motivos naturalistas e configurações

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GUARECER on-line _____________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ 205 MOTIVOS NATURALISTAS E CONFIGURAÇÕES SIMBÓLICAS NA CANTIGA DE AMIGO* Mª do Rosário Ferreira * Sendo o corpus da cantiga de amigo constituído por cerca de 500 composições, não deixa de ser sintomático que a crítica se venha debruçando preferencialmente sobre algumas categorias minoritárias, quer formal, quer tematicamente definidas: as cantigas paralelísticas e as cantigas com referências espaciais não deícticas, que, por sua vez, se poderão dividir em cantigas com motivos naturalistas ou de romaria. Estas categorias definem subconjuntos parcialmente sobreponíveis, que, adicionados, cobrem menos de uma quinta parte do corpus; contudo, parece existir um generalizado consenso sobre a sua particular representatividade, pois as composições em causa são tomadas como fonte quase exclusiva da secção de cantigas de amigo das antologias da lírica galego-portuguesa, e aquelas em que as três categorias convergem (como é o caso da conhecidíssima única cantiga de Meendinho) surgem erigidas em verdadeiros paradigmas do género. Como pano de fundo e justificação implícita desta situação algo insólita, surge a convicção, tacitamente aceite pela crítica, da tradicionalidade da cantiga de amigo 1 , * Professora Auxiliar da Universidade de Coimbra. Investigadora do SMELPS/IF/FCT. * Artigo inédito em português, apresentado ao Colóquio Internacional Frauenlieder/Cantigas de Amigo, realizado na Apúlia em Março de 1999, e publicado nas respectivas actas: «Naturmotivik und Symbolik in cantigas de amigo» in Frauenlieder/Cantigas de Amigo, Internationalen Kolloquien des Centro de Estudos Humanísticos (Universidade do Minho), der Faculdade de Letras (Universidade do Porto) und des Fachbereichs Germanistik (Freie Universität Berlin), Stuttgart, S. Hirzel Verlag, 2000, pp. 237-245. O texto original foi objecto de algumas alterações menores e de actualização bibliográfica. 1 A minoritária corrente não tradicionalista, defendida no passado, com argumentos mais racionais do que empíricos, por Cesare de Lollis («Dalle Cantigas de Amor a quelle de Amigo», in Homenaje a Menéndez Pidal, t. I, Madrid, 1925, pp. 617-626) e Silvio Pellegrini «Intorne alle “Cantigas d’ amigo”», originalmente publicado em 1930, in Studi su Trove e Trovatori della Prima Lirica Ispano-Portoghese, Bari, Adriatica Editrice, 1959, pp. 23-63), ganhou novo alento com os recentes trabalhos de A. Resende de Oliveira e de J. C. Ribeiro Miranda, que disponibilizam e interpretam novos dados históricos essencialmente centrados nas primeiras décadas da manifestação trovadoresca galego-portuguesa (ver

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Rosário, uma das grandes estudiosas do trovadorismo galego-portugues em atividade, filia-se nessa obra à escola antropológica de Bachelard e Durand para efetuar descobertas realmente novas e relevantes sobre essa escola poética medieval.

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    205

    MOTIVOS NATURALISTAS E CONFIGURAES SIMBLICAS NA CANTIGA DE AMIGO*

    M do Rosrio Ferreira

    Sendo o corpus da cantiga de amigo constitudo por cerca de 500 composies, no deixa de ser sintomtico que a crtica se venha debruando preferencialmente sobre algumas categorias minoritrias, quer formal, quer tematicamente definidas: as cantigas paralelsticas e as cantigas com referncias espaciais no decticas, que, por sua vez, se podero dividir em cantigas com motivos naturalistas ou de romaria. Estas categorias definem subconjuntos parcialmente sobreponveis, que, adicionados, cobrem menos de uma quinta parte do corpus; contudo, parece existir um generalizado consenso sobre a sua particular representatividade, pois as composies em causa so tomadas como fonte quase exclusiva da seco de cantigas de amigo das antologias da lrica galego-portuguesa, e aquelas em que as trs categorias convergem (como o caso da conhecidssima nica cantiga de Meendinho) surgem erigidas em verdadeiros paradigmas do gnero. Como pano de fundo e justificao implcita desta situao algo inslita, surge a convico, tacitamente aceite pela crtica, da tradicionalidade da cantiga de amigo1,

    Professora Auxiliar da Universidade de Coimbra. Investigadora do SMELPS/IF/FCT.

    *Artigo indito em portugus, apresentado ao Colquio Internacional Frauenlieder/Cantigas de Amigo, realizado na Aplia em Maro de 1999, e publicado nas respectivas actas: Naturmotivik und Symbolik in cantigas de amigo in Frauenlieder/Cantigas de Amigo, Internationalen Kolloquien des Centro de Estudos Humansticos (Universidade do Minho), der Faculdade de Letras (Universidade do Porto) und des Fachbereichs Germanistik (Freie Universitt Berlin), Stuttgart, S. Hirzel Verlag, 2000, pp. 237-245. O texto original foi objecto de algumas alteraes menores e de actualizao bibliogrfica.

    1 A minoritria corrente no tradicionalista, defendida no passado, com argumentos mais racionais do

    que empricos, por Cesare de Lollis (Dalle Cantigas de Amor a quelle de Amigo, in Homenaje a Menndez Pidal, t. I, Madrid, 1925, pp. 617-626) e Silvio Pellegrini Intorne alle Cantigas d amigo, originalmente publicado em 1930, in Studi su Trove e Trovatori della Prima Lirica Ispano-Portoghese, Bari, Adriatica Editrice, 1959, pp. 23-63), ganhou novo alento com os recentes trabalhos de A. Resende de Oliveira e de J. C. Ribeiro Miranda, que disponibilizam e interpretam novos dados histricos essencialmente centrados nas primeiras dcadas da manifestao trovadoresca galego-portuguesa (ver

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    que, aflorando no carcter autctone das referncias geogrficas ligadas s romarias, se veria confirmada pelo uso de paralelismo e de motivos naturalistas, supostamente bebidos pela modalidade em voz feminina do canto trovadoresco galego-portugus na antiqussima tradio da cano de mulher romnica. Tentei, num trabalho recente2, mostrar como o paralelismo sobre dstico monrrimo com refro faz a sua entrada na prtica trovadoresca galego-portuguesa independentemente do advento da cantiga de amigo, e como se vai complexificando, codificando e especializando pelo contacto com esse gnero lrico, podendo, da, concluir-se que a estreita ligao entre cantiga de amigo e paralelismo no um dado de partida mas um efeito de chegada, uma simbiose construda pela prtica trovadoresca peninsular. Aqui, procurarei investigar a existncia de afinidades ou de pontos de clivagem no funcionamento interno e na funcionalidade externa dos motivos naturalistas, no sentido de averiguar em que medida a presena destes poderia, de facto, apontar univocamente para a filiao da cantiga de amigo numa modalidade lrica feminina pr-trovadoresca. Antes de mais nada, parece-me necessrio definir o tipo de abordagem dos motivos naturalistas que pretendo adoptar, uma vez que a relao dos estudos sobre lrica galego-portuguesa com esta classe de significantes literrios est longe de ser inambgua. Com efeito, a crtica admite, mais ou menos generalizadamente e desde h muito, que uma adequada leitura destes elementos, equacionados com uma determinada conotao do cenrio que acolhe, propicia ou evoca o encontro amoroso3, no poder ser feita sem tomar em considerao que transportam consigo

    Oliveira e Miranda, A segunda gerao de trovadores galego-portugueses, in Medioevo y Literatura. Actas del V Congresso de la AHLM (ed. J. Paredes Nues), Granada, 1994, vol. III, pp. 499-512 (entretanto includo em OLIVEIRA, A. Resende, O Trovador Galego-Portugus e o seu Mundo, Lisboa, Editorial Notcias, 2001, pp. 97-110); Miranda, Calheiros, Sandim e Bonaval, uma rapsdia de amigo, comunicao apresentada ao V Colquio Galaico-Minhoto, Porto, Edio do Autor, 1994 (disponvel on--line em www.seminariomedieval.com/guarecer.html, Reedies); e ainda, da autoria, respectivamente, do primeiro e do segundo destes investigadores, Le surgissement de la culture troubadouresque dans l'Occident da la Pninsule Ibrique I e Le surgissement... II, in Le Rayonnement des Troubadours. Actes du colloque de l'Association Internationale d'Etudes Occitanes (ed. A. Touber), Amsterdo, Rodopi, 1998, pp. 85-95 e 97-105.

    2 Ferreira, M do Rosrio, Paralelismo "perfeito": uma sobrevivncia pr-trovadoresca?, in Figura,

    Faro, Edio da Universidade do Algarve, 2001, pp. 293-309. 3 Preciso que implica, desde logo, a excluso do mbito desta pesquisa de ocorrncias lexicais sem

    funo de caracterizao de um espao, como o caso do "almirante do mar", em Paio Gomes Charinho, ou do "rei que conquereu de mar a mar", em Lopo.

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    uma forte carga simblica4, constituindo muitos deles verdadeiros significantes imagticos capazes de operar transtemporalmente no espao cultural ibrico e de culturas afins, como a dispora sefardita, quando no mesmo de amplificar a sua eficcia no nvel antropolgico5. Todavia, a interpretao simblica no se tem mostrado particularmente produtiva no campo aparentemente frtil da cantiga de amigo. Ora espartilhada por um redutor empirismo positivista em tentativas de aggiornamento dos tradicionais estudos filolgicos, ora pulverizada num frenesi comparatista onde similia oriundos das mais diversas pocas, reas geogrficas e culturas se sucedem sem critrio aparente6, esta perspectiva interpretativa tem-se mostrado de difcil operacionalizao, gerando, por isso mesmo, hipteses de solidez questionvel e alcance impreciso.

    Depressora do significado simblico umas vezes, atomizadora do objecto de estudo outras, pouco heurstica quase sempre, a anlise simblica dos motivos naturalistas tem vindo a despertar na crtica uma crescente desconfiana, sendo votada a uma tcita rejeio em proveito de uma contida descrio comparada, levada quando muito at aos limites da Romnia e implicitamente reconduzida a uma securizante busca de origens, se no j de fontes. E, assim, o estudo dos motivos naturalistas na cantiga de amigo acaba por cair num estado consentido de paralisia interpretativa. A minha opo metodolgica, que visa recuperar para a lrica galego-portuguesa a profundidade da interpretao simblica sem incorrer numa perda de definio do objecto de estudo, prende-se com aspectos bem estabelecidos do comportamento do smbolo, nomeadamente com o facto de o seu significado ser modalizado, quando no mesmo modificado, por aco do sistema de representaes em que surge integrado. Assim, sem negligenciar o alcance antropolgico da significao de muitos dos motivos naturalistas presentes na lrica galego-portuguesa, proponho-me tentar

    4 pioneiro, neste tipo de abordagem, o exemplar estudo de Eugenio Asensio Poetica y Realidad en

    las Cantigas de Amigo, in Poetica y Realidad en el Cancionero Peninsular de la Edad Media, Madrid, Gredos, 1970 (1 edio de 1957), pp. 7-133.

    5 Ver, neste sentido, a obra de Stephen Reckert e Hlder Macedo, Do cancioneiro de amigo, Lisboa,

    Assrio & Alvim, 1996 (1 edio de 1976). 6 Procedimento cujo reduzido alcance interpretativo torna evidente que, uma vez circunscrita e

    descodificada uma imagem simblica, o seu alargamento descontextualizante em nada contribui para a elucidao da forma particular como ela funciona e significa no texto de partida.

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    elucidar o modo como poderiam ser compreendidos no seu contexto de produo/ recepo coevo. Para isso, terei em conta todos os dados de natureza histrica, cultural ou sociolgica que paream contribuir para caracterizar o mais diferenciadamente possvel o funcionamento de cada motivo simblico no mbito do imaginrio trovadoresco peninsular, conceptualizado como a restrio de um imaginrio medieval mais lato em funo de parmetros que no tenciono impor a priori, mas ir definindo medida que o rigor no estudo dos smbolos em causa o for exigindo. De entre os motivos naturalistas, comearei por considerar os de teor aqutico que so, sem dvida, os mais pregnantes. Convir, antes de mais, distinguir os verdadeiros motivos aquticos, potencialmente geradores de imagens naturalistas centradas na gua, dos elementos lexicais de estatuto meramente geogrfico ou toponmico7. Excludas as ocorrncias deste tipo, encontram-se motivos naturalistas aquticos8 em dezassete autores, caracterizando espaos que se estendem desde o mar at fonte, passando pelo rio e pelo lago. Em vez de apresentar listagens exaustivas dos autores e dos motivos aquticos, fatalmente enfadonhas e pouco esclarecedoras, parece-me mais produtivo tentar averiguar se todos os motivos aquticos potencialmente simblicos geram o mesmo tipo de imagem ou, se, pelo contrrio, aparentam dar origem a configuraes imagticas diferenciadas. Caso se verifique a segunda situao, procurarei determinar se essa diferenciao aleatria ou se, pelo contrrio, obedece a alguma lgica, permitindo o estabelecimento de correlaes quer com elementos do mesmo nvel de anlise (por exemplo, outros motivos espaciais, naturalistas ou no), quer com vectores estruturantes noutros nveis (por hiptese, cruzando a lista estruturada dos motivos com a lista dos seus autores organizada segundo critrios pertinentes). No caso de se confirmarem correlaes, provar-se-ia que a diferenciao das configuraes imagticas estrutura

    7 Como o caso do "Sar" de Pedro Amigo de Sevilha, que no difere muito do "caminho francs" de

    Joo de Aboim, ou o da "Santa Maria do Lago" de Ferno do Lago, que parece simplesmente contrapor--se a todas as outras "Santas Marias de..." presentes no cancioneiro de amigo (ver Ferreira, M do Rosrio, guas Doces, guas Salgadas. Da funcionalidade dos motivos aquticos na Cantiga de Amigo, Porto, Granito, 1999, pp. 33-36).

    8 Incluindo aqueles que figuram em pastorelas, uma vez que estas composies se inscrevem num

    continuum imagtico e enunciativo com certos grupos bem caracterizados de cantigas de amigo, como sejam aquelas onde surgem motivos naturalistas ou aquelas onde se detecta a presena de um enunciador/narrador (ver Ferreira, guas..., pp. 148-150 e 156-160).

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    coerentemente o corpus de acordo com critrios organizadores bem determinados (e que poderiam ser internos ou externos, consoante as correlaes encontradas). Estariam, ento, criadas as condies tericas para se proceder a uma reapreciao, em novas bases, da problemtica atinente aos motivos naturalistas. A primeira distino que vem ao esprito no seio dos motivos aquticos , evidentemente, entre aqueles que determinam imagens martimas e aqueles que geram cenrios de gua doce. Esta separao quase instintiva de todalas auguas poderia revelar-se indesejavelmente apriorstica, e, em consequncia, no estruturante do corpus da cantiga de amigo, caso se verificasse que os subconjuntos por ela definidos no eram dotados de coerncia imagtica interna prpria. Contudo, tal no ocorre. Com efeito, as configuraes simblicas induzidas pela presena da gua salgada apresentam traos distintivos ntidos, por vezes mesmo de tipo opositivo polarizador, relativamente s que se centram na gua doce. Em primeiro lugar, a gua salgada, ainda que se possa desdobrar em mar e ondas, singulariza-se por ser o nico elemento natural do cenrio9, enquanto o espao induzido pela presena da gua doce comporta muitas vezes outros elementos naturalistas, ora inanimados (o vento, a alba) ora vegetais (prados, ramos, flores), ora animais (cervos, aves vrias). Em segundo lugar, e inversamente, a fonte, o rio ou o lago no parecem ser compatveis com quaisquer elementos que indiciem uma interveno humana sobre o espao, registando-se apenas aqueles artefactos que a amiga directamente manipula (o fio de ouro de atar cabelos, as camisas, a saia, o manto, a grinalda de flores) e que, portanto, tm o estatuto no de componentes do cenrio, mas de extenses da protagonista feminina, um pouco como os seus prprios cabelos, tambm

    9 Apenas numa composio, de Pero Meogo, o mar partilha o espao imagtico com outro elemento

    natural, o cervo, vizinho habitual da gua doce nas cantigas deste autor. Em Joo Zorro e Estevo Coelho, encontra-se a justaposio do mar e do rio. Contudo, do ponto de vista simblico, no h qualquer conflito. Com efeito, a anlise do cancioneiro de Zorro mostra que, a, apenas o mar tem um valor imagtico, funcionando o rio como um indicador referencial e situando-se, portanto, aqum da imagem naturalista; quanto a Estevo Coelho, sobrepe a uma imagem fluvial o mar enquanto smbolo codificado da paixo feminina, o que est, por sua vez, para alm da imagem naturalista (ver Ferreira, guas..., pp. 66-68 e 64-66 respectivamente). A mesma forte codificao do smbolo marinho (ver Ferreira, guas..., pp. 57-58), permite, alis, compreender a possibilidade da sua convivncia com a imagem do cervo em Meogo. Quanto s herldicas "flores do amigo", em Charinho (ver Cotarelo Valledor, Armando, Cancionero de Payo Gmez Chario, Almirante y Poeta (siglo XIII), Madrid, Libreria General de Victoriano Surez, 1934, p. 104), no sendo elementos naturais, em nada brigam com o mar que as transporta.

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    mencionados no mesmo contexto10; o mar, pelo contrrio, aceita perfeitamente coexistir com construes religiosas ou laicas (encontram-se ermidas, igrejas e torres), e deixa-se sulcar por numerosas barcas sem qualquer problema. Recapitulando, o cenrio martimo na cantiga de amigo caracteriza-se pela omisso de quaiquer outros elementos naturais e pela presena de construes humanas ou barcos; quanto ao espao em torno da gua doce, verifica-se que no apresenta sinais de humanizao, mas que o elemento aqutico no surge por isso isolado, enquadrando-se geralmente num cenrio natural complexo. Poder assim afirmar-se que, mais do que simplesmente conotar o espao simblico do encontro amoroso, a presena da gua o sobredetermina, impondo, de forma diferenciada, a sua organizao interna. Continuando a tarefa de caracterizar contrastivamente as configuraes simblicas martimas e as que se ambientam na gua doce, passarei, agora, da determinao das suas estruturas imagticas tpicas para a considerao dos modos como os elementos aquticos manifestam o seu potencial simblico. Comeando pelas cantigas martimas, verifica-se que no se regem todas pelo mesmo tipo de processo de simbolizao, podendo a esse respeito ser subdivididas em dois conjuntos disjuntos, definidos a partir da existncia ou no de uma relao funcional entre o mar e o barco. Aquelas onde essa relao no se verifica sobrepem sistematicamente o simbolismo da cena que representam ao realismo da situao que a presena do mar sobredetermina, e geram uma imagem marinha tumultuosa que espelha a exaltao apaixonada da amiga de forma mais ou menos directa (por exemplo em Meendinho) ou mais ou menos codificada ( o caso em Nuno Porco), consoante a intensidade expressionista da composio. Estamos, aqui, perante um simbolismo animista de tipo projectivo, em que o elemento natural no expande nenhum significado imanente, antes parece escolhido, de acordo com as suas potencialidades imagticas primrias, para absorver as emoes do sujeito que o percepciona, devolvendo-as depois convertidas numa imagem sugestiva. Quanto s cantigas onde o mar surge como substrato utilitrio do trnsito de embarcaes, parece haver um esvaziamento simblico da imagem marinha, assentando o

    10 Regista-se, em Fernando Esquio, um caso em que o arco do amigo detm um estatuto idntico.

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    simbolismo, muito simples, na imagem do movimento do barco, associada ao afastamento ou aproximao do amigo. J nas cantigas onde o espao do encontro amoroso sobredeterminado pela presena da gua doce, no se poder dizer que o problema se resolva de forma to esquemtica. Se verdade que o simbolismo de tipo projectivo continua presente, tambm facto que j no se centra, geralmente, na gua animizada11, tendendo esta a ser substituda, nessa funo, por outros elementos naturais, animados ou no, como as aves, as cervas, a alva. Contudo, nem por isso a gua doce se mostra simbolicamente inerte. A imagem natural complexa dominada por uma fonte, um rio ou um lago tende a incluir a figura feminina na paisagem (num processo que se torna evidente na situao voieurista das pastorelas e, sobretudo, nas composies narrativas de Meogo e D. Dinis, onde a voz feminina se apaga em proveito da imagem feminina), estabelecendo uma contiguidade fsica (e j no psicolgica, como acontecia com a projeco emocional no mar) entre a mulher e a natureza circundante, paradigmaticamente figurada na gua doce que sobredetermina o espao. Esta contiguidade indiciada quer de uma forma simples, tendencialmente perceptiva, atravs do motivo da lavagem (de cabelos, de camisas ou banho), quer de um modo menos directo, mais propriamente cognitivo, pela assimilao da mulher s aves que cantam e que esto, por sua vez, dependentes da gua. Gera-se, assim, uma cadeia metonmica mulher/gua/natureza que rouba figura feminina grande parte da sua densidade psicolgica mas, em compensao, a institui como imagem da natureza e da prpria vida, dotando-a, no processo, de um poder de seduo indefinvel. Este investimento simblico da figura feminina parece resultar da sua contaminao, mediada pela referida cadeia metonmica mulher/gua/natureza, com o simbolismo imanente da gua doce enquanto imagem de todas as foras vitais de fecundidade e renovao12. Torna-se, portanto, claro que a qualidade da gua (doce ou salgada) presente nas imagens naturalistas da cantiga de amigo funciona como elemento estruturante

    11 Com excepo das guas volvidas de Meogo, imageticamente mais prximas do tumulto marinho

    do que da clara gua doce; e, fugazmente, do lago de Esquio, que rapidamente substitudo nessa funo pelas aves que cantam (ver Ferreira, guas..., pp. 114-117 e 145-146 respectivamente).

    12 Ver Ferreira, guas..., pp. 156-160.

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    que determina no apenas o tipo de cenrio gerado, mas os prprios processos de simbolizao envolvidos nas composies. Em torno do mar desenvolve-se um simbolismo essencialmente assente nas potencialidades imagticas transferenciais deste elemento, enquanto a gua doce parece gerar um simbolismo imanentista e, portanto, tendencialmente arquetpico. A diferenciao to ntida e to profunda que a hiptese de que encontre correspondncia noutros nveis de anlise do fenmeno trovadoresco no pode deixar de se pr. Ao cruzar a lista dos motivos marinhos ou de gua doce com a dos seus autores sociologicamente caracterizados, a hiptese aventada d os seus frutos: detecta-se uma correlao no perfeita, mas suficientemente forte para se afirmar que no ilusria. Com efeito, entre os poetas do mar no cancioneiro de amigo regista-se uma ntida predominncia dos jograis (Joo de Cangas, Nuno Treez, Martim Codax, Meendinho, Nuno Porco, Pero Meogo, Joo Zorro, Juio Bolseiro) sobre os trovadores (apenas Gonalo Anes do Vinhal, Nuno Fernandes Torneol, Paio Gomes Charinho e Estvo Coelho), numa proporo de dois para um. Contudo, esta tendncia inverte--se espectacularmente quando consideramos os cantores de fontes, rios ou lagos, entre os quais a uma maioria de estatuto aristocrtico (Nuno Fernandes Torneol, Joo Soares Coelho, Estevo Coelho, D. Dinis, Fernando Esquio e Airas Nunes) se contrapoem apenas dois autores plebeus (Pero Meogo e Joo Airas de Santiago), numa supremacia de trovadores sobre jograis que a proporo de trs para um traduz de forma flagrante. Isto sem tomar em linha de conta que os dois soit disant jograis remanescentes neste grupo se moviam, como a anlise da sua obra to bem mostra, em universos culturais eivados de influncias (respectivamente clericais e provenais13) atpicas no mundo jogralesco peninsular. Esta especializao social das categorias de cantigas de motivos aquticos, entre as quais as de gua salgada aparecem como preferencialmente jogralescas e as de gua doce como caracteristicamente aristocrticas, suscita, evidentemente, reflexo. O que poder justificar tal dicotomia? neste ponto que se torna necessrio, segundo penso, entrar em linha de conta, por um lado, com o possvel mbito

    13 Ver Mndez Ferrn, X. L., O Cancioneiro de Pero Meogo, Vigo, Galaxia, 1966, pp. 58-68; e

    Rodrguez, Jos Lus, El Cancioneiro de Joan Airas de Santiago: Edicion y Estudio, Santiago de Compostela, Universidade de Santiago de Compostela, 1980, pp. 31-33.

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    antropolgico das configuraes simblicas bsicas postas em cena nestes dois conjuntos de composies, e, por outro, com as modalizaes do seu significado que o imaginrio medieval, a cultura trovadoresca e o particular sistema de representaes peninsular coevo nelas podero ter operado. No me deterei aqui nas cantigas de motivo martimo, essas curiosas encenaes de figuras de mulher apaixonada junto ao mar revolto, imagem cuja larga eficcia potica14 contrasta com a sua fraca expresso em textos medievais15. No quadro actual dos conhecimentos da medievalstica, torna-se difcil ampliar o alcance simblico destas composies enigmticas, como que suspensas no tempo, no espao... e no julgamento crtico16. No me parece possvel nem avanar hipteses credveis sobre as suas origens, nem descortinar-lhes uma funcionalidade scio--cultural que as possa afectar preferencialmente ao mundo jogralesco, cujas coordenadas motivacionais nos escapam17. Na verdade, se os estudos sobre cultura popular na Idade Mdia fornecem um quadro aceitvel sobre o imaginrio formal dos grupos sociais no aristocrticos, nada nos dizem dos seus objectivos e aspiraes para alm dos aspectos bsicos da existncia18. Felizmente, o crtico encontra-se menos desarmado frente s cantigas da gua doce, tanto do ponto de vista das cincias do imaginrio como dos estudos sobre cultura e sociedade medievais. Por um lado, dados da antropologia comparada, da

    14 Ver Bachelard, Gaston, L Eau et les Rves, Paris, Librairie Jos Corti, 1942.

    15 Ver Gallais, Pierre, La Fe la Fontaine et lArbre, Amsterdo, Rodopi, 1992, pp. 285-323.

    16 A questo torna-se ainda mais intrigante se tivermos em conta que as cantigas do mar assentam

    num processo simblico considerado mais tpico do universo do romantismo, com a sua caracterstica hipertrofia do eu, do que da mundiviso medieval, muito mais sensvel ao homem como membro de uma colectividade de onde absorve a sua identidade, do que enquanto entidade individual capaz de se projectar no exterior (ver Lewis, C. S., The Allegory of Love, Oxford, Clarendon Press, 1936).

    17 Esta situao de perplexidade face s origens e funcionalidade do simbolismo marinho na cantiga

    de amigo foi entretanto pontualmente ultrapassada com base na ocorrncia de paralelismos bblicos e na evocao de situaes hagiogrficas que permitiram o reconhecimento dos pressupostos ideolgicos subjacentes aos poemas e a reconduo da imagtica marinha por eles mobilizada a um contexto senhorial especfico (ver M do Rosrio Ferreira e Jos Carlos Ribeiro Miranda, Meendinho ou as ondas em guas paradas, in O Cancioneiro da Ajuda cen anos despois, Santiago de Compostela, Xunta de Galcia, 2004, pp. 293-312).

    18 Ver, por exemplo, Claude Gaignebet e Jean-Dominique Lajoux, Art profane et religion populaire au

    Moyen-Age, Paris, Presses Universitaires de France, 1985 e Aron Gurevitch, As Categorias da cultura medieval, Lisboa, Caminho, 1991.

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    histria das religies e at da neurofisiologia19 permitem considerar que a configurao simblica complexa centrada na mulher em associao com certos elementos benficos da natureza, em particular a gua doce20, ter um estatuto compatvel com aquilo que Jung designou por imagens primordiais ou arqutipos21. Alm disso, os estudos de Gaston Bachelard e de Pierre Gallais22, fundamentando-se o primeiro na fenomenologia do imaginrio e o segundo na literatura comparada, apontam convergentemente para a assimilao da configurao simblica assim gerada a uma projeco da Anima, reificao do princpio do feminino. Gallais, situando-se numa perspectiva especificamente medieval, mais restrita do que a de Bachelard, leva mais longe as suas concluses, e defende no s que, na mundiviso escolstica, a conceptualizao da natureza e as alegorias femininas que a representam recobrem uma manifestao da Anima enquanto fonte de fecundidade e vida, mas ainda que uma concretizao de sentido equivalente do mesmo arqutipo recorre abundantemente em textos narrativos de mbito corts sob os traos ubquos da personagem a que chamou "a fada na fonte". Resumirei, em traos largos e esquemticos, a seco tpica de texto narrativo (episdio de romance, lais ou relato genealgico) onde esta personagem habitualmente surge. Encontramos a o cavaleiro aventuroso que uma mulher jovem, bela e insuspeitadamente poderosa atrai fonte ou a outro cenrio natural idlico e primaveril, enleando-o nas suas promessas de amor e fortuna; contudo, aps um perodo de ilusria felicidade, a vida do cavaleiro vai sofrer o estigma da origem demonaca da fada, que chega mesmo a aprision-lo, roubando-o definitivamente ao mundo, ao convvio dos homens e ao seu destino23. Ora os conhecimentos da

    19 Que aqui no cabe, por demasiado longos, referir; mas ver Ferreira, guas..., pp. 160-166, para um

    apanhado da questo. 20

    gua doce essa que poder ser reforada ou, em certos casos, substituda por elementos vegetais que pressupem a sua presena e so componentes habituais do locus amoenus (ver Gallais, La Fe..., pp. 278-284).

    21 Ver, para uma elucidao da teoria subjacente Jung, Carl Gustav, Instinct and the Unconscious

    (originalmente publicado em 1919) e The Concept of the Collective Unconscious (originalmente publicado em 1937), in The Portable Jung (ed. Joseph Campbell), Harmondsworth, Penguin, pp. 47-58 e 59-69 respectivamente.

    22 Ver Bachelard, L'Eau..., e Gallais, La Fe....

    23 Ver Laurence Harf-Lancner, Les Fes au Moyen ge: Morgane et Melusine, la naissance des fes,

    Paris, Champion, 1984.

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    medievalstica so j suficientemente slidos para permitirem entrever o que se esconde por trs desta fbula corts. Basta recordar o imaginrio actuante do mundo senhorial e o tipo de estratgias simblicas, centradas na mulher e baseadas na dialctica desejo/renncia, utilizadas solidariamente por toda a classe da nobreza para compensar frustraes sociais ou reprimir veleidades ascensionistas dos seus estratos mais baixos24. Neste contexto, o fascnio pela fada, manifestao do princpio feminino da fecundidade, dispensadora da terra, da estabilidade, da riqueza e da descendncia que a sociedade nega a grande nmero dos seus membros, parece corresponder expresso, no nvel da representao literria, de uma tendncia para a fuga da pequena nobreza s restries impostas ao seu sucesso social e material. A fada na fonte reificaria, portanto, uma poderosa ameaa para o equilbrio da sociedade senhorial, o que permite compreender o estranho misto de atraco e repdio por essa imagem documentado pelas narrativas corteses que a tomam como fulcro da aco masculina. Assim, e de acordo com o pendor normativo medieval, as histrias de amores fatais entre mortais e fadas instituem-se como veculos de uma moralidade social, podendo ser lidas como verdadeiros exempla laicos. O infeliz desfecho que espera o heri tem como funo servir de aviso classe de cavaleiros desmunidos que com ele se podem identificar e lev-los a aceitar um conjunto de ensinamentos que, sintomaticamente, tm uma vez mais a ver com as regras que condicionam e sancionam o acesso mulher. A esta leitura exemplar poderia juntar-se a de algumas pastorelas occitnicas, em que o dilema do cavaleiro face pastora, essa outra mulher silvestre filha da natureza, novo avatar da fada na fonte, parece pautar-se por princpios ideolgicos convergentes25. Voltando, agora, s cantigas de amigo. Antes de mais nada, as concluses acima apresentadas acerca da definio da configurao simblica aqui em apreciao, levam a redimensionar o conjunto de composies em que esta se pode detectar, incluindo nele as que, embora na ausncia da gua, suscitam a mesma imagem recorrendo a motivos naturalistas vegetais. Tal alargamento, que envolve um

    24 Para um ponto da situao actualizado, ver Jos Carlos Miranda, Da Literatura Histria:

    modelos e imagens da ideologia da nobreza senhorial, in Conto de Perom, o melhor cavaleiro do mundo, Porto, Granito, 1998 (1 edio de 1994), pp. 43-54.

    25 Ver Ferreira, guas..., pp. 170-175.

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    nmero razovel de composies, salda-se pela adjuno de apenas dois autores26, Pero Gonalves de Portocarreiro, de condio aristocrtica, como seria de esperar, e o jogral Joo Zorro, cuja presena no chega para inverter o pendor fortemente nobilrquico do grupo dos cantores da fada na fonte. E talvez agora, aps a insero e interpretao da figura da fada na fonte no contexto corts, a especializao social aristocrtica destas cantigas seja menos perplexificante. De facto, foi possvel estabelecer entre a classe dos seus autores e a imagem nelas evocada laos significativos e motivaes funcionais que se afiguram pouco operantes fora dos limites ideolgicos da nobreza, justificando, pois, a indiferena jogralesca por essa temtica. No parece, assim, despropositado colocar a hipotese de que, na mesma linha dos lais franceses e das pastorelas provenais, as cantigas de amigo naturalistas galego-portuguesas construdas em torno da imagem da fada na fonte constituiriam, num sistema literrio corts que se caracteriza por uma produo menos do que escassa de textos narrativos, o suporte necessariamente lrico das representaes exemplares da capacidade de controlo necessria ao cavaleiro para recusar os enganosos dons dessa figura arquetpica da desejada Anima, do feminino profundo e generoso a cuja posse foroso renunciar em prol da integrao social. Restaria agora mostrar que, individualmente, a anlise das composies em causa apoia esta interpretao global. Seria impossvel expor um trabalho desse flego no contingente quadro comunicativo de uma sesso de colquio; posso, todavia, afirmar que, no decurso dessa tarefa, j iniciada, no encontrei ainda contradies de monta27. Com efeito, as composies parecem escalonar-se entre duas estratgias bsicas de neutralizao da ameaa representada pelo feminino, desejvel mas perigoso, encarnado pela amiga-fada: uma estratgia de fuga tcita, ilustrada na distncia imposta pela atitude voieurista do cavaleiro das pastorelas; e uma estratgia, mais geral, de domnio, numa afirmao activa da supremacia do homem sobre a mulher, filivel na atitude anti-corts que enforma j as cantigas de amigo da fase inicial, tambm de iniciativa aristocrtica28. O que, nas cantigas

    26 No incluo aqui Martim de Ginzo, uma vez que a presena da ermida, construo humana, junto do

    "soveral", no se enquadra no tipo de cenrio simblico tratado. 27

    Ver em Ferreira, guas..., o captulo dedicado aos cantores de fontes, rios e lagos, sobretudo pp. 105-148.

    28 Ver Miranda, Calheiros....

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    centradas na imagem da fada na fonte, pode chocar um leitor mais advertido a violncia, discrepante no gnero de amigo, que por vezes nelas se associa ao processo de dominao do feminino29. Gratuita e intil se exercida contra uma inofensiva donzela, esta violncia inusitada , por si s (salvo uma generalizada acusao de sadismo...), indcio claro do poder atribudo pelo estrato social dos trovadores figura de mulher com quem mede foras e cuja fatal atraco as cantigas acabam, invariavelmente, por vencer. Seja como for, essa violncia no era desconhecida em textos trovadorescos oriundos de um universo cultural onde a imagem da fada na fonte estava bem mais difundida do que na Pennsula. Refiro-me s pastorelas transpirenaicas, onde a atitude do cavaleiro face pastora, esse outra fada silvestre, estava por vezes longe de se pautar pelos preceitos da cortesia. O que talvez seja mais do que uma coincidncia30. Retorno, para concluir, aos propsitos enunciados no incio desta comunicao. Se, como a referi, o paralelismo encontrado na cantiga de amigo no parece corresponder a nenhum modelo pr-trovadoresco; se a ntida dicotomia explicitada na organizao simblica, no alcance significativo e na autoria dos motivos naturalistas no parece autorizar a sua assimilao a uma matriz comum, o que abala fortemente os postulados sobre a origem unvoca das cantigas de amigo onde surgem; se, ainda, sendo a cano de mulher arcaica o produto de uma cultura votada oralidade, a probabilidade de encontrar testemunhos fidedignos que permitam levar mais longe as comparaes remota: no seria tempo de repensar o rumo dos estudos, e, em vez de continuar a encarar a cantiga de amigo, ou alguns dos seus exemplares considerados mais representativos, como uma sobrevivncia de um passado difuso, trabalh-la enquanto construo do seu presente de produo, plenamente significativa quando reinserida no imaginrio e no sistema de representaes prprios do mundo trovadoresco peninsular?

    Maro de 1999/Dezembro de 2007

    29 Ver em Ferreira, guas..., pp. 122-1367, 139-148 e 177-179, uma leitura simblica dos elementos

    pertinentes nas composies aquticas de Joo Soares Coelho, D. Dinis, Nuno Fernandes Torneol e Fernando Esquio que torna clara a presena e o sentido dessa violncia.

    30 Ver Ferreira, guas..., pp. 175-179.

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