os prisioneiros - rubem fonseca

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    Fonseca

    OS PRISIONEIROSRubem Fonseca

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    Copyright 1963 Rubem FonsecaTodos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1998

    Coordenao da edio

    Srgio Augusto

    Reviso

    Andr Marinho

    Capa e fotografia

    Retina 78

    Texto estabelecido segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua

    Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    747p

    Fonseca, Rubem, 1925-Os prisioneiros / Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

    ISBN 978-85-220-1066-0

    1. Conto brasileiro. I. Ttulo.

    9-5047 CDD 86

    CDU 821.134.3(8

    Todos os direitos reservados AGIR EDITORA LTDA. uma empresa Ediouro Publicaes

    Rua Nova Jerusalm, 345 CEP 21042-235 Bonsucesso Rio de Janeiro RJtel.: (21) 3882-8200 fax: 3882-8212/8313

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    Somos prisioneiros de ns mesmos. Nunca se esqdisso, e de que no h fuga poss

    LAO TSE,Tao te ching, 600

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    e voc baixou esse livro de outro site que no for o Exilado [livrosdoexilado.org], saiba quesas pessoas de quem baixou apenas copiam material de l alm de enganar seus visitantes

    edindo doaes para fazer/postar seus ebooks.

    site do Exilado [livrosdoexilado.org] um dos poucos sites em lngua portuguesa que seeocupa em disponibilizar material de qualidade, fazer material prprio (criando ebooks) e ap

    utores iniciantes.

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    UMRIO

    evereiro ou maro

    uzentos e vinte e cinco gramas

    conformista incorrigvel

    eoria do consumo conspcuo

    enri

    urriculum vitae

    azela

    atureza-podre ou Franz Potocki e o mundo

    agente

    s prisioneiros

    inimigo

    streia consagradora (Srgio Augusto)

    endncias (Wilson Martins)

    autor

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    FEVEREIRO OU MAR

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    A condessa Bernstroa usava uma boina onde dependurava uma medalha do kaiser. Era elha, mas podia dizer que era uma mulher nova e dizia. Dizia: pe a mo aqui no meu peito omo duro. E o peito era duro, mais duro que os das meninas que eu conhecia. V minha pezia ela, como dura. Era uma perna redonda e forte, com dois costureiros salientes e slidos

    erdadeiro mistrio. Me explica esse mistrio, perguntava eu, bbado e agressivo. Esgrxplicava a condessa, fiz parte da equipe olmpica austraca de esgrima mas eu sabia que

    entia.Um miservel como eu no podia conhecer uma condessa, mesmo que ela fosse falsa; mas a verdadeira; e o conde era verdadeiro, to verdadeiro quanto o Bach que ele ouvia enquamava, por amor aos esquemas e ao dinheiro, o seu crime.

    Era de manh, no primeiro dia de carnaval. Ouvi dizer que certas pessoas vivem de acordom plano, sabem tudo o que vai acontecer com elas durante os dias, os meses, os anos. Parece

    banqueiros, os amanuenses de carreira, e outros homens organizados fazem isso. Eu eu vaela rua, olhando as mulheres. De manh no tem muita coisa para ver. Parei numa esquomprei uma pera, comi e comecei a ficar inquieto. Fui para a academia.

    Isso eu me lembro muito bem: comecei com um supino de noventa quilos, trs vezes oitho vai saltar, disse Fausto, parando de se olhar no espelho grande da parede e me espia

    nquanto somava os pesos da barra. Vou fazer quatro sries pro peito, de cavalo, e cinco paao, disse eu, srie de massa, menino, pra homem, vou inchar.

    E comecei a castigar o corpo, com dois minutos de intervalo entre uma srie e outra paorao deixar de bater forte; e eu poder me olhar no espelho e ver o progresso. E inchei: quardois de brao, medidos na fita mtrica.

    Ento Fausto explicou: eu vou vestido de melindrosa e mais o Slvio, e o Too, e o Rober

    Gomalina. Voc no fica bem de mulher, tua cara feia, voc vai na turma de choque, vocusso, Bebeto, Paredn, Futrica e o Joo. O povo cerca a gente pensando que somos bichas,trilamos com voz fina, quando eles quiserem tascar, a gente, e mais vocs, se for preciso, paldade pra jambrar e fazemos um carnaval de porrada pra todo lado. Vamos acabar com tudobloco de crioulo, no pau, mesmo, pra valer. Voc topa?

    Slvio j se vestia de melindrosa, pintava os lbios de batom. O ano passado, dizia ele, mupampas botou bilhetinho na minha mo, com telefone; quase tudo puta, mas tinha uma que

    ulher do seu bacana, andei com ela mais de seis meses, me deu um relgio de ouro.

    Ele passava, disse Russo, e virava a cabea de tudo quanto era mulher. No havia mulher

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    o olhasse o Slvio na rua. Ele devia ser artista de cinema.Como ? Voc topa?, insistiu Fausto.A essa altura o conde Bernstroff e o seu mordomo j deviam ter feito os planos para aq

    oite. Nem eu, nem a condessa sabamos de nada; eu nem mesmo sabia se iria sair quebranra de pessoas que no conhecia. o lado ruim do sujeito no ser banqueiro ou amanuensinistrio da Fazenda.

    De tarde, sbado, a cidade ainda no estava animada. As cinco melindrosas requebravam

    ntusiasmo e sem graa. Os blocos na cidade se formam assim: uma bateria de alguns surrias caixas e tamborins e s vezes uma cuca saem batendo pela rua, os sujos vo chegantando, cantando, se avolumando e o bloco cresce.

    Surgiu uma bateria assim na nossa frente. Seis sujeitos descalos, caminhando lentamnquanto batiam no couro. Moreno, meu moreno gostoso, me empresta teu tambor, disse Slvioomens fizeram uma pequena parada e pensaram, e mudaram o pensamento, a mo de Sgarrou o pescoo de um deles, me d esse tambor seu filho da puta. Como um raio as melindrram em cima da bateria. S no tapa, s no tapa!, gritava Slvio, que eles so fracos. Me

    sim um ficou no cho, cado de costas, um pequeno tamborim na mo fechada. Um tapa do Srebentava porta de apartamento de sala e quarto conjugados.Tnhamos vrios tambores, que batamos sem ritmo. A cuca, como ningum sabia tocar, Ru

    rebentou com um soco. Um soco s, bem no meio, fez a coisa em pedaos. Depois Russo anzendo que a mo dele tinha inchado de bater na cara de um malandro tinhoso na praa Onze

    o sei, pois no fui para a praa Onze, depois daquilo que aconteceu no aterro eu me desligueupo e acabei encontrando a condessa, mas acho que a mo dele inchou foi de arrebentar a c

    ois cara de malandro no incha a mo de ningum.Uma mulher tinha chegado e dito, me leva com vocs, nunca vi tanto homem bonito junto;

    garrava na gente, metia a unha no brao da gente. Fomos para o aterro e ela dizia, me fode, o me maltrata, com meiguice, como se estivesse falando para o namorado; e isso ela falou parceiro, e o quarto sujeito que andou com ela; mas para mim, estendendo a mo de unhas suntadas de vermelho, ela disse, homem bonito, meu bem e riu, um riso limpo; eu no pude

    ada, e vesti a mulher, joguei fora o lana-perfume que ela cheirava, e disse para todos ouvirhega, e olhei nos olhos azuis pintados de Slvio e disse para ele, baixo, a voz l do fundo, ruimhega. Russo segurou Slvio com fora, o trceps saltando como se fosse uma bigorna. Ele vai lmulher, disse Slvio, puxando peito; mas ficou nisso; levei a mulher.

    Fui andando com a mulher pela beira-mar. No princpio ela cantava, depois calou a boca. Eu disse para ela, agora voc vai para casa, ouviu, se eu te encontrar zanzando por a eu te qucornos, entendeu?, vou te seguir, se voc no fizer o que eu estou mandando voc va

    repender e agarrei o brao dela com toda a fora, de maneira que ficasse doendo os trs e carnaval e mais uma semana de quebra. Ela gemeu e disse que sim, e foi andando, eu seguia direo do bonde, atravessou a rua, pegou o bonde que vinha vazio de volta da cidade, oara mim, eu fiz cara feia, o bonde foi embora, ela arriada num banco, um bucho.

    Voltei para a praia, com vontade de ir para casa, mas no para a minha casa, pois a minha a um quarto e no meu quarto no tinha ningum, s eu mesmo. E fui andando, andando, atrave

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    rua, comeou a cair uma chuvinha e onde eu estava no havia carnaval, s edifcios gr-finlenciosos.

    Foi ento que eu conheci a condessa. Ela chegou na janela gritando e eu no sabia que elaondessa nem nada. Gritava, uma palavra que era socorro, mas soava esquisita. Corri padifcio, a portaria estava vazia: voltei para a rua mas no tinha mais ningum na janela; calcundar e subi pelo elevador.

    Era um edifcio bacana, cheio de espelhos. O elevador parou, eu toquei a campainha.

    jeito de roupa a rigor abriu a porta, sim, o que o senhor deseja?, me olhando com ar supeem uma mulher a na janela pedindo socorro, disse eu. Ele me olhou como se eu tivesse ditoalavro socorro?, aqui? Eu insisti, aqui sim, da sua casa. Sou o mordomo, falou ele. Aqou a minha autoridade, eu nunca tinha visto um mordomo em minha vida. O senhor est engansse ele e eu j me dispunha a ir embora quando surgiu a condessa, com um vestido que na oca

    u pensei que era um vestido de baile mas que depois eu vi que era roupa de dormir. Fui eu edi socorro, entre, por favor, entre.

    Foi me levando pela mo e dizendo, o senhor vai me fazer um grande favor, revistar essa c uma pessoa escondida aqui dentro que quer o meu mal, o senhor no tenha medo, no, to fto moo, vou cham-lo de voc. Eu sou a condessa Bernstroff.

    Comecei a revistar a casa. Eram sales enormes, cheios de luzes, pianos, quadros nas parestres, mesinhas e jarras e jarres e estatuetas e sofs e poltronas enormes onde cabiam

    essoas. No vi ningum, at que, numa sala menor, onde uma vitrola tocava msica muito altoomem de casaco de veludo levantou-se quando abri a porta e disse calmamente, colocandoonculo no olho, boa noite.

    Boa noite, disse eu. Conde Bernstroff, disse ele, estendendo a mo. Depois de me olharouco ele deu um sorriso que no era para mim, que era para ele mesmo. Com licena, disse

    ach me transforma num egosta, e me virou as costas e sentou-se numa poltrona, a cabea apoa mo.

    Para falar com toda franqueza eu fiquei confuso, agora mesmo ainda estou confuso, poqueci muitas coisas, a cara do mordomo, a medalha do kaiser, o nome da amiga da condessa,

    uem deitei na cama, juntamente com a condessa, no apartamento do Copacabana Palace. Almais, antes de sairmos, ela me deu uma garrafa cheia de Canadian Club que eu bebi quase

    entro do carro quando ia para Copacabana, me sentindo como um lorde: mas saltei direitinhrro e subimos para o apartamento e tenho a impresso que ns trs nos divertimos bastant

    uarto da amiga da condessa, mas dessa parte eu me esqueci completamente.Acordei com uma dor de cabea danada e duas mulheres na cama. A condessa queria ir sa me mostrar um bicho que queria morder ela e que tinha invadido a sua casa e que ela t

    ancado dentro do piano de cauda. Voltamos de txi, nem sei que horas eram pois estava sem fotanto podiam ser dez como trs horas da tarde. Ela foi direto para o piano e no encontrou nu devia ter mostrado ontem, dizia ela, agora eles j o tiraram daqui, eles so muito espertosablicos. Que bicho era esse, perguntei, uma dor de cabea terrvel nem me deixava pereito, mal podia abrir os olhos. uma espcie de barata grande, disse a condessa, com um fe

    e escorpio, dois olhos salientes e pernas de besouro. Eu no conseguia imaginar um bicho as

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    disse para ela. A condessa sentou-se numa das cinquenta mesinhas que tinha na casa e desenhocho para mim, uma coisa muito esquisita, num papel de seda azul, que eu dobrei e guarde

    olso e perdi. J perdi muita coisa em minha vida mas a coisa que eu mais lamento ter perdiddesenho do bicho que a condessa fez e fico triste s em pensar nisso.

    A condessa fazia a minha barba quando o conde apareceu, de monculo e dizendo bom-diondessa fazia a barba melhor do que qualquer barbeiro; uma navalha afiada que roava a carente como se fosse uma esponja, e depois ela fez massagem no meu rosto com um lq

    heiroso; e massagem no meu trapzio e nos meus deltoides melhor que o Pedro Vaselinaademia. O conde olhava isso tudo com um certo desinteresse, dizendo, ela deve simpatizar mom voc para lhe fazer a barba, h anos que ela no faz a minha. A isso a condessa responritada: voc sabe muito bem por qu; o conde encolheu os ombros como se no soubesse de foi saindo e da porta disse para mim, gostaria de lhe falar depois.

    Quando o conde saiu a condessa me disse: ele quer compr-lo, ele compra todo mundnheiro dele est acabando, mas ele ainda tem algum, muito pouco, e isso ainda o deixa m

    esesperado, pois o tempo est passando e eu ainda no morri e se eu no morrer ele ficaada, pois eu no lhe dou mais dinheiro; e ele j est velho, quantos anos voc pensa que ele e podia ser meu pai, e daqui a pouco ele j no pode mais beber, fica surdo e no pode osica; o tempo, depois de mim, o maior inimigo que ele tem; j viu como ele me olha? um io de peixe caador, esperando um momento para liquidar sem misericrdia a sua presa; vntende, um dia eles me jogam da janela, ou me do uma injeo quando eu estiver dorminepois ningum mais se lembrar de mim e ele pega o meu dinheiro todo e volta para a terra ara ver a primavera e as flores no campo que ele tanto me pediu, com lgrimas nos olhos, ver; lgrimas fingidas, eu sei, seu lbio nem tremia; e eu podia ir embora, larg-lo sozinho,

    ada, nem mesmo oportunidade para os seus planos sinistros, um pobre-diabo; acho at que e

    t comeando a ficar surdo, as msicas que ele ouve ele sabe de cor e por isso talvez nem teercebido que est ficando surdo e a condessa foi por a afora dizendo que alguma coisontecer naqueles dias e que ela estava muito horrorizada e que nunca tinha se sentido to exci

    m toda a sua vida, nem mesmo quando fora amante do prncipe Paravicini, em Roma.Fui procurar o conde enquanto a condessa tomava banho. Ele me perguntou muito delicado,

    reto, como quem quer ter uma conversa curta, onde eu ganhava o meu dinheiro. Eu expliquei e, tambm curto, que para viver no preciso muito dinheiro; que o meu dinheiro eu ganhava ali. Ele punha e tirava o monculo, olhando pela janela. Continuei: na academia eu fao gin

    e graa e ajudo o Joo, que o dono, que ainda me d um dinheirinho por conta; vendo sangueanco de sangue, no muito para no atrapalhar a ginstica, mas sangue bem-pago e o dia emeixar de fazer ginstica vou vender mais e talvez viver s disso, ou principalmente disso. Nora o conde ficou muito interessado e quis saber quantos gramas eu tirava, se eu no ficava toual era o meu tipo de sangue e outras coisas. Depois o conde disse que tinha uma proposta mteressante para me fazer e que se eu aceitasse eu nunca mais precisaria vender sangue, a no

    ue eu j estivesse viciado nisso, o que ele compreendia, pois respeitava todos os vcios.No quis ouvir a proposta do conde, no deixei que ele a fizesse; afinal eu tinha dormido c

    ondessa, ficava feio me passar para o outro lado. Disse para ele, nada que o senhor tenha para

    ar me interessa. Tenho a impresso que ele ficou magoado com o que eu disse, pois deixou de

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    ncarar e ficou olhando pela janela, um longo silncio que me deixou inquieto. Por isso, contino vou ajudar o senhor a fazer nenhum mal condessa, no conte comigo para isso. Mas comxclamou ele, segurando o monculo delicadamente na ponta dos dedos como se fosse uma has eu s quero o bem dela, eu quero ajud-la, ela precisa de mim, e tambm do senhor, deixe

    xplicar tudo, parece que uma grande confuso est ocorrendo, deixe-me explicar, por favor.No deixei. Fui-me embora. No quis explicaes. Afinal, elas de nada serviriam.

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    DUZENTOS E VINTE E CINCO GRAM

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    Na sala grande dois homens, ainda jovens, sentados, esperando. Estava um em cada cantla e no se olhavam, como se um temesse que o outro rompesse o seu isolamento.

    Vigiavam uma das portas. A outra que tinha na sala era a do elevador; no painel em cima eseso o nmero 1. O elevador tambm esperava.

    Isso durou um longo tempo o silncio e a absoluta imobilidade dos homens; at que um derificou, sem virar a cabea, que a luz do painel comeou a correr para a direita, 2 3 4

    porta do elevador abriu e surgiu um terceiro homem, tambm jovem, que caminhou at o cea sala e parou indeciso. Os dois homens sentados no tomaram conhecimento da sua presenue acabara de chegar correu os olhos pela sala.

    No h ningum para atender?, perguntou. Os outros dois no responderam.Ele insistiu: Tem que haver algum, e comeou a andar pela sala impacientemente.

    arece um cemitrio; ao dizer isso parou momentaneamente. Os outros dois continuaramlncio, imveis, como se fossem de pedra. O que havia chegado por ltimo comeou a balmas.

    Atendendo ao seu chamado, um homem de avental branco abriu a porta e perguntou:Sim?Os trs homens olharam-no. O ltimo a chegar disse:Eu quero falar com o diretor.Ele no est.O legista est?Qual deles? Temos vrios legistas, disse o homem de avental branco.O que est fazendo a autpsia.

    Que autpsia? Umas quatro autpsias vo ser feitas hoje, respondeu o homem de aveanco.A autpsia da dona Elza Wierck, disse o visitante em voz baixa.Os outros dois olharam-no surpreendidos.Vou ver se ele pode falar com o senhor.A porta fechou-se e os trs ficaram sozinhos.Elza era sua parenta?, perguntou um deles.Eu tambm vim saber de Elza, disse o outro.

    Parece que ns trs viemos por causa de Elza, disse o ltimo. Eu pensava que era o

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    o nico, ahah, amigo de Elza. Ela era muito expansiva e alegre: eu sabia que havia, possoanco? outros, mas, no me importava. Alm do mais, tinha o seu trabalho, no podia nha tempo para laos mais ntimos. S pensava a srio mesmo na sua indstria.

    Indstria?Eixos de manivela.Eu fabrico soda custica, disse um deles. estranho, disse outro.

    O qu?O fato de sermos os trs, amigos, hum, ntimos, de Elza. Eu fico um pouco chocado com

    bem? Chocado no, surpreendido. Vocs no ficam?Antes que os outros respondessem, continuou:O meu negcio vidro plano; duplicamos a nossa produo no ltimo semestre. Esta

    zendo um vidro melhor do que o belga.Os trs olharam-se respeitosamente: eram homens jovens, irradiando segurana e suce

    ertenciam ao mesmo mundo.

    Nesse instante chegou o legista.Boa tarde. Em que posso servi-los?Ns somos amigos, ramos amigos de dona Elza Wierck, a moa que foi, que foi Lamentvel, disse o legista, lamentvel. Pobre moa! Prenderam o tarado que a matou,

    enderam? Era o namorado, no era?Ns ramos amigos dela.Ela no tem parentes?, perguntou o legista.No sei, respondeu um dos jovens senhores. Acho que no, disse outro.

    Ela era sua, creio que os parentes esto na Europa, acrescentou o terceiro.Ah! ela era sua, disse o legista, esfregando as mos como se estivesse muito satisfeito

    uvir aquilo. Uma linda mulher, continuou, pode-se ver, mesmo agora.O senhor j fez a autpsia?No, no, ia inici-la quando me chamaram.Ns viemos aqui J sei, cortou o legista, os senhores querem assistir autpsia.Os trs homens olharam-no como se estivessem assombrados com aquela sugesto. M

    gista no pareceu notar, pois disse:No sei se os trs poderiam entrar; isso muito irregular.Bem, disse algum, no h necessidade; se no pode, no pode no vamos rompe

    gulamentos.Novamente o legista deixou de notar o alvio estampado no rosto dos trs homens. Ns sem

    zemos uma exceo para os parentes, disse.No somos parentes.A pobre moa no tem parentes no pas, os senhores mesmo disseram. Coitada. Os senh

    o como se fossem seus parentes; afinal, so amigos. Eu no sou daquele tipo de funcion

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    urocrtico escravo dos regulamentos. Sou um mdico vejo o lado humano das coisas; para regulamentos no podem ser obedecidos cegamente. Eu lhes digo o que vou fazer: permiti

    ntrada de um dos senhores, para que assista a esta tarefa, que, infelizmente, tem que ser execut na lei.

    Mas necessrio?Imprescindvel, disse o legista. O auto de exame cadavrico pea essencial do proce

    autpsia tem que ser feita.

    Eu no perguntava isso, um dos homens comeou, mas o legista no ouviu e continuou: da lei. da lei. Qual dos trs ento? preciso coragem.Os trs homens, que comeavam a falar, silenciaram abruptamente.Qual dos trs? Ela est esperando.Qualquer um de ns, disse um deles.Decidam, disse o legista.Os trs olharam-no com temor.Ento?

    Silncio.Eu vou, disse um deles, encarando os outros dois, que desviaram os olhos.Chegaram ao local da autpsia. Deitada numa mesa de mrmore estava uma mulher vestid

    ia, blusa de seda estampada, sem sapatos. Sua cabea apoiava-se num toco de pau com eia-lua onde se inseria a nuca. Perto da mesa estava um enfermeiro. Alm, sentado numa m

    m escriturrio.Primeiro temos que tirar a roupa dela, disse o legista.Tiraram a saia, a blusa, as peas ntimas.

    Uma saia de que material esse? Tergal? de tergal, uma blusa de seda estampada, e nilon, uma cala de nilon. Temos que tomar nota de tudo, disse o legista olhando pacriturrio que escrevia, para o laudo. O laudo tem que ser completo.

    A mulher agora estava completamente nua na mesa de mrmore.O homem queria mesmo matar, disse o legista, olhando o corpo, profissionalmente. V

    uantas facadas. Os ferimentos, como se fossem desenhos, espalhavam-se pelo corpo.Lavaram o corpo. Uma gua avermelhada descia pela calha que rodeava a mesa e ia s

    epositada num recipiente no cho. O corpo ficou limpo, cor de mrmore.

    Com um estilete graduado, o legista comeou a medir os ferimentos. Um com trs centma face externa do tero superior do brao esquerdo. O escriturrio tomava nota. Um na rexilar esquerda, dois centmetros e meio, perfurante. Dois na face interna hemitorcia esqueda um com quatro centmetros. O legista enfiava o estilete nos ferimentos e ol

    uidadosamente as marcas do instrumento. Parece que estou matando-a novamente, no parecerguntou sem olhar o estranho ao seu lado.

    O corpo da mulher foi virado e revirado, pesquisado. Era um corpo longo, forte, de sequenos. Os cabelos do pbis eram claros e raros. A boca estava aberta, os dentes da fr

    parecendo entre os lbios verde-roxos; um rosto duro.

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    Voc aguenta?, perguntou o legista. Um sorriso leve perpassou pelos seus lbios. Afoc era amigo dela

    Cuidadosamente o enfermeiro repartiu o cabelo da mulher.Enquanto isso, o legista, num gesto longo, firme e contnuo, com o bisturi cortou o corpo

    ndo trao longitudinal, da garganta regio pubiana.A carne do peito foi puxada violentamente para os lados, desprendida dos ossos, deixando-

    ostra.

    Depois cose-se tudo, explicou o legista, a reconstituio perfeita. A linha aparecaro.

    O legista apanhou uma tesoura, como essa de cortar rosas, um pouco maior. Costetomo, de, mostrando o instrumento. Como o nome indica, serve para cortar costelas.

    Com o costetomo o legista iniciou o seu trabalho. Os ossos eram partidos com um som pareceram os pulmes, o corao.

    O enfermeiro levantou a cabea da mulher e com o bisturi cortou o couro cabeludo na basnio; enfiou os dedos da mo direita na fenda que fizera e com um golpe rpido arrancou o c

    beludo, que se soltou do crnio rangendo, como papelo colado se desprendendo de uma parO crnio nu parecia um enorme ovo amarelo. Agora estamos preparados, disse o legista.Comearemos pela cabea, como manda a boa tcnica.Com um serrote, o enfermeiro comeou a serrar o crnio.Ns antes tnhamos uma serra eltrica, disse o legista. Mas no havia jeito do enferm

    abalhar direito com ela: um dia encrencou, a roda dentilhada se desprendeu e saiu rodando poiu pela porta, desceu as escadas, eh eh! O enfermeiro olhou para o legista que continuou: so usamos ainda o serrote. rudimentar, reconheo, porm prtico.

    A calota craniana foi completamente serrada. De dentro foi retirada uma massa alabastrina, paca medusa: Encfalo um quilo, duzentos e setenta gramas, pesou o legista numa balbre uma mesa prxima.

    De dentro do corpo os rgos eram tirados e atirados na balana.Fgado um quilo e cem gramas. Ela no bebia, certamente; tivemos um aqui, outro dia,

    ois quilos e tanto, hein?, disse o legista para o enfermeiro.Com a mo enluvada, o legista agarrou o pulmo e tentou arranc-lo de um s golpe.

    onseguiu da primeira vez. Tentou com as duas mos e conseguiu.

    Transfixado o esquerdo no hilo, no lobo superior e inferior; o direito no pice.O legista curvou-se sobre o baixo-ventre da mulher. Arrancou outro rgo: tero pequvazio. Vazio, repetiu ele, olhando o homem ao seu lado.

    Enquanto isso, com uma concha, o enfermeiro comeou a retirar o sangue da cavidade tora vert-lo dentro de vasilhames de vidro graduado, dizendo: Seiscentos e cinquenta centm

    bicos na cavidade pleural direita: quatrocentos centmetros cbicos na cavidade plequerda.

    Morreu de hemorragia interna e externa. A vida de toda carne o sangue, est nas escrituoi atingida a subclave esquerda.

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    Nas mos enluvadas o legista segurou o corao da mulher. Parecia uma pera; escuro.Duzentos e vinte e cinco gramas, disse ele, pesando na balana. No foi atingido.Os rgos foram todos jogados de volta, para dentro do corpo.Com uma agulha curva, o enfermeiro coseu o imenso corte. O encfalo posto dentro do cr

    couro cabeludo puxado para trs e cosido tambm. O rosto da mulher surgiu novamente, obertos, boca aberta.

    Acabou, disse o legista.

    Fiquei at o fim, disse o homem que assitia.Ficou, ficou sim, disse o legista, tentando disfarar o desapontamento de sua voz.Agora vou-me embora, continuou o homem, falando baixo.Vai, vai, disse o legista, com certo desalento.Os dois olharam-se nos olhos, com um sentimento escuro, viscoso, mau.O homem comeou a sair da sala de autpsias. Os dentes cerrados, s pensava numa co

    no posso correr, no posso correr; andava lentamente, rgido, como um soldado de regimgls desfilando.

    Quando chegou na sala de espera, a mesma estava vazia. Foram embora, murmurou eentes, foram embora.

    Desceu pelo elevador.Na porta da rua o sol bateu em cheio no seu rosto. Ele fechou os olhos e cobriu-os com as

    os. Disse: putaquepariu, ainda com as mos no rosto. Abriu a boca como se estivesse lta de ar. Isso por poucos segundos. Logo em seguida descobriu o rosto, olhou para os lados

    er se algum o observava e comps sua fisionomia.

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    O CONFORMISTA INCORRIGVA sociedade mentalmente sadia do grande Fro

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    Uma sala. Na parede um retrato de Erich Fromm e outro de Norman Mailer. Em torno de

    uma grande mesa oval: um jovem chamado Amadeu; um sociopsiclogo chamado dr

    Levy; um psicanalista chamado dr. Prom; uma psicotcnica chamada dra. Kreuzer.

    DR. LEVY: Devemos retir-lo da sala? Ou discutimos o caso em sua presena?DRA. KREUZER: Gostaria de ouvir a opinio do dr. Prom.

    DR. PROM: Ele pode ficar. Antigamente isso no se fazia por simples ignorncia.DR. LEVY: Muito bem. (Para Amadeu)Amadeu, ns vamos discutir, em sua presena, o

    oblema. Peo a sua cooperao quando lhe forem dirigidas perguntas.AMADEU: Mas que problema? Dr. Levy, eu gostaria de ir-me embora.DR. LEVY: Voc no quer assistir?AMADEU: Ir embora do Instituto. J estou aqui h quinze dias. O senhor disse que eu s fic

    qui quinze dias no mximo.DR. LEVY: exatamente isso que ns vamos discutir. Se voc pode ir embora, ou se tem

    car.AMADEU: Mas dr. Levy, quando eu vim para c no me foi dito que a minha sada depend

    e qualquer discusso.DR. LEVY: a sua cooperao que eu estou pedindo, Amadeu.AMADEU: (Depois de pensar um pouco)Est bem.DR. PROM: (Escrevendo num bloco e murmurando) Tendncia compulsiva par

    ooperao.DR. LEVY: Acho que no preciso fazer um histrico minucioso do caso. Os senhores

    articipado dos estudos feitos com este jovem que , digamos, um remanescente tpicoonformismo, cuja erradicao o principal objetivo do nosso Instituto. Outros rgos trabalm estreita cooperao conosco; nossos companheiros do Icontrop esto progredindo muito emrefa de acabar com a influncia perniciosa dos jornais, dos livros, dos filmes, da televisoma, de todo o aparato cultural da sociedade antiga que, at h pouco, arrastava as pessoonformidade.

    DRA. KREUZER: Alm de outras distores.DR. LEVY: (Continuando) O Iconidrex acaba de elaborar a Nova Ideologia do Sexo

    oscrevendo a submisso masoquista e a dominao sdica.

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    DRA. KREUZER: Estabelecendo o amor sem iluses.DR. PROM: Amor sem narcisismo.DRA. KREUZER: Est provado que jamais houve um casamento realmente feliz, onde o am

    omo disse Mailer, fosse uma relao produtiva e criadora, sem egosmo, sem impostura, ntindependente.

    DR. LEVY: (Para Amadeu)Mas a base da Revoluo preconizada por Fromm e Mailer aontra o Conformismo; um perigoso tipo de autoridade que chegou ao seu esplendor em me

    o nosso sculo.DR. PROM: Substituindo o pai, o mestre, o rei, o deus, a lei.DR. LEVY: Exatamente. Como disse o grande Fromm, um tipo de autoridade ann

    visvel, alienada; em que ningum dava ordens nenhuma pessoa, nenhuma ideia, nenhumoral mas todos se submetiam. A qu?

    DRA. KREUZER: Conformidade!DR. PROM: A essa coisa inqua e asfixiante que era a comunis opinio.DR. LEVY: (Sempre olhando para Amadeu, que atento segue suas palavras) Exatam

    odos queriamser iguais, e toda cultura era influenciada por isso. Vejam por exempquitetura de Le Corbusier, Gropius, Niemeyer e outros alienados, que se espalhou como

    pidemia pelo mundo, com as suas paredes de vidro e seus playgrounds coletivos condicionandoradores a um mimetismo obsessivo. A pessoa no precisava sair da sua casa para ver ousta, nas coisas mais ntimas.

    DRA. KREUZER: Soube hoje que as ltimas casas e apartamentos desse tipo esto sestrudos pelo Icontrab.

    TODOS: Excelente, excelente!

    DR. LEVY: O mesmo ocorria com o que se denominava a Moda. Todas as pessoas se vesual na Finlndia, em Gana, no Marrocos e no Curdisto. Pura imitao.DRA. KREUZER: Agora as pessoas no podem mais se vestir igual. A no ser os mem

    niformizados dos institutos, claro.DR. LEVY: claro. Cada pessoa se veste como quer, desde que no crie um padro g

    ouve poca, por exemplo, em que meia dzia de homossexuais neurticos e misginos ditaoda feminina em todo o mundo.

    DRA. KREUZER: D pena ver as fotografias das nossas mes.

    DR. PROM: Vamos ao caso, dr. Levy.DR. LEVY: Estou sendo prolixo? O dr. Prom sempre me acusa de prolixo. Mas neste momo busco outra coisa seno esclarecer Amadeu.

    DR. PROM: No o estou acusando de prolixo, dr. Levy. Mas o nosso prazo termina amanhmos ainda que elaborar o Relatrio Final, que no ser curto, posso lhes assegurar.

    DR. LEVY: Eu sei, eu sei. Nosso objetivo hoje decidir, finalmente, se Amadeu deontinuar o seu tratamento no Instituto ou se poder sair.

    DR. PROM: Eu gostaria de fazer a Amadeu uma pergunta que lhe fiz em nossa ltima sesVira-se para Amadeu)Amadeu pense bem antes de responder , qual a coisa mais import

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    ue uma pessoa pode aprender?AMADEU: A coisa mais importante? DR. PROM: Sim, a coisa mais importante.AMADEU: A coisa mais importante aprender a conviver com outras pessoas.DR. PROM: (Olhando paraos outros com ar de triunfo)Por qu?AMADEU: Para todos gostarem da gente.DR. PROM: E por que bom todos gostarem de voc?AMADEU: Porque eu me sinto feliz com isso.

    DRA. KREUZER: (Chocada) Ele est dizendo a verdade, ele realmente se sente feliz so?

    DR. PROM: Na narcoanlise ele me disse a mesma coisa. Alguns conformistas, conqureditem ser do seu dever a Conformidade, a Fuso com o Grupo, tm a sensao de estaustrando outros impulsos. Amadeu, no. Ele realmente feliz assim.

    DRA. KREUZER: Que horror! Essa vida de concesses, essa vida exterior no passa de da de aprisionamento, vazia e depressiva. Como pode ele ser feliz?

    DR. LEVY: Ele pensa que feliz; ele se sente feliz, mas tudo no passa de uma terrvel ilu

    as essa iluso a sua realidade. Um caso realmente desagradvel.DR. PROM: Dr. Levy, por ser Amadeu um caso difcil que as melhores cabeas do Insti

    ram chamadas para estud-lo.DRA. KREUZER: Ele altamente perigoso. Enquanto houver indivduos como ele, ns n

    remos a sociedade perfeita do grande Fromm.DR. LEVY: No fcil estabelecer o sentimento de Identidade Individual numa sociedade

    pouco dominada pela Conformidade Gregria. Ainda existem muitos como ele espalhados undo; essa , infelizmente, uma verdade que temos de enfrentar.

    DRA. KREUZER: Precisamos acabar com ele. O Homem precisa ser livre, sadio.DR. LEVY: No se preocupe, dra. Kreuzer. No estamos longe desse dia, em que o hom

    er o mundo, as outras pessoas e o prprio Eu, como eles verdadeiramente so: sem que desejmores deformem a realidade.

    AMADEU: (Inesperadamente)Eu no tenho temores.DR. PROM: Como no? Voc tem medo de ser diferente.AMADEU: (Tranquilo)No tenho no.DR. PROM: Vejam, vejam, a segurana tpica do alienado. Ele no sabe, como disse o gr

    omm (sublinhando as palavras):que o homem livre por necessidade inseguro: o homemensa por necessidade indeciso.

    AMADEU: Eu no tenho temores.DR. PROM: Tem sim. (Dando um soco na mesa)J disse. Voc tem medo de ser diferente.AMADEU: No tenho, no.DR. PROM: Tem. (Para os outros) E essa a verdadeira causa das suas desavergonh

    clinaes gregrias.DR. LEVY: Exato. por isso que ele aceita, consciente e plenamente, qualquer forma

    ustamento.

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    DR. PROM: Tornando a nossa tarefa difcil. Pois podemos, aparentemente, desajust-lo, a verdade sua extroverso o ajustar novamente em pouco tempo.

    DRA. KREUZER: Quer dizer que ele um conformista incorrigvel?DR. LEVY: Isso no existe. Se aceitarmos isso, jogamos por terra a nossa crena na N

    ociedade, a sociedade frommista, onde no existem condies para o surgimento do Conformilienado. A nossa tarefa faz-lo sentir-se inseguro e, ao mesmo tempo, capaz de tolersegurana, sem pnico. E isso ainda no conseguimos.

    DR. PROM: Ele tem que continuar aqui. Sua periculosidade muito alta. Se sair, poder cleos gregrios e conformistas, espalhar seu exemplo deletrio. Ele no pode sair.

    DR. LEVY: Concordo. Dra. Kreuzer?DRA. KREUZER: Concordo.AMADEU: (Que acompanhava os debates com ateno)No posso sair? Por qu? Exijo

    xplicao lgica.DR. LEVY: Muito simples Voc DR. PROM: (Bruscamente)No lhe explique coisa alguma. Ele tem que encontrar, na soli

    resposta.AMADEU: (Decidido)Eu vou-me embora.

    (O dr. Levy toca a campainha. Entram duas pessoas que seguram Amadeu e retiram-no

    la. Dr. Prom, dra. Kreuzer e o dr. Levy, de p, repetem, em coro, palavras do velho Manifevolucionrio de Fromm e Mailer)

    CORO: Contra o Matriarcado!Contra a Filiarquia!Contra a Extroverso!Contra o Congregacionismo!Contra a Conformidade Autmata!

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    TEORIA DO CONSUMO CONSPCU

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    Estvamos danando abraados, de frente, da maneira convencional. Ela no queria brincaordo, nem queria outra sorte de abraos, nem queria tirar a mscara. Eu gritava no meiarulho, pedia no seu ouvido: Tira a mscara, meu bem. Ela nada. Ou melhor, sorria, os deais lindos do mundo, de boca aberta. Eu via os molares l no fundo.

    Danamos a noite toda. No princpio, fiquei muito excitado. Depois, fiquei cansado somas continuamos abraados, bem apertados. Eu s via o seu queixo, que era branco e redondo

    oca. Da boca para cima nada. Nem os olhos a mscara deixava ver direito.Me contaram uma histria de um par mascarado que danava no carnaval. Ele estava vestidchorro e tinha uma mscara de gente; ela estava vestida de gente e tinha uma mscara de graram as mscaras ao mesmo tempo. Debaixo da mscara de gata estava a cara de uma mu

    ebaixo da mscara de gente estava a cara de um cachorro; o que tinha corpo de cachorrochorro mesmo: as aparncias no enganam.

    Era o ltimo dia de carnaval e todo carnaval eu sempre fora com uma mulher diferente pama. J na tera-feira, mais um pouco o carnaval acabava e eu no teria mantido a tradio

    ma espcie de superstio como a desses sujeitos que todo ano vo igreja dos Barbadinhosmia que algo malvolo ocorresse comigo se eu deixasse de cumprir aquele ritual.

    meia-noite comearam a cantar no salo, com o mais genuno dos masoquismos, hojmanh no tem mais.

    Essa advertncia, de que era aquele o ltimo dia, me deixou muito preocupado. Continuvaanando, ela rindo a trs por dois, jogando a cabea para trs, boca aberta, e eu olhando os olares; cheio de medo, pois era hoje s, amanh no tinha mais.Nossa conversa era feita de olhares e apertos, pois o barulho da orquestra, dos gritos e ap

    o permitia que conversssemos. De vez em quando apertava a mo dela e ela retribua; pren

    erna dela entre as minhas, ou a minha entre as dela, e novamente sentia a receptividade. Beijao pescoo, na orelha; ela raspava na minha nuca uma unha pontuda e afiada como se fosse ca.

    O tempo foi passando, passando e acabou. J era de manh. Samos do baile e, como era vesol iluminava todo mundo. Todos estavam feios, suados, sujos. Aparecia em certas caras a b

    o lbio fino engrossado de batom; peitos postios saam de posio; sapatos altos quebravalto e algumas mulheres viravam ans de repente; sovacos fediam; dedos dos ps e calcanhrgiam calosos e imundos.

    S a minha amiga continuava bonita e fresca como se fosse uma rosa. E de mscara.

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    J dia, disse para ela. Voc j pode tirar a mscara.Voc quer mesmo que eu tire?, perguntou ela.amos andando pela rua, ss. As outras pessoas tinham desaparecido.J dia, repeti, achando boa a razo que eu apresentava. Alm do mais, o carnaval acab

    sse com certa tristeza. Hoje quarta-feira de cinzas.Voc quer mesmo que eu tire?, tornou ela.J dia, insisti.

    Continuamos andando. Eu de mau humor.Vamos para a minha casa?, perguntei, urgente e sem esperana.No posso tirar a mscara, disse ela.No tira, disse eu, decididamente. Mas estava apreensivo. No havia tempo a per

    Vamos.Como ela no respondesse, eu a peguei por um brao e a levei para minha casa.Quando entramos ela disse:No posso.Tirar a mscara?Quem falou em tirar a mscara?, disse ela, botando as mos no rosto e dando um passo

    s.Eu no falei em tirar a mscara, defendi-me. Foi voc, dizendo no posso.Eu no falei na mscara, protestou ela. No posso outra coisa.Eu me sentei e tirei os sapatos.Ns dois estamos perdendo o nosso tempo, disse eu. melhor voc ir embora.Voc no entende, disse ela. Num gesto dramtico, tirou a mscara. No suporto o

    ariz, disse com desafio na voz. Era um nariz muito bonito, arrebitado.O seu nariz muito bonito, disse eu. Voc toda muito bonita.No sou no, disse ela, com jeito de quem ia chorar. Vocs homens so todos iguais.Est certo. Somos todos iguais. E da?O meu problema no ter duzentos contos. Voc me d duzentos contos?Duzentos contos?Voc me d duzentos contos?, arguiu ela, como se estivesse me pondo prova. De b

    chada, me olhava fixamente.Eu me levantei e vi meu talo de cheques do banco. Tinha duzentos justos.Dou, disse. Fiz um cheque e entreguei a ela.Depois eu pago, disse ela.No precisa, disse eu olhando o relgio. Hoje j quarta-feira.Pago sim. Vou trabalhar e pago. Eu no gosto de dever a ningum.Est certo; voc paga.Bocejamos os dois.

    Os mdicos so muito caros, voc no acha? Duzentos contos s para operar um nariz, d

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    a.Foi andando em direo porta.Eu estava to cansado que continuei sentado.Voc vai querer me ver de nariz novo?, perguntou ela.Eu tive vontade de dizer: Voc no precisa de um nariz novo, est gastando dinheiro

    m do mais, me deixou completamente na misria levando os ltimos duzentos contos da mdenizao trabalhista. Mas achei que isso no seria gentil da minha parte e disse some

    Vou.Tchau, disse ela, saindo e fechando a porta.Deixou a mscara em cima de uma cadeira. Era preta, de cetim, com um perfume forte e b

    otei a mscara e fui para a cama. Estava quase dormindo quando me lembrei de tir-la: um suue sempre dorme de janelas abertas no pode dormir com uma mscara que lhe cobre o nariz.

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    HEN

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    Simples, sbrio, tranquilo; olhos de um homem honesto; boca de um homem sensveltelectual talvez; educado, respeitvel e pontual. No quadrado do espelho sua mo surgiu, loanca, forte e meticulosamente limpa, acariciando sua barba negra. Virando um pouco a cab

    or um efeito tico, os fios de barba brilhavam como se tivessem luz prpria; isso ele fez, vezes, ficando quase de perfil, tendo que esquinar bem os olhos at que eles comeassem a denri olhou ento sua cabea lisa como um ovo. Sua calvcie sempre lhe dava um aperto

    orao, que ele amenizava dizendo para si mesmo que sua cabea alta (era enorme a distntre as orelhas e a ponta do crnio) significava inteligncia e que o fato de ser calvo jamais tieito negativo sobre o seu trabalho, o que era uma absoluta verdade.

    Olhou o relgio. Eram duas horas. Melhor esperar ainda uma hora. Trs horas da tardeelhor hora para se visitar uma mulher, principalmente se ela for de meia-idade, como certamria o caso de madame Pascal.

    Pela manh as mulheres so uns trapos, feias, repulsivas, amassadas pela noite, ftidas. bem disso e detestam contatos com estranhos a essa hora, quando ainda no se perfumacovaram os cabelos, pintaram a cara. Pensa: estarei sendo injusto em minha crtica? Ele sem

    julgara um homem correto, e por momentos analisou, de acordo com a sua vasta experinclgamento que fizera.

    Madame Pascal. Uma hora ainda. Madame Pascal, uma feliz coincidncia de nomes, ascal era o seu mestre, o seu favorito e sua leitura lhe dava tanto prazer quanto a de Victor Ha verdade, se que ele podia se orgulhar de algumas virtudes, que de fato, deixando a mode lado, ele reconhecia possuir, no havia a menor dvida de que a leitura de Pascal em montribura para isso. Foi at a estante e apanhou um volume de capa marrom, onde estava esa lombadaEsprit de gomtrie. Suas mos fortes acariciaram o livro demoradamente; de

    olocaram-no de encontro ao peito e Henri sentiu qualquer coisa de mstico dentro dele: apertvro com fora, sentindo sua capa dura; fechou os olhos.Sentou-se na poltrona, puxando as calas cuidadosamente a fim de preservar-lhes o vinc

    a experincia (sua vasta experincia) e a leitura de Pascal levavam-no sempre a pensar em venidas atravs das quais a crena podia ser comunicada: o entendimento e a vontade do ouv

    entendimento o caminho mais natural, a vontade o mais usual. Isso ocorre com as verdadeundo natural, onde o processo estritamente racional oferece o nico caminho seguro. Nois, devido segurana com que trabalhava que ele havia conseguido aquele imenso e, poro dizer, incrvel sucesso? Ah, se os outros pudessem saber! E as verdades sobrenaturais? E

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    e no alcanava. Talvez porque Deus quisesse humilhar o raciocnio orgulhoso dos homens, eerdades s podiam entrar na mente atravs do corao. As coisas naturais tm que ser conhecntes de serem amadas; as coisas sobrenaturais s chegam a ser conhecidas por aqueles qumam. Havia momentos, como quando ao contemplar os olhos vidrados de madame Cuchet, eme tivera uma viso, ainda que rpida, fugaz, de uma verdade urgente Henri abre os olhos, barba. Madame Cuchet: ningum como ela exigira uma to rigorosa demonstrao de ptelectual envolvendo um ntimo conhecimento da mulher a quem os seus argumentos se dirig

    h, o mestre dizia que esse mtodo era incomparavelmente mais difcil, mais sutil, mais admirreconhecia-se incapaz de us-lo, achando mesmo impossvel faz-lo. Mas no ele, Henri, coa vasta experincia. Apanhou na gaveta fechada a chave o seu caderno preto e reviu suas cr

    notaes e sua mente se encheu de recordaes.s trs em ponto tocou a campainha da casa de madame Pascal. No bolso carregava o peq

    nncio em que ela oferecia mveis venda.Abre-se a porta. Deve ter quarenta e nove anos, talvez cinquenta; faz os prprios vestidos

    que uma mulher s, e desconfiada de todo mundo: certamente deve achar que eu tentarei rono negcio, oferecendo preos vis pela mercadoria; talvez se desfaa dos mveis para ir pampo essa constatao (e como ele nunca se enganava) deixou Henri to emocionado em

    as perspectivas que se abriam, que o seu corao comeou a bater desordenadamente. frente de madame Pascal estava um homem de ar solcito, bem (mas discretamente de pr

    estido, com uma calvcie ridcula e uma barba preta. Como era preta a barba dele! Ah! o pensa que me vai enganar, que venderei meus timos mveis por quatro vintns! Mas ele vaima coisa!

    Agora Henri est dentro da casa e examina os mveis judiciosamente. Os preos que ofeomeam a vencer a desconfiana de madame Pascal; sua cortesia encantadora, sua per

    ducao, aparente na voz bem-modulada e na elegncia dos gestos, impressionam Pascal. Anteenri se retirar algumas informaes so trocadas. Ela, como costureira, havia economizaastante para uma vida confortvel, ainda que modesta, e pretendia mudar-se para o camponha uma fbrica em Lille, ocupada pelos alemes, e quando a guerra acabasse todas as osses lhe seriam devolvidas e ele voltaria a ser um homem muito rico. Madame Pascal diz eue uma mulher solitria. Henri se retira, prometendo voltar no dia seguinte.

    No dia seguinte Henri chega carregando um ramalhete de rosas vermelhas. As rosas havdo escolhidas com o maior cuidado. Era capaz de ficar longo tempo examinando uma

    incipalmente uma rosa, que era a sua flor preferida.No se fala mais nos mveis. Henri fala de flores, elas so uma ddiva de Deus. Falsica, e de Mozart e Debussy. Msica e flores so a sua paixo na vida. Um verdadvalheiro, pensa madame Pascal, v-se que tem bero, que bem-nascido, distinto, educado, be tratar uma dama.

    A noite passa rapidamente. Henri pergunta se pode voltar, eles tm tanta coisa em comumesmo gosto pela msica e pelas flores, pelos poetas. Poetas?, pergunta madame Pascal. Hensei que lhe havia falado de Lamartine, Musset. Ao despedir-se, Henri beija a mo de madascal.

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    Antes de dormir Henri tomou um copo de leite. Dobrou cuidadosamente suas calas olocou juntamente com o palet e o colete em um cabide, que guardava no armrio.

    Nessa noite ele sonhou com o pai, coisa que no acontecia h cerca de seis anos.Foi um sonho diferente de todos os outros. Ele est num bosque escuro, num dia de inve

    ma neblina branca, como fumaa, desce das rvores; no se ouve um som, nada se move. Ele ara o tronco escuro das rvores procura de alguma coisa; vai andando pelo bosque at qum vulto sob uma rvore: um homem vestido todo de negro, com uma corda na mo. Ele a

    t defronte do homem e v que uma ponta da corda um lao, que o homem coloca em tornescoo, enquanto joga a outra ponta por cima do galho de rvore sobre sua cabea; a pontorda balana como o pndulo de um relgio. Agora os dois se olham, frente a frente, longameenri reconhece seu pai: o pai junta as duas mos como se estivesse rezando e coloca-as junteito, suas mos grossas, de dedos curtos e sujos de mecnico; motores no me atraem mais, diara o pai; o pai no responde; nem vou mais igreja; o pai no responde. Henri verifica entoa face do pai no existe a menor expresso, que no lugar dos olhos existem dois buracos nendos. Henri segura a corda e comea a puxar, um peso enorme e ele tem que se ajoelhar no

    ara conseguir fazer o corpo do pai subir. Enquanto sobe, preso pelo pescoo o corpo comeudar de forma, a ficar longo. Agora o corpo est l em cima; o rosto do pai continua o me

    urante algum tempo, mas, de repente, ele mostra os dentes como se fosse uma careta ourriso, ou as duas coisas ao mesmo tempo e, entre os dentes, surge uma ponta de lngua verme

    nica coisa que no branca ou preta em todo o mundo. Ele continua segurando a pontorda pois sabe que se no o fizer o corpo do pai descer novamente. O peso insuportvelt ajoelhado e procura um lugar para amarrar a ponta da corda mas o tronco da rvore est mnge; o peso horrvel, ele sua, molha o corpo todo, a corda fere suas mos de onde sai san

    reto); ele no vai aguentar mais, mobiliza todas as suas foras mas j sabe que no vai agueais.

    Depois que acordou, Henri no conseguiu dormir o resto da noite. Desde que o pai se suicido Bois de Boulogne, que Henri no pensara mais nele. Faz-lo naquele momento incomodnto que ele teve que sair da cama. Vestiu o seu robe de veludo. Depois sentou-se na oltrona do seu quarto e leuMditations potiques.Como so ignorantes as mulheres, pensoras imbecis que fazem quando falo em Lamartine, supem sempre tratar-se do aougueirquina. Ah, o trabalho que ele tinha em recitar-lhes versos de Lamartine e Musset! Ao pe

    sso Henri ficou com uma grande pena de si mesmo; e raiva de madame Pascal, cuja nrugada, cheirando levemente a cebola, ele tivera que beijar. Era muito melhor quando elas eais jovens, como Andre Babelay, por exemplo. No; Andre era jovem demais. Mas talvezso sua ignorncia nunca o irritava. Ele gostava do papel de stiro que assumia ao estar quela camponesa transformada em empregadinha domstica, dos nomes feios que ela lhe dos gestos obscenos que lhe fazia; do vermelho que cobria o seu colo e o seu rosto nos momee paixo; e, apesar disso, ela tambm tivera que ir por motivos diferentes, de segurana. Vessoas os haviam visto juntos na rua um homem de meia-idade, careca e barbudo, e enina de olhos brilhantes e cabelos castanhos caindo pelo ombro rindo e segurando-se, m

    ao, ombro no ombro, p no p, em plena rua, uma loucura. Pobre Andre, ele no podi

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    riscar tanto, ela comeava a desorganizar a sua vida e no tipo de negcio em que ele esetido, a disciplina, a meticulosidade, a pontualidade, a organizao eram requisitos essen

    ue no podiam ser descuidados.Esses pensamentos tornaram-no profissionalmente decidido: era preciso solucionar o

    ascal rapidamente; no seria seu melhor desempenho, pois o caso de madame Buisson, aqulher calva que usava peruca, tinha sido solucionado em menos tempo ainda.

    O resto da noite Henri passou fazendo o seu planejamento. Apesar daquela operao j ter

    etuada uma dezena de vezes, nem por isso ele deixou de program-la at os ltimos detalhes.No dia 4 de abril, conforme o combinado, Henri foi ao pequeno apartamento de madame Pa

    fim de lev-la a visitar sua casa de campo, a vila Gambais.Durante a viagem um pequeno engano foi cometido. Num momento de distrao H

    onfessou para madamePascal que achava que o fim da guerra estava prximo e que isso no era muito bom par

    egcios dele. A guerra uma coisa horrvel, disse madame Pascal, tantos jovens sendo monta propriedade sendo destruda. Ao que Henri retrucou dizendo que desde que o mundo

    undo havia guerra, que a guerra era a mais humana das caractersticas da humanidade, que isue diferenava os homens dos bichos; que alm do mais guerra era bom para os negcios, ovas descobertas cientficas, trazia progresso para todos, naes e homens. Menos para osorreram, retrucou madame Pascal. Ah! mas algum tem que morrer, algum morre semplicou Henri. A ento madame Pascal se lembrou e perguntou, mas e a fbrica, sua fbricalle que os alemes ocuparam, voc no vai receb-la de volta? E como que isso pode ser

    ara os seus negcios? Olhava Henri com um ar de satisfao, para alvio de Henri, que tancelasse os seus planos se o olhar que ela lhe dirigia fosse de suspeita. Uma longa explicabrica voltaria s suas mos em pssimo estado, uma indenizao teria que ser pedida, a cois

    rastaria anos pelos tribunais; sua vida comeava a se organizar somente agora e o fim da guxigiria novas adaptaes, novos planos; ou quem sabe, talvez ela tivesse razo, e o fim da guo fosse to ruim assim etc. Isso da boca para fora, pois dentro do fundo do seu pensamento Hensava que o fim da guerra era uma coisa horrvel, a destruio de aqui o pensamento de Hcou confuso: a destruio de qu? de sua vida metdica? de seus ideais? de seu poder? dera? de sua tranquilidade?

    Eis o meu pequeno paraso, diz Henri ao chegarem vila Gambais. Era primavera: os camtavam cheios de flores; na vila de Henri existiam praticamente todas as flores que po

    escer saudavelmente no solo francs. Henri as contemplou com imensa ternura.No h tempo a perder, soava na cabea de Henri essa frase. Madame Pascal estava cansad

    terior da vila era mobiliado com mveis de dez procedncias diferentes. Sente-se aqui, denri, o esforo da viagem deve t-la cansado. A emoo da viagem, sorriu madame Pascal. Se, sente-se, ver como esse cansao passa num minuto.

    Madame Pascal senta-se. Uma pequena massagem, disse Henri delicadamente. Seus dariciam a garganta de madame Pascal, seus ombros; que mos suaves, pensou ela, que d

    beis, que homem encantador. Como magra, pensou Henri, como frgil a sua carne, comonos os seus ossos, preciso que ela no sofra. Ele estava atrs dela, curvado sobre a poltron

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    ez dedos em sua garganta. Agora! os polegares apoiaram-se com fora na base do crnio ontas dos demais apertaram rpidas e firmes a garganta. Henri sentiu as cartilagens cedengo em seguida os ossos da laringe se partindo.

    Madame Pascal no emitiu um som sequer. Mas seu corpo todo tremeu num terrvel arrancourou menos de um segundo. Nisso ela quase escapou das mos de Henri, que apertou com ra, algumas unhas rasgando a pele do pescoo de madame Pascal. Suor porejou a frontenri.

    Sem muito esforo ele carregou, ainda agarrado pela garganta, o corpo de madame Pascal cozinha e o depositou sobre uma mesa. Verificou satisfeito que no houvera emisso de fezee urina: a roupa ntima de madame Pascal estava limpa (at certo ponto). Henri contemscinado a morte no corpo nu de madame Pascal. O rosto: petquias disseminadas por quase face, constituindo um pontilhado escarlatiforme sobre a pele plida, cianosada; os o

    ongestionados; as narinas apresentando uma espuma sanguinolenta; a lngua projetando-se entrentes.

    A vida era uma coisa imensa, grandiosa, a maior de todas as foras, e isso ele havia destruaquele momento, com suas prprias mos. Ele, Henri. Deus dava e tirava a vida? Ele, Henruisesse podia fazer a morte. Assim, ele olhava, cuidadoso e vido, os seus sinais apareceremorpo de madame Pascal.

    A morte devorava a vida lentamente, pensou Henri. Primeiro o corpo se imobilizavonscincia se perdia (madame Pascal!, chamou ele duas vezes, madame Pascal!), suspendiaspirao e os batimentos do corao. J era noite e o corpo de madame Pascal estava frio, o io de sua pele cessara, seu corpo comeava a endurecer. Era chegado o momento deterpretar o seu papel de nigromante. Com madame Cuchet ele esperara mais tempo, at que a

    ele quando tocada tivesse algo de pergaminho e uma estranha mancha verde surgisse na

    arriga murcha. Uma mancha verde, que ele no esperou que surgisse (era algo de raro!) na bae madame Pascal, pois de faco e machado comeou a esquartejar o seu corpo com uma segure mestre.

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    CURRICULUM VIT

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    Eu estou deitado na cama enquanto, de costas para mim, sentada em frente a um espelhoenteia os cabelos. Daqui a pouco ela vai embora, mas isso j no tem a importncia que ntes. Ela sempre demora um tempo enorme penteando os cabelos. Usa pente, usa escova; denta os olhos, a boca o tempo todo olhando o prprio rosto com amor e nobreza. um momuito bonito, esse. Penso: talvez ainda dure muito, talvez eu ainda sinta muitas vezes o que entindo agora; e me espreguio na cama, enquanto ela, os dois braos levantados, es

    anquilamente os cabelos.Agora ela me olha pelo espelho. Voc no vai se vestir?, pergunta. Ela sabe que eu no vouestir. Eu me espreguio. Ela: voc muito preguioso. Sabe de uma coisa, voc muito pareom aquele seu amigo do bong. Voc acha?, respondo eu, alerta. Acho, diz ela, o que aconteepois? Voc no quer ouvir, digo eu, quando voc se penteia voc no ouve nada. Ao quesponde que ouve sim, que ouve tudo o que eu digo.

    Ele foi casa da mocinha que ele amava, com o bong debaixo do brao, e um disco. Quntrou a mocinha disse, voc no cortou o cabelo, ah, que bom que o papai no est em casasmou com o teu cabelo. O teu pai no est em casa?, perguntou ele. No, disse ela. Quer dizer

    s estamos sozinhos, disse ele. Os dois estavam sozinhos em casa, pela primeira vez. Elebraaram e se beijaram uma poro de vezes, at que ela se afastou e disse que era melhorararem, pois estavam sozinhos. Mas eu estou com vontade de te beijar, disse ele. Eu tambspondeu ela, mas melhor ns pararmos. Mas eu estou com muita vontade, insistiu elembm, repetiu ela, mas vamos tirar isso da cabea. Como?, perguntou ele. Pensa em urubu msse ela. Sentaram-se os dois num sof e ficaram pensando em urubu morto, ela mais do queepois ele pegou o disco que havia trazido, colocou na vitrola, e comeou a acompanhar a mo bong. Ela veio e sentou-se perto dele, e quando a msica acabou disse, meu bem, que c

    ais bonita, que coisa linda, que msica essa?, me deu at vontade de chorar.Jesus, alegriaomens, respondeu ele, meu amigo Zezinho me deu ideia de tocar essa msica no bong. Os caram ento de mos dadas um longo tempo.

    Voc no est ouvindo, digo eu, para a mulher que continua se penteando. Estou sim, diz elaNesse mesmo dia a mocinha perguntou ao meu amigo que tocava bong por que ele

    ranjava um emprego. Papai vive dizendo que voc um vagabundo, que no estuda, queabalha, que no tem onde cair morto. Mas por que que eu tenho de ir trabalhar?, perguntouara ningum chatear a gente, respondeu ela. Mas ele no queria trabalhar, no via razo para e morava com a irm, que trabalhava h muito tempo, desde que ele era pequeno, e j devia e

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    ostumada, e no se importava, e talvez at gostasse. Dinheiro ele no precisava ele gostavaia, de tocar bong, e da menina de dezessete anos, e tudo isso no custava um tosto. Nem fe fumava. Ento, por que trabalhar? Mas resolveu procurar um emprego. Colocou o nico tue tinha, botou uma gravata, e saiu com vrios recortes de jornal no bolso. O senhor tem promprovada para controle contbil de materiais em kardex?, perguntaram-lhe no primeiro lugaue chegou. No outro, se tinha idoneidade moral, capacidade de chefia, conhecimentoeveno contra incndio e alto nvel de vigilncia. E ainda, em vrios lugares, se sabia in

    atilografia, contabilidade, topografia, relaes humanas, clculos de importao, racionalize mtodos e sistemas. Todos pediam o seu curriculum vitae.Ele no tinha curriculum vitae, digo eu para a mulher que est comigo dentro do quarto. Ela

    ha, pois j acabou h algum tempo de se pentear e espera que eu, como das outras vespenteie seu cabelo. Eu me levanto e despenteio seu cabelo, mas meu corao est em ooisa, ser que essa louca no entende?, meu corao est longe, cortado pelo meu pensamentourmura baixinho, d pequenos grunhidos, e ri. Estamos abraados, ela finge que que

    esvencilhar e por instantes rodamos no quarto at perdermos o equilbrio e cairmos na cgora estamos na cama, e eu no fao um gesto, o gesto que ela espera. O que que h com veu bem, voc est esquisito, srio. No nada, digo eu. Cretina, idiota, imbecil, penso, sem rcamos calados algum tempo. O que que h benzinho, insiste ela. Eu digo: ele no tinha curricutae. E da, ela responde, ele era um preguioso, isso o que ele era, por que no foi tocar bo

    uma orquestra? Ele foi, digo eu, foi fazer um teste na orquestra de um tal de El Cubanito. Ah, j a mulher me interrompe e em pouco tempo ficou famoso, rico, e festejado como o m

    cador de bong do mundo, enquanto a mocinha de dezessete anos se casava com um ofdministrativo do Ministrio da Fazenda e o pai dela se mordia de inveja e arrependimento. Nada disso, digo eu (louca, imbecil, cretina, idiota, vou pensando), no nada disso, voc p

    ue eu estou te contando uma histria de fadas?Comearam com um cha-cha-cha. El Cubanito parou a orquestra no meio da msica e d

    ha aqui, meu filho, o bong tem uma certa liberdade dentro da msica, voc pode fazer tum-tm-pac-tum-tum ou pac-pa-tumpac-tum-pac ou ainda pac-tum-pac-tum-pac-tum, variando, masode sair do ritmo, entendeu? Vamos meter l um mambo para ver se d certo: pac-pac-pa-ac, ok?

    Eu estou na cama tenso, pensando naquilo. Digo para a mulher: ele s sabia tocar boompanhando Bach, e assim o El Cubanito no pde aproveit-lo, ningum podia aproveit

    a responde: e depois, o que aconteceu?, mas sem o menor interesse, a nossa brincadeirrminou e hora de ir para casa. (Sem saber a verdade.) Digo para a mulher: a meninezessete anos esqueceu o rapaz, e ele tambm esqueceu a mocinha. (No, no, ele no esquecocinha, mas devia t-la esquecido: todo homem uma ilha, vamos deixar de poesia.)

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    GAZE

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    O senhor talvez pense que eu estou bbado, mas no estou bbado porra nenhuma. stria que me deixa tonto, nunca contei nada para ningum. Na verdade quem me parece bbasenhor. No est? Ento desculpe. Mas como eu ia dizendo, ns combinamos pegar o Vera C

    as onze. Era uma viagem toda feita de medos. Medo de algum ver a gente tomando o trem juedo do porteiro do hotel em So Paulo, medo do que a gente ia fazer. Eu cheguei na esta

    uarenta minutos antes do trem partir e o trem nem estava no seu lugar. Quando o trem che go

    oloquei a minha mala na cabine e dei uma gorjeta para o homem do trem, uma gorjeta grandsse, estou esperando minha senhora. Fiquei com a impresso de que ele desconfiava de tudue me deixou apreensivo. A cabine era 13/14, incrvel como eu me lembro disso at hoje. Fouarenta minutos de agonia; fiquei andando pela plataforma, me escondendo no meio das pessopera de que ela surgisse. At ento ns nunca pensra mos em ter mais intimidade do qu

    nhamos. Eu ia casa dela de noite, mas no entrava, ficava no porto, pois no conhecia neai nem a me dela. Conhecia os dois irmos, assim mesmo ligeiramente. Quase sempre ns aara uma rua deserta e sentvamos em um local isolado e ficvamos beijando horas. Ela tinngua um pouco fria, talvez devido presso baixa, nunca pude saber ao certo. Dvamos cent

    e beijos numa noite, talvez milhares. Era a coisa mais limpa, decente e boa que podia existiundo. Aos vinte e poucos anos todo homem um imbecil, o senhor no concorda? Teve um

    ue disse que mocidade uma doena, e mesmo. Eu estava gamado e tarado por essa garotaomo se ela fosse minha irm, me, namorada e maior amigo, ao mesmo tempo. Eu gostava delaurro, o senhor entende? Um dia ela foi a Buenos Aires e me escreveu uma carta dizendo: vm voc difcel; com e.Eu achava ela to bacana e perfeita que fiquei constrangidssimo

    quele erro de grafia, sentindo vergonha, como se tivesse cometido, eu mesmo, o pior dos engaomo? o senhor acha que foi isso que fez com que eu comeasse a me desinteressar dela? M

    nhor est maluco, sim, eu me lembro disso esses anos todos depois, mas isso s vem proveu amor por ela. O amor, meu caro, se manifesta das mais estranhas maneiras. O senhor endo esse dente aqui? Pois ele um dente falso, o que os dentistas chamam de piv. Quanentista me cortou o dente eu telefonei para ela e disse que no podia me encontrar com ela. os encontrvamos todas as noites. Ela perguntou por que e eu inventei uma desculpa. Naqmpo eu trabalhava no jornal, de noite, como revisor, e saa de casa s oito horas. Pois buando sa de casa l estava ela na porta do edifcio. Perguntou por que voc no quer omigo? Eu disse rapidamente, virando o rosto para que ela no visse a falha do dente osso, e sa andando depressa, sem olhar para trs. Fui para a praia do Flamengo e pegu

    nibus, o primeiro que passou. Quando o nibus j estava quase no centro da cidade um txi fe

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    frente dele, algum saltou do txi e entrou no nibus. Era ela. Estava sria, e plida, decidiber a verdade de qualquer maneira. Eu a fiz sentar perto de mim no nibus, encostei a sua ca

    o meu ombro e contei tudo, que eu no tinha um dente e tinha vergonha que ela me visse assimuis ver, mas eu no tive coragem de mostrar. Veja o senhor, naquela ocasio ela me amava, taais do que eu a ela: para ela no tinha importncia um dente a mais ou a menos na minha bo

    u preocupado com o edo difcel dela.O tempo ia passando e eu comeava a ficar indcil na estao. Faltavam cinco minutos pa

    em partir quando ela surgiu, com um casaco grosso (ns sabamos que em So Paulo eszendo frio). Um sujeito carregava suas malas, e isso me encheu de pnico. Quem seria? arente, um tio? Olhei o rosto dela mas o rosto dela, quando srio, era sempre trgico doce,gico e triste, e assim ela estava naquela noite, caminhando pela plataforma na sua pasrga. Mas no pense o senhor que o seu rosto era tristeza s, isso lhe daria uma ideia falsa doa era. Tinha o sorriso mais bonito que qualquer mulher j teve ou ter em qualquer partundo, um sorriso que s aparecia quando ela estava feliz, pois ela nunca ria por cortesingimento; e por ser verdadeiro, e raro, ele enchia meu corao de felicidade, era como svesse tomado uma injeo de herona. O amor existe, fique sabendo. Quando ela cheompanhada daquele estranho, eu confesso que tive medo. E me escondi, me embarafustei

    em adentro e fui parar no carro-restaurante, assustado. Depois de algum tempo dirigi-me cabati na porta, ela abriu e eu, aps verificar que somente ela estava l dentro, perguntei: quemquele cara que estava com voc? Que cara?, respondeu ela. Aquele cara carregando tua mala.quele!, foi um rapaz que se ofereceu para me ajudar. E por que voc deixou?, interpelei eu,ue voc no arranjou um carregador? No vi nenhum, disse ela. Ora no viu nenhum, t cheirregador por a, retruquei eu.

    Quanta besteira. A mocidade mesmo uma doena. Perdemos quase meia hora nisso. Por c

    inha, que sentia cime do estranho e raiva do medo que ele me fizera passar. Ela no, ela semi uma mulher adulta apesar de ser uns cinco anos mais moa do que eu. Naquela poca elanda uma menina, mas j sabia o que queria. Apagamos as luzes da cabine e na penumbra eu vntia, o seu jeito de corcinha, espera do que ia acontecer. O luar entrava pela janela. Em pompo estvamos nos abraando furiosamente. Por que eu estou lhe contando tudo isso? O seem saber quem era ela. O senhor no me conhece, ningum me conhece, eu sou um popnnimo, um perfeito desconhecido, meu retrato nunca saiu no jornal. No pense que lhe eontando uma histria de safadezas, s de pensar que o senhor pode pensar uma coisa dessas tontade de lhe quebrar a cara, ouviu? Estou lhe contando a coisa mais sria e mais bonita quonteceu comigo, comigo, um cretino, um imbecil, um pobre-diabo, um infeliz que um dia teveos a maior riqueza, que me tinha sido dada, como uma bno, e eu no percebi e joguei ste cigarro est ardendo na minha lngua, preciso deixar de fumar e de beber mas no agoraa. Dentro da cabine abraados, o rosto dela brilhava na penumbra, mas nem eu nem ela tive

    oragem. Ela me pediu que jogasse a seiva da minha paixo sobre o seu seio de bicos marrcuro, duros e isso eu fiz, ajoelhado, com o corpo dela entre as minhas pernas. Depois deiteu lado. Senti que com aquilo ela quisera ser marcada por mim, no pela minha mo, ou peus dentes, mas por algo transcendental que ela mesmo fabricara no fundo do meu ser, algo

    epois de lavado e invisvel ao olho, continuaria queimando a sua pele, a carne do seu seio,

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    sos, o seu corao, para o resto da vida. Somente dois jovens se amando to fundo poderiamito aquilo, com aquela pureza. Nenhum de ns conseguiu dormir e, deitados lado a lado, de m

    adas, ficamos o resto da noite. O senhor est chocado com o que eu estou lhe contando? Pois isso tivesse acontecido com qualquer outra mulher, entre mim e outra mulher qualquer, ta

    udesse ser considerado um ato de, digamos, libidinagem, para usar uma palavra realmesagradvel, do gosto dos jornalistas. Mas com ela no, nem naquela poca, nem depois, oje, nem nunca, aquilo foi, ou teria sido, uma coisa feia.

    Eu acho que lhe disse que a nossa viagem era cheia de medos. Uma coisa horrvel que existundo o fato de os jovens no terem liberdade para amar. Mas pior ainda do que isso que o sabem amar; e no entanto foram feitos para o amor. No sei se o senhor me entende: uns foo amor e outros o procuram com sofreguido, mas no fim o que fica, em todos, a mesma cma insuportvel sensao de vazio. Aqui, tin-tin, saudemos o vazio de todos ns. Sabe o seue estamos bebendo h horas e esse o primeiro, e certamente o ltimo brinde que fazemrindes so feitos para ocasies festivas e eu estou com a pior disposio possvel; no souomem de confidncias, de contar tristezas, ou alegrias, de me abrir, para quem quer que sejazer catarse com amigo ou padre, e no entanto aqui estou eu, colocando em cima da mesa todainhas dores e vergonhas para serem espiadas por um estranho que talvez no entenda o que

    uvindo. Mas o senhor bom ouvinte, e isto basta, e eu lhe agradeo. Muito obrigado. No quea compreenso. Ningum entende ningum.

    Em So Paulo fazia uma daquelas manhs cinzentas, frias, de frio mido. Para ns aquilouito estimulante. Quando chegamos no hotel o nosso medo voltou. O senhor j notou comondo, so antipticos, desagradveis, horrveis mesmo, todos os recepcionistas de hotel? ntam ser amveis, mas uma espcie de amabilidade gasta, falsa e basta olhar para a cara dara ver que eles tm dio disfarado do hspede poderoso, e desprezam o humilde. Eu ped

    partamento de casal, e assinei na ficha senhor e senhora fulano de tal. Ela tinha virado paalma da mo a pedra do seu anel para que parecesse uma aliana, que ela mostrou colocano fechada sobre o balco. O recepcionista me olhou, me mediu e afinal chamou o rapaz var nossas malas.

    Posso v-la, agora, com nitidez, em p, no apartamento, sorrindo para mim, ns dois sozinportas fechadas. Meu Deus, como gravei tudo dela, as coisas mnimas: uma pequena aber

    ntre os seus dentes incisivos; o desenho das sobrancelhas; a meia-lua das unhas nos dedos finngos; a planta bem-delineada do p, uma pequena marca no rosto basta fechar os olhos

    ejo isso tudo. E as coisas grandes: corao puro, inteligncia sutil, generosidade, o amor por molhar limpo basta fechar os olhos e sentir a dor da lembrana me comer c dentro. egria, a nossa, dentro daquele quarto. Fomos para a janela e do alto contemplamos So P

    omo se estivssemos vendo a cidade pela primeira vez. Como era grande a nossa histria, ca longa a nossa vida em comum. Foram anos. Viu o senhor a oportunidade que eu tive? E

    mava. Eu queria casar com ela. Mas quando fui a So Paulo j no queria mais. Engraadogora que estou percebendo isso. Acho que porque eu achava que casamento era uma bestas tambm no queria t-la como outra coisa, pois gostava demais dela para isso. Eu tinha

    aga noo de que precisava ficar livre, e depois, um pilantra como eu, que tinha que trabalha

    oite em jornal, ganhando uma misria, no podia casar com ningum. Serei culpado de alg

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    oisa?O amor generosidade, compreenso, ausncia de egosmo, mas no entanto os amantes

    gostas, mesquinhos e intolerantes, porque essa a condio humana. Acontece que na fasguda excitao psquica que caracteriza todo amor essas coisas no aparecem com muita nitlha aqui, eu j estou meio cansado para poder lhe explicar esse ponto direito e o pior ngum explica. Freud foi um sujeito que nunca amou, eu no acredito em Freud, o seredita? Freud uma questo de f, ou a gente cr nele ou no cr. Eu no creio. A mesma c

    om Marx. A nica coisa que a gente pode fazer com eles botar, ou no botar, o retrato na parNs andvamos pela cidade sem nos incomodarmos com a garoa fina que caa, sem press

    oltar para casa. Todas as pessoas que viajam apreciam essa sensao de andar pelas ruas de dade que no aquela em que se vive, sem pressa, sem hora de voltar para casa. Por qu? Poo h casa, lar doce lar, para onde voltar. A casa uma priso, mesmo se voc vive sozinho. Uiso qual voc se acostuma, como os animais do jardim zoolgico se acostumam com as ulas.

    Eu e ela gozvamos a nossa liberdade, pensando que era turismo o prazer que sentaoltvamos para o hotel sem olharmos para relgio. s vezes amos ao cinema, ou ao teatro, hcasies em que nos sentvamos numa praa pblica e vamos as pessoas passarem.

    O senhor j amou? No se ofenda se lhe pergunto isso, mas milhes de pessoas nunca ama aqueles que amaram seus livros, seu cachorro, seu pas, suas roupas, suas joias, seu automas eu no falo disso, nem de amor paterno ou fraterno tudo isso besteira comparado co

    mor da mulher que amamos e nos ama; e que temos vontade de matar quando achamos que noma mais. Uma coisa grande. Bebamos champanhe no quarto, que eu levava da rua escondidbretudo. Mas mesmo bbados ns nunca tivemos coragem. Tomvamos banho junto

    ormamos abraados, nus, mas no tnhamos coragem. Houve um momento em que tentamos,

    m gemido de dor me fez recuar. Eu tinha de proteg-la, entendeu?, de todos os males. Eszendo um mal maior agindo daquela maneira? Na ocasio parecia que no. Na verdade eutava satisfeito, portava-me como um cavalheiro, sacrificava-me por ela, a menininha qu

    mava.Chegou um dia que tivemos que voltar. Viemos de avio e foi naquela hora de viajar,

    do acabou. Ela estava triste, calada, no respondia s perguntas que eu lhe fazia. Tambm filado. Vi depois que ela chorava, sem soluos, imvel, as lgrimas escorrendo em silnciontia que no havia nada que eu pudesse dizer ou fazer. Ela sabia que eu no a amava, qu

    tava me despedindo dela naquele dia, que era o fim.Era o fim mesmo. Mas eu no me importava muito com isso. Ela parecia morrer ao meu las eu no sentia a menor dor. S vim a sofrer muito tempo depois. Lentamente comecei a sudades dela e quanto mais tempo passava mais eu sentia a sua ausncia. Anos, muitos anos j

    assaram, eu nunca mais a vi, mas cada vez ela est mais perto de mim: esqueci todas as oulheres que conheci depois, nem mesmo me lembro do nome de muitas, mas dela eu lembro tdo. Estranho, o senhor no acha?

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    NATUREZA-PODRE FRANZ POTOCKI E O MUND

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    Hoje j no assim, mas houve poca em que o interesse pela natureza-podre era to grue o seu criador, Franz Potocki, e alguns hbeis imitadores, ganharam verdadeiras fortunas.

    claro que havia pessoas para as quais a natureza-podre no passava de uma piada de osto. Mas os seus defensores (e esses eram milhes) redarguiam que a arte no pode ser encao estreito ponto de vista esttico das chamadas Belas Artes. Um crtico da provncia, ccasio, defendendo Potocki, disse que arte era a natureza vista atravs de um temperamento e

    natureza-podre de Potocki era a sua viso particular do mundo. Outro crtico, este da cidxplicou Potocki segundo a teoria de Einfh lung, partindo do pressuposto de que todos os homrregam dentro de si a podrido e outra coisa Potocki no fazia seno estabelecer uma emp

    ntre a podrido implcita na natureza humana e a criao esttica. Mas claro que no pararaespeculaes dos crticos. A anlise mais aceita na ocasio foi a de que a arte de Pot

    erivava de um pavor atvico e supersticioso das foras misteriosas da natureza; atravs date, Potocki procurava aplacar os poderes hostis da natureza, rendendo-se a eles.

    Enquanto isso os quadros de Potocki eram vendidos a peso de ouro. As pessoas faziam filorta do seu estdio. Muitas vezes o quadro era levado, pelo comprador ansioso, sem a tint

    cado ainda. Alguns de seus quadros foram vendidos por muitos milhes, como o Geodre, leiloado na sede do Partido Trabalhista.

    Sua srie de Orqudeas Podres foi vendida inteiramente para a condessa Pepinelli ondessa teve que dar oito recepes seguidas para que todos os seus amigos pudessem contemltima criao de Potocki. Entrevistada na casa de sade, onde foi internada devido fasultante das recepes, a condessa, conhecida colecionadora de arte, declarou que Potocki eaior artista vivo do mundo.

    A celeuma em torno de seu nome no perturbava Potocki. Quando ele vendia um quadro no

    dinheiro que recebia que o emocionava; ele gostava de estudar os olhares que o comprnava sobre o quadro que acabara de adquirir. s vezes ele prendia o comprador em seu estara contemplar por mais tempo as reaes do mesmo ao ver o quadro.

    Ningum jamais vira Potocki no ato de pintar. No entanto, ele no fazia nenhum segredontas que usava, ou da tcnica que empregava. Mas nem por isso os seus rivais e imitadeixavam de dizer que a evanescncia do seu cinza e a profundidade do seu negro indicavam oe algum ingrediente secreto.

    Era um homem calado e introvertido. Chamado a ir televiso, Potocki no disse uma pala

    em mesmo para responder a um telespectador que lhe perguntou por que motivo ele pinta

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    pria me daquele jeito.No ter um Potocki em casa, um pelo menos, passou a ser algo deselegante, mesmo vergonh

    essoas sem posses compravam seus Potockis a prazo nas galerias, pagando juros extorsivos, naturezas-podres espalhados pela parede criavam, diziam, um clima de humildade e

    perior ao da ascese. A fotografia de Potocki saiu em todas as revistas; documentnematogrficos foram feitos sobre a sua obra; as mulheres o achavam um homem fascinante.

    Era rara a reunio fina em que no se discutisse a obra de Franz Potocki. Algumas pes

    havam o vocbulo natureza-podre chocante, conquanto, mesmo estes, reconhecessem qntura de Potocki possua um fascinante dinamismo, repugnante e pervertido, que n

    ncontrava em nenhum outro tipo de pintura.Estranhamente, as crianas gostavam dos quadros de Potocki. Os professores de desenh

    ntura nas escolas primrias reportaram que todas as crianas, sem exceo, estavam fazuadros maneira de Potocki. A Associao dos Pais de Famlia publicou nos jornais uma cberta aos poderes competentes exigindo providncias da parte das autoridades e dos educado sentido de verificar se aquela influncia no seria prejudicial ao carter infantil. O ministrducao nomeou uma comisso de inqurito, composta de tcnicos de renome, a qual, depoiois anos de estudos, viagens ao Louvre e ao Prado, elaborou um documento de um milhuatrocentas e vinte mil palavras, por todos recebido como uma importante contribuio cuo pas.

    Nessa mesma poca o governo o encarregou de pintar um painel no novo aeroporto, deetros de largura por trs de altura.

    Na inaugurao do painel compareceram as mais altas autoridades, houve discursos, sendogum disse que o painel era um importante legado cultural deixado s geraes futuras.

    Apesar de coberto de glrias e honrarias, e de dinheiro, Potocki era infeliz. As pessoas q

    am silencioso e ensimesmado, descuidado no trajar (s vezes nem mesmo fazia a barba) faonsideraes. Ele tem tudo na vida, por que essa melancolia? Quando algum lhe dizia otocki se irritava consideravelmente. Ele achava que nada tinha, que aquelas coisas queziam nas vernissages (ele odiava, alis, essas reunies) nada significavam, pois na verdad

    essoas mostravam um total desconhecimento dos seus objetivos ao pintar aqueles quadrosesmo no sabia ao certo o que queria dizer, mas o esforo para fazer cada quadro quase o mauantas vezes seu corpo tremera tanto que a esptula lhe cara das mos; ou sua vista escurecee desmaiara para acordar horas depois no cho do estdio. Como suportar, pois, frente aos

    uadros, homens perfumados fazendo piruetas, mulheres de voz estridente gritando adjetivos, uoutras? E a maneira pela qual o olhavam? E trocavam segredos, ao v-lo? E quanto mais ine se sentia e mais ensimesmado se fazia, mais eles o olhavam e mais cochichos eram trocae se lembrava que era assim, dessa maneira, que, quando menino, olhava nos circos par

    nes, os gigantes, o homem tatuado, a mulher barbada.s vezes ele tentava entender as pessoas. Mas por mais que se esforasse no conse

    guentar a conversa que se estabelecia. Ento se calava e a conversa morria.No se sabe ainda como, e por que, mas o certo que subitamente, quase da noite para o d

    teresse em Potocki e nas naturezas-podres comeou a diminuir. Primeiro acabaram as fila

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    ompradores que dia e noite aguardavam na porta do estdio a oportunidade de comprar umus quadros; depois os jornais e as revistas no publicaram mais sua fotografia ou notcias aspeito. Mas a venda de seus quadros ainda continuou por alguns meses, pois as galerias possandes estoques de naturezas-podres que haviam adquirido para vender por alto preo no mer

    egro. Surpreendidas pelo inesperado desinteresse do pblico, as galerias continuavam, j aom grande esforo e por preo vil, a vender quadros de Potocki. Mas depois de algum tempo,baixo preo, a diviso em prestaes mensais, os substanciais descontos, e outras tcnica

    enda das galerias conseguiam vender os quadros de Potocki.Em seguida ao desinteresse pelos quadros comeou a surgir um movimento de repulsa pesmos. As pessoas comearam a tir-los da parede e guard-los nos pores e stos. Dizi

    ue davam azar. Conquanto nem todos acreditassem nisso os colecionadores so pessoaosio e cultura, caractersticas incompatveis com a superstio , centenas de pessoas, so, queimaram os seus Potockis. Outros se desfizeram deles de maneira menos drsticas, masenos eficazes.No se sabe ao certo o que pensava Potocki disto tudo. Alguns achavam que ele j espe

    ue aquilo ocorresse; outros diziam que havia ficado to magoado com a perda de populariue tivera uma crise de nervos e fora internado numa casa de sade; outros diziam quemplesmente morrera.

    Mas que ele no morrera, pelo menos at a ocasio em que estes comentrios se fizerarto. Pois Potocki ainda foi visto mais uma vez quando substituram o seu painel no nroporto. Foi realmente um espetculo. Um nmero grande de operrios foi mobilizataformas erigidas, roldanas montadas, e a enorme pea de madeira foi retirada da grande pa

    a parte sul do novo aeroporto, sob os olhares indiferentes da multido.Logo em seguida foi colocado outro painel em seu lugar. Era um cavalo vermelho-rutil

    ntado por um mdico que se tornara pintor. Todo o seu corpo brilhava e sua respirao, sentia profunda, como se ele tivesse acabado de correr ou estivesse no cio. Foi ali, entre as pes

    ue se acotovelavam para apreciar aquele animal que parecia ser feito, a um tempo, de sangnho, que Potocki foi visto pela ltima vez.

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    O AGEN

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    A placa dizia Imobiliria Ajax, e o agente subiu ao segundo andar. Na sala s havia uesa, uma cadeira e um homem sentado nela, imvel, olhando para o teto.

    O agente olhou para ele e disse:Sou do Instituto de Estatstica e venho fazer o seu questionrio.Que questionrio?, perguntou o homem que estava na mesa.Nome, nacionalidade, estado civil esses dados todos. Para qu?

    Para o recenseamento, para sabermos quantos somos, o que somos.O que somos? Isso no, disse o homem da mesa, com certo pessimismo.O recenseamento nos dar a resposta de tudo, disse o agente.Mas eu no quero saber de mais nada, disse o homem. O senhor no est ven

    rescentou, subitamente aborrecido, que eu estou ocupado?O senhor me desculpe, disse o agente, mas sou obrigado a preencher a sua ficha, o se

    mbm , de certa forma, obrigado a colaborar. O senhor no leu a proclamao do presidentepblica?

    No.Foi publicada em todos os jornais. O presidente disse Isso no interessa, disse o homem levantando da cadeira abrindo os braos, por favor.Mas o agente, lpis em uma das mos e formulrio na outra, no tomou conheciment

    edido. Seu nome?, inquiriu.Jos Figueiredo. Mas isso no vai lhe adiantar de coisa alguma, disse o homem, senta

    ovamente.O agente, que j tinha escrito Jos no formulrio, parou e perguntou:

    Por qu? O senhor no est me dando um nome falso, est?No, oh! no. Meu nome Jos Figueiredo. Sempre foi. Mas se eu morrer amanh, isso

    lsificar o resultado?Esse risco ns temos que correr, respondeu o agente.Morrer?Sempre morre algum durante o processo de recenseaento, porm est tudo previsto. Ou

    ascem, porm est tudo previsto. Est tudo previsto, disse o agente.Quer dizer que eu posso morrer amanh sem atrapalhar a vida de ningum, perguntou Jos

    Pode ora, o senhor no est com cara de quem vai morrer amanh; est meio pli

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    batido, de fato, mas o senhor toma umas injees, que isso passa. Estado civil?O senhor pode guardar um segredo?, disse Jos.Vivo?, disse o agente.Um segredo que vai durar pouco?, continuou Jos.Eu s quero saber o seu estado civil, a sua, comeou o agente.Eu vou me matar amanh, cortou Jos.Como? Isso um absurdo! O senhor est brincando comigo?

    Olhe bem para mim, disse Jos, estou com cara de quem est brincando com o senhor?No, disse o agente.No escrevi nenhuma carta de despedida; ou melhor, escrevi, escrevi vrias, mas nenhuma

    gradou. Alm do mais, no sabia a quem endere-las: ao delegado de polcia? impossveuem Interessar Possa? muito vago.

    Que coisa, murmurou o agente. O senhor vai se matar mesmo?Vou. Mas o senhor no precisa ficar to chocado, desculpou-se Jos.Mas isso um absurdo, disse o agente, pela segunda vez naquele dia. O senhor no gos

    ver?Bem, disse Jos botando a mo na face e olhando para o teto, h certas coisas que eu a

    ostaria de fazer, como beijar uma menina loura que passou por mim na rua ontem, tomar comm banho de mar e depois deitar na areia e deixar o sol secar meu corpo. Mas isso devefluncia do cu, disse ele olhando para a janela, que est hoje muito azul.

    Concito-o a abandonar esse propsito. Prometa-me que no ir cometer esse gesto, disgente. Eu estou com pressa, acrescentou imediatamente, quando viu que Jos balanavabea.

    J decidi; no posso mais voltar atrs.Isso uma loucura. Eu no posso ficar aqui at amanh, a vida inteira, procurando conve

    da sua insensatez. No posso perder meu tempo continuou, agora ainda com mais vambm preciso viver; cada dez minutos do meu tempo corresponde a um questionrio; uestionrio correspondem a cento e setenta cruzeiros e cinquenta centavos.

    Eu aprecio muito o seu interesse, disse Jos.De nada, de nada, disse o agente, olhando para o cho. Ainda no fiz nada h

    rescentou depois de uma pausa.

    Jos levantou-se e estendeu a mo. Apertaram as mos em silncio.O agente desceu as escadas lentamente. Quando chegou rua, tirou uma folha de endereo

    olso e, com um lpis, riscou o nome Imobiliria Ajax. Olhou ento o relgio e apressasso.

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    OS PRISIONEIR

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    Numa sala, um sof, um homem deitado no sof sem palet, com a gravata afrouxada

    do, uma mulher de preto, sentada numa cadeira.

    PSICANALISTA: O senhor no gosta de roupa esporte; essa a razo?CLIENTE: muito chato vir de roupa esporte para a cidade, num dia til. Parece que

    abalho, que sou um aposentado, um vadio, uma coisa dessas.

    PSICANALISTA: Mas por que se incomodar com isso? O senhor est de licena atamento de sade, recebendo regularmente pelo Instituto. Esse o seu trabalho: tratar dede.

    CLIENTE: Mas e os outros que me veem na rua, fl