nobreza da repÚblica joÃo fragoso

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  • 8/3/2019 NOBREZA DA REPBLICA JOO FRAGOSO

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    A nobreza da Repblica: notas sobre a

    formao da primeira elite senhorial doRio de Janeiro (sculos XVI e XVII)1

    Joo Fragoso

    Ainstalao da economia deplantationsno recncavo do Rio de Janei-

    ro ocorreu sob os auspcios dos bons ventos do mercado internacio-nal.2 Tomando por base o ano de 1550, verifica-se que o preo do acar

    mais que duplica at o final do sculo.3 Segundo Ferlini, tal tendncia altista,

    com algumas baixas eventuais, se manteria ainda na dcada de 1630.4 Tal-

    vez seja esta seqncia de boas conjunturas que explique o rpido cresci-

    mento do nmero de engenhos no Brasil da poca, e em particular no Rio.

    Em 1583, o Rio de Janeiro contava com somente trs engenhos; em 1612

    este nmero passaria para 14 e dezessete anos depois, para 60 (ver quadro1). Caso consideremos que em 1680 existiam cerca de 130 fbricas de a-

    car,5 pode-se afirmar que entre 1612 e 1629, portanto em apenas 17 anos,

    foram constitudos 35% de todos engenhos existentes no recncavo em

    finais do sculo XVII. Nmero que, se confirmado, apontaria para as pri-

    meiras dcadas do Seiscentos como decisivas para a montagem da econo-

    mia escravista e exportadora do Rio de Janeiro.

    Quadro 1:Nmero de engenhos em Pernambuco, Bahia e Rio de

    Janeiro, (1583-1629)

    CAPITANIAS 1583 (1) 1612 (2) 1/2 %* 1629 (3) 2/3 %*

    Pernambuco 66 90 1.0 150 3.1

    Bahia 36 50 1.1 80 2.8

    Rio de Janeiro 3 14 5.8 60 7.9

    Fonte: SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos, So Paulo: Cia. das Letras/CNPq,1988. p.148.obs.: * taxa de crescimento anual

    Topoi, Rio de Janeiro, n 1, pp. 45-122.

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    Este resultado pode ser confirmado por um outro conjunto de fon-

    tes: principalmente as genealogias de Rheingantz

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    baseadas em registrosparoquiais de batismos, casamentos e bitos; escrituras pblicas, e cartas

    de sesmarias (ver anexo 1). Atravs do cruzamento destas fontes, possvel

    identificar a existncia de 197 famlias/genealogias que, em algum momento

    do sculo XVII, possuram um ou mais engenhos de acar, das quais 61%

    tiveram o seu ponto de partida antes de 1620. Antes de continuar, entre-

    tanto, permitam-me fazer uma pequena nota para explicar como foi cons-

    truda a noo de famlia senhorial.

    Rheingnatz organiza as suas genealogias do sculo XVII a partir dosprimeiros casais de povoadores que se tem notcia no Rio de Janeiro. Quan-

    do um dos membros destas genealogias por descendncia masculina

    foi dono de engenhos, considerei como uma famlia senhorial. Temos nes-

    ta situao 197 genealogias/famlias senhoriais. H, entretanto, casos em

    que a esposa do casal fundador de uma genealogia , na verdade, filha ou

    neta de uma outra famlia senhorial. Neste caso, e quando o marido no

    possui ascendentes na Conquista, considerei que tal famlia descende de

    uma famlia senhorial extensa. Portanto, uma famlia senhorial extensa

    conteria, em si, mais de uma famlia senhorial. Trocando em midos, em

    finais do sculo XVI, chegou ao Rio o casal Miguel Gomes Bravo e Isabel

    Pedrosa. Vrias dcadas depois, em uma escritura de dote, temos a grata

    notcia que Miguel, em algum momento de sua vida, teria sido um feliz

    proprietrio de engenho de acar (Ver anexo 1). Esta informao, por

    conseguinte, transforma tal famlia em senhorial, j na sua primeira gera-

    o. Por seu turno, entre os seus seis filhos, um seria dono de moendas euma de suas filhas teria se casado com Joo do Couto Carnide; um estran-

    geiro no Rio que, em 1632, aparece com uma outra fbrica de acar. Com

    isto, portanto, segundo os meus critrios, a famlia Gomes Bravo passaria

    a ser do tipo extensa; nela teramos duas famlias com moendas. Passadas

    mais algumas dcadas, duas das netas de Isabel voltariam a ter npcias com

    pessoas sem parentesco ascendente no Rio (Pantaleo Duarte Velho e

    Manuel de Gouveia), mas que, igualmente, adquirem engenhos. Assim

    sendo, ao longo de trs geraes, nota-se que a famlia extensa iniciada por

    Miguel e Isabel rene quatro famlias senhoriais: alm dos Gomes Bravo,

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    os Couto Carnides, os Duarte Velho e os Gouveia. As trs ltimas estavam

    ligadas entre si pela linha feminina e atravs desta descendiam da primeira.Por ltimo, utilizei a expresso famlia extensa senhorial sem nenhu-

    ma conotao antropolgica, digamos, mais sofisticada. Ela no diz res-

    peito co-residncia de vrias geraes de parentes em um mesmo domi-

    clio, s estratgias de casamentos endgenos entre consangneos ou s

    relaes de solidariedade familiares.7 Na verdade, com esta noo procurei

    principalmente identificar a continuidade temporal, via descendncia, entre

    diferentes domiclios e, com isto, perceber um dos mecanismos de forma-

    o das fortunas senhoriais. Na verdade, a noo de famlia extensa parans profundamente pragmtica, j que ela d conta de uma situao onde

    mais de 1/3 das famlias senhoriais saram de outras com o mesmo status.

    Dito isto, podemos voltar ao nosso ponto de partida.

    Como se observa no quadro 2, ao longo do sculo XVII, trabalhei com

    um total de 197 famlias senhoriais. Destas, 32 so extensas e 73 so fam-

    lias vinculadas, por linha feminina, com as primeiras. As demais 92, a par-

    tir daqui denominadas de famlias senhoriais simples, no possuem vncu-

    los de parentesco, seja do lado masculino ou feminino, com nenhum casal

    ascendente conhecido na Conquista e, da mesma maneira, tambm no

    deram origem, atravs do casamento de suas filhas ou netas com estrangei-

    ros, a outras famlias senhoriais. Conseqentemente, tendo em conta suas

    origens, ao invs de 197 famlias, na verdade, temos apenas 124 famlias.

    Passando para o quadro 3, nota-se que destas 124, 52 famlias senho-

    riais (simples e extensas) ou 58%, foram formadas at 1620. Entretanto,

    este resultado se altera completamente quando consideramos que entreaquelas 52 famlias, 27 eram extensas que, por seu turno, ao longo do Seis-

    centos, dariam origem a outras 68 famlias senhoriais. E, assim sendo, fa-

    zendo uma simples conta de somar, temos que, antes de 1621, as bases de

    120 famlias senhoriais (ou 61% de todas as 197 famlias) j estariam pre-

    sentes no recncavo do Rio de Janeiro.

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    Quadro 2:

    Tipos de famlias senhoriaisTIPOS NMEROS %

    (1) Famlias extensas 32 16.2

    (2) Famlias derivadas 73 37.0

    por linha feminina das extensas

    Famlias simples 92 46.7

    (1) + (2) 105 53.2

    Totais 197 100.0

    Fontes: Anexo 1.

    Quadro 3:Nmero de famlias senhoriais ligadas s famliasextensas: 1566-1700.

    Perodos fam. fam. (1)+(2) % fam. (1)+(2)+(3) %sim. (1) ext. (2) der. (3)

    1566-1600 12 14 26 21.0 44 70 35.51566-1620 25 27 52 42.0 68 120 61.01621-1700 67 5 72 58.0 5 77 39.0

    1566-1700 92 32 124 100.0 73 197 100

    Obs.: fam. sim. = famlia senhorial simples; fam. ext. = famlia senhorial extensa; fam.

    der. = famlias senhoriais derivadas por linha feminina das extensas.Fonte: Anexo1.

    Portanto, atravs dos quadros 1 e 3, infere-se que quilo que podera-

    mos chamar de acumulao primitiva, origem da economia deplantation

    do Rio de Janeiro e da sua elite senhorial, ocorreu entre 1566 e 1620. Numa

    poca, portanto, em que dificilmente tal regio poderia ser caracterizada

    como uma rea aucareira, ou mesmo baseada na escravido de africanos.Para tanto, basta recordar que, ainda em 1612, o recncavo possua somente

    12 engenhos de acar. Diante de tais nmeros, caberia perguntar em que

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    cenrio econmico ocorre tal acumulao, ou mais precisamente: quem

    pagou as suas contas?J vimos que os ventos que sopravam no mercado internacional parao acar eram bons. Contudo, s isto no bastava. Para se aproveitar as boasoportunidades, como se sabe, necessrio ter recursos e crdito. Neste sen-tido, as notcias que vinham de Lisboa e de seu imprio ultramarino noeram as melhores.

    As conjunturas do Imprio e do Atlntico

    O incio da montagem da sociedade colonial no Rio de Janeiro, deu-se em um ambiente caracterizado por Vitorino Magalhes Godinho comode viragem estrutural do imprio ultramarino portugus. A partir de mea-dos do sculo XVI, o imprio luso passaria, com intensidade cada vez maior,a ser atacado nas suas diversas fronteiras: do Marrocos, passando por Ormuz,at a Insulndia.8 De resto, em finais do sculo XVI, para o Estado da n-dia, o futuro tambm no parecia nada promissor. Alm da queda das re-

    ceitas da rota do Cabo, da expanso dos Otomanos, dos mongis e dosSafvidas do Ir, aps a Unio Ibrica, teramos o crescimento da presenados holandeses na sia portuguesa.9

    Diante de tal quadro, j em 1548, a Coroa decidiria fechar a sua feitoriaem Anturpia, marcando com isto o recuo do Estado na economia e oavano de poderosos banqueiros-mercadores transnacionais, aliados no-breza portuguesa.10

    Os efeitos desta viragem sobre a sociedade portuguesa so facilmenteentendidos quando lembramos que, desde o ltimo quartel do sculo XV,o Estado tinha as suas bases no trfico ultramarino. Em 1506, cerca de 65%de suas receitas eram originrias destes tratos. Na verdade, toda a socieda-de do Antigo Regime portugus dependia, direta ou indiretamente, doimprio comercial; cabe ainda recordar que a Coroa, atravs de diversasrubricas, passava para as principais casas senhoriais parte do rendimentosultramarinos.11 Neste sentido, no de se estranhar certa coincidncia entre

    as desventuras do ultramar e de sua metrpole. Entre 1557 e 1607, a dvi-da interna do Estado cresceria em 250%.12 Ao longo do sculo XVI, o preo

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    do trigo vendido em Lisboa aumentaria em mais de 800%, o que iria se

    traduzir em fomes freqentes.

    13

    Coroando estes cenrios de penrias, des-de as ltimas dcadas do quinhentos, Portugal seria visitado por crises demortalidade recorrentes.14

    Contrabalanando tais azares, como j insinuei, temos os bons ventosdo Atlntico Sul. Alm da alta do acar, a populao da Amrica lusa pas-saria de 6.500 pessoas em 1546-48 para 150.000 habitantes no final dosculo.15 Apesar do predomnio do gentio da terra nas plantaes de Per-nambuco e da Bahia,16 desde as ltimas dcadas do quinhentos o trfico

    atlntico de escravos j est em franco funcionamento. S no porto de Luan-da, estima-se que as exportaes de cativos tenham passado de uma mdiaanual de 2.600 pessoas em 1575-1587, para 5.032 entre 1587 e 1591.17

    A partir destas ltimas informaes no de se estranhar, em meio aoreinado de D. Sebastio, a existncia de discusses sobre em quais alicerceso imprio ultramarino deveria se basear prioritariamente: se na ndia ouno Atlntico (Brasil e frica). Nas Cortes de 1562-63 j se considerava:mais justa, e mais conveniente, a conquista de frica, que a da ndia; e a

    razo era, porque esta estava muito longe, e no rendia coisa, que com elase no tornasse a gastar, e aquela estava perto. Neste contexto, percebe-seuma atlantizao cada vez maior da poltica ultramarina, e sob as ordensdo Desejado, seriam tomadas medidas para aprofundar a presena lusa em

    Angola e na Amrica portuguesa.18

    Entretanto, apesar de tais projetos de atlantizao do imprio e dadecadncia da sia portuguesa, esta ltima, mesmo em 1619, correspon-dia a mais de 40% das receitas da coroa portuguesa e o Atlntico apenas11%.19 Portanto, o Brasil ainda no cumpria o seu papel de base no ultra-mar, como o far no sculo XVIII.

    Em suma, mesmo considerando que aquela viragem estrutural signi-ficou tambm o boom do acar brasileiro, percebe-se que as trs primeirasdcadas coloniais do Rio de Janeiro foram marcadas por um imprio e umametrpole s voltas com problemas militares e financeiros. Seria nesteambiente nada auspicioso que se daria a acumulao primitiva da econo-

    mia daplantation e o ponto de partida de 60% da elite senhorial do Rio deJaneiro seiscentista (ver quadro 3). Ambiente que fica ainda mais angus-tiante quando passamos para as origens dos conquistares, cujos descendentes

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    se transformaram nas melhores famlias da terra, ou seja, se converteram em

    senhores de engenhos.Alguns destes conquistadores vieram do norte de Portugal e das Ilhasdo Atlntico, como Jordo Homem da Costa e Belchior Pontes. Outros,como Antnio de Mariz e Antnio Sampaio, antes de chegarem ao Rio,passaram primeiro por So Vicente. No sculo XVI, as presses demogr-ficas, as dificuldades de acesso terra e, conseqentemente, a recorrnciadas crise de subsistncia, transformaram a regio de Entre Douro e Minhonuma rea assolada pela pobreza e, por conseguinte, caracterizada pela

    continua fuga de gentes. Fugas, primeiro, em direo das ilhas do Atln-tico, e, logo em seguida, para outras partes do imprio, em especial, o Bra-sil.20 Em finais do quinhentos, Madeira e os Aores tambm j no eram asilhas mais prsperas do alm-mar. Para Vieira, a primeira ilha, desde a se-gunda dcada do sculo XVI, vinha perdendo gentes em funo do defi-nhamento da produo local de cana-de-acar, e a segunda, desde mea-dos do mesmo sculo estava s voltas com a falta de cereais (menos intensona ilha de So Miguel), ou seja, ambas exportavam seus habitantes em

    razo dos seus processos de penria.21 Quanto a So Vicente, sabe-se que acapitania, em finais do quinhentos, no era o melhor exemplo de riquezae prosperidade, ou ainda no tinha se transformado no celeiro do Brasil,cultivado por vastos plantis de gentios da terra.22

    No que diz respeito origem social dos conquistadores do Rio deJaneiro, antes de mais nada, bom lembrar alguns fenmenos. Entre eleso fato de que, a princpio, a grande aristocracia titulada considerava que assuas obrigaes militares paravam no Marrocos. Ao sul do Marrocos, osprincipais agentes da coroa eram da pequena nobreza. No Oriente, os fi-dalgos velhos e ricos se recusavam inicialmente a ir porque a ndia foradescoberta para comrcio e trato. Este quadro s comearia a se alterar,principalmente em relao aos filhos segundos desta aristocracia (aquelesque, conforme o sistema de herana, seriam preteridos dos bens e direitosda casa) com a militarizao crescente do Estado da ndia, como forma deassegurar o comrcio asitico.23 Deste modo, pouco provvel que os Gran-

    des de Portugal tenham, antes de 1620, conhecido a baa de Guanabara. mais provvel que os fidalgos conquistadores tivessem o perfil de Joo Pe-reira de Souza Botafogo ou do madeirense Diogo Lobo Teles. Joo era ori-

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    ginrio de uma casa nobre de Elvas (sul de Portugal), cujos bens e direitos

    foram confiscados por ordem rgia. Em desgraa, Joo migrara da me-trpole, beneficiado por uma determinao da rainha Catarina que dei-xava passar em paz aos criminosos que vinham conquista dos ndios br-baros do Brasil.24 J Diogo era neto, por parte de me, de Vasco MartinsMoniz, que se transformara em fidalgo da casa do rei, em funo de suaparticipao nas campanhas da frica.25 Neste sentido, o av de Diogo setornara cavaleiro numa poca em que a concesso deste ttulo proliferavae, portanto, aos olhos da melhor aristocracia do reino, se aviltava.26

    Curiosamente, somente So Vicente talvez tenha fornecido ao Rio umgrupo de conquistadores cuja origem social era de uma elite social. Dasprimeiras 52 famlias originais do Rio de Janeiro (ver quadro 3), pelo me-nos oito vieram do planalto paulista. Entre elas temos genros e filhos decapites-gerais daquela capitania, como Manuel Veloso Espinha, genro docapito Braz Cubas, tendo tambm por titulares sertanistas como RoqueBarreto e Andr de Leo. Oriundos, portanto, de algumas das melhoresfamlias vicentinas da poca, todos tambm estavam ligados procura de

    metais e ao comrcio de gentios da terra.27 Este fenmeno insinua a possi-bilidade do negcio vicentino de apresamento de ndios ter contribudopara o acmulo de recursos para a primeira elite senhorial do Rio e, ainda,ter abastecido de escravos da terra os primeiros engenhos do Rio de Ja-neiro. Aquelas oito famlias, ao longo do Seiscentos, se transformariam em48 famlias senhoriais, ou seja, cerca de 25 % do total conhecido para osculo. Cabe ainda destacar que tais ligaes ultrapassariam o ano de 1620.Mesmo depois desta data , ainda, possvel verificar casamentos entre fi-

    lhos de ministros vicentinos com membros das famlias senhoriais do Rio.Por conseguinte, seriam estes homens que fogem da pobreza, proce-

    dentes da pequena fidalguia ou egressos da elite de uma capitania pobreque dariam origem s melhores famliasdo Rio de Janeiro. Neste sentido,persiste a pergunta inicial de como se pagou a conta da montagem da eco-nomia colonial do Rio de Janeiro.

    A primeira elite senhorial do Rio

    Segundo Celso Furtado, em texto publicado em 1959 e hoje um cls-sico da historiografia colonial brasileira, caberia aos holandeses o custeio

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    da empresa aucareira. Afirma o autor: Parte substancial dos capitais re-

    queridos pela empresa aucareira viera dos Pases Baixos. (...) Tudo indicaque capitais flamengos participaram no financiamento das instalaes pro-

    dutivas no Brasil bem como no da importao da mo-de-obra escrava.

    Cerca de trinta anos depois, Schwartz escreveria que, para a Bahia de 1580,

    cerca de 1/3 dos engenhos eram de propriedade de antigos comerciantes.

    No tenho condies e, nesse momento, nem interesse em verificar tais

    hipteses para o Nordeste aucareiro. Contudo, em ambos os casos, algo

    me chama a ateno: para os dois autores, o financiamento da montagem

    das primeirasplantationsseria originrio de uma acumulao mercantil,ou seja, do comrcio.28

    Esta hiptese parece ser tentadora para o Rio de Janeiro, j que, na

    virada do sculo XVI para o XVII, esta cidade , em geral, conhecida pela

    historiografia como uma rea de ligao comercial para a Bacia do Prata.

    O Rio de Janeiro, nas primeiras dcadas do sculo XVII, surgiria como uma

    regio produtora de aguardente e farinha de mandioca, produtos que ser-

    viriam de escambo para a aquisio dos cativos africanos, parte dos quais

    enviados para o Prata.29

    Entretanto, antes de comentar a hiptese de que os recursos para a

    montagem dos engenhos do Rio sairiam do comrcio, permitam-me fazer

    um pequeno parnteses para discutir um outro tema: o Rio de Janeiro como

    regio de engenhos de aguardente.30 Parece-me, a princpio, um pouco exa-

    gerada tal caraterizao. Apesar de, ainda em 1695, numa carta do senado

    do Rio, afirmar-se que o nico produto que contavam [os do Rio de Janei-

    ro]para a compra de escravos em Angola era a aguardente da terra, cachaa,31h vrias outras notcias indicando que, junto cachaa, o acar era o prin-

    cipal gnero da regio. Para tanto, basta lembrar, como ainda veremos, as

    vrias e acirradas discusses entre senhores locais e comerciantes, sobre o

    preo do produto-rei, ou as lutas dentro da elite local pelo controle da

    balana que pesa as caixas de asucar que se embarcam daqui para Portugall.Numa carta coeva pode-se ler que uma das razes para a baixa dos dzimos

    reais em 1657, era a queda do preo do acar que fruto da terra dondese tira o lucro que os que lanam no dito contrato [dzimos] pretendem;32 re-sumindo, o principal lucro dos arrematadores dos dzimos vinha do a-

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    car. De qualquer forma, aguardente ou acar, o fato que, ao longo do

    sculo, temos senhores de engenho como Salvador Correia de S eBenevides que, em 1642, segundo os seus inimigos, teria mais de 700 ne-gros da Guin em suas propriedades;33 D. Feliciana de Pina que contariacom 91 cativos em 1656; Pedro de Souza Pereira, com 70 escravos em 1673;ou Joo Dique, com 90 cativos em 1712. Estes nmeros insinuam que, aolongo do sculo XVII, teramos uma elite frente de uma economia deplantation.34

    Voltando hiptese de que o comrcio Rio do Prata-Rio de Janeiro-

    Angola seria o ponto de partida da empresa aucareira do Rio de Janeiro,esta idia poderia ser confirmada pela freqncia de contratos e procura-es existentes no livro do primeiro oficio de notas para 1612-13, feito paranegcios no Rio da Prata. Entretanto, apesar de tentadora deve-se ter al-guns cuidados com tal idia. Antes de mais nada, no se pode perder devista o carter incipiente do ncleo urbano e do grupo mercantil do Rioseiscentista, pelo menos em relao ao que a cidade ser em princpios dosculo XIX. Faamos algumas comparaes. Nos perodos 1610-13 e 1630-

    36, no primeiro ofcio de notas da cidade, foram negociadas cerca de 75escrituras de compra e venda, cujo valor total chegou at ns. Nestas, pou-co mais de 70% dos valores transacionados, estavam ligados a negcios rurais(engenhos, terras, partidos de cana, entre outros). Este nmero indicaria apequena expresso das operaes urbanas e, mais precisamente, daquelasligadas ao capital mercantil (navios, lojas, estoques de mercadorias e ou-tros). Sculos mais tarde, quando o Rio j se apresentava como a principalpraa mercantil do Atlntico Sul, possuindo uma forte comunidade denegociantes de grosso trato, tal nmero ser bem diferente. Em dez anos,entre 1800 e 1816, nos quatro cartrios da praa, foram negociadas 3.562escrituras. Nestas, os negcios mercantis representaram 37,8% de seus va-lores, as operaes com prdios urbanos 29% e os negcios rurais apenas21%. Parece-me, pois, desnecessrio insistir muito sobre o significado destacomparao: tais nmeros falam por si mesmos.35

    Apesar do Rio, em princpios do sculo XVII, no poder ser caracte-

    rizado como um exemplo de uma tpica cidade mercantil, no h por quedeixar de lado as possibilidades do comrcio. Afinal, como demonstra umatese de doutoramento recente, no Portugal dos sculos XVI e XVII, o exerc-

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    cio da mercancia no era o monoplio de um nico grupo, no caso osmercadores. Ao lado destes, a nobreza, os militares, os oficiais do rei e o pr-

    prio clero, para no falar dos marinheiros e capites dos navios, exercem amercancia.36 No h razo para que isto tenha sido diferente em um im-prio ultramarino que, por excelncia, era mercantil. Como diria um mem-bro do Conselho Ultramarino, em 1668, quem vai para as Conquistas vaipara negociar.

    Ao passar para o quadro 4, percebe-se que, alm de comerciantes, la-vradores, pecuaristas e outros, a primeira elite senhorial do Rio descendia

    de pessoas ligadas a outras esferas da vida pblica, no caso administraoda prpria vida pblica. Pelo quadro 4 v-se que 40 famlias, 1/3 de todasas que, ao longo do sculo XVII, se converteram em donas de engenhos deacar, tiveram por origem ministros ou oficiais do rei. Eram provedoresda fazenda, escrives da alfndega, capites-de-infantaria ou governadores.Se eles eram tambm comerciantes ou no, no momento, uma informa-o que me foge. O certo que eles eram pessoas a servio de sua Majesta-de, e como tal, tinham por funo administrar a coisa pblica nos trpi-

    cos. Mas vejamos um pouco mais o significado destes nmeros.

    Quadro 4:Perodos de instalao no Rio de Janeiro de famliassenhoriais formadas a partir de Ministros eOficiais371566-1700.

    Cargos e nmero de famlias senhoriais

    PERODOS A B C D E F A -F % TOT. G TOT.

    1566-1600 1 7 5 5 1 19 70.8 7 26

    1566-1620 2 8 5 8 2 25 48.1 27 52

    1621-1700 1 3 1 6 4 15 26.3 57 72

    1566-1700 2 9 8 9 8 4 40 32.3 84 124

    Legenda:

    a- Governador.b- Provedor da Fazenda Real, Ouvidor, Provedor dos Defuntos e Ausentes e Juiz derfos.c- Capito-Mor, Sargento-Mor e Alcaide.

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    d- Capito de Infantaria.e- Escrivo da Ouvidoria, Escrivo da Provedoria e Almoxarifes.

    f- Tabelio.g- Sem ascendncia de Ministros e Oficiais.tot.= totalFonte: Anexo 1.

    No quadro 4, preocupado com a origem ou ponto de partida das fam-lias senhoriais, utilizei o mesmo procedimento visto no quadro 3. Isto , asfamlias senhoriais extensas, as que tm a capacidade de gerar no tempo outras

    com o mesmo estatuto, foram tratadas da mesma maneira que aquelas queno possuram esta capacidade. Assim sendo, as famlias extensas (mesmocontendo em si outras famlias com engenhos) tiveram o mesmo peso nu-mrico que as simples. Dito isto, temos que aquele total de 124 famliassenhoriais, em realidade, corresponde a 197 e as 40 derivadas de funcion-rios a 89. Explicando melhor: das 40 famlias descendentes de funcionrios24 so senhoriais simples e 16 extensas que contm, em si, outras 49 fa-mlias com moendas fazendo uma simples conta de soma (24+16+49)

    temos 89 famlias cuja origem fora um ministro ou um oficial da coroa.Tendo em conta tais informaes, passemos para o quadro 5. Nele se

    verifica, antes de mais nada, que 45% de todas as 197 famlias senhoriaisseiscentistas tm como ponto de partida homens de sua Majestade. Almdisso, possvel observar que mais da metade dos senhores de engenho doSeiscentos eram empregados da coroa, ou deles descendiam, ou ainda es-tavam casados com descendentes de ministros do Reino. Isto significa afir-mar que este tipo de famlia a que tem a maior capacidade de reproduzirdonos de moendas na Colnia.

    Quadro 5:Famlias senhoriais e senhores de engenho

    FAM. SR. N DEFAMLIAS % DE (A) N DE % DE (A)SENHORIAIS SENHORES

    Ministros 89 45.2 155 52.5

    Outras 108 58.2 140 47.5Totais (a) 197 100 295 100

    Fonte: Anexo 1.

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    A N O B R E Z A D A RE P B L I C A 5 7

    Passando para o quadro 6, constata-se tambm que este mesmo tipo

    de famlia mais estvel no tempo. Para isto, considerei o nmero de gera-es com senhores de engenho que uma famlia capaz de ter, a partir de

    seu casal fundador. Entre 1565 e 1600, desembarcam no Rio 26 futuras

    famlias senhoriais. Destas, mais da metade s teria uma ou duas geraes

    de donos de moendas at 1700 e menos de 1/4 com quatro geraes. Para

    aquelas que no descendem de ministros, os resultados so mais precrios.

    De um total de sete famlias, quatro s conseguem conviver com engenhos

    em uma gerao, e apenas uma famlia chega marca de trs vidas. Algo bem

    diferente ocorre quando passamos para os descendentes dos filhos dos ho-mens do rei. Para estes, de uma amostragem de 19 casos, mais da metade

    consegue ultrapassar a marca de 3 geraes. Na verdade, durante o perodo

    considerado, estas ltimas famlias so as nicas com quatro geraes de

    senhores. Considerando que encontramos resultados semelhantes para todo

    o sculo XVII, pode-se afirmar que as famlias que descendem dos ministros e

    oficiais constituem o esteio da elite senhorial do Rio de Janeiro, ou seja, elas

    materializam a continuidade temporal do grupo de senhores de engenho.

    Quadro 6:Nmero de geraes de senhores de engenho nas famliascom ministros

    # D e g e r a e s4 % (a) 3 % (a) 2 % (a) 1 % (a) % (a)

    Ministros 6 31.6 4 21.0 4 21.0 5 26.3 19 99.9Outros 0 1 14.3 2 28.6 4 57.1 7 100.0

    1566-1600 (a) 6 23.1 5 19.2 6 23.1 9 34.6 26 100.0

    Ministros 6 15.0 6 15.0 8 20.0 20 50.0 40 100.0

    Outros 0 0 4 4.8 22 26.2 58 69.0 84 100.0

    1566-1700 (a) 6 4.8 10 8.1 30 24.2 78 62.9 124 100.0

    Fonte: Anexo 1.

    Observa-se no quadro 7 que metade das 32 famlias extensas existen-

    tes no Rio so oriundas de funcionrios do rei. Sendo que estas ltimas

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    teriam a capacidade de produzir outras 49 unidades senhoriais, o que sig-

    nifica 2/3 do total das 73 famlias criadas nestas condies.

    Quadro 7:Nmero de famlias senhoriais criadas a partir defamlias extensas com fundador ministro ou oficial dorei; (1566-1700)

    FAM. EXTENSAS % DE (A) FAM. SR. % DE (A)

    Ministros 16 50.0 49 67.1Outros 16 50.0 24 32.9

    Totais (a) 32 100.0 73 100.0

    Fonte: Anexo 1.

    Esta ltima informao ganha especial relevo quando recordamos

    (quadro 2) que, das 197 famlias senhoriais conhecidas no Seiscentos, 73ou 37% derivavam por linha feminina de outras 32 famlias. Assim, temos

    um conjunto de 105 famlias senhoriais (32+73), onde cada uma estava

    ligada por relaes de parentesco com, pelo menos, outra famlia. Este l-

    timo nmero, por representar mais da metade das 197 famlias conheci-

    das, enfatiza as relaes de parentesco existentes no interior da elite e, alm

    disso, evidencia que uma das vias de acesso a este grupo era atravs do ca-

    samento, com moas de famlias senhoriais j estabelecidas. O casamento

    para o noivo-estrangeiro representava no s a possibilidade de ter acesso a

    um dote, mas tambm a todo um sistema de alianas e solidariedades pre-

    sente na elite colonial.

    Sendo isto verdade, pelo quadro 7, parece que as meninas das fam-

    lias descendentes de ministros eram as que tinham maior sucesso entre os

    pretendentes a senhor no Rio de Janeiro. Afinal, daqueles 73 casos 49 fo-

    ram casamentos com noivas filhas ou netas de oficiais do rei. Por seu tur-

    no, interpretando este mesmo nmero do lado dos pais e/ou avs das refe-ridas noivas, infere-se que os ministros e descendentes controlavam o acesso

    dos cadetes elite.

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    Em resumo, as famlias senhoriais derivadas de ministros e oficiais do

    rei so as que possuem, no correr do Seiscentos, o maior nmero de se-nhores de engenho, a maior estabilidade no tempo, a maior capacidade de

    gerar outras famlias senhoriais e, portanto, so as que tm maior capaci-

    dade de absoro de estrangeiros. Este conjunto de traos transforma, a meu

    ver, tais famlias no ncleo principal da primeira elite senhorial do Rio de

    Janeiro. Dito isto, recuperemos rapidamente o quadro 3. Nele se viu que

    entre 1566 e 1620 j estavam devidamente presentes no Rio de Janeiro,

    no recncavo, as bases de 120 ou 61%, das 197 famlias conhecidas no

    sculo XVII. Atravs do quadro 8, percebe-se que daquelas 120 famlias,73 tiveram por origens ministros do rei. A partir de tal constatao, pode-

    mos nos aproximar mais do cenrio da montagem da economia de

    plantationse de sua elite e comear a identificar melhor os mecanismos pelos

    quais tal sociedade fora articulada.

    Quadro 8:

    Famlias extensas de ministros e suas famlias

    senhoriais: 1566-1700

    fam. fam. fam. (1+2 % de (a) % de (b) outras Totais (b)

    sim (1) ext. (2) der (3) +3) fam.

    1566-1620 10 15 48 73 82.0 60.8 47 120

    1621-1670 14 1 1 16 18.0 20.8 61 77

    1566-1700(a) 24 16 49 89 100.0 45.2 108 197

    obs: ver quadro 3.

    Fonte: Anexo 1.

    Em outras palavras, se certo que a acumulao primitiva ou algo

    que o valha da economia colonial do Rio acontece no cenrio da virada

    do sculo XVI para o XVII, talvez tambm seja certo que a formao da

    primeira elite senhorial se identifique com a posse dos cargos da adminis-

    trao pblica a se incluem tambm os postos no senado da cmara nas mos de determinadas famlias. Na administrao da coisa pblica, ter-

    se-ia tambm administrado a construo da referida elite.

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    Vejamos como tudo comeou, e um pouco mais sobre as famlias que

    ocupariam os cargos de sua Majestade.Fundada pois a cidade [Rio de Janeiro em 1565] pelo governador Memde S em o dito outeiro, ordenou logo que houvesse nela oficiais e ministro damilcia, justia e fazenda.38 Como se percebe por esta passagem de FreiVicente do Salvador, uma das primeiras medidas tomadas por Mem de S,

    aps a efetiva conquista do Recncavo do Rio de Janeiro, foi a instalao

    de uma administrao civil e militar, de modo a viabilizar a ocupao e a

    colonizao da regio.

    Conforme o organograma administrativo-poltico da poca, a auto-ridade mxima militar e civil da capitania estava nas mos do Governador.

    Designado pelo rei, entre os seus atributos estava a possibilidade de distri-

    buir sesmarias e indicar pessoas para outros postos da administrao, em-

    bora a confirmao coubesse coroa. O poder do governador do Rio, em

    1608, seria ampliado atravs da criao da Repartio Sul. Por esta medi-

    da, o Rio adquiria maior autonomia frente ao Governo Geral e ainda rece-

    bia a jurisdio das capitanias de So Vicente e do Esprito Santo.39 Aps a

    retirada de Mem de S, o escolhido para tal cargo, em 1568, foi o seu so-

    brinho, Salvador Correia de S. A famlia Correia de S dispensa maiores

    comentrios; basta lembrar que ela ocuparia aquele cargo, com alguns in-

    tervalos, por 55 anos entre 1568 e 1700. Ao longo deste perodo, ela teria,

    entre efetivos e interinos, seis governadores40 e pelo menos 12 senhores de

    engenho, o que a transforma numa das poucas famlias com, pelo menos,

    um dono de moendas em todas as suas geraes seiscentistas.

    Abaixo do governador na hierarquia de mando da capitania, encon-tramos o ouvidor, o alcaide-mor e os provedores da fazenda real, postos

    que eram ocupados por nomeaes do rei. Cabia ao primeiro ministrar a

    justia. Com a criao da Repartio Sul, o ouvidor-geral do Rio passava

    a ser a instncia imediatamente superior aos demais ouvidores e dos juizes

    ordinrios das capitanias pertencentes a dita Repartio. Em 1568, este

    cargo seria dado em serventia por trs anos a Cristvo Monteiro, genro

    de Jorge Ferreira Bulhes, capito-mor vicentino. Terminada esta serventia,

    em 1572, o posto de ouvidor passaria, nos trs anos seguintes, para Fran-

    cisco Dias Pinto, antigo capito da capitania de Porto Seguro e, desde 1565,

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    proprietrio do ofcio de alcaide-mor do Rio de Janeiro e, como tal, encar-

    regado da defesa militar da cidade. Dos casamentos dos descendentes deJorge Ferreira e Francisco Dias sairia, no Rio, a famlia senhorial extensa

    Castilho Pinto.41

    Quanto ao posto de provedor da fazenda, ele era exercido em con-

    junto com o de juiz da alfndega. A pessoa que ocupasse esta posio teria

    a responsabilidade de resguardar os interesses da fazenda real e, em parti-

    cular, supervisionar a arrecadao dos dzimos reais e a alfndega.42 No ano

    de 1568, estas funes estavam sob a guarda de Antnio de Mariz Lourei-

    ro. Como os demais acima, em meio s lutas de conquista da Amrica lusa,Antnio fora armado cavaleiro fidalgo da Casa Real e, tambm como ou-

    tros fundadores de famlias senhoriais de sua gerao, ocuparia diversos

    postos na administrao colonial.43 Do casal formado por Antnio e sua

    esposa Isabel, at o final do sculo XVII, sairiam 10 famlias senhoriais e

    18 senhores de engenho.

    Subordinados a estes ministros temos, entre outros, diversos tipos de

    escrives e meirinhos; e, na rea militar, os capites-de-fortaleza, de infan-

    taria e os alferes.

    Havia, entretanto, alguns postos estratgicos que controlavam as cha-

    ves daquilo que poderamos chamar, mesmo caindo em anacronismo, de

    poupana social. Refiro-me ao conjunto de funes que davam acesso

    cobrana e guarda dos impostos e aos bens dos rfos da capitania. Neste

    caso, alm do provedor da fazenda, figuravam o escrivo da fazenda, o al-

    moxarife, o escrivo do almoxarife e alfndega e o juiz dos rfos. Entre os

    primeiros escrives da fazenda da capitania, em 1596, encontramos Baltazarda Costa, genro do capito dos descobrimentos, Joo Pereira de Souza

    Botafogo. Ao que parece, este ofcio logo se transformaria em propriedade

    desta famlia. Em 1655, o filho de Baltazar, Francisco da Costa Barros,

    afirmava que, desde 1630, exercia aquele ofcio.44 Da famlia extensa

    Botafogo sairiam outras trs famlias senhoriais. Quanto ao juizado de

    rfos, este posto, em 1584, era ocupado por Antnio de Mariz e, anos

    mais tarde voltaria a ser encabeado por seu filho Diogo de Mariz.45 De-

    pois de 1644, tal ofcio passaria como propriedade para a famlia Telles de

    Menezes. Cabia ao titular do juizado a responsabilidade de olhar pelos rfos

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    e, em especial, a arca dos rfos, o cofre onde era guardado todo o dinheiro, as

    dvidas ativas e os rendimentos das fazendas herdados dos pais falecidos.

    46

    Entre os capites-de-infantaria que chegaram ao recncavo do Rio de

    Janeiro com Mem de S, encontrava-se Antnio Sampaio.47 Ele, juntamente

    com sua esposa, Maria Coelha, dariam origem a quatro geraes de senho-

    res de engenho at finais do Seiscentos.

    Os exemplos acima ilustram o que j podia ser visto no quadro 4, ou

    seja, uma parte significativa da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro

    eram os conquistadores e, por conseguinte, pertenciam s expedies co-

    mandadas por Mem de S nas lutas contra os franceses e tamoios. Em umsegundo momento, estes mesmos homens seriam investidos na condio

    de primeira elite administrativa e militar da capitania. Isto , passariam a

    ocupar postos cuja funo era viabilizar a presena lusa no recncavo ou, o

    que o mesmo, montar a sociedade colonial na regio. Desde j, cabe lem-

    brar que tal metamorfose de conquistadores em administradores e na pri-

    meira elite colonial, em si, no muita novidade na histria da conquista

    ibrica do Novo Mundo. Em realidade, o mesmo fenmeno presenciado

    no Mxico de Cortez, e no Peru, com Pizarro.48

    No caso do Rio de Janeiro, esta metamorfose ainda mais reforada,

    quando se percebe que ela acompanhada de dois outros movimentos. O

    primeiro diz respeito s alianas polticas, via casamentos, que desde cedo

    vo existir entre estes conquistadores/ministros. Antnio de Mariz teve

    cinco filhos que chegaram idade de casamento: trs rapazes e duas mo-

    as. Todos se casaram, sendo que quatro dos rebentos com pessoas espe-

    ciais. O mais velho, por exemplo, o senhor de engenho e provedor da fa-zenda (em 1606) Diogo Mariz, contrai bodas com Paula de Rangel, filha

    de Julio Rangel, membro da expedio de Mem de S, antigo Ouvidor da

    Cidade e escrivo dos rfos. Alm disso, o irmo de Paula, desde 1620,

    era alferes da fortaleza de Santa Cruz e guarda dos navios.49 A famlia ex-

    tensa de Julio contou com quatro famlias senhoriais. Dois outros filhos

    de Antnio casaram-se com famlias que teriam ocupado a provedoria da

    fazenda real e uma de suas filhas com o ouvidor da cidade, Tom de

    Alvarenga, em 1603. Deste ltimo matrimnio, uma das netas de Ant-

    nio, Maria de Alvarenga, tempos depois tornar-se-ia esposa de Manuel

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    Correia, irmo do governador Salvador Correia de S. Manuel e Maria

    seriam os pais do futuro governador da cidade, Tom Correia de Alvarenga.Algo semelhante pode ser encontrado em outras famlias extensas.

    O segundo movimento acima referido diz respeito ao fato destes con-

    quistadores e seus filhos, entre o exerccio de um e outro posto na admi-

    nistrao imperial, tambm teream ocupado postos no senado da cmara.

    Isto , eles tambm estavam presentes em outro cenrio da administrao

    pblica do poder, o senado da cmara. Cabia ao senado garantir o bem estar

    da Repblica e isto, entre outras coisas, significava fiscalizar o abastecimento

    da cidade (preos e qualidade dos gneros), intervir na fixao dos preos,administrar impostos etc. Em suma, cabia a ele, em nome dos interesses

    da Repblica, intervir no mercado.

    Atravs do quadro 9, nota-se que entre 1565 e 1620, de um total de

    107 oficiais da cmara, 62, ou quase 60,0% eram antigos ministros da admi-

    nistrao imperial alguns inclusive acumulavam os dois cargos. Este foi

    o caso, por exemplo, de Crispim da Cunha Tenreiro, genro de Antnio de

    Mariz. Entre 1587 e 1588, ele ocupa simultaneamente os postos de oficial

    da cmara e de feitor almoxarife da fazenda real. Anos mais tarde, recebe-

    ria a serventia do posto de provedor da fazenda real e, j no sculo XVII,

    voltaria a ser eleito para o senado da cidade.50

    Quadro 9:

    Oficiais da cmara, ministros e membros de famlias

    senhoriais: 1565-1620.

    of. (a) min./of.(b) % de a of.- sr. % de a min/of/sr % de b

    1565-70 (5) 17 11 64.7 4 23.5 4 36.4

    1571-80 (6) 19 11 57.9 5 26.3 5 45.5

    1581-1600 (9) 50 30 60.0 24 48.0 18 60.0

    1601-1620 (4) 21 10 47.6 13 61.9 10 100.0

    1565-1620 (24) 107 62 57.9 46 43.0 37 60.0

    Fontes: Anexo 1; Belchior 1965, 511 e 512; AHU, av, cx. 1, doc. 8; IHGB, t. 88, v.142, p.396; IHGB, t. 93, v. 147, p. 261; IHGB, t. 95, v. 149, p. 347; RUDGE, R.As Sesmarias de Jacarepagu, So Paulo, Liv. Ed. Kosmos, 1983, pp. 79 e 101.

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    Obs.: 1)of. oficiais da cmara; min ministros; sr famlias senhoriais. 2) Ummesmo oficial pode aparecer em diversas legislaturas/anos. 3) Entre parnteses # de anos

    com informao.

    O quadro 9 ilustra a possibilidade de um conjunto de conquistadorescircularem entre as duas instncias mximas da governana do Rio de Ja-neiro: a administrao imperial e o senado da cmara. A primeira, nomea-da e/ou confirmada por Lisboa, e a segunda, eleita pelo povo (leia-se ho-

    mens bons) da Conquista. Mas, apesar destas diferenas, ambas com a res-

    ponsabilidade de gerir os negcios da Repblica. Curiosamente, entre aspessoas que circulavam de um posto para outro da administrao pblica,encontramos aquelas famlias que, ao longo do Seiscentos, se tornariamdonas de engenhos de acar.

    Dos 107 oficiais do senado que verifiquei para o perodo 1565 e 1620,46, ou 43%, deram origem a famlias senhoriais (ver quadro 9). Mais doque isto, entre estes mesmos 46 oficiais temos 37 que, no perodo conside-rado, exerceram postos na administrao imperial. Isto significa afirmar que,

    entre os 62 oficiais da cmara que foram ou ainda eram ministros do rei,mais da metade tambm seria fundadora de famlias senhoriais. Com isto,comea a se configurar um quadro em que o ncleo da primeira elite se-nhorial do Rio gerada por um conjunto de pessoas que so, simultanea-mente, conquistadores, homens do rei e representantes do povo. Este ocaso, por exemplo, de Antnio de Mariz e de Joo de Bastos. Ambos, em

    tempos diferentes da segunda metade do sculo XVI, ocuparam o posto

    de provedor da fazenda real, cargo que lhes dava ascendncia sobre osdzimos reais e a alfndega da cidade. Na mesma poca em que exerciamtais funes, eles eram eleitos pelos homens bons da cidade para o senado,o que os obrigava a opinar sobre os preos dos gneros de abastecimento eos fretes da cidade. No difcil perceber que tal situao lhes conferia umextraordinrio poder na montagem e funcionamento da economia colo-nial. Fato que mais reforado, ainda, quando nos lembramos da delicadateia de relaes de parentesco, via casamentos, que desde cedo eles come-

    ariam a tecer. Em suma, a combinao de todas estas circunstncias dariaqueles homens uma posio bastante confortvel no mando e, portanto,

    nos destinos da nova Colnia.

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    Entretanto, tenhamos certa cautela em tirar concluses apressadas.

    Voltando aos quadros 5 e 9, nota-se que, com o passar do tempo, a capaci-dade dos funcionrios de sua Majestade constiturem famlias originais e,portanto, sem ligaes de parentesco pretritas com antigos domicliossenhoriais, se reduziu razoavelmente. De um total de 40 famlias (extensase simples) geradas pelos homens do rei at 1700, somente 15 surgiram aps1621. desnecessrio dizer que depois de 1621 chegariam ao Rio novosministros, capites de infantaria etc. Contudo, estes no formariam linha-gens senhoriais com a mesma facilidade de antes. Ao mesmo tempo, ve-

    rifica-se nos mesmos quadros que este ltimo perodo fora a poca das fa-mlias senhoriais no oriundas de ministros. Entre 1621 e 1700, temos aformao de 72 famlias originais, das quais 57, ou 79%, no tiveram comoponto de partida um posto na administrao pblica. Por conseguinte, nesteltimo perodo, aparentemente, tais postos perderiam um pouco da suaimportncia na produo de novas e originais descendncias senhoriais,outros mecanismos de acumulao de riqueza, inclusive o comrcio, iriamadquirir mais fora.

    Desta constatao infere-se que um posto da administrao da coroa,em si mesmo, no tem o dom de criar domiclios senhoriais. No caso daelite seiscentista do Rio de Janeiro, alm dos cargos de sua Majestade, ou-tras circunstncias tambm agiriam em sua formao, como por exemploas prprias possibilidades abertas pela Conquista.51 Afinal, uma coisa serrepresentante da coroa numa poca em que a sociedade colonial est aindaengatinhando, onde a guerra uma constante e no existem ainda fortesgrupos sociais locais constitudos. Outra coisa ser funcionrio em circuns-tncias de uma sociedade j estabelecida e, portanto, com grupos sociais einteresses setoriais bem definidos.

    No caso do Rio de Janeiro, o que interessante sublinhar que os con-quistadores/funcionrios (suas famlias) conseguiram ultrapassar o perododa Conquista e se converteram no ncleo da elite senhorial do Seiscentos,como os quadros 6 a 8 demonstraram e como ainda veremos. Na verdade,no aps 1620, os descendentes daqueles funcionrios, atravs do domnio

    do senado, do sistema de mercs, de estratgia de parentesco e da formaode clientelas, se converteriam naquilo que chamo de nobreza da Repbli-ca e com isso dominariam os cenrios da sociedade colonial seiscentista.52

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    Neste sentido, foi emblemtica a trajetria de Igncio da Silveira Vil-

    lalobos. Bisneto de um dos primeiros povoadores (famlia extensa Pontes),se casaria em 1654 com Paula da Costa, filha de Francisco da Costa Bar-

    ros, bisneta do capito quinhentista Joo de Souza Pereira Botafogo e

    tetraneta de Antnio de Mariz. De seu sogro, Igncio herdaria a proprie-

    dade do ofcio de escrivo da fazenda real.53 Uma vez vivo, Igncio volta-

    ria a se casar, desta vez com Francisca de Arajo de Andrade, ex-mulher de

    Salvador Correia Vasques, irmo do governador Tom Correia de Alvarenga

    (1657-1659) e primo de Salvador Correia de S e Benevides. Atravs des-

    tes casamentos, percebe-se a formao de uma vasta e poderosa rede deparentesco formada por trs diferentes famlias descendentes de conquis-

    tadores. Ao longo de sua vida Igncio seria dono de um engenho de acar

    e ainda ocuparia, por diversas vezes, um assento no senado da cidade.

    Por seu turno, a rede de influncia de Igncio seria ainda mais alargada

    atravs do encontro com outros personagens seiscentistas: os Frazo de

    Souza. Pedro de Souza Pereira, desde pelo menos 1644, possua o cargo de

    provedor da fazenda real e de juiz da alfndega.54 Pedro, alm de senhor de

    engenho, desde 1648 estava casado com Ana Correia, bisneta de Antnio

    de Mariz e descendente de Salvador Correia de S. Assim sendo, Igncio e

    Pedro, atravs dos Correia e Mariz, participavam do mesmo crculo de

    conhecimentos, o que seria ainda mais reforado com o casamento dos

    seus sobrinhos, em 1688, Maria Barbosa e Joo do Zouro.

    Atravs desta engenharia de alianas e matrimnios teramos os se-

    guintes resultados prticos: o controle sobre aquilo que chamei de pou-

    pana colonial, por meio dos ofcios de provedor da fazenda real, de es-crivo da fazenda e mais o de juiz de orfos (propriedade de um dos tios de

    Igncio Diogo Lobo Teles); a proximidade com os governadores da ci-

    dade (os Correia); 34 senhores de engenho, no decorrer do sculo, soman-

    do os Pontes, Frazo de Souza e os Correia.

    Diante de tudo o que j foi dito, ainda permanece a pergunta: quem

    pagou a conta da instalao da plantation aucareira, que agora sabemos

    ter pertencido, em grande parte, aos homens do rei? Para responder a esta

    pergunta, comecemos por onde tudo comeou.

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    A conquista, as mercs e a formao de um mercado

    imperfeitoAlcanada a vitria e curados os feridos, armou Cristvo de Barros algunscavaleiros, como fazem na frica, por provises de el-rei que pera isso ti-nha, e fez repartio dos cativos e das terras, ficando-lhe de uma coisa e outramuita boa poro, com que fez ali uma grande fazenda de gado, e outros aseu exemplo fizeram o mesmo, com que veio a crescer tanto pela bondadedos pastos que dali se provm de bois e engenhos da Bahia e Pernambuco eos aougues de carne.55

    Esta longa passagem a descrio feita, por frei Vicente de Salvador,dos acontecimentos depois da vitria de Cristvo de Barros contra osgentios de Cerigipe (Bahia) na passagem de 1590 para 1591. Uma vez vi-torioso, o capito portugus, a exemplo do que ocorria em outras para-gens do Ultramar, criou fidalgos e distribuiu as presas de guerra: terras ehomens. Com estas terras e homens conquistados, os recm cavaleiros fi-zeram fazendas de gados. Provavelmente, a mesma seqncia medieval de

    fenmenos deve ter ocorrido no sculo XII, em meio Reconquista crist,na Pennsula Ibrica, assim como deve ter se repetido no recncavo do Riode Janeiro, nas guerras contra os tamoios e franceses nos anos de 1565-67e em 1575.

    Na segunda metade do sculo XVI, as pretenses de Lisboa para coma Amrica j eram claras. Antes de mais nada, garantir domnio efetivo dasnovas terras diante das investidas estrangeiras e das hostilidades dos gen-tios. Feito isto, em meio viragem para o atlntico, o passo seguinte se-ria viabilizar a economia deplantationsaproveitando assim o trendde altado acar. Com esta ltima medida, pretendia-se, provavelmente, com-pensar o recuo econmico-militar do Estado da ndia, e ainda minimizaras dificuldades financeiras da metrpole. Da se entende a construo, pelogovernador Antnio Salema (1576-77), de um engenho de acar s cus-tas da fazenda real no Rio de Janeiro,56 ou ainda a possibilidade dada pelorei ao governador do Maranho de receber a propriedade do ofcio de pro-

    vedor da fazenda, contanto que ele construsse no prazo de seis anos doisengenhos de acar (Frei Vicente Salvador 1982, 355). Entretanto, s pro-

    jetos no bastavam. Para a montagem, no de um ou dois engenhos, mas

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    de uma economia deplantations, seriam necessrios recursos. Algo que,

    como j vimos, andava escasso em Portugal. Neste sentido, a qumica daconquista comea a adquirir um novo significado. Isto , ela surge como a

    possibilidade de montagem da economia exportadora. Aquela qumica

    fornecer, a baixos custos, os dois elementos fundamentais para a instala-

    o da nova estrutura produtiva: terras e mo de obra.

    No inteiramente sem motivo que tanto no regimento de Tom de

    Souza (1548), como no instrumento dos servios de Mem de S (1570),

    ambos Governadores do Brasil, a guerra e domnio dos indgenas ocupem a

    maior parte das preocupaes listadas por Lisboa. E da no ser surpresa que,em Pernambuco, entre 1570 e 1583, cerca de 2/3 da populao escrava dos

    engenhos de acar fosse formada por ndios.57 Voltando para o Rio qui-

    nhentista, somente na expedio punitiva comandada por Antnio Salema,

    que contou com o mesmo Cristvo de Barros, contra os tamoios de Cabo

    Frio em 1575, foram capturados 4.000 prisioneiros convertidos em escra-

    vos. Da mesma forma, no de se estranhar que, ainda na terceira dcada

    do sculo XVII, na correspondncia mantida entre o governador do Rio de

    Janeiro Martim de S e Lisboa, se encontre passagens como a gente do Bra-sil no pode fazer suas fazendas seno com estes ndios que so todo o seu rem-dio. Na mesma poca, em uma carta annima do Rio, pede-se armas e pa-nos para o combate de inimigos e sobretudo para o resgate do gentio.58

    Como conquistadores, os companheiros de Mem de S e Antnio

    Salema receberiam as maiores sesmarias de terras. Segundo Teixeira da Sil-

    va, a distribuio de sesmarias no Rio no foi presidida pela presso demo-

    grfica. Na verdade, a malha fundiria inicial da capitania parece ter acon-tecido independentemente do crescimento demogrfico. Uma das razes

    para isto foi a inteno do Estado de pagar, com terras, a burocracia que

    procurava instalar na Colnia. Entre as conseqncias de tal medida, te-

    ramos uma primeira estrutura fundiria caracterizada pela concentrao

    de terras em poucas mos.59

    Entretanto, na montagem de uma economia deplantationsno bastaapenas terras e mo-de-obra. Alm do que, nem todos os cativos das pri-

    meiras geraes de senhores eram ndios. Com o avano do sculo, uma

    parte cada vez maior de tais planteis seria constitudo por africanos e, por-

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    tanto, comprados ao trfico atlntico de escravos, o que significa a neces-

    sidade de recursos monetrios. Por seu turno, a tomada do recncavo doRio de Janeiro no s facultaria a seus conquistadores terras e ndios, mastambm mercs na forma de privilgios no comrcio, e ainda de postos naadministrao pblica com as suas respectivas remuneraes.

    O sistema de mercs tem as suas origens nas guerras de Reconquistacontra os muulmanos na Pennsula Ibrica da Baixa Idade Mdia. Em meioa estas guerras, o rei luso concede, principalmente aristocracia, terras eprivilgios (arrecadao dos direitos rgios) como recompensa de servios

    prestados.60 Uma das conseqncias de tais prticas seria a formao, emPortugal, de uma aristocracia no tanto constituda por grandes propriet-rios, como ocorre na Inglaterra e Frana, mas sim, principalmente, porbeneficirios dos favores do rei; ou melhor, por aqueles cujas rendas de-pendiam dos dzimos, dos direitos de foral e dos foros enfituticos; rendi-mentos, em grande parte, sujeitos confirmao rgia. Entre 1750 e 1792,por exemplo, 30 das 52 casas da alta nobreza do pas tinham mais de 50%dos seus rendimentos retirados dos bens concedidos pela Coroa. Atravsdeste sistema, a Coroa criava e recriava uma hierarquia social fortementedesigual, baseada em privilgios, ou, o que o mesmo, dava vida para umasociedade aristocrtica.61

    A partir de 1415, com a tomada de Ceuta, aquelas prticas tenderiama ser transmitidas para o ultramar. Nas Conquistas, a Coroa concedia pos-tos administrativos ou militares (governador, provedor da fazenda etc.) quepodiam proporcionar, alm dos vencimentos, privilgios mercantis, via-

    gens martimas em regime de exclusividade ou iseno de taxas e direitosalfandegrios. Por exemplo, na sia, existiam as liberdades da ndia, ouseja, o direito de transportar gratuitamente, nas embarcaes da Coroa, asmercadorias privadas.62 J em Angola, o governador Henrique JacquesMagalhes, em 1695, solicitava o mesmo privilgio j usufrudo por seusantecessores o de retirar sem nus 600 cabeas (escravos) e, mais, na-vegar marfim sem o constrangimento dos contratadores.63 Tais mercs eramconcedidas conforme a qumica de dois critrios: a posio social dopostulante ao benefcio e a importncia dos servios prestados.

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    Para os de origem nobre, os benefcios concedidos no alm-mar eram

    a chance de manter/ampliar terras, rendas e prestgio na metrpole. Atra-vs destas idas ao ultramar, famlias fidalgas acumulavam fortunas com asquais instituam ou aumentavam morgados. So exemplos deste fenme-no os Albuquerque e Saldanha, que estiveram frente, respectivamente,do governo da ndia e Angola/Rio de Janeiro, ou ainda o caso de DuarteSodr Pereira, antigo governador de Pernambuco. No difcil perceberque tais movimentos ajudam a explicar a preservao da estrutura socialaristocrtica em Portugal.64

    Por seu turno, a prtica de concesso de postos no ultramar no eraum privilgio apenas concedido aos extratos da aristocracia, pois ela tam-bm se estendia a outros mortais. Antigos soldados ou pessoas de origemsocial no-nobre tambm podiam receber cargos e ofcios nas Conquistascomo forma de remunerao de seus prstimos ao rei. E, da mesma ma-neira que os fidalgos, aqueles tambm tinham em tais funes a possibili-dade de enriquecerem.

    Conforme Boxer narra, caso tivesse sobrevivido s campanhas milita-res e misrias do Oriente, um soldado depois de servir alguns anos pediaao rei, por intermdio do governo vice-real de Goa, penses ou recompen-sas. Uma vez que a coroa decidia que o solicitante era digno de recompen-sa, que, em geral, assumia a forma de doao de um cargo (capito-de-for-taleza, escrivo da fazenda real etc.), de uma concesso de viagem comer-cial, ou ainda de um posto de agente em uma obscura feitoria. Na maioriados casos, estas doaes revestiam a condio de serventia por trs anos e,

    por serem freqentes, muitas vezes geravam situaes em que seus preten-dentes deviam esperar por dcadas at ocuparem o posto pretendido. Emdeterminadas circunstncias, tais benefcios reais podiam ser doados e mes-mo vendidos a terceiros.65

    Em 1607, discutiu-se em Lisboa quais seriam os meios para sanear asfinanas pblicas e uma das solues cogitadas foi a venda dos ofcios deescrives do judicial, da almotaaria, das ordenanas e de tabelies de no-tas. Nas primeiras dcadas do sculo XVII, e tambm para resolver proble-mas de caixa, vrios cargos pblicos no Estado da ndia seriam postos venda, fato que geraria forte descontentamento entre os soldados que ser-

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    viam nesta parte do imprio portugus.66 Apesar de prevista nas Ordena-

    es do Reino, a venda de cargos feitas por Lisboa, pelo menos no Rio deJaneiro quinhentista e seiscentista, parece no ter tomado as mesmas pro-

    pores que na Amrica espanhola. Madri, desde meados do sculo XVI,

    comearia a abandonar o sistema de mercs e a adotar a prtica de nego-

    ciar os postos da administrao municipal e, a partir de 1633, o mesmo

    ocorreria com os postos da fazenda.67

    Uma das primeiras formas de benefcio solicitada pelos conquistado-

    res e seus descendentes, no Rio de Janeiro, diz respeito s presas de guer-

    ras. Nesta condio, alm das terras e do gentio, temos as fazendas captu-radas dos inimigos europeus. Em 1616, Martim de S, alegando os baixos

    salrios de capito da cidade e o grande nus de andar sempre embarcado

    para vigiar as costas do sul, solicita ao rei parte das mercadorias tomadas

    nas naus dos inimigos e para isto pede, ainda, que os oficiais da fazenda

    no interferissem em tais naus.68

    Por sua vez, a exemplo do que acontecia em outras paragens do imp-

    rio portugus, no Rio de Janeiro seriam concedidas mercs que afetavam

    diretamente o comrcio da economia da Conquista. Em 1653, Salvador

    Correia de S e Benevides envia ao Conselho Ultramarino uma carta onde

    escreve que

    elle tem no reconcavo daquela cidade cinco engenhos de fazer acar, qua-renta curraes de gado, casas e foros que se lhe pagam, que a renda com quese sustenta neste reino (...) e no ser justo que sendo ele Alcaide-mor da-quela cidade e a pessoa que mais fazendas tem nella, lhe falte donde carregar

    os ditos aucares (...) Pede a vmagestade lhe faa merce mandar passar pro-viso para que todos os navios que navegarem no Rio de Janeiro, lhe tra-gam dez porcento do que poderem trazer neles, pelo frete ordinrio que trou-xerem aos mais ministros. [grifos, JF].69

    O contexto desta carta o do sistema de frotas que, institudo desde

    1644, determinava que toda navegao do Brasil para Portugal deveria ser

    feita em comboios dirigidos pela coroa.70 Apesar de garantir uma maior

    segurana para o transporte do acar numa poca de conflitos em par-ticular contra os holandeses tal sistema teria forte resistncia dos colo-

    niais, entre outras razes, pela falta de navios para o transporte da produ-

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    o colonial.71 Por conseguinte, a concesso da merc solicitada por Salva-

    dor significava um ntido desequilbrio entre os senhores de engenho. Comtal benefcio, fica claro que nem todos os produtores de acar eram iguais

    diante do mercado e, com isto, Salvador, a pessoa que mais fazendas tem,

    destaca-se ainda mais entre os afazendados da Colnia.

    Anos mais tarde, o mesmo Salvador, alegando novamente os servios

    prestados por sua famlia ao rei, voltaria a solicitar mais privilgios Lis-

    boa. Desta vez, o objeto do pedido foi o mercado de carnes. Diante da exis-

    tncia de vrios pecuaristas e da obrigao de abaterem seus rebanhos ape-

    nas no aougue pblico, Salvador solicita a merc para que, diariamente, 6a 8 reses de seus currais fossem abatidas.72 Mais uma vez ele seria agraciado

    por sua Majestade.

    Atravs destes exemplos do Rio, percebe-se que uma das conseqn-

    cias da transmisso do sistema de mercs para o ultramar seria a constitui-

    o de um mercado imperfeito. Ou seja, de um mercado no totalmente

    regulado pela oferta e procura, e onde a ao dos agentes no dependia

    apenas de seus recursos econmicos. Uma pessoa que tinha o posto de

    governador de Angola, e com isto a possibilidade de retirar de Luanda es-

    cravos sem pagar impostos, evidentemente possua maiores condies de

    auferir lucros do que um simples traficante. O mesmo ocorria com os Ca-

    pites de Malaca que, com seus monoplios comerciais concedidos pelo

    Estado, possuam maiores vantagens do que os demais mortais. Nestes casos

    e em outros, portanto, nota-se a constituio de mecanismos de acumula-

    o que, mesmo realizados no mercado, so mediados pela poltica. E isto

    fica mais claro quando lembramos que a concesso de mercs e, portanto,a possibilidade de adquirir vantagens no comrcio, obedecia tambm a

    critrios sociais. Um fidalgo tinha mais chances de receber o posto de capi-

    to de Malaca, por exemplo, do que um antigo soldado oriundo do brao

    popular. Cabe ainda sublinhar que o sistema de privilgios, uma vez que

    estabelecia capacidades diferenciadas de acumulao entre os negociantes,

    inevitavelmente imprimia tonalidades especiais s cores do mercado do

    alm-mar. Tonalidades estas desenhadas a partir da poltica e, por conse-

    guinte, de fora para dentro do mercado. Enfim, tal fenmeno retirava do

    mercado parte de sua capacidade de se auto-regular, j que esta regulao

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    em parte era feita por relaes sociais estranhas economia mercantil, mas

    compatveis com a economia poltica do Antigo Regime portugus.

    73

    Retornando ao Rio de Janeiro seiscentista, deve-se destacar que aquios efeitos do sistema de benefcios sobre a economia e sociedade colo-niais seriam, em tese, mais duradouros. Ao contrrio de outras partes doultramar, na cidade de So Sebastio, as fortunas constitudas atravs dasmercs no necessariamente eram transferidas para Portugal e convertidasem morgados. Aqui o que se nota, tambm, que tal prtica de acumula-o servia de meio para a montagem de patrimnios escravistas, inclusive,

    na forma de engenhos. Ao mesmo tempo, verifica-se que no Rio de Janei-ro, a constituio de um mercado imperfeito no s ser o resultado dotipo de mercs acima visto, mas tambm da remunerao regular dada aosministros e oficiais da administrao.

    Infelizmente, para os primeiros beneficiados com postos administra-tivos, no Rio de Janeiro, pouco sei. Ou melhor, alm de serem os conquis-tadores do recncavo, e por isto terem recebidos cargos administrativos emilitares que lhes davam a chance de montar e comandar a sociedade co-

    lonial local no sculo XVI, disponho de poucas informaes sobre o tem-po de durao e a natureza da remunerao de tais mercs. Em vista disto,parti do pressuposto que os ofcios seriam dados, principalmente, emserventia por trs anos. Sendo isto verdade, tal carter temporrio dos pos-tos podia e foi perfeitamente contrabalanado, na poca estudada, pelaspossibilidades de uma mesma pessoa, ao longo de sua vida, ocupar diver-sos cargos e com isto no sair da administrao da coroa. Alm disto, comotambm j vimos, as estratgias de casamento fariam com que alguns con-quistadores e parentes, de uma maneira direta ou indireta, sempre estives-sem presentes na administrao da coisa pblica.

    Passando para meados do Seiscentos disponho de um maior nmerode cartas de patentes e de provises, o que me permite informaes maisseguras. Alguns dos ofcios no recebiam ordenados, e deste modo, norepresentavam despesas para a fazenda real. Esta era a situao dos ofciosda ouvidoria e da correio (com exceo do ouvidor) e tambm do juzo

    de rfos. A renda de tais oficiais era em emolumentos e o seu pagamentofeito pelo pblico a quem servia. O rendimento de um escrivo de notas

    dependia, por exemplo, das escrituraes e diligncias que faziam.

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    Enquanto isso, existiam ofcios, como os da fazenda real, cuja renda

    era composta por trs rubricas: ordenados, emolumentos e propinas reti-radas da arrematao dos contratos de impostos. Entre 1640 e 1697 o or-

    denado destes ministros e oficiais, ou aquilo que o rei lhes pagava, perma-

    neceria praticamente congelado. Para 1697, ano em que possvel se ter

    uma idia do peso de cada uma daquelas rubricas no rendimento total para

    o conjunto dos oficiais da fazenda, observa-se que os ordenados correspon-

    diam a apenas 9,1%. Em contrapartida, os emolumentos e vistorias dos

    navios respondiam por 78,6% da renda total (2:021$200) destes funcio-

    nrios.74 Em outras palavras, sua Majestade arcava com a menor parte daremunerao de seus funcionrios da fazenda, e estes eram pagos princi-

    palmente pelo comrcio e os arrematantes de impostos. Neste momento,

    caberia indagar o significado de tais fenmenos para os ministros e oficiais.

    Ao longo dos mais de cinqenta anos considerados, o escrivo da fa-

    zenda real e da matrcula de guerra recebe o salrio congelado de 17$400.

    Com esta quantia, segundo os preos de 1697, ele teria que esperar por

    quase cinco anos para comprar um escravo homem com cerca de 25 anos,

    no valor de 85$000. Em situao um pouco melhor estaria o provedor da

    fazenda que com os ordenados de pouco mais de um ano poderia adquirir

    o mesmo cativo. Entretanto, este quadro se modifica por completo quan-

    do consideramos, alm daqueles vencimentos, o que eles recebiam com os

    emolumentos retirados da alfndega e das propinas. Somando todas estas

    parcelas temos que a remunerao do provedor da fazenda, por exemplo,

    chega a 800$000. Quantia que lhe permitiria, em uma ano, adquirir um

    plantel de quase 10 cativos ou comprar, depois de trs anos, a metade doengenho de Francisco Ferreira Drumond, vendido em 1697, com 12 es-

    cravos, 73 bovinos, duas moendas etc., pelo preo de 2:400$000.75 Feito

    isto, o nosso provedor poderia pensar seriamente em entrar no restrito clube

    dos senhores de engenho que, em finais do sculo XVII, contava com um

    nmero de scios correspondente aos proprietrios dos 130 engenhos exis-

    tentes na capitania.

    Em suma, nota-se que frente aos baixos e congelados ordenados con-

    trapem-se os emolumentos e as propinas. Rubricas que, por estarem liga-

    das ao desempenho anual da produo social, no caso dos oficiais da fa-

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    zenda, dependia do movimento dos navios no porto e da arrematao dos

    dzimos. Fenmeno que transformava tais postos em objetos de disputasno tanto em razo dos ordenados pagos pelo Estado, mas sim em funo

    do que sua Majestade lhes permitia retirar do pblico ou, o que o mes-

    mo, diretamente da riqueza social. Partindo da experincia do Rio de Ja-

    neiro seiscentista, aquilo que era retirado do pblico dependia de circuns-

    tncias no necessariamente regulamentadas pela lei, mas sim por outras

    variveis, polticas e sociais. Vejamos isto mais devagar.

    A natureza emolumentar de parte das receitas dos oficiais e ministros

    era uma prtica vinda do Reino76 e, portanto, presente no Rio desde priscaspocas. Neste sentido, no de estranhar que em uma carta enviada pelo

    senado da cmara Lisboa, em 1643, fale-se em costumes antigosdo pro-vedor e demais oficiais da fazenda em cobrar percalos sobre as entradas e

    sadas das embarcaes do porto. Nas circunstncias coloniais, estes cos-

    tumes antigos assumiam um significado mais preciso quando se l mais

    adiante, na mesma carta, no haver na alfndega da dita capitania regimentoque se limitasse o que se deve levar dos despachos, entradas, e sadas das embar-

    caes.77 Isto , at 1643, no existiam na fazenda real normas claras quantoaos limites dos emolumentos que os seus oficiais poderiam cobrar sobre o

    comrcio martimo da cidade.

    Ao que parece, algo semelhante tambm ocorria em outro setor es-

    tratgico da riqueza colonial, no caso, na remunerao dos servios do

    juizado de rfos. Numa correspondncia da cmara para o rei, datada de

    1651, eram denunciados vrios abusos do juiz e escrives de rfos, entre

    eles o de cobrar taxas dirias excessivas para a feitura de inventriospostmortem cujos bens estivessem fora da cidade. A mesma carta lembra queno Rio de Janeiro da poca, por ser uma regio fundamentalmente rural, a

    maior parte de seus bens se encontravam distantes do centro urbano.78 O

    fato dos juizes de rfos poderem cobrar taxas abusivas sugere que, at aquela

    data, no existia no juizado normas que regulassem claramente os seus

    emolumentos. A presena do mesmo fenmeno, tanto na fazenda real como

    no juizado, adquire aspectos especiais quando lembramos algumas coisas:

    1- O Rio de Janeiro, no perodo considerado, estava vivendo a mon-

    tagem e expanso de uma economia exportadora. Portanto, o porto era uma

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    de suas principais artrias de circulao de mercadorias, por ele passando

    parte expressiva detodas

    as vendas e compras desta economia. Quanto aosinventrios, por eles transitava a prpria riqueza social. Assim sendo, pelo

    porto e o juizado passaria, se no toda, parte significativa do total da ri-

    queza produzida e acumulada na Colnia, e sobre ela que incidiriam os

    rendimentos e emolumentos dos ministros.

    2- Diante do pblico (comrcio e lavoura), os titulares da provedoria

    da fazenda, do juizado de rfos e de outros postos administrativos eram a

    prpria autoridade colonial, portanto, a quem se devia obedecer.

    A inexistncia de regimentos, que legislassem rigorosamente os emo-lumentos, transferia para a elite poltico-administrativa a possibilidade de

    regular a principal fatia de seus prprios rendimentos. Na verdade, tal re-

    gulao passaria a depender das negociaes entre tal elite e a sociedade

    colonial em gestao, ou melhor, passa a depender das alianas polticas

    que eles conseguem tecer na sociedade.

    A partir destas informaes no h por que se espantar com o tom de

    lamria contida na carta de 1643: at o ano de 1628 levaram os provedores

    da fazenda direitos e percalos moderados (...) de despacho de hum navio 4 mil

    ris e de hum barco 1 pataca. E de 1628 at hoje levam por o dito despacho 16

    a 20 mil reis e de hum barco da costa 12 e 14 patacas.79 Em que pese o pos-

    svel subregistro de tais nmeros para antes de 1628, ou o seu exagero para

    depois, eles indicam a possibilidade dos provedores e outros oficiais da fa-

    zenda se apropriarem de parte da riqueza social. E, mais uma vez, o mes-

    mo pode ser dito para os titulares do juizado de rfos. Para tanto basta

    lembrar que, segundo a carta-denncia de 1651, neste ano um dia de tra-balho de um juiz de rfos fora da cidade custava 4$000 e de seu escrivo

    3$000. Com a primeira quantia, se correta, um juiz, ao fim de vinte dias

    de servios no campo, poderia comprar um escravo com a qualificao pro-

    fissional de oleiro que, na poca, custava 80$000.

    Entretanto, o quadro ainda no est completo. Alm dos governado-

    res, ouvidores e provedores, outros servios Repblica eram tambm pagos

    em emolumentos, prs e percalos. Este era o caso dos capites-de-fortale-

    za e os tabelies. Em 1636, Antnio de Faria recebia a merc do cargo de

    capito-da-fortaleza de Santa Cruz, um dos dois fortes situados na entrada

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    da baa de Guanabara. Na sua carta patente pode-se ler que ele gozaria, alm

    do ordenado, de todos os proes, e percalos, que lhe pertencerem [ao cargo],e levaram vossos antecessores. Entre os seus antecessores encontramos Gon-alo Correia de S, e antes dele Pedro Gago da Cmara. O primeiro, era

    irmo de Martim de S e, desde 1610, possua um engenho de acar. O

    segundo teria uma passagem pela cmara municipal em 1614 e entre os

    seus filhos h um senhor de moendas, e um casamento na famlia Pontes

    (juizado de rfos e fazenda real), fenmeno que voltaria a se repetir mais

    duas vezes com os seus netos.80

    Quanto outra fortaleza da barra, a de So Joo, at 1634, pela suacapitania passariam Duarte Correia Vasqueanes, e antes Joo Gomes da

    Silva. Duarte era senhor de engenho, tio de Martim de S e, em 1632-33,

    serviria interinamente no posto de governador.81 Quanto a Joo, era genro

    de Diogo de Mariz com quem tinha, desde 1610, uma fbrica de acar, e

    como seu sogro fora provedor da fazenda, a exemplo de Pedro Gago da

    Cmara, em 1614 ocupara um lugar no senado.

    Percebe-se, portanto, que entre os responsveis pela primeira linha de

    defesa do recncavo repete-se, no perodo considerado, o padro antes vis-

    to para outros ministros e oficiais, qual seja, laos de parentesco com fam-

    lias da administrao imperial e assento no senado. Na verdade, parece que

    em determinados momentos, os postos de governador, da provedoria da

    fazenda, de juizado de rfos, e agora os da capitania de algumas fortale-

    zas, circularam entre pessoas, direta ou indiretamente, aparentadas.

    As possibilidades de ganhos materiais com tais capitanias so insi-

    nuadasatravs do cruzamento de algumas cartas patentes, com as biogra-fias de seus capites. Joo Rodrigues Bravo, em 1635, recebia por cinco

    anos a fortaleza de S. Bento, cuja construo fora feita as suas custas. Apesar

    de tais gastos em sua fazenda, sublinha a carta real que ele no receber

    ordenado, podendo entretanto, retirar emolumentos deste seu ofcio. Coin-

    cidentemente, Joo era comerciante, e em 1637 arremataria os dzimos reais

    da capitania.82 Dcadas mais tarde, a mesma coincidncia voltaria a se re-

    petir com outros capites de fortaleza. Igncio Francisco de Arajo, em

    1698, capito da fortaleza de S. Sebastio, e na mesma poca, aparece

    como um dos implicados nas irregularidades do contrato das Baleias.

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    Igncio, por casamento, estava ligado a uma das mais tradicionais famlias

    de comerciantes e dizimeiros da cidade. Entre os parentes de sua mulhertemos os contratadores dos dzimos de 1686 e de 1698.83

    Esta coincidncia entre capitania de fortalezas e comrcio talvez pos-sa ser esclarecida por Diogo Couto, cronista do Oriente portugus do s-culo XVI. Segundo ele, nos soldados da ndia corrente a mecnica e vilsubtileza de adquirir dinheiro, sendo os capites das fortalezas tanto mer-cadores como militares.84 No seria de espantar que o mesmo ocorresse noRio de Janeiro.

    Por conseguinte, o que chamei antes de mercado imperfeito nodecorreria apenas dos benefcios reais concedidos a uma ou outra pessoasobre um determinado setor do comrcio. O predomnio dos emolumen-tos nos rendimentos dos ministros/oficiais e ainda, provavelmente, os prse percalos das capitanias teriam o mesmo efeito, qual seja, diferentes emelhores oportunidades destes ministros e capites, diante dos demaismortais, na formao das fortunas coloniais. Sendo que aqui impe-se umnovo condicionante. Ao contrrio de outras mercs, o quantum dos per-calos no era, necessariamente, regulamentado ou somente fixado por suaMajestade, mas tambm dependia das relaes polticas e de parentela pre-sentes na prpria Conquista. Por outro lado, os mesmos fenmenos queatuavam na maior flexibilidade dos emolumentos, podiam servir tambmcomo pano de fundo para outras prticas dos ministros e oficiais em re-lao aos assuntos da repblica.

    Em princpios do sculo XVII, os jesutas acusavam os capites secu-

    lares do Rio de possurem imensas escravarias formadas pelo gentio da ter-ra. Entre os principais acusados temos Salvador Correia de S e Tom de

    Alvarenga, respectivamente, antigo governador e ouvidor da cidade. Almdisso eram aparentados, atravs do casamento do irmo de Salvador, Ma-nuel Correia, com uma das filhas de Tom. Tempos depois, o governadorda cidade, em 1645, Francisco Soutomaior, relatava o desaparecimento deum aldeamento de ndios formado, provavelmente nos anos de 1610, peloento governador Martim de S, mas s custas da fazenda real. A razo paraeste desaparecimento teria sido a transferncia de tais ndios para as fa-zendas e engenhos do dito Martim de S. Curiosamente, Martim exercera o

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    posto de administrador geral dos ndios e aldeias destas costas na mesma

    poca.

    85

    Ainda nas primeiras dcadas, pode-se ler na correspondncia para

    Lisboa, denncias de roubos que por estas partes se fazem a Real Fazenda.

    Em 1619, o governador Constantino Menelau e o capito de Cabo Frio

    Estevo Gomes foram acusados de negcios ilcitos com o pau-brasil e de

    desvios do almoxarifado real. Como resultado de tais atividades, Constan-

    tino deixou comprado um engenho para se agasalhar.86 Quanto a EstevoGomes, coincidentemente, j em 1610, tinha comprado um engenho de

    acar.Depois das denncias contra os governadores, nenhum outro posto

    foi alvo de tantas crticas como o dos ocupantes da provedoria da fazenda.

    De 1639 a 1687, este cargo fora ocupado, com alguns intervalos, pela fa-

    mlia Frazo de Souza ou, mais precisamente, por um pai e seus dois fi-

    lhos, Pedro de Souza Pereira, Tom de Souza Correia e Pedro de Souza

    Correia. Ao longo destes 48 anos, as denncias contra progenitor e reben-

    tos se repetem quase que de uma maneira montona. Eles foram acusados

    da cobrana de direitos excessivos sobre o comrcio martimo, de ao il-

    cita na arrematao dos dzimos reais, de fraudes no contrato do imposto

    da baleia, de mandos e desmandos na cidade. Na revolta de 1660-61, Pedro,

    o pai, seria preso pelos rebelados e contra ele foram arrolados 40 captulos

    denunciando o seu comportamento frente provedoria. Segundo tais ca-

    ptulos, de 1645 a 1660, o provedor teria subtrado parte dos rendimentos

    dos dzimos reais. Mais de quinze anos depois, o governador da cidade,

    Mathias da Cunha, acusaria Tom de Souza Correia de ter arrematado ocontrato das baleias atravs de um de seus criados, o que era proibido por

    lei, j que cabia ao provedor da fazenda real conduzir a arrematao dos

    impostos. No mesmo ano, um estudo feito no Conselho Ultramarino con-

    clua que a fazenda real do Rio tinha poucos ganhos com o contrato das

    baleias. Uma das razes para isto seria o aluguel pago pelo uso da fbrica

    das baleias, cuja propriedade pertencia famlia Frazo. Um dos proprie-

    trios de tal fbrica era Pedro de Souza Correia.87

    Mas no s os Frazo de Souza foram denunciados por corrupo. No

    final do sculo XVII, ocorria uma denncia de irregularidade no contrato

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    das baleias envolvendo outras melhores famlias da terra. Numa carta en-

    viada a Lisboa no ano de 1696, o governador da cidade, Sebastio de Cas-tro e Caldas, acusou o provedor da fazenda real, Francisco de Brito Meireles,e o escrivo da fazenda, o senhor de engenho Incio da Silveira Villalobos,de terem favorecido o tambm dono de moendas, Manuel Correia de Ara-

    jo, na arrematao daquele contrato. Francisco e Incio seriam, respectiva-mente, sogro e padrasto de Manuel que, por sua vez, descendia de antigosgovernadores da cidade, como Tom Correia de Alvarenga e Salvador Cor-reia de S e Benevides. Ao fazer tal acusao Sebastio Caldas temia sofrer

    represlias pois, segundo ele, os denunciados eram poderosos para se tercomo inimigos e cada hum deles[Francisco e Incio] tem mais de 100 milcruzados e so dos principais e mais aparentados nesta terra.88

    Por ltimo, um dos melhores resumos das oportunidades de acumu-lao de riquezas que os cargos da administrao da coroa poderiam encer-

    rar encontrado numa correspondncia enviada, em 1669, pela cmarado Rio de Janeiro Lisboa. Neste ano, o Frei Mauro da Assuno, Abadedo Mosteiro de S. Bento, como procurador da cidade do Rio de Janeiro,

    enviou Lisboa uma carta

    apontando ao rei as causas da runa daquela cidade e os remdios que lhe pare-ciam convenientes. Para este procurador, os augrios da Conquista no esta-riam identificados com a perda do comrcio com Buenos Aires[o que implicouno fim do acesso prata de Potosi] e nem com as ms colheitas, mas sim como comportamento dos oficiais e ministros daquele povo. [Estes estariam] rou-bando os vassalos de V.A. fazendo estanque dos gneros os quais lhes vendem comorefinados mercadores por preos to excessivos e exorbitantes.

    Ao mesmo tempo, para que a situao do Rio de Janeiro melhorasse,seriam necessrias algumas medidas, e entre elas:

    que os ministros se no aproveitem do dinheiro do donativo que ha e poderhaver ou que por qualquer outra via pertena a V.A. (...) que tais ministros seno aproveitem dos seus cargos, do dinheiro do juzo de rfos, e da Provedoriados defuntos e ausentes; que [os ministros] no comprem dvidas a huns mora-dores para cobrar de outros; que no mandem lanar aos leiles por seus criadose arrematar bens dos moradores por pessoas de sua casa; que no mandem cobraras suas dvidas, ou as alheias extrajudicialmente por ajudantes e sargentos... etc.89

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    Assim sendo, o poder de tais cargos poderia permitir exerccio das

    seguintes prticas:1- Monoplios no mercado. Cabe lembrar, mais uma vez, que desdeos anos de 1640, todo o comrcio com Portugal era feito pelo sistema defrotas, sendo isto supervisionado pelos ministros. neste contexto, pre-viamente monopolizado pelas medidas metropolitanas, que os ministrosencontravam o ambiente timo para atuarem como refinados mercadores.

    2- Usura. Em um mercado inconstante como o colonial, caracteriza-do por bruscas flutuaes de preos e colheitas, por especulaes e pela falta

    de liquidez, era comum o endividamento e a arrematao de bens por d-vidas. Nestas circunstncias, os ministros, valendo-se de seus postos, ne-gociavam com tais dvidas e arremataes.

    3- Apropriao da poupana colonial. Como j vimos, parte das for-tunas do pblico colonial era depositada na arca dos rfos, uma outra parteia para a guarda da provedoria dos defuntos e ausentes, ou ainda era trans-ferida para os cofres pblicos na condio de impostos; neste ltimo caso,temos os donativos feitos ao rei. Por conseguinte, tal arca, provedoria e cofre,na prtica, teriam o papel de caixas econmicas que concentravam parteda riqueza produzida pela sociedade. Em um ambiente pr-industrial, comoo colonial, onde prevaleciam as dificuldades de crdito, os ministros te-riam acesso privilegiado a tal caixa, ou melhor, tomariam emprstimosdesta poupana colonial.

    Em suma, segundo o quadro desenhado pelo frei Mauro, a economiade plantationsdo Rio de Janeiro seiscentista configuraria um cenrio de

    mercado imperfeito, onde as oportunidades econmicas dos coloniaiseram nitidamente diferenciadas. Estas diferentes oportunidades no seriamresultado do monoplio de alguns sobre os meios de produo, mas simdo acesso aos cargos de mando da administrao de sua Majestade. Na ver-dade, teramos processos de enriquecimentos feitos no mercado (mono-plios de mercadorias, usura etc.) ou no, mas mediados pela poltica. Comisto se configura uma espcie de acumulao excludente, onde a elite quedetm o controle da coisa pblica exclui os demais mortais: o pblico.

    Entretanto, isto no significa que o cargo de ministro tivesse em sialgum atributo mgico que lhe conferisse autoridade absoluta e sem limi-

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    tes sobre a sociedade. Pelo menos, no isto o que sugerem algumas passa-gens da vida de certos governadores, ou seja, do principal ministro do reina cidade. Neste sentido, basta lembrar os temores do governador Sebas-tio de Castro e Caldas ao denunciar dois de seus subordinados, o prove-dor e o escrivo da fazenda, por pertencerem s famlias principais e maisaparentadas da terra. Da mesma forma, os limites do poder dos ministrospode ser percebido nos relatos do governador Francisco Soutomaior quandodesembarca no Rio em 1645. Por esta poca, segundo o governador, o ce-nrio da cidade seria dominado por bandos, to brbaro e to inculta

    nas materias de milicia, fazenda e justia. Para concluir, Francisco afirmaque s pudera assumir o seu cargo por ter em sua companhia mais de cemmosqueteiros.90

    De fato, os ministros s exerciam plenamente aquilo que chamei deacumulao excludente quando, alm das prerrogativas de seus postos, eramaparentados na terra ou, que o mesmo, estavam prximos a um dos ban-dos da cidade. Muitos dos ministros e oficiais eram descendentes dos con-quistadores e pertenciam s melhores famlias da terra, ou melhor, a uma

    nobreza da Repblica.Pela cronologia dos exemplos acima, percebe-se que a interferncia dapoltica (sistema de mercs e alianas) sobre a economia, ultrapassa os tem-pos da conquista e mesmo aquele perodo (at 1620) que considerei comochave na montagem da economia deplantationse de sua elite. Mesmo apsesta poca a economia colonial continuaria sendo feita em condies demercado imperfeito ou de antigo regime, onde privilgios formados napoltica condicionariam as taxas de acumulao de riquezas. Fenmeno que

    traria para o centro dos mecanismos de reproduo da economia colonialseiscentista o controle sobre os postos da administrao colonial e, conse-qentemente, as alianas polticas. Destes fenmenos decorreriam possi-bilidades maiores de hegemonia e enriquecimento. desnecessrio dizerque tais caractersticas, por sua vez, geravam contnuos conflitos dentro daelite senhorial. Um destes palcos era o senado da cmara.

    O Senado da Cmara e a economia da Repblica

    O senado, segundo os seus camaristas em 1678, era a cabea da Re-pblica para o bem comum. Como tal, e a exemplo do que ocorria na Eu-

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