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“Onde moram as estrellas. O papel do cinema e das revistas ilustradas na decoração dos
interiores “modernos” (1930-1950)”.
DEBORAH CARAMEL MARQUES*
Resumo:
Este texto aborda o papel do cinema e das revistas ilustradas na constituição da
moradia dita “moderna”, no período de 1930 a 1950. O cinema, assim como os periódicos,
criaram referenciais de consumo que circularam em diversos campos da sociedade, sobretudo,
entre as camadas médias. Por meio de artigos e fotografias das residências dos artistas norte-
americanos publicados nas revistas A Cigarra e O Cruzeiro, busca-se perceber tanto as
estratégias de divulgação das linguagens arquitetônicas do período quanto à construção de
valores associados ao espaço doméstico. Diferentemente da decoração eclética, pautada na
demonstração de status social, as ambientações das residências dos artistas de Hollywood
afirmavam outros valores para o espaço privado, como a preocupação com o conforto e a
exposição dos gostos pessoais dos moradores. Ao analisarmos as imagens e os discursos sobre
as residências dos artistas procuramos compreende-los não apenas como códigos visuais, mas
também em sua materialidade. Dessa forma, nos aproximamos dos estudos da cultura
material, que compreende os móveis e objetos decorativos – além da própria arquitetura das
residências – como agentes na conformação de práticas sociais. A vida material, revelada em
padrões do mobiliário e organização do espaço doméstico proporciona uma forma de
entendimento da cultura de uma parcela das camadas médias brasileiras, as quais buscaram
nas revistas e no cinema norte-americano referenciais de “modernidade” para a casa.
Palavras-chave: decoração; cinema; consumo; moderno; domesticidade.
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*Mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo. Esse texto corresponde a um desdobramento da
pesquisa de mestrado intitulada: “Mobiliário Doméstico e as Apropriações do Moderno: a divulgação dos
interiores residenciais nos periódicos especializados e ilustrados (1930-1955)”, que tem financiamento da
FAPESP.
Introdução
O cinema teve papel preponderante nas discussões sobre a modernidade industrial e
urbana perseguida no Brasil durante as décadas de 1930 e 1940. Em paralelo à exibição de
filmes imbuídos de crítica social em relação à construção de uma cultura e identidade
nacional, encontravam-se as populares produções de Hollywood, carregadas de referenciais
simbólicos quanto à constituição do corpo, da casa e de um estilo de vida dito “moderno”.
Imagens de grandes metrópoles, com suas ruas cheias de automóveis e de pessoas circulando,
atravessavam diversos países como representações do desenvolvimento econômico e social.
Mas, não eram apenas as mudanças no espaço urbano que os espectadores podiam vislumbrar
nas películas cinematográficas, a cenografia dos interiores domésticos onde se desenrolavam
tramas fantasiosas e envolventes era um importante componente dos enredos, tanto na
caracterização dos personagens quanto na criação de uma atmosfera de glamour que envolvia
o cinema norte-americano.
Nesse contexto, as revistas ilustradas também atuaram na construção simbólica das
“estrelas” do cinema (MENEGUELO, 1992: 100). Reportagens sobre a carreira dos artistas
mais proeminentes da época, bem como os artigos sobre sua vida pessoal, buscaram promover
um elo entre as temáticas do cinema, a intimidade do artista e o seu gosto pessoal. Se por um
lado as imagens associadas aos artistas eram mobilizadas na venda de produtos, por outro
também atuavam na orientação dos expectadores quanto aos cuidados com o corpo, escolhas
referentes à moda e a decoração da casa, fazendo com que suas vidas se tornassem produtos
de consumo (MENEGUELO, 1992: 101). Nesta perspectiva, o cinema foi um importante
meio de divulgação tanto das linguagens arquitetônicas que estavam em voga, quanto o de
novos comportamentos no espaço privado.
Durante as décadas de 1930 e 1940, as revistas O Cruzeiro e A Cigarra publicaram
uma série de reportagens sobre as residências dos artistas de Hollywood, com o objetivo de
apresentar aos leitores a privacidade dos astros, suas preferências, e, sobretudo, seu modo de
vida. Essas imagens eram colocadas como referenciais de “bom gosto” decorativo e, acima de
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tudo, de “modernidade” para o espaço doméstico. Ao analisarmos as ambientações das
residências dos artistas norte-americanos, divulgadas nas revistas ilustradas, podemos
perceber como o cinema, juntamente com os periódicos, atuaram na conformação de padrões
de gostos referentes à decoração das casas, assim como estabeleceram novos valores para o
espaço doméstico.
As revistas apresentaram fotografias dos interiores dos artistas em seções que
discutiam a vida dos atores e seus últimos trabalhos. Reportagens com os títulos “Onde
moram os astros” ou “Onde moram as estrelas” expunham aos leitores a intimidade dos
artistas. As imagens das residências eram enviadas pelos estúdios de cinema às revistas, já os
textos que acompanhavam as fotografias eram escritos pelos próprios editores do periódico,
como o caso do repórter Marius Swenderson, correspondente especial em Hollywood, que, na
verdade, era um pseudônimo do diretor-chefe da revista O Cruzeiro, Accioly Neto
(BONADIO; GIMARÃES, 2010: 163).
Em 1943, Swenderson apresentou a casa da conhecida artista brasileira, Carmen
Miranda, em Beverly Hills. Tendo em visto o prestígio que a atriz possuía em Hollywood, a
residência foi exposta para que os fãs pudessem conhecer um pouco da vida de Carmen nos
Estados Unidos. Quanto às escolhas decorativas da brasileira, o texto sugere:
Carmen, que possue uma grande noção de bom gosto, acha que seja um “nadinha
luxuosa”, mas compreende também que uma “estrela” de sua importância deverá
possuir sempre um ambiente condigno para receber as pessoas de suas relações,
jornalistas, etc. Hollywood, como qualquer parte do mundo, guia-se pelas
aparências [...]. (O Cruzeiro, 31/07/1943: s/p.).
As imagens exibem a artista em seu living room, decorado em estilo colonial americano,
assim como a sala de jantar e de almoço. Já o quarto é todo ambientando com móveis
ecléticos. A variedade de estilos empregados nas ambientações não era uma exclusividade da
casa de Carmen Miranda, diversas residências publicadas nas revistas ilustradas apresentavam
decorações as mais variadas possíveis. Se a constituição de uma cultura das “aparências” era
primordial no mundo de Hollywood, os interiores das casas dos artistas não poderiam se
distanciar da ideia de glamour e sucesso que permeava suas carreiras. Dessa forma, a
decoração dos interiores atuava na construção da identidade dos artistas junto ao público e aos
próprios produtores de cinema.
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Nesse sentido, os objetos assumem um importante papel na constituição de papeis
sociais bem definidos. De acordo com Daniel Miller, os objetos não podem ser reduzidos a
mercadorias, fetiches que em última escala proporcionam a alienação do sujeito. Os objetos
possuem o que Miller denomina de “humildade” natural, quando devidamente incorporados
se tornam “invisíveis”, funcionando, assim, como uma moldura que guia a nossa percepção
quanto ao que é apropriado (MILLER, 2004:306-307). A casa, assim como sua decoração,
conformam comportamentos tidos no espaço doméstico, uma vez que os objetos
proporcionam possibilidade de diferentes usos dos espaços e, assim, mediam experiências
sociais que ali se desenrolam.
As imagens das residências dos artistas revelam que os objetos usados não são
destacados por seus ornamentos ou estilos, mas como veículos que permitiram a expressão da
individualidade dos seus ocupantes. Nessa nova relação com a decoração e, por sua vez, com
o espaço doméstico, emergiram novos sentidos para a casa, baseados na informalidade e na
expressão da individualidade dos moradores.
Os interiores das residências dos artistas
Em 1947, a revista O Cruzeiro apresentou aos leitores os interiores da residência da
artista Myrna Loy, conhecida por sua participação no drama de guerra: “The best years of our
lives” (1946). A atriz, recém-casada com o produtor e escritor Gene Markey, abriu as portas
de sua casa para que os fãs pudessem conhecer um pouco da sua intimidade. As fotografias
publicadas expõem diversos ambientes da casa, como a sala de estar, a de jantar, o quarto do
casal, a biblioteca, e parte de uma das áreas externas.
Figura 01: Interiores da casa de Myrna Loy.
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VIANY, Elsa. “A casa de Myrna Loy. O Cruzeiro. Rio de Janeiro: Diários Associados, 04/01/1947, p.
86-87. Acervo: Hemeroteca Digital Brasileira.
O texto que acompanha as imagens esclarece o estilo empregado pela atriz na decoração
dos interiores:
A residência dos Markeys em Hollywood é a réplica de uma velha casa de fazenda
da Nova Inglaterra. Um celeiro foi construído perto do edifício principal, só para
dar-lhe mais côr local – e o interior da casa foi decorado a fazer jus à beleza ruivo-
aloirada de sua proprietária. A própria Myrna, numa viagem que fêz ao Estado de
Connecticut, recolheu muitas ideias para a decoração, em casas de fazenda da
Nova Inglaterra (O Cruzeiro, 04/01/47: 86).
O estilo colonial americano, usado na decoração da casa de Myrna, foi amplamente
empregado nas residências norte-americanas construídas ao longo das décadas de 1930 e
1940. O chamado “colonial revival” agregava diversas linguagens arquitetônicas, sobretudo,
aquelas que se remediam a arquitetura dos séculos XVII, XVIII e início do XIX, como a
holandesa, a inglesa e o colonial espanhol. A escolha por estes estilos, tanto nas fachadas
quanto nos interiores, tinha como propósito a criação de residências que, supostamente,
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remetiam-se a herança colonial norte-americana, como o apelo para a questão da
“sinceridade” e da “simplicidade” na arquitetura (GEBHARD, 1987: 116).
A origem do “discurso sincero” encontra-se na tradição protestante, ponto crucial na
formação da identidade nacional nos Estados Unidos. De acordo com o protestantismo, todas
as esferas da vida do indivíduo deveriam expressar o seu caráter moral, principalmente a sua
vida privada. Acreditava-se que os ornamentos ocultavam o verdadeiro significado dos
objetos, logo, em oposição ao estilo luxuoso das casas aristocráticas europeias, a sociedade
norte-americana protestante pregava a busca por uma vida simples, em que os objetos
transmitiam uma ideia de “transparência social”. O autêntico ou o “sincero” seria aquilo que
atendesse somente às necessidades dos moradores, sem o exibicionismo social (LEARS,
1898: 83-85).
Dessa forma, o uso de ambientes com piso e mobiliário de madeira – como pinheiro ou
maple –, sem uma ornamentação excessiva, caracterizavam os interiores decorados nesses
estilos tradicionais. Na década de 1930, interpretações dos estilos coloniais espalharam-se por
todo o país, uma vez que favorecia as famílias que possuíam recursos moderados por conta da
depressão econômica por qual passava o país. Ambientes com poucos objetos ostensivos
apresentavam-se como uma solução atrativa para aqueles que não podiam dispender grandes
somas na decoração das casas. Além disso, por conta das dificuldades econômicas do
momento, o mercado da construção civil encontrava-se em constante retração, assim sendo, a
reforma ou a restauração de casarões antigos garantiam um nicho de trabalho para os
profissionais da área (GEBHARD, 1987: 116).
Em diversas revistas especializadas de arquitetura e decoração, projetos inspirados na
arquitetura colonial americana – também chamada nos periódicos de “New England colonial”,
“Cape Cod cottage”, “colonial Williamsburg” e “Pennsylvania colonial” – foram divulgados
como resultantes do interesse das camadas médias e altas pela preservação das manifestações
arquitetônicas tradicionais. Segundo David Gebhard, as casas coloniais construídas durante a
década de 1930 possuíam uma especificidade que favorecia a apropriação do estilo em
diversas camadas sociais, seria a capacidade de integração de determinados preceitos
modernistas, como a integração entre as áreas de estar e jantar, a integração dos interiores
com a área externa por meio da varanda, utilização de grandes janelas para a entrada de luz,
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além da construção de banheiros e cozinhas devidamente equipados com toda infraestrutura
urbana das redes de água, elétrica e saneamento (GEBHARD, 1987: 119).
Para Jackson Lears, o modernismo europeu ligava-se também ao discurso da
“sinceridade” na aparência, uma vez que propunha que a forma dos objetos deveria enunciar a
sua função. Neste caso, a recusa do ornamento deslocava-se do moralismo religioso para
aproximar-se da ideia de autenticidade. Em contraposição as residências modernistas,
construídas em planta livre e desprovidas de enfeites domésticos, como estátuas de porcelana,
toalhas de crochê ou coleção de souvernirs, as casas coloniais promoviam uma forma de aliar
as ideias modernistas quanto à circulação e integração dos espaços internos, porém, sem abrir
mão de peças decorativas que demonstravam o gosto pessoal dos moradores (LEARS, 1989:
85).
Além da divulgação das casas coloniais nos periódicos da época, a indústria
cinematográfica de Hollywood foi um importe meio de divulgação do estilo entre as camadas
médias. A maioria das casas dos atores e diretores, localizadas em Beverly Hills, era em estilo
colonial, projetadas por renomados arquitetos de Los Angeles, como Paul R. Williams,
Roland R. Coate, John Byers, entre outros. Tamanha difusão do estilo criou no imaginário
social a imagem da casa colonial como o tipo de residência característica dos Estados Unidos,
presente nos subúrbios das grandes cidades (GEBHARD, 1987: 117).
As imagens das residências dos artistas de cinema que circularam nas revistas
brasileiras apresentam o colonial americano como estilo característico das habitações
tradicionais do Estado Unidos. A sala da casa de Mryna Lot é divulgada como uma
representação fiel do interior de uma fazenda típica de Connecticut. Nesse mesmo propósito, a
casa de campo Bette Davis expõe em diversos ângulos o estilo colonial, visto na fachada da
moradia, na sala de jantar, no quarto e em parte da varanda.
Figura 02: Residência de Bette Davis.
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O Cruzeiro. “Onde moram as ‘estrellas’”. Rio de Janeiro: Diários Associados, 12/10/1940, s.n.p. Acervo:
Hemeroteca Digital Brasileira.
Uma das versões dos estilos coloniais era o colonial holandês, caracterizado por um
telhado de grambel, que tem duas alturas diferenciadas, sendo uma delas maior e íngreme em
relação à outra. As fotografias dos interiores apresentam as vigas do telhado expostas, como
parte da decoração do ambiente, além da parede da sala de tijolas, sem a presença do típico
papel de parede. A primeira legenda, localizada em baixo da fotografia da fachada da
residência esclarece a escolha pela divulgação da casa de Davies: “Bette Davies possue uma
linda casa de campo, que fornecerá suggestões preciosas para as nossas leitoras em futuras
decorações” (O Cruzeiro, 12/10/47).
A intenção da apresentação dos arranjos era tanto a divulgação dos estilos já visto nos
cenários de diversos filmes de Hollywood, quanto à orientação para a formação de arranjos
criativos, para lares que não podiam dispender grandes somas com móveis ricamente
trabalhados. Poucos objetos, dispostos de forma “original” poderiam atentar tanto as questão
da funcionalidade dos espaços quanto à exibição do bom gosto dos moradores.
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A decoração e a cultura da personalidade
Além da preocupação com a funcionalidade dos espaços da casa, a decoração
representava um meio de expressão pessoal dos moradores. Logo, as escolhas por
determinadas peças deveriam salientar aspectos da personalidade dos atores, como o caso dos
atores Stan Laurel e Oliver Hardy, conhecidos do público por interpretarem no cinema os
cômicos papeis de “O gordo e o magro”, construíram uma casa em Brentwood numa
“miscellanea de estylos”. O Cruzeiro justifica:
Laurel & Hardy, pândegos como nos filmes, fazem questão dessa maluquice. Varios
arquitetos, muito ciosos de sua arte, recusaram fornecer ao gordo e ao magro o
projecto que elles queriam, mas afinal appareceu um que os attendeu. Agora a
dificuldade está com o constructor, que se verá louco para dirigir os trabalhos de
tanta mistura de estylo... Mas que querem? Trata-se de uma casa para o gordo e o
magro!...(O Cruzeiro, 12/01/1935: s/p).
A intenção na construção desses arranjos não era apenas a exibição de poder aquisitivo
dos moradores, mas também um meio de expressão da personalidade dos artistas. Logo, a
escolha dos móveis e objetos da casa, assim como sua disposição nos interiores deveria
salientar as características pessoais dos seus usuários, que muitas vezes, se confundiam com
as próprias performances dos artistas em suas interpretações cinematográficas.
Os interiores da casa de John Litel, em estilo eclético, foram apresentados como
ambientes sóbrios, “bem de acordo com o seu temperamento” (O Cruzeiro, 02/11/1940: s/p).
Em contraposição à casa da atriz Shirley Temple, que apresentava estofados floridos por toda
a parte, descrita da seguinte forma: “Finalmente temos a casinha deliciosa de Shirley Temple,
estrella da Fox Filme. Como ella, tudo aqui respira graça infantil e aquelle encanto natural que
a tornaram incontestavelmente dona do almejado titulo de ‘namorada do mundo’” (O
Cruzeiro, 12/01/1935: 31). Mais do que um modo de arranjo da casa, pautada por
preocupações estéticas e funcionais, a decoração atuava na construção de representações
sociais, trabalhando no imaginário do público em relação à vida íntima dos “astros”, suas
preferências pessoais e o seu comportamento na esfera doméstica.
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Desde o início do século XX, decoradores, colunista e autores de manuais domésticos
enfatizavam a importância da individualidade no arranjo dos ambientes da casa. Os
argumentos centralizavam-se na ideia de que a decoração atuava como uma linguagem sobre
o gosto pessoal dos moradores (HALTUNNEN, 1989: 72). Além das preocupações com
relação à funcionalidade dos espaços, comodidade e simplicidade, a exibição de traços
pessoais dos usuários seria fundamental na constituição dos novos espaços. Logo, a decoração
passa a ser vista dentro de um projeto arquitetônico e não mais como um simples arranjo de
peças coletadas aleatoriamente.
Por essas razões, os manuais de decoração passaram a oferecer detalhadas discussões
sobre os estilos das mobílias e de sua disposição na casa, promovendo um léxico de estilos
associados ao mobiliário com os quais poderiam escolher as mais apropriadas peças para
expressar sua personalidade (HALTUNNEN, 1989: 187-189).
As residências femininas apresentadas em O Cruzeiro e A Cigarra possuíam algumas
características comuns, como o uso de estofados estampados, cortinas com babados, mesa
arrumada para refeições e um piano na sala. As fotografias privilegiavam poses onde a artista
aparecia envolvida em atividades corriqueiras, tocando piano, no preparo das refeições, na
leitura de um livro ou no momento da realização da maquiagem e higiene pessoal, assim
como visto nas imagens de Barbara Stanwick em casa.
Figura 03: Casa de Barbara Stanwick
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O Cruzeiro. “O lar solitário de Barbara Stanwick”. Rio de Janeiro: Diários Associados, 16/07/1938, p. 50-51.
Acervo: Hemeroteca Digital Brasileira.
O que chama a atenção na reportagem é o título – “O lar solitário de Barbara
Stanwick”. Na época em que as fotografias foram tiradas, a atriz encontrava-se divorciada do
seu primeiro marido. No entanto, o (bom) arranjo da casa poderia mudar tal situação. A
Cigarra sinalizou tal situação ao apresentar a casa de Joan Bennet: “as vezes, no arranjo do
lar está o segredo de conquistar um marido. Pelo menos, assim pensa Joan Benett” (A
Cigarra, jan. 1942). Ambientes com poucos móveis, com enfoque em objetos que enalteciam
as qualidades femininas da atriz – como o piano e a penteadeira – sinalizavam tanto o
comportamento feminino no lar, como também o definiam.
Ao analisar as representações femininas na casa, no contexto paulistano dos anos de
1870 a 1920, Vânia Carneiro de Carvalho aponta para o fenômeno da “despersonalização
feminina” no espaço doméstico, tanto em sua dimensão material como simbólica. A
associação do corpo feminino às flores, usada em metáforas do corpo, também aparece nas
estampas e elementos florais dos objetos domésticos, estabelecendo as flores como uma das
marcas femininas na casa. Nos manuais e artigos de revistas, as mulheres aparecem
frequentemente posicionadas ao lado de arranjos florais, usando estampas com os mesmos
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motivos, entre outras associações (CARVALHO, 2008: 87-90). Tais objetos não atuavam
como meros enfeites, mas como coloca a autora, constituíam “uma forma palpável e de fácil
acionamento daquilo que eram conceitos sobre a vida, sobre a civilização, a arte, a educação,
os valores morais, culturais e políticos dessa sociedade” (CARVALHO, 2008: 89).
No caso das fotografias das artistas, publicadas nas revistas, a associação com objetos
femininos pode ser vista, tanto na sala de estar quanto nos ambientes mais privados como o
quarto. As mulheres aparecem posicionadas ao lado de arranjos florais, ou em pé próximas a
cortinas estampadas. Porém, diferente das poses analisadas pela autora, em que as mulheres
aparecem em posições rígidas, aqui as artistas, por vezes, são fotografas em situações de
relaxamento, sentadas com os pés dobrados em cima do sofá, ou até mesmo, deitadas na
cama, sinalizando uma importante mudança nas ações femininas na casa, o conforto e o
relaxamento individual da mulher.
Apesar das poses corporais serem cada vez mais espontâneas e relaxadas, a
preocupação com a beleza e aparência pessoal continuava como parte essencial das atividades
femininas na casa. Seria no lar que a mulher realizava os cuidados com a higiene e
maquiagem para ser vista pelo marido quando este retornasse a casa. Para tanto, O Cruzeiro
argumentava:
Muitas são também as mulheres que negligenciam completamente a sua beleza
dentro das quatro paredes do seu lar, como se a beleza só existisse quando saem à
porta da rua. No entanto, é exatamente o contrário que deve suceder. Os cuidados,
a preocupação de estar bem devem estar sempre presentes na vida da mulher e em
nenhuma parte ela o poderá fazer melhor do que em casa” (O Cruzeiro,
16/01/1943: s/p.).
Como exemplo de mulher dedicada aos afazeres domésticos e ao mesmo tempo atenta
à aparência pessoal, a Revista apresentou a atriz Mary Martin, contratada do estúdio
Paramount, dentro da sua casa, em poses cotidianas, como o acordar na cama, com seu
primeiro filho, na sala de estar e arrumando a mesa para o jantar. Assim argumentava a
Revista: “Perfeita dona de casa, Mary Martin soube compor sua residência, com móveis
elegantes e simples, numa harmoniosa combinação decorativa”, ou, “Mary Martin mostra
como ser elegante em casa, mesmo quando esta ocupada na cozinha...” (O Cruzeiro,
16/01/1943: s/p).
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Figura 04: Residência de Mary Martin.
BARROS, Fernando de. “A Beleza no Lar”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro: Diários Associados, 16/01/1943, s/p.
Acervo: Hemeroteca Digital Brasileira.
Diferentemente da casa de Barbara Stanwick, em estilo colonial americano, a casa de
Vicent Price se destacava das demais por apresentar linhas simplificadas, ambientes sem o
característico papel de parede ou o carpete no piso; móveis sem ornamentos, com poucos
objetos decorativos foram usados para ambientar a casa do artista, logo descrita no título do
artigo como pertencente a um “solteiro”. O artigo esclarece:
Apesar de solteiro – e dos bons partidos de Hollywood... – a casa do astro da Fox é,
evidentemente, uma casa de artista, como os leitores poderão facilmente verificar
pelas fotografias que ilustram a presente reportagem. Tanto nos interiores como
também no exterior, reina uma atmosfera de simplicidade [...]. Mas Vicent Price
acha que a casa de um homem deve ser bem masculina (O Cruzeiro,
01/06/1946:82).
Figura 05: Casa de Vicent Price
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O Cruzeiro. “Uma casa de solteiro...”. Rio de Janeiro: Diários Associados, 01/06/1946, p. 82-83. Acervo:
Hemeroteca Digital Brasileira.
A personalidade do ator é descrita com um amante das artes, apaixonado pela pintura e
escultura, sendo assim um colecionador de quadros, esculturas, porcelanas, além de
“apreciador de bons livros”. As fotografias apresentam o artista em seu estúdio pessoal, ao
redor de quadros de sua própria autoria, já na parte inferior das páginas que compõem o arito
vemos a vista da sala de refeições. Neste espaço podemos observar uma bancada em “L”, com
apenas dois assentos, diferente das salas de jantar femininas com espaçosas mesas de jantar,
mesmo que para dois lugares. O tamanho da bancada sugere que ali eram realizadas refeições
rápidas, já servidas em pratos individuais. Uma única poltrona, localizada no canto da sala,
junto a uma pequena mesa de apoio e um aparador, que completam os móveis do ambiente.
O arranjo sugere que usos de poucos objetos decorativos, flores, e até mesmo a
ausência de uma fotografia que apresente o ator em sua sala de estar, demonstram que a
construção do masculino se fazia em uso de objetos individuais – a poltrona, o estúdio
pessoal, a mesa de jantar por lugares espaçados e até isolados uns dos outros.
Ao analisar os repertórios masculinos no espaço doméstico, Vânia Carvalho, observou
que estes são regidos por uma lógica estritamente pessoal, sendo que os objetos apontam para
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a construção de uma masculinidade voltada para a máxima individualização. Ao contrário das
ações femininas, alargadas por toda a casa, observadas na recorrente imagem da mulher
sentada no sofá lendo para os filhos em contraposição ao homem sentado em uma poltrona,
lendo o seu jornal (CARVALHO, 2008: 114).
Mais do que a apresentação de diferentes formas de arranjar a casa, a divulgação das
residências dos artistas tinham como proposito introduzir uma nova relação com o espaço
doméstico, baseado na descontração e informalidade. Poses relaxadas, imagens de
personagens conhecidos do público realizando atividades corriqueiras carregam a ideia de que
no espaço doméstico era um local de simplicidade, mesmo para os famosos, porém, nunca
descuidando quanto à aparência pessoal e, por sua vez, do arranjo da casa.
Um estilo próximo de Hollywood
Em paralelo às imagens das casas dos artistas, a coluna sobre decoração publicada
na revista O Cruzeiro apresentou ao público duas ilustrações de ambientes decorados no estilo
colonial americano: um dormitório e uma sala de estar. O texto divulgado juntamente com as
ilustrações expõe: “O colonial americano volta a dominar nos Estados Unidos. É um gênero
decorativo de muito effeito e bastante proprio para apartamentos, porque não fica muito caro
[...]” (O Cruzeiro, 03/08/1940: s/p).
Diferentemente das grandes casas norte-americanas em que o estilo foi empregado, aqui
os apartamentos ofereciam uma nova forma de moradia, onde expressões decorativas
“simplificadas” possibilitavam contornar a questão da falta de espaço. Poucos móveis, com
linhas simplificadas e ausência de ornamentos que elevavam os valores da mobília
apresentavam-se como uma opção viável de consumo. Além disso, as ambientações dos
artistas, conhecidas do público, forneciam referências de decorações que eram partilhadas
socialmente como modelos de casa “moderna” – funcional e confortável.
O artigo de 1940, “Colonial americano”, publicado em O Cruzeiro, expôs uma sala de
esta característica lareira, acompanhada de um sofá estampado em motivos florais e saia de
babados, em frente ao sofá encontra-se uma mesa de centro de madeira; uma cadeira sem
estofamento e uma cristaleira de madeira completam o ambiente. O segundo ambiente
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divulgado trata-se de um dormitório, este mobiliado com uma cama com dossel, cômoda e
cadeiras de madeira, disposta em um espaço com um florido papel de parede e cortinas cheias
de babados na janela. O objetivo da publicação era o de apresentar aos leitores características
do estilo adotado na decoração, já observado nas seções sobre a vida dos famosos de
Hollywood.
Algumas características quanto aos interiores coloniais americano podiam ser
observadas, como o uso de madeira em diversos móveis, sem o encobrimento das suas
formas. Linhas retilíneas ou levemente abaloadas são usadas, interpretações de um estilo
rústico e tecidos usados de algodão, lã e linho.
Figura 06: Colonial Americano
O Cruzeiro. “Colonial Americano”. Rio de
Janeiro, 03/08/1940, s/p. Acervo: Hemeroteca
Digital Brasileira
Além das imagens que circularam nas revistas ilustradas, fabricantes de móveis, como a
Indústria de Móveis Drago e Móveis Lamas lançaram linhas de móveis em “estilo colonial”,
tendo como referência o colonial norte-americano. O anúncio de 1941 apresentou um
conjunto de móveis para o dormitório arranjados em um espaço decorado com cortinas com
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estampadas florais e papel de parede. Penteadeira, duas cadeiras, mesa de cabeceira e cama
apresentam linhas com poucos ornamentos, que permite versatilidade nas formas de dispor os
móveis nos ambientes.
Figura 07:
Propaganda Móveis Lamas
O Cruzeiro. “Moveis Lamas”.
Rio de Janeiro: Diários
Associados, 17/05/1941, p. 20.
Acervo: Hemeroteca Digital
Brasileira
A decoração usada nas residências dos artistas forneceu um referencial de consumo para
as camadas médias brasileiras que viam nas exposições das fábricas e marcenarias locais
modelos de móveis alinhados aos ambientes ora expostos no cinema e nas revistas ilustradas.
As linhas características do estilo, simplificadas, sem encobrimento, apresentavam-se como
uma opção viável de decoração com poucos móveis. Além disso, a presença de objetos
pessoais e decorativos permitia a criação de arranjos diversificados e personalizados, uma
importante saída para as famílias com recursos reduzidos. Mais do que uma nova organização
dos móveis e objetos domésticos, a decoração conformou identidades sociais e de gênero
dentro da casa, demarcando papéis diferenciados para ambos os sexos tanto na forma de
apresentar a casa quanto em usá-la.
BIBLIOGRAFIA
17
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