ler na escola toda

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Semana da Leitura 2013 11 a 15 de Março _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ BESTC - Biblioteca da Escola Secundária de Tomás Cabreira L E R N A E S C O L A T O D A DA INCERTEZA FOGE Da incerteza foge, pois é bruma a macerar os dedos e os olhos. Que ela não se prenda a coisa alguma das tuas pobres vestes e trabalhos, do teu remar em barcas desavindas por oceanos de agrestes palavras, mesmo em lugares de assombro ou mesmo quando as ondas são tapetes de perigo e tu não sabes. João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas

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Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março

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_____________________________________________________________________________________ BESTC - Biblioteca da Escola Secundária de Tomás Cabreira

L E R N A E S C O L A T O D A

DA INCERTEZA FOGE

Da incerteza foge, pois é bruma

a macerar os dedos e os olhos.

Que ela não se prenda a coisa alguma

das tuas pobres vestes e trabalhos,

do teu remar em barcas desavindas

por oceanos de agrestes palavras,

mesmo em lugares de assombro

ou mesmo quando as ondas

são tapetes de perigo e tu não sabes.

João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas

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Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março

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L E R N A E S C O L A T O D A

DE BOMBORDO A ESTIBORDO

Grandes eram os dias

em que a paisagem - múltipla - flutuava

como um navio perdido.

E balouçavam, de bombordo a estibordo,

no sol-a-sol do seu naipe de cabos

e escotilhas, de remos e roldanas,

de velas e lanternas e jangadas.

E navegavam

- tal como em tabuleiro de xadrez já muito gasto,

com peças de marfim desconjuntadas:

em restos de peões submissos e calados,

em bispos disformes, talvez saturados

pela eterna constância das diagonais;

em alegres cavalos, de buliçoso faina e ameaça;

em torres retilíneas, vigilantes,

abrindo em suas trompas o seu espaço;

num rei que, fero e temido ou talvez

bondoso e venerado, está sempre

barricado, em bom resguardado,

por fim, no porte mais pérfido da rainha

que, pletórica e nunca exausta,

tresloucadamente ataca e sobrevive.

Grandes, esses dias de plangentes rumos

eram sinais cansados, raramente vistos,

de um tempo fragmentário, fustigante

João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas

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L E R N A E S C O L A T O D A

O ESCALER DOS VINTE ANOS

Ser maior. Ser toda a altura

que os deuses conclamam nos seus terraços.

Ser bandeira erguida ou fio de prumo

contra a fremência e mesmo contra

a retumbância das águas.

Ser o passo certo de um destino

que ao grão da incerteza acede.

Ou um áureo gesto, ao sul (desconhecido),

de várias odisseias e contrastes.

Ou ser essa voragem, árdua e fulgurante,

de quem (sagaz) prossegue mas resiste

ao pó dos caminhos, ao cisco das viagens

e àquela solidão tão própria das cidades.

Ser maior e avançar. Aprontar esse escaler

para o poder das vagas, para o inesperado

dos rumos e para o esplendor (e o perigo)

das correntes

que às vezes se cruzam com a neblina.

João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas

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L E R N A E S C O L A T O D A

RÁPIDO DESGOSTO E TODAVIA

Este é um sinal: desgosto breve

de quem às vezes tem a alma cheia,

de quem - por muito ardor e devoção -

cantou a luz, embora não cantando

qualquer inócuo (afável) cantoria.

Rápido desgosto e todavia

alongado além do suportável,

além do erguer das ondas tão despertas

fora da rotina, fora do seu vítreo

mover-se tão perpétuo:

quando elas beijam terra e se derramam

em madrugada e serenidade,

quando elas se misturam bem às brumas

da manhã

e o seu torpor é já um ninho íntimo,

um inefável porto que resguarda.

João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas

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L E R N A E S C O L A T O D A

REBENTAÇÃO

A explosão do mar é uma luz viva

por onde crescem chispas de fragor.

E não há paz que negue este confronto

nas águas rebentadas, estilhaçantes.

E não há som que imite esta disputa

de espumas salgadas e areias.

Nem há barulho igual ao desde estrondo

refeito de cadência e de furor.

Uma e outra e outra vez,

estas canções retumbam, inclementes.

E não há muros que lhe ponham cobro.

E não há sol que dome ou circunscreva

O cenho desses uivos e marradas.

João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas

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L E R N A E S C O L A T O D A

REENCONTRO

Candelabro sobre um barco

vogando em noite gelada,

talvez archote em desterro,

na penumbra que escurece

a terra agreste, cerrada.

Luz tão nítida que enlaça

sem o saberes, erva minha,

toda uma pedra quebrada

quando parti em jangada

de alento tão quase extinto.

Chama de mim, astro ou fada,

presente-ausente no limbo

de estrela antiga, voada

no percurso mais distante

de nevoeiro sem fim

- e agora reencontrada!

João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas

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Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março

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L E R N A E S C O L A T O D A

PAÍS DE MUITO MAR

Somos um país pequeno e pobre e que não tem

senão o mar

muito passado e muito História e cada vez menos

memória

país que já não sabe quem é quem

país de tantos tão pequenos

país a passar

para o outro lado de si mesmo e para a margem

onde já não quer chegar. País de muito mar

e pouca viagem.

Manuel Alegre, Doze Naus

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L E R N A E S C O L A T O D A

AS ONDAS

Até que a escrita trema

E então do fundo da memória um corpo e o mar

um cheiro de alfazema e de salgema

um acento circunflexo um til um trema

um nome que noutro nome se dizia

um erro no ditado umas letras redondas

uma rosa por dentro da caligrafia

A praia um rosto as ondas.

Manuel Alegre, Doze Naus

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L E R N A E S C O L A T O D A

ATRÁS DA SOMBRA

Atrás da sombra na praia correremos

atrás da sombra

atrás do sol ardendo nos sentidos

do cheiro a sal e a areia atrás da espuma

atrás do tempo correremos

atrás do mar e do verão

atrás da sombra agora

atrás da sombra correremos.

Manuel Alegre, Doze Naus

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L E R N A E S C O L A T O D A

OLHANDO O MAR

Sentados na varanda olhando o mar

não sei ao certo o que pensam ou recordam

se um filho morto ou a viagem nunca feita

um verão há muito um só verão não mais.

Não sei sequer se esperam qualquer coisa

ou simplesmente olham o mar

sentados na varanda ao fim da tarde.

Dois traços sobre um azul de Turner

Um outro traço: a sugestão de um barco

aquele em que navegam ao fim da tarde

quando pega na caneta e devagar começo:

«Sentados na varanda olhando o mar.»

Manuel Alegre, Doze Naus

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L E R N A E S C O L A T O D A

A VIAGEM

Não sabia de que lado era o norte nem o sul.

Nem se para diante ficava o poente ou o levante.

Estava perdido a meio de uma página

só se ouvia a caneta no papel

o ritmo das marés interiores da escrita

estava perdido e era levado

pelo vento imponderável das palavras.

Perdido não sei onde

a meio de uma página atravessada

por correntes desconhecidas.

Era e não era uma viagem

se é que tudo não é senão

uma viagem. Era

dir-me-ão

uma viagem só imaginada.

Batiam ondas no meu rosto

e eu não sabia o sentido. Só um verso que falava

do muito navegar.

E depois de cada palavra outra palavra.

Ventos e ventos. Viajar para quê?

E alguém me respondia: viajar por viajar

Manuel Alegre, Doze Naus

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L E R N A E S C O L A T O D A

ESPUMA

Não se chega por trás ao infinito

nem pela frente ou pelos lados mas por onde

nenhum nome pode ser dito ou escrito

e ninguém sabe ao certo o que se esconde.

Não pela palavra Nada (a tão terrível)

nem pela palavra Tudo (a tão perigosa)

mas aquém do visível e do dizível

ou da palavra rosa antes de ser rosa.

Ou talvez onde um vento ignoto sopre

entre a pedra e o vitral o dentro e o fora

lá onde cheira a incenso e cheira a enxofre

e Deus não cabe na palavra agora.

Entre aquém e além ser e não ser

tantas portas abertas ou talvez nenhuma.

Não há senão um verso por escrever

E sobre a areia branca a breve espuma.

Manuel Alegre, Doze Naus

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L E R N A E S C O L A T O D A

SUL

Tudo, ali, é simples e complexo: a luz,

a solidão, o olhar que se comove com o cair

da noite e com o nascer do dia; e, até,

os riscos de mulheres que se ouvem desde longe,

trazidos pelo ar cuja transparência se sente

na própria respiração. No entanto, debruço-me

da varanda e dou por que algo se oculta,

para além dos muros e dos quintais, e chama

por mim sem que eu possa responder. Então,

volto para dentro; preparo o café; e

enquanto a água ferve o mistério desaparece,

inútil e excessivo, no início da tarde.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

SUBITAMENTE SURGE.TEM O TEU ROSTO

O paraíso terrestre é uma flor verde.

As árvores abrem-se ao meio.

O que é sucessivo perde-se.

Se o tempo modifica os seres e os objetos

eu sinto a diferença e gasto-me.

O sol é um erro de gramática, a luz da madrugada

uma folha branca à transparência da lâmpada.

Soam então os barulhos. Soam

de dentro das janelas,

de dentro das caixas fechadas há mais tempo,

de dentro das chávenas meias de café.

É tarde e és tu,

acima de tudo,

entre a manhã e as árvores,

à luz dos olhos,

à luz só do límpido olhar.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

ESTIO

A poesia corrompe os dedos que escrevem. Caem

dos braços, como frutos podres, e infetam a terra

branca do amanhecer. Leio o verso interrompido

pela doença. Reconstituo o final do poema,

A evocação do corpo com febre; e abraço

a mulher pálida que o poema oculta.« Amo-te», digo-

-lhe. Ela despe-se na obscuridade da memória, deixando

atrás de si uma sombra de antigos lençóis. A luz

do meio-dia, ouço, apagou essa imagem; e revela

o vermelho dos lábios de onde escorre

o risco límpido do amor.

-Tarde em que as janelas batem; e um

vento interrompe a conversa dos amantes; e

o mar se despede de Agosto com as marés

vivas que o hábito ignora.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

POEMA

De tarde, no campo, nenhum pássaro cantou;

e só neste fim de dia um vento traz o assobio

da primavera melancólica: despedidas,

imagens breves, nenhuma inspiração. O sopro noturno,

porém, anuncia um reflexo de espelho no fundo

do corredor. A voz surge de um dos quartos

em que a ausência se perde. Um baço

murmúrio se aproxima do gemido que evoca

o mar - sem que a onda se decida, quebrando

o som agonizante. Então, abro a porta

e chamo-te; sabendo que só a noite me

responderá.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

ÉTICA

Chego em frente do mar, das suas ondas,

das marés que setembro enfurece, dos cinzentos

e azuis que alteram com verdes estranhos;

uma voz trata da loucura, ou do olhar vazio

dos peixes, ou de um tema ressequido como as algas

da maré baixa; um vento percorreu a praia,

no silêncio da tarde, devolvendo ao corpo das águas

uma unidade antiga. O mar, no entanto, supõe

que o esqueçam. Nos seus fundos dormem as imagens

que o sonho já não guarda; braços que se agarram

aos mastros do naufrágio. Um barco abstrato

passou devagar pelo horizonte que a manhã não viu,

entrando no outro lado da terra, esquecido

por instantes da música dos portos. O poema, disseram-me,

ignorou essa distração: atravessou

o limite da eternidade, vestiu-se com as palavras

noturnas, deixou que a morte o contaminasse.

À beira-mar, não dou por isso; e digo-o,

devagar, repetindo em voz baixa

todas as suas contradições.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

POEMA

Quero de volta o mar, esse mar

escuro quando o sangue do poente

o mancha; e branco com as

indecisões de Setembro.

Mas o mar não existe, aqui,

onde o papel pousado na mesa

repeliu a maré de uma

última inspiração

nem o rumor da maresia

se confunde com a

hesitação obscura de uma

luz tardia.

O mar, porém, entrou por

aqui dentro: inundação

de que restam as algas

abstratas do sonho.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

A ILHA DE OVÍDIO

Aqui, o vento e a chuva

falam com o mar. Ouço-os,

sem entender o

que dizem. Mas no fundo,

onde os relâmpagos não

chegam para iluminar o

horizonte, a tua voz conversa

com as sombras, como no dia

em que chegaste.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março

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L E R N A E S C O L A T O D A

RECEITA PARA FAZER O AZUL

Se quiseres fazer azul,

pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,

que possas levar ao lume do horizonte;

depois mexe o azul com um resto de vermelho

da madrugada, até que ele se desfaça;

despeja tudo num bacio bem limpo,

para que nada reste das impurezas da tarde.

Por fim, peneira um resto de ouro da areia

do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.

se quiseres, para que as cores se não desprendam

com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.

Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez

ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre

na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor

até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.

Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que

possas distinguir entre uma e outra.

Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,

iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,

algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

POEMA

Um dia nasce como se

tivesse de ser. Branco,

de nuvens baças,

com céus baixos

sobre a maré vazante.

No entanto, esse dia

morre com a angústia

estranha dos teus olhos.

A luz parece que se

agarra aos montes, pedindo

mais tempo. E a noite

torna-se vaga como

os teus lábios.

Entre o dia e a noite,

embalo símbolos e arquétipos,

troco deuses por palavras,

ou limito-me a reler as cartas

em que nunca falas de amor.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

PRAIA

De manhã, o mar parecia saltar de dentro

das nuvens, como se não fosse ele que as

refletisse. Depois, o sol restabeleceu

a ordem das coisas, o prumo voltou a in-

dicar o alto e o baixo, e até o ruído das

ondas deixou de nos submergir com a sua

insistência, deixando ouvir de novo o

bater dos toldos com o vento, os gritos

de um bando de gaivotas, e a tua voz,

atravessando toda a memória deste dia.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

PORTUGAL

Deita-se com a cabeceira

voltada para o norte e os pés a mergulharem

no atlântico. Em cima, a cabeça sonha com

as brumas que invadem os vales, no Outono,

e os olhos iluminam-se quando o amarelo

das flores invade o cume dos montes, no fim

da primavera. Como um cinto, no Tejo prende-

-o a essa cama estreita; e olha

o mar, deixando que as ondas o despertem,

por instantes, do sono antigo. De-

pois, vira-se para o outro lado, como se

não quisesse saber de nevoeiros matinais; e

volta a adormecer, enquanto o sol

agoniza no horizonte.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

POEMA DE AMOR COM IMAGENS NATURAIS

De súbito, todas as ondas correram para ti:

para os teus cabelos, os teus seios, a linha

exata dos teus olhos, onde o destino se fixa

como o centro das águas que nascem em todos os

pontos da terra.

De súbito, todos os rios deixaram de correr:

para os teus lábios, quando te ris, e esse riso

desce como a mais alta das cascatas para o vale

obscuro onde te procuro, sem ver mais do que as

sombras do céu.

De súbito, as montanhas parecem pálidas,

as árvores sem um abraço de ramagens, os

lagos sem uma profundidade de abismo, o mar

sem o brilho azul de cada dia: quando te olho,

e os teus lábios sugam toda a luz do mundo.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

SEM TÍTULO

Como se começasse pelo fim, o poema

constrói um espaço de trás para a frente,

trazendo consigo as imagens da noite

iluminadas de dia, e um raio de sol

esvaziado de luz. Então, ponho-o

na mesa que orienta a direção da casa:

a cabeceira, para nascente, e as cadeiras

em que ninguém se vai sentar encostadas

ao crepúsculo. Vejo-o beber o fogo noturno,

abrindo o tampa da mesa com a nitidez

de um rumo. Sigo essa linha, que me faz

levantar, atravessando a sala até

à porta. Aí, ainda olho para trás: mas

nada feito. O poema empurra-me para fora,

em frente, e leva-me para o mar

onde um poema se afunda com a maré cheia.

Nuno Júdice, Poesia reunida

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L E R N A E S C O L A T O D A

BEIRA-MAR

Mitológica luz da beira-mar

A maré alta sete vezes cresce

Sete vezes decresce o seu inchar

E a métrica de um verso a determina

Crianças brincam nas ondas pequeninas

E com elas em brandíssimo espraiar

Em volutas e crinas brinca o mar

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

O BÚZIO DE CÓS

Este búzio não o encontrei eu própria numa praia

Mas na mediterrânica noite azul e preta

Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais

Rente aos mastros baloiçantes dos navios

E comigo trouxe o ressoar dos temporais

Porém nele não oiço

Nem o marulho de Cós nem o de Egina

Mas sim o cântico da longa vasta praia

Atlântica e sagrada

Onde para sempre minha alma foi criada

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

FOI NO MAR QUE APRENDI

Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela

Ao olhar sem fim o sucessivo

Inchar e desabar da vaga

A bela curva luzidia do seu dorso

O longo espraiar das mãos de espuma

Por isso nos museus da Grécia antiga

Olhando estátuas frisos e colunas

Sempre me aclaro mais leve e mais viva

E respiro melhor como na praia

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

ALI, ENTÃO

Ali então em pleno mundo antigo

À sombra do cipreste e da videira

Olhando o longo tremular do mar

Num silêncio de luas e de trigo

(Como se a morte a dor o tempo e a sorte

Não nos tivessem nunca acontecido)

Em nossas mãos a pausa há de posar

Como o luar que poisa nas videiras

E em frente ao longo tremular do mar

Num perfume de vinho e de roseiras

A sombra da videira há de poisar

Em nossas mãos e havemos de habitar

O silêncio das luas e do trigo

No instante ameaçado e prometido

E os poemas serão o próprio ar

- Canto do ser inteiro e reunido –

Tudo será tão próximo do mar

Como o primeiro dia conhecido

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

NÁUFRAGO ACORDANDO

Um homem só na areia lisa, inerte.

Tão esquecido de si, que tudo o envolve

Em halos de silêncio e nevoeiro.

Um homem de olhos fechados procurando

Dentro de si memória do seu nome.

Um homem na memória caminhando,

De silêncio em silêncio derivando,

E a onda

Ora o abandonava, ora o cobria.

Com vagos olhos contemplava o dia.

Em seus ouvidos

Com um longínquo búzio o mar zunia.

Líquida e fria,

Uma mão sobre os seus membros escorria:

Era a onda,

Que ora o abandona, ora o cobria.

Um homem só na areia lisa, inerte,

Na orla dançada do mar.

Nos seis cinco sentidos, devagar,

A presença das coisas principia.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

PIRATA

Sou o único homem a bordo do meu barco.

Os outros são monstros que não falam,

Tigres e ursos que amarrei aos remos,

E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros

E de me abrir na brisa com as velas,

E há momentos que são quase esquecimento

Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,

A minha amada é onde os roseirais dão flor,

O meu desejo é o rastro que ficou das aves,

E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

NAVIO NAUFRAGADO

Vinha dum mundo

Sonoro, nítido e denso.

E agora o mar o guarda no seu fundo

Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,

Branco como as areias,

Tem duas conchas na mão

Tem algas em vez de veias

E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores

Tomam formas incertas quase ausentes

E a cor das águas toma a cor das flores

E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias

Tremem à passagem das sereias,

As sereias leves de cabelos roxos

Que têm olhos vagos e ausentes

E verdes como os olhos dos videntes.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

JARDIM DO MAR Vi um jardim que se desenrolava Ao longo de uma encosta suspenso Milagrosamente sobre o mar Que do largo contra ele cavalgava Desconhecido e imenso. Jardim de flores selvagens e duras E catos torcidos em mil dobras, Caminhos de areia branca e estreitos Entre as rochas escuras E aqui e além, os pinheiros Magros e direitos. Jardim do mar, do sol e do vento, Áspero e salgado, Pelos duros elementos devastado Como por um obscuro tormento: E que não podendo como as ondas Florescer em espuma, Raivoso atira para o largo, uma a uma, As pétalas redondas Das suas raras flores. Jardim que a água chama e devora Exausto pelos mil esplendores De que o mar se reveste em cada hora. Jardim onde o vento batalha E que a mão do mar esculpe e talha. Nu, áspero, devastado, Numa contínua exaltação, Jardim quebrado Da imensidão. Estreita taça A transbordar da anunciação Que às vezes nas coisas passa.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

MULHERES À BEIRA-MAR

Confundindo os seus cabelos com os cabelos do vento,

têm o corpo feliz de ser tão seu e tão denso em plena

liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura dos seus

pulsos penetra nas espumas.

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus olhos

prolonga o interminável rastro no céu branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longamente

a virgindade de um mundo que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o cimo de delícia

e vertigem onde o mar acaba e começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de ser tão verde.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral

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L E R N A E S C O L A T O D A

PRAIA

Os pinheiros gemem quando passa o vento

O sol bate no chão e as pedras ardem.

Longe caminham os deuses fantásticos do mar

Brancos de sal e brilhantes como peixes.

Pássaros selvagens de repente,

Atirados contra a luz como pedradas,

Sobem e morrem no céu verticalmente

E o seu corpo é tomado nos espaços.

As ondas marram quebrando contra a luz

A sua fronte ornada de colunas.

E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro

Baloiça nos pinheiros.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral

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L E R N A E S C O L A T O D A

CAIS

Para um noturno mar partem navios,

Para um noturno mar intenso e azul

Como um coração de medusa

Como um interior de anémona.

Naturalmente

Simplesmente

Sem destruição e sem poemas,

Para um noturno mar roxo de peixes

Sem destruição e sem poemas

Assombrados por miríades de luzes

Para um noturno mar vão os navios.

Vão.

O seu rouco grito é de quem fica

No cais dividido e mutilado

E destruído entre poemas pasma.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar novo

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L E R N A E S C O L A T O D A

PRAIA

Na luz oscilam os múltiplos navios

Caminho ao longo dos oceanos frios

As ondas desenrolam os seus braços

E brancas tombam de bruços

A praia é longa e lisa sob o vento

Saturada de espaços e maresia

E para trás fica o murmúrio

Das ondas enroladas como búzios.

Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido

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L E R N A E S C O L A T O D A

A MINHA RUA TEM O MAR AO FUNDO

Sou algarvio

E a minha rua tem o mar ao fundo

Sempre que passa aqui algum navio

(Passam, aqui, navios de todo o mundo

Passam, aqui, navios pr’a todo o mundo)

Oiço a voz que me namora

Da outra banda do mar…

Que me namora e me chama

Da outra banda do mundo

E se eu abalasse mãe?

E se eu abalasse e nunca mais voltasse?

Choravas, sim, eu sei bem

Posso não ser filho às vezes

Mas tu és mãe, sempre, mãe!

(Se não fosse a minha mãe,

Ah! Se não fossem os meus,

Adeus aldeia, adeus praias,

Adeus gaivotas, adeus!)

E eu vou ficando, não chores…

[…]

O mar e o céu azul que mais adoro,

Que não é o mesmo azul dos outros céus

- Palma da mão de Deus

Sobre a aldeia onde moro

António Pereira

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L E R N A E S C O L A T O D A

O mar do Algarve, meu poeta e meu monge,

Que chega e ajoelha e fica orando.

(Meu velho pescador que vem de longe,

No rosário das ondas vem rezando…)

Mar que rebenta as ondas, uma a uma,

Para subir às rochas sobranceiras,

Que lança ao vento ondulações de espuma

E a espuma vai florir as amendoeiras…

Sorriso que se espelha, mar do sul

Que reflete ondas de azulino-esmalte;

(É azul do mar aquela cor azul

das serras de Monchique e Pena de Alte!)

O mar, o encantador, alto e romântico,

Que beija a Terra-Noiva-Luz-e-Cal,

Que enche de glória o grande Sonho-Atlântico

Do Marinheiro-Mor de Portugal

Sempre o mar seduzindo o território:

- Jardim suspenso, meu poeta aéreo –

Terra onde o Infante viu no Promontório

O Dedo-Indicador do Império!

António Pereira

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L E R N A E S C O L A T O D A

DEVE SER ÁRABE, SIM

O coração deve ter passeado

aqui, no mesmo espaço

ou outro tempo tão igualmente

azul: as arcadas de sol

e a pedra branca e uma fonte

final

contra um fundo de renda

toda branca, a chaminé

sem fumo. Mas lume pelo mar

de laranjeiras

e um perfume de flor

de bandolim.

(e a conclusão: que sim,

deve ser isso

que o título entrelaça

com o fim)

Ana Luísa Amaral, in Algarve todo o mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

Mas nulos são

os pontos cardeais

Onde quer que o olhar,

navegam as estradas,

e o mar sobeja

– sempre o mar –

sobrando,

campos bordados

a rosa e a lilás,

demais, demais

as flores

Não há voz

que resista,

nem coração

que fale

Ana Luísa Amaral

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L E R N A E S C O L A T O D A

TEMPLO SUBMERSO

O mar descobre em seu tempo

de aridez

Templo onde brilha a lenta

madrugada do mundo pedras desprendidas de-

formadas

pelos elementos em visita

vigilante

Pedras ou pássaros gravados na sombra dos barcos

de rosto humano

Essa é a outra face da ferida

talhada no centro da terra no centro

do sol pelo fulgor das marés pela ternura

de armas marítimas

o mar os alimenta com seus frutos

de plena infinitude

o tempo a paciência

Casimiro de Brito, in Algarve todo o mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

Se o mundo não tivesse palavras

a palavra do mar, com toda a sua paixão,

bastava. Não lhe falta

nada: nem o enigma nem

a obsessão. Entregue ao seu ofício

de grande hospitaleiro

o mar é um animal que se refaz

em cada momento.

O amor também. Um mar

de poucas palavras.

Casimiro de Brito

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L E R N A E S C O L A T O D A

Quando me aproximo do mar

tudo me parece aceitável.

As ondas são folhas que vão

a caminho da perfeição.

Perfeito é pois quem do tempo

tem a longa paciência –

também a tenho quando escuto

a nervura mágica de tudo,

um tudo feito de sombras

que amaciam a pedra luminosa

que todas as coisas são.

Saltando de estação para estação

como se o caminho se fizesse,

sereno, entre o mar e o céu.

As ondas que vejo cair

também as sinto nas areias de mim

como se tudo, na barca deste mundo,

fosse mar e luz.

Por isso a minha vida é intensa

e velha como a paciência

que não cessa de se renovar

no sangue da pedra, das aves.

Casimiro de Brito, in Algarve todo o mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

AMO-TE PORQUE NÃO ME AMO INTEIRAMENTE

Amo-te porque não me amo

inteiramente. O que me faz falta

é infinito

mas tu és do bem que me falta

o enigma onde se condensam

a terra e o sol o ar as águas

invioladas

e tenho a boca cheia

de música ondulação

do teu silêncio.

Casimiro de Brito

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Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março

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L E R N A E S C O L A T O D A

AQUA MARINA

Pássaros somos e a pão sabemos

nesta noite luminosa de fadiga

barcos somos mais leves que o sangue

onde agora um no outro

navegamos

O coração não mente as palavras

não mentem quando

sobre as ondas iluminamos

o mundo inundamos de luz

o próprio sol

Casimiro de Brito, in A cidade e o mar na poesia do Algarve, Fernando Cabrita

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L E R N A E S C O L A T O D A

MENINO SENTADO FRENTE AO MAR

Em silêncio

como se não fosse ninguém

Como se não tivesse um nome uma casa

na cidade

Como se fosse uma simples raiz

crescendo

na sombra

A criança

sentada numa rocha

contempla o mar

Casimiro de Brito, in A cidade e o mar na poesia do Algarve, Fernando Cabrito

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L E R N A E S C O L A T O D A

DESCRIÇÃO DO MAR

Árido corpo nas pedras deitado na magra

substância do planeta deitado lavrado -

corpo longo secreto pura construção

de formas absolutas – movimento circular

sempre recomeçado: mar ou mármore renascido

em labirintos em ruínas ó berço

ó sepultura da

humanidade ó mais natural das

substâncias este barro sensível por onde caminho

deitado nos astros: onde a película da pele cava

da morte o fosso a ressaca o conflito – a árvore

sem raízes: árvore tumultuosa e tumultuosa

balança definitiva – falam-me dos teus frutos.

Casimiro de Brito, in A cidade e o mar na poesia do Algarve, Fernando Cabrita

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L E R N A E S C O L A T O D A

TERRAÇO ABERTO

Terraço aberto

aos ventos e aos astros

crivado

das balas de frescura

das ranhuras do sol

muros

onde vejo dedos

muros fraternos

de meus ossos

aqui respiro

através das flores

da chaminé

nos planos brancos

nos montes azulados

Nas velas brancas

nas areias douradas

aqui respiro

a claridade

António Ramos Rosa, in Algarve todo o mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

BARCOS NA RIA

Os barcos que na ria

traçam rápidas vias

de espuma e o meu dia desafiam

saltam à luz que é música aumentando

até quase tornar

impossível abrir os olhos neste dia

que verdadeiramente não parece

meu como noutra idade eu o sentia

O sol dilata e faz

subir o céu

desconhecidos

os corpos contra a água

verde e azul agora calma frente à casa

Nenhum barco

já passa há um

silêncio que só o diminuto

murmúrio da maré crescendo

molha Mas outros barcos vêm e recortam-se

velozmente na água que retalham

Gastão Cruz, in Algarve todo o mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

A DESTRUIÇÃO DAS CIDADES

Os navios procuram as cidades

Percorreram o mar dos oceanos

as descrições febris das tempestades

A carga dos humanos

fardos do tempo figurada

resta roída nos porões pelos ratos

enquanto abandonada imagem

pendurada do céu como um canal de

figo a chuva enche

a turva sanguessuga do passado

Gastão Cruz, in A cidade e o mar na poesia do Algarve, Fernando Cabrita

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L E R N A E S C O L A T O D A

MAR DE SETEMBRO

Tudo era claro:

céu, lábios, areias.

O mar estava perto,

fremente de espumas.

Corpos ou ondas:

iam, vinham, iam,

dóceis, leves - só

ritmo e brancura.

Felizes, cantam;

serenos, dormem;

despertos, amam,

exaltam o silêncio. Tudo era claro,

jovem, alado.

O mar estava perto.

Puríssimo. Doirado.

Eugénio de Andrade, Mar de setembro

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L E R N A E S C O L A T O D A

Atravessara o verão para te ver

dormir, e trazia doutros lugares

um sol de trigo na pupila;

às vezes a luz demora-se

em mãos fatigadas; não sei em qual

de nós explodiu uma súbita

juventude, ou cantava:

era mais fresco o ar.

Quem canta no verão espera ver o mar.

Eugénio de Andrade, O Peso da Sombra

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L E R N A E S C O L A T O D A

APENAS UM RUMOR

E no teu rosto aberto sobre o mar

cada palavra era apenas o rumor

de um bando de gaivotas a passar.

Eugénio de Andrade, Os Amantes do dinheiro

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L E R N A E S C O L A T O D A

RAPARIGA DESCALÇA

Chove. Uma rapariga desce a rua.

Os seus pés descalços são formosos.

São formosos e leves: o corpo alto

parte dali, e nunca se desprende.

A chuva em abril tem o sabor do sol:

cada gota recente canta na folhagem.

O dia é um jogo inocente de luzes,

de crianças ou beijos, de fragatas.

Uma gaivota passa nos meus olhos.

E a rapariga – os seus formosos pés –

canta, corre, voa, é brisa, ao ver

o mar tão próximo e tão branco.

Eugénio de Andrade

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L E R N A E S C O L A T O D A

A FIGUEIRA Não tenho mãos para o azul.

Sonho com o mar

que não está longe mas não vejo

arder.

Só a sombra parece estar em casa

debaixo dos meus ramos:

canta baixinho enquanto se descalça.

Eugénio de Andrade, Com o sol em cada sílaba

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L E R N A E S C O L A T O D A

O mar. O mar novamente à minha porta.

Vi-o pela primeira vez nos olhos

de minha mãe, onda após onda,

perfeito e calmo, depois,

contra falésias, já sem bridas.

Com ele nos braços, quanta,

quanta noite dormira,

ou ficara acordado ouvindo

seu coração de vidro bater no escuro,

até a estrela do pastor

atravessar a noite talhada a pique

sobre o meu peito.

Este mar, que de tão longe me chama,

que levou na ressaca, além dos meus navios?

Eugénio de Andrade, Branco no branco

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L E R N A E S C O L A T O D A

PESCADOR DA BARCA BELA Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela, Que é tão bela, Oh pescador? Não vês que a última estrela No céu nublado se vela? Colhe a vela, Oh pescador! Deita o lanço com cautela, Que a sereia canta bela... Mas cautela, Oh pescador! Não se enrede a rede nela, Que perdido é remo e vela Só de vê-la, Oh pescador! Pescador da barca bela, Ainda é tempo, foge dela, Foge dela, Oh pescador! Almeida Garrett

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L E R N A E S C O L A T O D A

AS MENINAS

as minhas filhas nadam. a mais nova

leva nos braços bóias pequeninas,

a outra dá um salto e põe à prova

o corpo esguio, as longas pernas finas:

entre risadas como serpentinas,

vai como a formosinha numa trova,

salta a pés juntos, dedos nas narinas,

e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

a água tem a pele azul-turquesa

e brilhos e salpicos, e mergulham

feitas pura alegria incandescente.

e ficam, de ternura e de surpresa,

nas toalhas de cor em que se embrulham,

ninfinhas sobre a relva, de repente.

Vasco Graça Moura

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L E R N A E S C O L A T O D A

estou deitado sobre a minha ausência,

como poderia estar deitado se existisse.

amanhã as ondas imitar-me-ão na praia.

José Luís Peixoto, A Criança em Ruínas

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L E R N A E S C O L A T O D A

SE PARTIRES

Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta

uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre

e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão

das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;

mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,

porque o ar que respiras junto de mim é como um vento

a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno

nos dias sem ninguém – longe de ti, o corpo não faz

senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta

as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto

espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

Se me abraçares, não partas.

Maria do Rosário Pedreira

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L E R N A E S C O L A T O D A

Esta noite o vento ceifa os bosques e

uma raiva sacode a terra. Se a voz

do mar chamasse pelas velas, os estreitos

aguardariam um naufrágio. E se dissesses

o meu nome eu morreria de amor.

Devo, por isso, afastar-me de ti – não

por ter medo de morrer (que é de já não

o ter que tenho medo), mas porque a chuva

que devora as esquinas é a única canção

que se ouve esta noite sobre o teu silêncio.

Maria do Rosário Pedreira

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L E R N A E S C O L A T O D A

SONETO DO AMOR DIFÍCIL

A praia abandonada recomeça

logo que o mar se vai, a desejá-lo:

é como o nosso amor, somente embalo

enquanto não é mais que uma promessa…

Mas se na praia a onda se espedaça,

há logo nostalgia duma flor

que ali devia estar para compor

a vaga em seu rumor de fim de raça.

Bruscos e doloridos, refulgimos

no silêncio de morte que nos tolhe,

como entre o mar e a praia um longo molhe

de súbito surgido à flor dos limos.

E deste amor difícil só nasceu

desencanto na curva do teu céu.

David Mourão-Ferreira

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L E R N A E S C O L A T O D A

MEMÓRIA

Tudo que sou, no imaginado

silêncio hostil que me rodeia,

é o epitáfio de um pecado

que foi gravado sobre a areia.

O mar levou toda a lembrança.

Agora sei que me detesto:

da minha vida de criança

guardo o prelúdio dum incesto.

O resto foi o que eu não quis:

perseguição, procura, enlace,

desse retrato feito a giz

pra que não mais eu me encontrasse.

Tu foste a noiva que não veio,

irmã somente prometida!

— O resto foi a quebra desse enleio.

O resto foi amor, na minha vida.

David Mourão-Ferreira, Tempestade de Verão

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L E R N A E S C O L A T O D A

MAR DE AGOSTO

Deixa ficar comigo a madrugada,

para que a luz do Sol me não constranja.

Numa taça de sombra estilhaçada,

deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,

onde eu ouça o estertor de uma gaivota...

Crepite, em derredor, o mar de Agosto...

E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho

que acendas, para tudo ser perfeito,

à cabeceira a luz do teu joelho,

entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso

para a minha ilusão do Paraíso.

David Mourão-Ferreira

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L E R N A E S C O L A T O D A

CANTIGA

Todo o dia senti, bem funda em mim,

a tortura do beijo que não demos:

lago sereno, preso num jardim,

saudoso dum nenhum sulcar de remos...

David Mourão-Ferreira, Obra Poética

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L E R N A E S C O L A T O D A

INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS

Mal fora iniciada a secreta viagem,

um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,

supondo ser a luz que o deus me segredou.

David Mourão-Ferreira, Obra Poética

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L E R N A E S C O L A T O D A

EM MADEIRA ESCULPIDOS

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,

ficámos nós os dois, parados, de mão dada...

Como podem só dois governar um navio?

Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,

tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...

Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...

Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,

nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...

Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,

se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.

— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,

a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

David Mourão-Ferreira, A Secreta Viagem

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L E R N A E S C O L A T O D A

ABANDONO

Por teu livre pensamento

Foram-te longe encerrar

Tão longe que o meu lamento

Não te consegue alcançar

E apenas ouves o vento

E apenas ouves o mar

Levaram-te a meio da noite

A treva tudo cobria

Foi de noite numa noite

De todas a mais sombria

Foi de noite, foi de noite

E nunca mais se fez dia.

Ai! Dessa noite o veneno

Persiste em me envenenar

Oiço apenas o silêncio

Que ficou em teu lugar

E ao menos ouves o vento

E ao menos ouves o mar.

David Mourão-Ferreira

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L E R N A E S C O L A T O D A

PAISAGEM

Desejei-te pinheiro à beira-mar

para fixar o teu perfil exacto.

Desejei-te encerrada num retrato

para poder-te contemplar.

Desejei que tu fosses sombra e folhas

no limite sereno dessa praia.

E desejei: «Que nada me distraia

dos horizontes que tu olhas!»

Mas frágil e humano grão de areia

não me detive à tua sombra esguia.

(Insatisfeito, um corpo rodopia

na solidão que te rodeia.)

David Mourão-Ferreira, A Secreta Viagem

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L E R N A E S C O L A T O D A

MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, Mensagem

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L E R N A E S C O L A T O D A

D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo

O plantador de naus a haver,

E ouve um silêncio múrmuro consigo:

É o rumor dos pinhais que, como um trigo

De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,

Busca o oceano por achar;

E a fala dos pinhais, marulho obscuro,

É o som presente desse mar futuro,

É a voz da terra ansiando pelo mar.

Fernando Pessoa, Mensagem

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L E R N A E S C O L A T O D A

NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,

Define com perfil e ser

Este fulgor baço da terra

Que é Portugal a entristecer –

Brilho sem luz e sem arder,

Como o que o fogo - fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer,

Ninguém conhece que alma tem,

Nem o que é mal nem o que é bem.

(Que ânsia distante perto chora?)

Tudo é incerto e derradeiro.

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!

Fernando Pessoa, Mensagem

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L E R N A E S C O L A T O D A

Pus o meu sonho num navio

e o navio em cima do mar;

- depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre de meus dedos

colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles

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L E R N A E S C O L A T O D A

CANÇÃO DA ETERNA DESPEDIDA

A noite é linda

inda palpita no mar

a lua cheia a se esvair em luar

Vem, ó minha amada

e fica linda e sem véu

como essa lua no céu

Eu sou o mar

Ó meu amor, diz que sim

E vem pousar o teu luar sobre mim

Vem que todo dia

cada noite tem um fim

só para nos separar

Ai, minha amada

madrugada chegou

e a sua luz me diz que devo partir

Mas meu coração

não compreende a razão

de me arrancarem de ti

É tanta a mágoa

desta separação

que já meu corpo chora a falta do teu

Que esses cantos meus

são como prantos de adeus

por me arrancarem de ti

Vinicius de Moraes

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L E R N A E S C O L A T O D A

SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,

E que nele posso navegar sem rumo,

Não respondas

Às urgentes perguntas

Que te fiz.

Deixa-me ser feliz

Assim,

Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.

Só soubemos sofrer, enquanto

O nosso amor

Durou.

Mas o tempo passou,

Há calmaria...

Não perturbes a paz que me foi dada.

Ouvir de novo a tua voz seria

Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

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L E R N A E S C O L A T O D A

REGISTO

Mar feliz do Algarve!

Calmo,

Azul, transparente,

Deitado no areal ao sol ardente

Como qualquer rapaz,

Despido

E adormecido

Sob o toldo do céu…

Que vento inquietador e pertinaz

Se arrependeu

E te deixou em paz?

Que lua te esqueceu?

Miguel Torga, Diário X

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L E R N A E S C O L A T O D A

O mar é uma piscina

De calda bordalesa mal mexida.

Um charlatão ladra cansado à vida,

A vender restos de fascinação.

Morosa, a multidão

Recolhe em formigueiro da torreira

Apagada na carne sonolenta.

Um som de flauta, rouca e forasteira,

Não sei de que tristeza se lamenta

Miguel Torga, Diário XII

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L E R N A E S C O L A T O D A

ALGARVE

O mistério do mar,

O milagre do sol

E a graça da paisagem

Na moldura dos olhos.

E a paz feliz de que tenho o que é meu.

Ah, terra bem amada!

Bênção da natureza

Caiada

De pureza

E nimbada de saudade

Algarve. Liberdade

Dos sentidos.

Férias ao sul

Da imaginação.

Ainda a mesma nação,

Mas com ouros sinais.

E a memória também

De que todo o além

Começa neste cais.

Miguel Torga, in Algarve todo o mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

MANHÃ

Abro a janela sobre as açoteias.

A luz é uma indolência universal, despida.

Nos tépidos lençóis de cal varrida

Acordam estremunhadas

Do mesmo sono

Sombras pacificadas

No total abandono

Que a volúpia pedia.

Minaretes alados,

De fantasia,

Desabrocham no ócio dos telhados.

Além o mar, sonâmbulo, tropeça

Na praia movediça

Onde o ia tem pressa

E a vida tem preguiça.

Miguel Torga, Diário XII

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L E R N A E S C O L A T O D A

Em Lixboa sobre lo mar

barcas novas mandei lavrar,

ay mia senhor velida!

Em Lisboa sobre lo lez

barcas novas mandei fazer,

ay mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar

e no mar as mandei deitar,

ay mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer

e no mar as mandei meter,

ay mia senhor velida!

João Zorro

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L E R N A E S C O L A T O D A

Sedia-me eu na ermida de San Simion

e cercaram-me as ondas, que grandes son:

Eu atendendo o meu amigo

eu atendendo o meu amigo!

Estava eu na ermida ante o altar,

e cercaram-me as ondas grandes do mar:

Eu atendendo o meu amigo,

eu atendendo o meu amigo!

E cercaram-me as ondas, que grandes son!

Non hei barqueiro, nem ar son remador:

Eu atendendo o meu amigo,

eu atendendo o meu amigo!

E cercaram-me as ondas do alto mar!

Non hei i barqueiro, nem ar sei remar

Eu atendendo o meu amigo,

eu atendendo o meu amigo!

Non hei barqueiro, nem ar son remador.

e morrerei fremosa, no mar maior:

Eu atendendo o meu amigo,

eu atendendo o meu amigo!

Non hei barqueiro, nem ar sei remar,

e morrerei, fremosa, no alto mar:

Eu atendendo o meu amigo,

eu atendendo o meu amigo!

Mendinho

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L E R N A E S C O L A T O D A

VOZES DO MAR

Quando o sol vai caindo sobre as águas

Num nervoso delíquio d'oiro intenso,

Donde vem essa voz cheia de mágoas

Com que falas à terra, ó mar imenso?...

Tu falas de festins, e cavalgadas

De cavaleiros errantes ao luar?

Falas de caravelas encantadas

Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d'epopeias? Tens anseios

D'amarguras? Tu tens também receios,

Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?...

... Talvez a voz do Portugal antigo,

Chamando por Camões numa saudade!

Florbela Espanca, Poesia Completa

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L E R N A E S C O L A T O D A

POEMA DA MALTA DAS NAUS Lancei ao mar um madeiro, espetei-lhe um pau e um lençol. Com palpite marinheiro medi a altura do sol.

Deu-me o vento de feição, levou-me ao cabo do mundo. Pelote de vagabundo, rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas, pasmei na orla das praias, arreneguei, roguei pragas, mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto, tive o corpo em chagas vivas, estalaram-me as gengivas, apodreci de escorbuto.

Com a mão direita benzi-me, com a direita esganei. Mil vezes no chão, bati-me, outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres ecoou nas sete partidas. Fundei cidades e vidas, rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva, alambique de suores. Estendi na areia e na relva mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo a que outros chamaram seu, mas quem mergulhou no fundo Do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente. Provo-me e saibo-me a sal. Não se nasce impunemente nas praias de Portugal.

António Gedeão, Teatro do Mundo

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L E R N A E S C O L A T O D A

POEMA DO HOMEM-RÃ

Sou feliz por ter nascido

no tempo dos homens-rãs

que descem ao mar perdido

na doçura das manhãs.

Mergulham, imponderáveis,

por entre as águas tranquilas,

enquanto singram, em filas,

peixinhos de cores amáveis.

Vão e vêm, serpenteiam,

em compassos de ballet.

Seus lentos gestos penteiam

madeixas que ninguém vê.

Com barbatanas calçadas

e pulmões a tiracolo,

roçam-se os homens no solo

sob um céu de águas paradas.

Sob o luminoso feixe

correm de um lado para outro,

montam no lombo de um peixe

como no dorso de um potro.

Onde as sereias de espuma?

Tritões escorrendo babugem?

E os monstros cor de ferrugem

rolando trovões na bruma?

Eu sou o homem. O Homem.

Desço ao mar e subo ao céu.

Não há temores que me domem

É tudo meu, tudo meu.

António Gedeão

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L E R N A E S C O L A T O D A

ENTREI PELO MAR

Entrei pelo mar mulher

açodado, a colher algas

Esqueci-me do meu mister

embalado pelas ondas.

O mar homem não se esquece

embalado pelas ondas.

Ruy Cinatti

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L E R N A E S C O L A T O D A

POEMA

Água peregrina fina flor do vento

Tua voz divina dá-me ainda alento

Navios antigos há muito partiram

Os mastros vão lindos

As velas caíram.

No cais beira-d'água meus olhos perdidos

escuta a mágoa

Dos barcos esquecidos

A força ou perdão quer ainda levar

todo o coração nas ondas do Mar?

Ruy Cinatti

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L E R N A E S C O L A T O D A

Porque será que meus olhos tanto necessitam

de ver mar ao longe?

Ou pelo menos a água

de um rio

para aí cheirar a sua raiz

Se calhar foi por tanto apetecer o azul

da água ao longe

que meus olhos são claros

e por tanto amar o mar

que meus desgostos

se tornaram destemidos e salgados

e têm

o voo a pique das gaivotas

e o grito ácido

dos pássaros marinhos

Teresa Rita Lopes, Afetos

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L E R N A E S C O L A T O D A

MAR NOSSO

Emocionadamente

te reencontro

hoje

e

sempre

Mar nosso

que estás na terra

nesta minha

tua nossa

terra

e és sempre a mesma bênção

de água

a mesma mágoa

doce

o mesmo indizível júbilo

Teresa Rita Lopes, O sul dos meus sonhos

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L E R N A E S C O L A T O D A

LEVANTE

Desde que chegámos que faz Levante

o abominado vento

do deserto que aquece as águas ah sim! As pessoas gostam

mas pagam o preço:

ondas altas a arremeter raivosas

e este calor de forno este céu pesado.

Desde menina que recebo

o Levante com rancor.

Logo pela manhã percebia pelo som do mar

que Ele o Monstro tinha chegado.

Mesmo assim ia – e vou – à praia

medir forças com as altas ondas:

cavalgo-as agarrada às suas crinas

de espuma

e deixo que me arrastem até à praia.

Às vezes desisto

De lhes fazer frente:

Agacho-me e deixo que a onda me passe por

cima

para não me derrubar.

Quem pudesse fazer o mesmo na vida

perante as calamidades impossíveis de enfrentar!

Teresa Rita Lopes, O sul dos meus sonhos

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L E R N A E S C O L A T O D A

PAISAGEM DE ÁGUA

Do que mais gosto neste rio nem é do espelho de água

onde meus olhos bebem devagar

nem das quietas casas

das margens

que convidam meu olhar a poisar em seus ombros:

é do ir-vir dos barcos

afadigados

a florir espuma

no tenro dorso azul

Teresa Rita Lopes, O sul dos meus sonhos

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L E R N A E S C O L A T O D A

ILHA DE FARO

Em Faro aprendi a amar as ilhas todas e quaisquer Ainda hoje só a breve palavra me comove Sempre situei o paraíso numa ilha Embora com muita vegetação Ir à ilha de Faro era uma aventura na minha meninice Começava logo no cais Como não havia ponte íamos de barco Começávamos a apetecer o mar de longe Quando finalmente nos recebia nos seus braços possantes já o nosso corpo o tinha longamente desejado Quando nos cansávamos da violência da sua presença íamos para a ria para a doçura das suas mansas águas onde aprendi a nadar Nessa altura a ria não tinha ainda adoecido de poluição Na ilha podíamos ir dos braços do mar para os do rio e vice-versa por isso nunca nos fartámos de nenhum Regressávamos ao crepúsculo com o corpo em fogo Às vezes o barco encalhava nos baixios na maré vazia e tínhamos que ficar no meio da ria à espera que a maré enchesse Mas também isso tinha um sabor a viagem e as pessoas nesses tempos tinham menos pressa Talvez sem saber estivesse aprendendo que ir ao encontro do amor e do mar tem que ser devagar

Teresa Rita Lopes, O sul dos meus sonhos

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L E R N A E S C O L A T O D A

FUNDO DO MAR

Quero ver

o fundo do mar

esse lugar

de onde se desprendem as ondas

e se arrancam

os olhos aos corais

e onde a morte beija

o lívido rosto dos afogados

Quero ver

esse lugar

onde se não vê

para que

sem disfarce

a minha luz se revele

e nesse mundo

descubra a que mundo pertenço

Mia Couto, Raiz de orvalho e outros poemas

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L E R N A E S C O L A T O D A

VIAGEM

O beijo da quilha

na boca da água

me vai trocando entre céu e mar,

o azul de outro azul,

enquanto

na funda transparência

sinto a vertigem

da minha própria origem

e nem sequer já sei

que olhos são os meus

e em que água

se naufraga minha alma

Se chorasse, agora,

o mar inteiro

me entraria pelos olhos

Mia Couto, Raiz de orvalho e outros poemas

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L E R N A E S C O L A T O D A

SEGREDO

A noite estava escura

escura e fechada até à beira do mar

escura e fechada estava a noite.

E os langues

olhos dos dois encontraram

no céu o Cruzeiro do Sul Xi-Ronga

e uma poalha de estrelas cobriu confidências

mundos de silêncio

o litúrgico frenesi dos dedos

e o desejo ardente de não ser

mais do que um.

A noite estava escura

E fechada à beira do mar.

Mas o beijo

Dos dois no tempo esquecido

Transformou a noite.

José Craveirinha

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L E R N A E S C O L A T O D A

ESTRELA DO MAR

Secreto, o labirinto. Dos meus passos

irrompiam às vezes outros passos

quando plo céu de agosto a lua ia

subindo pouco a pouco. Em tons de azul

uma pequena praça, a esplanada

tão cheia de rapazes, raparigas

difíceis de sonhar, fiéis apenas

ao frio vento que lhes dissolvia

as palavras em espuma - é bom esquecer

lembrando-me de tudo, é bom deixar

os olhos sobre a praia como estrelas

perdidas de si mesmas, já sem luz.

Secreto, o labirinto. Renascendo

de febres e cansaços, talvez seja

ainda a minha voz este murmúrio

absoluto e vão. Nenhuma lágrima

brilhando sobre o mar-nenhum desejo

e todos os desejos deste mundo

Fernando Pinto do Amaral

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L E R N A E S C O L A T O D A

SENHORA DA ROCHA

Procuras neste mar ainda o espelho

a espuma de outro tempo No levante

movendo as novas ondas

respiras a memória tão azul

da tua juventude Há vinte anos

o cenário do mundo talvez fosse

límpida linha de água

agora exposta ao frio de Fevereiro

a este sol gelado quando as ondas

avançam e rebentam

na esperança de um sonho que brilhasse

mais do que a própria espuma e atingisse

a tua face

debruças-te à varanda e absorves

o vento Mal procuras

no azul de outros olhos o que resta

da tarde que se arrasta enquanto escutas

as promessas de Averno

os estridentes gritos das gaivotas

voam de novo em círculos Procuram

também a luz

de outro sol que as salvasse e que lhes desse

um céu fora do tempo

Fernando Pinto do Amaral, in Algarve todo o mar

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L E R N A E S C O L A T O D A

AZUL

em memória de Sophia

Cega-te a luz do sol – nunca te esqueças

deste dia sem fim:

no horizonte nascem as promessas

e hás-de ficar assim,

à espera de um milagre que te fale

com a voz de uma sereia

até te libertar de todo o mal

e deixar sobre a areia

o gesto inconsolável de algum deus

desfeito na espuma

dos sonhos que algum tempo foram teus

ou das nuvens que fogem uma a uma.

Cega-te a luz do dia – sobre o mar

um azul que não sabes decifrar

Fernando Pinto do Amaral, Pena suspensa

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L E R N A E S C O L A T O D A

AGOSTO

Rompem de novo aquelas mãos

a membrana da água

a mortalha do mar Cada braçada

agita o coração que pouco a pouco

atravessa o aquário do passado

Relâmpago do corpo – o que procuras

na voragem das ondas?

Fernando Pinto do Amaral, Pena suspensa

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L E R N A E S C O L A T O D A

ORLA MARÍTIMA

O tempo das suaves raparigas

é junto ao mar ao longo da avenida

ao sol dos solitários dias de dezembro

Tudo ali para como nas fotografias

É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto

alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar

És tu surges de branco pela rua antigamente

noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher

(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)

«Mudança possui tudo»? Nada muda

nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados

levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas

Deus anda à beira de água calça arregaçada

como um homem se deita como um homem se levanta

Somos crianças feitas para grandes férias

pássaros pedradas de calor

atiradas ao frio em redor

pássaros compêndios da vida

e morte resumida agasalhada em asas

Ali fica o retrato destes dias

gestos e pensamentos tudo fixo

Manhã dos outros não nossa manhã

pagão solar de uma alegria calma

De terra vem a água e da água a alma

o tempo é a maré que leva e traz

o mar às praias onde eternamente somos

Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Ruy Belo, Todos os poemas

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L E R N A E S C O L A T O D A

NA PRAIA

Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar

senhoras que com tanta dignidade

à hora que o calor mais apertar

coroadas de graça e majestade

entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?

Ruy Belo, Todos os poemas

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L E R N A E S C O L A T O D A

TURISMO

Eu vi morrer um homem e caminho

Vários motivos de morte e uma

agenda mas

almoço

Há mesas e cadeiras e passeios e

sabe-me

a café

Mistério de maresia ou de ninguém

Ruy Belo, Todos os poemas

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CONSOLO NA PRAIA

Vamos, não chores

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.

O segundo amor passou.

O terceiro amor passou.

Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.

Não tentas te qualquer viagem.

Não possuis casa, navio, terra.

Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,

em voz mansa te golpearam.

Nunca, nunca cicatrizam.

Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros

Carlos Drummond de Andrade, Antologia poética

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ADEUS A ti que em astros desenhei nos céus, A ti que em nuvens desenhei nos ares, A ti que em ondas desenhei nos mares, A ti, bom anjo, o derradeiro adeus! Parto! Se um dia (que é possível, flor!) Vires ao longe negrejar um vulto, Sou eu que aos olhos desta gente oculto O nosso imenso desgraçado amor. Talvez as feras ao ouvir meus ais, As brutas selvas, as montanhas brutas, Côncavas rochas, solitárias grutas, Mais se condoam, se comovam mais! E lá daquelas solidões se aqui Chegar gemido que uma pedra estale, Que um cedro vibre, que um carvalho abale, Sou eu que o solto por amor de ti… De ti, que em folha que varrer o ar, Em rama, em sombra que bandeia a aragem, De fito sempre nessa cara imagem Verei sorrindo, sentirei passar! De ti que em astros desenhei nos céus, De ti que em nuvens desenhei nos ares! De ti que em ondas desenhei nos mares, E a quem envio o derradeiro adeus! João e Deus, Campo de flores

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INCÊNDIO

Daqui, desta falésia cor de lava

Dum amarelo rútilo e sangrento,

Outrora debruçava-se um convento

Sobre a maré tumultuosa e brava…

E, à noite, no clamor do vento,

Ao largo, o temporal se anunciava,

E a voz das águas, soluçante e cava,

Punha um trovão nas furnas, agoirento.

Logo, piedosamente, cada monge

Suspendia uma lâmpada à janela,

E tangia a sineta para o coro…

E, no mar alto, o navegante, ao longe,

Via um farol luzir em cada cela,

E cada rocha a arder, em sangue e oiro…

Cândido Guerreiro, Promontório sacro

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RESSURREIÇÃO

O mar, grande arquiteto e imaginário,

Que ao dobrar este cabo para o Sul,

Faz resplender o eterno sonho azul,

Ao longo desta costa, inquieto e vário,

Saudoso do mosteiro solitário

- Viúvo e inconsolável rei de Thule,

Busca no próprio seio a taça exul, -

Chora por ele um canto funerário…

Mas, segundo uma antiga profecia,

Deus há de erguer a sua linda igreja,

Tão linda como o foi em outras eras.

Neste mesmo lugar, para que seja

De novo (porque o homem se transvia)

Adorado por aves e por feras…

Cândido Guerreiro, Promontório sacro

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O SONHO DO MAR

Arranha, a negridão da noite, o seu lamento:

A ouvi-lo me ponho,

e sinto as espirais, em que ascende o seu sonho,

Rasgando e verrumando as lufadas do vento.

Entre os fundos da terra é ele o degradado,

A torcer-se, no chão,

Cheia de espuma a boca, eterno condenado,

P’ra que não há perdão!

O que ele tem chorado, a morder o rochedo,

E nas praias do mundo, agonizantemente…

Inútil… O degredo,

Continua, sem fim, e implacavelmente!

João Lúcio, Na asa do sonho

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CONCHAS

Minha infância de Luz mimada ao colo

Da onda à beira-mar, oh minha infância!

Vais perdida a boiar, feita num rolo,

farpada de saudade, na distância…

Mal se apagou a estrela sobre o polo,

Deixaste a praia em muda extravagância,

E perdeste pela areia, pelo solo,

As conchas que juntei, de sonho e ânsia.

Conchas que rendilharam mãos de magas,

Tão perdida na ausência imémore!...

Ah! Se tu, coração – búzio do mar –

Me toasses aquele som das vagas

Barcarolas azuis, lindo folclore

Às ondinas cantado ao luar!...

Emiliano da Costa, in Musa algarvia

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NO ARRAIAL FERREIRA NETO

A praia. As âncoras. Rola que rola

A onda… e sangra o mar: fúria sem rédea

Vai o copejo além – tragicomédia

Que ao fundo, lá no mar se desenrola.

Do azul-marinho o atum azul consola

Vê-lo chegar à lota, e rira grei.

Consola, sim… Mas há um não sei quê

Na alegria, um enjoo que desconsola.

Do longe mensageira, a intermédia

Onda traz-nos, em fugas de tragédia,

Estas riquezas, sim… a luz, a Escola,

Esta obra higiénica, social,

Em prol dos pescadores – o Arraial!!...

… Mas sangra o mar: E o sangue desconsola.

Cândido Guerreiro, Asas

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L E R N A E S C O L A T O D A

A PROA E O CABO

A proa aguçada

do barco para partir

o cabo enlaçado

em voltas para reter

ir ou fiar

o rio é uma disputa

permanente

Não vale apena

fingir

somos nós

quem decide

não a corrente

Carlos Brito, O modo e os lugares

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VELEIROS

Estes iates brancos

resplandecentes como cisnes

feitos de fibras plásticas modernas

não me fazem esquecer

as velhas canoas de madeira

da minha infância

com as suas velas triangulares latinas

a bordejar contra a corrente

Mas às vezes sobem o rio

alguns estranhos veleiros

de talhe antigo

curtido pelos ventos

das travessias oceânicas

Então acordam de repente

os bandos de gaivotas

que trazemos adormecidos na alma

e somos envolvidos

pelas memórias da maresia

os mitos e os feitos

das grandes navegações

em que fomos amamentados

Carlos Brito, O modo e os lugares

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L E R N A E S C O L A T O D A

PRAIA-MAR

uma a uma

fui tecendo as linhas do teu corpo

semi-nudez reclinada.

uma a uma

desenhei no espaço os traços do eu rosto

boca estremecida

mas foste tu

quem fez o meu trote ágil

uma sinfonia com que a noite coroou

a estrela mais longínqua

de uma para outra

o perfume de uma para uma

no cálice sôfrego da maresia

Fátima Murta, Com perfume de limão

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L E R N A E S C O L A T O D A

AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar

No Mundo graves tormentos;

E pera mais me espantar,

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

O bem tão mal ordenado,

Fui mau, mas fui castigado.

Assim que, só pera mim,

Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

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L E R N A E S C O L A T O D A

O VAGABUNDO DO MAR

Sou barco de vela e remo

sou vagabundo do mar.

Não tendo escala marcada

nem hora para chegar:

é tudo conforme o vento,

tudo conforme a maré…

Muitas vezes acontece

largar o rumo tomado

da praia para onde ia…

Foi o vento que virou?

Foi o mar que enraiveceu

e não há porto de abrigo?

ou foi a minha vontade

de vagabundo do mar?

Sei lá.

Fosse o que fosse

não tenho rota marcada

ando ao sabor da maré.

É por isso, meus amigos,

que a tempestade da Vida

me apanhou no alto mar.

E agora,

queira ou não queira,

cara alegre e braço forte:

estou no meu posto a lutar!

Se for ao fundo acabou-se,

Estas coisas acontecem

Aos vagabundos do mar.

Manuel da Fonseca

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L E R N A E S C O L A T O D A

Nas ondas da praia

Nas ondas do mar

Quero ser feliz

Quero me afogar.

Nas ondas da praia

Quem vem me beijar?

Quero a estrela-d'alva

Rainha do mar.

Quero ser feliz

Nas ondas do mar

Quero esquecer tudo

Quero descansar.

Manuel Bandeira

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L E R N A E S C O L A T O D A

PAVOROSA PAISAGEM APARENTE

Mais longe do que os meus pés a aparência

Azul do mar. Na verdade o pavor do de

Clive da cor da terra barrenta. Não é

Reconhecível sem a figura de mar do vocá

Bulo. Azul sem ruído. Não-versátil

E pavoroso na imagem aparente

Fiamma Hasse Pais Brandão, F de Fiamma

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L E R N A E S C O L A T O D A

Esta vista de mar, solitariamente

dói-me. Apenas dois mares,

dois sóis, duas luas

me dariam riso e bálsamo.

A arte da Natureza pede

o amor em dois olhares.

Fiamma Hasse Pais Brandão

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L E R N A E S C O L A T O D A

MANHÃ CINZENTA

Ai madrugada pálida e sombria

em que deixei a terra de meus pais…

e aquele adeus que a voz do mar trazia

dum lenço branco a acenar no cais…

O meu veleiro – era de espuma fria –

levava-o o fervor dos vendavais.

À passagem gritavam-me: onde vais?

Mas só meu veleiro respondia.

Cruzei i mar em direções diferentes.

Por quantas terras fui, por quantas gentes,

Nesta longa viagem que não finda.

Só uma estrela resta – mais nenhuma:

na Ilha que o passado envolve em bruma,

um lenço branco que me acena ainda…

Natália Correia, Poesia completa

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L E R N A E S C O L A T O D A

Eu venho do sonho e fujo da vida

Errei no caminho para a paz prometida.

Só sei que me chama um canto do mar.

E a nau dos sonhos no céu a voar.

Ó meu capitão da barca perdida

A errar entre o sonho e o engano da vida

Natália Correia, Poesia completa

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L E R N A E S C O L A T O D A

INTOXICAÇÃO

Poetas do mar vinde trazer-me as vossas ondas.

Sou cidade. Onde bichos e anjos se devoram

por uma côdea de imortalidade.

Vinde trazer-me a espuma onde as auroras

balbuciam o princípio dum segredo

guardado pelas bocas luminosas

que a noite fende nos últimos rochedos.

Natália Correia, Poesia completa