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Page 1: Ficha Técnica - DGAE · Africano-Europeu”, num contexto linguístico plural, situação que prevalece. Com a proclamação da Independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975,
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Ficha TécnicaProprietárioDireção-Geral da Administração Escolar (DGAE)

DiretoraDiretora-Geral da DGAESusana Castanheira Lopes

Editora executivaDiretora de Serviços da DSEEPEPaula Marinho Teixeira Alves

EditoraProfessora Maria Manuela Lima (DGAE)

Design GráficoProfessor Mário Louro (DGAE)

Execução GráficaGeração Favorita, Produção gráfica

ColaboradoresEscolas Portuguesas no Estrangeiro (EPE)

Periodicidadetrimestral

Sede de RedaçãoDGAE – Avenida 24 de julho, 142,1399-024 Lisboa

Isenta de Registo na E.R.C., ao abrigo do Decreto Regulamentar nº 8/99, de 9 de junho, artigo 12º, nº 1, alinea b).

AGRADECIMENTOS

A presente edição é consagrada à comemoração do Dia 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa com o tema: diversidade linguística e cultural da língua portuguesa.

As Escolas Portuguesas no Estrangeiro (EPE) dão corpo a esta revista com os seus contributos e por essa inestimável colaboração um vasto agradecimento. Foi por intermédio das EPE e também dos editores que pudemos contar com a colaboração de um notável e distinto leque de reconhecidos intelectuais, consagrados escritores, prestigiados investigadores, diplomatas premiados, docentes qualificados e alunos dedicados que permitiram ilustrar a riqueza da língua portuguesa, que com muito gosto registamos e reconhecidamente a todos agradecemos.

Porque a efeméride o justifica, fica o contributo das alunas da Escola Portuguesa de Macau responsáveis pela aguarela da capa e contracapa, que muito agradecemos.

Um agradecimento especial ao Ministro da Educação por ter acedido tão prontamente ao convite formulado para a redação do Editorial.

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Editorial

Numa época em que o mais fácil seria parar, continuamos a apostar e a celebrar a língua portuguesa. Este caminho que celebramos a cada 5 de maio, dia da nossa língua comum, é um caminho que continuamos em cada sílaba que dizemos, que lemos e que escrevemos. Somos hoje, todos e cada um de nós, intérpretes privilegiados de uma inevitabilidade, de algo que se impõe por fazer muitíssimo sentido: ser, sentir, viver e conhecer em português. Contudo, todos já pudemos contemplar – ou algumas vezes lamentar – como mesmo o que é inevitável, o que se impõe e o que faz muito sentido, nem por isso dispensa quem o erga. Mais do que uma soma das partes, da soma da Rede de Ensino Português no Estrangeiro nasce uma Rede verdadeiramente global e efetiva de promoção da língua portuguesa. Em tempos pré-pandémicos, em tempos pandémicos e em tempos que, mais cedo do que tarde, serão finalmente pós-pandémicos. A Rede de Ensino Português no Estrangeiro, que por todo o mundo se afirma, é, na verdade, o motor do ensino do português junto das comunidades nacionais e lusófonas que nunca acharam o planeta grande demais para lhe chamarem destino seu. Por isso, Portugal é hoje mais capaz de ser um ator liderante na sua afirmação como língua global de cultura, pensamento, comércio e conhecimento. Ela, a língua portuguesa, traduz e traduz-nos uma imensa e intensa memória em que nos reconhecemos todos, representando também uma insaciável sede de futuro partilhado. No essencial, através do ensino de (e em) português, partilhamos uma visão que desenha o perfil de uma educação humanista, comprometida com as competências comunicacionais, críticas, estéticas e interpessoais.

Esse papel horizontal, estrutural e transversal é, claro, o papel primeiro do ensino das nossas línguas: não tanto serem disciplinas à parte, mas antes serem o centro da formação dos jovens para compreender, estar e ser no desafiante mundo que, hoje, os interpela.Só assim pode a língua desempenhar eficazmente a sua nobre missão de ferramenta fundamental de inclusão. Na verdade, apenas somos inclusivos se nos compreendermos. Ora, isto implica aceitarmos desde logo o português como língua viva, plural, inclusiva, capaz de acolher e potenciar múltiplas formas de expressão, múltiplas identidades. Este é o caminho que, juntos, fazemos para que a língua portuguesa possa, não só responder aos seus desafios do futuro, como se possa posicionar como língua global e mais um essencial instrumento para o entendimento dos países e dos povos. Povos que, estando a nós intimamente ligados, connosco partilham o nosso planeta. Entre todos temos a enorme ambição de progredir, de fazer e de viver, cada vez melhor e cada vez mais em paz.

Continuar um caminho humanista:

falando, lendo e escrevendoem português

Tiago Brandão RodriguesMinistro da Educação

XXII Governo Constitucional República Portuguesa

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Angola

Cabo Verde

Macau

Guiné-Bissau

EditorialBoaventura Cardoso 09Irene Guerra Marques 11Ondjaki 13Octaviano Correia 15Docentes E.C.C.B. 19Mário Félix 20Cremilda de Lima 22Sandra Ferreira 25Direção Complexo E. Leme Educare 27

Vera Duarte 30David Lima 31Germano Almeida 32

Miguel de Senna Fernandes 43Alexandra de Aragão 46Vasco Baptista 48Lourenço Drogas 49

Wilson Barbosa 40

08

29

42

39

03Tiago Brandão RodriguesMinistro da Educação

Índice

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Moçambique

Portugal

São Tomé e Príncipe

Timor-Leste

Rogério Manjate Luísa Antunes 55Maria José Gustavo 56

51

Acácio Azevedo de Brito 68Mário Meireles 70CAFE de Manatuto 73

Escola Portuguesa de S. T. e Príncipe 75

Vitor Sereno 58Margarita Correia 60Carlos Ascenso André 62Luísa A. Pereira, Luciana Graça, Inês Cardoso 64

50

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Índice

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AngolaEscola Protuguesa de Luanda-CELPA língua portuguesa em Angola 09Boaventura Cardoso

A língua protuguesa em Angola 11Irene Guerra Marques

Uma língua nunca vai só-zinha 13Ondjaki

Escola Camilo Castelo BrancoNós escrevemos no peito 15Octaviano Correia A missão e a língua que nos une 19Docentes

Colégio Português de LuandaDia Mundial da Língua Portuguesa - 5 de maio 20Mário Félix

Colégio Pequenos PríncipesDia Mundial da Língua Portuguesa 22Cremilda de Lima

Colégio São Francisco de Assis Luanda Sul Aonde me levam as palavras... ensinar língua portuguesa em Angola 25Sandra Ferreira

Complexo Escolar Privado Leme Educare Língua e cultura que nos une: todos diferentes, todos iguais! 27Direção Complexo E. Leme Educare

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Com a proclamação da independência, em 11 de Novembro de 1975, Angola conquista a sua soberania e a Língua Portuguesa perde a sua função colonizadora, passando a ser assumida como língua de unidade nacional e de expressão de muitas das aspirações do Povo livre de Angola. Falada na administração pública, no comércio, na educação e no ensino, enfim, em todos os sectores da vida económica, social e política, estava implícito que a Língua Portuguesa era, indiscutivelmente, a língua oficial. De qualquer modo, apesar das sucessivas alterações às leis constitucionais desde 1975, somente a Constituição da República de Angola (CRA), aprovada em Fevereiro de 2010, é que estabelece de forma clara e inequívoca, no ponto 1 do artigo 19.º, que A língua oficial da República de Angola é o português. Na Constituição da República de Angola Anotada (1), os legisladores fazem questão de anotar o seguinte, referindo-se ao supra-citado artigo:

Este artigo é novo na Constituição de Angola não existindo qualquer outro semelhante nas constituições anteriores.Com este artigo, a CRA consagra a língua portuguesa como língua oficial da República e dá, igualmente, a esta língua, o estatuto de língua nacional. De acordo com o censo populacional realizado em 2014 (2) O Português é falado por mais de metade da população (71%) com maior predominância nas áreas urbanas onde 85% da população fala a língua portuguesa enquanto que somente 49% na área rural. Esse dado só vem provar que a Língua Portuguesa em Angola tem um número cada vez maior de falantes tornando-se também, por esse motivo, a língua mais falada no nosso país. Para justificar o quadro acima, apontaria, para além de outros factores que contribuíram bastante para a expansão e consolidação da Língua Portuguesa em Angola, a migração das populações provocada pelo longo conflito armado, bem como a mobilização de

A língua portuguesa em Angola Boaventura Cardoso

Escritor e diplomata de carreira

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jovens provenientes de várias províncias para as acções militares do exército nacional contra a então oposição armada. A Constituição de 2010 estabelece, igualmente, no ponto 2 daquele artigo que o Estado valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas de Angola, bem como das principais línguas de comunicação internacional. Fica, então, claro que em Angola a Língua Portuguesa coexiste com as várias “línguas nacionais”. Dessa situação, resultam naturalmente empréstimos para as línguas em questão. A Língua Portuguesa em Angola está, por isso, em constante transformação e desse facto emerge uma ou mais variantes do português angolanizado com base no qual escritores como Luandino Vieira inovam e recriam a língua literária angolana. Seja como for, tais variantes do português falado no nosso país carece ainda de estudos sistematizados. De qualquer modo, os especialistas já identificaram que há marcas que hão de ficar como estruturantes do nosso modo de falar como é, por exemplo, o caso emblemático da pronominalização. Finalmente, posso com toda a certeza asseverar que os Angolanos, ao conquistarem a Independência Nacional em 11 de Novembro de 1975, conquistaram também, nessa ocasião, a Língua Portuguesa. Muitos milhares de Angolanos têm-na como língua materna e, por isso, também como sua propriedade embora com um acento tipicamente local que a enriquece e a torna mais dinâmica e ajustada à nossa realidade. Nesse sentido, não resisto a parafrasear o ilustríssimo Professor Doutor Adriano Moreira quando afirma com toda a justeza que “ A Língua Portuguesa não é nossa. A Língua Portuguesa também é nossa, pois pertence de igual forma a outros povos.”(3)

Nota Biográfica

Boaventura Cardoso, licenciado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade de São Tomaz de Aquino - “Angelicum”, de Roma, é escritor e diplomata de carreira tendo exercido cargos importantes nos governos de Angola como Ministro da Cultura, Ministro da Informação, Embaixador em França e na Itália. Galardoado com o Prémio Nacional de Cultura e Artes, em2001, atribuído ao seu romance “Mãe, Materno Mar”, é membro fundador da União dos Escritores Angolanos e foi o primeiro presidente da Academia Angolana de Letras. Está dicionarizado no “Novo Aurélio”, de Aurélio Buarque de Holanda. Actualmente, é Deputado à Assembleia Nacional (Parlamento angolano), onde exerce o cargo de Presidente da Comissão para a Cultura, Assuntos Religiosos, Comunicação Social, Juventude e Desportos.

(1) - Raul Carlos Vasques Araújo / Elisa Rangel Nunes, 2014,“Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I”;(2) - INE - Instituto Nacional de Estatística, 2016, “Resultados Definitivos do Recenseamento Geral da População e da Habitação de Angola 2014”;(3) - Jornal de Letras, de 5 a 18 de setembro de 2012.

Finalmente, posso com toda a certeza asseverar que os

Angolanos, ao conquistarem a Independência Nacional

em 11 de Novembro de 1975, conquistaram também, nessa ocasião, a Língua Portuguesa.

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A língua portuguesa em Angola

A presença da Língua Portuguesa em Angola remonta ao século XV. Do seu contacto com as línguas africanas, resultou uma situação de “Bilinguismo Africano-Europeu”, num contexto linguístico plural, situação que prevalece. Com a proclamação da Independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, a Língua Portuguesa é reconhecida Língua Oficial da República de Angola tendo, entretanto, adquirido o estatuto de língua Nacional. O povo reafirma a sua personalidade cultural e a língua portuguesa, bem como outros elementos culturais, que ao longo de séculos foram sendo introduzidos no território angolano, sofreu um processo de adaptação ao meio geográfico e humano, que a transformou em parte integrante da sua cultura. A língua portuguesa, língua materna de um número significativo de angolanos tem-se expandido pela população angolana que a tem como língua de comunicação e expressão em todas as situações. Como língua oficial e de unidade nacional é utilizada em todos os domínios da vida do país, sendo o veículo dos falantes das diferentes línguas existentes em Angola. Como língua de ensino é utilizada pelo Sistema de Educação (nos diversos níveis) em todos os países integrantes da CPLP e em Timor Leste. Como língua de comunicação internacional é, igualmente, a língua oficial dos países referidos ou de trabalho em organizações internacionais, as quais permitem a sua divulgação, valorização e abertura para o mundo contemporâneo, por conseguinte, para um saber universal. O português falado em Angola ou o “Português de Angola” ou o “Português Angolano”, como vem sendo denominado, encontra-se em permanente transformação. A própria dinâmica das línguas vivas, as interferências das estruturas das línguas Bantu, os factores socioculturais, o falar típico com as suas marcas de angolanidade adoptada por quase todas as camadas sociais ou alguns desvios à norma padrão, imprimem-lhe uma nova força, vivificando-a e adaptando-a cada vez mais à realidade angolana. Esta realidade é similar à dos demais países integrantes da CPLP e a Timor Leste, onde também são notórios flexibilidade e o grande poder de adaptação da língua

Irene Guerra MarquesAutora e investigadora

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portuguesa a outras realidades línguisticas, que a tornam mais rica e inovadora. Como refere Celso Cunha, filólogo e linguísta, a história da língua é a história das suas inovações, acrescentando que a sua estagnação será a morte do idioma. O aparecimento de variedades ou normas dentro de um sistema linguístico não afecta a sua unidade, pois nenhuma língua permanece uniforme, apresentando estas variedades de maior ou menor amplitude. Os milhares de emigrantes lusófonos espalhados pelos vários continentes servem-se do mesmo instrumento de comunicação e expressão – a língua Portuguesa –, a qual é património de todos os que a utilizam.

Nota Biográfica

Irene Guerra Marques, natural de Luanda, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.É autora da primeira antologia de literatura angolana, Poesia de Angola (1976) e das primeiras colectâneas intituladas Textos Africanos de Expressão Portuguesa (1976) criadas para o sistema de ensino angolano após a independência.É autora de vários livros e trabalhos nas áreas da linguística e da investigação literária, de onde se destacam os seguintes: Breves Considerações Sobre a Problemática Linguística em Angola (1985); Henrique Abranches o Homem dos Sete Talentos (Org.) (2003); Línguas de Angola (2005); Novo Acordo Ortográfico de 1990 (2008); Línguas e Políticas de Línguas em Angola nos períodos colonial e pós-colonial: Uma Metodologia possível para o Ensino de Português em Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (2010); Dos Desertos, dos Sonhos, das Travessias e do Futuro (co-autora) (2010); Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor (co-autora) (2011-1.ª Edição); Antologia de Narrativas Tradicionais (co-autora) (2011); O Boletim “Cultura II” Oficial e a Sociedade Cultural de Angola (co-autora) (2013); O Livro de Oiro da Literatura Infantil (co-autora) (2013).Tem participação activa em seminários, conferências e congressos, bem como em júris de prémios literários nacionais e internacionais.É membro fundador da Academia Angolana de Letras (2016), membro honorário da União dos Escritores Angolanos (2016) e foi destinguida com o Diploma de Mérito da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto (2015), o Diploma de Honra do Ministério da Cultura de Angola (2015) e a Menção Honrosa da Universidade Agostinho Neto (2015). Em 2019 foi-lhe outorgada, pelo Presidente da República de Angola, a Ordem de Mérito Cívil do Primeiro Grau.

Como língua de ensino é utilizada pelo Sistema de

Educação (nos diversos níveis) em todos os países

integrantes da CPLP e em Timor Leste.

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

*Dedicado ao camarada Mia Couto e a todas as professoras de Língua Portuguesa do mundo

Por vezes, uma simples reflexão em torno da Língua Portuguesa pode tornar-se um labirinto de abraços que se desdobram como quem desenrola uma onda, ou afaga a margem de um rio. "Do rio que tudo arrasta / se diz que é violento (...)", dizia o Brecht, para chegar a outras margens. Não há rio sem alguma curvatura de violência, sem zonas de parcimónia e cotovelos repentinos. Às vezes, é bom poder descansar na margem que nos une. Sem atacar ninguém, nenhuma língua anterior, nenhuma cultura pré-Língua-Portuguesa, nem outras línguas nem linguagens a 'atingir' ou 'vencer'. Em defesa de um certo enviesamento cometido por um colega, na sexta classe, em Luanda, e tendo sido alertado pela professora de que tal formulação "não existia em lado nenhum", o corajoso pioneiro discordou: "desculpe, camarada Professora, mas esses modos existem mesmo na Língua Portuguesa da minha casa." Porém, a libertinagem não indicava

poder chegar a bom porto; a professora reinvestiu: "mas aqui não estás em casa, estás na escola." Nos anos 80, era impossível dar sequência àquele debate. O pioneiro optou involuntariamente por se calar. Mas nessa micro (tri)dimensão escola-casa-rua de todas as crianças do (grande) quintal da Língua Portuguesa, pode bem espreitar-se o mundo e os países e os poderes das línguas portuguesas que se andam a exercer nos diferentes territórios das lusas 'fonias'. O perigo (na afirmação da professora) residia no 'não existir em lado nenhum'. Parece que os lados são muitos, e há sempre um sub-algures onde a surpresa está prestes a brotar. Pode ser na forma belíssima de um poema, numa declaração mais solta impulsionada pelo trampolim do riso, mas muitas vezes vem do pequeno milagre desse lugar mágico onde uma pessoa só, ela-mesma, única, com os seus anseios e enquadramentos, faz uso da palavra (ou de mais de uma palavra) e a comunicação se processa de modo,

Uma língua nunca vaisó-zinha* Ondjaki

Poeta e escritor

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digamos, singular. Nesse instante, existe um 'novo lado', um novo lugar. É a estreia de uma pequena grande chegada ao quintal da Língua Portuguesa: a língua de cada um. (Na sexta classe, após o meu colega ter optado por se calar quase voluntariamente, fomos ao intervalo. E do seu longo silêncio, escolheu retirar-se para me dizer isto: ainda acho que aquela frase existe na minha língua portuguesa. Só minha mesmo.) Vivi momentos em que o dom da língua, praticado por crianças ou adultos, foi elevado ao grau de ponte cultural. Isso, confesso, convoca emoções. A língua materna, com esse nome lunar que usamos para designá-la, às vezes prega partidas, torna-nos cegos a questões políticas, sociais, históricas. Redundâncias, bem sei, mas às vezes, só às vezes, podemos permitir-nos falar de coração aberto. A língua materna pode elevar-se ao grau de caule. "(...) mas ninguém diz violentas / as margens que o comprimem", diz a continuação do verso do Brecht. As margens (que comprimem o rio) guardam, sim, perigo: podem oprimir; tentar obliterar. E se a margem de alguma língua ou cultura comprime o rio ou o riacho de outras culturas, cabe que no curso da História se tente combater o fenómeno da extinção de partes de outras culturas. Defender, falando e estudando. Defender, difundindo. Defender, contextualizando culturalmente, valorizando as estruturas narrativas e respeitando outros formatos de passagem da História e do conhecimento. As palavras e as ideias procuram, quando procuram, transmitir conteúdos culturais. Poderiam, assim, ser pequenos pedaços de vestes que acompanham, apresentam, dão cor aos conteúdos. Quando tudo corre bem, reconhecemos na diferença uma diversidade de cores e tons que ainda não havíamos experimentado. Quando nem tudo corre bem, tudo o que não é igual a nós, torna-se alvo, incomoda, perde valor, torna-se inferior. As palavras podem ser vestes. Por vezes, mais do que vestirmos o outro com as nossas roupas, ou vestirmos nós as roupas dos outros, faz sentido experimentar algo mais moroso: fazer nas nossas roupas, as vestes dos outros. Nessa utópica circunstância, chegar às palavras dos outros não será entrar em lar alheio; poderá ser, sim, chegar a casa.

Mas nessa micro (tri)dimensão escola-casa-rua de todas as crianças do (grande) quintal da Língua Portuguesa,

pode bem espreitar-se o mundo e os países e

os poderes das línguas portuguesas que se andam

a exercer nos diferentes territórios das lusas 'fonias'.

Nota Biográfica

O poeta e escritor africano Ndalu de Almeida, conhecido como Ondjaki, nasceu na cidade de Luanda, em 1977. O teatro e a pintura fazem parte do seu percurso artístico. Apresentou duas mostras individuais de artes plásticas, uma em Angola e outra no Brasil. Ondjaki também é cineasta, co-dirigiu, em 2006, ao lado de Kiluanje Liberdade, um documentário que aborda sua cidade natal, Oxalá cresçam pitangas - histórias da Luanda, fruto de uma parceria entre Angola e Portugal.Com uma licenciatura em Sociologia, conquista em 2000, o segundo lugar no concurso literário angolano António Jacinto e lança o seu primeiro livro de poesia, Actu Sanguíneu. Ondjaki obteve o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2007, com o livro Os da Minha Rua. Foi-lhe atribuído o prémio Grinzane for best african writer 2008. A sua obra tem sido traduzida em França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Espanha e China. De entre as suas narrativas mais conhecidas salientam-se as seguintes obras: o romance Bom Dia Camaradas, de 2001; a novela O Assobiador, de 2002; o infantil, Ynari - A Menina das Cinco Tranças, de 2004,Destacam-se na poesia Há Prendisajens com o Xão, de 2002, e Materiais para confecção de um espanador de tristezas, de 2009.

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Há um provérbio, de origem ovimbundo, um dos povos de Angola, que na sua ancestral sabedoria, reza assim: “Os brancos escrevem livros, nós escrevemos no peito”. Partindo deste pressuposto, fruto da sabedoria ancestral dos povos africanos podemos dizer que, actualmente, quando lemos um livro, seja de contos, novela, ou mesmo romance, não nos ocorre pensar na forma como surgiu o enredo das histórias que nele se contam. Talvez seja uma estória recente, acabada de inventar, talvez se trate de uma estória tão antiga que ninguém sabe a sua origem, perdida que está na memória do tempo. É que muitas das histórias que hoje são lidas, contadas e recontadas, recriadas e ou adaptadas, podem ter nascido há muitos anos, séculos, milénios mesmo. Há milhares de anos, antes, muito antes de o homem inventar a escrita, já havia histórias o mesmo é dizer que os contadores de histórias são

tão velhos como o Homem, existem desde quando os homens começaram a comunicar entre si. Ainda na pré-história essa comunicação seria, certamente, apenas feita por gestos. Os homens contavam, uns aos outros, como tinha sido o seu dia de caça, por exemplo, o que tinham encontrado do outro lado de uma montanha e, provavelmente, falavam dos medos que tinham, das coisas desconhecidas que haviam encontrado e que os tinham impressionado. E os outros, homens, mulheres, crianças que os olhavam, lendo as palavras de cada gesto, tinham também os seus medos, imaginavam, à sua maneira, os perigos que os outros, os contadores de histórias, tinham passado. despertando a sua curiosidade, enriquecendo o seu imaginário, ensinando, aconselhando, alertando, transmitindo conceitos, regras, condutas.

Nós escrevemos no peito Octaviano CorreiaEscritor

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Com o correr do tempo, com a evolução da mente humana, com o acumular de conhecimentos, sensações, experiências, essas histórias foram ganhando corpo, foram apreendidas, transformadas, enriquecidas. Transformaram-se em histórias onde tinha lugar o fantástico, o imaginário, onde entravam novos personagens, fadas, gnomos, mágicos, feiticeiros, bruxas, animais, plantas, rios e florestas, transformavam-se em aventuras, narravam perigos e heroicidades.

Uma língua de unidade Mas, mais do que o gesto ou a palavra, os homens de “antes da escrita”, tinham a necessidade de deixar impresso, para a posteridade, os seus conhecimentos, as suas ideias, o seu imaginário. Para isso tinham as paredes das grutas onde viviam, as rochas que existiam nas proximidades dos lugares que habitavam. Nelas gravavam uma espécie de banda desenhada com cenas de caça, imagens dos seus deuses, criando aquilo a que hoje chamamos de pinturas ou gravuras rupestres, encontradas em vários locais do mundo e pelas quais podemos reconstituir, em parte, o modo como viviam esses homens e mulheres, o que faziam e até o que os assustava, surpreendia ou encantava.Mas avancemos substancialmente no tempo até à nossa era para falar de línguas, melhor dizendo, de línguas que, pelas circunstâncias em que se afirmaram, tiveram grande influência na vida dos povos para onde foram exportadas. E, neste caso, estou a falar das línguas dos povos colonizadores, dos que colonizaram a África e, mais especificamente, no caso de Angola, da língua Portuguesa. Se há algo de positivo a retirar por parte dos povos africanos de alguns séculos de colonização, será certamente a língua herdada dos povos colonizadores.

Esta acabou por contribuir para uma determinada unidade quer cultural quer nacional, unidade essa de países formados, digamos infelizmente, a régua e esquadro, por ditames europeus tendo em conta interesses económicos, estratégicos e até religiosos, sem qualquer respeito ou consideração, pelas realidades culturais, sociais, geográficas, tribais, religiosas dos povos colonizados. Assim se explica uma afirmação de um grande escritor angolano, e um escritor conceituado da lusofonia, ainda que, bem entendido, com algum peso irónico. Dizia ele: “A língua portuguesa é o nosso espólio de guerra”. E é através da assimilação, processo que durou séculos, lembremo-nos que a época colonial se estendeu do século XVI ao XX, que se foi criando o que agora se denomina, habitualmente, por literaturas africanas de expressão europeia e, no nosso caso mais específico, de expressão portuguesa embora eu prefira... de língua portuguesa.

Da oralidade à escrita

É essa tradição africana, oral, que, graças a recolhas feitas por muitos autores, entre os quais alguns missionários, tem sido traduzida, adaptada, aproveitada por grande parte dos escritores africanos nas suas obras e, no caso mais específico de Angola, «para a criação de uma literatura angolense. Particularizando um pouco o que podemos considerar a reinvenção da tradição dos povos africanos e atendo-nos mais especificamente, apenas como exemplo, a Angola, concluirmos que a oratura é, sem dúvida, um dos vectores de desenvolvimento da moderna literatura angolense ou angolana, se preferirem o termo, numa busca constante de identificação e identidade cultural africana.

Se há algo de positivo a retirar por parte dos povos africanos de alguns séculos de colonização, será certamente a língua

herdada dos povos colonizadores.

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

A oralidade em forma de histórias, canções, provérbios, foi sendo passada à escrita por investigadores e escritores angolanos como o padre Carlos Estermann ou o missionário Héli Chatelain, e mais recentemente por Raul David, Henrique Guerra, Óscar Ribas, Henrique Abranches, para além de outras recolhas feitas por curiosos, ou apaixonados pela oralidade que foram contribuindo para a sementeira que iria ganhar raízes e frutificar na mente de muitos dos escritores da actual Angola. Castro Soromenho, Óscar Ribas, Luandino Vieira, Costa Andrade, Ana Paula Tavares, Manuel Rui Monteiro, Uanhenga Xitu, Pepetela, ou moçambicanos como Mia Couto, Pauline Chiziane, Rui Nogar, José Craveirinha e até brasileiros, como Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa ou Ana Maria Machado, foram influenciados por uma importante parcela da sua população, levada de Africa como escrava, com a sua música, hábitos, tradições, até fábulas e provérbios, conferindo-lhes uma forma de escrever muito própria, caracterizada pelo emprego, na elaboração dos textos, de novos termos regionais ou até pela forma de construir e desconstruir a língua. Partindo do pressuposto que a Literatura nos países africanos de língua portuguesa nasce a partir da introdução da escrita pelos europeus leva-nos a pensar na existência de uma certa dualidade no discurso crítico: a escrita é europeia, a oralidade é africana. E aquilo que é um fenómeno acidental, passa a ser encarado como um fenómeno essencial. Ou seja a «natureza» cultural africana é oral; os europeus vieram

perturbar este estado «natural» e ancestral, mas é essa perturbação que acaba por plantar, de forma importante no seu imaginário, e com grande relevância no imaginário dos portugueses, dada a especificidade da sua colonização que favoreceu a indigenização do colono e a aculturação do colonizado, em graus mais ou menos extremados e substancialmente diferentes das outras colonizações, os elementos que enriqueceram, influenciaram e acabaram por dar o corpo ao que hoje é timbre das chamadas literaturas de língua portuguesa.

E aqui permito-me citar o escritor angolano Manuel Rui Monteiro, inspirado na sabedoria que se respira na terra onde se nasce:

“Quando chegaste, mais velhos contavam histórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores (…) E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido, visto”. E do texto oral, à escrita foi apenas um pequeno salto… de vários séculos. Contudo, para encontrarmos as raízes ancestrais de uma literatura lusófona em África, é preciso cavar mais fundo, sair da modernidade, sair das ruas asfaltadas, das florestas de cimento e mergulhar nas florestas de árvores de que nos fala Manuel Rui Monteiro, perdermo-nos, ou encontrarmo-nos, na imensidão das anharas, essas quase infinitas planícies de África, navegar velhos rios, penetrar as grutas de paredes tatuadas, reportarmo-nos às origens,

Quando chegaste, mais velhos contavam histórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores (...) E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido, visto.

Manuel Rui Monteiro

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Nota Biográfica

Escritor angolano, nascido a 25 de Fevereiro de 1940, em Lubango, província de Huíla, em Angola.Octaviano Correia é cofundador da União de Escritores de Angola, e da Academia Angolana de Letras, colaborou na rádio, televisão e em jornais e revistas angolanas. Publicou vários livros, na sua maioria de literatura infanto-juvenil, dos quais se destacam Fizeste Fogo à Viuvinha (1980), O País das Mil Cores (1980), A Amizade de Leão não se faz com Traição (1984), O Monstro das Sete Cabeças e as Meninas Roubadas (1990) e O Menino dos Olhos Azuis de Água (2000). Em 1981, recebeu o Prémio Especial da UNESCO, na exposição “Os Mais Belos Livros do Mundo”, pela sua obra O País das Mil Cores. Em 1989 recebeu o Prémio Victor Hugo, na exposição “Os Mais Belos Livros do Mundo igualmente em Leipzig - pelo livro ”O Reino das Rosas Libertas.

buscar a mentalidade dos diversos povos que deram origem às Nações e que, vindos dos mais distantes pontos de África, transportaram consigo a memória cultural, a memória genética que lhes conferiu a identidade, as diferenças, as peculiaridades e até as semelhanças. Esse é, digamos, o bilhete de identidade da Literatura Lusófona, uma literatura que, por força das circunstâncias diversas, muitas vezes adversas que países hoje independentes sofreram, que se caracterizou por manter viva a sua identidade cultural, com a mesma força e teimosia da vegetação que se renova na terra consumida pela queimada, encontrando, nas próprias cinzas, o elemento vitalizador da seiva que lhe corre nas veias, uma literatura que, procurando ser especificamente africana foi capaz de se impor no conjunto da literatura universal.

A pluralidade e a diferença da Língua Portuguesa

Sem dúvida alguma que com a chegada da Independência às antigas colónias portuguesas, a sua Literatura emerge de um quase desconhecimento para os escaparates do mundo, com traduções, estudos, investigações, novos autores, novas obras, novas abordagens e, especialmente, com novos leitores.

A Literatura desses países conquista o seu lugar de prestígio não apenas nas nações que acabavam de nascer onde o português era a língua de expressão e de ligação, mas entrando pela porta grande de literaturas já consolidadas ao longo de séculos como a do Brasil e Portugal, influenciando, até a sua forma de escrever, com a introdução de novos termos, novas expressões, novas construções do falar das suas gentes. Termino citando Eduardo Lourenço, Professor, filóso-fo, escritor, crítico literário, ensaísta, interventor cívico e um dos mais proeminentes pensadores da Cultura Portuguesa, “O imaginário lusófono tornou-se, definitivamente, o da pluralidade e o da diferença, e é através desta evidência que nos cabe, ou nos cumpre, descobrir a comunidade e a confraternidade inerentes a um espaço cultural fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido de partilha em comum, só pode existir pelo conhecimento mais sério e profundo, assumido como tal, dessa pluralidade e dessa diferença. Se queremos dar algum sentido à galáxia lusófona, temos de vivê-la, na medida do possível, como inextricavelmente portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, cabo-verdiana ou são-tomense”.

Se queremos dar algum sentido à galáxia lusófona, temos de vivê-la, na medida do possível, como inextricavelmente portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, cabo-verdiana ousão-tomense.

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A missão e a línguaque nos une Docentes

Escola Camilo Castelo Branco

A missão e a língua que nos une

“ Da minha língua vê-se o mar”Vergílio Ferreira

Da nossa língua vêem-se rostos felizes e tristes de crianças coloridas;

Da nossa língua vêem-se espaços cheios de cor e cores sem espaço;

Da nossa língua vêem-se olhares nús, bocas caladas, sorrisos sem voz e muitas, muitas gargalhadas;

Da nossa língua vêem-se bocas com fome, pés descalços e pratos repletos;

Da nossa língua vêem-se escolas que são mundos e mundos sem escolas;

Da nossa língua vêem-se casas que já o foram, memórias espalhadas e torres que tocam o céu;Da nossa língua vê-se um mundo que não é perfeito ou justo mas onde todos os corações batem ao mesmo ritmo, os sons diluem-se e as palavras...Ah, as palavras são mágicas, são elas que nos unem.

É a língua que nos une, que nos dá originalidade e identidade, é ela que nos faz afirmar somos portugueses!E por isso, todos os dias, onde quer que a vida nos leve, estaremos a defender esta língua que nos une para que não morra. E com toda a energia que só uma educadora sabe ter, continuaremos a dizer e a ensinar aquelas palavras mágicas que ouvimos desde que nascemos: Amor, Saudade, Liberdade, Respeito,Gratidão, Obrigada...

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Em 25 de novembro de 2019, ao consagrar o dia 5 de maio de cada ano como “Dia Mundial da Língua Portuguesa”, a UNESCO contribuiu não apenas para o crescente reconhecimento internacional, como para a elevação do prestígio de um idioma com vários séculos de existência, que apresenta, no momento atual, uma vitalidade e relevância extraordinárias no contexto global, servindo de meio de comunicação privilegiado e apreciado de uma comunidade com mais de 250 milhões de falantes. Está presente em todos os continentes, como língua materna, oficial, de trabalho – em múltiplos organismos internacionais de cariz político, comercial, científico, cultural e humanitário –, adquirida como língua estrangeira em escolas, universidades e institutos conceituados, em países como a China, e usada diariamente por cerca de cinco milhões de portugueses emigrantes e luso-descendentes espalhados pelos quatro cantos do mundo. Existem outros fatores positivos, referidos por diversos especialistas, que deixam antever um futuro promissor, de grande projeção mundial, para a Língua Portuguesa, como por exemplo: possuir metodologias e instrumentos pedagógicos e didáticos diversificados que possibilitam com alguma facilidade o ensino e a aprendizagem da língua e da cultura portuguesas; o desejo da sua aprendizagem estar em crescimento; o êxito do programa Erasmus e a escolha cada vez mais frequente dos estudantes estrangeiros pelas universidades portuguesas e pela frequência de cursos de Português; ou ainda a posição (quinta) ocupada pelo Português entre as línguas mais utilizadas pelos internautas. Esta é, pois, a Língua de que nos orgulhamos, tornada moderna com os contributos dos escritores clássicos portugueses e, desde então, constantemente enriquecida pelo pensamento, pela sensibilidade e genialidade de poetas, prosadores, dramaturgos, filósofos ou historiadores de todos os países que constituem a nossa diversificada, valiosa e respeitada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Veículo privilegiado de comunicação entre estes povos de diversas latitudes e de divulgação da sua riqueza cultural, a Língua Portuguesa surge como um

Dia Mundial da Língua Portuguesa – 05 de maio Mário Félix

Colégio Português de Luanda

Esta é, pois, a Língua de que nos orgulhamos,

tornada moderna com oscontributos dos escritores

clássicosportugueses e, desde então,

constantemente enriquecida (...)

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elemento facilitador de interações, de intercâmbios, de partilhas, possibilitando um conhecimento mais profundo e um relacionamento mais autêntico e generoso das comunidades envolvidas. Matéria-prima de todas as realizações textuais – literárias ou não literárias -, as palavras reproduzem pensamentos, ideias, emoções. Com elas, poderemos obter o céu – amar, emocionar, incentivar, criar – mas também, infelizmente, o inferno – odiar, manipular, ofender, mentir. Ouçamos a nossa bela e amada Língua e respeitemo-la como os poetas (Miguel Torga chama-lhes as “humanas cigarras”, “Homens do dia-a-dia/Que levantem paredes de ilusão/Homens de pés no chão,/Que se calcem de sonho e de poesia…”):

Enquanto herdeiros deste rico património linguístico, cabe-nos a honrosa, mas árdua, tarefa de zelar pela sua correção, promover a sua aprendizagem e divulgar produções textuais e outras manifestações culturais veiculadoras dos verdadeiros valores universais, que dignifiquem a existência de qualquer ser humano.

São como um cristal,as palavras.Algumas, um punhal,um incêndio.Outras,orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.Inseguras navegam:barcos ou beijos,as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,leves.Tecidas são de luze são a noite.E mesmo pálidasverdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quemas recolhe, assim,cruéis, desfeitas,nas suas conchas puras?

(Eugénio de Andrade)

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O Dia Mundial da Língua Portuguesa foi instituído pela UNESCO, tornando o idioma português o primeiro no mundo a ter uma data oficial reconhecida pelo órgão da ONU. A língua portuguesa é língua oficial de nove países (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, S. Tomé e Príncipe e Timor-Leste), além da Região Administrativa Especial de Macau (China) e estima-se que seja falada por mais de 265 milhões de pessoas. Em Angola, a língua portuguesa é a língua oficial e do ensino e um dos factores de unificação e integração social. É em língua portuguesa que nos comunicamos e como a comunicação tanto oral como escrita faz parte do quotidiano, é também em língua portuguesa que criamos relações de afecto, de amizade, de partilha e consequentemente de ajuda-mútua. Em todos os estabelecimentos de ensino em Angola, a língua portuguesa é a mola impulsionadora para a abertura dos vários ramos das actividades que fazem desenvolver o país.

As influências linguísticas resultantes do contacto com as línguas nacionais, a criação de novas palavras e expressões assim como certos desvios à norma padrão da língua portuguesa, imprimem-lhe um novo carácter, pode-se mesmo dizer que o português se encontra em permanente transformação em Angola. Para complementar o que foi dito, eis alguns exemplos: camba, cota, caçula, bazar…que provêm de vocábulos em kimbundu: dikamba (amigo), dikota (o mais velho), kasule (o filho mais novo) e kubaza (fugir). Para além dos já plenamente dicionarizados na língua portuguesa, batuque, bumbar, capanga, gingar, ginguba, jimbolo, machimbombo, missanga, quilombo, quitanda, umbala, xingar… A obra literária em Angola, distingue-se sempre pela presença das línguas locais expressamente em diálogos ou interferindo fortemente nas estruturas do português. Embora quase exclusivamente em língua portuguesa, a literatura angolana conta também com algumas obras em kimbundu e umbundu.

Dia Mundial da Língua Portuguesa Cremilda de Lima

Professora e autora de literatura Infantojuvenil

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Sobre a existência de uma variante própria do português em Angola, a linguista Amélia Mingas escreveu:(…) uma nova realidade linguística em Angola, a que chamamos “português de Angola” ou “angolano”, à semelhança do que aconteceu ao brasileiro ou ao crioulo. Embora em estado embrionário, o “angolano” apresenta já especificidades próprias (…) Pensamos que, no nosso país, o português de Angola” sobrepor-se-á ao “português padrão” como língua segunda dos angolanos. Recorre-se frequentemente ao uso de k, w e y na escrita de certos antropónimos, topónimos e outras palavras que, em Portugal se escrevem com c, q, u e i, respectivamente. São exemplos as seguintes palavras: Soyo em vez de Soio; Kwanza em vez de Cuanza; kimbundu em vez de quimbundo, kandandu em vez de candando… O sotaque do português de Angola é muito característico e bastante diferente, quer do europeu, quer do brasileiro. Muitos sons abertos em Portugal e muito abertos no Brasil são pura e simplesmente fechados em Angola. Por exemplo “troféu” é dito como trofêu. Por outro lado, o português angolano é mais cantado e arrastado, por influência das línguas africanas. A língua é um meio que permite o relacionamento entre os seres humanos, é como o elixir da vida desde o primeiro choro no momento do nascimento. Ao nascer, está já o reflexo de dizer estou aqui e vou ser mais um entre muitos. O elo que nos liga é sem dúvida a língua portuguesa em todas as manifestações. A humanidade tem manifestações de toda a espécie e a língua portuguesa é a estrada, o rio, a ponte, o mar, a dor, a alegria, o choro, o riso, a saudade, a poesia… Quando escrevo, faço-o, em língua portuguesa. Porém com vivências tão arreigadas às tradições angolanas o que se pode constatar nos meus escritos? Claro que quem me lê sente que a cultura angolana está patente pelos nomes dos personagens e termos em “português angolano”. No entanto a base, a estrutura do texto segue normas gramaticais da língua portuguesa. Há tempos, fiz a adaptação de um conto de um escritor português com o título “O Senhor Empreendedorismo”. Em presença do livro, perante duas realidades. A realidade angolana e a realidade portuguesa. Tão diferentes no que toca a nomes dos

A língua é um meio que permite o relacionamentoentre os seres humanos, é

como o elixir da vidadesde o primeiro choro no

momentodo nascimento.

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Nota Biográfica

Cremilda de Lima nasceu em Luanda.Tem o Curso do Magistério Primário, é Bacharel em Pedagogia e Licenciada em Ensino Básico – 1º Ciclo.Foi nomeada duas vezes para o Prémio Internacional de Literatura Infanto-Juvenil Astrid Lindgren e para os Globos de Ouro Angola.É autora de várias obras de entre as quais “A colher e o génio do canavial” traduzida para sérvio e “A kianda e o barquinho de Fuxi” traduzida para kimbundu, “O maboque mágico”, “O balão vermelho”, “O imbondeiro que queria ser árvore de Natal”, ”A velha sanga partida”, “Os kandengues desfilam no carnaval”, “A quinta dos girassóis”, “Duas histórias de encantar”, “Histórias com adivinhas”, “O aniversário de vovô Imbo” foram já adaptadas para teatro.Participou na Reforma Educativa em Angola.Em 1977 começou a editar os seus primeiros contos nos manuais de leitura para o Ensino de Base 1º Nível.Faz parte da primeira colecção de contos infantis “Colecção Piô…Piô…” editada em Angola.Participou na selecção e organização de textos e na realização da colectânea “HISTÓRIAS DE ENCANTAR”, Livro de ouro da Literatura Infantil Angolana.É autora do 1º CD de Contos Infantis Angolanos editado pela NIDO/Produções e adaptação da EXECUTIVE.“Alma de Kaluanda”, o seu primeiro livro de poesia, já faz parte da nossa memória colectiva. É membro da União dos Escritores Angolanos e da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde.Nomeada Diva da Educação, na Edição Divas de Angola, um Projecto da Semba Comunicação em 2010.Vencedora do Prémio Nacional de Cultura e Artes Edição – 2016 na disciplina de Literatura.Eleita vencedora na categoria feminina de Literatura, no âmbito da eleição das Personalidades Lux 2016, organizado pela Revista Lux Angola.Condecorada com a Outorga de Medalha de Bravura e Mérito Cívico e Social de Segunda Classe, por sua Excelência Presidente da República João Manuel Gonçalves Lourenço, em 10 de Novembro de 2018.“A Literatura Infantil Angolana no período Pós-Independência”: Estudo sobre a Escritora Cremilda de Lima, Tese de Mestrado de Maria Manuela Cristina “Kanguimbo Ananaz” editado em 2018.Participação no IX Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, uma organização da Cidade da Praia/Cabo Verde e da UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) em 2019.Participação no Projecto LER & CONTAR, Produção Noitibó Confraria 2020.Participação na Colectânea (Poemas – Crónicas – Contos) “Escritos de Quarentena” - Edições Handyman 2020.

personagens, espaços, clima, gravuras… Isto para dizer que nos comunicamos em português com realidades diferentes. A apresentação do texto escrito sem nenhuma contradição. No fundo, ao homenagearmos a língua portuguesa, estamos a fazer a festa da língua que nos une embora com as suas variantes. Escreve-se em língua portuguesa com sabor angolano no ritmo, no cheiro, na cor e na melodia. Mas é a língua que nos dá a conexão com o Mundo nas actividadescomerciais, na formação de técnicos nas várias áreas do saber, na aplicação dos currículos escolares desde os jardins de infância aos patamares superiores. É em língua portuguesa que as crianças aprendem canções, muitas delas já dos tempos dos seus avós. Em língua portuguesa, com sabor angolano, apreciamos o ritmo do semba e da kazukuta, o colorido do pôr do

sol, o sabor da muamba e da kizaka, do funge e do pirão, enfim a alegria contagiante do povo nas suas variadas manifestações culturais. Falando da língua portuguesa em Angola, constato que não exerce de maneira nenhuma o papel de língua “genuína” mas é o somatório das culturas das várias línguas existentes. A beleza das línguas está na sua riqueza e diversidade. As línguas nacionais angolanas, no decorrer da história têm contribuído para o enriquecimento da língua portuguesa. Sendo a língua um dos pilares de qualquer sociedade, sem ela, a comunicação seria extremamente limitada e rudimentar. A importância da língua portuguesa é incalculável. Ela está presente em todos os aspectos da nossa vida e praticamente em tudo o que fazemos.

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Aonde me levam aspalavras...ensinar língua

portuguesa em AngolaSandra FerreiraColégio São Francisco de Assis Luanda Sul

“A minha pátria é a língua portuguesa”. São estas palavras de Fernando Pessoa que resumem a minha missão enquanto professora de Português pelo mundo. Catorze anos de Angola, os mesmos de funcionamento do Colégio São Francisco de Assis Luanda Sul e ensinar língua portuguesa neste país reveste-se de um sentimento especial. De todos os países em que o português é a língua oficial, chego a Angola pelos laços familiares, mas também pela certeza de que, num país em que a língua oficial continua a ser o português, poderei cumprir o meu “fado”. Ensinar Língua Portuguesa é ensinar uma História, uma Cultura e uma Identidade, que vai muito para além de ensinar palavras e regras. A verdade é que o português, como nos diz José Eduardo Agualusa, é “uma construção conjunta de toda a gente que fala português e isso é que faz dele uma língua tão interessante, com tanta elegância, elasticidade e plasticidade.” A coexistência, em Angola, e em particular no Colégio São Francisco de Assis Luanda Sul, de diversas variantes

da Língua Portuguesa e dos seus mais diversificados falantes, tornam o ensino da mesma extremamente gratificante, já que a multiculturalidade nos permite aprender em conjunto e compreender o mundo na sua diversidade. A língua portuguesa atravessa quatro continentes, possui mais de 230 milhões de falantes e aqui, no CSFA, conseguimos atravessar fronteiras e oceanos e juntar, num só espaço, realidades e conhecimentos tão diversos. Por que razão é tão importante ensinar e aprender o português? Perguntarão. Se o objetivo inicial é realizar atividades como ler e escrever, o ensino do português torna-se nuclear em todo o processo educativo, porque, sendo o meio de comunicação primordial dos nossos alunos, é através deste que descodificarão toda a realidade que os envolve. Para mim, ensinar português vai muito para além de ensinar gramática, escrita, sintaxe ou semântica, ainda que estas sejam extremamente importantes na construção de significados.

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O principal objetivo é, acima de tudo, melhorar o conhecimento da língua dos nossos alunos e, assim, a comunicação. Ainda que os nossos alunos só mais tarde se apercebam da importância de estudar o português, para os professores está claro que o domínio da língua portuguesa é crucial para o seu percurso escolar e profissional. Português é das disciplinas do currículo escolar a mais transversal e o seu domínio está intimamente relacionado com o sucesso escolar dos alunos. Daí a sua importância. O domínio da leitura é, inevitavelmente, aquele que trabalho de forma mais consistente com os nossos alunos no Colégio São Francisco de Assis Luanda Sul, sendo este o domínio transversal a todas as disciplinas curriculares. Certamente que todos os professores já se depararam com a dificuldade dos alunos em interpretar uma questão, em retirar informação de um texto, em analisar um gráfico. Assim, desenvolver a capacidade leitora dos meus alunos é o grande objetivo, nunca deixando de lado a gramática, claro, enquanto forma de criar significado. Referi anteriormente a importância do ensino do português na difusão dos costumes e tradições, no conhecimento da história e da cultura de um povo. Todos os dias os nossos alunos aprendem um pouco mais sobre a sua identidade através do estudo da língua portuguesa. Seja pela introdução de novo vocabulário, seja pela análise e interpretação dos diversos autores que constituem a nossa herança literária, é possível construir uma realidade que nos define enquanto falantes. E a nossa herança literária não se cinge a Luís de Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Sophia de Mello Breyner, José Saramago, mas engloba também a diversidade de um Machado de Assis, Cecília Meireles, Mia Couto, José Eduardo Agualusa ou Ondjaki. Apraz-me proporcionar aos meus alunos experiências diferentes através das palavras. Contar história e estórias, porque só desta forma será possível dotar os nossos alunos de competências e conhecimentos que utilizarão para a vida. E é por isso, que ao ser professora de português continuo a ter “em mim todos os sonhos do mundo” (Fernando Pessoa).

Ensinar Língua Portuguesa é ensinar uma História, uma

Cultura e uma Identidade, que vai muito para além de ensinar palavras e regras.

A verdade é que o português, como nos diz José Eduardo

Agualusa, é “uma construção conjunta de toda a gente que fala português e isso é que faz dele uma língua

tão interessante, com tanta elegância, elasticidade e

plasticidade.

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Língua e cultura que nos une: todos diferentes, todos iguais!

DireçãoComplexo Escolar Privado Leme Educare

“Meninos de Todas as Cores”, escrita por Luísa Ducla Soares, é a história de um menino branco, com determinadas características, que vivia numa terra de meninos brancos e que, certo dia, decidiu partir numa grande viagem onde conheceu outros meninos de outras cores e com outras caracterísitcas. Esta história ensina-nos a respeitar todas as pessoas tal e qual como elas são. Talvez os portugueses quando iniciaram a expansão marítima não tiveram intenção de criar esta união entre vários povos, espalhados pelo Mundo. Esta história, deixada como herança às gerações seguintes, está longe de ser perfeita, mas não é feita só de coisas más. Os povos, que em tempos foram colonizados e que por seu mérito são hoje independentes, apresentam determinadas características, que ajudam na união entre eles e Portugal: A língua e determinados aspetos

da cultura! A mistura de culturas e semelhanças entre os povos da CPLP é evidente e fantástica. E graças à globalização temos o privilégio de contactar, experienciar e aprender com todas elas. Na nossa instituição recebemos alunos de todas as nacionalidades, com culturas e experiências de vida diferentes. Todos eles têm como língua oficial o português e isso facilita o trabalho desenvolvido pela nossa equipa. A nossa comunidade escolar é constituída por pessoas angolanas, portuguesas e brasileiras ou com descendência de outros países integrantes da CPLP e cada uma delas tem um pedacinho das suas vivências para partilhar com os outros. Nem tudo é “um mar de rosas”. Por vezes, estes mesmos fatores, língua e cultura, tornam-se uma barreira na aproximação entre os nossos alunos,

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docentes e não docentes. Mas a nossa missão é quebrar estas barreiras e desenvolver estratégias para que todos possamos aprender, comunicar e conviver entre si. Sendo nós um colégio de currículo português damos a conhecer aos nossos alunos datas comemorativas, aspetos da cultura portuguesa e a história do povo português. Mas nunca desmerecendo os outros povos, tentamos sempre articultar e fazer a interação com a cultura, história e datas comemorativas dos países de que os nossos alunos são oriundos. E assim criamos um trabalho fantástico de interação e integração, de todos.

“Meninos de Todas as Cores” é uma história que exploramos todos os anos com todos os nossos alunos, numa tentativa de aprendermos e respeitarmos a cultura, diferenças e semelhanças de todos. Ser diferente é bom e aprender com a diferença torna-nos iguais!

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Cabo VerdeEscola Protuguesa de Cabo Verde-CELPA língua portuguesa e a cultura que nos une 30Vera Duarte

Nesta vasta geografia 31David Lima

Escola Portuguesa do MindeloEntrevista a Germano Almeida 32

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Eu sou confessadamente uma apaixonada pela língua portuguesa, que aprendi no berço, juntamente com o meu crioulo cabo-verdiano. Amo a língua de Camões, antes de mais, porque ela opera o milagre de fazer com que eu, cidadã de um pequeno país, de 550 mil habitantes, possa pertencer a uma fantástica comunidade de cerca de 30 milhões de seres humanos. A língua de Camões é o denominador comum, o elo de ligação entre povos e países tão distantes e diferentes. Ela permite-me compreender e comungar na plenitude as fascinantes singularidades do Mia, a intensidade amorosa da Florbela, mergulhar nos tormentos do Mané Quim e deliciar-me na quietude de uma Pasárgada de Bandeira. Mas também a amo porque a minha língua materna tem a sua origem exatamente no português quinhentista, trazido pelos navegadores, mesclado com várias línguas nacionais africanas, dos povos dos rios da Guiné, que vieram povoar as ilhas, antes desabitadas. Amo o português porque ele me permite, de forma

impar, exprimir as emoções que agitam a minha alma, as angústias que magoam o meu coração e as perplexidades que fervilham no meu espírito. É uma língua que me permite gritar a palavra LIBERDADE, em uníssono, com tantas e tão belas vozes, oriundas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Sobretudo, amo a língua de Zeca Afonso e de Maria Velho da Costa por ser uma língua redentora pois, da estreita janela do colonialismo e do esclavagismo, ela foi a réstia de luz que se agigantou e se tornou numa força agregadora que emergiu magnifica em prosa e verso nas duas margens do Atlântico e se estendeu pelo Índico adentro, realizando o milagre da união. Na realidade, quando, após a Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, os ex-colonizados e os ex-colonizadores se sentaram frente-a-frente para dialogar sobre o futuro dos novos países livres, todos escolheram sem hesitação a língua portuguesa como língua oficial de cada um dos países.

A língua portuguesae a cultura que nos une Vera Duarte

Poetisa e ficcionista

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Por isso, saúdo vivamente o dia 5 de Maio e todas as iniciativas que visem dar-lhe visibilidade, notoriedade e relevância no mundo contemporâneo, ela que já foi a língua de todos os comércios nos séculos quinze e dezasseis, e por onde começou um proto processo de globalização do mundo que até hoje continua. Entendo contudo que várias ameaças pairam sobre ela e é necessário criar e desenvolver os mecanismos que a protejam e garantam o seu normal desenvolvimento. Neste domínio as Escolas Portuguesas, que existem um pouco em todo o lado onde se fala o idioma de Saramago, são fundamentais para manter vivo e versátil este que é o maior instrumento de ligação entre os povos da CPLP.

Nota Biográfica

Juíza desembargadora, poeta e ficcionista. É membro das Academias Cabo-verdiana de Letras, de Ciências de Lisboa, Gloriense de Letras. É investigadora correspondente do Centro de Humanidades/CHAM da Nova de Lisboa e membro da Global Advisory Board do Institut for African Woman in Law.Foi condecorada pelo Presidente República com a Medalha Ordem do Vulcão e pelo Governo Cabo Verde com a Medalha de Mérito Cultural, recebeu os prémios Norte-sul DH do Conselho d`Europa, Tchicaya U Tam´si de poésie africaine e Sonangol de Literatura. Foi agraciada com o prémio FEMINA 2020, para mulheres notáveis. Tem treze obras publicadas e variada colaboração nacional e internacional.

Nesta vasta geografia, há países que são irmãos, sem vanglória ou altivez, porque falam a mesma língua,o português.

E há esta variedadede tradições e cultura e história e literatura e de cada país sonhar a sua dimensão futura...

E há esta fraternidade e este orgulho e riqueza de pensarmos e sentirmos, ou seja, nos exprimimos na nobre língua portuguesa.

Nesta vasta geografia David LimaProfessor da EPCV-CELP

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A língua portuguesa é o nosso instrumento de contacto

com o mundo exterior Germano AlmeidaEscritor

Entrevista a Germano Almeida pelos alunos do 5.º ano da Escola Portuguesa do Mindelo.

Emma - Boa tarde a todos. Bem-vindos à Escola Portuguesa do Mindelo. É nossa honra receber o escritor cabo-verdiano Germano Almeida. (aplausos) Germano Almeida é um escritor que fez uma espécie de revolução na literatura cabo-verdiana ao ganhar a 30.ª edição do Prémio Camões. «A notícia veio como um brinde. O escritor cabo-verdiano Germano Almeida ganhou o Prémio Camões em 2018, às vésperas do lançamento do seu 17.º romance, O Fiel Defunto, mais um exercício de prosa irónica que lhe valeu a mais alta distinção das letras em língua portuguesa.»

Marco - Na sua obra A Ilha Fantástica, a propósito da visita do Presidente Craveiro Lopes à Boa Vista em 1955, há uma passagem que diz:«E por entre vivas e aplausos, mais dos boavistenses do que dos estrangeiros, o Sr. Coralido falou da lealdade e solidariedade da portuguesíssima Boa Vista e lamentou que as suas descoloridas palavras não traduzissem para o presidente todo o êxtase e subjetividade que sentíamos naquele memorável dia que ficaria para sempre gravado em letras de ouro na história da nossa ilha.

(…) Olhei em redor e disse alto: êxtase, subjetividade, e logo subiu um, cala a boca, menino de trampa!»

Marco - Êxtase… Subjetividade…» Ainda hoje considera estas palavras tão fascinantes como outrora?

Germano Almeida - Deixem-me primeiro cumprimentar-vos e dizer que estou muito contente por me terem convidado e poder estar perante este grupo de jovens interessados na língua portuguesa, na cultura cabo-verdiana e nos meus livros. De maneira que estou muito feliz por estar aqui. Quanto às palavras êxtase e subjetividade, continuo a gostar. Êxtase acho que não uso muito, mas subjetividade, sim. São duas palavras que conheci quando tinha a vossa idade e que continuo a achar bonitas, mas reparem, a par dessas palavras bonitas devo dizer que há outras palavras em português que eu não gosto, como empoderamento. Acho uma palavra detestável para a gente usar… mas isto é outra história.

Rafaela - Qual a sua opinião sobre a língua portuguesa em Cabo Verde?

GA – Acho que nós, em Cabo Verde, precisamos aceitar todos - e vocês os jovens em particular - a importância que tem para nós a Língua Portuguesa. Nós somos cabo-verdianos, temos uma língua que é o crioulo e

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temos que valorizar o crioulo, mas, acima de tudo, temos que estudar, escrever, falar e ler bem a LP, porque a LP é o nosso instrumento de contacto com o exterior, porque com o crioulo… (risos) Uma vez eu disse numa entrevista que com o crioulo a gente não vai longe. Os cabo-verdianos fartaram-se de me insultar, mas é verdade. Praticamente não temos livros para ler em crioulo, não temos livros científicos. O que podemos aprender com eles? Se queremos estudar, tirar um curso, só sabendo a língua portuguesa. Precisamos da língua portuguesa para aprender o francês, o inglês, para aprender outas línguas. Sem saber o português, e sem saber bem o português, como aprendemos? como comunicamos? de maneira que temos de aceitar uma coisa: temos duas línguas em Cabo Verde e nenhuma delas é mais importante que a outra. Estão em pé de igualdade. E temos de sabê-las bem.

Carlota - Considera viável a institucionalização do crioulo como língua oficial?

GA – Sim... Aliás, ainda anteontem, subscrevi uma petição no sentido de se oficializar o crioulo. Não há nenhuma razão para o crioulo não ser língua oficial em Cabo Verde. Nenhuma. Se há coisa oficial em CV é o crioulo. A nossa vida decorre em crioulo. Basta sair-se para a rua. Embora devamos ter consciência que precisamos saber o português, agora, neste momento, eu acho que se deve oficializar o crioulo como língua, mas respeitando alguns parâmetros. Eu não posso pôr amanhã na Constituição que o crioulo é língua oficial e de seguida ir a uma repartição pública pedir uma certidão e dizer que quero a minha certidão em crioulo. Não, devemos assumir o crioulo como língua

oficial, mas vamos criar espaço e tempo para ele se desenvolver. Por exemplo, há muitos países com duas ou mais línguas oficiais onde as pessoas podem escolher em qual querem trabalhar. Pode ser que a gente chegue lá. É desejável que a gente chegue lá, mas por enquanto não. Não devemos pôr o carro à frente dos bois

Alejandro - Como foi a sua infância na Boa Vista?

G.A. – Quando penso na minha infância na Boa Vista, penso sempre que não queria ter outra. É o período mais delicioso que eu me lembro de ter passado. Porque a B V era uma terra praticamente esquecida. Lembro-me de ter ficado muito admirado, aos dez anos, quando Craveiro Lopes foi visitar a BV e apareceu pendurado um dístico a dizer: Aqui também é Portugal. Embora estudássemos todos os rios e serras e localidades de Portugal, pensávamos que aquilo eram apenas umas coisas que precisávamos saber para fazer a 4.ª classe. Não sabíamos que a BV também era Portugal e ficámos maravilhados. Um lugar daqueles, abandonado, a que nunca ninguém ligava importância… nem polícia nós tínhamos! E também era Portugal! Nós achávamos que Portugal era uma terra riquíssima e afinal nós fazíamos parte dessa riqueza! Mas para mim, o aspeto mais importante da minha infância era a liberdade. Foi uma infância de extrema liberdade que até hoje nunca consegui perder, porque até hoje eu tenho consciência que continuo a ser um homem da BV tentando exercer todos os direitos que tinha nessa altura.

Kiara - Que impacto teve, na sua obra, esse seu crescimento na B.V?

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G.A. - Absoluto. Nunca perco de vista que sou um

homem da BV. De maneira que o impacto nas minhas obras é completo, é total. Por isso é que ainda agora quando escrevo, de alguma forma, faço alguma referência à BV. Toda a minha vivência, toda a minha estrutura vem da minha infância. Raramente vou à BV, mas costumo dizer que eu saí da BV mas a BV não saiu de mim. Continuo a ser inteiramente um homem da BV.

Liam - De onde surgiu a ideia para a escrita do livro A

Ilha Fantástica?

GA – Bom.. como já disse nasci e cresci na BV até

aos dezasseis, dezassete anos. Depois fui para a Praia, fui chamado para a tropa e enviado para o norte de Angola. Quando cheguei a Angola é que eu dei conta que tinha perdido o meu paraíso que era a BV. A BV era uma enorme extensão de areia branca e Angola era uma enorme extensão de árvores verdes, só que eu preferia a minha areia branca. Então comecei a escrever a minha infância na BV. Foi o verde de Angola que me fez lembrar do meu branco da BV e a então escrevi imensas histórias, mas perdi-as quase todas. Depois, fui para Portugal, acabei a tropa, estudei e vim para Cabo Verde. Em 1983, eu e dois amigos, resolvemos fundar a revista Ponto & Vírgula. Porque há muito tempo não se publicava uma revista no Mindelo, pensámos que os jovens escritores deviam estar com as gavetas cheias de papéis, cheias de coisas para publicar, mas aproximava-se a data do lançamento e tínhamos muito pouca coisa para publicar. Aliás, as pessoas que tinham enviado colaboração eram o Dr. Baltasar Lopes, o Dr. Aurélio Gonçalves, o Dr. Rendall Leite… os Claridosos. Os escritores mais antigos estavam a colaborar connosco, os jovens nada. Então eu disse-lhes, olhem, eu tenho umas histórias lá em casa, se vocês quiserem ver, para ver se vale a pena publicar… Dei as histórias aos meus companheiros e eles disseram que tinham gostado. Então resolvi inventar um pseudónimo, Romualdo Cruz, e publiquei as histórias da BV que não se tinham perdido. Na continuação daquelas, escrevi outras, que também foram publicadas no P&V. Mais, quando já existia a Ilhéu Editora, resolvi publicá-las em livro. Escrevi mais algumas e dei-lhes o título de Histórias da Boa Vista. Um amigo disse que não, que as pessoas ainda podiam pensar que era um livro sobre o Boavista futebol clube e sugeriu o título Histórias verídicas da Ilha fantástica. Aceitei, mas um outro amigo propôs que ficasse apenas A Ilha Fantástica. E assim ficou.

Nayma - As suas obras são caracterizadas pela presença de um protagonismo coletivo. Como é que caracteriza essa polifonia de vozes narradoras?

G.A. – A questão é a seguinte. Eu sou contador de histórias. Antigamente o contador de histórias só falava, mas eu sou um contador de histórias que escreve, que escreve livros. Sou um contador de histórias-escritor, não sei se posso chamar-me assim, mas enquanto contador de histórias sinto que história não é de uma pessoa, de um personagem, de um herói. Todos são heróis. Todos participam na história. Embora ultimamente tenha escrito alguns livros em que os personagens são mais individualizados, tenho consciência que, nos primeiros livros que escrevi, as pessoas, os heróis eram quase pessoas coletivas. Havia pouca predominância de um só personagem Dai a razão dessa polifonia.

Joaquim - As suas histórias são autobiográficas?

GA – Bom, todas as histórias são, de alguma forma, autobiográficas. Aliás, há um escritor inglês que diz que se lermos todas as obras que um escritor escreveu, ficamos a conhecer toda a sua vida. A gente não sabe é distinguir onde acaba a verdade e começa a mentira. O escritor mistura-as, mas ele sabe perfeitamente que, mesmo quando pensa que está a escrever ficção, sabe que, de alguma forma, está a escrever sobre si próprio. Portanto não se pode dizer que todas as obras sejam autobiográficas, mas também não se pode dizer que não sejam. Mesmo as obras mais malucas que a gente escreve, mesmo as coisas mais tontas que escrevemos são, de alguma forma, autobiografia. Pode é não ser uma autobiografia real, mas uma autobiografia imaginada.

Mateo - Com que idade começou a escrever?

GA – Comecei a escrever aos 15 anos. Comecei a escrever por uma razão, eu lia muito quando era miúdo. Encontrei, não sei como, alguns livros em minha casa. Depois de ler todos os livros de minha casa, comecei a pedir livros emprestados. Passava a minha vida a ler e depois havia uma outra questão, eu não gostava de trabalhar, nunca gostei de trabalhar, de maneira que preferia perder o meu tempo a ler. Os chineses costumam dizer que nunca devemos tentar começar a escrever um livro sem ler, pelo menos, mil. Não sei se, até essa idade, já tinha lido mil livros. O certo é que uma vez tive necessidade de começar a escrever para contar uma história. E foi aí que peguei em lápis e papel, escrevi não sei quantas páginas, perdi aquilo, não sei onde terá ficado, mas a partir daí fui sempre escrevendo, com maior ou menor regularidade, mas escrevi sempre. Na tropa, por exemplo, escrevi imenso,

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mas perdi infelizmente quase tudo, porque escrevia sem intenções de alguma vez vir a publicar. Escrevia pelo prazer de escrever. De maneira que, tanto ler como escrever, transformam-se em hábitos. A gente apanha o vício tanto da leitura como da escrita.

Rita - Por que começou a escrever?

GA – (risos) Estava a fugir a esta pergunta por isso é que não respondi. Na BV, todos os miúdos com, cinco, seis ou sete anos aprendiam a dançar, a nadar a pescar, a tocar instrumentos… Eu não aprendi nenhuma dessas coisas, nunca me interessei. Mas eu não sabia que não sabia nadar. Então uma vez fui para o mar com um irmão meu. Entrámos num bote e depois eu resolvi cair no mar. Não sabia nadar, ia morrendo. Quando o meu irmão viu que eu não estava a aparecer foi-me buscar, mas eu já estava desmaiado, cheio de água. Levou-me para terra, fiquei um bocado a recuperar e depois fui para casa. Quando cheguei a casa, a minha mãe deu-me uma sova e proibiu-me de ir ao mar. Acho que foi das ordens da minha mãe que eu cumpri religiosamente. Fiquei com medo do mar, mas também fiquei com medo de gente que morria no mar. Então, quando já tinha 15 anos, houve um desastre, um navio naufragou e morreram umas dez pessoas. Para a BV dez pessoas era muita gente. Naufragaram, morreram e eu fiquei com medo delas. Era como se me perseguissem dia e noite. Não conseguia estar sozinho. Até já ia para a cama às sete da noite com medo de me encontrar com eles. Um dia, pensei: se eu escrever sobre eles sou capaz de me libertar e então foi a primeira história que eu escrevi, sobre essa gente que tinha morrido. Inventei, claro, porque não estava lá com eles, inventei a forma como eles teriam morrido.

E efetivamente libertei-me deles. Até hoje, ainda penso que a escrita é uma forma de a gente se confessar. Escrevemos as coisas que nos magoam, as coisas que doem, mas é uma forma de libertação. Ainda hoje continuo a acreditar nisso.

Melissa - Tem orgulho em ser escritor?

GA – Nem orgulho nem falta de orgulho, isto é, ser escritor é normal. Quer dizer, eu sou advogado de profissão, mas não tenho grande orgulho em ser advogado, nem em ser escritor, mas também não me envergonho, bem entendido. Eu acho que é uma coisa vulgar, quando era jovem fui carpinteiro, mas também não tinha particular orgulho em ser carpinteiro - sobretudo porque serrar madeira nos deixa com dores no corpo. Penso que não há nenhuma razão particular para sentir orgulho em ser escritor, nem para me envergonhar. É uma atividade tão normal como qualquer outra.

Hugo - Quanto tempo demora a escrever um livro?

GA – Oh! É difícil responder. Houve um livro que eu escrevi em 15 dias, O Testamento do Sr. Napumoceno. Há um outro que eu escrevi em quatro anos, mas o tempo médio para escrever um livro é de um ano, menos de um ano não dá. Depende também do tema, dos prazos… Por exemplo, o primeiro livro que publiquei, O Testamento, foi escrito em duas semanas porque queria oferecer uma história a uma amiga que ia fazer anos e então o livro tinha de ficar pronto em tempo útil para fazer a oferta.

Tiago - O que significou para si o seu primeiro livro?

GA - É muito interessante essa pergunta, porque a

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gente pensa, quase sempre acontece, que a gente antecipa com muita ansiedade o dia em que o livro vai sair. Primeiro, o dia em o que o livro vai sair da Gráfica, mas afinal, não… Depois pensamos que o dia da apresentação do livro ao público é que vai ser o grande dia, mas depois constatamos que afinal foi mais um dia. Não foi particularmente mais interessante que os outros dias. De maneira que a piada é o dia antecipado que a gente vive, não o momento em que as coisas acontecem …

Rafael - Quais foram os passos para chegar até aqui, onde está agora?

GA - Se eu dissesse que tive um plano, estaria a mentir. As coisas foram acontecendo, naturalmente. Por exemplo, quando escrevi O Testamento foi para oferecer a uma amiga, mas outras pessoas leram o livro e disseram: temos de publicar isto. Mas publicar onde? Na altura havia só o Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco, que diziam ter milhares de inéditos para publicar e não tinham tempo para os publicar. Então, eu e mais cinco amigos, decidimos fundar uma editora, a Ilhéu Editora. Publicámos O Testamento como primeiro livro. Depois, publicámos O meu Poeta e foram aparecendo outros autores. Eu próprio tinha muitos escritos, em stand by, porque escritos à mão, mas dava muito trabalho corrigi-los. Entretanto apareceram os computadores e eu comprei um e com o computador foi muito mais fácil fazer a correção. Eu costumo dizer que se não fosse o computador nunca teria publicado um livro. Portanto, dizer que eu tive um plano para chegar aqui, não, não tive. Aconteceu.

Inês - Em quem se inspira para criar as personagens?

GA - Em nós, em vocês, nas pessoas que eu conheço, nas pessoas com quem eu falo, na nossa vida social porque são as pessoas com quem nós convivemos, que ouvimos falar, que nos dão ideias para criar personagens. Nenhuma personagem nasce do nada.

Nasce sempre de alguma pessoa, agora pode acontecer a personagem nascer ao contrário, por exemplo, uma pessoa muito boa pode fazer-me criar uma personagem muito má. Eu posso dizer que esta personagem saiu de fulano de tal, mas ser exatamente o contrário dessa pessoa que conheço. Mas o que escrevo é sempre baseado na vida real. A gente inventa pouco.

Caio - Na sua opinião, o povo cabo-verdiano é um povo leitor?

GA - Bom…quer dizer, não se pode dizer que o povo cabo-verdiano não seja um povo leitor. Não se pode dizer que é um povo leitor, mas também não se pode dizer que as pessoas não leiam. O que falta em CV, na minha opinião, é espírito crítico. Lermos um livro e sermos capaz de discutir, de dizer a minha opinião sobre este livro é esta, por isto, por aquilo e aqueloutro. Às vezes dizem-me Ah! Eu gostei muito do teu livro e eu pergunto porquê e dizem-me, porque gostei. Não sabem dizer por que gostaram. Isto só se consegue se, quando lemos um livro, não nos fixarmos apenas nos acontecimentos narrados. O livro deve levar-nos para lá desse envolvimento, deve criar no nosso espírito, como que a planta, o caldo em que o livro se desenvolve. Deve levar-nos a estabelecer comparações porque enquanto não tivermos como estabelecer comparações, não temos como apreciar o livro, não podemos dizer o livro é bom ou não é bom. Portanto, tem que de se ler muito, mas ler com atenção, e tentar entender que mensagem o livro nos está a transmitir e se aceitamos ou não aceitamos essa mensagem. Só lendo e comparando muito é que conseguimos fazer isso.

Rossana - Sabemos que contar histórias é uma tradição que vem passando de geração em geração. Que lugar ocupa a tradição oral nos dias atuais?

GA – Pois… no meu tempo a tradição oral era muito

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importante. Não havia eletricidade, não havia televisão, então a gente sentava-se à noite, à porta de casa a ouvir histórias. Hoje já não. Hoje já nem nos sentamos à porta de casa para não sermos atacados por ladrões. Da tradição de contar, praticamente, já não se ouve falar. Talvez ainda haja alguns contadores de histórias por escrito, mas histórias orais… Por exemplo, os homens da BV que contavam histórias na minha infância já morreram há não sei quantos anos e não soube que tivesse havido sucessores deles. De maneira que é uma tradição que infelizmente se está a perder.

Luna - De todas as obras que já publicou, qual foi a que mais o marcou e por quê?

GA – O livro de que mais gostamos é sempre aquele que estamos a escrever. Os outros passaram à história, de maneira que não sou capaz de dizer que o livro que me marcou mais foi este, aquele ou outro.

Emely - Qual a melhor lembrança que guarda, relacionada com os seus livros?

GA – Olha não tinha pensado nisto. É que escrever é um ato normal, de maneira que não sinto, não penso, qual a lembrança que o livro me deixou. Eu acho que todos estão em pé de igualdade, todos têm lembranças, mas honestamente não sei responder

Martim - Como é o processo de escrita, desde o nascimento/criação de uma obra até ao momento da publicação?

GA – O processo de escrita é … Bem, deixa-me contar o processo de escrita do livro que estou a escrever agora. Eu escrevi dois livros, O Fiel Defunto e O Último Mugido sobre a história de um escritor aqui em S. Vicente. A história envolve o escritor, uma amiga do escritor

e o marido desta. Um dia, o marido mata o escritor. As pessoas começam a especular porquê, visto serem tão amigos... O primeiro livro foi escrito contando um pouco da vida do escritor, o segundo livro foi escrito na perspetiva da viúva. Nenhum explica porque motivo o escritor foi morto e as pessoas continuavam a perguntar-me, porque é que ele o matou, continuamos sem saber porque é que ele o matou. Então pensei que talvez fosse interessante escrever um terceiro livro em que vamos tentar descobrir as razões porque ele matou o amigo. Eu começo o livro com o julgamento, o que me pareceu a forma mais lógica. Assim, é a partir do momento em que ele é julgado, condenado e está na cadeia que começa a reviver o passado com eles: a relação com a mulher, a relação com o amigo e por aí fora. Há escritores que têm um plano delineado da obra… no primeiro capítulo acontece tal, tal, no segundo … Quando escrevi A Família Trago resolvi fazer isso e delineei alguns capítulos. Começo assim, no segundo trato de tal e por aí fora. No fim do primeiro capítulo concluí que não tenho nada a ver com esse esquema. Se eu tentar prosseguir esse esquema não vou fazer nada. De maneira que continuei a escrever como sempre escrevi. Na maior parte das vezes, quando termino um capítulo não sei como o capítulo seguinte vai começar. Reconheço que tenho boa memória, ainda tenho boa memória, embora de vez em quando falhe, e então eu sei bem o que já escrevi para trás e não me preocupo grandemente em saber o que vai acontecer a seguir porque eu penso que a própria história, o próprio desenvolvimento da história é que nos diz o que é que acontece a seguir. De modo que não há planos definidos para mim, não há planos definidos para a escrita.

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David - Qual foi a sensação de ter trazido o Prémio Camões para Cabo Verde?

GA - Repara, eu não fui o primeiro, já tinha havido um, o poeta Arménio Vieira. Julgo que foi dez anos antes de mim que lhe foi também atribuído o prémio Camões. Eu fui o segundo. Qual foi a sensação? Como é que hei de dizer? Não quero ser desonesto. O prémio Camões não modificou muito a minha vida. Naquele período - agora já não - dei mais entrevistas, tive mais convites, mas também calhou que naquela altura estava a pronto para ser posto no mercado o livro O Fiel Defunto, então calhou tudo ao mesmo tempo. Inegavelmente o prémio Camões, em termos financeiros, é um prémio muito interessante para qualquer escritor pobre. Sim, é preciso ter isso em conta. Aí todos nós gostaríamos de ter o prémio Camões. Agora, aquilo que ele significa, em termos de dar mais ou menos fama, talvez não seja tão significativo. Os prémios, antigamente tinham grande valor. Tinham uma importância que foram perdendo.

Nina - Neste momento, está a escrever algum livro?

GA – Estou, estou mais a corrigir do que propriamente a escrever. É o tal terceiro volume que eu referi dessa trilogia. Professora Ana Rita - Já estão colocadas todas as questões, não sei se há mais alguma pergunta que queiram colocar…

Luna - Gostava de saber por que razão é que o senhor disse há pouco que não gostava de trabalhar?

GA – Porque sou preguiçoso. Ainda hoje não gosto de trabalhar.

Marco - mas o senhor escreve livros…

GA - Escrever não é trabalho. É prazer. Escrever e ler não é trabalho, é prazer

Liam - O senhor tem um livro que é A Morte do Ouvidor. O que é que isso quer dizer?

GA – O ouvidor era um juiz, no tempo da monarquia. Eram juízes que os reis mandavam para as colónias para vigiar as suas leis, para saber se as pessoas estavam a fazer as coisas bem. O Ouvidor era uma figura pública importante. Em S. Tiago, no final do séc. XVIII, aconteceu que mandaram um Ouvidor que as pessoas não queriam e então mataram-no. O livro é a história da morte desse homem.

Liam - O senhor ainda tem outro livro que é A Morte do Meu Poeta. Tem a ver com A Morte do Ouvidor?

GA – Não, não. De forma nenhuma. A Morte do meu Poeta é quase uma brincadeira. A Morte do Ouvidor é um livro sério, A Morte do meu Poeta é um livro de brincadeira. O meu Poeta não existiu. O Ouvidor existiu.

Rossana - Por que é que o senhor, como disse atrás, não se orgulha assim tanto de ser escritor?

GA - Porque não é necessário. Não, não tenho vergonha também. Não tenho orgulho em ser escritor como, digamos, de uma maneira geral, as outras pessoas não têm especial orgulho na profissão que exercem. É neste sentido que digo isto. Acho aliás muito mal que se considere que os escritores são pessoas de excelência, que são mais importantes que as outras. Não, são pessoas iguais às outras, têm imaginação, são capazes de pôr a sua imaginação a trabalhar, de inventar coisas que podem dar prazer às outras na leitura, mas isto não os faz mais do que os outros.Professora Ana Rita –Agora sim, temos de terminar e quero agradecer a sua presença. Eles são muito curiosos, são alunos-leitores e têm muita sede de conhecimento. Gostam muito de ler e este fim de tarde foi muito agradável, muito enriquecedor e com certeza poderá inspirá-los para as suas escritas criativas, porque eles gostam muito de escrever.

GA – Muito obrigado. Fiquei muito contente por ter sido convidado para estar aqui e espero que não seja a última vez.

Precisamos da língua portuguesa para aprender o francês, o inglês, para aprender outas línguas.Sem

saber o português, e sem saber bem o português, como aprendemos? como comunicamos? de maneira que temos de aceitar uma coisa: temos duas línguas em Cabo Verde e

nenhuma delas é mais importante que a outra.

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Guiné-BissauEscola Portuguesa da Guiné-BissauA língua portuguesa na Guiné-Bissau - continuidades e descontinuidades 40Wilson Barbosa

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Gostaria de começar esta minha breve reflexão sobre a língua portuguesa na Guiné-Bissau, citando Amílcar Lopes Cabral – considerado o fundador das nacionalidades guineense e caboverdeanas: “Temos que ter um sentido real da nossa cultura. Português (língua) é uma das coisas que os portugueses nos deixaram, porque a língua não é prova de nada, mas senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo (Cabral, 1976 apud Caniato, 2002:134)” Apesar da Guiné-Bissau ser um país de língua oficial portuguesa, apenas uma baixa percentagem da sua população fala português, menos de 15% tem um domínio aceitável e apenas uma pequena percentagem da população guineense tem o português como língua materna. Além disso, em comparação com os outros PALOP a Guiné-Bissau é o país onde a língua portuguesa é menos usada. Esta situação deve-se à existência duma grande quantidade de línguas étnicas, à alta taxa de analfabetismo e ao facto da

Guiné-Bissau ser um país encravado entre o Senegal e a Guiné-Conacri, com uma expressiva imigração dessas comunidades francófonas no país devido à abertura à integração sub-regional e da grande participação destas populações no comércio guineense. Assim, podemos concluir como é preocupante o atual sistema de ensino da língua portuguesa no ensino primário, secundário e superior. Por razões históricas, o português nunca foi efetivamente implantado no interior da Guiné-Bissau, onde predominam, até hoje, as línguas étnicas e o crioulo, ainda que o português seja a língua oficial, a língua de ensino e também a língua da produção literária, da imprensa sobretudo escrita, da legislação e administração. O português não se fala, não se ouve, nem em casa, nem nas ruas, estando restrito o seu uso a uma elite política e intelectual. Um dos grandes problemas da língua portuguesa na Guiné-Bissau, é não passar da escrita para a oralidade, uma vez que o português está no registo escrito, que acompanha a oralidade onde é usado o crioulo.

A língua portuguesa naGuiné-Bissau-continuidades e

descontinuidades Wilson BarbosaDiretor da Escola Portuguesa da Guiné-Bissau

Um dos grandes problemas da língua portuguesa na

Guiné-Bissau, é não passar da escrita para a oralidade,

uma vez que o português está no registo escrito, que

acompanha a oralidade onde é usado o crioulo.

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Esta situação, torna ainda mais prementes as dificuldades que o ensino do português enfrenta no sistema educativo guineense, entre elas:- Um corpo docente com fracas competências ao nível do domínio da língua portuguesa e muitos sem formação superior para lecionar;- Falta de manuais adequados às especificidades do ensino de português como língua segunda na Guiné-Bissau;- Escassez de material bibliográfico, etc.

É assinalável o esforço que, ao longo de várias décadas, o Instituto Camões tem vindo a fazer em prol da língua portuguesa na Guiné-Bissau. Nos últimos anos o enfoque é dado à formação de professores para o ensino secundário. Todavia, os resultados são ainda pouco visíveis. Na verdade, é nessa língua que se processa todo o ensino, desde o ensino básico até ao superior. Porém, falta a utilização da língua portuguesa na comunicação oral. As pessoas revelam ainda uma certa “resistência” à utilização da oralidade

em português. É de assinalar o facto de, mesmo em relação aos professores do ensino secundário formados pelo Instituto Camões na Escola Normal Superior “Tchico Té”, têm dificuldades na oralidade da língua portuguesa. Daí que, o papel da língua materna na aprendizagem de outras línguas constitui um dos aspetos que julgo ser particularmente relevante no caso da Guiné-Bissau, tendo em conta a diversidade linguística existente no território. A inexistência de uma política educativa que alie de forma construtiva a presença das línguas maternas africanas e do crioulo com a língua portuguesa, aliada à situação de diglossia reinante na Guiné-Bissau, são fatores inibidores do processo de desenvolvimento da qualidade e do sucesso do sistema de ensino, com repercussões na sociedade guineense e no próprio crescimento do país.

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

MacauEscola Portuguesa de MacauLíngua portuguesa, no contexto de Macau 43Miguel de Senna Fernandes

Dia Mundial da Língua Portuguesa 46Alexandra de Aragão

Português, língua oficial 48Vasco Baptista A língua unificadora 49Lourenço Drogas

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

As línguas nascem e perduram pelo uso e sentido de utilidade. No caso da língua portuguesa em Macau houve quem vaticinasse o seu fim, a partir do dia em que hasteasse outra bandeira que não a portuguesa. O Português foi a língua dos manuais de aprendizagem nas escolas oficiais, das leis, dos procedimentos administrativos, das posturas municipais, dos autos de notícia da polícia, da comunicação mais corriqueira entre os departamentos governamentais, das petições e exposições que qualquer cidadão quisesse fazer à Administração Pública. Foi também língua da elite macaense, que até os magnatas de etnia chinesa prezavam-se em proferir um "olá, está bom?", um "muito obrigado" ou então "adeus" no fim de cada convívio social elegante. Do mesmo modo, mas por outras razões, palavras soltas em português se ouviam no mercado, nas mercearias, cafés e restaurantes, onde frequentavam donas de casa, esposas de oficiais e funcionários portugueses. Foi língua de soberania nesse pequeno mundo, à volta do qual esteve sempre presente a discreta, mas esmagadora, maioria chinesa. Chineses e portugueses viveram paredes meias, desde o início da fundação do Estabelecimento, numa

coexistência que conveio a ambos os povos. Se para os primeiros era terra que evocava a deusa A-Má, os segundos chamaram-lhe de Cidade do Santo Nome de Deus. A discrição e a não ingerência mútuas em relação a assuntos respeitantes a cada parte, marcaram indelevelmente uma evolução peculiar nas relações seculares de duas nações, tão díspares na sua origem, nos seus valores, no seu sentido de boa-fé e de fado, nos códigos civilizacionais de conduta, numa espécie de pax macaonensis única no mundo. Não obstante a soberania sobre o enclave tivesse estado nas mãos de Portugal, este nunca verdadeiramente afrontou a China, mesmo nos tempos do atribulado consulado de Ferreira do Amaral, do nacionalismo do Estado Novo ou da ascensão ao poder do Partido Comunista Chinês. Pelo contrário, exerceu-se uma diplomacia real e pragmática, do "terra-a-terra" de todos os dias e nos modos mais informais do possível, resultando no tempo uma relação histórica e frutuosa, de bom senso, de cumplicidade e de plena consciência do papel histórico de cada um no Mundo e, em particular, num território ínfimo como sempre foi Macau.

Língua portuguesa, no contexto de Macau Miguel de Senna Fernandes

Vice-Presidente da Fundação Escola Portuguesa de Macau

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

É neste contexto que olhamos para o papel e importância da Língua Portuguesa, aqui neste local do Mundo. Apesar da longa história da presença portuguesa em Macau, não se logrou difundir a língua lusa à população em geral, nos mesmos termos como acontecera nas outras ex-colónias portuguesas. As escolas oficiais durante a administração portuguesa eram até gratuitas, todavia nunca se delineou uma política de imposição do ensino da língua, nem mesmo nas escolas de ensino privado. A cultura monolítica chinesa, estabilizada na sua evolução e alicerçada no peso de uma História de cinco milénios, era (como continua a ser) impermeável a qualquer influência cultural por banda de outros povos que não chineses. A língua era tolerada porque tolerada fora a presença de Portugal. Podia-se pensar que tal posição reticente valesse apenas para Macau. E não sendo o Português aquela ferramenta linguística que permitiria ao seu utente singrar numa carreira profissional de sucesso, explicaria a aparente apatia por parte dos chineses. Todavia, nem mesmo em Hong Kong, cedida à força aos ingleses, onde o ensino do inglês até se tornou obrigatório, a língua britânica teve maior sorte. A maioria dos chineses continuava a rejeitar o idioma alienígena. E agora, com a mudança dos tempos, imposta pelo retorno de Macau à grande China, apesar das garantias consagradas na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, que fazer com a Língua Portuguesa?

Agora que a Administração deixou de ser oriunda de Lisboa, que parte significativa de portugueses saíu de Macau como consequência da transferência de soberania, que suporte humano teria essa língua? Ditou-se a sina e não faltaram premonições do seu fim. Mas a História também se escreve por linhas tortas, muitas vezes é irónica e quantas vezes não tem traído os nossos prognósticos. Se a desintegração do velho Império Português, com a independência das suas ex-colónias, trouxe mágoas e feridas por sarar, movimentos migratórios, conturbação social e algum complexo (injustificado) de culpa em Portugal, ela criou uma realidade nova indesmentível: nasceram cinco países africanos orlando a costa atlântica e colhendo o Índico, um na Oceania, a tudo isso juntando-se o Brasil na América do Sul e Portugal à cabeça da Europa. Todos falando Português. A China teria muito a ganhar com a aproximação a essas nações, completando decisivamente a sua visão ambiciosa e globalista de "Uma Faixa, Uma Rota". E fá-lo-ia com legitimidade histórica: através de Macau, elevando a secular cidade a plataforma estratégica para as relações económicas e culturais com países de expressão portuguesa. Defender a língua portuguesa, ultrapassou os limites de uma necessidade comunitária e local dos seus falantes. A língua deixou de ser uma emanação de uma soberania, para se transformar em algo útil para os desígnios, não só da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), mas sobretudo do Governo Central

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da República Popular da China. A Língua Portuguesa é também língua oficial. Desde a criação da RAEM, o seu ensino, está assegurado por instituições locais como a Escola Portuguesa de Macau, o Instituto Português do Oriente, o Instituto Politécnico de Macau, o Departamento dos Estudos Portugueses da Universidade de Macau, entre outras. O seu uso, embora continue a não ser generalizado, continua a merecer atenção por parte das autoridades locais. Não obstante, há que registar que nos últimos 15 anos assistimos um crescente interesse por parte de pessoas de etnia chinesa, não só entre adultos mas sobretudo os respectivos filhos, na sua aprendizagem. O que vem demonstrar a reversão do que teria sido o destino previsível da língua de Camões. O que motiva esse interesse em cada um, não ouso especular. Todavia, a perspectiva de uma carreira profissional começa a desenhar-se com mais frequência. Na verdade, não é isso que está na base das nossas escolhas linguísticas?

Que pensar sobre isso?

A língua portuguesa, como todas as línguas do uso corrente dependem da sua utilidade no contexto em causa. A sua sobrevivência não está garantida e há que trabalhar incessantemente para que subsista a sua razão de existir. É por isso fundamental que ela seja também entendida como algo útil. Trata-se de um desafio para quem tenha, por missão ou ofício, divulgá-la neste espaço de terra em que tudo é mutável a um ritmo vertiginoso. Sem pretender questionar o que muito meritoriamente se escreveu sobre este sempre difícil e delicado tema, não há filosofia, nem estratégia que o valha, se o ensino e divulgação da língua, se não for concebido para Macau. Historicamente aqui se aprendeu Português, porque era útil a todos que tivessem de estar nesta terra. E quem ensinou com sucesso soube fazê-lo moldando-se às especificidades da terra, adquirindo conhecimento das suas nuances, dos seus "quês" e "porquês". Souberam transmitir o sentido útil e pragmático da língua.

Mas valerá a pena o esforço?

A resposta afirmativa impõe-se. Macau destaca-se pela sua diversidade, pela sua multiculturalidade, onde a cultura de base portuguesa é o motor da diferença. Aprender o Português, é ter acesso privilegiado a essa diferença.

Macau destaca-se pela sua diversidade, pela sua

multiculturalidade, onde a cultura de base portuguesa

é o motor da diferença. Aprender o Português, é ter acesso privilegiado a essa

diferença.

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

É enquanto Coordenadora do Departamento Curricular de Línguas Românicas da Escola Portuguesa de Macau (EPM) que escrevo estas linhas, com o mesmo entusiasmo com que me dirigi a toda a comunidade educativa no primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa a 5 de maio de 2020, juntando-me aos muitos milhões de falantes que, graças aos auspícios da Unesco, festejaram esse histórico evento. Em 2020 comemorou-se, igualmente, os 60 anos de ensino do Português na República Popular da China, uma “aventura” que conheceu um crescimento exponencial no número de instituições, aprendentes e docentes, sobretudo, nas últimas duas décadas, havendo, atualmente, mais de 35 instituições de ensino superior onde se ensina o português. São múltiplos os fatores que contribuíram para o interesse pela língua e cultura portuguesas, destacando-se as históricas relações de proximidade que Portugal tem mantido com a China desde que os portugueses aportaram no pequeno enclave piscatório de Macau. Contudo, poder-se-á mencionar outro acontecimento de grande significado, o retorno de Macau à China, em dezembro de 1999, e a consequente passagem de Macau a Região Administrativa Especial da China (RAEM), momento em que a língua portuguesa manteve o seu estatuto de língua oficial até 2049. É ainda de salientar que a ligação de Macau ao mundo lusófono, composto por um vasto conjunto de países com um potencial comercial e económico de grande interesse para a China, foi um fator que levou, em 2003, à criação do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Macau), mais conhecido como Fórum de Macau, entidade destinada a coordenar as relações entre a China e os Países de Língua Portuguesa (PLP). Macau e a língua portuguesa passaram a desempenhar um papel fundamental nessa ligação e, consequentemente, a formação de quadros bilingues tornou-se num objetivo essencial para que essas relações se possam concretizar. Macau possui condições vantajosas para se converter num centro de ensino do português nesta área do mundo uma vez que conta com o apoio de instituições de ensino superior, escolas oficiais e particulares, onde é ministrado nos ensinos primário e secundário e, o mais importante, conta com o apoio do Governo Central1. A título de

Dia Mundial da Língua Portuguesa Alexandra de Aragão

Coord. do Departamento de Línguas Românicas da EPM

“A alma do meu país teve o tamanho do mundo” afirmou, um dia, Vergílio Ferreira. Quis o destino que a língua portuguesa transcendesse largamente as fronteiras do pequeno país que a viu nascer para se tornar no improvável património de milhões de falantes que a recriam e modernizam diariamente. Manter vivo este legado na RAEM deve continuar a ser o maior projeto da Escola Portuguesa de Macau."

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Alexandra de AragãoCoord. do Departamento de Línguas Românicas da EPM

curiosidade, e segundo estatísticas do ano letivo 2019-2020, 51 escolas de Macau ofereciam o ensino do Português a cerca de 8.000 alunos, envolvendo 105 docentes e, no ensino superior, cerca de 1.500 alunos aprendiam o Português, o que corresponde a um aumento de 374% desde a formação da RAEM, em 1999 2. Igualmente, a Escola Portuguesa de Macau tem conhecido um crescimento acentuado na procura de um currículo de matriz portuguesa por parte da comunidade não falante do Português, sobretudo, chinesa, alterando significativamente o perfil do aluno que a frequenta. Assim, no presente ano letivo, num universo de 670 alunos, o Português não é a primeira língua de 341 discentes, correspondendo a uma percentagem de 51%, contra 326 alunos que o têm como primeira língua, sendo que o 1º ciclo concentra a maior percentagem de alunos de língua não materna, ou seja, 65,3%. É ainda de salientar que, na EPM, convivem crianças de 23 nacionalidades, sendo esta vertente multicultural uma das suas maiores riquezas. Este novo cenário que se impõe atualmente, tão difícil de imaginar aquando da criação da escola em 1998, constitui um enorme desafio e uma responsabilidade acrescida a que a Direção da EPM e o Departamento de Português, em particular, têm devotado particular atenção, uma vez que a maioria desses alunos não se encontram imersos na língua portuguesa no seu quotidiano, fazendo uso da mesma apenas em situação de sala de aula. Estratégias e métodos pedagógicos diferenciados, aulas de PLNM a par de aulas de reforço linguístico, são diversos os mecanismos oferecidos pela escola, envolvendo um corpo docente (com destaque para os professores do primeiro ciclo) que não se poupa a esforços para que estes alunos tenham sucesso. Ensinar português na EPM, seja PLM ou PLNM, e penso que falo por todos os que integram o Departamento que coordeno, pressupõe um elevado sentido de responsabilidade a par de uma sensibilidade para lidar com as especificidades de um sistema educativo de matriz portuguesa, sim, mas inserido no contexto asiático, com as suas exigências e singularidades. Uma escola entre dois mundos com perspetivas nem sempre coincidentes, num equilíbrio, por vezes, difícil de se estabelecer.

Com 22 anos de existência, a EPM continua a ser uma referência na RAEM, escolhida não apenas pela qualidade do seu ensino, como o têm demonstrado os bons resultados dos nossos alunos na avaliação externa, mas também respeitada na comunidade que a acolhe pelos valores humanistas que difunde e que tão bem caracterizam o modo de ser português, no respeito pelo Outro e no modo como acolhe esta pequena comunidade multicultural. É esta riqueza que a torna numa instituição com características únicas em Macau. A história de Macau ensina-nos que o ensino da Língua Portuguesa em Macau obedeceu sempre a decisões políticas que atrasaram ou ajudaram a sua difusão. Neste momento, essa dimensão política tornou-se ainda mais notória na medida em que passou a ser uma “ferramenta” essencial para o desenvolvimento económico e comercial da China nos países de língua portuguesa. Enquanto este interesse perdurar, a língua portuguesa continuará a viver “o bom momento” que se verifica tanto em Macau como na China continental e o bilinguismo continuará a ser incentivado. “A alma do meu país teve o tamanho do mundo” afirmou, um dia, Vergílio Ferreira. De facto, quis o destino que a língua portuguesa transcendesse largamente as fronteiras do pequeno país que a viu nascer para se tornar no improvável património de milhões de falantes que a recriam e modernizam diariamente. Manter vivo este legado na RAEM deve continuar a ser o maior projeto da Escola Portuguesa de Macau. Neste 5 de maio, data tão especial para o mundo lusófono, faço votos para que a língua portuguesa continue a ser celebrada nesta escola. Parabéns, Língua Portuguesa!

1 A propósito do estatuto de “centro” e de “plataforma” atribuído à RAEM e a importância do bilinguismo leia-se o discurso proferido pelo Primeiro-Ministro chinês Li Keqiang na cerimónia de abertura da 5.ª Conferência Ministerial do Fórum realizada na RAEM, a 11 de outubro de 2016, em:http://portuguese.xinhuaonet,com/201610/12/c_135747383.htm;para informações sobre o Fórum de Macau consultar:https://www.forumchinaplp.org.mo/pt/forum-de-macau/2 https://observalinguaportuguesa.org/category/dados-estatisticos/informacoes-dados-estatisticos/

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Uma escola em Portugal organizou um torneio de futebol com uma equipa de uma escola de cada um dos países onde se fala português. No dia do início do torneio, íamo-nos todos juntar, logo de manhã, para nos conhecermos. Tínhamos combinado que nós, os alunos da minha escola, seríamos os anfitriões dos colegas das diferentes equipas. Durante todo o dia, mostramos o campo, os balneários, o refeitório, a cantina e o dormitório. Apresentámo-los aos nossos treinadores. Almoçamos, descansamos e, a meio da tarde, fomos treinar um bocado. À noite, quando cada equipa recolheu ao seu dormitório, o André, o melhor aluno de português da nossa turma, estava profundamente transtornado porque o colega brasileiro lhe dissera “És um faroleiro!”. Explicou-nos que, depois de muita conversa, conseguira perceber que o tinha apelidado de gabarola. Também o Kico se queixou que, logo de manhã, quando chegaram, ouvira um dos rapazes a comentar “Agorinha vim num machimbombo para tomar o matabicho” e que não percebera patavina. O Leonel, que tinha vivido em Moçambique, fez-lhe a «tradução»: “Agora mesmo, vim de autocarro, para tomar o pequeno-almoço”. “A garina tirou a comida da geladeira. Era muito bom porque tinha jinguba e muito jindungo”, lançou o Carlos, em jeito de desafio, perguntando-nos se sabíamos o que isto quereria dizer. Geladeira… lá percebemos que deveria ser o frigorífico. Mas…

jinguba e jindungo? Ninguém conseguiu descobrir. Em Angola, estas palavras significam “amendoim e malagueta”. Estávamos convencidos que, como nos tinham dito, todos falávamos a mesma língua. Chegámos à conclusão que sim, que nos percebíamos uns aos outros, mas que as diferenças eram muitas. Em quase todos os países, para além do Português, língua oficial, há um crioulo formado da junção do português com as línguas originárias de cada um deles. Pela primeira vez este ano, aprovado pela UNESCO, passa-se a comemorar, a 5 de maio, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, porque o português é uma língua de comunicação global. Para além de Portugal, são sete os países onde se fala a língua portuguesa: Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, S.Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Estes países pertencem à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), projeto político que tem como fundamento a língua portuguesa como património comum e vínculo histórico entre todos. Os países de língua portuguesa ocupam uma extensão de 10 742 000 km2 , em quatro continentes, Europa, América, Ásia e África. A maior parte dos países situam-se na zona tropical sub-equatorial, pelo que a língua portuguesa é a mais falada no hemisfério sul. Imaginem só, há 265 milhões de pessoas que têm o português como língua oficial.

Português, língua oficial Vasco BaptistaEscola Portuguesa de Macau, 6.º ano

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

No dia 5 de maio celebra-se, a partir de 2020 e por ordem da UNESCO, o dia nacional da língua portuguesa. Esta língua originou-se do latim vulgar, falado antigamente pelos habitantes da Península Ibérica. Contudo, a língua mãe do português é o galaico-português, uma língua falada em Portugal e na Galiza que também deu origem ao galego. Para entendermos tudo isto talvez seja melhor recuar no tempo. O rei D. Dinis (o “Rei Poeta”) é considerado o Pai da língua portuguesa, pois foi ele que decidiu que o português seria a língua oficial do reino, em vez do latim. Assim, o primeiro documento escrito em galaico-português é o Auto de Partilha, que foi escrito em 1192. Graças à época dos descobrimentos, o português foi-se espalhando pelo mundo inteiro, estando atualmente presente em quase todos os continentes. Encontramos o português em sítios como o Canadá, o Brasil, Angola e Moçambique, nos continentes americano e africano, enquanto que na Ásia está presente em sítios mais específicos, tais como Timor-Leste, Japão, Malásia, Macau, etc. Deste modo, a língua

portuguesa fez a primeira globalização do mundo e, ao fazê-lo, não só facilitou o contacto, como também unificou os continentes. Com esta enorme propagação, a língua portuguesa passou a ser de todos que a falavam. Passou a ser dos escritores, que utilizavam as suas palavras para criar verdadeiras obras primas, sendo que estes são muito variados, desde Ondjaki e Mia Couto, de Angola e Moçambique, a Fernando Pessoa e Jorge Amado, de Portugal e do Brasil. É por isso que, mesmo as línguas mais faladas do que o português, como o inglês, não têm um dia nacional dedicado à sua língua. É por causa disto que adoro a língua portuguesa e me sinto orgulhoso de a falar, pois esta é uma língua única, cheia de amor e beleza, mas também de fúria e tristeza, que unificou o Planeta Terra. Desde a primeira globalização mundial até à unificação dos continentes, o português tem percorrido um longo caminho sendo, realmente, uma língua unificadora.

Uma língua unificadora Lourenço DrogasEscola Portuguesa de Macau, 7.º ano

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MoçambiqueEscola Portuguesa de Moçambique-CELPUma luta corpo-a-corpo com a língua portuguesa 51Rogério Manjate

Contar histórias com a avó ao Colo 55Luísa Antunes

Escola Portuguesa de NampulaLíngua Portuguesa 56Maria José Gustavo

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Por volta de 1996, decidi escrever ficção narrativa. Não foi daqui para aqui. Só estava farto de desconseguir de escrever poesia. Só que esta minha vontade de escrever contos redundou numa grande desilusão. Compreendi que não sabia escrever logo nos primeiros dois contos. Tinha várias ideias e notas para os enredos e personagens e as imagens todas na cabeça, mas não conseguia comunicar isso no papel. Não foi nenhum leitor a avisar-me. Era eu próprio que ficava frustrado porque não conseguia materializar ou traduzir em palavras determinadas imagens que me eram mentalmente claras. Travei lutas corpo a corpo com a língua portuguesa. A solução que encontrei para esta desilusão foi parar de escrever e dedicar-me ao estudo da escrita literária. Mas nos anos 90 não existiam em Maputo oficinas de escrita criativa ou de leitura, frequentes na Europa e na América. Também não tínhamos a Internet com os milhares de tutoriais, podcasts e manuais de instruções para tudo e mais alguma coisa. Reflectindo hoje sobre o processo da minha produção literário, acho que caibo nestes versos do Caetano Veloso da canção Livro: “Quase não tínhamos livros em casa/ E a cidade não tinha livraria/ Mas os livros que em nossa vida entraram/ São como a radiação de um corpo negro/

Apontando pra a expansão do Universo/ Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso/ E, sem dúvida, sobretudo o verso/ É o que pode lançar mundos no mundo.”

Ainda que no princípio o meu mundo estivesse preso na minha cabeça, fui percebendo mais tarde que a minha dificuldade era motivada, acima de tudo, pelo facto de o português não ser a minha língua materna. Pois, segundo estudiosos como Gilberto Matusse e Francisco Noa, são evidentes os contornos da problemática da língua literária, pelo facto de o escritor africano em geral ter de construir a sua língua literária axialmente a partir de uma língua natural alienígena. A minha língua materna é o ronga, uma das línguas predominantes em Maputo. Quando aos 6 anos comecei a escola, não sabia falar português, tal como a maioria dos meus vizinhos e das crianças do meu bairro e também os cerca de 90% dos homens e mulheres do meu país. Em casa falávamos ronga ou changana, e só na escola o português. Infelizmente, o ensino não era bilingue. Mas, mais grave do que isso, é que as dezenas de línguas nacionais eram proibidas, no espaço escolar, de falar a sua língua materna o que porventura poderia permitir uma espécie de mediação ou negociação no processo de aprendizagem da nova língua – a língua portuguesa.

Uma luta corpo-a-corpocom a língua portuguesa Rogério Manjate

Encenador, escritor, ator e realizador

É caso para dizer que a actividade literária obrigou a língua portuguesa a expandir

os seus tentáculos para poder segurar, coser e incorporar

o tecido social e cultural moçambicano.

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Pode-se depreender que a minha língua materna não foi desenvolvida porque desde cedo teve de dar lugar a uma outra que me era imposta, que devia ser conquistada a ferro e fogo – um troféu de guerra, como terá dito Pepetela. O ronga foi secundarizado e finalmente atrofiado. Mal leio e escrevo em ronga. Hoje todo o meu esquema de pensamento e, se quisermos, de existência, é em português. Eu sonho em português, aliás, já faz muito tempo que essa transição se deu. Mas como então ter uma voz própria, ou criar um estilo teu se não dominas a língua na qual pretendes escrever? – Essa era a questão. Logo, o meu confronto com a língua portuguesa e a escrita literária, dadas as diversas circunstâncias, foi um processo totalmente pessoal e intuitivo e era feito, simultaneamente, na aquisição de ambas as competências: as linguísticas e as literárias. Portanto, também incluía questões à volta de ordem sintática, estrutural e discursiva. Mas

o seu objecto não eram as gramáticas e prontuários e compêndios. Era a literatura propriamente dita – lia de tudo: americanos, europeus, africanos e, naturalmente, os moçambicanos. Por isso mesmo, nos primeiros dez ou quinze anos eu não me importava nada de seguir os caminhos já começados por outros. A leitura é que me foi abrindo os caminhos para a escrita e proporcionou-me a oportunidade de colocar em jogo os conhecimentos construídos, comparando, contrastando, transformando e experimentando novos modos de construção. Nalgum momento tentei privilegiar o meu próprio contexto sociocultural, dando ênfase à literatura moçambicana em particular, e à africana no geral, visto que partilhamos os mesmos universos e imaginários. Lembro-me que os primeiros contos que escrevi — “Feitiço”, “E tudo a chuva molhou”, “Amor Silvestre” —tinham uma carga telúrica mais forte.

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Mas Moçambique é tradicionalmente dominado pela lírica e, nos anos 80 e 90, ressurge a ficção, mas com muito poucos autores. Por isso, havendo muito pouca produção de ficção literária nessa altura, tinha poucos exemplos a seguir na exploração desses universos e imaginários. Era como se tivesse eu que inventar a minha própria forma, o estilo e a linguagem. Por essa razão, a mim a influência não me angustiou nada. Assumi-a e incorporei-a, porque como refere Bakhtin “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua”. Como explica Gilberto Matusse, os autores moçambicanos assumiram modelos de subversão dos cânones. Portanto, a estratégia adoptada na literatura moçambicana foi a oralização da estrutura e incorporação no texto em português de elementos provenientes do imaginário das culturas de que provêm. É caso para dizer que a actividade literária obrigou a língua portuguesa a expandir os seus tentáculos para poder segurar, coser e incorporar o tecido social e cultural moçambicano. Inicialmente, pode ter havido uma mera substituição de palavras em português pelas suas correspondentes nas línguas locais. Foram traduzidos e ajustados provérbios e expressões idiomáticas em changana, ronga, macua, etc., e nessa interacção linguística estas línguas investem no português (falado ou escrito) um pouco da sua estrutura gramatical. Nesse sentido, vários estudiosos concordam que as línguas bantas contribuem para o surgimento de uma linguagem da literatura moçambicana em língua portuguesa. E então onde eu me coloco nisto tudo? Aprendiz que eu sou, roubei de todos eles. Na altura o Mia Couto teve uma maior importância por tudo aquilo que ele representou na ficção literária moçambicana, em particular, e na língua portuguesa de um modo geral. Transcrevo aqui um testemunho do Mia Couto, falando do seu livro Vozes Anoitecidas: O que eu tentei fazer neste livro foi, sobretudo, a invenção de uma linguagem. A proposta contida em Vozes Anoitecidas é a de uma maneira moçambicana de contar histórias moçambicanas, usando a língua portuguesa. Mais do que os temas interessou-me fixar algumas das transformações que a língua portuguesa tem vindo a sofrer em Moçambique. Não considerei estas transformações como exotismos ou desvios mas como sinais da emergência de uma cultura que se apropriou de uma língua e se vai moldando para que dela se possa servir inteiramente.

Porque é de referir que o encontro entre línguas é que opera as transformações e a respectiva apropriação. Por

exemplo, tirando algumas das formulações criativas na obra do Mia Couto, existem muitas

expressões e palavras e situações linguísticas que são

genuinamente do imaginário colectivo.

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Nota Biográfica

Rogério P. Manjate (n. 1972 - Maputo)

Escritor e profissional do teatro, trabalhando como ator, encenador e docente. Mestrado em artes dramáticas – Teatro Aplicado, pela University of the Witwatersrand e engenheiro agrónomo pela Universidade Eduardo Mondlane.Realizou a coordenação e seleção dos textos da Colectânea Breve de Literatura Moçambicana e coordenou a parte literária moçambicana no livro Imagem Passa a Palavra, editados pelo Projecto Identidades e Gesto Cooperativa Cultural, Porto, em 2000 e 2004. Tem contos e poemas publicados na imprensa, em antologias e coletâneas estrangeiras e nacionais. Na sua incursão pelo cinema realizou e escreveu a premiada curta-metragem de ficção I Love You (2007) e o documentário O Meu Marido Está a Negar (2007); escreveu a curta-metragem A Outra Fala (2012) e ainda co-realizou o documentário Quitupo, Hoyê! (2015).

Publicações e Prémios:

2021 — No prelo – Vestidos de Terra (contos), ed. Cavalo do Mar.2019 – O Coelho Que Fugiu da História (conto infanto-juvenil) ed. EPM-CELP também publicado pela Editora Ática, S. Paulo, Brasil, em 2009.2017 — Wazi (conto infanto-juvenil), Ed. Kapulana, S. Paulo – Brasil e também pela Ed. EPM-CELP (Maputo), em 2011.2017 – Cicatriz Encarnada (poesia), ed. Cavalo do Mar – Finalista do prémio Glória de Sant'Anna (Portugal) e semi-finalista do Prémio Oceanos (Brasil).2011 – Wazi (conto infanto-juvenil) Ed. EPM-CELP.2005 – Prémio 10 de Novembro de Poesia, com Choveria Areia (inédito).2004 – Casa Em Flor (poesia) – Prémio de Literatura Para Crianças do FBLP –2002.2002 – Prémio União Latina, no concurso Literário Guimarães Rosa/RFI (Paris) – 2002, com o conto À Imagem e Semelhança.2002 – Amor Silvestre (contos) – Prémio Literário TDM 2001 – Conto.

Porque é de referir que o encontro entre línguas é que opera as transformações e a respectiva apropriação. Por exemplo, tirando algumas das formulações criativas na obra do Mia Couto, existem muitas expressões e palavras e situações linguísticas que são genuinamente do imaginário colectivo. Por exemplo, no lugar de armário eu cresci a dizer arrumário, porque de facto esta peça de mobília serve para arrumar utensílios, portanto, nada que ver com a origem da palavra. Nestes casos, as transformações e a apropriação têm como base a compreensão e significação dos processos socioculturais e históricos que perpassam a língua viva, através das relações inter-discursivas e interlinguísticas. Outro exemplo: a roupa esquecida no estendal ou qualquer outro objecto esquecido no quintal diz-se que “dormiu lá fora”. Por isso, estas novas lógicas introduzidas na língua portuguesa em Moçambique criam por si só, a graça verbal a que se refere Manoel de Barros em relação às formulações do Guimarães Rosa, quando diz: “Passarinho parou de cantar/ Essa é apenas uma informação./ Passarinho desapareceu de cantar. /Esse é um verso de J. G. Rosa./ Desapareceu de cantar é uma graça verbal./ Poesia é uma graça verbal.”

Então podia dizer armário é apenas uma informação e arrumário é uma graça verbal, tal como a bicicleta que dorme no quintal. Mas estas graças verbais que me são familiares e legítimas, porque as pratiquei e pratico, e muitas das vezes as nego e recalco motivado pela norma que as considera erro, são um autêntico desperdício. É preciso reconhecer que a consciência linguística dos falantes de uma determinada língua, segundo Bakhtin, “nada tem a ver com o sistema abstrato de formas normativas”, mas sim com a linguagem enquanto “conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular”. E foi assim que eu tive de aprender a dizer as minhas karinganas na língua portuguesa, porque como já tinha dito Craveirinha: “Este jeito/ de contar as nossas coisas/ à maneira simples das profecias/ – karingana ua karingana -/ é que faz o poeta sentir-se/ gente.”

(texto escrito com o acordo ortográfico anterior a 1990,em uso em Moçambique)

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Contar histórias com a avó ao colo é o título do livro lançado pela Escola Portuguesa de Moçambique – CELP, em parceria com o Camões – Centro Cultural Português, em Maputo, no dia 5 de maio, com o apoio da RBE e contando também com a participação da Escola Portuguesa de Luanda e de S. Tomé e Príncipe. Este livro surgiu com o propósito de celebrar o Dia Mundial da Língua Portuguesa, instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que declarou o dia 5 de maio como o seu dia oficial. O projeto literário teve como principal intuito a promoção e a valorização da língua portuguesa no espaço que integra o berço das várias culturas, tradições e linguagens que constituem a identidade desta língua para memória futura. Pretende-se também divulgar e manter viva a riqueza daquilo que compõe um importante legado coletivo, com conotação a tradições e características próprias de cada um dos países lusófonos e que ajudam a consolidar a identidade de povos tão diferentes e singulares, quanto irmanados. Este trabalho foi igualmente idealizado para fazer nascer e/ou estreitar pontes entre autores (escritores e ilustradores) dos vários países de língua portuguesa,

de forma a criar uma rede de relações (inter) pessoais que possa ajudar na circulação e difusão de livros entre países de língua comum, mas de contextos muito distintos. O facto deste projeto ter na sua constituição apenas mulheres tenta simbolicamente representar o universo da literatura no feminino (ou a falta deste) e a pouca (ou inexistente) falta de oportunidades com que as autoras da lusofonia (no geral) se deparam, de maneira a afirmarem-se e a demonstrarem a qualidade do seu trabalho. Contar histórias com a avó ao colo é, pois, ainda que simbolicamente, como referido, uma espécie de empoderamento literário feminino. As vozes de Celestina Fernandes, Olinda Beja, Angelina Neves, Céu Lopes, Mariana Ianelli, Lurdes Breda, Natacha Magalhães e Kátia Casimiro juntam-se neste livro e, pela mão de Tânia Clímaco que ilustrou e fez o desenho gráfico, transportam-nos numa viagem fantástica pelos diversos países e continentes onde a língua portuguesa se mantém viva e cada vez mais rica. Que melhor forma de comemorarmos esta data tão especial, senão num abraço literário cheio de cultura (s) e amizade entre os diversos países de língua oficial portuguesa?

“Contar histórias com aavó ao Colo” Luísa Antunes

Presidente da CAP da EPM-CELP

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Língua portuguesa Maria José GustavoEscola Lusófona de Nampula

Os “velhos lobos do mar”- audazes navegadores -levaram o seu falarpor sobre as ondas do mar.Foram seus divulgadores!

Correram os “sete mares”- os “quatro cantos do Mundo” -sofreram alguns azares,ergueram muitos altaresa vencer o mar profundo.

Tinham que negociar,em cada terra descoberta,e como comunicar?Com gestos e a trocar(nem sempre da forma certa!).

Pra melhor negociar, fundaram as feitorias1...Quem se quis aventurarcruzou as ondas do marem busca de melhorias...

Para lá se radicarmiscigenação ocorreu,aprendeu o linguajar,fez a família aumentare por lá enriqueceu.

Mas não tornou a voltarà terra que o viu nascer...Deixou bens e o seu falaraos filhos qu’ a irão ensinaraos que deles váo nascer.

Que balanço a fazerpassados quinhentos anos?Deu Mundo a conhecer,- novos povos e o seu viver -embora sofresse danos...

Há países independentescuja Língua Oficial é o Português:de etnias diferentesse entendem todas as gentesse se encontram toda a vez.

Os dialetos, nos seus países,vêm a par do Português:o dialeto das “raízes”,aprendem quando petizes,sempre com o Português.

Este abre muitas portaspor esses mundos além:diálogos, músicas, cartas,economia, produções fartase no cinema também!

Português: o Idioma Maternode 287.000.000 de Falantes

1 As feitorias passaram aser colónias.

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PortugalO Português moderno e competitivo 58Vitor Sereno

De uma doce algaraviada, ou dos horizontes que o 60multilinguismo abre Margarita Correia

Ensino do Português na China 62Carlos Ascenso André A herança da língua como contributo especial para 64a riqueza do PortuguêsLuísa Álvares Pereira, Luciana Graça, Inês Cardoso

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A Embaixada de Portugal em Dakar atua incansavelmente para a afirmação de um Portugal moderno e competitivo. Somos modernos e competitivos por diversas razões, mas gostaria de aproveitar este espaço para tratar daquela que, seguramente, é uma das principais: a nossa língua, o Português. Mas, ao falar do Português cruzo as fronteiras de Portugal e falo, na verdade, sobre o mundo. E faço-o no contexto em assinalarmos a justa, e transcontinental, celebração do Dia Mundial da Língua Portuguesa no próximo dia 5 de maio. O Dia da Língua Portuguesa foi criado por ocasião da XIV Reunião Ordinária do Conselho de Ministros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP – em 2009. Contudo, historicamente, o português não pertence a uma comunidade determinada, mas é, sim, global. É por isso que no decorrer dos anos, o 5 de maio passou, num virtuoso efeito bola-de-neve, a assumir cada vez mais peso nos planos bilateral

O português moderno e competitivo Vitor Sereno

Embaixador de Portugal no Senegal

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e multilateral, culminando com o reconhecimento UNESCO enquanto efeméride mundial, em 2019 – vale a pena salientar que essa foi a primeira vez que o órgão da ONU dedicou uma data oficial a um idioma. A lusofonia é, de facto, um fenómeno global e deve ser valorizado como tal. Trata-se de um património espalhado por cinco continentes e, por isso mesmo, diverso e vivo como poucos podem ser. Festejar o 5 de maio, é, portanto, celebrar um grande encontro de povos e culturas com histórias, tradições e cosmovisões diferentes, mas que compartilham uma língua e assim potencializam as suas particularidades. Tomemos a Literatura como exemplo: quantos idiomas ostentam tamanha variedade e qualidade? As nossas Letras foram acariciadas por personalidades históricas, como o Nobel José Saramago e a genial Clarice Lispector, e continuam em mãos qualificadas de Autoras e Autores celebrados contemporaneamente, como Mia Couto e Djaimilia Pereira de Almeida. Como se não bastasse, há ainda a enorme tradição oral que passa estórias ancestrais, de geração em geração, através de homens e mulheres que usam o Português de forma anónima, construindo pontes entre os séculos e criando um ímpar tesouro cultural. O valor da oralidade lusófona também se manifesta nas inúmeras variedades, variantes e variações dessa que é a língua mais falada do hemisfério sul. É maravilhoso saber que o português tem infinitas caras, formas e sotaques, mas que não perde a sua coesão e unidade. Não importa se falada na agitação de São Paulo, nas paradisíacas ilhas cabo-verdianas ou no conforto das casas lusitanas, trata-se sempre da mesma língua potente, viva e que caminha rumo à modernidade sem esquecer a herança do seu passado.

Mas a língua portuguesa não se restringe à exuberância da sua diversidade cultural. O Português também se mantém numa posição de destaque em diversos outros ambientes, desde a produção científica, redes sociais, passando pelos negócios e chegando até ao plano da política internacional. Como já mencionado alhures, diversas entidades ao redor do mundo valem-se da lusofonia em atividades quotidianas. Na República Popular da China, por exemplo, mais de cinquenta universidades ensinam o português como segundo idioma; no Senegal, todas as 14 regiões do país contam com estabelecimentos de ensino médio ou secundário onde o português se faz presente. São 440 professores de Português e – que extraordinário sinal de vitalidade – mais de quarenta e cinco mil alunos; e, na Europa, existem várias Camaras de Comércio, onde o português é o meio pelo qual se facilitam e fomentam possibilidades de negócios entre empresas de todo o globo. Isso para não falar da presença do nosso idioma em organismos internacionais do calibre da União Europeia e do Mercosul. Esses dados só confirmam a força da língua portuguesa para além dos Estados membros da CPLP e atestam a sua posição de destaque em comparação com outros idiomas globais. Concluo dizendo com grande convicção que o português é digno das maiores comemorações, das melhores homenagens e de todo orgulho de seus falantes. Esse idioma belo e eficiente ultrapassa barreiras geográficas, políticas e culturais como poucos e é por isso que o 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa, não é uma data a ser celebrada apenas pelos lusófonos, mas sim pelo mundo. Trata-se, afinal, de uma língua moderna e competitiva.

A lusofonia é, de facto, um fenómeno global e deve ser valorizado como tal. Trata-se de

um património espalhado por cinco continentes e, por isso mesmo,

diverso e vivo como poucos podem ser.

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De uma doce algaraviada, ou dos horizontes que o

multilinguismo abre Margarita CorreiaDocente da Universidade de Lisboa

É por uma coincidência feliz que tenho o privilégio de participar no número da revista L/ATITUDE dedicado ao multilinguismo. Sou filha da diáspora portuguesa, bilingue, nascida na Venezuela num tempo em que não havia escolas portuguesas, nem ensino de português por esse mundo fora, como hoje felizmente acontece. Embora sem consciência da importância do multilinguismo e da identidade de origem para a construção de personalidades completas e realizadas, acredito que a maioria dos pais-emigrantes da época tivesse gostado de dar aos seus filhos as primeiras letras em português, a língua do lar e da família, lugar de pertença e de amor. Os meus pais, gente de poucas letras como era então a maioria da gente deste país, tiveram ainda assim o cuidado de mandar ir os livros da escola portuguesa para eu os poder conhecer. A minha mãe tinha saquinhos de guardanapos bordados com palavras portuguesas, em que eu levava a merenda para a escola. Ainda hoje me lembro de, provavelmente na 3.ª classe, num colégio de freiras espanholas, tentar explicar à professora Elsa o que significava aquele rabisco por cima do “a” em “mãe” e em “coração”, palavras frequentes naqueles bordados. E lembro-me

de uma das minhas alcunhas, “tartaruga”, palavra que tanto divertia os meus colegas e professoras. Aprendi o português escrito depois dos 10 anos, já em Portugal, e na verdade também o português oral, e fui adquirindo os preceitos da norma linguística portuguesa. Cresci ao som de uma doce algaraviada, feita da mistura do espanhol com o português, feita também de muitas outras línguas (e suas misturas) então faladas naquele mosaico de culturas – o italiano e os seus dialetos, o galego, o francês, o árabe, o iídiche e outras que não consegui identificar na época nem recordar agora. Mas também cresci ao som das muitas variedades e sotaques do português e do espanhol. Quando me perguntam qual a minha primeira língua, não sei exatamente o que responder. Acho que foi uma qualquer variedade de mistura, de portunhol, enriquecida com toques de muitas línguas, dos seus sabores, músicas e histórias. Também não sei que língua falava com os meus pais antes de ter ido para a escola. Sei, isso sim, que, já crescida, aprendi com facilidade as línguas que falo, como se o saber sobre elas estivesse há muito guardado na minha memória. Aquilo que hoje sou é consequência inevitável desta circunstância e eu considero-me muito afortunada por ter podido crescer no meio de tanta diversidade.

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Uma das razões pelas quais os filhos da diáspora de hoje, ao contrário dos da minha geração, têm acesso à língua portuguesa e às culturas que nela se expressam é o sentido de cidadania que os emigrantes portugueses incorporaram e transportam em si, fruto da literacia, da democracia e da liberdade. Resulta em suma do poder, confiança e segurança que a cidadania confere aos afortunados que a ela têm acesso. Bem sei que há etapas nas nossas vidas em que a pertença a um grupo com uma língua e uma cultura, as dos pares, parece ser condição fundamental de felicidade. Sei o tormento de alguns pais (e avós, tios, primos) quando os seus filhos se recusam a falar a língua de casa, de herança. Felizmente alguns de nós têm o privilégio de viver o suficiente para compreender

mais tarde a sorte que é não pertencer não a uma só cultura mas a várias, não falar só uma língua mas várias. O multilinguismo oferece à nossa mente um par de lentes progressivas, que nos tornam capazes de atender à preciosidade do detalhe e, ao mesmo tempo, apreciar a visão panorâmica da vida, da sociedade e do quadro colorido que constituímos todos junto. O multilinguismo alarga os horizontes e tona-nos mais inteligentes, capacitados para a tolerância, a compreensão e o respeito pelo outro, dá-nos recursos para viver em harmonia e fruir as pequenas felicidades que surgem no caminho. Língua é poder. Multilinguismo é poder multiplicado.

Nota Biográfica

Professora Auxiliar do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras/Universidade de Lisboa; Investigadora integrada no centro de Linguística Geral e Aplicada (CELGA-ILTEC); Presidente do Conselho Científico do Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP).Autora de uma vasta bibliografia no domínio da linguística da qual se destaca: Os Dicionários Portugueses (Lisboa, Caminho, 2009; Construção de palavras e denominação: o caso dos nomes das qualidades em português (versão reduzida, corrigida e atualizada da dissertação de doutoramento), Lisboa, Edições Colibri. Em coautoria: Inovação Lexical em Português (Lisboa, Colibri, 2005) e Neologia do Português (São Paulo, 2010)Margarita Correia publicou inúmeros artigos, capítulos de livros; coordena equipas de investigação e participa em Comissões de honra e Comissões Científicas nacionais e internacionais (Argentina, Cuba, Espanha, França, Eslovénia e Peru).

Uma das razões pelas quais os filhos da diáspora de hoje, ao contrário dos da minha geração,

têm acesso à língua portuguesa e às culturas que nela se expressam é o sentido de cidadania que os emigrantes portugueses incorporaram e

transportam em si (...)

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Foi deliberadamente que intitulei esta reflexão “Ensino do Português na China” e não “... em Macau”. Não apenas porque entendo que Macau é China e foi sempre China. Não se escandalizem as pessoas nostálgicas de um passado que nunca foi verdadeiro: do ponto de vista cultural, Macau sempre foi China; e a língua mais falada em Macau foi sempre, inquestionavelmente, o chinês. Isso bastaria para justificar o meu título. Mas ele tem subjacente outra razão e não de somenos: neste momento, o crescimento do ensino do português no interior da República Popular da China atingiu um ritmo que espanta, até, os mais optimistas. Os números dos últimos dez anos são surpreendentes. Mas olhemos primeiro Macau. Depois da transferência da soberania ou, como dizem os Chineses – e com razão – depois do “regresso de Macau à mãe pátria”, o ensino do português no território sofreu uma compreensível oscilação, durante mais de uma década, finda a qual se iniciou um processo de crescimento continuado que ainda se mantém. Atentemos em breve relance os números

disponibilizados há pouco mais de um ano pelo gabinete do então Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura do Governo de Macau. Em 1999/2000 (ano da transferência) havia 6.838 estudantes de português nos ensinos primário e secundário. Esse número foi diminuindo, até atingir o valor mínimo de 3.690 em 2010/2011 (quase 50% menos do que naquela data de referência).Começou a subir progressivamente, até chegar, em 2019/2020, a 8.000. No ano da transferência, o número de escolas onde se ensinava português era de 28. Em 2009/2010 eram apenas 26. Em 2019/2020 eram já 51, 43 delas do ensino oficial e 8 do ensino privado; representa um aumento notável de oitenta e dois por cento. No ensino superior, o crescimento é vertiginoso: de pouco mais de 300 estudantes de português em 1999/2000, passou-se, em 2019/2020, para cerca de 1.500, um aumento espantoso de 374 por cento. Hoje o português é ensinado em sete instituições de ensino superior do território e continua a ser objecto de grande procura.

Ensino do português na ChinaCarlos Ascenso AndréProfessor Honorário do Institu. Politécnico de Macau

(...) neste momento, o crescimento do ensino do

português no interior da República Popular da China

atingiu um ritmo que espanta, até, os mais optimistas. Os

números dos últimos dez anos são surpreendentes.

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Voltemos ao ensino não superior. Pilar deste sucesso é, sem dúvida, a Escola Portuguesa de Macau: pelo seu trabalho persistente e de grande qualidade, pelo seu projecto educativo, pela sua capacidade de afirmação, pelo empenho dos seus dirigentes e docentes e pela qualidade do seu trabalho pedagógico. Fruto de uma cooperação exemplar entre os Governos de Macau e de Portugal, a Escola Portuguesa de Macau é bem a herdeira, no plano educativo, de cinco séculos de diálogo cultural. Podemos orgulhar-nos dela. Noutro plano, o do ensino não conferente de grau, é justo assinalar o trabalho do IPOR – Instituto Português do Oriente, braço local do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. Milhares de pessoas passaram pelas suas aulas para aprender o português em cursos livres, de grande exigência e não menor eficiência, num trabalho a todos os títulos assinalável. No que respeita ao ensino superior, merece uma palavra especial, além da Universidade de Macau, o Instituto Politécnico de Macau que, em pouco mais de vinte anos de existência, soube sempre fazer do ensino do português uma estratégia de afirmação, cada vez mais consolidada. Onde mais se destaca essa estratégia é no apoio ao ensino do português no interior da China, que se traduz em cursos de formação, leccionados em Macau e na China continental, e na produção de materiais – mais de três dezenas e meia de livros publicados em cinco anos é, sem dúvida, um trabalho a todos os títulos notável. Esse trabalho do IPM é ímpar e o seu êxito incontestável. A isso acresce o laboratório de tradução automática chinês-português (tradução assistida por computador), o único com o seu nível em todo o mundo. Parte do referido trabalho editorial e de formação foi realizado no Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa, que tive a honra e o prazer de dirigir, de 2013 a 2018, criado com o objectivo de apoiar o ensino do português no interior da China. Passemos, pois, ao interior da China, onde a progressão é ainda mais surpreendente. Há dez anos, o número de universidades com português era somente seis. Hoje ultrapassa as cinquenta (cinquenta e duas há um ano atrás), quarenta delas com cursos de graduação e as demais com cursos opcionais. O número de docentes não ultrapassava vinte há dez anos. Hoje são mais de duzentos, três quartos dos quais chineses. Mais de metade são titulares do grau de Mestre (há dez anos

nenhum o tinha), uma dezena possui doutoramento, mais de meia centena estão inscritos em cursos de doutoramento. É incontestavelmente um crescimento vertiginoso e que não tende a parar. E, para quem pretenda comparar com outras realidades, como a norte-americana, vale a pena recordar que a República Popular da China não é destino de emigração para portugueses ou brasileiros (nem para outros países de língua portuguesa), não confina com países de língua portuguesa nem tem um número mais do que residual de cidadãos oriundos de países de língua portuguesa. E, no entanto, o português cresce e cresce e cresce. Mais: não é apenas no ensino superior que isso acontece, facto que está ainda a passar despercebido. Por conhecimento directo, sei do ensino de português em estabelecimentos de ensino superior em Zuhai e em Henqin, ambas ao lado de Macau, mas também em Shanghai, num processo que tem ligação estreita com a Universidade de Estudos Internacionais de Shanghai, uma das mais antigas e mais prestigiadas no ensino do português. E eu mesmo tive oportunidade de visitar uma escola primária em Chengdu, província de Sichuan, no Sudoeste da China, onde as crianças tinham algumas horas (poucas) de contacto com a língua portuguesa. Mais haverá por certo que escaparam ao meu conhecimento. Recentemente, o português foi incluído, pela primeira vez, no exame de certificação de tradução e interpretação, um exame de enorme importância institucional na República Popular da China. É um sinal inequívoco da importância crescente da nossa língua. Portugal soube, durante quase cinco séculos, manter um espírito e uma prática de diálogo e cooperação singulares, mas também exemplares, com a China. Estamos hoje a colher os frutos dessa experiência única. Se nessa história de séculos soubermos compreender e, sobretudo, apreender o significado que dela resulta estaremos bem posicionados para desempenhar um papel de relevo no futuro que é a sequência natural desse passado. A língua e a cultura são porventura a nossa mais valia nesse domínio; assim saibamos fazer bom uso desse elemento estruturante da nossa identidade.

Professor Honorário do Institu. Politécnico de Macau,ex-Coordenador do Centro Pedagógico e Científico da

Língua Portuguesa e Professor Aposentadoda Universidade de Coimbra

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

A herança da língua como contributo especial para a

riqueza do português

Luísa Álvares PereiraLuciana GraçaInês CardosoUniversidade de Aveiro e Universidade de Toronto

As vantagens de explorar as diversidades linguística e cultural da nossa língua constituem-se como um tema que já fez correr muita tinta e, naturalmente, não poderíamos deixar de aplaudir esta tematização, não só já declinada em múltiplas facetas (língua de escolarização, língua familiar, língua coloquial, registos, variedades) como também já perspetivada sob diferentes abordagens curriculares integradoras. Estas diversas formas de planificação didática em torno das línguas e da cultura traduzem sempre, como não poderia deixar de ser, a intenção de formar sujeitos (professores e alunos) cada vez mais conscientes da multiplicidade de fenómenos linguísticos e culturais que os envolve; e, logo, seres mais capazes de agir, precisamente, num mundo também cada vez mais plurilingue e pluricultural. Ora, neste nosso breve texto, focar-nos-emos, apenas, no presente plural e pluricêntrico1 da língua portuguesa (LP) através de uma das dimensões que nela se infiltram: a dimensão que provém do passado. E defender tal é não só, e antes de mais, reconhecer a relevância de múltiplos eventos linguísticos e culturais na definição dos próprios parâmetros da nossa língua, como também a própria aceitação de que os portugueses e demais povos lusófonos – mesmo

que em sociedades de acolhimento tão díspares das lusófonas, e apesar do contacto e do recurso a outras línguas – não deixaram apagar, nos seus descendentes (filhos, netos, bisnetos…), a memória da sua LP. Possibilitam-lhes, assim, herdar a língua como meio de comunicação ou a língua como lugar de algumas palavras e frases sabidas de cor (o que convoca o sentido etimológico: de/com coração): músicas, rezas, serões de conversa animada e prolongada, sotaques, contos e ditos, toda uma vida expressa numa língua a que “os filhos” pertencem, mesmo sem a dominar, e que lhes desperta a necessidade identitária de a estudar e de a conhecer cada vez melhor, para, então, pertencerem. Estamos claramente a pensar, assim, nos numerosos estudantes que encontramos, em contexto de estudos superiores, motivados para compreenderem e estudarem uma língua que falam ou ouvem falar em contexto privado e afetivo, mas que ainda pouco conhecem. E se se encontram disponíveis, deste modo, para acederem a dimensões de complexificação do funcionamento da língua e dos textos em português, a verdade também é que não deixam, por outro lado, de emprestar a essa mesma língua uma multiplicidade de acréscimos de possibilidades, através do contacto

Luísa A. Pereira

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com as outras línguas de que se alimenta a sua fala e o seu pensamento, contribuindo, assim, para um aumento dos repertórios linguístico e cultural de todos aqueles que convivem e interagem nas salas de aula de português no estrangeiro. Se nos recordarmos da relevância atribuída, pela investigação, ao estudo destes perfis sociolinguísticos e das imagens/representações que os sujeitos têm das línguas e, amplamente, de toda uma relação que com elas desenvolvem2 – noções que têm vindo, aliás, a assumir um lugar cada vez mais central em Didática das Línguas –, já que influenciariam não apenas a paisagem emocional da aprendizagem como também a forma como o discente se implica nela, quais seriam, então, as principais imagens definidoras da relação dos nossos falantes de herança com a LP? A partir de uma análise exploratória de textos livres endereçados à LP, foi possível identificar quatro traços definitórios, por vezes cruzados:i) Língua-herança, pride3 de uma ligação ancestral, identitária, “Eu acho uma coisa muito bonita ainda ter essa conexão com a cultura dos meus antepassados, mesmo sendo nascida e crescida muito longe de Portugal.” (Aluno 1), que acrescenta valor e sentidos à trajetória de vida: “Isso é a minha motivação; para aprender a ser como as pessoas da minha cultura.” (Aluno 2);ii) Língua-perseverança, para ultrapassar as dificuldades e a frustração por questões inerentes aos desafios da língua “por causa das conjugações e tempos verbais, mas também as palavras que são falsos cognatos do Português para o Inglês” (Aluno 2) e aos desafios colocados por quem julga “insuficiente” aqueles que se arriscam a falá-la - “também já tive quem fizesse pouco do meu sotaque, porque falo com ele bem pronunciado” (Aluno 1);iii) Língua-economia, profit3, oferecendo, a quem a domina, vastas possibilidades de ganho no mercado global: “portas poderão se abrir graças a isto; quando voltar para o Brasil, após me graduar, estarei preparado para conseguir um trabalho na área que eu desejo” (Aluno 3);iv) Língua-relação – “Poder falar a nossa língua nos faz sentir mais chegados, como se estivéssemos em família, e menos como só imigrantes num país desconhecido.” (Aluno 1).

Ensinar é promover encontros, naturalizar - criar situações para muita prática natural e

diversificada - e instrumentar o falar português, sem

escamotear a reflexão sobre o sistema linguístico.

Inês Cardoso

Luciana Graça

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Nota Biográfica

A Universidade de Aveiro juntou-as em 2004 e possibilitou-lhes o crescimento comum. Investig(ar)am sobre a Didática da Escrita e não só, caminhando a par, sempre problematizando tanto o ensino da língua portuguesa em diferentes contextos (língua primeira, língua segunda, língua estrangeira, língua de herança) quanto a formação de professores. Criaram um grupo com outros professores de vários níveis de ensino – “ProTextos – Ensino e Aprendizagem da Escrita de textos”1 –, e é nesta comunidade de profissionais de desenvolvimento humano que discutem as reflexões que cada membro traz da sua sala de aula, e da sua instituição, do Ensino Básico ao Superior, o que, e juntamente com múltiplas leituras e interlocuções com outros grupos, lhes permite construir conhecimento nesta área, e em campos conexos, que procuram, igualmente, divulgar, como forma de o fazer chegar a outros profissionais.

Ensinar português (“no estrangeiro” e, até, entre nativos de razão mais oral e menos letrada) é, por conseguinte, acolher e valorizar as identidades híbridas, ser sensível ao vocabulário e à sintaxe nova que certa miscigenação linguística gera e que imprime novidade às possibilidades infinitas deste sistema finito. Não raro, os sujeitos, adentrando na língua, saem-se com metáforas potenciadas por viverem entre mundos e línguas, terreno para o literário4. Ensinar é promover encontros, naturalizar - criar situações para muita prática natural e diversificada - e instrumentar o falar português, sem escamotear a reflexão sobre o sistema linguístico. É adequar aos objetivos pessoais e profissionais dos aprendentes, permitir-lhes o domínio de géneros textuais para as situações de comunicação nas quais pretendem (inter)agir. É contactar com a língua em vários “centros”, inclusivamente nos da diáspora e na autenticidade de aí encontrar interlínguas, portinglês e translinguismo. É promover estreitamento da relação com a LP e das relações em LP, desconstruindo estereótipos que associam falantes a um “Broken Portuguese” e outros inibidores da comunicação: “Não há nada mais frustrante do que a experiência de pensar que deves saber alguma coisa, mas não sabes.” (Aluno 2). Ensinar é autorizar pertencer.

Preservar a LP fora dum país lusófono é aceitar que as línguas, como os humanos, por vezes conflituam, “Eu falava português quando era criança e nos mudávamos para falar inglês em casa quando eu entrei na escola para eu falar como as outras crianças. Depois, esqueci-me de tudo.” (Aluno 2), mas, sobremaneira, aprender que é aceitável e benéfico o convívio das línguas e que o foco é na relação com a língua e não no eventual défice da proficiência. Vem-nos à memória, a este propósito, o poema de José Jorge Letria, a que ousamos acrescentar umas letras: “A língua que falas e escreves/ É uma árvore de sons/ (…) cresceu com o país, que se alongou até ao sul/ e depois chegou às ilhas,/ vencendo os tormentos do mar.” e não é só “uma língua que se veste/ de baiana no Brasil,/ ganhando feitiços de som/ em Angola e Moçambique/ e novos significados/ lá para as bandas de Timor.”; é uma língua que se move em todas as bandas das diásporas que a levam e preservam, porque nela continuam a viver e amar; e que se atiça e complexifica com os contactos com as outras línguas. A língua, como o humano, não pode existir sem se mestiçar. Mas é só essa língua-chão que pode ganhar voo.

1 Rato, A., & Graça, L. (n.d.). Uma abordagem pluricêntrica no ensino do português como língua adicional. In N. Dominique & M. Neto (Eds.), Microgeopolítica da língua portuguesa: ações, desafios e perspectivas. Boavista Press.2 Cardoso, I. (2016). Experiências didáticas com a escrita em PLNM: questionando vias de promoção de (des)envolvimento. In M. L. O. Alvarez & L. Gonçalves (Eds.), O Mundo do Português e o Português no mundo afora: especificidades, implicações e ações. Pontes.3 Garcez, P. de M., Dias, C. F., & Bess, G. (2020). The values attached to speaking Portuguese among Brazilian migrant families in Toronto: pride and profit. In I. Cardoso & V. Tavares (Eds.), Teaching and Learning Portuguese in Canada: Multidisciplinary Contributions to SLA Research and Practice. Boavista Press.4 Veja-se o recém-criado Prémio Imprensa Nacional/Ferreira de Castro.

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

Timor-LesteEscola Portuguesa de Díli-CELP-Ruy CinattiSubsídios para comemoração do Dia Mundial da Língua 68Portuguesa, 5 de maio... Acácio Azevedo de Brito

A língua portuguesa em Timor-Leste. De língua 70da resistência a língua de escolaridade Mário Meireles

O sonho do crocodilo 73 CAFE de Manatuto

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

No Projeto Educativo da nossa Escola Portuguesa de Díli, datado no quadriénio de 2016/20, assumimos a dimensão filosófica e ôntica do “tantos e todos sendo”, ilustrando deste modo a nossa visão fragatiana da demonstração/relação estabelecida entre o Sein e o Dasein de Heidegger. O Ser-aí ou o Ser-aí-no-mundo heideggeriano é a realidade possibilitante do questionamento que se assume, designadamente, na linguagem enquanto momento triangular de persuasão, ou seja, um ethos de credibilidade e ética, um pathos de emoção e sentimento e um logos de razão em coexistente devir heraclitiano. A língua portuguesa é pluricontinental e policêntrica, sendo a mesma língua, tem formas e linguarejares diferenciados próprios de referências culturais e usos sociais diferentes. (Silva, A.S. 2016). Compreende, em si, múltiplas formas sendo uma realidade dinâmica/multiforme.

Subsídios para comemoração do Dia Mundial da Língua Portuguesa, 5 de maio...

Acácio Azevedo De BritoPresidente da CAP da Escola Portuguesa de Díli

Eu pertenço à história antes mesmo de me pertencer

Paul Ricoeur

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

A linguagem pressentindo-se no sentido ôntico de manifestação do humano no mundo, no ser-aí-no-mundo, constrói uma realidade não só de interpelação, mas de compreensão, do Outro!As palavras são a verbalização do desejo que sentimos do Outro. A linguagem humana é, por isso, uma consequência espantosa da necessidade de relação. (Mendonça, J.T. 2020). Aliás, autrement qu’etre ou au-delà de l’essence, levinasiano, mais não pretende do que inteligir esta imperiosidade do Outro como razão substantiva e presente da própria realidade humana. Sentido metafísico, também, presente em Pessoa, “minha Pátria é a língua portuguesa”, uma

mundividência percebível no sentido da própria lusofonia. Idealização de um espaço diferenciado per se, mas comum, cosmopolita, na dimensão de Albert Camus e, possibilitante desta realidade única e policêntrica, que se assume com nuances e linguarejares diferenciados, mas sempre a Língua Portuguesa!Nesse sentido poderíamos interpretar/reconstruindo os versos pessoanos da Mensagem:

Cumpriu-se o Mar e o Império se desfezSenhor, falta cumprir-se, a Lusofonia!

Sonho coisas que nunca foram, e questiono, Porque não?

Nota Biográfica

Acácio Azevedo de Brito, nasceu em Moçambique e fez os seus estudos em Inharrime, Nacala, Maputo, Lisboa, Braga e Aveiro.Foi docente dos ensinos secundário e universitário até 2000. Inspetor da Educação e Ciência (IGEC), exerce, desde 2015, funções de diretor/presidente da CAP da Escola Portuguesa de Díli-CELP-Ruy Cinatti.

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Dia Mundial da Língua Portuguesa

A língua portuguesa em Timor-Leste. De língua da resistência

a língua de escolarização Mário MeirelesProjeto CAFE de Manatuto, Timor-Leste

Ao aceitar o desafio de escrever o texto que aqui se vê plasmado, cumpre-me considerar que não o faço sob o ponto de vista científico, crítico ou de investigação – pois não possuo quaisquer competências nesses domínios - mas apenas para falar da minha visão que resulta da (pouca) experiência em Timor-Leste, como professor de português no Projeto CAFE, desde março de 2018. A chegada da língua portuguesa (LP) a terras timorenses ter-se-á verificado de modo muito similar à dos outros países lusófonos, outrora colónias portuguesas. No caso timorense, talvez revestida de algumas particularidades que advinham da distância ao país de origem da língua “colonial”. Como nesses países, em Timor-Leste, a presença do português também resulta da expansão marítima, das trocas comerciais, do processo de missionação de evangelização promovidos pela Igreja Católica e, posteriormente, do domínio colonial e administrativo.

Diga-se, em abono da verdade, que a Igreja sempre assumiu um papel mais ativo na difusão da língua portuguesa do que o próprio Estado, no caso timorense. Pois este sempre se reservou a um papel muito secundário neste domínio. A título de exemplo, sabe-se que a primeira escola oficial de língua portuguesa em Timor-Leste surgiu em 1915. Também, por isso, ao fim de 500 anos de “presença”, nunca a LP se assumiu como língua falada nesta zona oriental. Com efeito, sempre se reservou a um alcance nas elites e na administração. Nos dias de hoje, mesmo com estatuto de língua oficial, a realidade linguística do português traduz-se em cerca de 5% de falantes, embora num contexto linguístico sui generis que o explica, como veremos à frente. Apesar disso, a língua portuguesa detém uma função importante e única no contexto timorense, que decorre da sua capacidade de resistir e sobreviver,

A língua portuguesa é fundamental para a nossa

identidade. O próprio tétum, para se desenvolver, precisa do

português. Alimenta-se dele. Tahur Matan Ruak,

atual primeiro-ministro de Timor-Leste

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com a Resistência Timorense, às invasões indonésias, assumindo-se, por isso, como fator de afetividade cultural e democrática. O período das invasões indonésias foi penoso, violentíssimo e dizimador para este país, mas também para a língua portuguesa. Os vinte e quatro anos de ocupação indonésia trouxeram a Timor-Leste o malaio indonésio imposto como idioma obrigatório como estratégia de domínio cultural, acrescido da proibição do uso da língua portuguesa. Pelo facto de estar conotada com a Resistência, a LP acabou perseguida e proibida, remetendo-se a um papel de clandestinidade na Resistência, ficando-lhe associada e assumindo-se como veículo privilegiado de uso de língua nos documentos, missivas e demais instrumentos de comunicação da Resistência dos guerrilheiros nas montanhas.

Posteriormente à ocupação Indonésia, o português vincou também a sua importância, pois, segundo Tahur Matan Ruak, “era uma das armas para contrapor à língua malaia no âmbito da luta cultural”. Este sentido de consciência e identidade nacional também se pode verificar no facto da LP ser usada, pela FRETILIN, na comunicação em todos os momentos. Ainda que paradoxalmente, a perseguição à LP durante a ocupação Indonésia, terá sido a razão da sua sobrevivência até agora. É este valor afetivo, histórico e cultural que está subjacente ao português em Timor-Leste que o fez, por vontade dos seus líderes, elevar ao estatuto de língua oficial. E assim, nos dias de hoje, o português é língua de

estado, de escolarização e instrução. Não foi, não é e não será uma língua falada e de comunicação no quotidiano timorense por toda a população. Nesse quotidiano, seremos sempre confrontados com uma diversidade linguística que, representando uma riqueza cultural e linguística, se constituiu um obstáculo à generalização da língua portuguesa. Na rua, no mercado, no restaurante, na escola esta “comunhão” linguística prolifera, até num simples ato de fala básico, em que se diz, o “bom dia” em português, se pede a fruta em tétum, se apreça em bahasa, se faz a conta em tétum e se paga em dólares. Assim convive a LP com as outras línguas e também com as línguas maternas, cerca de vinte no território. O que faz de Timor-Leste um caso particular ao ponto de, com toda a propriedade, ser apelidado de “Babel linguística”.

Muitas vezes se sente a necessidade de recurso a um guia-intérprete a cada deslocação pelo território! Chegados a Timor-Leste, é neste panorama linguístico que nos vemos mergulhados. O português não é língua do quotidiano, como já foi dito, esse papel está reservado ao tétum, a outra língua oficial do país. Mas a panóplia de línguas não termina por aqui, pois a par das línguas oficiais, foi definido, constitucionalmente, que o malaio indonésio e o inglês fossem línguas de trabalho na administração pública. E o povo, nas suas relações quotidianas e familiares, recorre às inúmeras línguas e dialetos. Apesar disto, a LP vai sobrevivendo. Sendo língua oficial, a LP assume outra dimensão que

Na rua, no mercado, no restaurante, na escola esta “comunhão” linguística prolifera, até

num simples ato de fala básico, em que se diz, o “bom dia” em português, se pede a fruta em tétum, se apreça em bahasa, se faz a conta em

tétum e se paga em dólares.

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lhe subjaz: o de língua de escolarização e instrução. Com efeito, tal já se verifica, o português é o veículo usado no processo educativo, no acesso ao conhecimento, nos manuais e nas provas de exame nacionais. É por esta via da aprendizagem da língua portuguesa na escola, que o português encontrará caminhos de difusão e de sobrevivência como língua em Timor-Leste. Até ver, não haverá outra via para a LP “ganhar terreno” nesta Babel de Lorosa’e. No entanto, aquilo que se apresenta como oportunidade também se constitui um desafio, principalmente para nós, agentes da língua portuguesa em Timor-Leste. O ensino do português, por aqui, requer, à partida, ajustamentos constantes ao contexto e às necessidades dos aprendentes, a começar pela diferente abordagem que se impõe, exigindo aos “ensinantes” da LP – como eu – que a reconheçam em Timor-Leste como Língua Não-Materna. Esta é uma condição essencial para a adequar à especificidade timorense e ver algum sucesso na aprendizagem da mesma. Outra passará por “despir a pele” de professor português de língua portuguesa com a visão e modus operandi ocidental, europeu e luso do ensino-aprendizagem da língua. “Despir a pele” significa mesmo ter a capacidade de não trazer nada nos bolsos! Despojar-se dos materiais preparados para o ensino da língua em Portugal, frequente e inadvertidamente, replicados diretamente de Portugal nas escolas timorenses. Em suma, ensinar português em Timor-Leste exige de nós conhecimento do terreno que se pisa, adequação de recursos e materiais, perceção da especificidade linguística timorense, de algumas caraterísticas das línguas faladas localmente, muito diferentes na sua estrutura, na ordem das palavras, no uso dos tempos verbais, na ausência dos artigos, no uso da dupla negativa, na resposta a perguntas na negativa, etc. Tudo isto para ir ao encontro das reais necessidades dos aprendentes. Ao Estado português pede-se que continue a investir no processo de consolidação da língua portuguesa

como língua oficial e de escolarização. Embora sejam visíveis sinais positivos, com o processo de cooperação em curso com Timor-Leste, que se configura na implementação de alguns Projetos de promoção da língua portuguesa, como é caso do Projeto CAFE, de que faço e está presente em todos os distritos do país, da parte do Estado português, em parceria com o Estado timorense, espera-se uma disponibilização de mais agentes educativos/professores preparados e formados na língua portuguesa como língua não-materna, com conhecimentos e capacidades referidas anteriormente, e, também, formação adequada dos quadros locais em língua portuguesa, que permitirão o seu ensino e disseminação pelas escolas públicas. Também será necessária uma decisão da parte do Ministério da Educação Juventude e Desporto de Timor-Leste. A de proceder a uma revisão dos programas de língua portuguesa, principalmente, do 3.º Ciclo e ensino secundário, com uma adequação às necessidades e níveis de proficiência linguística dos aprendentes, invertendo a tendência excessiva que a dimensão gramatical e de funcionamento da língua possuem na abordagem da língua portuguesa como língua de escolarização. O objetivo do ensino da língua portuguesa em Timor-Leste nunca será de a fazer falada em todos os cantos e atos dos timorenses, mas de os capacitar no uso como língua oficial, de identidade cultural, histórica e com uma marca afetiva que advém da luta comum na resistência. Indo de encontro à vontade dos timorenses, representada pelos seus líderes, como o agora primeiro-ministro, Tahur Matan Ruak: «Queremos, enfim, afirmar que nunca perdemos a vontade de manter a língua portuguesa, tanto oral como ortograficamente, apesar das várias dificuldades e limitações impostas na redução física dos falantes da língua portuguesa. Sempre com espírito de que a mesma será a nossa língua oficial, logramos conseguir aquilo que para muitos foi um sonho. Com muita razão dizemos: Valeu a pena lutar!»

Nota Biográfica

Mário Ângelo MeirelesNatural de Freamunde, nascido em 1961.Professor do grupo 300, na Escola Secundária de Paços de Ferreira.Atualmente, é professor e coordenador no Projeto CAFE no município de Aileu.Integra o Projeto desde março de 2018, tendo integrado a equipa pedagógica do CAFE de Manatuto, durante os primeiros dois anos letivos.Nesse município, liderou um projeto de escrita bilíngue com alunos e professores, que resultou na escrita coletiva da fábula «O Sonho do Crocodilo», que será editada pelo Ministério da Educação e Juventude de Timor-Leste.

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O sonho do crocodiloCAFE de Manatuto

Os alunos da Escola CAFE de Manatuto (Timor-Leste) escreveram e ilustraram o livro, O Sonho do Crocodilo.Esta fábula escrita coletivamente pelos alunos dos vários ciclos de ensino tem como base o mito da criação da Ilha de Timor.

A reprodução de O Sonho do Crocodilo em Tétum foi efetuada pelos professores titulares timorenses da Escola.

A obra será distribuída pelas escolas públicas de Timor-Leste com o objetivo de ser lida e trabalhada por professores e alunos.

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São Tomé e PríncipeEscola Portuguesa de São Tomé e Príncipe-CELPO livro da miha vida 75Carla Barreto

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O livro da minha vida Carla BarretoEscola Portuguesa de São Tomé e Príncipe, 10.º ano

Foi-me pedido que escrevesse um texto de opinião sobre “o livro da minha vida”, ou seja, um livro que me tenha marcado. Depois de alguns minutos a pensar, analisar, apercebi-me que todos os livros deixaram algo em mim. Eles foram como um professor. Deixaram palavras novas, formas diferentes de ver o mundo, fascínio, satisfação, curiosidade, ... Apesar de todos os livros que li terem deixado algo muito especial, decidi escolher um. O seu título é O recruta de Robert Muchamore e conta a história de James, uma criança de apenas doze anos que perdeu a mãe e foi parar a um orfanato, onde logo se destacou pela sua inteligência, perspicácia, audácia, espírito de sobrevivência e coragem. Foi encontrado por uma organização secreta chamada CHERUB, que treinava crianças e adolescentes para serem agentes especiais. Após acompanhar cada sofrimento, dor, vitória e

compartilhar com James todo o seu doloroso e árduo percurso, não conseguia parar de ler ou ao menos esconder o meu encantamento e animação. Em cada parágrafo, a curiosidade dominava-me e a ansiedade não me largava… O livro era simplesmente magnífico e perfeito! Depois de o ter lido, não conseguia parar de pensar nele, desejando que tudo fosse real e que um dia pudesse fazer parte de tão estimada e exímia organização. Escolhi este livro como “o livro da minha vida”, porque nunca o esquecerei. Ele despertou em mim a curiosidade de querer saber sempre mais, o desejo de ser uma pessoa melhor e ensinou-me a aproveitar as coisas boas e valiosas da vida, porque elas não duram para sempre, ensinou-me a respeitar tudo ao meu redor e a valorizar o que tenho. Além de ser um professor este livro foi um amigo.

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