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Publ. UEPG Ci. Hum., Ci. Soc. Apl., Ling., Letras e Artes, Ponta Grossa, 16 (1) 45-53, jun. 2008 CDD: 370.71 O PAPEL DA ESTATÍSTICA NA LEITURA DO MUNDO: O LETRAMENTO ESTATÍSTICO EL PAPEL DE LA ESTADÍSTICA EN LA LECTURA DEL MUNDO: LA ALFABETIZACIÓN ESTADÍSTICA Irene Mauricio Cazorla 1 , Franciana Carneiro de Castro 2 Recebido para publicação em 20/11/2007 Aceito para publicação em 01/03/2008 RESUMO As informações estatísticas permeiam o cotidiano dos cidadãos e muitas acabam influenciando suas decisões. Contudo, essas informações podem conter armadilhas, que o cidadão comum não consegue perceber e desarmar por não possuir conhecimentos básicos de Estatística. Nesse sentido, a inclusão dos conceitos básicos de Estatística e Probabilidades no currículo da Educação Básica, através dos Parâmetros Curriculares Nacionais, possibilita um grande avanço na formação para a cidadania. Para tanto, se faz necessário repensar a formação profissional dos professores para que possam desenvolver uma atitude de reflexão e crítica e novas abordagens educativas no processo de trabalho, o qual revela a complexidade que envolve a ação de ensinar e aprender a leitura matemática em sala de aula. Assim, torna-se indispensável para quem trabalha com a formação inicial e continuada dos professores, incorporarem novos elementos formativos a partir das referências cognitivas que direcionam os esquemas de ação dos professores na constituição de um corpo de saberes e práticas concernentes à ação docente que permita que a experiência cotidiana possa ser incorporada de forma crítica na prática escolar. Palavras-chave: leitura de dados estatísticos; professor de Matemática; cidadania; formação docente. RESUMÉN Las informaciones estadísticas permean la vida de los ciudadanos y muchas de esas acaban influenciando sus decisiones. Sin embargo, esas informaciones pueden contener trampas que un cuidadano común no consige desconfiar, ni desarmar porque no tiene conocimientos básicos de Estadística. En este sentido, la inclusión de los conceptos básicos de Estadística y Probabilidades en el currículo de la educación primaria y secudaria, a través de los Parametros Curriculares Nacionales, posibilita 1 Doutora em Educação, UNICAMP - Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC - [email protected] 2 Doutoranda em Educação, PUC-SP - Professora Assistente da Universidade Federal do Acre - UFAC - [email protected]

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Publ. UEPG Ci. Hum., Ci. Soc. Apl., Ling., Letras e Artes, Ponta Grossa, 16 (1) 45-53, jun. 2008

CDD: 370.71

O PAPEL DA ESTATÍSTICA NA LEITURA DO MUNDO:O LETRAMENTO ESTATÍSTICO

EL PAPEL DE LA ESTADÍSTICA EN LA LECTURA DEL MUNDO:LA ALFABETIZACIÓN ESTADÍSTICA

Irene Mauricio Cazorla1, Franciana Carneiro de Castro2

Recebido para publicação em 20/11/2007Aceito para publicação em 01/03/2008

RESUMO

As informações estatísticas permeiam o cotidiano dos cidadãos e muitasacabam influenciando suas decisões. Contudo, essas informações podem conterarmadilhas, que o cidadão comum não consegue perceber e desarmar por não possuirconhecimentos básicos de Estatística. Nesse sentido, a inclusão dos conceitos básicosde Estatística e Probabilidades no currículo da Educação Básica, através dosParâmetros Curriculares Nacionais, possibilita um grande avanço na formação paraa cidadania. Para tanto, se faz necessário repensar a formação profissional dosprofessores para que possam desenvolver uma atitude de reflexão e crítica e novasabordagens educativas no processo de trabalho, o qual revela a complexidade queenvolve a ação de ensinar e aprender a leitura matemática em sala de aula. Assim,torna-se indispensável para quem trabalha com a formação inicial e continuada dosprofessores, incorporarem novos elementos formativos a partir das referênciascognitivas que direcionam os esquemas de ação dos professores na constituição deum corpo de saberes e práticas concernentes à ação docente que permita que aexperiência cotidiana possa ser incorporada de forma crítica na prática escolar.

Palavras-chave: leitura de dados estatísticos; professor de Matemática; cidadania;formação docente.

RESUMÉN

Las informaciones estadísticas permean la vida de los ciudadanos y muchasde esas acaban influenciando sus decisiones. Sin embargo, esas informaciones puedencontener trampas que un cuidadano común no consige desconfiar, ni desarmar porqueno tiene conocimientos básicos de Estadística. En este sentido, la inclusión de losconceptos básicos de Estadística y Probabilidades en el currículo de la educaciónprimaria y secudaria, a través de los Parametros Curriculares Nacionales, posibilita

1 Doutora em Educação, UNICAMP - Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC - [email protected] Doutoranda em Educação, PUC-SP - Professora Assistente da Universidade Federal do Acre - UFAC - [email protected]

Editora
Typewritten text
Doi: http://dx.doi.org/10.5212/PublicatioHum.v.16i1.045053
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un gran avanzo en la formación para la ciudadania. Para tanto, se hace necesariorepensar la formación profesional de los professores para que ellos puedantomar una actitud de reflexión y propongan nuevos enfoques educativos en elproceso del trabajo docente, lo que revela la complejidad que envuelve la acciónde enseñar y aprender la lectura matemática en la classe. Asi, es indispensablepara quien trabaja con la formación inicial e continuada de profesores, incorporarnuevos elementos formativos a partir de las referencias cognitivas quedireccionan los esquemas de acción de los profesores en la constituición de uncuerpo de saberes y prácticas concernientes a la acción docente que permitaque la experiencia del cotidiano pueda ser incorporada de forma crítica en lapráctica escolar.

Palabras-clave: lectura de dados estadísticos; profesor de Matemática;ciudadania; formación docente.

Introdução

A palestra intitulada “O papel da Estatística naleitura do mundo: o letramento estatístico” apresenta-do no VII Colóquio do Museu Pedagógico da Univer-sidade do Sudoeste da UESB, Vitória da Conquista,Bahia, teve como base o texto “As armadilhas estatís-ticas e a formação do professor” elaborado e apre-sentado oralmente por e Irene Cazorla e FrancianaCastro, no 16º Congresso de Leitura do Brasil –COLE.

O COLE sempre teve como uma de suas metasa formação de uma comunidade leitora, onde as pes-soas exerçam a prática de leitura enquanto um direitoà cidadania e usufruam dos bens materiais e culturaisproduzidos em sociedade. Na sua 16º edição, com oslogan “No mundo há armadilhas e é preciso quebrá-las”, pretendia, de um lado, socializar estudos e pes-quisas em uma perspectiva multidisciplinar sobre leitu-ra, educação e cultura escrita e, de outro, contribuirpara o incremento das políticas públicas na promoçãoda leitura no Brasil.

As armadilhas, que o 16º COLE se referia, sãoaquelas “enjauladas em palavras, símbolos e discur-sos” que permeiam a nossa sociedade, nos mais diver-sos campos, o político, o cultural e, talvez, o mais im-portante para nós, professores, o educacional.

Contudo, para nós educadores matemáticos e,mais ainda, estatísticos, gostaríamos de acrescentar àspalavras, símbolos e discursos, as armadilhas emana-das do poder dos números. Os números passam a idéia

de cientificidade, de isenção, de neutralidade. Quandodiscursos, propagandas, manchetes e notícias veicula-das pela mídia, utilizam informações estatísticas (nú-meros, tabelas ou gráficos), essas ganham credibilidadee são difíceis de serem contestadas pelo cidadão co-mum, que chega até a questionar a veracidade dessasinformações, mas ele não está instrumentalizado paraargüir e contra argumentar.

Isto acontece porque os números atribuem umsenso de racionalidade para as decisões complexas,exacerbado pela “crescente sensação de que nadapode ser definido como verdade a não ser que sejasustentado por uma pesquisa estatística”. As informa-ções vêm “vestidas em complexas tabelas e gráficosque medem, geralmente, com aridez, do décimo aocentésimo de um ponto decimal. O empacotamentodas conclusões de uma pesquisa faz com que elas pa-reçam ainda mais intimidadoras do que realmente são.As únicas pessoas que podem analisar as pesquisassão aquelas que as fazem. Isto praticamente garanteuma recepção acrítica da imprensa e do público”(CROSSEN, 1996, p. 28).

Para Crossen, no final da cadeia da informaçãose encontram os consumidores e a maioria deles nãopossui sequer noções básicas de Estatística. Comoresultado, esses consumidores não têm nem a confian-ça, nem as ferramentas necessárias para analisar as in-formações divulgadas. Apesar de saberem o suficientepara desconfiar de alguns números, em geral, se en-contram sem defesas.

Nesse sentido, se as palavras representam o ara-

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me da armadilha, talvez os números representem asfarpas e, assim, o maior desafio não é “quebrá-las” esim “desarmá-las”, “desmontá-las”.

Nesse contexto, perguntamos: como a escolapode formar leitores historicamente situados, a fim deque estes possam lutar com, nos e pelos discursos quecirculam nessa sociedade injusta e de privilégios e sejacapaz de desmontar essas armadilhas, pelas quais seperpetua a injustiça, a desigualdade e todas as mazelasda nossa sociedade.

A nosso ver, uma experiência de leitura não serácompleta sem o entendimento da lógica das informa-ções matemáticas e estatísticas que permeiam os dis-cursos, as ciladas e as armações dos “donos das infor-mações”. Nesse sentido, é preciso romper esse hiatopalavra/número, é preciso letrar e numerar todo ci-dadão, para que esse possa entremear-se nas armadi-lhas discursivas perigosas e traiçoeiras, produzir senti-dos outros das coisas, dos fatos, dos fenômenos,desarmá-las, enfim.

Cada vez mais, assistimos a poluição das infor-mações com números, estatísticas e gráficos. Basta lem-brar o último pleito eleitoral para vermos como a mídiatelevisada e impressa usa um linguajar que é assumidoser conhecido pelo cidadão comum. Termos antes res-tritos à academia, tais como margem de erro, nível deconfiança, amostragem entram nos lares brasileiros nohorário nobre da televisão. Outdoors, revistas, jornaisestampam gráficos, cada vez mais coloridos, mais so-fisticados, mais envolventes, mais eficientes, porém, nemsempre fidedignos.

Hoje vemos concretizada a profecia de Well, queantes da metade do século XX já alertava que para serum cidadão pleno, esse deveria estar capacitado paracalcular, pensar em termos de média, máximo e míni-mo, assim como a ler e escrever (RUBERG eMASON, 1988).

O apelo para o uso da representação gráficadeve-se a eficiência para transmitir informações e porser visualmente mais prazerosa, existindo evidênciasde que os formatos gráficos apresentam a informaçãode uma forma mais amena para as pessoas percebe-rem e raciocinarem mais facilmente sobre ela(CAZORLA, 2002).

Todavia, observa-se que muitas das informações

recebidas são contraditórias, se reportam as pesqui-sas com fundamentação observacional, experimental eestatística que, às vezes, chegam a resultados contra-ditórios, sendo que, em geral, a natureza da pesquisamal chega a ser compreendida, uma vez que sãodivulgadas apenas algumas das conclusões, de formaincompleta, distorcida, descontextualizada, induzindoo consumidor a formar opiniões e tomar decisões equi-vocadas.

Neste ponto, é preciso compreender que a mai-oria das informações provenientes de levantamentosestatísticos, na busca de estimar tendências eparâmetros, tem por base uma amostra, a partir daqual os parâmetros são estimados. Logo, as inferênciasobtidas, com base em dados amostrais, estão sujeitasa erros provenientes da própria amostragem.

Também, deve-se compreender que por trás detoda informação veiculada pela mídia, existe um pa-trocinador, alguém que pagou pela pesquisa e que,portanto, essa não é neutra e responde a interesses demercado.

A Figura 1 ilustra o percurso da geração da in-formação estatística e sua veiculação até o cidadãocomum (CAZORLA, 2006).

Figura 1 - Processo de geração e veiculação de informaçõesestatísticas.

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Observa-se, ainda, que para atingir seus propó-sitos, os “donos” ou “veiculadores” da informação nãonecessariamente precisam mentir, nem maquiar os da-dos, basta apenas escolher as estatísticas, tabelas egráficos que lhe sejam convenientes para convencer o“consumidor” a optar pela sua causa, bem ou serviço(CROSSEN, 1996).

Edward R. Tufte, no seu celebre livro: “The Vi-sual Display of Quantitative Information”, publicado em1983, mostra inúmeros exemplos de gráficos publica-dos em jornais e revistas americanos de prestígio, masque cometem erros conceituais graves, muitas vezesem prol da estética do gráfico. Um outro livro célebreque mostra como é possível mentir com estatística, cujotítulo é bastante sugestivo: “How to lie with statistics”,foi escrito por Huff, em 1954.

Um exemplo claro, simples e muito familiar paraqualquer cidadão brasileiro é a pesquisa eleitoral, poisa cada dois anos, o Brasil tem eleições e a disputaeleitoral tem nos resultados das pesquisas eleitorais,talvez a principal referência.

Nas eleições de 2006, muitos institutos de pes-quisa, sabidamente conceituados, erraram seus prog-nósticos de forma muito grave. O exemplo mais con-tundente foi o da eleição para o Governo no Estado daBahia. A Tabela 1 e a Figura 2 ilustram os resultadosdas pesquisas eleitorais do Instituto IBOPE, de julho asetembro, e o resultado das urnas e, a Figura 3, ilustrao desempenho da pesquisa na “véspera” da eleição.

Em termos de votos válidos, o candidato PauloSouto sempre esteve pelo menos 20% acima do se-gundo colocado, o candidato Jacques Wagner. Doponto de vista estatístico, com esses dados, a proba-bilidade de uma reversão da tendência seria infinita-mente pequena, quase impossível. No entanto, não sóo candidato Jacques Wagner ultrapassou Paulo Souto,como o fez com folga, liquidando o pleito já no primei-ro turno.

Observa-se a importância de informações comoesta pelo seu impacto na formação de opinião dos elei-tores. Estudos mostram (ALMEIDA, 2003;GASPARETTO, 1999, 2006) que os resultados daspesquisas eleitorais induzem o eleitor, havendo a pro-pensão ao voto ganhador ou voto útil. Isto é muito gra-ve, pois o cidadão fica vulnerável a informações comoestas, não compreendendo o processo estatístico e de

uso da informação.Nesse caso, não acreditamos que tenha havido

má-fé no processo estatístico de coleta e análise dedados, uma vez que a confiança e credibilidade sãodois valores que qualquer instituto de pesquisa de opi-nião almeja e a credibilidade está em função da maiorquantidade de acerto nas pesquisas desses institutos.

Então, fica a pergunta, por que um erro tão gra-ve? Levantamos algumas hipóteses, dentre elas a maisimportante é de que a Estatística, assim como qual-quer ferramenta científica, parte de pressupostos quedevem ser respeitados, tais como, por exemplo, a dis-tribuição aleatória e representativa da amostra em re-lação à população em estudo; um sistema eficiente decontrole de qualidade da coleta de dados (lembrar quequem colhe os dados são pessoas), dentre outras ques-tões operacionais. Por outro lado, a Estatística é ape-nas uma ferramenta, que gera dados “frios”, “limita-dos” e “estáticos”; quem dá vida aos dados transfor-mando-os em informações relevantes são os especia-listas (cientistas políticos, sociólogos, publicitários etc.),aqueles que lêem e traduzem seus significantes em sig-nificados.

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Tabela 1 - Resultados das pesquisas do IBOPE e das urnas, na eleição para Governador do Estado da Bahia. (em porcentagem).

Fonte: http:/www.uol.com.br/fernandorodrigues. Intenções de voto incluem votos em brancos e nulos. Votos válidos incluem apenas votosem candidatos.

Figura 2 - Resultados das pesquisas do IBOPE e das urnas,na eleição para Governador do Estado da Bahia.

Figura 3 - Desempenho da última pesquisa do IBOPE emrelação ao resultado nas urnas.

Exatamente neste ponto nos perguntamos, seráque esse processo é tão complexo que um professor,seja de Matemática ou qualquer outra área, não consi-ga fazer essas leituras. Nós acreditamos que sim, pelomenos entender o processo envolvido na geração des-ses dados, tendo em vista que, em tese, esse professoré formado em cursos de nível superior.

Mas, se por um lado, a “guerra” política pelosvotos dos cidadãos pode desencadear uma disputaacirrada e nada ética, traduzida numa “guerra” de in-formações, onde as palavras, os discursos e os núme-

ros se transformam em armadilhas, deixando vulnerá-vel o cidadão; por outro lado, a própria lei lhe possi-bilita amparo, oportunizando-lhe o direito à informa-ção.

Nesse caso específico, a Lei Eleitoral Nº. 9.504,de 30 de setembro de 1997 (Quadro 1), possibilita aqualquer cidadão vistas aos “bastidores” da informa-ção estatística gerada para a divulgação de pesquisaseleitorais.

Se esta faculdade, atribuída por lei, fosse utiliza-da pelos professores de Matemática, articulados com

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os alunos e representantes políticos, para terem aces-so a essas informações, levando-as para a escola a fimde discutir os conceitos matemáticos/estatísticos en-volvidos no processo de levantamento dos dados, doplano amostral (distribuição dos entrevistados por bair-ros ou regiões), das perguntas formuladas, dentre ou-tros aspectos da pesquisa, certamente fariam repensar

aqueles políticos e institutos de pesquisa que usam eabusam da ferramenta estatística

Nesse sentido, o professor de Matemática nãopode se limitar a ser o mero repassador de fórmulas ealgoritmos, mas deve dar sentido e vida a essa mate-mática escolar que parece tão distante, mas que se fazcada vez mais necessária.

Quadro 1 - Trecho da Lei Eleitoral Nº 9.504.

De tal forma que, quando alguém ler a seguintemanchete “Políticos do PT são os que têm o maioravanço patrimonial” (Quadro 2) seja capaz de dizer,por que não colocar os dados da tabela em gráficos,desmanchando a manchete. Uma manchete como aacima referida parte do pressuposto de que a maioriado público só lê as manchetes e de que as pessoas nãotêm treino de ler números, fazer comparações entre osnúmeros, ler tabelas.

Se ao invés de apresentar os dados em uma ta-bela, esses tivessem sido apresentados em um gráficode barras como o da Figura 4, a manchete não se sus-

tentaria ou não teria o efeito que tem da forma comoestá. Se ainda ordenássemos os dados de maior amenor patrimônio por partido político, veremos que oargumento cai por terra. A pergunta que deixamos aquié: será que nossos cursos de Licenciatura em Mate-mática e em Pedagogia que formam os professores quelecionam Matemática na Educação Básica conseguemfazer esse tipo de argumentação? De que cidadania,de que alfabetização, letramento e numeramento,estamos falando, se não conseguimos formar profes-sores que desarmem as armadilhas das informaçõesveiculadas pela mídia?

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Quadro 2 - Trecho da manchete publicada na UOL, no dia 27/08/2006.

Diante desta realidade, é preciso preparar o ci-dadão para que compreenda o processo de geraçãodas informações estatísticas, a fim de que seja capazde argüir, solicitar outras informações e tomar deci-sões conscientes, sem se deixar levar pela “cien-tificidade” dos dados numéricos (CROSSEN, 1996).

Por essa razão, estas discussões deveriam permear oensino de Matemática da Educação Básica, pois nãose pode esperar que os cidadãos cheguem à universi-dade para compreender o jargão estatístico e suasmazelas, levando-se em consideração que a maioriados cidadãos não tem acesso à universidade.

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Figura 4 - Gráfico de barras construído a partir da tabela apresentada na reportagem “Políticos do PT são os que têm o maioravanço patrimonial”.

Nesse sentido, a inclusão dos conceitos básicosde Estatística e Probabilidades no currículo da Educa-ção Básica, através dos Parâmetros Curriculares Na-cionais, possibilita um grande avanço na formação paraa cidadania.

Todavia, para a implementação desses conteú-dos faz-se necessário que a formação do professortrabalhe nessa perspectiva, isto implica incluir essesconteúdos no currículo dos cursos de Licenciatura deMatemática e Pedagogia. Além disso, integrar essesconteúdos conceituais e procedimentais, a fim de quesejam trabalhados de forma crítica e argumentativa nointuito de responder as informações que circulam nomundo moderno.

Refletindo sobre a formação do professor queensina Matemática, em especial do Licenciado emMatemática, observamos que esse raramente é for-mado com uma visão mais abrangente da sociedade;do papel da Matemática, enquanto ferramenta a servi-ço da inclusão social, se se trabalhar de forma ade-quada e, principalmente, de seu papel, enquantoalfabetizador matemático e promotor de uma socieda-de mais justa, pois detém no seu poder uma ferramen-ta valiosa, a Matemática.

Refletir sobre a formação de professores é con-siderar também, que é no trabalho que o docente de-senvolve e constrói saberes e estes são ampliados econstruído na relação e interação com o mundo da vidae o mundo do trabalho. Isto posto, podemos observarque o processo de formação profissional se dá na for-mação inicial e na continuada. Pode-se dizer que al-guns saberes teóricos da sua profissão fazem parte dorepertório de sua formação inicial e continuada, bemcomo o âmbito das práticas escolares, que refinamesses saberes docentes.

Nesse sentido, pensar nessa formação é primei-ramente assumir que o atual currículo não responde aessa necessidade, visando um processo de mudançacurricular que habilite o professor ser o agente ativo ereflexivo que participa da produção do conhecimento,atendendo as demandas sociais, culturais, econômicase políticas da sociedade atual.

Desta forma, podemos inquirir se a aprendiza-gem do ofício profissional se dá em um processoeducativo, que se concretiza a medida em que o pro-fessor busca compreender e refletir sobre as situaçõesconcretas que são vivenciadas em seu trabalho? Essareflexão nos leva a compreensão de como o professor

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pode relacionar e interagir no seu trabalho a partir deuma leitura do mundo no qual está inserido e tem auto-nomia para intervir.

Assim, vivemos num mundo onde a criatividadeé considerada um novo paradigma para a resoluçãodos mais variados problemas, ao professor, de acordocom Perez (1999), é necessário “uma fundamentaçãoteórica que lhe dê condições de compreender as ra-zões das diversas metodologias e a capacidade de usaruma variedade de estratégias de acordo com os obje-tivos”. Para tanto, a fundamentação teórica aqui dis-cutida está pautada de como o professor pode articu-lar as informações matemáticas e estatísticas, visandouma prática educativa a partir de uma postura reflexivado discurso apresentado por tais informações presen-tes na nossa sociedade.

Acreditamos que essa formação é necessária,como forma de melhor compreendermos e lermos omundo em que vivemos para sermos leitores e cons-trutores desse e não apenas meros sujeitos aprisiona-dos por idéias que nos deixam alheios ao mundo e queperpetuam as diferenças sociais, culturais e econômi-cas.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alberto Carlos. Como são feitas as pesquisas elei-torais e de opinião. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

CAZORLA, Irene Mauricio. A relação entre a habilidade viso-pictórica e o domínio de conceitos estatísticos na leitura degráficos. 2002. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdadede Educação. Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

CAZORLA, Irene Mauricio. Educação Estatística: as dimen-sões da Estatística na formação do professor de Matemática.Mesa Redonda do VIII Encontro Paulista de Educação Ma-temática, 2006, disponível em http://www.pucsp.br/pensamentomatematico/epem.html, acesso em 30/06/2007.

CROSSEN, Cynthia. O Fundo falso das pesquisas: a ciênciadas verdades torcidas. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

GASPARETTO, Agenor. Pesquisas eleitorais: informação epropaganda. Revista SBPM - Sociedade Brasileira dePesquisa de Mercado. Ano II, n. 9, Agosto de 1999. São Paulo,SP. pp 12-21.

GASPARETTO, Agenor. Eleições 2006: Uma componenteinterpretativa da virada eleitoral na Bahia. Disponível em: http://www.socio-estatistica.com.br/ acesso em 30/11/2006.

HUFF, Darrell. How to lie with Statistics. New York, NY: W. W.Norton, 1954.

PEREZ, G. Formação de professores de Matemática sob aperspectiva do desenvolvimento profissional. In Maria A. V.Bicudo (Org): Pesquisa em Educação Matemática: concepções& perspectivas. São Paulo: UNESP, 1999.

RUBERG, S. J. e MASON, R. L. Increasing public awareness ofStatistics as a science and profession starting in high school.The American Statistician, 42 (3), 167-170,1988.

TUFTE, E. R. The visual display of quantitative information.Cheshire, CT: Graphics Press, 1983.