os comunistas, só soube disso vários anos depois. Naquele momento, Fidel Castro, Ernesto Guevara e os outros homens a bordo do Granma navegavam para uma era nova e indefinida amplamente fora das vistas de qual-quer das superpotências e desembaraçados dos pormenores mais agudos do seu programa político.

* * *

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Actualmente, em Tuxpán — uma cidadezinha com pouco mais para vender de si —, existe um pequeno museu a registar a «grande expedição histórica» do Granma e da sua tripulação. Na noite de 24 de Novembro de 1956, contudo, ninguém na cidade fazia a mínima ideia da importância dos acontecimentos que começavam a desen-cadear-se quando o barco deslizou rio abaixo até ao mar aberto. Ti-nham sido colocados avisos de borrasca ao longo da costa mexicana e as ruas da cidade estavam vazias. Pelas escotilhas do barco sobre-carregado, com o casco muito submerso na água, os homens podiam ver uma faixa de luz episódica quando a embarcação atravessou o porto e se fez a águas mais rijas do golfo do México.

Quando os rebeldes encontraram a força plena da tempestade, o barco balançou perigosamente contra as ondas e em breve os bens não essenciais eram lançados borda fora. Para tornar as coisas pio-res, os motores davam que fazer e estavam a meter água. O plano de Fidel era rumar à ponta ocidental de Cuba antes de fazer uma larga curva pelo Sul da ilha, passando ao largo das costas da Jamaica e do Grande Caimão. Dessa maneira, calculara, poderiam evitar navegar em águas cubanas durante quase toda a viagem, antes de fazerem uma rápida incursão à última hora até à ponta mais meridional da ilha, que faz uma saliência como uma cabeça de tubarão, e daí po-diam galgar até ao santuário nas montanhas que bordejam as praias do Sul de Cuba.

No entanto, mal tinham deixado a costa mexicana, os rebeldes quase embateram numa fragata da marinha mexicana. Afortunada-mente, da fragata não detectaram o Granma lá em baixo porque cho-via torrencialmente. Quando a costa ficou um pouco mais distante, Fidel considerou seguro acender as luzes do barco. Poucas horas de-pois, a despeito das vagas que continuavam a rebentar «como mon-tanhas» de encontro à embarcação, a tensão inicial da partida como que amainou e os homens a bordo começaram a cantar. Guevara juntou a voz ao hino nacional de Cuba como se fosse o seu, enquan-to gritos de «Viva la revolución!» e «Abajo la dictadura!» rasgavam a noite.

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Aí, subitamente, as vozes mergulharam no silêncio. Cientes de es-tarem sozinhos no vasto negrume do mar alto, os homens pararam, a olharem-se uns aos outros sob a chuva e a espuma das ondas, du-rante um momento breve mas indubitavelmente memorável. Talvez agora, que voltavam a ser um bando, depois de meses de isolamen-to em constrangidas casas clandestinas de recuo, se lembrassem de quem eram e de com quem agora estavam, enquanto navegavam na-quela escura faixa de água rumo ao desconhecido: uma viagem, uma guerra, a liberdade ou morte.

Entretanto, o pequeno barco continuava a ser fustigado. A chuva e a espuma caíam no tombadilho e parecia que o Granma poderia a qualquer momento mergulhar nas águas escuras. Alguém mandou que se ligassem as bombas de porão, acabando por se descobrir que não funcionavam bem; os homens começaram então a despejar a água a baldes. No meio desta nova confusão, Faustino Pérez, do círculo mais chegado a Fidel, procurou o líder, ocupado a baldear água, para sugerir que navegassem mais perto da costa. «Isto está perdido?», gritou para Fidel no meio da tempestade. Mas Fidel pa-receu não o ouvir.7

* * *

Na cidade de Santiago de Cuba, perto de onde o Granma deve-ria acostar, os membros do movimento revolucionário clandestino na ilha passaram à acção. Celia Sánchez, filha de um médico numa grande refinaria de açúcar cujas experiências em primeira mão lhe tinham dado ali um apurado sentido contra a injustiça que ele parti-lhou com os filhos, e Frank País, o filho de um pastor baptista e líder estudantil radical, estavam atarefados a executar os elementos finais do plano cuidadosamente traçado. Tinham recebido de Fidel o tele-grama cifrado «Livro encomendado esgotado» e os dois passaram a organizar um levantamento armado e uma greve para coincidirem com o desembarque do Granma.7 Franqui, Diary of the Cuban Revolution, pp. 168-169.

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O Presidente de Cuba, Fulgencio Batista y Salvidar, também foi informado. Castro e Batista tinham-se encontrado numerosas vezes quando Fidel era aspirante a político e, desde a viragem mais radical de Fidel, Batista manteve sob estreita vigilância o homem que to-dos reconheciam ser tão brilhante como era imprevisível. Batista há muito que andava a par dos planos de Castro, mas estava confiante em que qualquer tentativa de desembarcar um pequeno grupo de homens na ilha seria interceptada muito antes de chegarem à costa. Não haveria qualquer invasão de gangsters, tinha ele assegurado ao seu povo no jornal El Mundo, apenas três dias antes.8 O exército es-tava «alerta, competente e completamente capaz de enfrentar qual-quer insurreição que viesse a ocorrer».

O telegrama que Castro tinha enviado quando partiram dizia a País, Sánchez e aos seus homens que esperassem por Fidel antes da alvorada de 30 de Novembro. Assim, nessa manhã, quando as pes-soas estavam a acordar, a pequena força de País, armada de «espin-gardas, metralhadoras, granadas e cocktails Molotov», atacou pon-tos-chave em Santiago. Com o elemento surpresa a seu favor, cerca de 300 homens, em uniforme e braçadeiras pretas e vermelhas que indicavam a sua adesão ao movimento de Fidel, tomaram o controlo da estação de rádio. Durante a maior parte do dia, a cidade esteve fechada, com os habitantes a fecharem as suas lojas ou a conserva-rem-se em casa. E enquanto o exército e a polícia se mantinham nos seus quartéis, incertos quanto à situação, País tinha executado uma manobra de diversão perfeita para o desembarque de Castro.

Os homens de País esperaram todo esse dia, mantendo as suas po-sições, mas o Granma não fora visto em parte alguma. Quando a tar-de entrou no crepúsculo, as forças do Governo iniciaram o contra--ataque. Ao cair da noite, País sabia que tinha de bater em retirada. Na costa junto de Niquero, onde esperavam que Castro chegasse, Celia Sánchez havia também reunido cerca de 100 homens. Mas de novo, tendo mobilizado com êxito uma força rebelde considerável e esperado pela terra prometida, tiveram de retirar, quando os refor-

8 El Mundo, 22 de Novembro de 1956.