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1 A Sustentabilidade das Microfinanças Solidárias Rodrigo Gravina Prates Junqueira 1 Ricardo Abramovay 2 SOBER 2003 RESUMO O Sistema Cresol de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária atua nos três Estados da região Sul do País e procura ampliar o alcance social da oferta de um conjunto variado de serviços financeiros. O trabalho procura entender quais são e como se formam os mecanismos sociais promotores e indutores da sustentabilidade de uma organização de microfinanças de proximidade solidária, geradora de impacto positivo na vida dos seus beneficiários. São estudados a estrutura e o funcionamento do Sistema Cresol e suas articulações, bem como os mecanismos utilizados pela organização para aumentar a capilaridade do crédito e de outros serviços financeiros. As redes constituídas em suas bases por agricultores familiares, têm participação direta ou indireta nas organizações sociais locais, fomentam as relações de confiança, reduzem custos de transação, e aceleram os fluxos de informação e a inovação. A virtude dessa rede social na qual se estabelecem as inúmeras relações entre indivíduos e organizações, bem como o desenho de programas que buscam atender às reais necessidades dos beneficiários, são ingredientes fundamentais para a sustentabilidade de um sistema de microfinanças de proximidade. Palavras-chave: finanças de proximidade, microcrédito, redes sociais, agricultura familiar. ABSTRACT The present study investigates an emblematic Brazilian case of cooperatives organized into a network, Sistema Cresol de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária (Cresol System of Rural Credit Cooperatives with mutually binding Interaction), which operates in the three Southern most states in the country with a view to diminishing various costs and to expand its reach through mechanisms of social control of financial services. The main objective here was to understand how social mechanisms are formed and stimulated to induce the sustainability of a microfinance organization of mutually binding proximity which generates positive impact on the life of the beneficiaries. The work examines the structure and the functioning of the Sistema Cresol to understand what mechanisms are used by the organization for increase the diffusion capacity of the credit. The networks which are constituted by family farmers have direct or indirect participation in local social organizations promoting relationships of trust, reducing transaction costs and accelerating the flow of information and innovation.The value of the social network where innumerable relations are established between individuals and organizations, as well as the outlining of programs seeking to attend to the real needs of the beneficiaries, proved to be fundamental for the sustainability of a system of mutually binding microfinances. Key Words: proximity finances, microcredit, family farmers, networks 1 Eng. Agrônomo, Mestre em Ciência Ambiental pelo PROCAM/USP. [email protected]

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    A Sustentabilidade das Microfinanas Solidrias Rodrigo Gravina Prates Junqueira1

    Ricardo Abramovay2

    SOBER 2003 RESUMO

    O Sistema Cresol de Cooperativas de Crdito Rural com Interao Solidria atua nos

    trs Estados da regio Sul do Pas e procura ampliar o alcance social da oferta de um conjunto variado de servios financeiros. O trabalho procura entender quais so e como se formam os mecanismos sociais promotores e indutores da sustentabilidade de uma organizao de microfinanas de proximidade solidria, geradora de impacto positivo na vida dos seus beneficirios. So estudados a estrutura e o funcionamento do Sistema Cresol e suas articulaes, bem como os mecanismos utilizados pela organizao para aumentar a capilaridade do crdito e de outros servios financeiros. As redes constitudas em suas bases por agricultores familiares, tm participao direta ou indireta nas organizaes sociais locais, fomentam as relaes de confiana, reduzem custos de transao, e aceleram os fluxos de informao e a inovao. A virtude dessa rede social na qual se estabelecem as inmeras relaes entre indivduos e organizaes, bem como o desenho de programas que buscam atender s reais necessidades dos beneficirios, so ingredientes fundamentais para a sustentabilidade de um sistema de microfinanas de proximidade. Palavras-chave: finanas de proximidade, microcrdito, redes sociais, agricultura familiar. ABSTRACT

    The present study investigates an emblematic Brazilian case of cooperatives organized

    into a network, Sistema Cresol de Cooperativas de Crdito Rural com Interao Solidria (Cresol System of Rural Credit Cooperatives with mutually binding Interaction), which operates in the three Southern most states in the country with a view to diminishing various costs and to expand its reach through mechanisms of social control of financial services. The main objective here was to understand how social mechanisms are formed and stimulated to induce the sustainability of a microfinance organization of mutually binding proximity which generates positive impact on the life of the beneficiaries. The work examines the structure and the functioning of the Sistema Cresol to understand what mechanisms are used by the organization for increase the diffusion capacity of the credit. The networks which are constituted by family farmers have direct or indirect participation in local social organizations promoting relationships of trust, reducing transaction costs and accelerating the flow of information and innovation.The value of the social network where innumerable relations are established between individuals and organizations, as well as the outlining of programs seeking to attend to the real needs of the beneficiaries, proved to be fundamental for the sustainability of a system of mutually binding microfinances. Key Words: proximity finances, microcredit, family farmers, networks

    1 Eng. Agrnomo, Mestre em Cincia Ambiental pelo PROCAM/USP. [email protected]

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    INTRODUO

    O sistema bancrio possui inmeros mecanismos para reduzir a assimetria de

    informao inerente a toda e qualquer operao de financiamento. Os mais convencionais

    consistem basicamente na obteno de garantias patrimoniais e contrapartidas, no exame

    detalhado do projeto ao qual o crdito se destina e no recolhimento de dados objetivos que

    mostrem a histria individual de cada tomador. Utilizam-se tcnicas estatsticas para o

    estabelecimento de uma espcie de escala de credibilidade, na qual o gerente do banco vai-se

    apoiar para decidir se concede ou no o emprstimo (FERRARY, 1999).

    Alm dos custos que esta operao envolve, evidente que ela tende a excluir

    populaes vivendo em situao de pobreza ou que no possam oferecer contrapartidas

    bancrias significativas. Ao mesmo tempo, a literatura internacional praticamente unnime

    (YARON, 1994; RUTHERFORD, 1998) em mostrar a imensa e diversificada necessidade de

    liquidez por parte de populaes desprovidas do patrimnio e das contrapartidas

    habitualmente exigidas pelos bancos. Esta necessidade acaba-se traduzindo na formao de

    um conjunto muito variado de organizaes capazes, em grande parte, de superar estes

    limites, emprestando para pessoas pobres montantes to pequenos que seriam incompatveis

    com os custos das organizaes bancrias tradicionais. Um trao comum dessas organizaes

    reside na sua capacidade de reduzir custos de transao bancria por meio de organizao

    social.

    O Sistema Cresol de Cooperativas de Crdito Rural com Interao Solidria que

    atua nos trs Estados da regio Sul do Pas - organiza-se em uma rede, buscando formas de

    diminuir os custos e ampliar o alcance de seus servios por meio de mecanismos de controle

    social dos servios financeiros, denominados pela literatura internacional recente de finanas

    de proximidade (SERVET e VALLAT, 2001). O desenvolvimento deste Sistema no se

    sustenta somente pela densidade dessa rede associativa local. Desfruta da admirao de

    grande parte das organizaes governamentais e de organizaes da cooperao internacional

    da Europa por estar construindo uma estrutura slida, que consegue ampliar a oferta de

    servios financeiros a uma populao historicamente excluda do acesso aos bancos.

    A experincia do Sistema Cresol vem demonstrando claramente que possvel

    combater a excluso financeira e social por meio de organizaes financeiras no bancrias,

    representando um dos mais vivos exemplos de inovao institucional no meio rural

    2 Prof. Titular da Faculdade de Economia da FEA/USP e do PROCAM/USP. www.econ.fea.usp.br/abramovay

  • 3

    brasileiro. Dentro desse contexto, o objetivo principal deste trabalho entender quais so e

    como se formam os mecanismos sociais promotores e indutores da sustentabilidade de uma

    organizao de microfinanas de proximidade solidria, geradora de impacto positivo na vida

    dos seus beneficirios.

    A hiptese central do trabalho que a constituio de grupos comunitrios solidrios

    dentro de uma organizao de microfinanas rurais de proximidade cria um sistema eficaz de

    gesto e controle por meio de redes sociais, sustentadas pela articulao e pelos laos de

    confiana entre os agricultores e as organizaes, que dinamizam as oportunidades sociais e

    financeiras de seus cooperados.

    Esta hiptese formulada a partir de dois referenciais tericos: por um lado, a

    economia da informao, que se mostra de grande valia para entender e analisar as

    microfinanas de proximidade; alm disso o trabalho situa-se na fronteira da sociologia

    econmica e da economia institucional.

    1. A SUSTENTABILIDADE DOS SISTEMAS DE MICROFINANCIAMENTO

    Apesar das inmeras polmicas geradas em torno das definies e concepes sobre

    as distintas modalidades financeiras destinadas populaes pobres, as diferentes correntes so

    praticamente unnimes em afirmar que seu objetivo principal ampliar o alcance do

    financiamento de modo a atingir aqueles que no interessam ao sistema financeiro

    tradicional. As diferenas fundamentais repousam nos princpios e metodologias empregados

    para se atingir tal objetivo principal, com destaque para a questo da sustentabilidade

    financeira dos programas.

    Podem-se citar o microcrdito, as microfinanas, as microfinanas descentralizadas,

    as microfinanas de proximidade ou ainda as finanas solidrias como os termos mais

    empregados para definir tais iniciativas. Esses termos so operacionalizados pelos bancos de

    desenvolvimento, pelas cooperativas de poupana e crdito, pelos bancos cooperativos e

    pelas instituies de microfinanas, algumas delas representadas pela chamada indstria das

    microfinanas.

    O microcrdito, a mais antiga das denominaes, o mais comumente empregado

    para definir uma operao de emprstimo de pequenos montantes de recursos (em geral, at

    U$ 500,00). Nesta modalidade no se considera a possibilidade da captao da poupana

    local. J o microfinanciamento, segundo Gentil e Nieuwkerk (1998), caracterizado pela

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    possibilidade e incentivo captao de poupana e investimento da populao local atendida

    pelas organizaes.

    A dcada de 90 foi marcada pela proliferao e consolidao de experincias no

    campo das microfinanas. Essas inmeras experincias, disseminadas principalmente pelo

    Terceiro Mundo, comearam a mostrar resultados expressivos e a despertar interesse por

    parte de pesquisadores e formuladores de polticas pblicas. No campo das cincias sociais,

    os trabalhos sobre microfinanas foram (e ainda so) verdadeiros laboratrios para se estudar

    temas como a coeso de grupos sociais, mudanas institucionais, capital social e, em menor

    escala, diferentes modalidades de crdito em diferentes sistemas produtivos.

    Essas organizaes com destaque para o Grammen Bank, em Bangladesh; o Banco

    Rakyat, na Indonsia; o Banco para Agricultura e Cooperativas Agrcolas, na Tailndia; o

    Banco Sol, na Bolvia, entre outros demonstram, de forma geral, que, apesar de trabalhar

    com um pblico que no possui garantias e demanda pequenas quantidades, representando

    altos custos de transao3, so viveis, porque possuem uma baixa taxa de inadimplncia, so

    pouco dependentes de subsdios e conseguem um elevado alcance do pblico alvo, ao mesmo

    tempo em que esto contribuindo para tirar uma parcela da populao do estgio de pobreza

    em que se encontra (YARON, 1994).

    O ano de 1997 foi um marco para as microfinanas, em virtude da grande Conferncia

    Global sobre Microcrdito denominada Microcredit Summit, realizada em Washington DC,

    Estados Unidos. Na ocasio, celebrou-se o sucesso dessa promissora modalidade de

    enfrentamento da pobreza com um compromisso mais ousado: atingir a meta de

    financiamento a 100 milhes de famlias pobres at 2005 em todo mundo. No Brasil, esse

    movimento ainda pouco expressivo, representado por experincias ainda tpicas e

    localizadas, mas com um potencial espetacular de crescimento.

    Depois de uma certa euforia inicial espalhada pelos quatro cantos do mundo, autores

    como Gonzalez Vega (1998) e Morduch (1999, 2000) alertam que as virtudes e trunfos at

    ento pouco questionveis devem ser tratados com mais cautela.

    Parece certo que alguns programas tm alcanado progressos considerveis em termos

    de alcance e sustentabilidade. Isso lhes tem permitido expandir a oferta de servios

    financeiros a clientelas desprovidas de garantias, feito que h pouco mais de duas dcadas era

    considerado impossvel.

    3 Adota-se aqui a definio de custo de transao baseada em NORTH (1990): custo de transao diz respeito informao e incerteza; so as razes que fazem com que as decises dos agentes com freqncia no reflitam simplesmente um clculo de custo de oportunidade.

  • 5

    Por outro lado, o nmero de programas realmente bem sucedidos bastante reduzido,

    uma vez que a sustentabilidade da maioria das organizaes de microfinanas muito

    questionvel. Segundo Gonzalez Vega (2000), a histria das microfinanas est repleta de

    intenes que acabaram fracassando, devido utilizao incorreta de servios financeiros

    com o propsito de alcanar resultados de maneira distorcida. O fracasso dessas tentativas

    causou inmeros danos, e os principais prejudicados foram os prprios setores da populao

    que se buscava beneficiar.

    1.1 A assimetria de informao nas atividades de crdito: o desafio das microfinanas

    O que est em jogo aqui entender que toda transao financeira um contrato

    intertemporal de cumprimento incerto. A troca entre o credor e o tomador no se apia em

    bens materiais, mas na capacidade futura de honrar compromissos. A rentabilidade das

    organizaes creditcias depender, portanto, da qualidade da avaliao de riscos, ou seja, da

    antecipao da confiabilidade dos devedores. Na origem da relao de troca, h uma

    assimetria de informao entre o tomador e o credor. Ambos possuem condies distintas

    para avaliar o risco envolvido no projeto financiado e na disposio em pagar (AKERLOFF,

    1970; HOFF, BRAVERMAN e STIGLITZ, 1993). Essa assimetria de informao gera dois

    tipos de problema: a seleo adversa e o risco-moral4.

    Efetivar mecanismos de seleo e monitoramento coerentes com os propsitos das

    organizaes - aliando sustentabilidade institucional, maior alcance do crdito e taxas de

    juros condizentes com as condies dos potenciais beneficirios - a questo central das

    finanas de proximidade.

    Muitas organizaes de microfinanas insistem em pautar suas aes a partir de

    estratgias adotadas historicamente pelos bancos de desenvolvimento5. possvel afirmar

    que os critrios em que baseiam sua atuao - alcance e subsdios - no garantem a

    sustentabilidade dessas organizaes financeiras, seja esta sustentabilidade entendida no

    mbito financeiro ou no social.

    Mais uma sria de organizaes de microfinanas preconizam uma abordagem que

    valoriza acima de tudo a sustentabilidade financeira. Uma abordagem que est sob a proteo

    da crescente indstria das microfinanas. Esse movimento enxerga o papel dos mercados

    4 Ver Stiglitz e Weiss (1981). 5 Ver Gonzalez Vega (1998)

  • 6

    financeiros como uma intermediao de recursos mais eficiente para atenuar o problema dos

    elevados riscos nas operaes de crdito e os seus elevados custos de transao.

    Essa viso vem sendo bastante difundida entre organismos internacionais, dentre eles

    a Agncia do Banco Mundial especializada em microfinanas, (CGAP - Consultantive Group

    to Assist the Poorest). Segundo este ponto de vista, uma boa organizao de microfinanas

    aquela que apresenta princpios de um bom banco comercial e que ter a capacidade de

    crescer sem depender das polticas dos doadores. Essa organizao ser capaz de servir mais

    e melhor o pblico alvo do que programas subsidiados. O que est em jogo a o acesso ao

    crdito e no propriamente quanto custa esse crdito, ou seja, existe a demanda por crdito e

    no exclusivamente por crdito barato com taxa de juros subsidiada.

    bem verdade que as assim chamadas melhores prticas devem ser levadas em

    conta para a efetividade de um programa de microfinanas. Porm, privilegiar a qualquer

    custo prticas sustentveis de gesto financeira em detrimento de um olhar mais reflexivo e

    ponderado sobre a convenincia de se manter ou no subsdios em determinados casos pode

    tirar o foco do objetivo principal desses mecanismos de financiamento, que o impacto

    social positivo visando a melhoria da qualidade de vida das famlias (ZELLER e SHARMA,

    1998).

    Contudo, no possvel negar que a sustentabilidade econmica de uma organizao

    de microfinanas condio para que possa prestar um servio eficiente a seus associados e

    contribuir para difundir, no plano local, a noo da responsabilidade individual sobre os

    emprstimos tomados. Isso no significa, entretanto, que uma organizao dessa natureza no

    possa atuar como intermediria de polticas governamentais de subsdios ou transferncia de

    renda. o que acontece hoje, por exemplo, na relao entre o Sistema Cresol e o PRONAF.

    A poltica subsidiada, mas esses subsdios no se transferem para as cooperativas de

    crdito, embora elas atuem na sua intermediao.

    O importante reconhecer que, para qualquer organizao de microfinanas que

    pretenda cumprir seus objetivos econmicos e sociais, existe um trade-off entre os objetivos

    de ampliar a base social em direo aos mais pobres e garantir a sade financeira da entidade.

    As microfinanas de proximidade pretendem alcanar justamente a virtude de reduzir

    a separao entre sade financeira e alcance de objetivos sociais, como vem mostrando a

    experincia do Sistema Cresol. Lapenu e Wampfler (1997) observam que os sistemas de

    microfinanciamento privilegiam sobretudo a proximidade geogrfica, temporal e social com

    seu pblico, alm da liberdade da utilizao dos fundos sem fins produtivos e pelo intuito de

  • 7

    se responder de forma duradoura s demandas, ao mesmo tempo em que se busca atingir

    gradativamente seu equilbrio financeiro.

    Esses sistemas privilegiam uma gesto scio-econmica na qual a percepo subjetiva

    do potencial tomador de emprstimo pelo credor e a aquisio compartilhada de informaes

    gerais e especficas conseguidas atravs das redes sociais vo ser determinantes na deciso de

    conceder ou no emprstimo. Portanto, para as organizaes de proximidade, princpios e

    mtodos tendem ir alm de uma nica estratgia de pagamento. Constitui-se como um

    conjunto de atributos e condies necessrias e indispensveis para o cumprimento de seus

    objetivos. o que ser examinado a seguir.

    1.2 Microfinanas de proximidade: as condies necessrias para a sustentabilidade

    A experincia do Grammem Bank (YUNUS,2000) abordada em inmeros estudos

    mostra claramente a construo de um sistema de microfinanas de proximidade, merecendo

    destaque quatro aspectos no triviais: a distino entre microfinanas e microcrdito; o

    potencial de mobilizao da poupana e investimento locais; o financiamento conjunto das

    unidades de consumo e de produo; e as redes de relaes sociais entre indivduos como

    modalidade no patrimonial de garantia.

    Abramovay (2001 a) alerta que a viso unilateral de enxergar o potencial beneficirio

    como mero receptor de recursos financeiros um preconceito enraizado nas organizaes

    nacionais e internacionais que trabalham com o tema. A necessidade de captar poupana -

    tanto quanto conceder emprstimos - um elemento fundamental tanto para a

    sustentabilidade da organizao creditcia como para satisfazer as necessidades do pblico

    excludo do acesso ao sistema bancrio. Isso pode ser comprovado pelos estudos feitos por

    Robinson (1994) ao mostrar que, para a maioria da populao empobrecida, o investimento

    mais importante do que o crdito.

    No se pode negar que, em muitos casos, uma primeira reserva garantida destinada a

    satisfazer necessidades urgentes antes de se pensar em investir. Porm, a existncia de um

    forte setor financeiro informal rural um indicador bastante expressivo da capacidade de

    mobilizar e captar esses recursos. O investimento e a poupana das famlias de baixo poder

    aquisitivo dependem da existncia de instituies financeiras e servios de poupana

    apropriados. Entretanto, a grande maioria das organizaes de microfinanciamento tem

    oferecido apenas crdito e a mobilizao de poupana se constitui em mera promessa

    (FIEBIG et al, 1999).

  • 8

    Weinmann (1998) citado por Clerex et al (2000) alerta que incluir a captao de

    recursos locais contribui para a sustentabilidade da organizao por trs razes: em primeiro

    lugar, a reduo da dependncia de recursos externos facilmente notvel. A seguir, criam-se

    interesses sociais por parte do beneficirio-investidor para com a organizao. Taxas de juros

    mais perto das de mercado e medidas para reduzir a inadimplncia so aceitas mais

    facilmente. Neste caso, trata-se de dinheiro quente que gerado e manejado por meio das

    relaes de reciprocidade, ajuda mtua e compromissos sociais locais em contraste com o

    dinheiro frio que vem de fora e temporrio ou sazonal por definio. A terceira razo

    diz respeito prpria diversificao dos servios financeiros, o que contribui com a

    diminuio dos riscos.

    A grande dificuldade do mecanismo de captao voluntria o custo envolvido na

    operao. Para se garantir o recurso poupana voluntria deve-se possuir uma estrutura

    adequada de coleta que possibilite a administrao de muitas pequenas contas. Estudos

    realizados por um grupo de trabalho criado pela CGAP (1996) em quatro organizaes

    creditcias receptoras de emprstimos6 mostram que o nmero de poupadores supera o

    nmero de tomadores de crdito em duas a oito vezes. Parece, ento, muita ingenuidade e

    fatalismo imaginar que, por serem pobres, os beneficirios devem permanecer em estado de

    alerta aguardando o que est por ser distribudo.

    Essa viso continuar vigorando enquanto os tomadores de deciso enxergarem as

    organizaes de microfinanas como enxergaram historicamente as organizaes que

    trabalharam com financiamento rural durante anos: como programas sociais altamente

    subsidiados travestidos de financiamento (JUNQUEIRA,2003).

    O terceiro aspecto a necessidade de distinguir a qualquer custo os financiamentos

    produtivos dos financiamentos destinados ao consumo da famlia, mesmo observando a

    fungibility7 do crdito, sobretudo para as famlias mais empobrecidas.

    Muitas organizaes consideram como desvio a atitude daqueles que no aplicam

    integralmente os recursos nas atividades produtivas. Zeller e Sharma (1998), em uma ampla

    pesquisa realizada em nove pases em desenvolvimento, mostraram que nas famlias pobres

    no possvel separar as esferas de consumo das esferas produtivas8.

    6 BAAC Tailndia, BCS Colmbia, BRI Unidad Desa Indonsia e RBP Filipinas. 7 Uma traduo para o portugus poderia ser fungibilidade, referente ao carter fluido e dinmico do crdito, a sua plasticidade funcional que o faz servir ao mesmo tempo s necessidades do negcio e da famlia.. 8 Chayanov (1986), em seus estudos sobre o campesinato russo, j havia mostrado que a fuso entre a unidade de produo e de consumo o trao caracterstico das famlias camponesas e das que vivem do artesanato.

  • 9

    Na concepo dos autores, a viso disseminada, que consiste em emprestar somente

    para atividades produtivas estritamente definidas, raras vezes impede que as famlias rurais

    desviem os fundos de emprstimo produtivo s necessidades de consumo, pois as

    organizaes de microfinanas no tm nem tempo nem recursos suficientes para

    supervisionar a utilizao dos emprstimos. Isso refora a necessidade dessas organizaes

    ofertarem servios financeiros que respondam efetivamente s demandas dos potenciais

    beneficirios: emprstimos que possam se integrar ao conjunto das necessidades da

    reproduo familiar. Enfim, existe uma real demanda voltada s organizaes de

    microfinanas na direo de desenharem produtos com livre disponibilidade para sua

    utilizao, diferente do crdito dirigido e supervisionado nos moldes tradicionais.

    O quarto aspecto a ser observado a forma de garantia solidria encontrada pela

    maioria das organizaes de microfinanas bem sucedidas, ou seja, a forma desenhada para

    resolver (ou atenuar) o problema de informao nas atividades de crdito.

    A vasta literatura internacional sobre o tema aponta para a importncia da confiana

    na presso dos grupos solidrios atravs de mecanismos de responsabilidade coletiva. Em

    muitos programas, a constituio de grupos condio necessria para a tomada do

    emprstimo. Esses grupos so responsveis pela seleo dos beneficirios, criando

    mecanismos que vinculam socialmente um tomador ao outro: a liberao de um emprstimo

    depende do pagamento do outro. So mecanismos que diminuem os custos de transao,

    facilitam o acesso aos servios financeiros, no demandam garantias reais e ajudam a

    diminuir as taxas de juros e o ndice de inadimplncia atravs de um monitoramento

    invisvel efetivo (LEDGERWOOD, 1999).

    Otero e Rhyne (1994) demonstram que os grupos de emprstimo solidrio no s

    ajudaram as populaes mais pobres a gerar renda e emprego, como serviram como um

    potente recurso de fortalecimento e participao nas comunidades desprovidas de

    organizao social. Muitos dos elementos dessa metodologia bsica - os grupos solidrios -

    derivam dos, j difundidos, modelos denominados de ROSCAs (Rotating Savings and Credit

    Associations)9.

    Trabalhar atravs de tecnologias creditcias fundamentadas no indivduo ou no grupo

    uma deciso estratgica que a organizao deve tomar. Nem sempre o grupo solidrio a

    melhor alternativa. Estudando as taxas de reembolsos dos emprstimos em Burkina Faso,

    9 Nesses modelos, os membros contribuem regularmente com uma quantia semanal ou mensal para um fundo cujo montante recebido e, aps o prazo estipulado, devolvido - por cada membro do grupo, um de cada vez, a intervalos regulares, normalmente de uma semana, uma quinzena ou um ms.

  • 10

    Paxton (1996) assinalou que, em condies de crise, o no pagamento de um membro pode

    causar um efeito sistmico em toda a comunidade.

    Essas formas adaptadas de presso social levam os grupos solidrios,

    obrigatoriamente, a assumir custos de transao e responsabilidades, isto , aqueles que antes

    eram assumidos pelas organizaes financeiras passam a ser assumidos, em grande parte,

    pelos indivduos: um aprimoramento institucional que requer condies sociais e mecanismos

    de gesto financeira e administrativa bastante avanados.

    Observa-se que a conjuno desses quatro elementos uma pista encorajadora para

    garantir a sade financeira da organizao, ao mesmo tempo em que se preocupa com as reais

    demandas dos beneficirios, princpio bsico das microfinanas de proximidade.

    2. REDES SOCIAIS E CONFIANA NOS SERVIOS FINANCEIROS

    As prticas de gesto do Sistema Cresol aliceram-se numa lgica muito prxima do

    que Coleman (1988) demonstra ao explicar o xito de iniciativas econmicas pelo impacto

    das ligaes sociais que o agente econmico estabelece com os membros de seu crculo de

    relacionamentos scio-econmicos.

    A base dessa explicao pode ser complementada a partir do campo terico da

    sociologia econmica, com destaque para Granovetter (1985), para o qual as aes

    econmicas so determinadas pelo modo como se do as relaes sociais entre os agentes a

    envolvidos. Essas relaes sociais e econmicas esto imersas10 em redes de relaes

    sociais, fundamentadas no poder estabelecido pela confiana recproca, tanto para o

    desenvolvimento das interaes de mercado quanto para o estabelecimento das interaes

    sociais mais abrangentes. Essa imerso refora o papel das relaes sociais na gerao da

    confiana e no desencorajamento da malversao, ao mesmo tempo em que no faz predies

    de ordem universal, assumindo que os detalhes de cada estrutura social sero determinantes

    para a anlise de cada situao.

    Ferrary (1999) faz um interessante estudo na fronteira entre a economia institucional e

    a sociologia econmica sobre a importncia das redes de relaes sociais na avaliao dos

    emprstimos bancrios. O principal ensinamento que as redes sociais - em razo dos

    compromissos ligam alguns de seus membros e da natureza da informao que nelas circula -

    modificam a prpria regulao econmica. Nesse contexto, o autor define redes sociais como

    10 Traduo livre do termo embeddedness.

  • 11

    grupos de indivduos entre os quais a freqncia de interaes econmicas e a densidade das

    relaes sociais permitem reduzir a incerteza ligada ao risco moral, permitindo discernir

    precisamente os membros desonestos dos honestos.

    A primeira caracterstica dessas redes que a informao que interessa aos seus

    membros circula muito depressa e os efeitos da reputao se disseminam rapidamente entre

    eles, conduzindo a uma assimetria de informaes entre os membros e os no membros da

    rede. A segunda o reconhecimento pessoal existente entre os membros da rede: interagir

    com um dos membros pode equivaler a interagir com toda a rede.

    Por trs de um suposto altrusmo, existe, de fato, uma racionalidade econmica em

    que os horizontes temporais e sociais so diferentes tanto do ideal tpico do funcionamento

    dos mercados, quanto do voluntarismo encantado da economia solidria, ou seja, a relao

    de confiana, na maioria das vezes, construda com o objetivo de obter as informaes que

    otimizem as decises. Essa otimizao no se d no quadro de uma troca nica e

    interindividual, como o supe a teoria neoclssica. As instncias tomadoras de decises da

    cooperativa do Sistema Cresol, por exemplo, otimizam uma pluralidade de trocas no quadro

    de uma relao durvel com o associado. Sob o ngulo terico o interessante observar a

    coerncia entre a abordagem que enfatiza as redes sociais e o fundamento das condutas de

    seus membros em princpios que podem ser estudados luz do individualismo metodolgico.

    O custo e a dificuldade em se diminuir a assimetria de informao nas atividades de

    crdito por meio dos mtodos bancrios tradicionais podem ser equacionados pela qualidade

    das ligaes sociais entre os emprestadores e os credores nas finanas de proximidade: a

    densidade das relaes interpessoais permite o acesso a informaes inacessveis num quadro

    de relaes estritamente profissionais e com dados puramente cadastrais. A confiana toma

    aqui, a forma de uma organizao social que permite trocas que no se realizariam num

    quadro de mercado idealmente organizado ou com base em informaes puramente objetivas

    a respeito de patrimnio, renda, idade, etc. Essas trocas sero regidas por uma relao de

    confiana, ainda que as informaes captadas por cada um dos agentes reduzam o risco moral

    que influencia as trocas e favorece as antecipaes positivas.

    O cacife do agente econmico que concede o crdito sair de uma interao

    puramente profissional para uma interao mais informal e imersa (embedded) na vida

    local. Essa proximidade afetiva e moral entre este agente e o candidato ao emprstimo tem

    duas funes: permitir ao credor compreender melhor as especificidades da atividade

    profissional de seu cliente e conseguir informaes s quais no teria acesso numa relao

    puramente profissional, podendo, inclusive, obt-las de maneira indireta, atravs das redes

  • 12

    sociais. Nota-se que, no caso das cooperativas de crdito, esses atributos esto construdos a

    priori, antes mesmo da existncia dessas organizaes financeiras, na maioria dos casos.

    O lao social construdo de maneira durvel entre a cooperativa de crdito e os

    associados ser determinante no cumprimento da misso institucional. A identificao das

    redes sociais e dos entrelaamentos de convergncia de informaes para essas redes

    constitui uma dimenso fundamental da atividade dos dirigentes da cooperativa. O

    desenvolvimento da cordialidade ou da intimidade nas relaes interpessoais, a troca de

    informaes baseada em recomendaes e a participao na vida social da comunidade visam

    a inscrever as relaes comerciais num contexto estratgico de trocas sociais.

    Uma vez que a confiana entre instncias diretivas da cooperativa e o associado

    estabelecida, assiste-se a uma outra forma de regulao das trocas. A concorrncia no se faz

    mais fundamentalmente em torno de valores e taxas. A negociao sobre os crditos e a

    concorrncia sistemtica com a rede bancria em torno de juros ser menos importante que o

    horizonte de estabilidade na relao entre o cooperado e a organizao. Isto dito,

    interessante observar que as taxas de juros cobradas pelas cooperativas nos emprstimos e a

    remunerao paga na captao so sistematicamente mais interessantes que as dos bancos, o

    que se explica por seus menores custos de operao.

    Essa menor sensibilidade s taxas em sentido estrito no deve ser interpretada

    simplesmente como altrusmo, mas como uma evoluo qualitativa e temporal do clculo de

    rentabilidade. A permanncia da relao permite organizao financeira reduzir os custos

    de informaes necessrios para lidar com a incerteza. Por sua parte, o associado se

    reconhecer negociando as condies dos servios financeiros ofertados em funo de uma

    gratido presente e de uma grande confiana futura em sua cooperativa.

    Por outro lado, a relao de confiana entre os membros da mesma rede social pode

    ser abastecida de novos associados. A existncia de um lao social preliminar com algum

    membro da comunidade determinante chegada de novos scios11.

    As condies de existncia e do fortalecimento dos laos de confiana nas trocas

    econmicas so centradas em trs aspectos centrais, segundo Ferrary (1999): a) a

    proximidade geogrfica dos contratantes; b) a temporalidade da relao de troca; e c) a

    modificao da natureza da relao profissional.

    11 Os mtodos bancrios convencionais de desenvolvimento da clientela supem a identificao de uma populao alvo, a realizao de uma mala direta, contatos telefnicos e marcao de encontros, pois no existe nenhum lao social, direto ou indireto, preliminar relao comercial entre o agente econmico e o potencial tomador.

  • 13

    A primeira condio necessria construo do lao interpessoal de confiana a

    proximidade geogrfica, pois ela favorece a qualidade da relao interpessoal. Nesse

    contexto, a proximidade fsica entre o dirigente e o associado que vai condicionar a

    qualidade da relao interpessoal.

    A segunda condio a inscrio da relao de troca na temporalidade, atravs da

    qual se reduz o custo do acesso informao, pois isso permite uma aprendizagem mtua

    entre os agentes. O interesse dos credores inscrever a relao de emprstimo numa lgica

    de jogo repetido com os mesmos jogadores, quando estes passam a aprender com a

    experincia e no numa lgica de transao nica (AXELROD, 1997). A regularidade da

    relao geradora de informaes e fonte de aprendizagem. Desta forma, todo associado que

    tem uma relao durvel com sua cooperativa ter vantagem sobre os demais e poder se

    beneficiar de maior confiana da parte dos seus dirigentes12. Quando no h passado comum

    entre a cooperativa e o associado, falta uma parte importante para diminuir a incerteza que

    pesa sobre as transaes, mesmo o associado tendo sido aceito em assemblia geral dentro

    das regras em vigor. As negociaes sucessivas correspondem a uma aprendizagem mtua,

    sobre a qual se apia a confiana que simplifica as negociaes futuras. A confiana est

    ligada ao interconhecimento que permite antecipar um comportamento confivel da outra

    parte e, assim, reduzir o risco moral na troca.

    Mas a proximidade e a temporalidade da relao de troca no so suficientes para

    estabelecer um lao forte de confiana. A relao deve igualmente evoluir para que se crie

    um vnculo, para alm da relao profissional, entre os agentes. Assim, a relao profissional

    se dar num contexto de relaes informais que consiste em mudar as informaes sem lao

    direto com o projeto e so, a priori, extra-profissionais. Inversamente, o tomador de

    emprstimo que quer ganhar a confiana de seu credor tem o interesse de conceder o mximo

    de informaes e estabelecer relaes de amizade com os agentes econmicos.

    A personalizao das relaes supe um certo nmero de atos simblicos, tais como

    os servios pessoais que embasam a relao, que passam a ser no mais de ordem

    estritamente profissional. A alterao de uma relao estritamente profissional para uma

    relao amigvel bastante diferente. Ela passa a no ser mais estritamente econmica e

    integra uma dimenso social e psicolgica. Assim, para o credor, quando o seu cliente falha,

    a rede social que se mobiliza e no s o prprio credor. Inversamente, para um empresrio

    12 Por princpio cooperativista, todos os scios teriam esta relao durvel enquanto tivessem integralizado suas cotas-partes na cooperativa. Entretanto, notrio que essa relao muitas vezes no passa de meramente mercantil para garantir o acesso aos servios financeiros ofertados pela cooperativa.

  • 14

    que toma o emprstimo, falhar nos seus negcios pode significar a perda da estima da parte

    de seu banqueiro e a destruio da confiana acumulada. coero jurdica e legal se acresce

    uma coero moral e social. No caso de uma cooperativa de crdito, o associado estar mais

    interessado e disposto a acessar os servios financeiros disponveis e participar dos espaos

    existentes para se manter prximo organizao.

    A seguir, ser apresentada a metodologia utilizada para a investigao enfocada no

    presente estudo, e, posteriormente, a estrutura e o funcionamento do Sistema Cresol, junto

    com as evidncias da rede social.

    3. METODOLOGIA

    Para o levantamento das informaes, foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas

    com os agricultores que acessam servios financeiros, entrevistas com assessores da Baser

    Base de Servios do Sistema Cresol e com dirigentes da cooperativa singular de Francisco

    Beltro, entrevistas com dirigentes da Assesoar13, visitas s propriedades de agricultores e

    coleta e anlise de materiais e dados produzidos pelo Sistema Cresol e pela Assesoar. Essas

    entrevistas foram manuscritas de acordo com a relevncia das informaes coletadas dentro

    do propsito da pesquisa.

    As visitas foram acompanhadas pelo tcnico agrcola da cooperativa singular de

    Francisco Beltro e, algumas delas, por assessores da Baser, j que as famlias a serem

    entrevistadas no tinham qualquer tipo de contato anterior com a equipe de pesquisadores.

    Esses momentos foram importantes, j que possibilitaram aos pesquisadores o contato

    cotidiano com um dos momentos chave do funcionamento de um sistema de cooperativas de

    crdito. A participao viabilizou o contato com representantes do conjunto das cooperativas

    singulares, possibilitando o mapeamento das interconexes da rede social.

    13 Associao de Estudos, Orientao e Assistncia Rural, ONG local formada em 1962 e cujo trabalho de base responde, em grande parte, pela densidade do tecido social e organizativo da regio.

  • 15

    4. RESULTADOS E DISCUSSO

    4.1 Sistema Cresol de Cooperativas de Crdito Rural com Interao Solidria: A

    construo de uma rede solidria

    Existiu entre os anos de 1989 e 1995 um Fundo de Crdito Rotativo, sob execuo e

    responsabilidade jurdica da Assesoar, quando passou a ser administrado pelo Sistema

    Cresol. Nesse perodo, foram apoiados aproximadamente 180 projetos, com uma dotao

    oramentria de R$ 950.000,00 nos valores atuais. Isso no passa de R$ 5.500,00 por projeto,

    e R$ 158.000,00 por ano, num montante equivalente a 95 mil sacas de milho pelo preo

    mnimo oficial (ASSESOAR, 1997).

    J no incio da dcada de 90 comeava-se a colocar em xeque a abrangncia e a

    sustentabilidade administrativa e financeira desses fundos. A avaliao realizada por Miranda

    e Abramovay (1996) sobre a gesto e o impacto do Fundo de Crdito Rotativo administrado e

    executado pelo Centro Vianei de Educao Popular no Oeste Catarinense foi enftica em

    apontar a ineficincia e o clientelismo como marca registrada dos fundos rotativos formados

    com recursos de organizaes internacionais de desenvolvimento em diferentes reas do

    Brasil rural. Com o intuito de privilegiar indivduos e grupos que participavam dos

    movimentos, acabavam por perder seu carter pblico e deixavam de contribuir para o

    processo de organizao autnoma da sociedade civil na regio. O resultado era uma mistura

    especialmente nefasta de clientelismo com inadimplncia generalizada.

    A conjuno de diversos fatores favorveis no mbito nacional e local em meados da

    dcada de 90 cria condies favorveis ao aprimoramento e institucionalizao de

    modalidades alternativas de financiamento, como as cooperativas de crdito. No mbito

    nacional, o fim da cultura inflacionria, a partir do ano de 1994, e o fortalecimento da

    agricultura familiar como categoria; e, no mbito local, o resultado da longa histria de lutas

    e conquistas, implicando no amadurecimento institucional das organizaes sociais,

    constituram-se como ingredientes fundamentais para o nascimento do Sistema Cresol, como

    forma de impedir que os fundos rotativos tivessem, no Sudoeste do Paran, o destino que

    acabaram tendo em outras localidades do Pas.

    Entre 1995 e 1996 foram criadas as primeiras cinco Cresols. A base inicial dessas

    cooperativas era formada por diversos grupos e associaes de agricultores familiares

  • 16

    articulados por meio do trabalho de organizaes no governamentais, sindicatos de

    trabalhadores rurais e pela prpria igreja, que atuavam na regio14.

    As primeiras cinco cooperativas reuniram as condies para a constituio da

    Cooperativa Base Central de Servios Cresol CRESOL/BASER, como forma de dar

    suporte ao sistema. Essa central tem um papel fundamental, pois concentrou os esforos para

    garantir o funcionamento das cooperativas de crdito, que naquele momento careciam de

    informaes bsicas sobre o funcionamento e a gesto deste tipo de organizao.

    medida que as primeiras cooperativas foram se estruturando, cresceu a demanda,

    tanto por parte das organizaes de agricultores familiares como de prefeituras, pela criao

    de novas organizaes financeiras nos moldes do Sistema Cresol em outros municpios. Entre

    1998 e 1999 ocorreu a entrada do Sistema Cresol no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina,

    quando foram criadas nove Cresols. Em 2000, com a mudana da resoluo do Banco

    Central que regulamenta as cooperativas de crdito no Brasil, a Cresol-Baser alterou sua

    identidade jurdica, passando de uma Cooperativa Central de Servios para uma Cooperativa

    Central de Crdito.

    Seu desenvolvimento, ao longo dos anos, foi bastante acelerado. Se, em dezembro de

    1995, a organizao possua 120 scios, em setembro de 2002 j contava com o

    extraordinrio nmero de 25.780 associados, distribudos em 67 cooperativas singulares

    filiadas sendo trinta e oito no Paran (regies Sudoeste, Centro e Oeste), quinze em Santa

    Catarina (Oeste e Serrana) e catorze no Rio Grande do Sul (Erechim e Constantina), atuando

    em 198 municpios nesses trs estados, repassando na safra 2002/2003, aproximadamente R$

    50.000.000,00 de crdito rural. O patrimnio lquido dos associados era de R$ 8.145.000,00 e

    a poupana local15 de R$ 25.757.000,00.

    4.2. Premissas e objetivos: um sistema diferente

    O Sistema Cresol pretende no apenas garantir o acesso dos agricultores ao crdito

    mas tambm viabilizar o trip do desenvolvimento socialmente, economicamente e

    14 Os primeiros dirigentes do Sistema Cresol, por se considerarem incapazes de fazer a gesto administrativa financeira de uma organizao desta natureza, buscaram profissionais com experincia na rea, para administrar suas cooperativas. Os resultados dessa deciso quase levaram as cooperativas bancarrota nos seus primeiros anos de vida. Desvios de recursos e m administrao, fora dos princpios e valores do Sistema, aliados inexperincia inicial, levaram os ndices de inadimplncia s alturas. Aps esse difcil incio, a necessidade fez com que a formao do quadro de dirigentes passasse a ser uma prioridade pautada no trabalho denominado de controle social do crdito (JUNQUEIRA,2003:90). 15 Somatria dos depsitos vista e a prazo dos associados.

  • 17

    ambientalmente sustentvel: na viso de seus dirigentes, o crdito um meio para levar

    adiante um conjunto de objetivos ligados luta pela justia social e pela preservao

    ambiental, caractersticos do ambiente cultural em que se formaram as mais importantes

    organizaes da sociedade civil do Sudoeste do Paran desde, no mnimo, a fundao da

    Assessoar: no se pode esquecer que o Sudoeste do Paran foi o palco da famosa revolta de

    1957, uma das raras, no Brasil, que resultou em vitria dos agricultores (Abramovay, 1982).

    Nada menos do que 50% dos associados encontram-se organizados em algum grupo

    comunitrio. O maior ndice de organizao est no Paran, justamente em virtude da histria

    da regio Sudoeste (tabela 1):

    Tabela 1 - O Sistema Cresol organizado

    Estado N de associados % associados organizados em grupos PR 10.313 57,93 %

    RS 3.139 46,72 %

    SC 4.462 25,95 %

    TOTAL 18.604 50,34 %

    Fonte: CRESOL (2002 a)

    luz das contribuies e anlises sobre as redes sociais, apresenta-se o mapeamento

    do amplo espectro das relaes sociais estabelecidas pelo Sistema Cresol, mostrando sua

    capacidade de tecer essa complexa rede e criar capital social, equilibrando o enraizamento na

    comunidade e a autonomia, vista, como a capacidade de os indivduos se relacionarem com

    grupos mais ampliados, mantendo, ao mesmo tempo, independncia perante as autoridades

    polticas locais.

    A apresentao dessa rede apia-se nos trabalhos de CALLON (1998). O autor afirma

    que o enquadramento uma operao usada para definir agentes indivduos ou grupos

    que so claramente distintos e dissociados. Entretanto, sugere o autor, todo enquadramento

    produz transbordamento, em virtude da impossibilidade de delimitar precisamente tal rede.

  • 18

    4.3. A rede do Sistema Cresol e suas relaes

    O quadro acima, elaborado com base na tcnica denominada de eco-mapeamento

    (LARGE, 1991), permite visualizar de que maneira se d a presena dos diversos atores

    (locais, regionais, nacionais e internacionais) que apresentam uma interface direta ou indireta

    com o Sistema Cresol. O crculo pontilhado delimita a natureza e o tipo de vnculo entre os

    atores e o Sistema Cresol, ou seja, o que Callon (1998) chama de enquadramento.

    Na parte de fora do crculo, encontram-se os atores externos, com os quais o

    Sistema mantm relaes. So grupos que vo alm da rede de relaes locais e que tm

    trazido ganhos significativos para o desenvolvimento da instituio.

    STRs

    Associaes Locais

    ASSESOAR

    MDA

    BNDES

    BANCO DO BRASIL

    BRDE

    CRESOL/BASER

    Misereor -

    Alemanha

    ACT -

    Blgica

    Frente Sul da Agricultura Familiar

    ADS / CUT FETRAF

    Agentes Comunitrios de Desenvolvimento e Crdito

    Ongs locais

    Fundao Rabobank-

    Holanda

    DESER

    Cooperativas singulares

    ASCOOB

  • 19

    Atores Externos:

    Organizaes pertencentes Cooperao Internacional Europia: apiam

    financeiramente o desenvolvimento de projetos locais a fundo perdido. Esses apoios

    esto legitimando internacionalmente o Sistema Cresol junto Unio Europia.

    Organizaes Governamentais: dentre elas bancos oficiais e, mais especificamente,

    um rgo da esfera federal ligado diretamente agricultura familiar. As relaes com

    esse grupo acontecem em diferentes nveis: prestao de servios financeiros, repasse

    de recursos oficiais, apoio a projetos de fortalecimento institucional e articulao

    poltica.

    Organizaes No Governamentais com atuao no nvel estadual e federal: so

    entidades de representao poltica e de fomento e apoio aos anseios dos agricultores

    familiares. Projetos de pesquisa e de carter tcnico comeam a ser realizados em

    parceria com organizaes como a ADS/CUT (Agncia de Desenvolvimento

    Solidrio da Central nica dos Trabalhadores) e o DESER (Departamento de Estudos

    Scio-Econmicos Rurais).

    Um outro grupo de atores est posicionado dentro e fora do crculo, isto , so atores

    que estabelecem relaes com o Sistema Cresol de uma maneira mais prxima e de forma

    mais horizontalizada, mas no fazem parte do Sistema. Em algumas ocasies, os cooperados

    participam inclusive dessas entidades.

    Atores Internos:

    Sindicatos de trabalhadores rurais e organizaes no governamentais locais: em

    todos os municpios onde esto presentes as cooperativas singulares existe a atuao

    dos STRs. Em alguns casos, a parceria bastante estreita, dividindo inclusive

    instalaes e sedes. Em relao s organizaes no governamentais, essas tm

    atuao local ou regional, dependendo do tipo de atividade. Uma especial ateno

    deve ser dada Assesoar, em funo da sua importncia histrica na constituio do

    Sistema Cresol.

  • 20

    Associaes locais: representam uma importante fora para o enraizamento das

    relaes.

    Por ltimo, temos os atores componentes: aqueles que fazem funcionar e so a

    razo de ser dessa organizao. A distino dos entes desse complexo sistema importante

    para entender como se do as relaes e os conseqentes desafios a serem superados.

    Atores Componentes

    Cooperativas Singulares: representam o sangue do sistema. Sessenta e sete

    organizaes (67), reunindo mais de 25.000 cooperados, cada uma com dinmica

    prpria e autonomia na tomada de decises.

    CRESOL/BASER: A Base de Servios do Sistema Cresol passou tambm a ser a

    cooperativa central do Sistema, no final de 2000, em funo de vantagens aferidas

    perante a legislao vigente. Sua importncia estratgica deve-se ao fato de reunir

    uma srie de recursos financeiros e tcnicos que so legitimados pelas cooperativas

    singulares, e que so utilizados como moeda de negociao perante essa densa rede.

    Todas as negociaes com os atores externos so feitos pela Central. Constitui-se,

    de fato, um representante fiel das cooperativas singulares.

    Agentes Comunitrios de Desenvolvimento e Crdito: representam o pulmo do

    Sistema, como figuras responsveis por manter em constante ligao a cooperativa

    singular e seus cooperados.

    Por um lado, os atores componentes e suas relaes marcam e reforam a

    importncia da rede associativa local. Por outro, a rede associativa local no capaz de

    deflagrar um processo de desenvolvimento local por si s e garantir a dinamizao social e

    econmica local (ABRAMOVAY, 2001 b).

    Sem dvida, inovao o que no falta na ampla rede tecida pelo Sistema Cresol.

    Tanto considerando os fortes laos sociais comunitrios como a amplitude de relaes com

    atores externos, apresentado no eco-mapeamento, essa rede diversificada e coesa representa

  • 21

    um capital social presente e, sobretudo, a se desenvolver em qualquer futura estratgia de

    desenvolvimento local16.

    4.4. O Crescimento e o fortalecimento do Sistema Cresol no bojo da Agricultura

    Familiar e do Pronaf

    O sistema Cresol tem o mrito de conseguir realizar os emprstimos do PRONAF

    com custos financeiros e administrativos muito menores do que os bancrios. Alm disso,

    realiza operaes como captao de poupana, emprstimos com recursos prprios e oficiais

    e emisso de talo de cheque (BITTENCOURT e ABRAMOVAY, 2001).

    O Sistema Cresol chega ao final de 2002 com uma carteira de ativos de quase R$

    100.000.000,00, repassando, na safra 2002/2003, um total de R$ 48.000.000,00 de recursos

    oficiais referentes ao PRONAF custeio e investimento. Desse total, R$ 12.000.000,00 foram

    destinados ao investimento e R$ 36.000.000,00 ao custeio. A tabela abaixo explicita a

    expressiva evoluo do Sistema Cresol.

    Tabela 2 - Quadro comparativo da evoluo do Sistema Cresol: 1996/2002 Indicadores 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

    Cooperativas 5 7 15 28 31 46 67

    Associados 1.639 2.674 5.898 11.316 15.175 20.540 25.780

    Pronaf Custeio 1.150.000, 2.630.000, 5.909.000, 13.400.000, 18.100.000, 21.632.000 36.000.000,

    Pronaf

    Investimento

    ------------ 650.000, 530.000, 996.464, 1.881.000, 9.894.000 12.000.000,

    Total Repasse/ano 1.150.000, 3.280.000, 6.439.000, 14.396.464, 19.981.000, 31.526.000 48.000.000,

    Patrimnio

    Lquido17

    101.000, 308.000, 682.000, 1.853.000, 3.173.000, 6.110.000, 8.600.000,

    Fonte: MICHELON (2002) com base nos dados da CRESOL/BASER.

    Ao acessar o PRONAF Custeio, as cooperativas do sistema Cresol receberam, na

    safra 2001/2002, 3% dos valores contratados18, dos 8,48% repassados ao Banco do Brasil

    pelo Tesouro a ttulo de spread, ficando, entretanto, com 100% dos riscos de qualquer

    16 No por acaso que o ex-presidente do Sistema Cresol, Assis do Couto, se elegeu para uma cadeira na Cmara Federal no pleito de 2002. Em sua primeira eleio a um cargo proporcional, obteve a extraordinria votao de 43.869 votos no Estado do Paran. Trata-se de um resultado bastante expressivo, jamais alcanado por um representante de uma organizao dessa natureza. Isso reafirma a importncia da dinmica interativa e indispensvel entre a coeso dos laos locais aliados, de um lado, e a capacidade de articulao e pactuao com uma vasta gama de atores sociais, de outro. 17 Soma dos valores referentes ao capital social e aos fundos de reserva.

  • 22

    inadimplncia e o total dos custos de operacionalizao. O Banco do Brasil recebeu, ainda,

    R$ 13,01 por contrato/ms (taxa administrativa) na mesma safra.

    A impossibilidade de as cooperativas de crdito acessarem recursos diretamente junto

    ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e a dificuldade de serem melhor remuneradas

    pelo Banco do Brasil, no que tange taxa de servio e risco, faz com que tenham

    dificuldades em se capitalizar e se expandir para atender outros agricultores familiares nesta

    linha de crdito. A tabela abaixo demonstra o histrico dos gastos e dos ganhos

    comparativos.

    Tabela 3 - Histrico do Sistema Cresol em repasses / Prestao de servios: montante de

    recursos de PRONAF Custeio (reais)

    Safra

    Valor Total

    (R$)

    N. de

    oper.

    Taxa de Serv.

    B.B.

    (R$)

    Spread

    B.B.

    (R$)

    Taxa de

    Serv.

    Cresol

    (R$)

    Spread

    Cresol

    (R$)

    96/97 1.150.000,00 764 132.172,00 28.750,00 0,0 0,0

    97/98 2.630.000,00 1.628 268.620,00 52.606,00 0,0 13.144,00

    98/99 4.109.000,00 2.873 474.045,00 68.497,00 0,0 34.228,00

    99/00 13.400.000,00 8.022 1.227.366,00 243.166,00 0,0 92.500,00

    00/01 18.100.000,00 9.682 1.384.526,00 1.406.370,00 0,0 281.875,00

    01/02 21.632.000,00 10.352 1.481.371,00 1.680.806,00 0,00 540.800,00

    Totais 61.021.000,00 33.321 4.968.100,00 3.480.195,00 0,0 962.547,00

    Fonte: CRESOL/BASER (2002 b)

    Observa-se, pelos dados acima, que o Banco do Brasil recebeu R$ 8.448.295,00

    (soma da taxa de servio mais o spread bancrio), 88,61% do total de recursos gastos com a

    operao e o Sistema Cresol recebeu R$ 962.547,00, 11,39%. Trata-se de um total de R$

    9.410.842 (taxas de servios pagas ao BB e spread pagos ao BB e ao Cresol. Vale ressaltar

    que o Cresol no recebeu qualquer valor referente s taxas de servio) para emprestar R$

    61.021.000,00, ou seja, para cada real emprestado, o governo desembolsou R$ 0,31

    (JUNQUEIRA, 2003).

    Como o Sistema Cresol no tem o intuito de ser mero repassador de PRONAF

    custeio, cresce anualmente o volume de recursos prprios captados e emprestados nas mais

    18 Na safra 2000/2001, o Sistema Cresol recebeu 1,5 % de spread.

  • 23

    diversas modalidades, assim como o PRONAF Investimento. Este aumento bastante

    expressivo, mesmo considerando o aumento do nmero de associados.

    4.5. Emprestando recursos prprios e captando poupana local

    As cooperativas do Sistema Cresol esto atuando no financiamento com recursos

    prprios, atendendo cerca de 60% de seu quadro social. Existem quatro modalidades de

    recursos prprios: Contrato de Abertura de Crdito (CAC) - emprstimo pessoal com um

    prazo mximo de quatro meses para pagamento. A taxa de juros varia de 4 a 4,75% ao ms;

    Cheque Especial: a taxa de juros de 6,5% ao ms; Crdito Rural com recursos prprios

    (CRP): um emprstimo rural com prazos de at quatro meses. A taxa de juros varia entre

    2,5 e 2,9% ao ms; e o microcrdito, com taxa de juros de 2,0 %. Mais recentemente, foi

    lanada a linha Bem-Estar Familiar, destinada ao consumo de bens durveis da famlia (ex.

    geladeira, fogo, utenslios, etc.), como o prprio nome j diz. A taxa de juros de 3 % ao

    ms.

    Para adquirir essa diversificao de servios financeiros, o Sistema Cresol constituiu-

    se como uma organizao creditcia que no fundamenta sua ao s no repasse de recursos

    oficiais subsidiados. Essa situao demanda obrigatoriamente captar poupana local dos

    cooperados para conseguir emprestar recursos prprios. E est a um dos elementos centrais

    para garantir o alcance e a sustentabilidade da organizao.

    A capacidade de captar poupana local representa um passo significativo rumo

    sustentabilidade. unnime entre estudiosos do tema (MORDUCH, 1999; CGAP, 1998;

    SANTOYO e MUOZ, 1996) que organizaes altamente dependentes de subsdios

    externos, tanto governamentais como no governamentais, quando no esto fadadas

    falncia em um curto perodo de atuao, ficam merc do uso que as mantenedoras dos

    fundos querem dar aos recursos.

    Os tomadores tendem a reembolsar em maior escala os emprstimos que provm de

    fontes locais, em detrimento de financiamentos realizados junto a agncias e bancos

    governamentais. O dinheiro quente, captado na localidade, cria responsabilidade e

    disciplina financeira em comparao com o dinheiro frio, proveniente de fontes externas19.

    19 Vale ressaltar que as cooperativas de crdito rurais tm a obrigao legal de emprestar nos municpios de abrangncia e no so obrigadas a recolher compulsrio, como os bancos comerciais.

  • 24

    De um total de 25.780 scios, 7.695 tem algum valor poupado no Sistema Cresol. Isso

    representa 30 % do quadro de scios20. Desses 7.695 scios poupadores em outubro de 2002,

    31,3 % poupam menos do que R$ 300,00. Esse dado demonstra a importncia da poupana,

    mesmo que pequena, para o agricultor.

    O aumento da capacidade de captar e emprestar recursos prprios vem revertendo a

    relao entre repasse de recursos oficiais versus o que se gera de recursos prprios. No incio

    do Sistema, essa relao atingia o patamar de 48,9%, isto , para cada real repassado de

    recurso oficial, o Sistema gerava R$ 0,50 de recursos prprios. Atualmente, para cada real

    repassado de recursos oficiais o Sistema gera em mdia R$ 0,70 de recursos prprios.

    Algumas cooperativas singulares se valem da criatividade para aumentar a captao de

    poupana, atravs de sorteios de animais, por exemplo. No final do ms, o cooperado ter

    direito a um cupom para cada real depositado, que lhe dar direito a concorrer ao prmio

    ofertado.

    CONCLUSES

    O objeto de anlise foi entender quais so e como se formam os mecanismos sociais

    promotores e indutores da sustentabilidade de uma organizao de microfinanas de

    proximidade solidria, geradora de impacto positivo na vida dos seus beneficirios. Desse

    modo, foi possvel elaborar e aprimorar a hiptese central. A hiptese que pode ser

    corroborada que a constituio de grupos comunitrios solidrios cria um sistema eficaz de

    gesto e controle por meio de redes sociais, sustentadas pela articulao e pelos laos de

    confiana entre os agricultores e as organizaes, que dinamizam as oportunidades sociais e

    financeiras de seus cooperados.

    O Sistema Cresol tem mostrado sua imensa capacidade de articular-se com diversos

    atores sociais relevantes no cenrio nacional. Essa conquista fruto de muita luta poltica,

    mas tambm da capacidade e da competncia gerencial e administrativa demonstrada por

    uma organizao de agricultores familiares, que h pouco mais de seis anos nem existia. O

    rpido crescimento parece no estar causando uma ruptura entre dois componentes

    fundamentais para um sustentvel processo de desenvolvimento: de um lado, h esse capital

    social que emana da coeso dentro do prprio grupo ou comunidade; e, do outro, h a

    20 Essa porcentagem no diz respeito ao capital social dos cooperados. No caso do capital social, todos so obrigados a integralizar suas cotas-partes. Esse valor totalizava R$ 7.127.823,40 em outubro de 2002, com mdia de R$ 276,48 por scio.

  • 25

    capacidade de transformar esse capital social em capital produtivo e desenvolvimento,

    ampliando o ciclo de relaes, indo alm da esfera local. Os indcios apontam para o

    fortalecimento desses dois tipos de relao: a coeso interna est sendo fomentada por

    programas como o dos agentes comunitrios de desenvolvimento e crdito e pelo permanente

    debate e discusso das organizaes que compem essa densa rede associativa; e a ampliao

    da participao em redes, na esfera nacional e intersetorial, est trazendo legitimao em

    diferentes arenas sociais, econmicas e polticas. As redes constitudas em suas bases por

    agricultores familiares, que na sua grande maioria fizeram parte das Comunidades Eclesiais

    de Base (CEBs) e tm participao direta ou indireta nas organizaes sociais locais,

    fomentam as relaes de confiana, reduzem custos de transao, e aceleram os fluxos de

    informao e a inovao.

    Outra considerao a fazer que essa importante inovao institucional est sendo

    capaz de transferir recursos oficiais para os agricultores, de forma mais barata e mais

    eficiente do que o governo. Porm, esse aspecto, que j representou um grande trunfo h

    poucos anos, torna-se menos expressivo em comparao com os ingredientes fundamentais

    para a construo de um sistema de microfinanas de proximidade. A capacidade de captao

    de poupana por parte do Sistema, a sua capilaridade atravs da formatao de programas

    que comeam a atender s reais necessidades dos potenciais beneficirios, abrem um vasto

    campo de estudo sobre aspectos fundamentais para a definio de polticas pblicas no

    campo das microfinanas de proximidade.

    A virtude da rede social na qual se estabelecem as inmeras relaes entre indivduos

    e organizaes, assim como o desenho de programas que atendam s reais necessidades dos

    beneficirios, revelaram-se como ingredientes fundamentais e indispensveis para a

    sustentabilidade de um sistema de microfinanas de proximidade.

  • 26

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