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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 698 NOS LIMITES DA INFLUÊNCIA: O EMBATE CONSTITUCIONAL NO HC 126.292/16 856 THE LIMITS OF INFLUENCE: THE CONSTITUTIONAL CONFLICT IN HC 126.292/16 Lisandra Ramos Duque Estrada 857 Lucas Araújo Lage de Gusmão 858 Resumo Diante de um sistema recursal em crise e em busca de resolução a um entendimento jurisprudencial que foi proferido sem o devido préstimo às consequências que poderiam decorrer do mesmo, o Egrégio Supremo Tribunal Federal proferiu decisão permissiva da execução provisória da pena em segunda instância. O HC 126.292/16, sob análise no presente estudo, gerou inúmeras polêmicas e aqueceu ânimos no cenário jurídico atual. Cumpre analisar se a decisão foi a mais acertada no ponto de vista metodológico, levando em consideração os princípios constitucionais e as garantias do processo penal, e traçar pequenos esboços de soluções cabíveis ao presente caso. Palavras-chave: Clamor popular. Execução provisória. Interpretação sistemática. Direito Constitutional. Abstract Facing an appeal system in crisis and trying to find a solution to a decision made by a court without due consideration to its consequences, the Federal 856 Artigo submetido em 04/04/2016, pareceres de aprovação em 03/05/2016 e 11/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016. 857 Acadêmica do 7º período da Faculdade de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail: <[email protected]> 858 Acadêmico do 7º período da Faculdade de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail: <[email protected]>

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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 698

NOS LIMITES DA INFLUÊNCIA: O EMBATECONSTITUCIONAL NO HC 126.292/16856

THE LIMITS OF INFLUENCE: THE CONSTITUTIONALCONFLICT IN HC 126.292/16

Lisandra Ramos Duque Estrada857

Lucas Araújo Lage de Gusmão858

ResumoDiante de um sistema recursal em crise e em busca de resolução a um

entendimento jurisprudencial que foi proferido sem o devido préstimo às consequências que poderiam decorrer do mesmo, o Egrégio Supremo Tribunal Federal proferiu decisão permissiva da execução provisória da pena em segunda instância. O HC 126.292/16, sob análise no presente estudo, gerou inúmeras polêmicas e aqueceu ânimos no cenário jurídico atual. Cumpre analisar se a decisão foi a mais acertada no ponto de vista metodológico, levando em consideração os princípios constitucionais e as garantias do processo penal, e traçar pequenos esboços de soluções cabíveis ao presente caso.

Palavras-chave: Clamor popular. Execução provisória. Interpretação sistemática. Direito Constitutional.

AbstractFacing an appeal system in crisis and trying to find a solution to a decision

made by a court without due consideration to its consequences, the Federal

856 Artigo submetido em 04/04/2016, pareceres de aprovação em 03/05/2016 e 11/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016.

857 Acadêmica do 7º período da Faculdade de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail: <[email protected]>

858 Acadêmico do 7º período da Faculdade de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail: <[email protected]>

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Supreme Court allowed the provisional execution of a criminal sentence by the court of appeals. The writ of Habeas Corpus 126 292/16 analyzed in this paper generated a lot of controversy and heated discussions in the current legal scenario. We must consider whether this was the best decision from the methodological point of view, taking into account the constitutional principles and guarantees of the criminal procedure, and outline brief drafts for possible solutions to this case.

Keywords: Outcry. Provisional execution. Systematic interpretation. Constitutional law

Sumário

Introdução: o canto das sereias. 1. Clamor popular e as escolhas contingenciais. 2. Da presunção de inocência: a consideração de culpabilidade. 3. O real e o consequente. 4. Da efetividade. 5. Da ampla defesa. 6. Razoável duração do processo. 7. Uma análise de razoabilidade. Conclusão. Referências.

Introdução: o canto das sereias

Na literatura é possível encontrar diversas referências ao caráter mítico do cantarolar das sereias. Sua voz é conhecida como capaz de levar os homens que a ouvem a perdição, ao descontrole, a submeter suas razões. Iniciamos nossa jornada com duas versões da influência das sereias, de modo que se chegará a um dilema.

Oscar Wilde859 trata da temática em seu conto “the fisherman and his soul”, contando a estória de um pescador que, apaixonado por uma sereia e, devendo abandonar sua alma em prol de viver com ela, se liberta desta a luz do luar. Sua alma, por várias vezes o tenta, de modo à novamente, com ele, ser um só. Até que um dia ela consegue, através de um ardil, enganando o pescador que acreditou que podia se separar novamente e voltar a viver com a amada. Neste conto, o autor parte da visão de que por vezes devemos nos perder para que achemos o amor. Denota-se que o ressoar do canto das sereias foi virtuoso ao pescador.

Já Homero860, em seu clássico Odisseia, parte de outra banda: Ulisses, ao passar por região conhecida pela existência de sereias, ordena que seus marujos tampem seus ouvidos com cera e que o amarrem em um mastro, de modo que pudesse ouvir o seu canto, mas que as cordas o contivessem, no momento em que perdesse os sentidos. Ordenou que seus homens não o obedecessem em seu delírio, apenas voltando a fazê-lo quando já estivesse sóbrio do efeito do canto. Aqui, nota-se que o

859 WILDE, Oscar. The fisherman and his soul. Black Cat, 2005.860 Cf. ELSTER, Jon. Ulysses and the sirens: Studies in rationality and irrationality. 1984. A passagem

foi utilizada na chamada teoria do pré-compromisso, que entende que a rigidez constitucional é necessária para conter as paixões populares e as inconstâncias políticas momentâneas.

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canto das sereias, por representar uma fuga da razão, não deveria prevalecer na alma do marujo, de modo a deturpá-la.

Eis o dilema das sereias: quando é virtuoso ouvir seu canto e quando se deve seguir a própria alma? Em outras palavras, quando deve o Estado ouvir o clamor popular emanado do povo, como forma de conformar hermeneuticamente a constituição?

Explora-se no presente trabalho a legitimidade da conformação realizada pelo Supremo ao ouvir o “canto das sereias” quando do julgamento do HC 126.292/16, no qual se deu o redimensionamento da garantia insculpida no art. 5º, inciso LVII, de modo a não abarcar, em seu núcleo essencial, impedimento a execução da pena, após esgotadas as instâncias competentes para discussão fático-probatória no processo criminal. Firmou-se que os recursos especiais e extraordinários, por não se prestarem a matéria fático-probatória e sim a higidez do ordenamento jurídico, não deveriam ser conhecidos no efeito suspensivo, via de regra, em conformidade ao disposto na Lei 8.037/90. Assim, com base na diferença processual entre a certificação de um direito e a exequibilidade de um título judicial, entendeu-se não haver óbices a execução provisória da sanção penal.

Será explorado o panorama geral no qual a matéria está inserida, o que, através de breves apontamentos, culminará num juízo fundamentado acerca da justeza da revisão jurisprudencial do Tribunal. Ademais, buscaremos extrair das premissas analisadas uma interpretação otimizada, ao mesmo tempo propondo uma intervenção na forma como se interpreta esse sistema, em prol de auxiliar na difícil tarefa de combater a inefetividade na tutela penal. Espera-se que tal empenho inspire juristas a buscarem soluções mais sensíveis a realidade subjacente ao encarceramento em nosso país e mais atentas ao sistema principiológico normativo que nossa Constituição estabelece.

1) O clamor popular e as escolhas contingenciaisCumpre destacar que inconteste a influência do contexto brasileiro que, através

do clamor popular dele decorrente, serviu de estopim para a busca por argumentos que legitimassem a mudança. Ante a inapetência do Legislativo em promover mudanças outras capazes, muito provavelmente, de resolver o problema, atuando em defeitos institucionais existentes na lei disfuncional e assistêmica penal, a Corte intenta através do entendimento suprir tal falha, ouvindo e dando azo as vozes do povo.

O cenário a que se faz referência, sem dúvidas, teve seu florescer na Ação Penal 470, na qual foram julgados e condenados uma série de sujeitos envolvidos no maior esquema de corrupção sob cognição no Brasil, popularmente alcunhado de “Mensalão”. O desconhecimento do sistema penal aliado a um forte trabalho midiático, muitas vezes desvinculado de um esclarecimento jurídico devido, explicam porque está acima de qualquer dúvida a determinação deste processo como marco histórico.

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Evidente, porém, que o sentimento de impunidade, seja ele derivado de uma correta avaliação fática ou não, acompanha nossa população faz tempo, assim como o ânimo de recrudescimento das penas861, muitas vezes relacionado ao mesmo. Contudo, com o desenrolar da Ação Penal 470 associado com a Operação Lava-Jato que lhe seguiu, a pressão política sob os magistrados se majorou a níveis não recentemente sentidos, o que culminou na mudança aqui confrontada.

Em caráter preliminar à discussão acerca do legítimo âmbito de influência do clamor popular, impende-se consignar de que visão se parte no presente trabalho. Entendemos que a realidade na qual vivemos é caracterizada por uma infinidade de variáveis que coexistem caoticamente. De tal maneira que as escolhas que tomamos derivam de um equacionamento prévio que considera as circunstâncias fáticas que logramos apreender. Devido a limitações inerentes as capacidades sensoriais e intelectuais do homem, tal empenho nunca será perfeitamente realizado, de modo que seu resultado dá origem a uma mera expectativa862.

Como as apreensões contingenciais de cada um são diversas, as expectativas dela decorrentes também tendem a ser diferentes. Para lidar com o conflito de expectativas, necessário que se proceda a escolha de qual delas deve ser legítima, evitando conflitos e criando ferramentas de solução dos porventura existentes. Neste interim se insere o direito, como sistema de coesão social e redução dos riscos derivados do contingenciamento de variáveis reais. A parametrização das expectativas ou a escolha das próprias consiste no verdadeiro modus operandi jurídico.

Noutro giro, a ideia de democracia parte do pressuposto epistêmico863 de que a abertura no processo decisório amplia as perspectivas existentes sobre um problema, otimizando a solução pela apreensão quantitativa e qualitativamente superior da realidade subjacente. Assim, diminui-se o risco de frustro expectativo, pelo menos em tese.

Tendo em vista a falibilidade na apreensão humana, foi necessário lidar com as expectativas através do estabelecimento de quem será o responsável pela tomada de decisão. Isso porque, da mesma maneira que as variáveis e, por consequente, as perspectivas são muitas, as necessidades são urgentes, as oportunidades, perecíveis.

Vale dizer: a tempestividade da escolha obsta a discussão realisticamente exauriente sobre um determinado tema.

861 Cf. voto do ministro relator Eros Grau no paradigmático HC 84.078/09.862 Trata-se de uma simplificação dos conceitos de complexidade e contingência presentes em

LUHMANN, Niklas. “A formação do direito: Bases de uma teoria sociológica do Direito”. In: Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, vol.I. p. 42-166.

863 Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 460-465.

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A legitimidade da atuação de um sujeito ao qual foi dado o poder de escolha, portanto, se limita ao dever de observância dos traços decisórios que condicionam a mesma. A previsibilidade deve ser intrínseca a escolha, que deve se basear no substrato variável de fundamentos disponíveis pelo sistema jurídico.

O que se extrai dessas premissas é que a legitimidade do clamor popular, influenciando determinada escolha, é dependente da competência previamente determinada ao sujeito que decide e aos limites materiais que o direito estabelece para determinada situação. E a validade jurídica do clamor deriva de um conjunto de razões que fugiria ao escopo do presente analisar, mas que podem ser resumidas da seguinte maneira: I) A partir do momento que o revestimento de poder das instituições decisórias emana do povo (art. 1º, p.u.), que visa, com esse formato, decisões otimizadas, tempestivas, previsíveis e de menor risco, parece evidente que aquele que origina o poder deve ser capaz de influenciar864 na aplicação do mesmo; II) quem sofre as consequências práticas da frustração das expectativas, ou da frustração da expectativa genérica de que o direito e seus agentes institucionais são capazes de apreender a realidade da melhor forma possível, também é o povo, o que justifica que sua voz ressoe naqueles que por eles deliberam.

Já o escopo de influência do clamor popular deve estar limitado por: I) princípios e regras criados pelo direito que visam conter a arbitrariedade, condicionar as escolhas e garantir através de direitos tanto as expectativas

como a existência e bem-viver dos membros da sociedade, a permitir segurança jurídica e justeza nas opções; II) as escolhas anteriores foram tomadas de acordo com um procedimento desenhado para ser capaz de conceber ideias razoáveis, com influências plurais, compreensíveis por todos independente de seus ideias de bem-viver, o que indica que o clamor do povo deve se subordinar ao sistema jurídico também, pois foi ele criado a partir de emanação reputada legítima do poder e observando, presumidamente, os princípios determinados pela ordem jurídica.

Com redução dos textos legais em não tão claras enunciações principiológicas há a delegação expressa do legislador para ulterior clarificação normativa por parte do direito865. Tal opção legiferante transfere ao Judiciário, uma atividade criativa866 não antes sentida na história, o que modifica a compreensão clássica reducionista de tal atividade ao órgão jurisdicional. Não obstante, desenhado para ser um poder que proferisse decisões técnicas, não apenas o plexo de argumentos possíveis está

864 HÄBERLE, Peter; MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e” procedimental” da constituição. SA Fabris Editor, 1997.

865 Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. Malheiros Editores, 1ª Ed.2012. p. 214.

866 CAPPELLETTI, Mauro; DE OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Juízes legisladores?. SA Fabris Editor, 1999.

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vinculado ao direito, como a dialética envolvida está subordinada as suas regras e particularidades. Em poucas palavras, a escolha por um sistema no qual os princípios são normas amplia a atividade criativa jurídica por possibilitar ulterior clarificação normativa através de métodos interpretativos não tão engessados como em um sistema normativo de regras.

A influência do clamor sobre o Judiciário deve obedecer aos limites que o direito disciplina para sua atuação. Inicialmente cabe esclarecer o escopo situacional das vozes do povo sobre os Juízes e Tribunais e, para isso, pode-se fazer analogia com o critério mencionado por Luís Roberto Barroso867 quando da solução dos denominados Hard Cases: em matérias onde existe desacordo moral razoável em relação a interpretação devida do sistema jurídica, cada indivíduo deve ser capaz de viver seus ideais de bem-viver. Usando lógica parecida, em matérias onde haja controvérsia interpretativa, na qual a hermenêutica defendida pelas várias partes aponte para soluções de semelhante idoneidade, deve o órgão judiciário dar deferência àquela interpretação advinda de um acordo moral razoável. Com isso, estabelece-se o locus ideal de influência do clamor sob um órgão técnico-jurídico como o judiciário.

Em virtude do exposto, somente será legítima a influência do clamor popular sobre um órgão técnico como o judiciário, quando o julgador estiver diante de interpretações semelhantemente plausíveis, do ponto de vista jurídico, devendo prevalecer, pelas razões aduzidas, a interpretação legítima e traduzida em jurídica do povo, ou ainda quando os argumentos trazidos à baila pelo povo, em sua provocação à atuação jurisdicional, forem mais razoáveis ou haja o reconhecimento da otimização da solução por ele apresentada.

Nos tópicos seguintes, passaremos a avaliação jurídica de plausibilidade interpretativa, para que seja exarada conclusão acerca da legitimidade do clamor popular na questão ora problematizada.

2) Da presunção de inocência: a consideração de culpabilidadeO estudo de uma possibilidade jurídica perpassa sua análise através das

normas que compõe o sistema. Com a flexibilização normativa trazida pelos princípios, originou-se uma preocupação com a colisão entre princípios fundamentais de conteúdo vago, ampliando as discussões acerca do âmbito de proteção normativo, técnicas de ponderação, além de juízos interpretativos complexos868. Não obstante, tal mudança

não deve ser vista como prejudicial ao sistema, mas sim como um mecanismo que permite soluções mais justas, através da promoção devidamente ponderada de direitos contrapostos.

867 BARROSO, Luís Roberto. O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um Sucesso Imprevisto. Barroso, Luís Roberto, O novo direito constitucional brasileiro, 2012.

868 Idem

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A presunção de inocência está positivada em nosso ordenamento no artigo 5º, inciso LVII, da CF. Conforme leciona Gilmar Mendes869, as discussões acerca do princípio em nosso ordenamento remontam ao artigo 157, § 36, da CF de 1967/69, que dizia que outros direitos e garantias poderiam ser extraídos do regime e dos princípios que ela adota.

Como se poderia intuir, grande parte da discussão acerca da execução provisória das penas está relacionada com o entendimento que se extrai do ora comentado princípio. Isso porque, estabelece a constituição que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, abrindo espaço para discussões interpretativas quanto ao significado normativo de ser considerado culpado. Atenta-se que como o preceito é formado por duas partes – ser considerado culpado e até o trânsito em julgado – a melhor interpretação do mesmo deve levar em consideração a interpenetração de seus sentidos, o que será delineado mais à frente.

Para determinar qual a correta interpretação do inciso Constitucional se faz mister partir de algumas premissas quanto ao processo interpretativo aplicado. Em primeiro lugar, não se pode, a pretexto de interpretar, ultrapassar os limites textuais da Constituição, o que importaria em “negar a própria força normativa e a rigidez da Lei Maior, tornando-a excessivamente dependente dos fatores reais de poder ou das preferências do intérprete de plantão”870. Como exemplo, poder-se-ia dizer que a presunção de inocência restaria desfeita antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, em completo desrespeito ao expresso marco temporal descrito no texto constitucional.

Em seguida, deve-se estabelecer como limite ao âmbito interpretativo judiciário, as escolhas legislativas871 na matéria, porquanto se trata de instituição formada por membros eleitos democraticamente, que possui capacidades institucionais próprias e a competência legiferante por excelência. Quer dizer, se o Legislador já proferiu entendimento, em forma de lei, sobre determinada imprecisão interpretativa, deve-se, a não ser em face de inconstitucionalidades, dar deferência a sua escolha. Por fim, impõe-se como importante limite a própria coerência com o sistema constitucional, de modo que se vislumbra a existência de um princípio de unidade constitucional e de concordância prática, ou seja, “a Constituição deve ser interpretada como um conjunto integrado de normas que se completam e se limitam reciprocamente”872.

Em prol de entender qual seria a melhor interpretação da presunção é preciso discorrer brevemente sobre sua natureza. Deve-se, ab initio, desfazer o equívoco

869 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 9ª ed., p. 534-537, 2014.

870 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Op. cit, p. 356-358.871 Idem, p. 349-351.872 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Op. cit., p. 439

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de classificar o inciso em questão como presuntivo. Isso porque presunção, nas doutas palavras de Freddie Didier Jr., seria a regra jurídica que “impõe que se leve em consideração a ocorrência de determinado fato (...) [sacrificando] o que menos acontece ao que mais acontece, ou porque não se pode saber se ocorreu aquilo ou isso, ou porque se precisa adotar um critério único”873. Como se depreende da lição, a presunção envolve a ocorrência de um fato, e na presunção de inocência nenhum fato precisa ocorrer. Ao contrário, a existência humana pressupõe o disposto no inciso, o que direciona a sua classificação como pressuposto normativo.

Assim como uma presunção relativa, tem-se que um pressuposto normativo pode ter seus efeitos infirmados pela submissão a um processo cognoscente suficiente para fazê-lo. Como um pressuposto se verifica a priori, poder-se-ia aduzir que o esforço cognitivo para infirmá-lo seria menor que o de uma presunção. Acontece que esse pressuposto em particular estabelece um marco temporal para seu infirmar e isso tem sustentação em pelo menos três outros princípios, cada um embasando uma perspectiva própria: No âmbito subjetivo, a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República, no âmbito intersubjetivo, a ideia extraída de Estado democrático de direito e no âmbito procedimental, o respeito ao devido processo legal. Interpretar o preceito em tela como corolário de outros, permite uma visão mais ampla do sistema, a indicar, com maior precisão, o que deve estar abarcado no âmbito protetivo da norma, porquanto seu texto deve ter como norma uma garantia que efetive os princípios que o embasam.

A imposição do trânsito em julgado para a infirmação do pressuposto tem relação com a associação de dimensões da dignidade da pessoa humana874, já que esta impõe o entendimento de que a pessoa não deve ser instrumentalizada e deve ter sua autonomia existencial protegida. Assim, argui-se que o sujeito ao criar expectativas sobre si e sobre o mundo, deve, a priori, ter sua possibilidade de conformar o real tutelada, se controlando a posteriori seus efeitos. A liberdade de agir é expressão direta e imediata da autonomia de existir. Com isso, a imposição de culpabilidade àquele cujo processo não transitou em julgado importaria em indevido juízo sobre o uso de sua liberdade, reflexa e tenuemente atingindo sua autonomia existencial875. Da mesma forma, a imposição da culpabilidade antes do tempo devido, implica na instrumentalização da pessoa a um dos principais escopos da pena, qual seja, a prevenção, constituindo clara violação ao âmbito protetivo da dignidade da pessoa humana.

873 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. v. 2 2015. p. 56-58.

874 SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. 2007.

875 A relevância da reflexa violação mencionada cinge-se a proposta de interpretação sistemática, assinalada anteriormente. Em outras palavras, se estivéssemos realizando uma ponderação entre princípios, a reflexa violação imporia em uma baixa relevância. Como estamos interpretando, logramos alcançar uma confluência de sentidos, de forma que a análise flua em uma só direção.

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No âmbito intersubjetivo, apesar de poder se aludir também à dignidade da pessoa humana, opta-se no presente artigo por rememorar que o Estado democrático de direito parte da ideia de tutela à intersubjetividade social como meio hábil para construção de uma sociedade melhor. Para que o cidadão possa exercer suas prerrogativas democráticas é necessário que ao mesmo seja assegurado uma série de direitos que permita o desenvolvimento de sua personalidade, sua intelectualidade, sua vida, integridade, saúde, etc. O intersubjetivo é a base de uma sociedade democrática e, portanto, veda a imposição de culpabilidade por um simples processo cognoscente, por imperativo de respeito a possibilidade de conformar, através de suas ideias, sua própria situação.

Favorece o desvelar de importância da proteção ao intersubjetivo no processo, a atual concepção, adotada pelo processo, de verdade. Fugiria ao escopo do presente, adentrar a discussão filosófica, de complexidade notória, das concepções de verdade, sendo suficiente esboçar algumas ideias.

A adoção do paradigma epistêmico-cartesiano876 conformava a ideia de verdade ao absoluto, como se houvesse uma realidade apreensível em um aspecto reputado como único capaz de corretamente descrevê-la. Tal construção filosófica, influenciada pelas ciências naturais que se desenvolviam, mas também, anteriormente, pela noção transcendental religiosa, quando aplicada à justiça, colocava o juiz em uma posição de cientista, de sábio, capaz de extrair a verdade das folhas do processo ou da boca dos depoentes.

Aos poucos foi se desconstruindo essa ideia877, pela aceitação da premissa que percebe a realidade como apreensível, através de perspectivas, de modo que, mesmo que se buscasse pela verdade com todo afinco e dedicação possível, apenas poder-se-ia compreender o resultado positivo como verdade se analisada a partir de determinada visão. Por conseguinte, começou-se a valorizar a dialeticidade do

processo como meio adequado para se chegar a um resultado justo. Se os fatos podem ser interpretados e visualizados de diversos ângulos, deveria prevalecer aquele qualificado, em decisão fundamentada, como mais justo ou melhor, sendo representativo da verdade apreendida naquele procedimento878.

Ante ao exposto, conclui-se que a dialeticidade processual, por privilegiar a noção de influência intersubjetiva processual, se encontra no mesmo compasso

876 CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno. Forense, 2009., também sobre o tema, com outra abordagem: DIDIER, op. cit., p. 44-49.

877 A verdade absoluta, embora não deva ser tida como premissa válida de modo que se conclua a partir de sua assunção como verdadeira, pode ser usada como norte ao processo, como um “impossível” a ser perquirido, nesse caso, idealmente. Para o conceito de impossível ver: HINKELAMMERT, Franz J. Crítica da razão utópica. São Paulo: Paulinas, 1986. p. 18.

878 Como resultado dessa mudança conceptual de verdade, ganhou força a vertente da justiça procedimental, determinando que o resultado justo seria aquele perquirido de forma justa, ver JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 2015.

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do Estado democrático de direito, facilitando o entendimento que, em um processo que tenha potencialidade impositiva de intenso gravame, o sujeito tenha amplas capacidades de contribuir na decisão de seu próprio destino.

Assim como o pressuposto da inocência pode ser visto como um corolário da dignidade da pessoa humana, entende-se que, por ser uma garantia aplicada ao processo, ele também é decorrência do devido processo legal879. Ambas são cláusulas gerais, com conteúdos diversos. Partindo da premissa que um texto legal necessita de um processo hermenêutico880 para extração de norma jurídica é que se entende que a norma individualizada pela atividade jurisdicional, que se pretende capaz de proferir justeza, deve sofrer a incidência da cláusula geral em tela, para que o conteúdo extraído esteja conforme seus ditames.

Como se observa o pressuposto de inocência a partir da exigência do trânsito em julgado opta-se no presente pela fórmula empregada por Carlos Alberto881, alcunhada pelo autor de Formalismo Valorativo. O sentido de “forma” a que se alicerça o conceito é o amplo, significando:

“respeito à totalidade formal do processo, compreendendo (...) especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais (...) [indica] as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado, e estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento”.

Neste diapasão, formalismo valorativo é contraposto ao formalismo excessivo e se caracteriza pelo confronto entre efetividade e segurança, que devem ser ponderados de modo a se qualificar a forma como valorativa ou, ao revés, excessiva. Já o que fundamenta o valor na forma tem conteúdo axiológico variável de sociedade em sociedade, de época para época882. A “efetividade” está ligada à ideia de provimento judicial, como representante da consecução dos escopos da jurisdição e a efetivação de um ou mais direitos em tela. Aduz

879 O devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, CF) funciona como verdadeira cláusula geral garantista contra o exercício abusivo de poder, em qualquer esfera que o mesmo se exerça. De tal sorte que se erige do presente mandado constitucional o entendimento pressuposto de que a produção de um resultado, para que se repute justa, deve observar um processo devido que o oriente valorativamente ao fim visado.

880 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2011. p. 33-38

881 DE OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. Revista Forense, n. 388, p. 11-98, 2007.

882 Carlos Alberto Álvaro assevera que “mesmo as normas aparentemente reguladoras do modo de ser do procedimento não resultam apenas de considerações de ordem prática, constituindo fundamental expressão das concepções sociais, éticas, econômicas, políticas, ideológicas e jurídicas, subjacentes a determinada sociedade e a ela características, e inclusive de utopias. Ademais, o seu emprego pode consistir em estratégias de poder, direcionadas para tal ou qual finalidade governamental”.

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o autor que contraposta a efetividade estaria a segurança no provimento, pois esta salvaguardaria o cidadão contra os arbítrios estatais, o que mostra que está intimamente ligada ao conceito de devido processo legal. Não obstante, não se deve relacionar a segurança aqui mencionada com a perquirição de uma verdade absoluta, pois, como já assentado, a verdade processual muito mais está ligada a um embate dialético, visando a influência sobre o provimento a ser entregue. A segurança deve permitir o maior controle da atividade jurisdicional e a uniformidade do direito, de modo que o inconformismo com a prolação judicial não deve, sozinha, obstar a qualificação do procedimento como justo.

Sob outro ângulo, com relação ao conhecimento sob intencionalidade, deve-se ponderar a forma processual como valorativa, se ela, ao mesmo tempo em que for desenhada de acordo com uma intencionalidade constitucional, determinar um razoável fluxo de informação. Assim, não se obsta a efetividade pela demora, nem a segurança pela pressa ou mesmo pela demora, ao se distanciar da devida influência que um sujeito processual deve exercer sobre o órgão julgador, que não seja capaz de deturpar o melhor entendimento do fluxo de informações anteriormente apreendido. A partir do momento que a apreensão do tempo deve se relacionar com a capacidade de retenção e recordação, de nada adianta ampliar o conteúdo retido, se isso influenciar na capacidade de recordação e, consequentemente, a capacidade de reflexão sobre a lide883.

Para determinar com mais precisão qual parece ter sido o valor escolhido pelo Constituinte, imprescindível mergulhar no substrato principiológico que explica uma conclusão sobre a concepção de pessoa humana que se está a aduzir. Conforme expendimentos anteriores acerca da dignidade humana e do Estado democrático de direito, pode-se entender que o arcabouço principiológico que deve sustentar o formalismo valorativo é aquele que enxerga o indivíduo como possuidor de um valor intrínseco a sua existência, considerando suas ações como projeções prima facie legítimas de sua (inter)subjetividade884. O infirmar de tal valor é vedado pelo sistema, embora possa se cogitar de eventual desvalor em suas condutas.

Por tais motivos, somados a falibilidade humana na percepção da realidade e ao compromisso com as decisões contingenciais balizadas pelo direito, a culpabilidade

883 Em outro tópico serão expostos apontamentos sobre a razoável duração do processo. Ver CÂMARA, Jorge Luis. O tempo do direito e o tempo da justiça: uma reflexão fenomenológica sobre a duração do processo e a essência da justiça. Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.5, n.2, p.1-125, out.2012/mar.2013

884 Fazemos analogia com a construção criada para fundamentar o direito à inviolabilidade de domicílio, consectária do direito à intimidade, onde o interior do domicílio representaria uma “projeção espacial de sua própria intimidade”. Assim em uma sociedade democrática, na qual as pessoas são consideradas dignas, não parece forçoso entender que suas condutas são projeções legítimas de sua (inter)subjetividade. Cf. FERREIRA MENDES, Gilmar; MÁRTIRES COELHO, Inocêncio; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. Editora: Saraiva, 2008.

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deve impor às formalidades processuais a prevalência da segurança, devendo haver o controle formal concreto pelas partes e pelo juiz das formalidades estabelecidas no processo, para verificar se são excessivas ou não, de modo a promover a efetividade processual que não deve se relegada a negação.

Portanto, o valor do trânsito em julgado se relaciona com a prevalência da segurança para a imposição da culpabilidade e, por consequente, reconhecimento do desvalor da conduta humana. De tal sorte, que viola o devido processo legal a mudança de entendimento da Suprema Corte por não se verificar, in abstratu, formalismo excessivo na prevalência da segurança no trânsito em julgado.

Não obstante haja um marco temporal para a consideração de culpabilidade do indivíduo, parece assistir razão ao Ministro Gilmar Mendes a ideia de gradualidade da influência na esfera jurídica do réu com o regular desenvolvimento do procedimento. Quer dizer, aos poucos, seja no aspecto fático-probatório, seja nas hipóteses normativas incidentes sobre os fatos, vai se construindo a culpabilidade do sujeito, a indicar a validade de uma progressiva interferência em sua situação jurídica. Porém, não se diga que ao concordar com sua premissa, há a concordância com a conclusão extraída pelo magistrado, qual seja, que a imposição de pena provisória seria uma legítima influência na esfera jurídica do acusado, a partir do esgotamento das instâncias ordinárias. Isso tem razão no fato de que a pena, seja ela provisória ou definitiva, é a consequência principal da condenação do sujeito. Ora, como se poderia considerar gradual a imposição do efeito principal antes do fim do processo? Seria como dizer que os efeitos acessórios da pena são mais importantes ou mais gravosos do que a própria imposição da pena, pois somente aconteceriam após o trânsito em julgado.

Antes de discutir qual a interpretação mais adequada do pressuposto de inocência é preciso afirmar que a nossa Constituição não tratou exatamente de um pressuposto de “inocência”, mas sim da não culpabilidade do indivíduo, o que implica justamente na abertura hermenêutica explorada pelos ministros para dar azo à revisão de jurisprudência em tela. Assim, deve-se discutir o que significa ser considerado culpado, para em seguida entender com clareza do que se trata o pressuposto em questão e, mais ainda, o que é infirmado com o trânsito em julgado.

Tendo em vista o acima considerado, é possível observar das palavras dos ministros, uma série de concepções distintas acerca da não culpabilidade, o que, pela relevância na clarificação substantiva do princípio, mostra uma indefinição sobre a redefinição da garantia. Ora se afirma que não ser considerado culpado se esgota em uma regra de instrução probatória, ora é regra de tratamento durante todo o procedimento, ora é regra contra os efeitos extrapenais do apenamento, ora implica na impossibilidade de executar a pena antes do trânsito em julgado, etc.

Deve-se destacar, desde já, que argumentações dos ministros no sentido de que não é exigível o trânsito em julgado para apenar o réu, somente são possíveis

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caso se entenda que a culpabilidade a que o dispositivo faz menção não importa em vedação a execução da pena ou ainda se se entender que, pela natureza principiológica do pressuposto, ele pode ceder, in concretu, em face de outros princípios.

Como já dito anteriormente, parece complicado entender que ser considerado culpado importaria em óbice aos efeitos secundários e acessórios da pena, porquanto a gravosidade da mesma se concentra em seu efeito principal, como é extreme de dúvidas. Da mesma forma, princípios como a dignidade da pessoa humana e o ideal decorrente do Estado democrático de direito parecem ilidir o efeito principal da pena, até que as exigências do devido processo legal sejam atendidas. E, para além disso, se faz mister expor a espécie hermenêutica que se impõe ao exercício do ius puniendi pelo Estado e na decretação de prisão.

Conforme o artigo 5º, inciso LXI “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. O que se nota desse preceito é, além da clara reserva de jurisdição para decretação de pena privativa de liberdade, via de regra, é a excepcionalidade da imposição de pena. Evidente tal premissa na dogmática penal, pois, como se sabe, o princípio de legalidade estrita, juntamente com princípios de ofensividade, subsidiariedade, insignificância, dentre outros, demonstram o caráter excepcional da matéria885. Neste diapasão, se verifica que o ius puniendi estatal, tem um espectro de juridicidade contida pela restritividade em sua interpretação. Pode-se dizer que a interpretação restritiva das exceções886 aqui delineadas se impõe pelo reconhecimento de uma hierarquia material entre as normas constitucionais em abstrato. Não se deseja com isso dizer que haja uma classificação estanque quanto a importância dos direitos fundamentais. No caso, entende-se que a regra geral seja o livre usufruir dos direitos pelos seus titulares, sendo estes restringidos na forma da lei, apenas quando excepcionalmente se reputar legítimo o dever estatal de punir. Com isso se afirma que a imposição de culpabilidade deve ser interpretada em deferência aos preceitos sob maior extensão interpretativa, de modo a restringir a gravosidade excepcionalmente válida.

Não se satisfazendo com os presentes expendimentos, poder-se-ia aduzir ainda que a abertura interpretativa permitida pela constituição deve ser concretizada, primeiramente, pelo legislador e, embora não tenha havido reminiscência ao artigo, quando do julgamento, ele o fez. O artigo 283 do CPP preceitua: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”, conforme alteração da lei 12.403/11. Tal lei é posterior a mudança de entendimento encabeçada pelo Ministro Eros Grau e também posterior a lei 8.037/90 e, inequivocamente, se assemelha ao disposto no inciso LVII, art. 5º da CF.

885 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Saraiva, 2013.p. 49-72.886 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Op. cit. p. 439.

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Inclina-se no sentido da assertiva anterior, a conclusão de que o legislador em 2011, recepcionando a revisão de jurisprudência do Supremo, optou pela interpretação deduzida naquele tempo, qual seja, ser considerado culpado é estar apto a sofrer pena887.

É preciso consignar que ainda é possível que através da interpretação sistemática da constituição se entenda que a interpretação constitucionalmente mais adequada seria outra. E, em deferência do antes exposto, em se entendendo tratar-se de interpretações igualmente plausíveis, dever-se-ia optar por aquela coberta pelo manto do “acordo moral razoável” que neste caso apontaria pela possibilidade de exequibilidade provisória da pena.

3) O real e o consequente

Os desenvolvimentos até agora realizados tiveram como standard uma perspectiva deontológica e normativa, buscando encontrar uma pureza concepcional e sistemática no pressuposto da inocência. Porém, para que se prossiga no intento consignado quando da introdução, imprescindível iniciar a exploração das perspectivas realista e consequencial, introduzindo novos questionamentos acerca da revisão jurisprudencial e, além disso, aduzindo a existência de óbices fundamentais que devem ser ponderados para definição da dissidia.

Malgrado possa haver controvérsias quanto a relevância ou hierarquia entre as visões normativo-deontológica e a realista-consequencial888, parte-se aqui da ideia, que entendemos ser de virtuosidade democrática, de que a ampliação das perspectivas acerca de um problema proporciona maiores possibilidades de uma resolução justa. Ademais, assim como uma parcela considerável da doutrina, entendemos que todo

intérprete, ao se debruçar sobre um texto, se utiliza de suas pré-compreensões889 íntimas e, por vezes, até para o próprio, de difícil identificação.

887 Embora se entenda no presente que o Judiciário realiza atividade criativa, não se pode considerar que a mesma seja ilimitada, seja porque seria uma afronta a democracia, seja porque afrontaria a separação dos poderes. A existência de lei regulando um dispositivo só deve ser desprezada se declarada inconstitucional. Em não havendo inconstitucionalidade ou não tendo sido provocado o STF, através de ação idônea para tanto, deve o Judiciário ser deferente. Para balizamentos legitimadores do ativismo judicial, cf. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Anuário iberoamericano de justiça constitucional, n. 13, p. 17-32, 2009.

888 ARGUELLES, Diego Werneck. Deuses pragmáticos, mortais formalistas: a justificação consequencialista das decisões judiciais. 2006. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Mimeografado.

889 Para um panorama sobre o conceito ver ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2011. p. 34-38 em sentido contrário ver: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 3ªed. 2011.

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Para evitar que a solução de um problema varie de intérprete para intérprete de acordo com sua bagagem histórico-social, deve-se ampliar o estudo perspectivo sobre o tema e, para além dessa iniciativa, se portar de modo a aceitar que talvez elas não apontem no melhor sentido. Sem embargo, a realidade não deve superar limites textuais normativos e, em sua análise, é inconteste que se deve entender que a Constituição em muitos aspectos prescreve uma realidade, diminuindo o espaço para sua descrição.

Explica-se o antes exposto pela ideia de Konrad Hesse890 que a força normativa da constituição depende da apreensão da realidade para concretização da norma, pois uma interpretação constitucional que não a considere, ao menos como pressuposto de sua aplicação, importa no revestimento de ineficácia dos direitos assegurados na Carta Maior. E, nisso, inclusive nos empenhos transformadores que a Constituição estabelece, a indicar que tais devem ser realizáveis na prática.

Neste diapasão, faz sentido entender que a Constituição, como norma, existe de acordo com o atual estado de coisas, delimitado por fatos considerados juridicamente relevantes, e com um prospectivo Estado de coisas, que para que seja alcançado necessita da atuação dos diversos entes estatais, empenhados em seus desígnios. A despeito do que se possa pensar, a força normativa e, por consequente, conformativa da Constituição está também intrinsecamente relacionada com o permear de sua vontade entre os cidadãos, de modo que os mesmos possam viver suas normas e exigir aquilo que lhes é garantido. Um texto normativo que se pretende supremo, mas não encontre ressonância social ou que não considere o estado de coisas atual, será incapaz de conformar a realidade.

O raciocínio de visualização das situações de fato, na dimensão de sua afetação por determinada norma ou conjunto de normas, pode ser denominado de consequencial. Esse tipo de vetor interpretativo envolve a análise probabilística de como a norma será de fato capaz de conformar o real, compreendendo o direito não como um fim em si mesmo, mas como um meio de consecução das necessidades humanas e sociais.

Como assevera Daniel Sarmento891, não necessariamente implica em um juízo pragmático, entendendo o consequencial como elemento preponderante para a definição da resposta correta em cada caso, nem em um juízo utilitarista, entendendo que se deve buscar a consequência que realize, na maior medida do possível, as necessidades do maior número de pessoas. Leciona o professor que o consequencialismo pode ser parametrizado, por exemplo, pela maior promoção de fato dos direitos fundamentais, da democracia, dos valores republicanos, e pode ser levado em consideração como mais um elemento existente na interpretação.

890 HESSE, Konrad; MENDES, Gilmar Ferreira. A força normativa da Constituição. SA Fabris Editor, 1991.

891 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel, op. cit. p. 424-430

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Adere-se, no presente, ao chamado consequencialismo moderado, que abre espaço para consideração “das consequências de cada escolha interpretativa, mas apenas franqueadas pelo texto e pelo sistema constitucional como um todo”. A dirigência de nossa Carta Maior, impondo o atingir de fins determinados, obsta a não consideração das consequências das decisões jurisdicionais escolhidas.

Passemos a análise.

Como afirmado por Luís Roberto Barroso892, o sistema penal vigente vive uma atual desorganização, seja do ponto de vista jurisprudencial, filosófico, normativo. A intenção externada pelos ministros quando da revisão jurisprudencial que retirou o efeito suspensivo dos recursos de natureza extraordinária foi no sentido de, aos poucos, arrumar o sistema, de modo que se extirpasse do mesmo, a atual inoperância893.

Para tanto, houve a descrição do estado de coisas atual, de modo a conformar a interpretação do pressuposto de não culpabilidade, visando a máxima efetividade dos direitos fundamentais, em conformidade ao disposto na Constituição (art. 5º, parágrafo 1º). À conformidade realística foram acrescidas a suposta conformidade consequencial e a já mencionada conformidade social. A ausência da utilização de métodos ponderativos na decisão se deu devido a fórmula empregada pelo supremo de reconstrução principiólogico interpretativa, o que retirou do âmbito protetivo da norma, pelas desconformidades já apontadas, a não exequibilidade da pena, redimensionando de forma obscura o princípio.

Como já demonstrado, do ponto de vista sistemático constitucional, parece não assistir razão aos ministros a retirada do âmbito de proteção efetuada. Ademais não se sabe muito bem como ficou tal âmbito, posto que se depreende da fala dos ministros uma série de concepções diversas que, portanto, podem levar a conclusões diversas. Pode-se com certa tranquilidade criticar metodologicamente a decisão do supremo, sob esse ponto de vista: foi empreendido método de redimensionamento interpretativo, sem uma exposição clara de sua nova conformação, sendo apenas certo que ela não abarca a não exequibilidade das penas. Assemelhou-se tal método a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto em sentido estrito, ao próprio texto constitucional, em virtude de desconformidades apresentadas, a despeito da aplicabilidade de tal método ser pertinente a conformação de normas legais à constituição e não para ser empregado na própria constituição. Criou-se, ao nosso sentir um cenário de insegurança, por incutir uma indeterminação quanto ao âmbito protetivo do preceito.

892 Repetidas vezes faremos menção as falas dos ministros quando do julgamento do HC em análise, link: <https://www.youtube.com/watch?v=581ZjGsJmCA>

893 Enxergando a proporcionalidade como vedação à inoperância e invocando a teoria do garantismo de Farrajoli, ver: PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 2013.

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O estado de coisas descrito foi associado a revisão jurisprudencial de 2009, encabeçada pelo Ministro Eros Grau que considerou que o princípio veda a execução provisória das penas antes do trânsito em julgado. A não apreensão correta dos efeitos sistêmicos, como a influência sob a prescrição e sem determinar um limite mínimo aos recursos interpostos, teria ensejado a criação de uma cultura de interposição de recursos protelatórios, visando a prescrição da pretensão punitiva e assim a impunidade do sujeito que violou o ordenamento jurídico penal. Além disso, os efeitos sociais desse erro de cálculo compreenderiam a não consecução do escopo preventivo da sanção penal, permitindo e incentivando as práticas delituosas, sob o manto da impunidade e morosidade judicial. Associa-se o clamor popular ao estado de coisas gerado pelo precedente, que teria, assim, dado origem a incongruências sociais e sistêmicas, devido a inoperância causada.

Ademais, através de rasos juízos de utilidade, aduziu-se a baixa existência de provimentos em relação aos recursos extraordinários, para concluir então que não haveria maiores problemas em não conhecê-los em efeito suspensivo, posto que a maioria estaria fadada ao desprovimento.

Como se pode notar, há claros indícios da interpenetração dos vetores consequenciais e realistas no raciocínio. O Supremo descreve uma realidade, impondo causalidade a uma decisão anterior, ou seja, entende que a realidade foi consequência dela. E, por isso, infere que ela foi a causa do problema, agindo nela.

Nesta senda, é possível arguir nova crítica negativa ao emprego perspectivo do Supremo que, além de desconsiderar o preceito do artigo 283 do CPP, ainda se negou a considerar outros aspectos da realidade. Ou seja, valeu-se do argumento realista sem, contudo, visualizá-lo de modo minimamente aceitável.

Isto porque, coube ao voto do Ministro Marco Aurélio, apenas, o reconhecimento de uma parte da realidade negligenciada pelos outros ministros, qual seja, a existência de um Estado de Coisas inconstitucional nos presídios existentes em nosso país. Nestes, pode-se verificar uma violação institucional de direitos fundamentais de importância imensurável em nosso sistema. Não há mínimas condições de se atender a prescrição constitucional de vedação a penas cruéis e violadoras de direitos. É importante notar que o limite do ius puniendi estatal está na restrição temporária da liberdade, não havendo autorização jurídica para violação do direito à saúde, à integridade física e psicológica, em suma, à dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial.

Por fim, o próprio STF já havia reconhecido, neste mesmo ano, a existência de tal Estado e sua qualidade de antijuridicidade894. Como aceitar que o próprio Supremo reconheça uma realidade e, em uma discussão que a afete diretamente, não a utilize

894 Ver ADPF 347.

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em seu raciocínio? Cumpre ressaltar que a provocação do Ministro Marco Aurélio não levou a reconsiderações ou argumentações por parte dos outros ministros. Sua intervenção foi ignorada. Como se cada ministro votasse per si, como se cada ministro fosse uma ilha.

Para que não restem dúvidas, a afetação do novo posicionamento ao estado de coisas dos presídios é extreme de dúvidas, porquanto levará novos cidadãos a situação de inconstitucionalidade, possivelmente ampliando o próprio estado, mas certamente desconsiderando a influência de tal estado na vida desse novo contingente. O aparte do Ministro Fux a voto do Ministro Lewandowski, demonstra tal insensibilidade, a partir do momento que foi afirmado que a mudança diminuirá o contingente de prisões preventivas, substituindo-as por prisões provisórias, supostamente não agravando o estado, por apenas substituir um pelo outro.

Tal raciocínio é equivocado por pelo menos três ordens de razão: do ponto de vista estatístico, por não contribuir para diminuição ou resolução do gravame inconstitucional e por aceitar a substituição de um desvalor por, ao menos possivelmente, outro.

Em primeiro lugar, ambas as argumentações de natureza utilitária têm critério empírico duvidoso. Assevera-se que os juízes não têm expertise técnica diversa do direito, via de regra, e, mesmo para aqueles que consideram juízos utilitários munidos de suficiente eloquência para superar argumentos deontológicos, se faz necessário a correta determinação da utilidade da medida. Sustenta-se que para tomar decisões com potencial lesivo a direitos de sumidade translúcida ao sistema, imprescindível a análise de fatos, a verificação de fórmulas probabilísticas, dentre uma série de preocupações que o judiciário não tem estrutura para lidar. Exemplifica-se tal crítica, colocando como exemplo que, enquanto Luís Roberto Barroso afirmou que, em seu gabinete, após “rápida consulta”, apenas cerca de 4% dos recursos extraordinários eram providos, Lewandowski afirmou que, de acordo com estatística oficial da CNJ, esse número, na verdade, ultrapassaria 20%. Ora, se há controvérsia com relação a probabilidade correta associada a questão, de duas uma: ou são convocados peritos que possam se posicionar tecnicamente sobre a discórdia, ou se considera tal argumento como ilegítimo para produção de eloquência no julgamento. Várias questões devem ser consideradas em ambos os números: há relação de dependência entre o evento verificado no gabinete do ministro e ao evento porventura verificado no gabinete de outros ministros? Qual foi o marco temporal utilizado? Como se procedeu a verificação da probabilidade? O que foi considerado como evento positivo? Enfim, obviamente há controvérsias nesse argumento895.

Assim como, pelas mesmas razões, existe controvérsia acerca dos critérios estatísticos utilizados pelo Ministro Fux para determinar que haveria

895 Para a utilização do argumento estatístico no processo com péssima consequência cf. SCHNEPS, Leila; COLMEZ, Coralie. Math on trial: how numbers get used and abused in the courtroom. New York: Basic Books, 2013.

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uma substituição dos presos preventivos pelos provisórios, não havendo maior gravame ao já prejudicado sistema carcerário, pois não estaria se promovendo um acréscimo a sua “população”. Pior do que o juízo anterior, não parecem haver bases para tal afirmativa: quantos são os presos preventivos no Brasil hoje? Quantos aguardam em liberdade enquanto são julgados recursos de natureza extraordinária? Quantos ainda são presos preventivos e aguardam o julgamento de seus recursos nas instâncias superior e suprema? Sem a resposta a qualquer desses questionamentos não há porque não relegar os argumentos invocados a irrelevância.

Ademais, ao afirmar que seriam substituídos os presos preventivos, houve a exposição de uma postura despreocupada quanto a não diminuição ou, pelo menos, consideração do gravame carcerário na questão, pois mesmo que válida a estatística apresentada, ainda se manteria uma quantidade inaceitável de pessoas em presídios que não são capazes de comportá-las. A relação numérica não foi avaliada do ponto de vista do desvalor do atual estado de coisas inconstitucional.

Em virtude das considerações, é importante que se diga que a decisão do STF foi utilitarista, em alguns aspectos, pragmática, por entender pela preponderância de um juízo consequencial e realista, a despeito da legislação existente apontar em sentido diametralmente oposto, além de ler a realidade de uma forma parcial, indicando um mau uso dos métodos em tela.

Como se não bastasse, embora o Ministro Marco Aurélio tenha suscitado um provável dano ao erário, em vista de possíveis condenações equivocadas e além do prazo, não houve incursão dos ministros na matéria, o que revela um descuido no trato da mesma e uma insegurança para os cidadãos que já estão sofrendo as augúrias de um processo penal e, agora, poderão sofrer previamente ao trânsito em julgado. Conforme aduz Carlos Ari Sundfeld896, o juiz, ao concretizar princípios em enunciados com força normativa, não dados a priori, deve assumir o que ele chamou de “ônus do regulador”, ou seja, deveria se preocupar com os efeitos que sua enunciação possa causar no sistema, de modo a reduzir possíveis gravames, e, em razão de que agindo dessa forma, o juiz estaria regulando aquilo que o legislador deixou de regular, devido a dificuldades políticas.

Apesar de o mencionado autor ter uma visão negativa sobre os princípios, que não é compartilhada pelos autores desse artigo, ela nos permite questionar sobre um pressuposto de aplicação normativa principiológica. É dizer: uma vez que um princípio for redimensionado interpretativamente, necessário se faz verificar se há condições sistêmicas para fazê-lo e quais serão as consequências da mudança no sistema. Em relação ao HC 84.078, percebeu-se uma patente falha nesse aspecto: a mudança, a nosso sentir acertada, acerca da interpretação dada a presunção de inocência, não considerou as amplas vias recursais que existem em nosso país e nem se preocupou

896 SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit., p. 228-229

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com os marcos interruptivos da prescrição vigentes em nosso Código Penal. Dessa forma, ao se furtar dos balizamentos necessários ao novo entendimento, deu-se origem a um problema, traduzido no incremento da inefetividade da tutela penal, pela criação de uma estratégia que visa a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva estatal.

Da mesma forma que outrora verificado, parecem os magistrados incorrer em erro semelhante: ao não se manifestarem sobre a responsabilidade do Estado pelo encarceramento de pessoas que a posteriori se mostrem inocentes ou outras situações que podem ser criadas, não houve o correto manejo dos riscos sistêmicos que incidem sobre a modificação, ampliando a imprevisibilidade da mudança quanto as consequências que dela se esperam operar.

Não obstante, da mesma forma que a priori, parecem haver impedimentos claros à interpretação esposada no HC 126.292, o atual estado de coisas, impõe a observância de premissas válidas que implicam a necessidade de um juízo ponderativo do conflito real de direitos. Assim, entendemos que várias das premissas levantadas pelo STF são válidas, a saber: I) a existência de uma cultura de recursos protelatórios e o defeito no instituto da prescrição inibem a efetividade da tutela penal; II) o estado de coisas atual adveio, sem sombras de dúvidas, da revisão jurisprudencial anterior que, ao não considerar os efeitos sistêmicos de sua decisão, gerou um estado de completa inoperância; III) a inefetividade penal é extremamente gravosa e deve ser combatida; IV) o pressuposto da não culpabilidade apresenta uma abertura interpretativa e, em caso de existir pronunciamento legiferante sobre a matéria, deve o Supremo apresentar posicionamento deferente; V)é possível gradualmente influenciar na esfera jurídica do cidadão com o desenvolvimento do procedimento; dentre outras. Isso demonstra que, apesar de não concordarmos com algumas de suas conclusões e premissas, percebemos que a várias delas assiste razão.

O simples redimensionamento hermenêutico da norma, com o fim de apontar a existência de um conflito aparente, corroborando o entendimento através de argumentação processual e legal, nesse aspecto, deficiente, com os expendimentos realizados, se mostra vedado pelo sistema, por constitui verdadeiro método retórico despido de valor e de controle metodológico, não podendo se furtar o operador do direito da ponderação dos interesses.

A ponderação se impõe, em respeito às premissas válidas apresentadas por ambos os lados, e em respeito à ideia de Estado democrático de direito, vedando arbitrariedades e decisionismos argumentativos.

4) Da efetividade

O princípio da efetividade no texto constitucional pode ser extraído do artigo 5º XXXV e o seu conceito pode ser considerado, em breve síntese, como a

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capacidade de produzir efeitos. No âmbito processual isso é traduzido como a aptidão para alcançar os escopos esperados pelo processo, como a pacificação social e a garantia de soluções jurídicas legítimas. Entretanto, não é suficiente que o processo alcance as suas finalidades, a tutela jurisdicional há de ser célere na medida em que for possível, de modo a garantir a proteção do direito material com o mínimo dispêndio e ainda apto a atingir seus fins.

Se analisarmos o referido princípio como um meio de se atingir a instrumentalização do processo, somos capazes de perceber que o mesmo não assegura somente o acesso à justiça em sua concepção formal, mas sim “o direito de ação compreendido como acesso à justiça qualificado”897, ou seja, um acesso à justiça capaz de garantir a prestação jurisdicional efetiva.

Quando se busca um acesso à ordem jurídica justa é preciso ter em mente que justiça pressupõe que seja dado a cada um o que é seu por direito dentro de um prazo razoável. Desta forma, o acesso à justiça impõe aos demais direitos um plano de efetividade, não só de concreção em sentido estrito, porém de eficiência no seu atingimento. Tal efetividade acaba por vedar que qualquer direito se torne apenas letra morta, visto que todos são alcançáveis juridicamente.

Sobre esse aspecto impende salientar que o § 1º do artigo 5º da Constituição externa o caráter de efetividade do texto constitucional. Inicialmente, cumpre mencionar que o mencionado dispositivo traz à baila o princípio da força normativa da constituição, que deve ser visto como um cânone interpretativo aplicável a todo o ordenamento jurídico de modo a conferir sempre o máximo de efetividade à Constituição Federal. Vale dizer, na tutela jurisdicional é sempre necessária deferência à interpretação que melhor aproveitar os institutos constitucionais envolvidos898.

Dessa forma, se faz mister salientar a importância de uma interpretação que se coadune com os direitos fundamentais previstos em nossa lei maior, analisando o princípio em questão como uma dimensão de concretização dos demais direitos fundamentais.

No caso em tela, o Supremo Tribunal Federal analisou o disposto no inciso LVII do artigo 5° da Constituição, no entanto a interpretação dada ao dispositivo não se revelou a mais acertada levando em consideração o cânone interpretativo supramencionado. Observando o cenário fático problematizado pelo Habeas Corpus 126.292 é evidente um descompasso entre as interpretações de certos princípios e postulados de direito constitucional. Se levarmos em conta as críticas que os ministros dispenderam aos infindáveis recursos, por muitas vezes protelatórios, somos capazes de observar a preocupação que os permeava: o tempo pelo qual se alonga o processo penal tem consequências gravosas para o Estado e para toda a sociedade.

897 FREIRE, Anderson Ricardo Fernandes. O Princípio da Efetividade do Processo.Interface, v. 4, n. 2, 2011.

898 Sobre o tema ver SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Op. cit, p. 442-446, 2012.

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Nosso processo penal é formulado com vistas a oferecer ao réu uma possibilidade ampla e justa de defesa tanto das acusações que sofrem quanto de decisões que possam ser tocadas pela injustiça. Para isso foram formulados inúmeros instrumentos de defesa, cabendo cada qual a uma suposta injustiça. Conforme mencionado em outro item do presente artigo, o inconformismo humano, aliado com o sistema de prescrição da pretensão punitiva estatal, contribuem para um mau uso dos recursos cabíveis.

Note-se que não há contrariedade à lei em manejar um recurso cabível àquele momento processual - ainda que forçoso seja crer na existência de interesse recursal. Recorrer tornou-se, então, uma estratégia processual voltada para a extinção da pretensão punitiva estatal devido a prescrição. O processo deixa de ser efetivo, não só porque não atinge o fim de proteger os bens jurídicos tutelados pela legislação, como porque deixa de atingir o seu fim de educar e pacificar socialmente, visto que o sentimento de impunidade que o judiciário passa à população leva a crer que o crime compensa.

Como é possível observar, a preocupação que a corte suprema demonstrou é, de fato, válida. O processo deve ser efetivo e para isso deve buscar melhores maneiras de atingir os seus fins, no entanto, essa interpretação a despeito de dar maior efetividade a princípios como o da segurança pública acaba por dar efetividade mínima a outros como o devido processo legal e a presunção de não culpabilidade.

Decerto, essa interpretação não é a que melhor se amolda ao princípio da força normativa da Constituição e, embora não possamos negar que a demora no processo penal ocasiona transtornos ao sistema processual não é passando por cima de outros importantes preceitos constitucionais que se deve fazer mudança.

5) Da ampla defesa

O princípio da ampla defesa pode ser encontrado em nosso ordenamento no artigo 5º, inciso LV, da CF, tendo sido primeiramente formulado na Magna Carta de John Lackland, em 1215, sob o manto da figura do due process of law899. Para os fins desse trabalho, visualiza-se a ampla defesa como uma garantia que propicia ao réu meios de exercer sua resistência jurídica, donde, inequivocamente, se afigura como consectário o direito de recorrer.

Se faz mister analisar se o direito à ampla defesa resta violado a priori com a mudança de entendimento. Isso porque, ao iniciar a execução da pena antes do trânsito em julgado, por certo afeta-se o conteúdo defensivo do réu. Das palavras dos ministros depreende-se que, ao se inovar na interpretação do inciso LVII, o réu que desejasse o conhecimento de seu recurso de natureza extraordinária no

899 BRAMANTE, Ivani Contini. Eficácia do contraditório e ampla defesa nas relações interprivadas. Revista LTr, v. 64, n. 08, 2001.

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efeito suspensivo deveria entrar com medida cautelar, pleiteando o mesmo para, excepcionalmente, admitir o recurso como obstativo da execução provisória da pena. Não entendemos haver violação a priori, por duas ordens de razão: em primeiro lugar, o réu ainda continuaria possuindo meios impugnativos por demais amplos para garantir sua defesa e em segundo, o regime jurídico de um conceito indeterminado está sujeito a regulação e a Lei 8.037/90 determina que os recursos especial e extraordinário não sejam conhecidos em tal efeito.

Isso apenas reforça que o Supremo ao realizar a mudança de um conceito vago principiológico deveria assumir um ônus regulador, seja na questão do custo ao erário, seja na questão do efeito suspensivo estar ou não abarcado no âmbito protetivo da ampla defesa. Vale dizer: ao interferir em matéria legiferante, deve-se agir com cautela, como se legislador fosse.

No plano consequente e realista, percebe-se que os ministros elegeram como deficiências preponderantes no frustro à efetividade, a prodigalidade recursal, em um sistema com defeitos no instituto da prescrição. Tendo isso em mente, assevera-se que o que de fato causou, direta e imediatamente, o cenário em que nos encontramos não foi o redimensionamento da presunção de inocência que, como já discutido, deve mesmo obstar a mudança realizada, mas sim a repercussão sistêmica da mudança que não foi observada pelos ministros. Com isso, entendemos que o que causou os problemas mencionados foi uma concepção equivocada de ampla defesa, em um sistema legal que a regulou de forma ampla, acompanhado pela não alteração da prescrição penal900. Por isso, não parece que uma revisão jurisprudencial deva ser realizada, em presença de produção legal contrária a ela e, em havendo defeitos consequentes, deve-se adequar o sistema a modificação. Foi justamente isso que faltou no HC 84.078/09 e que, por consequente, delineou nosso atual cenário. Assim, por mais que tal HC tenha sido conditio sine qua non para o problema, o que o gerou foi uma falta de atenção aos efeitos da decisão.

Voltando ao assunto que nos propusemos a escrever, para Fernando Fontoura da Silva Cais901 existem três finalidades principais ao direito de recorrer, as quais acrescentamos uma depreendível de seu próprio texto: (i) forma de tutelar o inconformismo da parte que assim exerce sua defesa novamente; (ii) a melhoria da prestação jurisdicional; (iii) unificação do direito; e (iv) controle da atividade judicial. A primeira e a segunda se prestam a “corrigir” os erros porventura cometidos no primeiro julgamento e permitir ao réu do processo penal aduzir com a máxima amplitude suas razões. A terceira se relaciona com a redução da possibilidade de julgamentos divergentes devido ao número reduzido de julgadores. E a quarta visa impedir abusos

900 O último marco interruptivo da prescrição é o trânsito em julgado para a acusação, o que estava de acordo com o entendimento anterior de que era possível executar provisoriamente a pena. Vedou-se tal espécie executória sem, contudo, proceder a readaptação da prescrição.

901 DE OLIVEIRA, Bruno Silveira. Recursos e a duração razoável do processo. Ed. Gazeta Jurídica. 1ª ed. Brasilia, DF. 2013, p. 105-133.

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por parte dos juízes, o que é vedado, dentre outras normas, pelo devido processo legal.

Indiscutível, portanto, que o direito de recorrer, não apenas tutela interesse da ampla defesa, como também da segurança jurídica902. Porém, o sistema atualmente privilegia o trato do inconformismo do réu e deixa de lado a segurança jurídica. Parte-se da premissa errônea de que como o processo poderá culminar na perda de um direito, o réu deve poder se utilizar de suas “armas” da forma que entender melhor, o que despreza o uso ético e valorativo desse direito.

A intervenção que proporemos partirá de um postulado sistêmico que consiste na ideia de que se uma premissa é considerada como existente e válida perante um instituto do sistema, então ela deverá ser considerada como existente no próprio sistema, de modo a trazer coesão ao próprio e reforçar seu caráter de rede. A partir daí, impende-se verificar, através de um juízo de adequabilidade, se aquela premissa é válida em alguma outra norma do sistema. Em sendo, o intérprete a submeterá às outras válidas e existentes, avaliando a influência recíproca entre elas e extraindo o que considera como melhor interpretação. Neste sentido, a partir do momento que há o reconhecimento de que a premissa do efeito suspensivo dos recursos na esfera processual penal é necessária para a melhor interpretação do pressuposto de não culpabilidade, se torna imperativo o estudo do ressoar sistêmico que se causa. Com isso, deve-se concluir que, não apenas o sujeito processual poderia arguir a premissa em seu processo, de modo que o magistrado se lançasse nos juízos de adequabilidade e de influência recíproca, como o próprio órgão prolator do entendimento deveria se lançar em um juízo consequencial sistêmico, remodelando o próprio.

Extrai-se então que a existência dos efeitos suspensivos recursais, somado a conexão do direito de recorrer à segurança jurídica, a ideia de que a verdade é produto dialógico persuasivo, que não há direitos absolutos em nosso ordenamento e que o frustro da efetividade deve levar o magistrado ao controle concreto das formas, o resultado é um controle mais rígido quanto ao conteúdo recursal, não diminuindo as vias legais903 e constitucionais eleitas, mas sobrepujando a anterior premissa de que o uso desses meios pode ser feito de qualquer maneira, ou seja, impõe-se um controle tendente ao ideal da segurança jurídica que permita que o atual sistema não frustre a efetividade processual, permitindo em caráter excepcional a tutela provisória da pena.

Com relação a uniformidade, cumpre rememorar que um aspecto da atividade judicante que resta esquecido é a confiança nas instituições. Os juízes brasileiros são, via de regra, profissionais tecnicamente qualificados e investidos por um meio

902 LOURENÇO, Haroldo. O neoprocessualismo, o formalismo-valorativo e suas influências no novo CPC. Disponível em <www. temasatuaisprocessocivil.com.br>, p. 41, 2011.

903 Para opiniões com relação a filtros de admissibilidade recursal, cf. DE OLIVEIRA, Bruno Silveira. Recursos e a duração razoável do processo. Ed. Gazeta Jurídica. 1ª ed. Brasilia, DF. 2013.

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reputado justo em suas funções. Por mais que o inconformismo legítimo, como instrumento de defesa, deva encontrar respaldo em nosso ordenamento, também deve a confiança no Estado. Diz-se isso porquanto, assim como na Administração Pública, o excesso de controles, visando uma segurança que parece inalcançável, acaba gerando uma “trava decisória” 904 que, no âmbito judiciário, por sua vez, contribui para inefetividade do processo. Argui-se no presente que o desembargador precisa dar certa deferência ao entendimento proferido pelo juízo singular, quando inexistir entendimento jurisprudencial consolidado. Assim, criar-se-ia um controle recíproco: em não existindo entendimento na matéria, o desembargador deve ser deferente quanto a interpretação do juízo, a não ser em vista de entendimento manifestamente contrário a lei e, em existindo entendimento, deve o juízo se adaptar a ele ou sujeitar sua decisão a mudança quando do recurso cabível. Revisões jurisprudenciais por uma questão de confiança legítima devem contar com as devidas modulações de efeitos, de modo a não prejudicar aquele que se pautou segundo uma base normativa consolidada- a partir do momento que se diferencia texto e norma, um entendimento jurisprudencial converte-se em norma, portanto, capaz de criar confiança legítima905.

Noutro giro, a deferência mencionada pode também ser orientada pelas ideias de duplo grau de jurisdição preponderante e preclusão consumativa. A primeira ideia partiu de uma leitura de um entendimento amplamente aceito pelos ministros, quando do julgamento, onde se afirmou que as instâncias ordinárias são “soberanas”906 na matéria fático-probatória e as extraordinárias na higidez do ordenamento jurídico. Inferimos, a partir disso, que o caráter “duplo” do preceito não restaria perfeito com duas análises sobre o tema, mas somente após pelo menos uma análise do tribunal preponderante907. De tal feita que, em razão dessa premissa, matérias de direito decididas pelo juízo singular e pelo tribunal de apelação no mesmo sentido, devem contar com maior deferência do tribunal superior e supremo. Se houver divergência, mesmo inexistindo entendimento jurisprudencial consolidado, deve haver mais liberdade para os ministros. Acrescenta-se assim, maior ônus argumentativo para aquele que for divergir de uma posição na qual magistrados se direcionaram. É claro que em se verificando déficit de fundamentação deve-se dar menos deferência ao exarado, porquanto não se pode a pretexto de “confiança” abrir mão de controlar a atividade jurisdicional.

904 Ver<http://www.sindifiscors.org.br/premio/interna.aspx?secao_id=11&s=Not%C3%ADcias&c=Confer%C3%AAncia:-Palestrantes-debatem-sobre-os-diferentes-tipos-de-sistema-de-controle&campo=1798>

905 Sobre confiança legítima, cf. DIDIER JR, Fredier. Curso de direito processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Salvador: Jus Podivm, v. 1, 2015. p. 137-145.

906 O entendimento em questão está em consonância com a Súmula nº 29 do STF, usada como base de nosso pensamento.

907 A pormenorização da leitura ora suscitada precisa ser desenvolvida, para que o preceito possa ser aplicado ao fim visado. Por exemplo, o que constituiria uma “análise” do tribunal preponderante? Como superar a hierarquização que dita como o judiciário funciona, para propor uma influência recíproca que, mesmo hierarquia, mitiga a atual verticalização para cima?

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Além disso, a aplicação do conceito de preclusão consumativa no processo penal, se associado ao de duplo grau de jurisdição preponderante, poderia representar avanços no controle do direito de recorrer. Oportuno diferenciar matéria cognoscível de ofício, que é aquela que independe de provocação, de matéria cognoscível a qualquer tempo, pois um não implica o outro, são conceitos diversos908. Mais do que isso, não é porque certa matéria é cognoscível a qualquer tempo e de ofício que o magistrado poderá decidi-la mais de uma vez. O direito de recorrer devolve a cognoscibilidade da matéria, mas não deve devolver a mesma matéria mais de uma vez. Por mais que se entenda que uma matéria possa ser conhecida de diferentes perspectivas - constitucional, legal - entende-se que os magistrados têm conhecimento jurídico sobre ambas. Assim, perfeito o duplo grau de jurisdição preponderante, preclusa a matéria invocada. Dessa forma, não apenas deveria o magistrado que se insurgisse contra a decisão na matéria ter maior ônus argumentativo para muda-la, como deveria demonstrar uma mudança no cenário normativo ou fático que fosse capaz de sobrepujar a estabilidade adquirida na matéria. Isso poderia evitar que em todos os recursos se invocasse, por exemplo, a incompetência na matéria.

Aproxima-se da ideia de controle do exercício jurídico a teoria do abuso de direito que entende que o exercício de um direito consagrado no ordenamento tem a aparência de legalidade, mas nem sempre tem o conteúdo legítimo909. Neste sentido, réus que invocassem matérias preclusas, sob o mesmo fundamento já utilizado, ou tentassem de qualquer forma protelar o juízo, visassem confundir o fluxo de informações apreendido no processo ou de qualquer outra forma desviassem o uso do recurso para outro fim diverso daqueles aceitos, teriam suas ações apenas aparentemente legítimas.

Também poder-se-ia utilizar a boa-fé processual910, como norteadora da aplicação da teoria do abuso de direito. Esta traz em seu bojo duas dimensões: a subjetiva, que é o suporte fático de alguns fatos jurídicos e a objetiva, que é uma norma de conduta. A dimensão objetiva impõe condutas ou as proíbe, levando ao dever de ação ou abstenção, já a dimensão subjetiva é utilizada como exigência para a configuração de litigância de má-fé, por exemplo.

A dimensão objetiva da boa-fé911 impõe normas de conduta, além de servir de cânone interpretativo para o comportamento das partes processuais e permitir uma análise funcional do direito envolvido. Dessa forma, trar-se-ia maior concretude a

908 CABRAL, Antonio do Passo. Questões processuais no julgamento do Mensalão: valoração da prova indiciária e preclusão para o juiz de matérias de ordem pública. 2013.

909 LIMA, Alcides de Mendonça. Abuso do direito de demandar. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 19, p. 59, jul.-set. 1980.

910 DIDIER JR, Fredier. Curso de direito processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Salvador: Jus Podivm, v. 1, 2015. p. 104-113.

911 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin. Código civil interpretado conforme a Constituição da República. v. 2. 2ª ed. editora Renovar. 2012. p 16-23..

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noção que estamos construindo de prevalência da busca pela efetividade, através de uma análise finalístico- funcional do direito envolvido, superada a premissa que não permite sua aplicação à ampla defesa no processo penal.

6) Da razoável duração do processoAcrescentado no texto constitucional pela já citada Emenda nº 45, aduzem

os estudiosos que o mesmo já podia ser inferido da cláusula do devido processo legal e do direito ao acesso à justiça912. Sem embargo ao posicionamento da referida doutrina, a explicitação do preceito no texto constitucional agrega mais certeza da sua existência, suscitando maiores desenvolvimentos acerca de seu conteúdo.

Malgrado haja por alguns a tentativa de vincular o preceito à celeridade do processo, deve-se entendê-lo como definidor de uma meta a ser observada, quando do desenho do procedimento pelo juiz e pelas partes, vetorizando-o em direção a um desenvolvimento sem dilações desnecessárias e inúteis que obstaculizem sua efetividade.

José Eduardo Berto Galdiano913 atenta para a íntima relação entre a efetividade do processo e sua razoável duração, extremando um do outro ao situar o último no campo da eficiência procedimental. É dizer: enquanto a efetividade prima pelos efeitos, a razoável duração orienta os meios processuais, visando deles extrair sua máxima eficiência. Assim, afasta o autor a ideia de que a razoável duração estaria necessariamente associada à celeridade, porquanto o mais célere meio pode importar em juízos prematuros, incertos, errados sobre determinada relação jurídica, levando a uma prestação jurisdicional de má qualidade.

No prisma da qualidade se insere o preceito, que permitiria aos operadores do direito realizar um juízo dos atos processuais concretados, identificando os fins perquiridos e avaliando a correlação entre ambos, do ponto de vista da temporalidade e do custo que deve ser demandado, primando pela consecução de seus fins, com o menor dispêndio de tempo e dinheiro.

Como não é possível determinar, a priori, quanto tempo deve demorar determinado processo, tendo em vista que o processo, por envolver a cognição de fatos a ele estranhos, deve demandar tempo suficiente, optou

o Constituinte pela teoria do “não-prazo”, permitindo ao operador, diante do caso concreto, verificar sua duração razoável. Impende-se, dessa maneira, que nos debrucemos sobre duas questões: I) momento da verificação da razoável duração do processo e II) análise da perspectiva que lhe é intrínseca.

912 Por todos, cf. NERY JUNIOR, Nelson. Principios do processo civil na Constituição Federal, São Paulo, RT, 1999. p. 30

913 DE OLIVEIRA, Bruno Silveira. Recursos e a duração razoável do processo. Ed. Gazeta Jurídica. 1ª ed. Brasilia, DF. 2013, p. 289-329.

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Quanto a primeira questão, impõe consignar que a análise da duração razoável do processo deve ser realizada pelo juiz, ou provocada pelas partes, durante e após o procedimento. A explicação da assertiva consiste na assunção de que o exame de eficiência, trazido no bojo da norma constitucional, se verifica no desenvolvimento do processo. Assim, não haveria como primar pela eficiência, se nos limitássemos a sua visualização a posteriori914. Da mesma maneira, se após o desenvolvimento do feito for constatada a existência de dilações indevidas, criadas pelo juiz ou pelas partes, deve haver um meio de controle ao dano que a demora ou a pressa causou à efetividade ou as partes. Não há razão para chancelar os efeitos danosos da demora do processo, uma vez que a norma em tela exige e garante um juízo de eficiência. A profundidade do incurso na eficiência dos meios processuais está limitado, por óbvio, as capacidades institucionais daquele que o realiza, tema que, por mais relevante que seja, foge ao escopo do presente.

A segunda questão desvela-se com facilidade ao leitor: a razoável duração do processo, pelas características aduzidas, impõe a análise das perspectivas consequenciais e realísticas. A não fixação de um prazo para verificação da razoável duração do processo aponta nesse sentido.

Além desses questionamentos, parece intuitivo que a natureza jurídica do preceito sob análise é de postulado normativo, em outras palavras, sobrenorma, posto que não haverá conflito entre a ampla defesa e a razoável duração do processo, por exemplo, pela negativa do juízo a uma prorrogação de prazo para apresentação de defesa preliminar, porque o réu marcou compromisso para aquele dia. Da mesma forma, um juízo contrário, em razão da consideração de que tal compromisso era de fato imprescindível, não macula a razoável duração do processo, visto que a dilação seria tida como em prol da eficiência no devido esclarecimento dos fatos, através do contraditório e ampla defesa.

Por mais que circundar o conceito à ideia de eficiência já permita uma clarificação de seu conteúdo, se faz necessário o estabelecimento de critérios para que se qualifique certo ato processual como eficiente ou não. Cabe reminiscência a denominada Teoria dos 3 critérios, criada pela Corte Européia de Direitos do Homem que estabelece os seguintes standards: I) complexidade do caso, II) comportamento das partes e III) atuação dos juízes, dos auxiliares e da jurisdição915. Um caso que não possua muitas variáveis, como aquele no qual o réu foi apreendido em flagrante delito,

914 Interessante o conceito de “accountability” operacional de Trebilcock e Daniels, que de forma diversa fundamenta um maior controle quanto ao emprego de recursos e de tempo processual, se apoiando em instituições fundamentais para a promoção do Estado Constitucional e do “Rule of Law”. Ver TREBILCOCK, Michael J.; DANIELS, Ronald J. Rule of Law reform and development: charting the fragile path of progress. Cheltenham, UK; Northampton, USA: Edward Elgar, 2008.Além disso, entendemos que, seja através da Accountability seja através da razoável duração do processo, é possível avaliar o valor na forma do ponto de vista da eficiência também.

915 Idem.

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em posse da materialidade do crime, por exemplo, não deve demandar tanto tempo, como aquele no qual o réu é integrante de uma organização criminosa, com esquema de aliciamento de menores para práticas delitivas, ocultando os proveitos, através de lavagem de capitais.

É possível, através dos critérios, que se conclua nexo de causalidade subjetivo em relação a ineficiência do processo. Como se pode notar, os critérios II e III implicam a avaliação do comportamento e atuação dos envolvidos no processo. A consequência dessa análise aponta no sentido lógico de que aquele que produziu a ineficiência não pode impor o ônus de seu comportamento a outrem. Em razão disso, impende-se consignar que o réu não pode sofrer os augúrios de um estado de coisas inconstitucional por uma dilação temporal que ele não gerou.

A relevância da assertiva anterior se relaciona com a constatação realística de que o abarrotamento de trabalho, somado a desorganização judiciária, também é responsável pela demora no processo916. Transmitir tal ônus a parte que agiu presumidamente de modo correto não pode lograr ser qualificada como justa. Nota-se na jurisprudência, a violação da razoável duração do processo, proveniente do excesso de prazo nas prisões preventivas, em casos nos quais o réu fica encarcerado por tempo superior a metade da pena cominada em abstrato.

Tudo isso nos leva a defender que a razoável duração do processo se mostra uma imprescindível ferramenta na consecução da efetividade processual, através do controle finalístico-temporal dos atos processuais, ampliando as vias argumentativas e a dialeticidade dos sujeitos processuais. A definição in concretu da duração processual pode permitir maior rigor quando se verifique excesso de tempo, ou ampliação dos esforços argumentativos, em se entendendo que a marcha processual está com sua temporalidade adequada.

Outra perspectiva que assinalamos ao presente ensejo de controle da atividade jurisdicional no processo, seria aquela trazida à baila pelo conceito de tempo a partir da fenomenologia. Afirma Jorge Luís Câmara917 que o tempo é um estado inerente a consciência que percepciona os objetos em sua dimensão. Ademais, que a apreensão temporal envolve a apreensão de um fluxo de informações, recepcionadas através de uma consciência intencional. Portanto, não apenas o tempo é imprescindível para conhecer, como a percepção do mesmo é direcionada por uma intencionalidade. Desta maneira, a validade do conhecimento se relaciona com o tempo empenhado em sua construção e com o devido controle de intencionalidade no procedendo. Percebe-se que a intencionalidade, por mais que guiada, ou controlada, não pode ser eliminada, de tal modo que, por certo, a “verdade” no conhecimento é perspectiva.

916 Idem, p. 105-131.917 CÂMARA, Jorge Luis. O tempo do direito e o tempo da justiça: uma reflexão fenomenológica

sobre a duração do processo e a essência da justiça. Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.5, n.2, p.1-125, out.2012/mar.2013

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Um critério que sugerimos neste artigo de utilização da noção do tempo em seu aspecto fenomenológico é através da forma como opera a consciência intencional na percepção do fluxo de informações antes mencionado: para que se possa conhecer se faz necessário reter e recordar informações. Se somarmos tal entendimento a ideia de verdade como persuasão e influência, pode-se inferir uma nova forma de controlar o tempo no processo.

O razoável dispêndio de tempo, considerando a influência da parte que recorre, deve ser maior enquanto a capacidade de retenção judicial, objetivamente problematizada, não superar a capacidade de recordação judicial, também objetivamente considerada. A partir daí, deve-se aumentar a deferência as prévias prolações judiciais, privilegiando a confiança na capacidade do magistrado competente, por se entender que a capacidade de retenção desvinculada da capacidade de recordar tem o potencial de ilidir o devido progresso persuasivo no processo.

O processo de recordação ao qual se faz alusão, não se refere exatamente ao caráter mnemônico de eventos, mas sim ao caráter mnemônico quanto a construções de sentidos, que gradativamente vão se perdendo, e não pelo devido motivo, qual seja, pelo aperfeiçoamento argumentativo. O repasse cognitivo a diferentes juízes, cada vez menos conectados com o processo, nesses casos, importa na confusão de fluxos de informação, prejudicando a função cognitiva ligada ao tempo, por haver progressiva perda de sentido, prejudicando a racional e razoável reflexão jurisdicional.

Busca-se, assim, além de um melhor controle do tempo processual, balizar a forma de atuação do controle jurisdicional que, juntamente as formas de controle de uniformidade, pode produzir uma nova concepção de direito de recorrer que se coadune com o princípio da presunção de inocência e sua exigência da não exequibilidade até o trânsito em julgado, sem descurar com a efetividade da tutela penal, tema de sumidade evidente. Os limites aduzidos nos dois últimos tópicos poderiam ser usados, sem violação a excepcionalidade da pena, através da proporcionalidade, como uma forma de tornar legítima a execução provisória da pena918.

7) Uma análise de razoabilidadeDiante de todos os princípios e críticas metodológicas acima expendidos se

torna imperativo o debate acerca da razoabilidade na decisão tomada. Muito embora os ministros do Supremo tenham mencionado a razoabilidade no deslinde de seus argumentos, é possível notar uma espécie de qualificação retórica, na qual há ausência de critérios na utilização do postulado.

918 Uma possível forma de introduzir essa tutela, sem ferir o princípio de legalidade, entendemos ser atráves do art 3º, CPP c/c art. 311, NCPC. O que se combate nesse artigo é a exequibilidade provisória da pena sem um balizamento mais sensível a irreparabilidade do dano que se pode gerar. Nesse sentido, primorosas as palavras do ministro Lewandowski no julgamento do presente HC, comparando a falta de preocupação com os balizamentos da tutela provisória penal, que tutela o direito a liberdade, enquanto há sensível preocupação com a tutela provisória cível, em relação ao direito à propriedade.

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A razoabilidade, na doutrina de Daniel Sarmento919, pode ser dividida em quatro dimensões920, das quais analisaremos apenas as que se referem à razoabilidade como coerência e como congruência por melhor se adequarem aos institutos apresentados.

No campo da razoabilidade como coerência não há demonstrativo de que a decisão tomada pelo STF seja razoável. Levando em consideração que o mesmo Tribunal, em decisão recente, decidiu pelo estado de coisas inconstitucional921 que permeia os presídios do nosso país, é incoerente decidir pela permissão da prisão provisória a partir da segunda instância. Isso porque, a partir dessa decisão assume-se um risco de agravamento no estado de precariedade dos presídios, bem como contribui para a submissão de outras pessoas a um estado que atenta contra a dignidade da pessoa humana, mesmo que a posteriori fique consignado a sua inocência.

Já sob o prisma da congruência a decisão é igualmente criticável. Não há amparo na realidade razoável para a aplicação da mesma. Como mencionado, assume-se o risco de crescente número de encarcerados, no entanto, os presídios se encontram, quase sempre, superlotados. Para que houvesse a necessária congruência da medida imprescindível seria a mudança do suporte empírico, o qual exigiria uma atuação dos demais agentes estatais.

Ainda que tenham sido dispendidas críticas à decisão, deve-se reconhecer que o próprio sistema jurídico penal padece de irrazoabilidade interna. O instituto da prescrição da pretensão punitiva estatal foi desenvolvido com a finalidade de garantir segurança aos cidadãos frente à inatividade estatal na persecução criminal da qual tem monopólio. No entanto, o Código Penal afirma que o prazo prescricional começa a correr a partir do trânsito em julgado para a acusação, isto é, a partir do momento em que a acusação não interpuser mais recursos. Note-se que se a decisão é favorável à acusação, não há para ela interesse em recorrer, porém isso não implica que o Estado esteja inativo na sua função de persecutor criminal quando o mesmo responde tempestivamente aos recursos propostos pelo réu. Nesse ponto encontramos a falta de coerência interna ao instituto da prescrição, tornando-o irrazoável.

Sem embargo, a falta de razoabilidade no sistema legal, ainda que demande posição ativa, não é permissiva de decisões igualmente desarrazoadas. Existem meios menos gravosos e mais razoáveis para que sejam solucionados os problemas apontados pelos ministros, conforme foi delineado no presente estudo.

ConclusãoAos poucos se delineou o entendimento, linhas atrás exposto, de que não

devemos ouvir o canto das sereias no caso em tela, porquanto seu ressoar nos ouvidos

919 Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Op Cit, pág. 492920 Como exigência de razões públicas, como coerência, como congruência e como equidade921 . Decisão exarada no bojo da ADPF 347.

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do Judiciário somente é cabível em hipóteses bem restritas, como em caso de estar o magistrado na presença de interpretações constitucionais semelhantemente idôneas e no caso de aperfeiçoamento argumentativo.

Além disso, logramos demonstrar que ser considerado culpado implica, na melhor das interpretações, em impedimento a execução da pena, entendimento consagrado no atual CPP, artigo 283. Também mostramos que há valor na exigência do trânsito em julgado e que deve haver uma prevalência da busca por efetividade nas formas concretas. Ainda argumentamos que, apesar de estar ligado o estado de coisas atual à mudança de entendimento encabeçada por Eros Grau, sua causalidade direta se deu com a inobservância dos efeitos sistêmicos gerados na decisão, efeitos esses também desprezados pela atual mudança jurisprudencial.

Concluímos que a análise das perspectivas realista e consequencialista impõe a ponderação de interesses conflitantes, de modo que apenas redimensionar a presunção de não culpabilidade encontra óbices evidentes. E, por fim, através do estabelecimento de uma premissa sistêmica, procurou-se vencer uma proposição ligada a ampla defesa, quando então, logramos deslindar uma série de limites a serem estudados, in concretu, para que fosse possível ampliar a efetividade da tutela penal e, talvez, até legitimar uma excepcional execução provisória da pena.

Reitera-se, por fim, que esperamos inspirar outros juristas, a partir da leitura do trabalho, a desenvolverem soluções mais sensíveis à realidade subjacente, como também desenvolver as premissas limítrofes levantadas no próprio artigo.

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